Jack Higgins - O Porto Secreto

Embed Size (px)

Citation preview

  • O PORTO SECRETO

  • Jack Higgins

    Traduo de

    A. CARMONA TEIXEIRA

    CRCULO DE LEITORES

    Copyright c) Jack Higgins 1990

  • Impresso e encadernado por Resopal para Crculo de Leitores

    no ms de Dezembro de 1991

    Nmero de edio: 2990

    Depsito legal nmero 48 685/91

    @Um

    O luar iluminava cadveres a flutuar por todo o lado, com e sem coletes salva-vidas, e, mais alm, oleo a arder erguia chamas sobre o mar. Durante os breves momentos que a ondulao o deixoususpenso na crista de uma onda, Martin Hare conseguiu observar o que ainda restava docontratorpedeiro, cuja proa j tinha submergido. Uma exploso atroou os ares, a popa elevou-se e onavio comeou a afundar-se. Hare deslizou pela outra vertente da vaga, mantendo-se superfciegraas ao colete salva-vidas. Bruscamente, abateu-se-lhe por cima outra onda, quase o afogando eobrigando-o a debater-se freneticamente por um pouco de ar, sempre consciente da dor intensa que umestilhao no peito lhe provocava.

    A corrente era muito rpida no canal entre as duas ilhas, atingindo uns seis ou sete ns, no mnimo.Tinha a impresso de estar a ser arrastado a uma velocidade incrvel, e a deixar para trs os gritos dosmoribundos, que se tornavam indistintos na noite que findava. Elevou-se de novo at crista de umaonda, onde ficou suspenso por instantes, meio cego pelo sal, e, de sbito, mergulhou clere emdireco a uma balsa de salvamento.

    Agarrou-se a uma das alas de corda e olhou para cima. Viu um homem acocorado na jangada, umoficial japons, e reparou que estava descalo. Olharam-se nos olhos durante um longo momento, e,ento, Hare tentou iar-se. Mas no teve foras para tanto.

    Sem proferir uma palavra, o japons arrastou-se para diante e, estendendo um brao, segurou-o pelocolete e puxou-o para cima. No mesmo instante, a jangada, apanhada por um redemoinho, girou comoum pio, lanando o japons de cabea para o mar.

    Alguns segundos aps, j o homem se afastara mais de dez metros, com a face iluminada pelo luar asobressair nas guas. Comeou a nadar de regresso balsa, e, ento, Hare avistou a barbatana dotubaro que o perseguia, cortando a espuma branca que separava as vagas.

    O japons nem teve tempo de gritar, elevando os braos para o cu e desaparecendo. Como sempresucedia, foi Hare quem gritou, sentando-se de um salto na cama, com o corpo alagado em suor.

    A enfermeira de servio era a MacPherson, uma mulher de cinquenta anos, rija, sem complacncias,viva e com dois filhos nos Fuzileiros Navais, a combater algures nas ilhas. Entrou e deteve-se aobserv-lo, com as mos nas ancas.

    --Novamente o mesmo sonho?

    Hare atirou as pernas para fora da cama e agarrou o roupo.

    --Claro! Quem o mdico de servio, hoje noite?

  • --O comandante Lawrence, que no lhe vai dar grande ajuda. Umas plulas para dormir um poucomais, em continuao do que j fez toda a tarde.

    --Que horas so?

    --Sete. Porque no toma um banho de chuveiro enquanto eu lhe arranjo a bela farda que lhetrouxeram?

    Podia ir jantar l em baixo. Sempre lhe fazia bem...

    --No me parece!

    Observou-se ao espelho, correndo os dedos por entre os cabelos negros e revoltos, aqui e almmesclados de mechas grisalhas, bem de esperar aos quarenta e seis anos. A face era bastanteagradvel, embora plida, em resultado dos meses de internamento no hospital. Os olhos, de "pressoausente, denotavam uma total falta de esperana.

    Abriu uma gaveta do armrio ao lado da cama, tirou o isqueiro e um mao de cigarros e acendeu um.Comeou a tossir, mal se levantou. Atravessou o quarto para a porta aberta que dava para a varanda econtemplou o jardim.

    --Mas que falta de juzo!--exclamou ela.--Reduzido a um nico pulmo saudvel, decidiu acabar otrabalho que os japoneses iniciaram!--Ao lado da cama via-se uma garrafa-termo cheia de caf, dondea enfermeira encheu uma chvena, que lhe levou:--E tempo de comear a viver novamente,comandante. Como se costuma dizer nos filmes de Hollywood, a guerra acabou, para si.

    Alis, nem sequer a deveria ter comeado. brincadeira para gente nova.

    Ele beberricou um golo de caf.

    --E que vou fazer?

    --Voltar a Harvard, professor.--Sorria, enquanto falava.--Com todas essas medalhas, os estudantes voador-lo! No se esquea de usar o uniforme no primeiro dia.

    A despeito de si prprio, Hare sorriu-se por um breve instante.

    --Deus me valha, Maddie, mas no me parece que possa voltar atrs. Convm no esquecer que f&z aguerra!

    --E a guerra deu cabo de si, meu anjo!

    --Bem sei. O matadouro de Tulugu acabou comigo.

    Diria at que fiquei sem prstimo para nada.

    --Bem, o senhor j no uma criana! Se pretende sentar-se a um canto deste quarto e deixar-seapodrecer para ai, o problema seu.--Dirigiu-se para a porta, abriu-a e voltou-se:--S que lhe sugeriaque se penteasse e se pusesse apresentvel, pois vai ter uma visita.

  • Hare franziu o sobrolho:

    --Uma visita?

    --Sim. Est agora com o comandante Lawrence. No sabia que tinha parentes ingleses.

    --De que est a falar?--perguntou Hare, perplexo.

    --Da sua visita. Alta patente. Um tal brigadeiro Mro, do Exrcito ingls, embora no parea, j quenem sequer est fardado.

    Saiu, fechando a porta. Hare ficou imvel por um momento, de semblante carregado, e entrou noquarto de banho, abrindo o chuveiro.

    O brigadeiro Dougal Mnero era um sujeito feio e atraente, tinha sessenta e cinco anos, cabelosbrancos, e vestia um fato mal talhado de fazenda axadrezada do padro do Donegal. Usava uns culosde aros de ao, do tipo regulamentar do Exrcito ingls.

    --O que eu preciso de saber se ele est apto para o servio, doutor--dizia Munro.

    Lawrence tinha vestido uma bata cirrgica branca sobre o uniforme de servio.

  • Abrindo uma pasta que tinha

    na sua frente, disse:

    --Se se refere ao aspecto fsico, posso dizer-lhe que ele tem quarenta e seis anos, foi atingido por trsestilhaos no pulmo esquerdo e passou seis dias numa balsa.

    Foi um milagre ter-se salvo.

    --Sim, tambm acho!--concordou Munro.

    --Um professor de Harvard que se torna oficial da reserva naval, evidentemente, j que se tratava deum velejador famoso, com relaes nos centros de influncia devidos, graas s quais entra para osnavios torpedeiros com a idade de quarenta e trs anos, no incio da guerra.

    --Folheou o processo.--No falhou uma nica das zonas de guerra do Pacfico. Capito-de-corveta emedalhas.--Encolheu os ombros:--Est aqui tudo, incluindo duas Cruzes Navais, e, por fim, essecombate em Tulugu. Um contratorpedeiro japons rebentou-lhe com metade do navio, de modo queele abalroou-o e f-lo ir pelos ares com uma carga explosiva. Devia ter morrido!

    --Segundo me disseram, foi o que sucedeu a quase toda a tripulao!--disse Munro.

    Lawrence fechou a pasta:

    --Sabe porque que ele no recebeu a Medalha de Honra? Porque foi o general MacArthur quem oprops, e a Armada no gosta de interferncias do Exrcito.

    --Pelo que vejo, no pertence ao quadro permanente da Armada?--perguntou Munro.

    --No, com mil diabos!

    --?ptimo. Tambm no perteno ao quadro permanente do Exrcito, de modo que podemos falarfrancamente. Ele est apto para o servio?

    --Fisicamente, sim. Embora tenha cortado dez anos na segunda metade da vida. A inspeco mdicano o indicou para servio no mar. Dado a idade, pode optar por baixa mdica.

    --Compreendo.--Munro bateu com os dedos na testa.--E aqui, o que se passa?

    --Na cabea?--Lawrence encolheu os ombros.-Quem sabe? facto que passou por uma fortedepresso, mas isso passa. Dorme mal, raras vezes deixa o quarto e d a impresso ntida de no ter amenor ideia de que raio h-de fazer vida.

    --Portanto, pode deixar o hospital?

    --Claro que sim! H semanas que lhe poderia ter sido dado alta. Com a devida autorizao, como evidente!

    --Tenho-a aqui.

  • Munro tirou uma carta de um bolso interior, abriu-a e passou-a a Lawrence, que a leu e assobioubaixinho: --Jesus, assim to importante?

    --Sim.--Munro meteu a carta no bolso e pegou na sua gabardina Burberty e no guarda-chuva.

    Lawrence exclamou:

    --Meu Deus! Vai mand-lo de volta para a guerra!?

    Munro sorriu ligeiramente e abriu a porta:

    --Se no se importa, comandante, vou v-lo agora.

    Munro passeou o olhar pelo jardim, at s luzes da cidade, que, com o cair da noite, comeavam aacender-se.

    --Washington, nesta altura do ano, muito agradvel.--Voltou-se e estendeu a mo:--Munro, DougalMunro.

    --Brigadeiro?--perguntou Hare.

    --Exactamente.

    Hare vestia umas calas de desporto e uma camisa aberta no peito, e ainda tinha a cara hmida dobanho.

    --Perdoe-me que lho diga, senhor brigadeiro, mas o senhor o militar de aspecto menos marcial quejamais vi.

    --Graas a Deus!--exclamou Munro.--At mil novecentos e trinta e nove fui egiptlogo de profisso,um "Fellow of All Souls", em Oxford. A patente que me atriburam destina-se a dar-me autoridade emcertos meios, digamos assim.

    Hare franziu o sobrecenho.

    --Um momento! Quer dizer, servios de espionagem?

    --Precisamente, comandante. J ouviu falar da SOE, comandante?

    --Special Operations Executive2--disse Hare. -Enviam agentes para a Frana ocupada e coisas dognero?

    --Nem mais. Fomos os precursores do vosso OSS, que, tenho muita honra em diz-lo, trabalha emntima ligao connosco. Tenho a meu cargo a Seco D da SOE, mais vulgarmente conhecida pelo"Departamento dos Golpes Sujos".

    --E que diabo pretende o senhor brigadeiro de mim?

    --Segundo sei, o senhor comandante foi professor de literatura alem em Harvard...

  • --E qual o interesse disso para o caso?

    --Porque sua me era alem, viveu muito tempo com seus pais na Alemanha, quando era rapaz, no verdade? Chegou at a formar-se na Universidade de Dresda.

    --E da?

    --Soube que fala alemo fluentemente (pelo menos, assim mo afirmaram os vossos servios deinformao) e que o seu francs muito razovel.

    Hare assumiu um ar carrancudo:

    --Que est a tentar insinuar? Pretende aliciar-me como espio ou coisa que o valha?

    --De modo algum! --respondeu Munro. --Veja bem, o senhor realmente nico, comandante. No apenas o facto de falar fluentemente alemo que o torna interessante, mas sobretudo a duplacircunstncia de ser oficial da Armada, com grande experincia de torpedeiros, e que tambm falacorrectamente alemo.

    --Talvez no fosse m ideia explicar-se melhor.

    --De acordo.--Munro sentou-se.-- facto que prestou servio nas ilhas Salomo, no SegundoEsquadro de Navios Torpedeiros?

    --Sim.

    --Bem, embora se trate de um assunto confidencial, posso dizer-lhe que, a solicitao urgente daRepartio de Servios Estratgicos, os seus homens vo ser transferidos para o canal da Mancha, afim de recolher agentes nossos na costa francesa.

    --E o senhor brigadeiro pretende-me para esse servio?--exclamou Hare, com enorme surpresa.--Noest bom do juzo! Pois no sabe que estou arrumado de vez, e que at querem dar-me baixa mdica?!

    --Preste ateno!--atalhou Munro.--No canal da Mancha, os navios torpedeiros ingleses tm tidoimensos problemas com os seus homnimos germnicos.

    --Os quais os alemes designam por Sc)mellboot-acrescentou Hare--; isto , um navio rpido, o queconstitui realmente um nome muito adequado.

    --Claro. Mas, por uma razo qualquer, ns designamo-los de E-boats . Como disse, trata-se de naviosrpidos, diabolicamente rpidos. Temos vindo a tentar capturar um desde o inCiO da guerra e, sintogrande prazer ao diz-lo, conseguimo-lo finalmente, o ms passado.

    --Est a brincar!--exclamou Hare, estupefacto.

    --H-de ver que nunca brinco, comandante--ripostou-lhe Munro.--Um dos navios da srie S.80 teveproblemas com os motores, numa misso nocturna ao largo da costa de Devon. Quando um dos nossos

  • contratorpedeiros apareceu, de madrugada, a tripulao abandonou o navio. Claro que o comandantedeixou uma carga explosiva a bordo, preparada para o afundar, a qual, infelizmente para ele, nochegou a explodir. Segundo o interrogatriO que fizemos ao operador de rdio, a ltima mensagemque enviaram para Cherburgo informava que iam afundar o navio, o que significa que ns capturmosa vedeta-torpedeira, e a Kriegsmarine' de nada sabe.-Sorriu:--Est a seguir o meu raciocnio?

    --No tenho bem a certeza...

    --Comandante Hare, existe na Cornualha um pequeno porto de pesca chamado Cold Harbour. No temmais de duas ou trs dzias de vivendas e uma casa senhorial.

    uma zona de defesa, e os seus habitantes h muito que, de l saram. O meu departamento usa-o parafins especiais... digamos assim. Dirijo a operao de um par de avies, a partir de l... avies alemes.Um Stork e um caa nocturno, gu885. Ambos conservam as insgnias da Luft vaffe2, e o homem queos tripula um bravo piloto da RAF,3 que, ele tambm, usa o uniforme da Lufnvaffe.

    --E o senhor pretende fazer o mesmo com esse torpedeiro?

    --Exactamente, e aqui que o senhor entra em jogo.

    No final de contas, um navio da Kriegsmarine ter de ter uma tripulao tambm da Kriegsmarine.

    --O que contraria de tal modo as leis da guerra que mais no necessrio para levar a tripulaoperante um peloto de fuzilamento, se for capturada--contraps Hare.

    --Estou ciente disso. A guerra, como disse uma vez o vosso general Sherman, o inferno.--Munrolevantou-se, esfregando as mos:--Meu Deus, as possibilidades so ilimitadas. Devo dizer-lhe ainda(e, uma vez mais, isto confidencial) que todo o trfego de informao militar e naval dos alemes cifrado em mquinas Enigma que os nazis julgam ser totalmente prova de interferncias.Infelizmente para eles, ns montmos um projecto, a que demos o nome de Ultra, por intermdio doqual conseguimos penetrar no sistema. Pense na informao que poderia obter da Kriegsmarine: sinaisde reconhecimento, cdigos do dia para entrada nos portos, eu sei l!

    --Uma loucura!--comentou Hare.--Teria de se arranjar uma tripulao.

    --O S.80 conta habitualmente com uma guarnio de dezasseis homens. Os meus amigos noAlmirantado pensam que o senhor comandante poderia resolver o problema com dez homens,incluindo se a si prprio. Como se trata de um empreendimento conjunto, tanto a nossa gente como avossa esto em busca do pessoal adequado.

    J tenho o chefe de mquinas perfeito: um refugiado judeu alemo que trabalhou na fbrica Daimler-Benz, que constri os motores para todos os torpedeiros.

    Fez-se uma pausa longa. Hare voltou-se e contemplou a cidade, circunvagando o olhar para alm dojardim. Estava escuro e, estremecendo, recordou se--sem qualquer razo aparente--de Tulugu. Aotentar tirar um cigarro do mao, a mo tremeu-lhe: voltando-se, mostrou-a a Munro, dizendo:

  • --V isto? E sabe porqu? Porque estou com medo.

    --Pois tambm eu tive medo na barriga do maldito bombardeiro que me trouxe at aqui--disse Munro.-E voltarei a ter medo no voo de regresso, esta noite, embora desta vez o faa numa fortaleza voadora.Ao que parece, sempre tm um pouco mais de espao.

    --No--disse Hare com voz rouca--, no aceito.

    --Oh! A que se engana, senhor comandante. E devo dizer lhe o motivo? Porque no tem mais nadaque lhe interesse fazer. evidente que j no consegue voltar a Harvard. Voltar ao ensino depois detudo o que passou? Vou dizer lhe uma coisa a respeito de si prprio, pois ambos navegamos no mesmobarco. Somos homens que passmos parte 'da nossa vida vivendo da cabea.

    Das histrias de outros homens. Tudo nos livros. Ento veio a guerra, e sabe que mais, meu caroamigo? Viveu intensamente os mais belos momentos... e gostou.

    --V para o inferno!--respondeu lhe Martin Hare.

    --Muito provavelmente.

    --E se eu no aceitar?

    --Oh! Cus!--Munro tirou uma carta do bolso interior do casaco.--Suponho que reconhece a assinaturaao fundo como sendo a do comandante-chefe das Foras Armadas americanas.

    Hare olhou para a carta, estupefacto.

    --Meu Deus!

    --Sim, e ele gostaria de lhe dar uma palavra antes de partirmos. Talvez lhe possa chamar uma reuniode comando, de modo que seja bom rapaz e farde-se. J no temos muito tempo!

    Na Casa Branca, a limusina parou na porta oeste, onde Munro mostrou o passe aos agentes dosServios Secretos no turno da noite. Houve uma pausa, enquanto chamavam um ajudante. Aps brevesmomentos, um jovem tenente da Armada, impecavelmente fardado, veio receb-los:

    --Senhor brigadeiro--disse, cumprimentando Munro, e, voltando-se para Hare, saudou-o como s oscadetes de Annapolis sabem fazer:--Tenho grande honra em o conhecer, senhor comandante.

    Hare retribuiu a saudao, ligeiramente embaraado.

    O jovem disse, ento:

    --Queiram seguir me, meus senhores. O senhor presidente espera-os.

    A Sala Oval estava na penumbra, sendo a nica luz proveniente de um candeeiro sobre uma secretria,pejada de papis. Instalado na cadeira de rodas, ao p de uma janela, a brasa de um cigarro brilhando

  • na habitual boquilha comprida, o presidente Roosevelt contemplava, absorto, os jardins. Fazendo girara cadeira, disse: --Ora c o temos, senhor brigadeiro.

    --Senhor presidente.

    --E traz-me o comandante Hare?--Estendeu a mo:

    --O senhor uma honra para o seu pas. Como seu presidente, agradeo-lhe.

  • Aquele combate de Tulugu foi

    qualquer coisa de grande.

    --Homens melhores do que eu morreram para afundar aquele contratorpedeiro, senhor presidente.

    --Eu sei, meu filho.--Roosevelt segurava a mo de Hare entre as suas.--Homens melhores do que osenhor ou eu morrem todos os dias, mas ns temos de continuar e esforarmo-nos por fazer o melhorque pudermos.--Retirou o resto do cigarro da boquilha e p-lo no cinzeiro.--O senhor brigadeiroinformou o deste ca so de Cold Harbour? Agrada-lhe o trabalho?

    Hare deu um relance de olhos a Munro, hesitou e acabou por dizer:

    --Uma proposta interessante, senhor presidente.

    Roosevelt inclinou a cabea para trs e riu-se:

    --Uma forma correcta de pr o problema.--Deslocou a cadeira at secretria e voltou-se, dizendo:--Sabe que usar um uniforme inimigo radicalmente proibido pelas disposies da Conveno deGenebra?

    --Sim, senhor presidente.

    Roosevelt olhou para o tecto:

    --Corrija me se eu errar, senhor brigadeiro, mas no foi durante as guerras napolenicas que navios daArma da inglesa entraram ocasionalmente em combate sob a bandeira da Frana?

    --De facto, senhor presidente, assim foi, e, por via de regra, faziam no com navios franceses tomadoscomo presas de guerra e incorporados seguidamente na Arma da britnica.

    --Por conseguinte, existe um precedente que leve a considerar este tipo de aco como um ruse deguerra legtimo?--inquiriu Roosevelt.

    --Certamente, senhor presidente.

    Hare interrompeu:

    --Dever ter se em ateno que, sempre que empreendiam tal tipo de aces, os ingleses costumavamiar a sua prpria bandeira antes de a batalha comear.

    --Isso agrada me!--observou Roosevelt.--Se um homem tem de morrer, pois que seja sob a sua prpriabandeira.--Olhou para Hare, e disse:--Uma ordem directa do comandante-chefe: trar sempre abandeira dos Estados Unidos nesse torpedeiro, e, se algum dia ti ver de entrar em combate, i la ,retirando a insgnia da Kriegsmarine. Compreendido?

    --Perfeitamente, senhor presidente.

    Roosevelt estendeu novamente a mo:

  • --?primo. S me resta desejar lhe felicidades.

    Apertaram as mos, e, como por obra de magia, o jovem tenente saiu da sombra e acompanhou os porta.

    Quando a limusina virava para a Constitutional Avenue, Hare comentou:

    --Um homem notvel.

    --Isso dizer muito pouco!--exclamou Munro.-O que ele e Churchill conseguiram

    extraordinrio.-Suspirou:--Gostaria de saber quanto tempo se passar

    at que algum livro surja por a a provar que a influncia de ambos pouca importncia teve...

    --Intelectuais de segunda ordem em busca de reno me?--exclamou Hare.--Tal como ns?

    --Precisamente.--Munro olhou para fora, para as ruas iluminadas.--Vou sentir a falta desta cidade. Osenhor comandante vai ter um choque cultural quando chegarmos a Londres. No s por causa daocultao de luzes, mas porque a Luftwaffe comeou novamente com os bombardeamentos nocturnos.

    Hare apoiou se contra o encosto do assento e cerrou os olhos, no por motivo de cansao, mas por tertido a conscincia sbita de uma alegria feroz. Era como se tivesse estado adormecido durante longotempo e acordas se de novo.

    A fortaleza voadora tinha acabado de sair da fbrica, e ia juntar se 8.a Fora Area americana, naGr-Bretanha.

    A tripulao esforou-se para que Hare e Munro ficassem to bem instalados quanto possvel,fornecendo cobertores e almofadas do Exrcito, e um par de garrafas-termos.

    Hare abriu uma, quando sobrevoavam a costa da Nova Inglaterra, em direco ao mar.

    --Caf?

    --No, obrigado. --Munro ajeitou uma almofada atrs da cabea, e puxou o cobertor.--Sou apreciadorde ch.

    --Bom, tem de haver de tudo...--concluiu Hare.

    Beberricou o caf, enquanto Munro acrescentava:

    --Esqueci me de lhe dizer que, em funo das actuais circunstncias, a Armada decidiu promov lo.

    --A capito de-fragata?--perguntou Hare, admirado.

    --No, na realidade a Fregattenkapitan,--respondeu Munro, puxando o cobertor sobre os ombros e

  • preparando se para adormecer.

    @Dois

    Craig Osbourne, ao chegar aos arredores de Saint Maurice, ouviu a chicotada de uma salva deespingarda, que fez levantar na mata de faias prxima da igreja da vi la uma nuvem negra de gralhas,em discusso acalorada umas com as outras. Conduzia um Kubelwagen--o equivalente de um jipe noExrcito alemo, que o utilizava como viatura para fins genricos, capaz de ir a qualquer lado.Estacionou-o junto do porto de entrada do cemitrio e saiu do carro, impecavelmente fardado com ouniforme de Standartenfiihrer da Waffen-SSI.

    Caa uma chuva miudinha, pelo que tirou a gabardina de cabedal negro do assento da retaguarda,lanando-a sobre os ombros, e encaminhou-se para o local onde um guarda observava o que se passavana praa. Via-se uma meia dzia de camponeses--no eram mais do que isso--, uma esquadra defuzilamento da SS, e dois prisioneiros com as mos algemadas atrs das costas, sem esperana norosto. Um terceiro prisioneiro jazia no solo, de face voltada para as pedras da calada. EnquantoOsbourne observava a cena, um oficial idoso entrou na praa, envergando um capote comprido, combandas cinzentas na gola, correspondentes patente de general da SS.

    SS--polcia militarizada da Alemanha nazi, especialmente encarregada da segurana dos campos deconcentrao e dos territrios ocupados pelo Reich.

    Waffen-SS--designao das unidades combatentes da SS. (N. do T.) Inclinando-Se para baixo etirando uma pistola do coldre, disparou um tiro na nuca do homem que jazia no cho.

    --Presumo que seja o general Dietrich?--perguntou Osbourne, num francs impecvel.

    O guarda, que no se tinha dado conta da sua aproximao, respondeu automaticamente:

    --Sim, esse tipo gosta de ser ele prprio a acabar com eles.--Mas, dando meia volta, apercebeu se douniforme, e, de um salto, tomou a posio de sentido, desculpando-se:--Perdoe me, senhor coronel,no tinha inteno de ofender.

    --No houve ofensa. Afinal de contas, somos compatriotas.--Craig levantou o brao esquerdo, e oguarda notou de imediato que ele usava no canho da manga a legenda da Brigada Francesa CarlosMagno, da SS.-Sirva se.

    Estendeu lhe a cigarreira e o guarda aceitou um cigarro. Quaisquer que fossem os seus pensamentosrelativos a um compatriota que servia o inimigo, soube guard los para si prprio, conservando a faceinexpressiva.

    -- frequente suceder isto?--perguntou Osbourne, dando-lhe lume. O guarda hesitou, mas Osbourneacenou, encorajando-o:--Diga l, homem, diga o que pensa. Pode no concordar comigo, mas somosambos franceses.

    A frustrao e a clera vieram ao de cima:

  • --Duas ou trs vezes por semana, aqui e noutros lo cais. Um carniceiro, este gajo!--Um dos doishomens que aguardavam voltou se contra a parede: ouviu se uma ordem de comando e outra salva.--Erecusa lhes os ltimos sacramentos. Est a ver, senhor coronel? No lhes permite ter um padre, mas,depois de tudo acabar, corre logo a confessar-se ao padre Paulo, como um bom catlico, para logo deseguida se empanturrar com um alto almoo, no caf do outro lado da praa!

    --Sim, j mo tinham dito, de facto--comentou Osbourne.

    Voltou-se e encaminhou-se para a igreja. O guarda seguiu-o com o olhar, pensativo, e de novo volveua ateno para a praa, a fim de observar os acontecimentos, precisamente a tempo de ver Dietrichavanar uma vez mais, de pistola em punho.

    Craig Osbourne subiu o caminho atravs do cemitrio, abriu a grande porta de carvalho da igreja eentrou. Estava escuro no interior, com alguma luz filtrada atravs dos vitrais antigos. Sentia se no ar ocheiro do incenso, e viam-se algumas velas a arder junto do altar. Pouco aps a entrada de Osbourne,abriu-se a porta da sacristia, onde assomou um padre idoso, de cabelos totalmente brancos. Envergavauma alva e trazia uma estola violeta sobre os ombros. Parou, surpreendido: --Deseja alguma coisa?

    --Talvez. Volte para a sacristia, padre.

    O velho padre assumiu uma expresso grave:

    --Agora no, senhor coronel. Tenho gente para ouvir em confisso.

    Osbourne relanceou o olhar pela igreja vazia, at aos confessionrios.

    --No tem muita freguesia, padre, mas evidente que tambm no seria provvel t-la, uma vez queaguarda o carniceiro do Dietrich.--Assentou firme mente a mo sobre o peito do sacerdote:--Paradentro, por favor.

    O padre recuou at sacristia, perplexo:

    --Quem o senhor?

    Osbourne f lo sentar na cadeira de madeira junto da secretria e tirou um pedao de corda de umbolso do impermevel.--Quanto menos souber, padre, tanto melhor. Digamos que nem tudo o queparece. Agora, ponha as mos atrs das costas.--Atou os pulsos do velho com firmeza.--Deste modo,padre, estou a dar lhe a absolvio. Nenhuma relao com o que vai suceder aqui. Na realidade, umbom libi para apresentar aos nossos amigos alemes.

    Tirou um leno do bolso. O velho sacerdote disse:

    --Meu filho, no sei quais so os seus planos, mas lembre-se que est na casa de Deus.

    --Sim, bem gostaria de acreditar que estou a tratar das coisas de Deus!--concluiu Craig, amordaandoo velho.

    Deixou o padre, cerrou a porta da sacristia e atravessou a nave em direco aos confessionrios, ondeacendeu a luz de aviso sobre a porta do primeiro, entrando nele. Tirou a Walther do coldre, atarraxou

  • um silenciador no cano, e, entreabrindo ligeiramente a porta, ficou de atalaia porta da igreja.

    Pouco depois, Dietrich entrou, acompanhado de um jovem capito da SS. Ficaram ambos a conversaralguns momentos, aps o que o capito se retirou e Dietrich prosseguiu ao longo da coxia central,desabotoando o ca pote. Parou, tirou o bon e entrou no confessionrio, sentando-se. Osbourneaccionou o interruptor, acendendo a pequena lmpada do outro lado da grelha, e mantendo se a siprprio na sombra.

    --Bom dia, padre--disse Dietrich, em mau francs.

    --Abenoe me, porque pequei.

    --Claro que pecaste, grande estupor! --exclamou Craig, introduzindo o silenciador da Walther nagrelha e baleando-o entre os olhos.

    Osbourne saiu do confessionrio no preciso momento em que o jovem capito da SS abria a porta daigreja e espreitava. O general estava cado sobre a face, com a nuca transformada numa massa desangue e miolos, e Osbourne em p, ao seu lado. O jovem oficial sacou da pistola e disparou duasvezes, e o som dos disparos ressoou de um mo do ensurdecedor entre as paredes antigas. Osbournerespondeu ao fogo, atingindo-o no peito e derrubando-o sobre um dos bancos da igreja, e lanou-se emcorrida para a porta.

    Espreitou para fora e viu o carro de Dietrich estacionado em frente e o Kubelwagen mais adiante.Tarde de mais para l chegar, j que uma esquadra da SS, com as espingardas ao alto, corria emdireco igreja, atrada pelos disparos.

    Osbourne voltou para trs, correu ao longo da coxia e saiu pela porta da sacristia; avanou por entre aspedras tumulares at s traseiras da igreja, saltou por cima de um muro baixo e enveredou, colinaacima, em direco ao bosque.

    Comearam a disparar sobre ele quando j ia a meia encosta, forando o a ziguezaguear velozmente.Ia j a entrar na mata quando uma bala o atingiu no brao esquerdo, fazendo-o cair de lado, sobre umjoelho. Ergueu-se num pice e aumentou a velocidade, em direco linha de crista da colina. Ummomento mais tarde conseguia chegar s rvores.

    Continuou a correr o mais que podia, com ambos os braos a protegerem-lhe a face contra asvergastadas dos ramos das rvores, sem sequer saber para onde se dirigia.

    Nem tinha transporte nem tinha forma de chegar a tempo ao local de recolha, mas como era costumedizer na SOE, nos velhos tempos, acabara por borrar a pintura.

    Corria uma estrada ao longo do vale que se avistava mais abaixo, e tambm havia mata na outraencosta.

    Continuou descendo, escorregando por entre as rvores e acabando por aterrar numa vala; levantou-se,atravessou a estrada em corrida e, nesse preciso momento e para seu assombro total, uma limusinaRolls-Royce surgiu na curva e estacou ao p de si.

    Ren Dissard, com uma pala negra sobre um olho, conduzia o carro, envergando o uniforme de

  • motorista.

    A porta de trs abriu-se e Anne-Marie espreitou para fora.

    --Brincando de novo aos heris, Craig? Ser que nunca mais muda? Entre, por amor de Deus, temos dedesaparecer daqui!

    Quando o Rolls comeou a andar, apontou a manga do uniforme, ensopada em sangue:

    - grave?

    --No, suponho que no!--Osbourne entalou um leno dentro da manga.--Que diabo faz aqui?

    --Grand Pierre preveniu me. Como hbito, apenas uma voz ao telefone. Nunca o encontrei cara acara.

    --Bom, eu j!--disse-lhe Craig.--E digo-lhe que

    capaz de ter um choque, quando o vir pela primeira vez.

    --Ah! Sim? Diz

    que o Alesander no pode vir busc-lo. Prevem-se nevoeiros fortes e grandes chuvadas

    provenientes do Atlntico, segundo a gente dos meteorolgicos. Eu devia esper-lo na quinta einform-lo, mas tive um pressentimento ruim, de modo que decidi vir assistir festa. Estvamos nooutro lado da aldeia, ao p da estao. Ouvimos o tiroteio e vimo-lo a correr pela colina acima.

    --Ainda bem para mim!--exclamou Osbourne.

    --Sim, at porque nada disto me dizia respeito. De qualquer modo, Ren calculou que deveria passarpor aqUI.

    Acendeu um cigarro e cruzou as pernas caladas com meias de seda, muito elegante num fato negro,com um broche de diamantes na gola da blusa de seda branca.

    Usava o cabelo preto cortado curto, com uma franja sobre a testa e encurvado aos lados da cara,emoldurando os malares salientes e o queixo proeminente.

    --O que est a ver, to pasmado?--perguntou ela, de modo petulante.

    --Admiro-a! Demasiada cor nos lbios, como habitual, mas, por outro lado, diabolicamente bela!

    --Ora! Meta-se debaixo do banco e cale-se!--respondeu-lhe Anne-Marie.

    Desviou as pernas para o lado, e Craig puxou uma prancha, que deixou vista o espao sob o assento;rastejou l para dentro, voltando a coloc-la na mesma posio. Um momento mais tarde, encontraramum Kubelwagen atravessado na estrada, com meia dzia de SS espera.

  • --Devagar, Ren!--recomendou ela.

    --H problema?--ouviu-se perguntar Craig Osbourne, numa voz amortecida.

    --No, se tivermos sorte. Conheo o oficial. Esteve colocado no castelo durante uns tempos.

    Ren parou o carro e um jovem tenente SS avanou, de pistola em punho. A face iluminou-se-lhe,repondo a arma no coldre: --Mademoiselle Trevaunce! Um prazer inesperado.

    --Tenente Schultz. --Abriu a porta e estendeu a mo.

    --Um problema muito desagradvel. Um terrorista disparou sobre o general Dietrich, em SaintMaurice.

    --Pareceu-me ouvir tiroteio para esses lados--disse ela.--E como est o general?

    --Mataram-no, mademoiselle!--respondeu-lhe Schultz.--Eu prprio vi o corpo. Uma coisa tremenda.

    Assassinado na igreja, durante a confisso.--Abanou a cabea. -- incrvel que haja gente desta nomundo!

    --Lamento muito--disse ela, apertando-lhe a mo, num gesto de simpatia.--Venha visitar-nos um diadestes. A condessa tinha um fraco por si... Tivemos muita pena que se tivesse vindo embora!

    Schultz corou:

    --Peo-lhe que apresente os meus cumprimentos.

    No a retenho mais tempo.

    Gritou uma ordem e um dos seus homens fez recuar o Kubelwagen. Schultz saudou e Ren avanoucom o carro.

    --A mamselle tem a sorte do Diabo, como sempre!-observou ele.

    Anne-Marie Trevaunce acendeu outro cigarro, enquanto Craig murmurava:

    --Errado, Ren, meu amigo. Ela o Diabo.

    Na quinta, guardaram o Rolls-Royce na garagem, enquanto Ren foi em busca de informao.Osbourne despiu o dlman e rasgou a manga da camisa, ensopada em sangue.

    Anne-Marie examinou a ferida.

    --No muito grave. A bala no entrou, apenas cavou um sulco. De qualquer modo, um ferimentofeio, no se esquea.

    Ren voltou com um embrulho de roupas e um pedao de lenol branco, que comeou a rasgar em

  • tiras.

    --Ligue-o com isto, mamselle.

    Anne-Marie comeou a pensar o ferimento e Osbourne perguntou:

    --Qual a situao actual?

    --S c est o velho Jules, e ele quer-nos fora daqui o mais depressa possvel--respondeu Ren.--Vistaestas roupas, que ele lana as velhas na fornalha. Recebemos recado do Grand Pierre a dizer-nos queLondres comunicou que o recolhem num torpedeiro hoje noite, ao largo de Lon. Ele no pode ir,mas manda l um dos homens, o Blriot. bom tipo, conheo-o bem.

    Osbourne passou para o outro lado do Rolls e mudou de roupa. Voltou envergando um bon de l,casaco e calas de bombazina e botas. Meteu a Walther no bolso e entregou a farda a Ren, que saiulogo.

    --Estou bem?--perguntou ele a Anne-Marie.

    Ela riu-se.

    --Se tivesse uma barba de trs dias, talvez estivesse, mas, assim, e para lhe ser franca, continua aparecer-me um homem de Yale.

    --No h dvida que a sua opinio extremamente reconfortante!

    Ren regressou, e sentou-se atrs do volante:

    -- melhor irmos andando, mamselle. Vai levar-nos uma hora at l.

    Anne-Marie baixou a prancha do assento:

    --Ora vamos l a entrar, como um menino ajuizado!

    Craig obedeceu, e espreitou para ela.

    --O ltimo a rir... serei eu! Hoje noite, jantar no Savoy, com os Orpheans a tocar, Carrol Gibson acantar, baile, lindas mulheres...

    Ela fechou a prancha, entrou no carro e Ren iniciou a marcha.

    Lon era uma aldeia de pescadores to pequena que nem tinha um cais, pelo que grande parte dosbarcos eram puxados para a praia. O nico sinal de vida em toda a povoao era o som da msica deum acordeo na taberna. Passaram adiante, seguindo um caminho irregular at um farol fora deservio, sobranceiro a uma pequena baa. Um nevoeiro muito denso avanava do mar para terra, e,algures a distncia, ouvia-se o som triste de uma ronca. Ren guiou-os at praia, com uma lanternana mo.

  • Craig voltou-se para Anne-Marie:

    --No venha connosco at l abaixo. S servir para estragar os sapatos. Fique no carro.

    Ela tirou os sapatos e lanou-os sobre o assento traseiro do Rolls.

    --Certo, meu caro. Todavia, graas aos meus amigos nazis, tenho uma reserva inexaurvel de meias deseda.

    Posso dar-me ao luxo de dar cabo de um par, em nome da amizade.

    Pegou-lhe no brao e foram ter com Ren.

    --Amizade?--inquiriu Craig.--Se bem me lembro, houve mais do que isso em Paris, nos velhostempos!

    --Histrias velhas, que melhor esquecer, meu amigo.

    Segurou-lhe o brao com fora e Osbourne conteve subitamente a respirao, consciente de que obrao lhe doa muito mais. Anne-Marie voltou a cabea e perguntou: --Sente-se bem?

    --O raio do brao est a doer um bocado, mais nada!

    Ouviram um murmrio de vozes quando se aproximaram da praia, encontrando Ren e outro homemsentados ao lado de um pequeno bote, com um motor fora de bordo inclinado sobre a r.

    --Blriot--apresentou Ren.

    ---Mamselle.--Blriot tocou a pala do bon, cumprimentando Anne-Marie.

    -- este o barco, no verdade?--perguntou Craig.

    --E que devo eu fazer com ele, mais precisamente?

    --Passando o cabo v a luz de Grosnez, senhor major.

    --Com este nevoeiro?

    --Que est muito baixo.--Blriot encolheu os ombros.--Bem, eu pus no bote uma lanterna de posio, eh isto ainda.--Tirou do bolso uma bola de sinalizao luminosa.--A SOE fornece-nos estas coisas, quefuncionam muito bem na gua.

    --Onde, muito provavelmente, acabarei por cair, dado o cariz do tempo--comentou Craig, observandoas ondas a desfazerem-se com fria na praia.

    Blriot tirou um colete salva-vidas da embarcao e ajudou-o a vesti-lo.

    --No tem outra alternativa, senhor. Tem de ir.

  • O Grand Pierre disse que eles esto a voltar a Bretanha de pernas para o ar, sua procura.

    Craig deixou que ele lhe apertasse as correias do salva

    -vidas:

    --J fizeram refns?

    --Claro! Dez em Saint Maurice, incluindo o presidente da Cmara e o padre Paulo.

    Mais dez, nas quintas das

    cercanias.

    --Meu Deus!--murmurou Craig.

    Anne-Marie acendeu um Gitane e passou-lho.

    --O nome do jogo, meu amado, ambos o sabemos.

    O resto, no lhe diz respeito.

    --Bem gostaria de pensar assim!--respondeu-lhe Craig, enquanto Ren e Blriot arrastavam o botepara a gua. Blriot subiu para bordo e fez funcionar o motor.

    Voltou a sair.

    Anne-Marie beijou Craig rapidamente:

    --Toca a andar, como um menino bem-comportado!

    Saudades a Carrol Gibbons!

    Craig entrou no bote e agarrou a cana do leme. Voltou-se para Blriot, que segurava o barco em frentede Ren.

    --Tenho de me encontrar com um torpedeiro, no

    verdade?

    --Ou uma canhoneira. Da Armada britnica ou da Frana Livre... de uma ou de outra. Esto l suaespera, senhor. Eles nunca nos deixaram ficar mal, at data.

    --At vista, Ren, tome conta dela!--disse Craig, enquanto eles o empurravam para alm darebentao, donde o motorzinho do bote o fez avanar.

    Passando ao largo do cabo e fazendo-se ao mar aberto, cedo se viu a contas com problemas. As ondaslevantavam flocos de espuma, o vento refrescava e a gua entrava a bordo, de tal modo que j lhechegava aOs tornozelos.

  • Blriot tivera razo, pois, ocasionalmente, lobrip&a a luz de Grosnez entre os farrapos de nevoeiroarrastado pelo vento. Governou o bote na sua direco, quando, de sbito, o motor parou. Tentoufreneticamente p-lo a trabalhar, puxando a corda de arranque, mas em vo, seguindo o bote ao saborda corrente.

    Uma onda enorme--longa e lisa e muito mais alta do que as outras--suspendeu o bote no ar, numaespcie de movimento lento, com a gua entrando a jorros.

    Num pice, o barco mergulhou como uma pedra, e Craig Osbourne ficou deriva na gua, flutuandograas ao salva-vidas.

    A gua estava terrivelmente fria, mordendo-lhe braos e pernas como se de cido se tratasse, de talmodo que se esqueceu da dor do ferimento. Outra onda enorme sucedeu primeira, e ficou a boiar dooutro lado, em guas mais calmas.

    --No nos safamos, rapaz!--exclamou para si prprio.--No nos safamos mesmo!--Nesse momento, ovento abriu mais um buraco na cortina de nevoeiro, viu a luz de Grosnez, e, ao mesmo tempo queouvia o ronronar surdo de um motor, vislumbrou uma forma escura um pouco adiante.

    Elevou a voz e gritou desesperadamente:

    --Aqui, aqui!--Lembrou se ento da bola luminosa que Blriot lhe tinha dado, e, tacteando com osdedos gelados, tirou-a do bolso, segurando-a com a mo direita sobre a cabea.

    A cortina de nevoeiro caiu novamente, a luz de Grosnez desapareceu e o ronronar dos motores pareceuser engolido pela noite.

    --Pr qui, seus sacanas!--urrou Osbourne, e, ento, um torpedeiro emergiu do nevoeiro, como umnavio fantasma, e dirigiu-se para ele.

    Nunca na vida sentira tamanho alvio como quando ligaram um farol e o focaram na gua. Comeou abracejar em sua direco, esquecendo-se por momentos da dor no brao, e, subitamente, parou. Haviaalgo de errado com aquele barco. A pintura, por exemplo, de um branco-sujo mistura com verde-mar, com uma vaga sugesto de faixas de camuflagem. De repente, a bandeira no mastro estalouruidosamente, forada a drapejar com violncia por uma rajada de vento mais forte. Distinguiuperfeitamente a sustica, no canto superior esquerdo, e o vermelho e negro da Kriegsmarine. No setratava de um torpedeiro ingls, mas de um navio da classe E, alemo; ao passar na sua frente, leu onome, pintado na proa, ao lado do nmero: Lili Marlene.

    O navio pareceu parar, com os motores num murmrio, apenas. Deixou-se flutuar, com uma mgoaenorme no corao, olhando para dois marinheiros de bons de orelhas e jaquetes de l grossa, que omiravam, l de cima. Um deles lanou uma escada de corda sobre a amurada, gritando: --Sobe, meuvelho!--ouviu ele dizer no mais puro sotaque cockney.--Sobe pr qui.

    Tiveram de o ajudar a passar sobre a amurada. Ajoelhou-se e vomitou um pouco no convs. Olhoupara cima cautelosamente, ao ouvir o marinheiro alemo perguntar alegremente: --Major Osbourne,

  • no verdade?

    --Correcto.

    O alemo baixou-se:

    --Meu major, est a perder muito sangue do brao esquerdo. Deixe que trate disso! Sou o enfermeirode bordo.

    Osbourne perguntou:

    --Mas que se passa aqui?

    --No me compete dizer-lho, meu major. Isso com o comandante, o Fregattenkapitan Hare.Encontra-o na ponte.

    Craig Osbourne levantou-se penosamente, tacteando as correias do salva-vidas e tirando-o, e subiu aostropees a escada curta. Entrou na casa do leme, que estava entregue a um graduado, umObersteuennann, ou timoneiro-chefe, a julgar pelas divisas. O homem sentado na cadeira giratria mesa da carta de marear tinha na cabea um bon amarrotado, com o topo branco-- semelhana dohbito dos comandantes de submarinos, mas tambm suficientemente comum entre os comandantesde torpedeiros, que se consideravam a lite da Kriegsmarine; e usava uma camisola branca de golaalta sob um dlman curto de marinheiro. Voltou-se para olhar para Osbourne, com uma face calma esem expresso.

    --Major Osbourne--disse, com bom sotaque americano.-- um prazer t lo a bordo.

    Peo que me desculpe por um momento. Temos de sair daqui.--Voltou-se para o timoneiro e disse, emalemo: --Muito bem, Langsdorff. Mantenha os silenciadores a trabalhar, at estarmos cinco milhasao largo. Rota dois-um-zero. Velocidade vinte e cinco ns, at ordem em contrrio.

    --Rota dois-um-zero, velocidade vinte e cinco ns, Herr Kapitan'--respondeu o homem do leme. Otorpedeiro arrancou, num impulso de fora.

    --Hare! --exclamou Craig Osbourne. --Professor Martin Hare!

    Hare tirou um cigarro de uma lata de Benson Hedges

    e ofereceu-lhe outro.

    --Conhece-me? J nos encontrmos?

    Osbourne pegou no cigarro, com os dedos trementes:

    --Depois de Yale, interessei-me pelo jornalismo. Trabalhei para a revista Life, entre outras. Paris,Berlim.

    Passei grande parte da minha juventude por esses lados.

  • O meu pai pertencia ao Departamento de Estado. Era diplomata.

    --Mas quando nos encontrmos?

    --Uma vez, voltei a casa, de frias... Boston, Abril de trinta e nove, devo acrescentar. Um amigo falou-me de uma srie de palestras que o senhor estava a proferir em Harvard. Em princpio, sobre literaturaalem, mas muito politicas, muito antinazis. Assisti a quatro dessas conferncias.

    --Estava l aquando das desordens?

    --Quando os tipos do American Bund2 tentaram impedir a reunio? Oh! Claro que estava. Parti umadas mos no focinho de um daqueles macacos. O senhor foi na verdade magnfico!--Abriram a porta,entrando o cocknfv, e Osbourne sentiu um tremor de frio.

    --Que se passa, Schmidt?--perguntou-lhe Hare em alemo.

    Schmidt trazia um cobertor:

    --Pensei que o senhor major podia precisar disto.

    Gostaria tambm de fazer notar ao Herr Kapitan que ele est ferido no brao esquerdo e que precisa decuidados mdicos.

    --Faa o seu trabalho, Schmidt--respondeu-lhe Martin Hare.--Trate dele.

    Sentado numa estreita cadeira na pequena sala de oficiais no convs inferior, Osbourne observavaSchmidt a fazer o penso da ferida com percia profissional.

    --Um pouco de morfina, patro, para tornar as coisas um pouco mais confortveis.--Tirou uma seringada bolsa de enfermagem e injectou Osbourne no brao.

    Craig perguntou-lhe:

    --Quem voc? evidente que no alemo.

    --Oh! Mas o caso que sou, de certo modo... ou, pelo menos, eram-no meus pais. Judeus quepensaram que Londres poderia ser um lugar mais hospitaleiro do que Berlim. Quanto a mim, nasci emVhitechapel.

    Martin Hare, da porta, disse em alemo:

    --Schmidt, tens uma boca rota.

    Schmidt levantou-se de um salto, pondo-se em sentido: 3tawohl, Herr Kapitan.

    --Vamos l, desanda daqui!

  • Schmidt sorriu com ironia, pegou na bolsa de enfermagem e saiu. Hare acendeu um cigarro:

    --Temos uma tripulao mista. Americanos e britnicos, com alguns judeus, mas todos falam alemofluentemente e assumem uma nica personalidade, quando servem neste navio.

    --Um torpedeiro alemo sob a nossa bandeira!--disse Osbourne.--Estou verdadeiramenteimpressionado.

    O segredo mais bem guardado que jamais vi.

    --Devo inform-lo que levamos o caso at s suas ltimas consequncias. Por via de regra, apenasfalamos alemo, e s usamos o uniforme de Kriegsmarine. Fazemo-lo at mesmo na base, em terra.Fazemos questo de nos mantermos dentro do papel. claro que por vezes os rapazes quebram aregra da linguagem, e Schmidt um bom exemplo disso.

    --E onde a base?

    --um portozinho chamado Cold Harbour, perto da ponta Lizard, na Cornualha.

    --A que distncia?

    --Daqui, Cem milhas. Chegamos l pela manh. De regresso, nunca vamos muito depressa. O nossopessoal avisa-nos de antemo das rotas nocturnas dos navios torpedeiros da Royal Navy.

    Preferimos manter-nos longe

    das vistas...

    --Claro que sim. Um encontro com eles seria um azar dos diabos! Quem dirige esta operao?

    --Oficialmente, a Seco D da SOE, mas, na realidade, trata-se de um empreendimento conjunto,segundo sei.

    --Claro.

    --Um modo de ganhar a vida bem traioeiro!

    --Bem o pode dizer.

    Hare sorriu foradamente:

    --Vejamos se h sanduches na cozinha. Est com aspecto de quem precisa de comer.--E saiu.

    S pouco antes do alvorecer Osbourne voltou ao convs. O mar estava bastante picado e a espumafustigava-lhe o rosto. Subindo as escadas e entrando na casa do leme, encontrou Hare sozinho, deface sisuda e meditabunda, iluminada pela luz da bitcula. Osbourne sentou-se mesa da carta demarear e acendeu um cigarro.

    --No consegue dormir?,--perguntou Hare.

  • --Navegar no est nos meus hbitos, o que j no se passa consigo, no verdade?

    --No, de facto--respondeu-lhe Hare.--No sou capaz de me lembrar de um perodo da minha vida emque os barcos no tenham desempenhado papel importante. Tinha oito anos quando o meu av se fezao mar comigo, na minha primeira viagem.

    --Tenho ouvido dizer que o canal da Mancha difcil!

    --Diferente das ilhas Salomo como o demo que o leve, l isso verdade!

    --Esteve l, antes disto?

    --Sim--respondeu Craig, fazendo um aceno com a cabea.

    --Tenho ouvido dizer que os navios torpedeiros so brincadeira de gente nova...--comentou Osbourne,curioso.

    --Bem, quando se precisa de algum com a devida experincia e que fale alemo fluentemente, h queaceitar o que aparece!--e, assim dizendo, Hare deu uma gargalhada.

    Pairava agora uma luminosidade cinzenta em torno do navio. O mar estava mais calmo, e j seavistava terra, l mais para a frente.

    --A ponta Lizard--anunciou Hare.

    Sorria novamente, e Osbourne respondeu:

    --Gosta desta vida, no verdade?

    --Bem, talvez possa dizer que sim!--respondeu Hare, encolhendo os ombros.

    --Gostar de verdade, quero eu dizer. Presumo que no gostaria de voltar para o seu trabalhoanterior... para Harvard.

    --Talvez no.--Hare assumiu um ar grave.--Haver algum de ns que saiba o que vai fazer quando istoacabar? O senhor sabe, por exemplo?

    --No tenho para onde voltar, mas o meu problema

    diferente!--volveu-lhe Osbourne.--Parece que at tenho talento para isto. Ontem, matei um generalalemo... numa igreja, s para demonstrar como no sou dotado dos sentimentos mais nobres.Tratava-se do chefe dos Servios de Informao da SS para toda a Bretanha Francesa. Um carniceiroque merecia morrer.

    --Ento, qual o seu problema?

    --Eu mato-o, eles fazem vinte refns e fuzilam-nos.

    A morte segue as minhas pisadas, se bem compreende o que quero dizer.

  • Hare no respondeu. Reduziu a potncia e abriu uma janela, deixando entrar a chuva. Contornaram aponta, e Osbourne distinguiu uma pequena angra encaixada na baa que se avistava do largo, com umvale arborizado sobranceiro.

    Um portozinho cinzento aninhava-se ao fundo da angra, com escassas duas dzias de vivendas emvolta. Havia ainda uma casa senhorial entre as rvores.

    A tripulao subiu ao convs inferior.

    --Cold Harbour, major Osbourne--disse-lhe Hare.

    Dirigiu para l o Lili Marlene.

    @Trs

    A tripulao ficou ocupada com a atracao do navio, enquanto Hare e Osbourne saam e seguiampelo cais I empedrado.

    --As casas parecem todas iguais--observou Craig.

    - --Mas que so mesmo!--respondeu-lhe Hare.-O lugar foi fundado pelo senhor da manso, um talSir - William Chevely, em meados do sculo dezoito: as casas, o porto, o cais, tudo isto. De acordocom a lenda local, grande parte do dinheiro que fez veio do contrabando.

    Era conhecido como o Black Bill.

    --Estou a ver. Esta aldeia de pescadores-modelo servia-lhe de cobertura para as suas outrasactividades.

    --Exactamente. A propsito, aqui o bar. Os rapazes usam-no como messe.

    Era um edifcio baixo e largo, com um fronto alto, madeiramento vista e janelas de pilar ao centro,que lhe conferiam um ar isabelino.

    --No me parecem de estilo jorgiano. Tudor, talvez

    --comentou Craig.

    --As adegas so medievais. Houve sempre uma espcie de estalagem neste local--disse Hare, coxeandopara um jipe porta do bar.--Entre, vou lev-lo ao solar.

    Craig observou a tabuleta sobre o bar:

    --"O Enforcado".

    --Bastante apropriado--disse Hare, fazendo arrancar o motor.--Na verdade, trata-se de uma tabuletanova.

  • A antiga estava a cair de podre, e era revoltante. Um desgraado a balanar na ponta de uma corda,mos amarradas, lngua de fora.

    Comeara a andar, e Craig voltou-se para observar de novo a tabuleta. Mostrava um jovem de cabeapara baixo, suspenso pelo tornozelo direito de uma forca de madeira. A face era calma, e a cabeaestava rodeada por um halo.

    --Sabe que a tabuleta representa uma carta do Tarot.--perguntou.

    --Claro que sei. Foi a governanta do solar quem teve a ideia, Madame Legrand. Ela percebe dessascoisas.

    --Legrand. Ser Julie Legrand?--perguntou Craig.

    --Sim, essa mesmo.--Hare olhou-o, com curiosidade.--Conhece-a?

    --Conheci o marido antes da guerra. Ensinava filosofia na Sorbona. Mais tarde, entrou para aResistncia, em Paris. Travei conhecimento com eles em quarenta e dois. Ajudei-os a fugir, quando aGestapo os perseguia.

    --Bem, ela est aqui desde o incio do projecto. Trabalha para a SOE.

    --E o marido, Henri?

    --Por aquilo que sei, morreu com um ataque cardaco em Londres, no ano passado.

    --Compreendo.

    Ultrapassaram a ltima casa. Hare informou:

    --Isto uma zona de defesa. Todos os civis foram mandados embora. Usamos as casas paraaboletamento do pessoal. Para alm da minha tripulao, temos alguns mecnicos da RAF, que tratamdos avies.

    --Tambm tm aqui avies? Para qu?

    --Para os fins habituais. Lanar agentes ou traz-los de volta.

    --Sempre supus que esses trabalhos fossem da conta do Esquadro dos Servios Especiais, emTempsford.

    --E so, ou, pelo menos, so-no normalmente. A nossa actividade um pouco menos normal. Voumostrar-lhos. Estamos a chegar ao campo de aviao.

    A estrada fazia uma curva entre rvores e, mais alm, na-se um enorme prado, com uma pista deaterragem relvada. Numa ponta, erguia-se um hangar pr-fabricado.

    Hare entrou com o jipe pela porta da cerca, seguiu pela relva e parou. Tirou um cigarro e acendeu-o.

  • --Que acha?

    Um Fieseler Stork de reconhecimento saa do hangar, com a insgnia da Luftwaffe pintada nas asas ena fuselagem, e os dois mecnicos que o acompanhavam envergavam fatos-macaco da Luftwaffe. Maisatrs, j dentro do hangar, via-se um caa nocturno gu88.

    --Meu Deus!--exclamou Craig, em voz baixa.

    --J lhe tinha dito que as coisas por aqui eram sobre o inusitado.

    O piloto do Stork saltou para fora do avio, trocou algumas palavras com os mecnicos eencaminhou-se para eles. Usava botas de voo, calas largas e confortveis em azul-cinza, iguais sdos pilotos de caa da Luftvaffe-pouco vulgares, com grandes bolsos para mapas. Um Fliegerbluse'curto dava-lhe um ar elegante. Usava o distintivo de prata de piloto do lado esquerdo, com uma Cruzde Ferro de La classe por cima, e o emblema da Luftwaffe do lado direito.

    --Tudo, inclusive o raio da Cruz de Cavaleiro!--comentou Osbourne.

    --Sim, este moo bastante fantasista--disse-lhe Hare.--Talvez at algo psicopata, se pretende aminha opinio. No entanto, ganhou duas DFC2 na Batalha da Inglaterra.

    O piloto aproximou-se. Tinha cerca de vinte e cinco anos, e o cabelo sob o bon era louro-palha,quase branco. Embora parecesse sorrir com frequncia, tinha um ricto de crueldade na boca e osolhos eram frios.

    --Tenente-aviador Joe Edge, major Craig Osbourne, do OSS.

    Edge sorriu com simpatia suficiente, e estendeu a mo:

    --Especializado em banditismo, hem?

    Craig no gostou dele nem um pouquinho, mas tentou no o mostrar.

    --Tm aqui uma boa organizao.

    --Bem, o Stork pode levantar e aterrar em qualquer stio. Na minha opinio, melhor que oALysander.

    --Como camuflagem, as insgnias da Luftvaffe so pouco correntes...

    Edge riu-se:

    --H ocasies em que so teis. O ms passado tive um problema com o tempo, de tal modo que fiqueicom pouco combustvel. Aterrei na base de caas da Luftvaffe em Granville. Consegui que eles mereabastecessem.

    No houve problema.

    --Sabe, ns temos umas credenciais maravilhosas, assinadas por Himmler e confirmadas pelo Fhrer,

  • que provam que nos encontramos em misso especial de segurana para a SS. Ningum ousa p-lasem dvida!-explicou Hare.

    --At me ofereceram jantar na messe!--continuou Edge, falando para Craig. --Claro, como a minhamezinha querida uma Kraut, eu falo fluentemente ambas as Lnguas, o que ajuda muito.--Voltou-separa Hare:--D-me uma boleia para o solar, meu velho? Segundo me disseram, o patro deve estar achegar, vindo de Londres.

    --No sabia--respondeu Hare.--Salte para dentro.

    Edge sentou-se no banco traseiro. Quando comearam a andar, Craig perguntou:

    --A sua me? Est c, no?

    --Santo Deus! Est! Viva. Vive em Hampstead.

    O maior desgosto da vida dela foi Hitler no ter conseguido subir pela Mall at

    ao Palcio de Buckingham, em

    quarenta.

    Riu estrondosamente. Craig voltou-se, detestando-o ainda mais, e dirigiu-se a Hare:

    --Tenho estado a pensar. Disse o senhor que a Seco D dirige esta coisa. No me diga que se trata doDepartamento dos Golpes Sujos?

    --Nem mais.

    --Ser Dougal Munro quem ainda o dirige?

    --Tambm o conhece, ento!?

    --Oh! Claro que conheo! Trabalhei para a SOE

    desde o incio. Antes de ns termos entrado na guerra.

    Tivemos relaes, eu e o Dougal. Um sacana sem piedade.

    --Como que se ganham as guerras, meu velho!-comentou Edge.

    --Estou a ver. Para si vale tudo, no?--perguntou Craig.

    --Desde que faamos o nosso trabalho...

    Durante um breve instante, Crai;g entreviu atravs da grelha do confessionrio a face assustada dogeneral Dietrich. Voltou-se, pouco vontade.

    Hare comentou:

  • --Munro no mudou. O lema dele que todos os meios so lcitos, mas o senhor ter ocasio de overificar por si prprio, dentro em pouco.

    Passou alm da cancela levadia e parou num ptio com um mastro de bandeira ao centro. Era umamanso de trs andares, construda em pedra cinzenta. Muito antiga, muito pacfica, sem nada que arelacionasse de qual quer modo com a guerra.

    --Isto tem nome?--perguntou Craig.

    --Abadia de Grancester. Magnificente, hem?--informou Edge.

    Hare disse:

    --Eis-nos chegados.--Saiu do jipe.--Enfrentemos o urso no covil, se que j l est.

    Ora, nesse preciso momento, o brigadeiro Dougal unro era introduzido na Biblioteca de Hayes Lodge,em Londres--a casa que o general Dwight Eisenhower usava como quartel-general provisrio. Ogeneral bebia caf, que acompanhava com uma torrada, e lia a edio da manh de The Tites, nomomento em que um jovem capito fez entrar Dougal Munro, fechando a porta atrs de S.

    --Bom dia, brigadeiro. Caf, ch... o que quiser a

    nesse armrio.--Munro serviu-se de ch.--Como vai esse seu projecto de Cold Harbour?

    --At agora, bem, meu general.

    --O senhor sabe que a guerra se parece um pouco com o prestidigitador que engana as pessoas,fazendo-as observar a sua mo direita, enquanto a esquerda faz o trabalho que se pretende.--Eisenhower serviu-se de mais caf.--Decepo o nome do jogo. Recebi um relatrio das Informaesque me diz que Rommel tem feito coisas incrveis, desde que o encarregaram da Muralha do Atlntico.

    -- um facto, meu general.

    --Esse seu torpedeiro j fez tantas misses nocturnas de transporte de oficiais de engenharia s costasde Frana, para a estudarem as praias, que o senhor deve neste momento ter formado uma ideiabastante razovel do local onde pretendemos atacar.

    --Assim , meu general--respondeu Munro, calmamente.--Tudo indica que se trate da Normandia.

    --Correcto. Voltamos, por conseguinte, decepo.

    --Eisenhower dirigiu-se para um mapa mural.--Tenho Patton a comandar um exrcito fantasma naAnglia Oriental. Acampamentos militares simulados, avies falsos... trabalhos da engenharia.

    --O que indicar aos alemes que temos a inteno de tomar a via mais curta e fazer a invaso nazona do Pas de Calais?

  • --O que eles tm considerado desde sempre como sendo a nossa inteno, por ser a mais lgica, sob oaspecto militar--acrescentou Eisenhower.--Pusemos as coisas em movimento, tendo em vista dar foraa essa ideia. De facto, a RAF e a Oitava Fora Area iro atacar essa zona com frequncia, quando seaproximar a data da invaso, para que parea que estamos a tentar enfraquecer a oposio quepossamos encontrar. Os grupos da Resistncia da regio sabotaro constantemente linhas de aLtatenso, caminhos de ferro e objectivos do gnero.

    Naturalmente, os agentes duplos de que dispomos transmitiro as informaes verdadeiras... que soas falsas...

    ao Quartel-General da Abwehr'.

    Manteve-se em p, contemplando o mapa, at que Munro perguntou:

    --Preocupa-o algo, meu general?

    Eisenhower dirigiu-se para a janela oitavada, acendendo um cigarro:

    --Houve quem pretendesse a invaso para o fim do ano passado. Deixe-me explicar-lhe porque no ofizemos. Foi sempre convico da SHAEF que s podemos levar a melhor nesta invaso sedispusermos de todas as vantagens. Mais homens do que os alemes, mais carros de combate, maisavies... superioridade total. E sabe porqu? Porque, em todas as batalhas desta guerra travadas enteforas iguais, fossem elas com russos, ingleses ou americanos, os alemes levaram sempre a melhor.

    Unidade contra unidade, eles provocam normalmente cinquenta por cento de baixas a mais.

    --Tenho conhecimento de to infeliz circunstncia, meu general.

    --Os Servios de Informao enviaram-me pormenores de um discurso de Rommel aos seus generais,h dias atrs. Dizia ele que, se no nos batesse nas praias, os alemes perderiam a guerra.

    --E penso que tem razo, meu general.

    Eisenhower voltou-se:

    --Brigadeiro Munro, tenho sido at hoje muito cptico quanto ao verdadeiro valor dos agentessecretos nesta guerra. Na melhor das hipteses, o material que conseguem usualmente superficial.Parece-me que as melhores informaes que conseguimos tm sido obtidas atravs da descodificaode mensagens do projecto Ultra.

    --Concordo.--Munro hesitou.--Na realidade, se,

    ' Abwe)tr: equivalente germnico do Estado-Msior-General das Foras Armadas. (N. do T.)

    logo partida, a informao principal no tiver sido cifrada pelas mquinas Enigma, os factos noconstaro das mensagens que descodificmos, e podero muito bem ser esses os factos maisrelevantes.

    --Precisamente.--Eisenhower inclinou-se para a frente.--O senhor enviou-me um relatrio a semana

  • passada que quase me recuso a acreditar. Dizia-me nele que vai realizar-se dentro em breve umareunio de estado-maior presidida pelo prprio Rommel. Uma reunio cujo objectivo nico so asdefesas da Muralha do Atlntico.

    --Exactamente, meu general. Num local chamado Chateau de Voincourt, na Bretanha.

    --Dizia ainda que dispe de um agente que pode penetrar nessa reunio?

    --Correcto--respondeu Munro.

    Eisenhower respondeu:

    --Meu Deus, se eu fosse mosca e pudesse estar presente nessa reunio! Conhecer o pensamento deRommel e as suas intenes.--Ps uma das mos sobre os ombros de Munro.--Faz ideia daimportncia de que isto se pode revestir? Trs milhes de homens e milhares de navios... mas a devidainformao pode tornar tudo diferente. Compreende?

    --Perfeitamente.

    --No me deixe ficar mal, brigadeiro Munro.

    .

    Voltou-se e ficou a contemplar o mapa. Munro saiu da sala sem fazer rudo, desceu as escadas, pegouno chapu e no sobretudo, respondeu com um aceno continncia das sentinelas e entrou noautomvel. O ajudante, o capito Jack Carter, estava sentado na retaguarda, com as mos apoiadassobre o casto da bengala. Carter tinha uma perna postia, em recordao de Dunquerque.

    --Tudo bem, meu brigadeiro?--perguntou ele, quando j se afastavam.

    Munro subiu o vidro transversal, cortando qualquer comunicao com o motorista.

    --A conferncia de Voincourt assumiu importncia crucial. Preciso de entrar em contacto com Anne-Marie Trevaunce. Ela poder inventar mais uma falsa viagem a Paris. Arranje-me uma recolha comum Lysander. Tenho de falar com ela, cara a cara. Digamos, de hoje a trs dias.

    --Correcto.

    --H alguma noticia que deva conhecer?

    --Veio uma mensagem de Cold Harbour. Parece que o OSS teve problemas, ontem. Um dos agentesdeles eliminou o general Dietrich, o chefe da SD na Bretanha.

    Devido ao mau tempo, a recolha com o Lysander que tinham planeado no pode efectuar-se, de modoque nos pediram auxlio.

    --Sabe bem que essas coisas no me agradam.

  • --Sim, meu brigadeiro. O caso que o comandante Hare recebeu a mensagem directamente, fez atravessia at Grosnez e recolheu o agente em causa. Um tal major Osbourne.

    Fez-se uma pausa e Munro voltou-se, atnito:

    --Craig Osbourne!

    --Parece que sim.

    --Meu Deus! Ele ainda est vivo? Mas que homem de sorte! Ele foi o melhor agente que jamais tive naSOE!

    E Harry Martineau, meu brigadeiro?

    --Est certo, tem razo... e, para alm do mais, ele

    americano! Osbourne est em Cold Harbour, neste momento?

    --Sim, meu brigadeiro.

    --Bom, nesse caso pare no telefone mais prximo.

    Entre em contacto com o comandante da RAF em Croydon e pea-lhe um Lysander para mim, dentrode uma hora. Prioridade mxima. Aguente o forte por aqui, e trate do caso da Anne-Marie Trevaunce.Vou at Cold Harbour falar com Osbourne.

    --Acha que ele nos vai ser til?

    --Certamente, Jack, pode ter a certeza disso!-Munro voltou-se e olhou atravs da janela, sorrindo.

    Craig Osbourne, de tronco nu, sentou-se numa cadeira junto ao lavatrio do amplo e antiquado quartode banho; Schmidt, ainda com o uniforme da Kriegsmarine e com a bolsa mdica aberta no cho,fazia-lhe o penso do brao, sentado ao seu lado. Julie Legrand, encostada porta, observava. Entravanos ltimos anos da dcada dos trinta e usava calas largas, uma camisola castanha e o cabelo louroatado sem enfeite atrs da cabea, fazendo contraste com uma face calma e suave.

    --Como est isso?--perguntou ela.

    --Assim-assim.--Schmidt encolheu os ombros.-Nunca se sabe o que vai suceder com feridas de bala.Tenho aqui essa droga nova, a penicilina. Diz-se que tem efeitos maravilhosos nas infeces.

    Accionou uma seringa, enchendo-a a partir de um frasquinho. Julie disse:

    --Esperemos que sim. Vou buscar caf.

    Saiu, ficando Schmidt a dar a injeco. Osbourne vacilou ligeiramente e Schmidt aplicou um penso,ligando o brao com destreza.

  • --Parece-me que vai precisar de um mdico, patro

    --disse ele, alegremente.

    --Vamos l ver!--respondeu Craig.

    Levantou-se, e Schmidt ajudou-o a vestir uma camisa de caqui que Julie tinha arranjado. Conseguiuapert-la ele prprio, e passou ao quarto seguinte, enquanto Schmidt reacondicionava a sua bolsamdica.

    O quarto era muito agradvel, mas um pouco pobre e muito necessitado de nova decorao. Tinha umacama, moblia de mogno e uma mesa e duas poltronas junto da janela. Craig foi observar as vistas. Embaixo, havia um terrao com uma balaustrada, um jardim por cuidar em frente da casa, faias maisalm e uma lagoa num covo.

    Tudo muito tranquilo.

    Schmidt saiu do quarto de banho, com o estojo mdico numa das mos:

    --Volto a observ-lo mais tarde. Quanto a mim, boa altura para uma dose de presunto e ovos.--Sorriu, com a mo sobre o puxador da porta.--E no me venha recordar que sou judeu! H j muitosanos que fui corrompido pelo pequeno-almoo inglesa.

    Quando abriu a porta, Julie Legrand entrou com uma bandeja com caf, po torrado, marmelada ebolos.

    Schmidt saiu e ela colocou o tabuleiro na mesa ao p da janela. Sentaram-se em frente um do outro.

    Servindo-lhe o caf, Julie tagarelou um pouco:

    --Sinto-me feliz por v-lo novamente, Craig.

    --Parece j coisa de h tanto tempo, o que se passou em Paris...--disse ele, pegando na chvena de cafque ela lhe passava.

    --H mil anos!

    --Lamento o que se passou com o Henri--continuou.--Ataque do corao, no foi?

    Julie acenou:

    --Ele no deu por nada. Morreu a dormir... mas, ao menos, sempre viveu os ltimos dezoito meses emLondres. Devemo-lo a si.

    --No diga isso!--Craig sentia-se estranhamente embaraado.

    -- a verdade, nada mais. Quer torradas ou um bolo?

    --No, obrigado. No tenho apetite. Mas bebia outra chvena de caf.

  • Serviu-o, dizendo:

    --Sem o senhor, nunca teramos conseguido fugir

    Gestapo, naquela noite. O senhor estava doente, Craig.

    J esqueceu o que aqueles animais lhe fizeram? E, no obstante, voltou atrs com o camio, por causade Henri, quando muitos outros o teriam abandonado.--Ficou repentinamente muito comovida, com aslgrimas a brotarem-lhe dos olhos.--Deu-lhe uma vida, Craig, fez-lhe a ddiva dos ltimos meses devida em Inglaterra. Por causa disso, sentir-me-ei eternamente em divida para consigo.

    Ele acendeu um cigarro, levantou-se e olhou para fora.

    --Deixei a SOE depois desse caso. A minha gente estava a organizar o OSS. Eles precisavam da minhaexperincia e, para lhe ser honesto, j estava farto do Dougal Munro.

    --Trabalho para ele h quatro meses, aqui--disse ela.--Ns usamos isto como ponto de partida, asiloseguro, enfim, o costume.

    --D-se bem com Munro, ento?

    -- um homem duro.--Encolheu os ombros:-Mas, que fazer, se a guerra tambm

    dura!

    Ele anuiu.

    --Uma organizao estranha, esta que aqui tm, e as pessoas ainda so mais estranhas. O piloto Edge,por exemplo, pavoneando-se no uniforme da Luftwaffe, numa espcie de teatralizao de AdolfoGalante.

    --Sim, Joe mesmo louco, at nos seus dias bons-disse ela.--Por vezes, penso que ele se julga mesmoda Luftwaffe. Pe-nos os nervos em franja, mas sabe como Munro... sempre pronto a olhar para ooutro lado, quando se convence que um homem mesmo bom no servio. E, na verdade, o currculode Edge extraordinrio.

    --E Hare?

    --Martin?--Ela sorriu, enquanto voltava a colocar as chvenas na bandeja.--Ah! Mas Martin outracoisa. Tenho a impresso que estou um bocadinho apaixonada por ele...

    A porta abriu-se e Edge entrou, sem bater:

    --Ento, ambos aqui. rao tate-tate!

    Encostou-se parede e entalou um cigarro no canto da boca. Julie disse com ar cansado:

  • --No fundo, s mesmo um velhacote, no verdade, Joe?

    --Toque num ponto sensvel, minha linda? No te rales.--Voltou-se para Osbourne.--O patro acaba dechegar de Croydon.

    --Munro?

    --Deve querer v-lo com urgncia, pois est sua espera na biblioteca. Eu levo-o l.

    Saiu. Osbourne voltou-se e sorriu para Julie:

    --At logo!--disse, e foi atrs de Edge.

    A biblioteca era uma sala imponente, com as paredes cheias de livros desde o cho at a um tectomuito belo, em estuque jacobino. Ardia um toro numa lareira aberta, com poltronas e cadeiras decouro, muito confortveis, alinhadas sua volta. Quando Craig entrou, Munro estava de p, em frentedo fogo, limpando cuidadosamente os culos. Edge ficou encostado parede, perto da porta.

    Munro ajeitou os culos no nariz e olhou calmamente para Osbourne.

    --Podes esperar l fora, Joe.

    --Ora! Ento vou perder o espectculo?--exclamou Edge"embora obedecendo ordem.

    --E bom voltar a v-lo, Craig--disse Munro.

    --No posso dizer que pense do mesmo modo!-respondeu-lhe Craig, dirigindo-se para uma dascadeiras, sentando-se e acendendo um cigarro.--Voltamos demasiadamente atrs no tempo.

    --No seja azedo, meu caro, no prprio.

    --Oh! Mas sou, pois, para o senhor, fui sempre um instrumento rombo.

    Munro sentou-se em frente.

    --Dito de uma forma colorida, mas correcta. E agora, como vai esse brao? Schmidt tem-no tratado?

    --Diz ele que tenho de ir a um mdico, para evitar que surja agravamento.

    --Isso no problema. J vamos tratar do assunto.

    Este caso do Dietrich, Craig. Na verdade, foi um feito, em que demonstrou todo o seu talento habitual,se me permitido diz-lo. Vai dar a Himmler e ao SD problemas graves.

    --E quantos refns fuzilaram, em retaliao?

    Munro encolheu os ombros:

  • --E a guerra. No problema que lhe diga respeito.

    Craig respondeu:

    --Precisamente a frase que Anne-Marie usou. Exactamente a mesma.

    --Ah! Sim, tive o prazer de saber que ela lhe prestou ajuda. Sabe, ela trabalha para mim.

    --Que Deus a ajude, ento!--volveu Craig, de modo forado.

    --E a si tambm, meu caro. Sabe, o senhor, a partir de agora, faz parte da organizao.

    Craig inclinou-se para a frente, lanando o cigarro ao lume.

    --Um raio me parta, se fao! Sou oficial do Exrcito americano, major do OSS. No me pode tocar.

    --Mas claro que posso! Trabalho sob o comando directo do prprio general Eisenhower. O projectode Cold Harbour um empreendimento conjunto. Hare e quatro dos seus homens so americanos. Osenhor vai trabalhar comigo, Craig, por trs razes. A primeira, porque sabe demasiado acerca doProjecto de Cold Harbour. A segunda, porque eu preciso aqui do senhor: h muitas coisas a sucedereme o seu contributo pode ser muito positivo.

    --E qual a terceira razo?--perguntou Craig.

    --Muito simples. O senhor oficial das Foras Armadas do seu pas, tal como eu, e cumpre ordens, talcomo eu.--Munro levantou-se:--Deixemo-nos de toleimas, Craig. Vamos at ao bar, encontramo-noscom Hare e informamo-lo, a ele e tripulao, que o senhor passa a fazer parte do clube.

    Voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a porta; Craig seguiu-o, sentindo a cabea vazia edesespero no corao.

    O Enforcado era precisamente o que se poderia esperar, um bar rural ingls tpico. O cho eraempedrado, havia um toro a arder numa lareira aberta, mesas de ferro trabalhado com anos e anos demuito uso, cadeiras de madeira de espaldares altos. O tecto tinha as traves vista e o balco de mognoera suficientemente convencional, com as garrafas ordenadas em prateleiras na parede por detrs. Onico facto incongruente era Julie a tirar cervejas e os uniformes da Kriegsmarine usados peloshomens encostados ao balco.

    Quando o brigadeiro entrou, seguido por Osbourne e Edge, Hare estava sentado lareira, bebendo cafe lendo um jornal. Levantou-se, e deu uma voz de comando, em alemo: --Sentido. Oficial generalpresente!

    Os homens bateram os calcanhares. O brigadeiro Munro acenou com a mo, e disse, em alemopassvel: -- vontade. Continuem bebendo.--Estendeu uma mo e disse a Hare:--No h necessidadedas formalidades usuais. Falemos em ingls. As minhas felicitaes pelo trabalho de ontem noite.

    --Obrigado, meu brigadeiro.

    Munro aqueceu as costas ao fogo.

  • --Bom, o senhor tomou a iniciativa, neste caso... o que est correcto... mas, para futuro, deveapresentar-me o problema.

    Edge voltou-se para Hare:

    --Bom trabalho, meu velho. Pelo que sabemos, o bravo major bem podia ter sido abandonado suasorte!

    Algo passou pelos olhos de Hare, que avanou um passo na direco de Edge, recuando este e rindo: --Pronto, meu caro, nada de violncias, por favor!

    --Voltou-se para o bar:--Jlia, minha flor! Um gim tnico dos grandes, s'il vous plait.

    --Tenha calma, Martin! nterveio Munro.--Um velhaco desagradvel, mas um piloto de gnio. Umabebida para todos!--Voltou-se para Craig:--No que sejamos alcolicos, por c. Mas, como osrapazes trabalham de noite, bebem de manh!--Elevou a voz: --Prestem ateno, por favor. Comotodos sabem, temos entre ns o major Craig, da Repartio de Servios Estratgicos. O que ainda nosabem que, a partir de agora, passa a trabalhar connosco, aqui em Cold Harbour.

    Fez-se silncio. Julie, ao balco, deteve-se no acto de tirar uma cerveja, com a face sria, mas Schmidtergueu a caneca de cerveja, brindando: --Que Deus o ajude, patro!

    Ouviu-se uma gargalhada geral e Munro disse a Hare:

    --Apresente-lhe o pessoal, Martin.--Voltou-se para Osbourne:-- claro, sob as identidades que aquiassumiram.

    O sargento-chefe, Langsdorff, que tinha visto ao leme, era americano, bem como Hardt, Wagner eBauer.

    Schneider, o chefe de mquinas, era obviamente alemo e, como descobriu mais tarde, Wittig eBrauch, tal como Schmidt, eram judeus ingleses.

    Craig sentia-se agora mesmo mal. Suava e tinha conscincia de ter a testa a escaldar.

    --Est calor, aqui! Um calor infernal!--disse ele.

    Hare olhou-o com curiosidade.

    --Quanto a mim, at me parece que est frio, esta manh. Sente-se bem?

    Edge aproximou-se com dois copos. Entregou um a Munro e o outro a Craig:

    --O senhor parece-me homem de gim, major. Beba-o de um trago. Pe-lhe o pulso a galope! Julie h-de gostar!

    --V-se foder!--respondeu-lhe Craig, embora aceitando o copo e bebendo.

  • --No, a ideia principal fod-la, meu velho. Muito embora ela parea guardar-se.

    --s um porco ordinrio, no s, Joe?--atirou-lhe Martin Hare.

    Edge olhou-o de relance, assumindo um ar magoado.

    --Homem-pssaro intrpido, velho camarada, isso

    que eu sou. Um galante cavaleiro do ar.

    --Tal como Hermann Goering--acrescentou Craig.

    --Exactamente. Um piloto brilhante. Passou a comandar o Circo Voador, depois da morte de VonRichthofen.

    Craig falou e a voz soou-lhe como se viesse de outra pessoa:

    --Uma ideia interessante, o heri de guerra psicopata.

    Deve sentir-se mesmo em casa, com esse 7u88 que est

    na pista, l em cima.

    --7u885, meu velho, sejamos precisos. O sistema de reforo de propulso que possui f-lo atingir umavelocidade de cerca de quatrocentas milhas por hora.

    --Ele esqueceu-se de lhe dizer que o tal sistema de reforo da propulso depende de trs cilindros dexido nitroso. Uma bala num deles e acaba em milhes de bocadinhos!--concluiu Martin Hare.

    --No seja assim, meu velho!--Edge aproximou-se de Craig.--Este pssaro mesmo uma maravilha!Normalmente, tem uma tripulao de trs: piloto, navegador e artilheiro da retaguarda. Introduzimos-lhe alguns melhoramentos, de tal modo que consigo tripul-lo sozinho.

    Por exemplo, o sistema de radar L&chtens&n, que nos permite ver no escuro, foi recolocado nacarlinga, de tal modo que eu posso ver e...

    Craig ouviu-lhe a voz a sumir-se, sentiu que mergulhava na escurido e rolou pelo cho. Schmitacorreu do balco e ajoelhou-se ao p dele, numa sala que ficara subitamente silenciosa. Olhou paraMunro: --Cristo! Est com uma febre altssima. Isto foi de repente! Ainda h menos de uma hora queo estive a tratar!

    --Claro!--disse Munro, muito srio, voltando-se para Hare.--Levo-o para Londres no Lysander. Para ohospital.

    Hare anuiu:

    --Perfeitamente, meu brigadeiro.--Afastou-se, para dar passagem a Schmidt e a outros dois homens,que tinham pegado em Osbourne e o levavam para fora.

  • Munro dirigiu-se a Edge:

    --Joe, entra em contacto com Jack Carter, no meu gabinete. Diz-lhe para providenciar no sentido deCraig ser admitido na Casa de Sade de Hampstead, mal l cheguemos.--E saiu, seguindo os outros.

    Craig Osbourne acordou de um sono profundo, sentindo-se fresco e bem desperto e sem sombras defebre.

    Apoiou-se num cotovelo e verificou que se encontrava no que parecia ser um pequeno quarto dehospital, com paredes pintadas de branco.

    Lanou as pernas para fora da

    cama e deixou-se ficar sentado, no preciso instante em que a porta do quarto se abria e umaenfermeira jovem entrava.

    --O senhor ainda no pode levantar-se!

    Empurrou-o novamente para a cama e Craig perguntou:

    --Onde estou?

    Ela saiu. Passaram-se alguns minutos. A porta abriu-se de novo e entrou um mdico, de bata branca eestetoscpio dependurado do pescoo.

    Sorriu:

    --Ento como estamos, senhor major?--disse, tomando o pulso a Craig. Tinha sotaque alemo.

    --Quem o senhor?

    --Baum o meu nome.

    --E onde estou?

    --Numa pequena casa de sade no Norte de Londres.

    Hampstead, para ser mais preciso.--Meteu um termmetro na boca de Craig e verificou a temperaturapouco aps.--Muito bem. Bom aspecto. Nenhuma febre. Esta penicilina um milagre! claro que omoo que o tratou lhe deu uma injeco, mas eu dei-lhe mais. Muito mais.

    A que reside o segredo.

    --H quanto tempo estou aqui?

    --Este o terceiro dia. Estava muito mal, quando chegou. Francamente, sem a droga...--Baumencolheu os ombros.--Bem! Agora vai tomar ch, enquanto eu ligo ao brigadeiro Munro, para o

  • informar de que j est bom.

    Saiu. Craig ficou na cama, depois levantou-se, encontrou um roupo e vestiu-o, sentando-se janela, aobservar um jardim cercado por muros altos. A enfermeira voltou com um bule de ch.

    --Espero que no se importe, senhor major. No temos caf.

    --No faz mal--respondeu-lhe.--Tem tabaco?

    --O senhor no devia fumar!--Hesitou, e, ento, tirou do bolso um mao de Players e uma carteira defsforos.--No diga ao doutor Baum quem lhos arranjou!

    --Um verdadeiro anjo!--e, dizendo isto, Craig beijou-lhe a mo.--Na primeira noite que sair levo-a aoRainbow Corner, em Picadilly. O melhor caf de Londres e um ptimo suing para danar.

    Ela corou e saiu, rindo. Continuou sentado, fumando e contemplando o jardim, e, aps um bocado,Jack Carter bateu porta e entrou coxeando, apoiando-se numa bengala, e trazendo uma mala de mo.

    --Ol, Craig.

    Craig, sobremodo satisfeito por o ver, levantou-se:

    --Jack, formidvel ver-te, depois de tanto tempo!

    Ento, ainda trabalhas para aquele velho sacana?

    --Oh! Claro!--Carter sentou-se e abriu a mala.

    O doutor Baum diz que ests muito melhor!

    --Assim parece.

    --Bem. O brigadeiro queria que tu lhe fizesses um trabalho, se te sentires em condies, como evidente.

    --J? O que que ele quer? Matar-me de vez?

    Carter levantou uma mo:

    --Por favor, Craig, ouve-me bem. No se trata de coisa boa. Lembras-te daquela tua amiga, Anne-Marie Trevaunce?

    Craig fez uma pausa, de cigarro nos lbios.

    --Que se passa com ela?

    --O brigadeiro precisa de lhe falar. H algo de grande em preparao. Mesmo muito grande.

  • Craig acendeu o cigarro.

    a No assim, sempre?

    --No, desta vez mesmo de importncia suprema, i Craig. De qualquer modo, eu conto-te:arranjaram um . Lysander para a recolher, mas as coisas deram mesmo . para o torto.--Passou-lhe umapasta.--Tu prprio podes ler.

    Craig foi para a cadeira ao p da janela, abriu a pasta e comeou a ler. Depois de um bocado, fechou-a,dando mostras de grande dor.

    Carter consolou-o:

    --Lamento. Muito mau, no verdade?

    --O pior possvel! Uma histria de horror!

    Ficou sentado, pensando em Anne-Marie, com os lbios muito pintados, a pose arrogante, as belaspernas com meias escuras, o cigarro permanente... to irritante, to maravilhosa, e agora...?

    Carter perguntou-lhe:

    --Sabias da existncia em Inglaterra desta irm, Genevieve Trevaunce?

    --No.--Craig devolveu a pasta.--Nunca se fez meno dela durante todo o tempo que me dei comAnne-Marie, mesmo at nos velhos tempos. Sabia que o pai era ingls, mas sempre pensei que tivessemorrido.

    Uma vez, disseme que Trevaunce era um nome da Cornualha.

    --No morreu, no. mdico, e vive na Cornualha.

    No Norte da Cornualha. Numa aldeiazinha chamada Saint Martin.

    --E a filha? Essa tal Genevieve?

    -- enfermeira no Hospital de So Bartolomeu. Teve uma gripe, h pouco tempo. Est com o pai, emSaint Martin, na situao de licena por doena.

    --E depois?

    --O brigadeiro gostaria que tu a fosses ver.--Carter tirou um sobrescrito da mala de mo e passou-lho.--Isto vai fazer-te compreender a importncia que assume o teu auxlio neste caso.

    Craig abriu o sobrescrito, retirou uma carta dactilografada e comeou a ler lentamente.

    @Quatro

    Mesmo atrs da aldeia de Saint Martin havia uma colina, um lugar estranho e sem nome, assinalado

  • nos mapas como tendo sido provavelmente uma espcie de forte romano-britnico, em tempos que jl vo. Era o pouso favorito de Genevieve Trevaunce. Tendo as gaivotas como nica companhia,sentava-se l no cimo e avistava todo o esturio, at onde a rebentao se quebrava contra os escolhostraioeiros.

    Tinha subido at l, depois do almoo, pela que deveria ser a ltima vez. Na noite anterior, encararacom relutncia o facto de que j estava curada e que os ataques areos a Londres, de acordo com asnotcias da BBC, haviam aumentado. No Hospital de So Bartolomeu certamente estavam a precisarde todo o pessoal disponvel nas enfermarias.

    Era um belo e calmo dia, de um tipo peculiar Cornualha do Norte, com o cu muito azul e a guaquebrando-se em espuma branca contra a barra do rio. Pela primeira vez aps muitos meses, sentia-seem paz consigo prpria, feliz e tranquila. L em baixo, na aldeia, o pai trabalhava no jardim do velhopresbitrio.

    Ao olhar para baixo, avistou um automvel, ao longe.

    Nesta altura da guerra, com o rigoroso racionamento da gasolina, uma tal apario significavahabitualmente o mdico ou a policia; porm, quando o carro se aproximou um pouco mais, conseguiudistinguir a cor de que havia sido pintado--o verde-bao caracterstico das viaturas militares.

    A viatura parou junto ao presbitrio e apeou-se um homem fardado. Genevieve comeou logo a corrercolina abaixo. Viu o pai erguer-se, pr a p de lado e dirigir-se para o porto. Trocaram algumaspalavras, aps o que ambos se dirigiram para o interior da casa.

    No gastou mais do que dois ou trs minutos a chegar ao sop da colina, a tempo de ver o pai abrir aporta da frente e comear a descer o caminho. Encontraram-se no porto.

    Viu-lhe a face a tremer terrivelmente, e um brilho vidrado nos olhos. Ps-lhe a mo no brao: --Mas oque foi? Que se passa?

    Os olhos focaram-se nela por breves instantes, e logo recuou, como que horrorizado.

    --A Anne-Marie!--exclamou em voz rouca.--Morreu. A Anne-Marie morreu.

    Ultrapassou-a, encaminhando-se para a igreja. Correu atravs do cemitrio numa meia corridagrotesca, cambaleante, e atravessou o prtico. A grande porta de carvalho cerrou-se com um baquesurdo.

    O cu continuava azul, e as gralhas nas rvores para alm da torre da igreja chamavam em vozdissonante umas pelas outras. Nada tinha mudado, e, no entanto, tudo era diferente. Ficou parada ali,subitamente gelada.

    Sem sentir qualquer emoo, apenas totalmente vazia.

    Ouviu passos atrs de si.

  • --Miss Trevaunce?

    Voltou-se lentamente. A farda era americana, com um impermevel aberto sobre um uniforme decombate verde-oliva. Um major, com vrias fitas de condecoraes --na verdade, em quantidadesurpreendente, para um homem to novo. Usava o bon de pala inclinado sobre o cabelo louro, j comalgumas mechas grisalhas. A face calma e plida nada exprimia, e os olhos eram do mesmo cinzentofrio do Atlntico, durante o Inverno. Entreabriu a boca ligeiramente e voltou a fech-la, como se noconseguisse falar.

    Genevieve dirigiu-se-lhe:

    --Trouxe-nos ms notcias, senhor major!

    --Osbourne.--Pigarreou um pouco.--Craig Osbourne. Santo Deus! Miss Trevaunce, por momentos tivea iluso de estar a ver um fantasma.

    J no trio, ela pegou-lhe no impermevel e abriu a porta da sala de estar.

    --Entre, por favor, e fique vontade, enquanto vou dizer governanta para nos trazer ch. Peo quenos desculpe, mas no temos caf.

    -- muita gentileza da sua parte.

    Espreitou pela porta da cozinha:

    --Pode arranjar-nos ch, senhora Trembath? Temos uma visita. O meu pai foi para a igreja. Msnotcias!

    A governanta afastou-se da pia, limpando as mos ao avental. Era uma mulher ossuda, com a faceforte da gente da Cornualha, muito calma, os olhos azuis muito vivos.--Da Anne-Marie, no ?

    -- Morreu!--disse Genevieve com simplicidade, fechando a porta.

    Quando regressou sala, Craig estava de p, em frente da cornija da lareira, observando umafotografia antiga de Anne-Marie e dela, ainda crianas.

    --Quase no faziam diferena!--disse ele.--Assombroso.

    --Vejo que conhecia a minha irm.

    --Sim. Encontrmo-nos em Paris em mil novecentos e quarenta. Eu era jornalista, ento. Tornmo-nosamigos. Sabia que o pai era ingls, mas, para lhe ser franco, ela nunca me falou em si. Nem sequeruma aluso sua existncia.

    Genevieve Trevaunce no respondeu. Sentou-se numa das cadeiras de espaldar alto, junto do lume, edisse calmamente: --Veio de longe, senhor major?

  • --De Londres.

    --Uma viagem longa.

    --No foi difcil, pois no h muito trfego nas estradas, hoje em dia.

    Fez-se uma pausa embaraosa, mas no podia adiar a pergunta mais tempo:

    --Como morreu, afinal, a minha irm?

    --Num acidente de aviao--respondeu-lhe Craig.

    --Em Frana.

    --Exactamente.

    --Mas como souberam disso?--perguntou Genevieve.--A Frana territrio ocupado.

    --Temos os nossos canais de informao. As pessoas para quem trabalho.

    --E quem so elas?

    A porta abriu-se e a Sra. Trembath entrou com uma bandeja, que colocou com cuidado sobre umamesinha.

    Deu uma olhadela a Osbourne, de relance, e saiu. Genevieve serviu o ch.

    --Devo dizer-lhe que est a suportar tudo isto com muita coragem.

    --E o senhor conseguiu evitar uma resposta minha pergunta, mas no tem importncia.--Passou-lheuma chvena de ch.--Eu e a minha irm nunca fomos muito ntimas.

    --No ser isso coisa rara, entre gmeas?

    --Ela foi viver para Frana, em trinta e cinco. Eu fiquei com o meu pai. Nada mais. Agora, deixe-metentar de novo. Para quem trabalha?

    --Repartio dos Servios Estratgicos--respondeu ele.--Uma organizao especializada, de certomodo.

    S ento ela notou um pormenor estranho na farda.

    Na manga direita, usava umas asas com as letras SF ao centro, que, conforme veio a saber mais tarde,significavam "Special Forces", e, por debaixo, as asas dos pra-quedistas ingleses.

    --Comandos?

    --No propriamente. O nosso pessoal no costuma fardar-se, a maior parte do tempo.

  • Ela atalhou:

    --Quer dizer-me que a minha irm estava envolvida nesse tipo de trabalho?

    Craig tirou um mao de tabaco do bolso e ofereceu-lhe um cigarro. Ela recusou, abanando a cabeanegativamente: --No fumo.

    --Incomoda-a o fumo?

    --De modo nenhum.

    Acendeu um cigarro, levantou-se e caminhou at janela.

    --Conheci a sua irm na Primavera de quarenta, quando trabalhava para a revista Life. Ela vivia entregente da alta sociedade..., o que, como bvio, do seu conhecimento.

    --Claro.

    --Tinha feito um trabalho sobre os Voincourt que, por motivos de vria ordem, nunca veio a lume, masque me obrigou a entrevistar a condessa...--continuou, olhando para o jardim.

    --Hortense?

    Ele voltou-se, com um sorriso seco nos lbios:

    --Uma autntica senhora. Tinha acabado de perder o quarto marido, quando a conheci. Um coronel deinfantaria, morto em combate.

    --Sim. E a minha irm?

    --Bem, tornmo-no