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1 JACQUES LE GOFF: ESTUDO DE CONCEITOS EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO LIMA, Rosilene de (PPE/UEM) SILVA, Ligiane Aparecida da (PPE-UEM) Introdução A manifestação do interesse acerca das questões que envolvem o estudo da História e Historiografia 1 da Educação têm sido evidentes. Trabalhos de autores como: Saviani (1983), Cunha (1984), Nagle (1984), Warde (1984) e Lopes (1986), Nunes e Carvalho (1993), demonstram preocupação com as formas delineadas em meio a este campo 2 de pesquisa, bem como os encaminhamentos teórico-metodógicos que vem constituindo a própria História da Educação. Entretanto, pensar em História da Educação, campo de pesquisa inserido em uma ciência maior, a saber, a História, nos remete a outra questão: que conceitos têm desenhado a constituição do campo da própria História? Sabe-se que a História da Educação tem seu objeto estritamente relacionado com a História, fator que exige definição de parâmetros comuns entre as áreas, para a efetivação de uma pesquisa, além de demandar uma articulação entre os aspectos educacionais e, ao mesmo tempo, históricos (MACHADO, 2005). Neste sentido, abordam-se nesse trabalho, na perspectiva de Jacques Le Goff 3 , conceitos que, avalia-se, são fundamentais para uma maior compreensão dos aspectos 1 De acordo com Le Goff (2003, p. 12) a Historiografia é um ramo da História, enquanto Ciência, que estuda seu próprio movimento histórico. “[...] a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história.” Assim, entende-se a Historiografia da Educação como a História da História da Educação. 2 Para uma melhor compreensão do conceito de campo vale salientar a efetiva contribuição de Bourdieu e sua teoria dos campos: “Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas). (BOURDIEU, 1983, p. 89)”. 3 Jacques Le Goff, historiador de ofício, nasceu em janeiro de 1924 em Toulon, na França. É considerado um dos maiores medievalistas do mundo. Seu trabalho destaca-se especialmente nas últimas décadas, com o movimento da Nova História, a partir dos anos 1970, exercendo grande influência no “fazer histórico” (FRÓES, 2005).

JACQUES LE GOFF: ESTUDO DE CONCEITOS EM … · Le Goff (2003) chama atenção para as possíveis confusões grosseiras e mistificadoras, entre os significados desses “sentidos”,

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JACQUES LE GOFF: ESTUDO DE CONCEITOS EM HISTÓRIA DA

EDUCAÇÃO

LIMA, Rosilene de (PPE/UEM)

SILVA, Ligiane Aparecida da (PPE-UEM)

Introdução

A manifestação do interesse acerca das questões que envolvem o estudo da História e

Historiografia1 da Educação têm sido evidentes. Trabalhos de autores como: Saviani (1983),

Cunha (1984), Nagle (1984), Warde (1984) e Lopes (1986), Nunes e Carvalho (1993),

demonstram preocupação com as formas delineadas em meio a este campo2 de pesquisa, bem

como os encaminhamentos teórico-metodógicos que vem constituindo a própria História da

Educação.

Entretanto, pensar em História da Educação, campo de pesquisa inserido em uma

ciência maior, a saber, a História, nos remete a outra questão: que conceitos têm desenhado a

constituição do campo da própria História? Sabe-se que a História da Educação tem seu

objeto estritamente relacionado com a História, fator que exige definição de parâmetros

comuns entre as áreas, para a efetivação de uma pesquisa, além de demandar uma articulação

entre os aspectos educacionais e, ao mesmo tempo, históricos (MACHADO, 2005).

Neste sentido, abordam-se nesse trabalho, na perspectiva de Jacques Le Goff3,

conceitos que, avalia-se, são fundamentais para uma maior compreensão dos aspectos

1 De acordo com Le Goff (2003, p. 12) a Historiografia é um ramo da História, enquanto Ciência, que estuda seu próprio movimento histórico. “[...] a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história.” Assim, entende-se a Historiografia da Educação como a História da História da Educação. 2 Para uma melhor compreensão do conceito de campo vale salientar a efetiva contribuição de Bourdieu e sua teoria dos campos: “Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes (em parte determinadas por elas). (BOURDIEU, 1983, p. 89)”.

3 Jacques Le Goff, historiador de ofício, nasceu em janeiro de 1924 em Toulon, na França. É considerado um dos maiores medievalistas do mundo. Seu trabalho destaca-se especialmente nas últimas décadas, com o movimento da Nova História, a partir dos anos 1970, exercendo grande influência no “fazer histórico” (FRÓES, 2005).

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históricos da História da Educação, tais como: o conceito de História e de Memória.

Considera-se o autor supracitado de influência marcante na Historiografia da Educação no

Brasil, uma vez que suas obras estão presentes nos trabalhos de pesquisa e docência nas

universidades brasileiras. Dessa forma, a contribuição de Le Goff, intelectual medievalista de

expressão no meio acadêmico, na definição dos conceitos aqui analisados, possibilita

avançarmos para além dos estudos históricos e adentrarmos na especificidade e/ou na

apropriação da História da Educação desses conceitos. Assim, este estudo se consubstancia

em uma perspectiva contemporânea de conceitos apropriados pela História da Educação na

atualidade, fundamentada por Le Goff, o qual busca nos ensinamentos do medievo os

conhecimentos que embasam suas análises. Vejamos, então, seu contributo.

História

É especificidade do campo da História estabelecer relações com o tempo, com a

duração, de forma natural ou não, ou seja, o tempo, por exemplo, das estações do ano como

natural e o tempo do próprio ano (do calendário) como não natural. A História, como ciência,

se constrói atendendo um imenso leque de temáticas, distribuídas sob vertentes variadas.

Pode-se destacar, por exemplo, a História das Mentalidades, a História Cultural e a Nova

História, entre outras. A vertente utilizada pelo historiador Jacques Le Goff, pelo qual

nortearemos esse trabalho, é a da Nova História. Busquemos, neste primeiro momento, de

forma rudimentar, trazer algumas reflexões que podem nos auxiliar na compreensão da

concepção de História deste renomado autor.

De acordo com Neves (2005), fundamentada nos estudos de Le Goff, História é uma

palavra de origem grega, cujo significado é entendido por procurar, investigar. Para Leopold

Rank, de acordo com os estudos de Lopes e Galvão (2001), cabe à História simplesmente

narrar os fatos, tal como eles aconteceram, afirmativa a qual as historiadoras da educação

avaliam como uma ilusão positiva, pois o passado, nunca é completamente apreensível.

Le Goff (2003) defende que a História não deve ser entendida como ciência do

passado, mas como a “[...] ciência da mutação e da explicação dessa mudança” (LE GOFF,

2003, p. 15). O autor nos apresenta conceitos diferentes de História, de acordo com as línguas

românicas: a História como uma procura das ações realizadas pelo homem; a História como

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“o que os homens realizaram” sendo o tema central ou objeto de procura; e a História como

uma narração, verdadeira ou falsa, fundamentada na “realidade histórica” ou no imaginário.

O século XIX é considerado por Le Goff como o século da História, pois “[...] inventa

ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a história dentro do saber – falando, como

veremos, de ‘historismo’ ou de ‘historicismo’ – e uma função, ou melhor, uma categoria do

real, a ‘historicidade’ [...]” (LE GOFF, 2003, p. 19). Para o autor, do ponto de vista

epistemológico, a historicidade possibilita refutar, no plano teórico, a noção de “sociedade

sem história”, refutada, por outro lado, pela forma empírica com que a etnologia estuda as

sociedades.

Le Goff (2003, p. 19), fundamentado em Certeau, observa que “Há uma historicidade

da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma práxis social”.

E, estudando o filósofo Paul Ricoeur, o qual observa um paradoxo no fundamento

epistemológico da História, desdobrando-a em um modelo de acontecimentos e em outro

modelo estrutural, concorda que “[...] é sempre na fronteira da história, no fim da história que

se compreendem os traços mais gerais da historicidade” (LE GOFF, 2003, p. 20).

Sobre o conceito de historicidade, Le Goff (2003) afirma que este possibilita a

“entrada” de novos objetos da História no campo da Ciência Histórica. Elementos como a

História Rural, História da Loucura, entre outros, ainda não reconhecidos, passam a ser

tratados. Por outro lado, essa abertura para novos objetos da História, na concepção do autor,

acaba por descaracterizar o ideal que se tem de História, ou, em suas palavras “[...] a

historicidade exclui da História com H maiúsculo: ‘Tudo é histórico, logo a história não

existe’” (idem, ibidem).

Neste sentido, evidencia-se uma preocupação do autor com os diferentes “sentidos”

que a história possa apresentar. Le Goff (2003) chama atenção para as possíveis confusões

grosseiras e mistificadoras, entre os significados desses “sentidos”, observando a

diferenciação existente entre a Ciência da História e a Filosofia da História, da qual suspeita.

Isso não implica na não aceitação desse tipo de reflexão, pois “[...] a fronteira entre as duas

disciplinas, as duas orientações, não está estritamente traçada nem é traçável (em última

hipótese). O historiador não pode concluir que deve evitar uma reflexão teórica, necessária ao

trabalho histórico (LE GOFF, 2003, p. 20).

Sobre esse aspecto, o autor apresenta o estudo da revista “History and Theory. Studies

in the philosophy of History”, a qual aborda a questão da proximidade da Filosofia e da

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História provando que “[...] a possibilidade e o interesse duma reflexão comum de filósofos e

historiadores, assim como da formação de especialistas informados, no campo da reflexão

teórica sobre a história” (LE GOFF, 2003, p. 21). Avalia ainda, que “[...] é legítimo que nas

margens da ciência histórica se desenvolva uma filosofia da história, como outro ramo do

saber” (idem, ibdem).

De acordo com Le Goff (2003), a história apresenta algumas ambigüidades e

paradoxos, tais como: a história é uma ciência do passado ou só existe história

contemporânea?; a questão do saber e poder; sobre a objetividade e manipulação do passado;

e ainda, a questão do singular e universal, generalizações e singularidades da história.

Observa-se que o autor considera a discussão de tais ambigüidades e paradoxos como

fundamentais para a definição de sua concepção de história, pois os explicita de forma

detalhada.

Sobre o primeiro aspecto, Le Goff (2003) adentra na concepção de Marc Bloch4, o

qual entende a História não como uma ciência do passado, mas como a ciência dos homens no

tempo, dando a mesma um caráter mais humano. Para Bloch, a história “[...] é um esforço

para um melhor conhecer uma coisa em movimento” (BLOCH, 1965, p.29) e, “[...] não se

explica um fenômeno histórico fora do estudo de seu movimento” (BLOCH, 2001, p.60). A

concepção de Bloch, apresentada, é a de que considerava a história como uma ciência a ser

estudada não apenas como o estudo do presente para compreender o passado, mas, também,

uma forma de compreender o passado pelo presente. Essa é uma outra forma de olhar para a

História, uma História não linear, mas de rupturas e descontinuidades, às vezes

inultrapassáveis.

Outra questão, apresentada por Le Goff (2003), refere-se à História contemporânea. O

autor lembra a famosa frase de Benedetto Croce em que considera que “toda a história” é

“história contemporânea”, entendendo que por mais que pareçam estar afastados, os

acontecimentos de que trata na realidade, no tempo, a história sempre está em sintonia com

situações presentes. Para Croce, segundo Le Goff (2003), a história é conhecer um eterno

presente, e isso significa negar a história. O autor considera o passado “[...] uma construção e

uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da

história” (LE GOFF, 2003, p. 25).

4 Marc Bloch, historiador de ofício, foi, em 1929, um dos fundadores da revista Annales.

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Neste sentido, evidencia-se uma preocupação de Le Goff acerca da dependência da

história do passado em relação ao presente:

Ela é inevitável e legítima, na medida em que o passado não deixa de viver e de se tornar presente. Esta longa duração do passado não deve, no entanto, impedir o historiador de se distanciar do passado, uma distância reverente, necessária para que o respeite e evite o anacronismo (LE GOFF, 2003, p. 26).

Sobre o segundo aspecto, é perceptível um dos anseios que Le Goff (2003, p. 29)

coloca na história ao escrever que ”[...] ela deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os

seus erros”, e ainda se perguntando se o historiador está preparado para enfrentar o imenso

desafio, o qual chama de doença, se não do passado, então do presente.

O autor demonstra por meio de exemplos, que “[...] a objetividade histórica não é a

pura submissão dos fatos” (LE GOFF, 2003, p. 32). Salienta que a imparcialidade exige do

historiador apenas honestidade, já a objetividade demanda um pouco mais, acrescentando

ainda que:

Se a memória faz parte do jogo de poder, se autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos, a história, como todas as ciências, tem como norma a verdade. Os abusos da história só são um fato do historiador, quando este se torna um partidário [...] (idem, ibidem).

Dessa forma, observa-se a conclusão do autor sobre a questão da objetividade, ao

afirmar que “A objetividade histórica – objetivo ambicioso – constrói-se pouco a pouco

através de revisões incessantes de trabalho histórico, laboriosas verificações sucessivas e

acumulação de verdades parciais” (LE GOFF, 2003, p. 33).

É relevante, a respeito do terceiro aspecto apresentado por Le Goff acerca das

ambigüidades e paradoxos da história, destacar o pensamento do autor:

A contradição mais flagrante da história é sem dúvida o fato do seu objeto ser singular, um acontecimento, uma série de acontecimentos, de personagens que só existem uma vez, enquanto que o seu objetivo, como o de todas as ciências, é atingir o universal, o geral, o regular (LE GOFF, 2003, p. 34).

Se de um lado a história permite atingir o universal, de outro, por meio dela,

reconhece-se a sua singularidade, pois um fato ou um acontecimento é sempre único, nunca se

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repetirá. É nesse sentido, que Le Goff argumenta três conseqüências do reconhecimento da

singularidade do fato histórico: a primazia do acontecimento, o privilegiar os grandes homens,

e a sua redução a uma narração.

Mas afinal, após Le Goff realizar toda uma trajetória de estudos a fim de explicitar a

sua concepção de História, o que pensa ser o trabalho histórico e a própria história? O autor

nos deixa de forma clara o seu pensamento quando afirma que “[...] o trabalho histórico tem

por fim tornar inteligível o processo histórico e que esta inteligibilidade conduz ao

reconhecimento da regularidade na evolução histórica” (LE GOFF, 2003, p. 44-45). Quanto à

história, esta é posta como a ciência do tempo, “Está estritamente ligada às diferentes

concepções de tempo que existem numa sociedade e são um elemento essencial da

aparelhagem mental dos seus historiadores” (LE GOFF, 2003, p. 52).

Memória

Filosoficamente, memória refere-se à capacidade mental de armazenamento de

informações, sejam de experimentações ou de conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, e

de trazer essas informações à tona quando necessário. Ora, o conhecimento se produz por

meio de memórias de um passado consolidado no presente. No Dicionário Básico de Filosofia

Japiassú e Marcondes afirmam: “A memória pode ser entendida como a capacidade de

relacionar um evento atual com um evento passado do mesmo tipo, portanto com uma

capacidade de evocar o passado através do presente” (JAPIASSÚ & MARCONDES, 2006, p.

183-184).

Isso é perceptível quando, por exemplo, ao sentir o cheiro de um tempero que

percebíamos, quando crianças, temos a sensação de que voltamos ao passado ou buscamos

nossas lembranças de infância. Entretanto, voltemos ao foco deste trabalho: vejamos, de

forma breve, qual a concepção de Jacques Le Goff sobre o conceito de memória, um dos

principais objetivos expressos no início desse texto.

Para Le Goff (2003), os campos científicos que estudam a memória atualmente, como

a biologia, a psicologia, a neurofisiologia, a psicofisiologia e a psiquiatria, podem contribuir

para a compreensão das características e dos problemas da memória social e histórica. Em

contrapartida, os próprios estudos desenvolvidos por essas variadas ciências têm levado os

pesquisadores à necessidade de aproximar a memória do campo das ciências humanas, na

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medida em que os resultados das pesquisas empíricas evidenciam uma relação intrínseca da

memória com “[...] resultados de sistemas dinâmicos de organização” (LE GOFF, 2003, p.

421).

O autor afirma que os estudos recentes vêm sendo desenvolvidos apontando para uma

aproximação da memória com a linguagem. Ora, antes de uma idéia ser falada ou escrita,

precisa primeiramente estar armazenada na memória. Além disso, com o desenvolvimento da

biologia e da cibernética, psicólogos e psicanalistas passaram a estudar a memória de uma

forma mais teórica e não somente empírica. Esses pesquisadores observaram que os

sentimentos inerentes ao homem, como o desejo, a afetividade, a censura, podem manipular a

memória individual, consciente ou inconscientemente. Em relação à memória coletiva,

observaram que esta pode ser manipulada pelos grupos que objetivam exercer o poder em

determinados momentos históricos.

Le Goff (2003) divide seu estudo sobre a memória histórica em cinco partes, a saber,

memória étnica; desenvolvimento da memória da Pré-História à Antiguidade; memória

medieval; progressos da memória escrita e os desenvolvimentos atuais da memória.

Mas o que este autor entende sobre memória? Le Goff (2003) defende que a cultura

dos homens com escrita é diferente da cultura dos povos sem escrita, todavia, não

radicalmente divergente. Os povos sem escrita cultivam suas tradições por meio de narrativas

mitológicas, transmitidas às demais gerações pelos homens – memória, personagens

responsáveis pelo cultivo da história de seu povo. No entanto, essa prática não lança mão de

estratégias de memorização, não é uma prática mecânica, diferentemente da escrita. E Le Goff

acrescenta: “Transmissão de conhecimentos considerados secretos, vontade de manter em boa

forma uma memória mais criadora que repetitiva; não estarão aqui duas das principais razões

da vitalidade da memória coletiva nas sociedades sem escrita” (LE GOFF, 2003, p. 426).

Do período em que se deu o desenvolvimento da memória pela oralidade até o

aparecimento da escrita (da Pré-História até a Antiguidade), Le Goff (2003, p. 427) afirma

que houve uma “transformação da memória coletiva”, a partir do momento em que os homens

passaram a inscrever suas aventuras, vitórias e conquistas em monumentos epigrafados. No

entanto, quando a escrita passa a ser organizada em documentos escritos, um outro avanço

acontece: a capacidade de registrar, marcar, memorizar, reordenar, reexaminar, etc. Todo esse

desenvolvimento não esteve separado, segundo o autor, do crescimento dos centros urbanos

que ampliaram as necessidades e condições dos homens.

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A escrita, assim, possibilitou o aparecimento, ou melhor, a criação de exercícios de

memória. No entanto, a história dos gregos demonstra que, apesar de letrados, havia entre eles

uma preocupação com a prática de exercícios artificiais de memorização. Os gregos

enalteciam a prática natural da memória, que independe da escrita. Isso não impedia, contudo,

que praticassem exercícios de rememoração baseados na linguagem escrita.

Na Idade Média, com a difusão do cristianismo e com o monopólio intelectual da

Igreja, a memória coletiva modifica-se, visto que as religiões judaica e cristã têm como base

de sua fé a memorização, a recordação. Traços dessa transformação são: o desenvolvimento

da memória dos mortos, o papel da memória no ensino articulando o oral e o escrito, a divisão

da memória coletiva entre memória litúrgica e memória laica, desenvolvimento da memória

dos mortos, entre outros (LE GOFF, 2003).

O ensino cristão é memória e esta se manifesta, essencialmente, na comemoração de

Jesus, revelada no calendário litúrgico, e em sua cristalização nos santos e mortos: “Os

mártires eram testemunhos. Depois da sua morte, cristalizava-se em torno de sua recordação a

memória dos cristãos.” (LE GOFF, 2003, p. 441).

Segundo Le Goff (2003), a Idade Média venerava os idosos, pois eram considerados

homens-memória. A memória fiel poderia durar até cem anos, uma geração passava sua

memória para outra e, por meio dos escritos, desenvolvidos a par do oral, era possível

estender essa memória por muito mais tempo. Os escritos seriam, então, suportes para a

memória e, para sua conservação, surgiram os arquivos. Assim, “Durante muito tempo, no

domínio literário, a oralidade continua ao lado da escrita, e a memória é um dos elementos

constitutivos da literatura medieval” (LE GOFF, 2003, p. 445).

Ao tratar dos progressos da memória escrita, Le Goff (2003) enfatiza a o aparecimento

da imprensa como fator que revoluciona a memória ocidental. Antes, dificilmente se

distinguia a transmissão oral e a transmissão escrita. A imprensa trouxe a “[...] exteriorização

progressiva da memória individual [...]” (LE GOFF, 2003, p. 452). Para o autor, sobretudo os

tratados científicos e técnicos aceleraram a memorização do saber.

Entre os diversos traços que evidenciam a imensa revolução trazida pela imprensa,

pode-se destacar: a necessidade de festas nacionais, instrumentos de suportes para

comemorações (moedas, medalhas, etc.), a construção de monumentos de lembrança, a

abertura de museus e as fotografias (LE GOFF, 2003).

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Jacques Le Goff, ao abordar os desenvolvimentos contemporâneos da memória, última

parte do seu estudo sobre memória histórica, reflete, enfatizando o século XIX, sobre a

incapacidade de a memória individual abarcar toda a proporção atingida pelos conteúdos das

bibliotecas, um imenso arquivo.

De acordo com o autor, a maior revolução da memória está no século XX, com o

aparecimento da espetacular memória eletrônica. Entretanto, não se pode deixar de salientar

suas conseqüências: “[...] a utilização dos calculadores nos domínios das ciências sociais e,

em particular, daquela em que a memória constitui, ao mesmo tempo, o material e o objeto: a

história [...]” e “[...] o efeito “metafórico” da extensão do conceito de memória e da

importância da influência por analogia da memória eletrônica sobre outros tipos de memória”

(LE GOFF, 2003, p. 463).

Na concepção de Le Goff (2003), toda essa evolução das sociedades, elucida a

relevância do papel que a memória coletiva representa. Ela está presente nas grandes questões

das sociedades desenvolvidas e em desenvolvimento. O autor a defende como “[...] um

elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja

busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e

na angústia.” (LE GOFF, 2003, p. 469).

Considerações Finais

A partir das análises expressas neste trabalho, reafirma-se, e agora com mais

propriedade, as questões aqui apresentadas como fundamentais para uma maior compreensão

dos aspectos históricos da História da Educação, uma vez que, delineados os contornos dos

conceitos, a saber, o de História e o de Memória, na perspectiva de Jacques Le Goff, pode-se

aprofundar as diversas formas de apropriação da História e da Historiografia da Educação

acerca dos mesmos, o que vai além dos limites desse trabalho.

Sobre o conceito de História, avalia-se como fundamental, no sentido em que busca

nortear os estudos e métodos do trabalho histórico. O campo da História é complexo, de

controvérsias, desafios e interrogações. Os próprios historiadores estão em um mundo em

crise, de um lado os historiadores “tradicionais”, e de outro os que se orientam pela nova

história (LE GOFF, 2003). Entretanto, é inegável que ambas trazem contributos para a

consolidação da História, sobretudo no alargamento e aprofundamento da história científica.

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Com relação ao conceito de Memória, este é crucial para o desenvolvimento da

própria História, sem ela não haveria estudo nem conhecimento. É preciso, pois, uma postura

dos historiadores para lidarem com esses conceitos: “A memória, na qual cresce a história,

que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro.

Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a

servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471).

Referências:

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BLOCH, Marc. Apologia da História ou ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. FRÓES, Vânia Leite. Jacques Le Goff. Bibliografia comentada. In: III COLÓQUIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS. Anais... Niterói – Rio de Janeiro: UFF, 2005. JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. LE GOFF, Jacques. História. In: ______ História e Memória. 5. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 1-171. LE GOFF, Jacques. Memória. In: ______ História e Memória. 5. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 419-476. LOPES, Eliane Marta Teixeira & GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MACHADO, Maria Cristina Gomes. Brasil Império: Estado da Arte em História da Educação Brasileira – HISTEDBR – Estudo dos Intelectuais. Mesa redonda. Campinas: HISTEDBR, 2005. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_ 069.html> Acesso em: 20/05/2009. NEVES, Fátima Maria. História da Educação no Brasil – Considerações historiográficas sobre a sua constituição. In: ROSSI, E. R.; RODRIGUES, E. & NEVES, F. M. (Org.) Fundamentos históricos da educação no Brasil. Maringá: EDUEM, 2005. NUNES, Clarice & CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da Educação e Fontes. Cadernos ANPED. Porto Alegre, n. 5, p. 7-64, 1993.