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James Cowan o SONHO DO CARTÓGRAFO :Meciitaç.ões de :Jra :Mauro na Corte de 'Venez a cio Sécu{o Xo/I Tradução de MARIA DE LOURDES REIS MENEGALE ftt:cCú"-' Rio de Janeiro - 1999

James Cowan - O Sonho Do Cartógrafo Págs. 1 a 50

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James Cowan - O Sonho Do Cartógrafo Págs. 1 a 50

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  • James Cowan

    o SONHO DOCARTGRAFO

    :Meciita.es de :Jra :Maurona Corte de 'Venez a cio

    Scu{o Xo/I

    Traduo deMARIA DE LOURDES REIS MENEGALE

    ftt:cC"-'Rio de Janeiro - 1999

  • Muitas vezes e de muitas maneiras tenho investigado osreinos terrenos do mundo inteiro (to longe quanto poss-vel dentro do que conhecido pelos cristos). No umestudo muito difcil, mas um projeto adequado para umperfeito cosmgraJo ser alado a cosmlogo, cidado emembro da total e nica cidade universal, e, conseqen-temente, mediador do Governo Cosmopolita sob asordens do Rei Todo-Poderoso.

    EDGAR, REI DOS SAXOES, POR

    VOLTA DO ANO 973, A.D.

    Ttulo originalA MAPMAKER'S DREAM

    The Meditations of Fra Mauro,Canographer to the Court of Venice

    Copyright 1996 /Jy James Cowan

    Por acordo com aShambhala Publications, Inc.

    1'.0. Box 308, Boston, MA 02117

    Direitos mundiais para a Ifngua portuguesareservados com exclusividade EDITORA ROCCO LTDA.

    Rua Rodrigo Silva, 26 - 5. andar20011-040 - Rio de Janeiro - RJTe!.: 507-2000 - Fax: 507-2244e-mail: [email protected]

    www.rocco.com.br

    Printed in Brnzil/lmpresso no Brasil

    Eu sou O meu mundo,LUDWIG WITTGENSTEIN.

    ClP-Brasi!. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Cowan, James, 1942-C915s O sonho do cangrafo: meditaes de Fra Mauro na corte de

    Veneza do sculo XVI I James Cowan; traduo de Maria deLourdes Reis Menegale. - Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

    Traduo de: A mapmaker's dream: the meditations of FraMauro, cartographer to lhe court of Venice.

    ISBN 85-325-1052-3

    I. Mauro. Fra, m.1459 - Fico. 2. Veneza (Itlia) - Histria-697-1508 - Fico. 3. Fico inglesa. I. Menegale, Maria de LourdesReis. 11.Titulo.

    99-1226 CDD-823CDU - 820-3

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  • =-:J~ Introduo

    [IM FINS DE 1980, fiz uma visita ilha de SanLazzaro degli Armeni, na laguna veneziana.Naquela poca, pesquisava a vida do poeta

    ~._ ' . Lord Byron, que havia passado alguns mesesali tentando aprender a lngua armnia. Trsvezes porsemana, ele costumaya remar de Veneza at a ilha, paraestudar na impressionante biblioteca do mosteiro. Casa dospadres Mechitar desde 1715, San Lazzaro tinha sido doada Igreja Armnia depois que a Ordem fora expulsa, pelosturcos, do seu mosteiro, em Morea. Desde ento, SanLazzaro tornou-se centro renomado de aprendizado, nosomente para armnios exilados, mas para todos aquelesque estivessem em busca de conhecimento.

    Os padres Mechitar foram sempre bem consideradospelos visitantes de Veneza. Foi conseqncia natural dissoque sua biblioteca e o pequeno museu anexo se tornassem

  • 14 / O Sonha do Cartgrafo Introduo / 15

    beneficirios de numerosos presentes de pessoas as maisdiversas, como o duque de Madrid e at mesmo Napoleo.O Papa Gregrio XVI, por exemplo, doou um busto de siprprio, em mrmore; e um eminente mercador armnio,vivendo no Egito, ofereceu sua coleo de livros orientaisraros, incluindo algumas cpias, no muito adequadas, dasobras apimentadas de Sir Richard Burton.

    No andar de cima, o museu guarda uma mmia egpcia,uma caixa cheia de man, uma coleo de entalhes demadeira do Monte Athos, um pergaminho do ritual budis-ta encontrado por um viajante armnio num templo emMadra e um pequeno arsenal de armas antigas. H, tam-bm, uma mquina de produzir fascas eltricas. As aquisi-es mais recentes incluem cartas de Browning paraLongfellow, um trecho do Alcoro em copta e um conjun-to de medalhas alems com as figuras das cabeas dosmonarcas ingleses.

    Um exame superficial de tais itens levou-me a concluirque o mosteiro, atravs dos sculos, se tornara o deposit-rio de um grande bricabraque cultural. Os padres Mechirar,colecionadores compulsivos, haviam avidamente obtido earmazenado tantas antigidades esotricas do Levante, queum pesquisador no saberia por onde comear. Eu esperavadescobrir um mao de cartas de Lord Byron ou, talvez, umcaderno com suas anotaes. Meu desapontamento ao fra-cassar foi em parte recompensado pela descoberta de umdirio escrito por um veneziano do sculo XVI, um homemchamado Fra Mauro, que viveu no Mosteiro de San Micheledi Murano.

    A descoberta do dirio de Fra Mauro no tinha nada a

    ver com a minha linha de pesquisa; mas isso no me impe-diu de mergulhar, por simples curiosidade, nas pginasmanchadas pelo tempo. A primeira pgina, imediatamente,despertou o meu interesse. Numa elaborada grafia italianada poca, Fra Mauro afirma que os pensamentos ali escritosinteressavam apenas a ele. Por acaso, eu havia encontradoum documento raro, contendo as reflexes pessoais de umdos ltimos clrigos da Renascena.

    Minha ateno foi desviada. Deixei de lado, por umtempo, a pesquisa sobre Lord Byron e dediquei minhasenergias a um estudo mais detalhado de Fra Mauro. Erapossvel que tal dirio pudesse esclarecer os costumes deuma poca, quando Veneza estava no auge do seu poder eprestgio. As declaraes pessoais de um homem, por maisinsignificante que ele pudesse parecer, serviriam paraampliar nosso conhecimento a respeito desse rico e frtilperodo. Na tradio de um Pepys, talvez os pensamentosde Mauro revelassem algo importante, resultante dos seusencontros.

    Imaginem a minha surpresa quando descobri que asanotaes de Mauro eram inteiramente leigas. O homemtinha se tornado um especialista em cartografia, um "cria-dor de mapas", que devotou grande parte de sua vida adesenhar o que esperava ser o mapa definitivo do mundo.Como muitos eruditos da Renascena, ele julgava o estudodo mundo fsico inteiramente digno de seus esforos.Leonardo da Vinci e outros iguais teriam consideradoMauro um deles. O descobrimento da Amrica porColombo e a rota martima em volta da frica para as n-dias por Vasco da Gama, no final do sculo XV, simples-

  • Introduo / 1716 / OSonho do CartgraJo

    mente enfatizaram a caracterstica da poca, de "olhar parafora". Para Mauro, o mundo tornara-se o seu laboratrio.

    Pouco se sabe sobre a vida de Mauro. No se sabe ondee quando nasceu (embora ele se declarasse veneziano), nemem que ano morreu No h arquivos em San Michele diMurano aos quais possamos recorrer, j que o mosteirodesapareceu h muito tempo. Como o dirio de Mauro foiparar na biblioteca de San Lazzaro tambm um mistrio.Provavelmente chegou s mos dos padres como presentede algum benfeitor veneziano. O que sabemos que Mauroera um consumado criador de mapas. Como a maioria doscarrografos de sua poca aprendiam sua profisso naAnturpia, em Lisboa ou em Gnova, podemos concluirque Mauro viveu nessa ltima cidade durante um certoperodo de sua vida, possivelmente na juventude.

    Havia uma sutil expectativa subjacente ao desejo deaprender tanto quanto possvel sobre o mundo fsico.Atravs de todas as suas meditaes encontramos evidn-cias de que ele procurava a existncia de uma realidade ma-isintrnseca, que englobasse todas as outras que os homensdo seu tempo conheciam. Embora, em nenhum momento,mencione qual possa ser a natureza dessa realidade, Mauroacredita, claramente, na sua existncia. Ou devo dizer queaprendeu a perceber a existncia dessa realidade com osolhos das outras pessoas, porque essa a essncia de suahistria.

    Mauro representa um inusitado exemplo criativo noflorescente pensamento r enascentista. Aqui estava umhomem que procurava conhecimento nos cantos mais lon-gnquos do mundo, enquanto permanecia firmemente reco-

    lhido a seu prprio canto. Ele se contentava em deixar queos outros fizessem as investigaes por ele. Os mercadorese os aventureiros que o visitavam em sua cela ou escreviampara ele dos lugares mais remotos devem ter sido seduzidospelo seu charme peculiar, pois parece que Mauro era extre-mamente acessvel s experincias e insights deles.

    Sua tolerncia em aceitar informaes to diversas e defontes to variadas, sem questionar sua autenticidade, noentanto, causa surpresa. Embora, s vezes, manifeste pre-conceitos (ele suspeita do Isl, por exemplo), tem-se aimpresso de que mais inclinado tolerncia do que ocontrrio. Sua crena pessoal como monge cristo nunca desmedida. Sente-se que ele usa seu catolicismo sem exage-ros, no permitindo Igreja ou doutrina interpor-se entreele prprio e a verdade. Neste sentido, segue o pensamentode sua poca.

    Percebe-se, entretanto, que Mauro tem algo importan-te a dizer - no apenas para o seu tempo, mas para todos. Omundo que comea a se revelar ante seus olhos no somente um mundo de coisas, mas tambm um mundo deformas infinitas.

    Embora ele possa estar escrevendo sobre os homens deum s olho ou sobre os estranhos costumes dos caadoresde cabeas em Bornu, percebe-se que ele est mais interes-sado em tentar compreender seus motivos do que simples-mente registrar seus hbitos, freqentem ente intolerveis.Ele no est to interessado no que as pessoas fazem, masem como pensam. Mauro prefere que as pessoas descrevamseus mundos da forma como esperam que sejam um dia, aaceitar qualquer coisa menos significativa.

    1I

  • 18 I O Sonho do Cart6grafo Introduo I 19

    Isso no quer dizer que Mauro fosse imune s susceti-bilidades do seu tempo. Embora os europeus j estivessemexplorando o mundo com novos olhos, ainda acreditavamem unicrnios e homens de uma s perna, aves de imensafora e gneas salamandras. Por um lado, encontramosMauro registrando material em seu dirio mais condizentecom pginas de um bestirio medieval. Por outro lado,encontramo-Io concluindo a partir dos relatrios que rece-bia, de uma maneira avanada em relao ao pensamento deseus contemporneos. De um jeito estranho ele v o mundocomo se estivesse fora de seu tempo e o v em suas formaseternamente repetidas. Em seu modo de pensar, o mundotransforma-se, apenas, na conscincia humana e, medidaque essa conscincia muda, o mundo tambm muda.

    Fra Mauro acha-se preso a dois conceitos da verdade:um, imutvel, reforado pelo absolutismo medieval; o outro,condicional e amplamente determinado pelos novos e mara-vilhosos descobrimentos. Apesar de toda a sua curiosidade,ele se encontra vacilante entre as duas verdades. Os seusinformantes fornecem-lhe todos os ingredientes para umaintensa vida imaginria, mas ao mesmo tempo ele ainda seprende ao conforto de certos dogmas e preconceitos. Acha-mos, entretanto, a sua viso interior extremamente sedutoraporque, nela, vemos implcita nossa prpria maneira de pen-sar. Atravs de seu dirio vemos Mauro submetendo o queele ouve ou l a uma forma muito particular de exame. Ohomem no tem certeza se existe por direito prprio ou se ,simplesmente, um produto de seus prprios pensamentos.

    Alguma coisa deve ser dita a respeito de seus informan-tes. Eles provm de todos os seguimentos da vida pblica

    do sculo XVI. Mercadores, viajantes, eruditos, nncios,embaixadores, professores e oficiais - todos o alimentamcom informaes que ele devora prontamente, no ambientetranqilo de sua cela. como uma esponja absorvendotudo o que o visitante oferece. Mauro, entretanto, divergedas opinies deles e, com freqncia, o vemos analisando,cuidadosamente, suas observaes. to fascinado pelafacilidade com que os viajantes deixam o mundo familiar, oqual ele conhece to bem, que sentimos que ele anseia porse soltar da sua vida clerical restrita e se juntar a eles em suasviagens. Tem-se a impresso que Fra Mauro teria trocadode lugar com esses exploradores e aventureiros se tivessecoragem para tanto.

    Decidi que seria interessante traduzir o dirio de FraMauro. Fazendo isso, esperava lanar alguma luz sobre oparadeiro do mapa no qual ele trabalhou durante toda a suavida, pois estranho que o dirio no esteja acompanhadopor aquilo sobre o que tanto falou. Ou o mapa se perdeu oufoi requisitado pelas autoridades de Veneza, ansiosas porpreservar a Superioridade de La Serenssima, RepblicaSerena, como a mais importante nao martima.

    Ningum pode afirmar, categoricamente, que o mapano existe. Pode ser que um pesquisador, mais determinadodo que eu, o encontre entre os papis que jazem abandona-dos na cmara morturia dos arquivos venezianos do passa-do. Talvez a sua viso do mundo esteja mofando em algumagaveta, junto com tentativas similares de outras pessoas.Talvez haja muitos mapas diferentes do mundo, represen-tando igual surpresa, aguardando para serem exumados dotmulo do passado.

  • 20 I O Sonho do Cartgrafo

    Para aqueles que lem Fra Mauro pela primeira vez,devo dizer o seguinte: encare sempre suas ruminaescomo um processo de adivinhaes gradual. Seu sonho inferir a partir do emprego perfeito do mistrio. Cada lugarevocado torna-se um smbolo. Pouco a pouco ele tenta evo-car um pas, um mundo inteiro, a fim de revelar o arcabou-o de uma idia. Fazendo isso, ele escolhe, freqentem ente,uma informao, s vezes um fato simples, com o objetivode provocar o surgimento de um novo estado da mente. Eleest tentando encorajar um processo de decifrao ilimita-do, como se esses fatos fossem a ponta de um iceberg. Estnos pedindo para dispensarmos as aparncias e mergulhar-mos mais profundamente abaixo da superfcie. deciso doleitor determinar se as meditaes de Fra Mauro sobre odescobrimento do mundo lhe despertam ernpatia ou no.

    .9LsMEDITAES

    ,

    DE

    !fRAMAURO

    James CowanSAN LAZZARO, VENEZA

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    11OR ALGUM TEMPO desejei relatar o que vemacontecendo comigo nos ltimos anos. No. quero que minhas palavras se fragmentemz., como pergaminhos antigos ou exalem o aromade velhos mapas, mas desejo que elas reflitam meu profun-do interesse em tais coisas. Quero contar uma histriasobre uma viagem que estou empreendendo, uma viagemque vai alm de todas as fronteiras conhecidas, e que discor-re sobre possibilidades, em vez de abordar as coisas prosai-cas que j conhecemos.

    H precedentes em tal empreendimento. CristvoColombo estava em busca do Paraso quando partiu parasua viagem pica atravs do Atlntico.':' Vi suas anotaes

    111

    ':. Colombo foi, tambm, muito in-fluenciado pelo gegrafo grego Stra-

    bo que corroborava a opinio deHomero quanto esfericidade da

  • 24 I O Sonho do Cart6grafo Jls %eitaes de 'Fra%auro I 25

    sobre isso em um estudo do francs Pierre d' Ailly oTractatus de Imagine Mundi - uma viso do mundo imagi-nrio. Ele e Colombo (que, segundo me disseram, levou oestudo de d'Ailly em sua viagem ao Novo Mundo) estavamansiosos para revelar, com perfeio, o que no fora aindadescoberto.

    No foram eles os nicos homens a pensar sobre oassunto. Giovanni dei Marignolli, um de nossos embaixa-dores na China, foi informado pelo povo de Serendip' queo pico de Ado, o glorioso cume de onde podemos obser-var o mundo de um relance, estava apenas a sessenta e cin-co quilmetros do Paraso. Informaram-no, tambm, deque, num dia de sol, era possvel escutar a queda da cascata

    de um rio fluindo do den. Ele, tal como John de Hesse,que afirmava que o purgatrio ficava em algum lugar dasAntpodas, queria localizar certos lugares que se presu-miam existir para alm do mundo conhecido.

    Esses homens eram observadores perspicazes do mun-do imaginrio. Como um cartgrafo ligado Ordem dosCamldulos, em San Michele di Murano, aqui em Veneza,tambm havia decidido escolher como tarefa da minha vidamapear as viagens desses homens que vagavam pelos cami-nhos desconhecidos da Terra. Nenhuma histria de mari-nheiros trivial demais para nossos ouvidos, nenhum di-rio de viajante banal demais para ser lido. Abandonei aMatemtica e a Fsica para estudar o mundo que eles tinhamencontrado.

    At onde consigo lembrar, sempre quis viajar. Meunome Fra Mauro. Sou monge, um homem maduro e bas-tante corpulento. Para algumas pessoas pareo ser - bem,vou admiti-Ia - um pouco preguioso. Meu problema quesempre tive medo de fazer viagens, provavelmente porquemeus ossos me denunciariam como um impostor! comose o horizonte que observo no mar ao largo do Lido e deSottomarina, sempre que fao excurses a esses lugares,fosse uma parede intransponvel, uma barreira. s vezes,sinto forte desejo de transpor esse limite, mas tenho receiodo que existe alm dele. Por causa disso, permito que osoutros vivam por mim, descobrindo novos povos e reinoscom os quais devo me contentar em sonhar.

    A cartografia, entretanto, no apenas ldico passa-tempo. Ao longo do tempo tenho aprendido a reconhecer abeleza das linhas de rota e da rosa-das-ventos. Elas fazem

    ~c.-;:::)~c.-;:::)

    Terra. Strabo acreditava que os qua-tro pontos da bssola haviam sidosituados de alguma forma diferenteda que usamos, pois: "Se a extensodo Oceano Atlntico no fosse umobstculo, ns passaramos, facil-mente, da Ibria para as ndias, aindano mesmo paralelo." Colombo ten-tou seguir o paralelo mencionadopor Srrabo. Se tivesse tido sucesso naempreitada, teria chegado a NovaYork, em vez do Caribe. Alm domais, presumindo, como ele, que ocontinente americano no existia,ento ele teria avistado terra ao nortedo Japo, um pouco ao norte dandia de Strabo. Reforando a opi-nio de que Colombo parecia estarprocurando o Paraso, temos umacarta para Ferdinando Manins,cnego em Lisboa, escrita por umcerro Paulo, o mdico em Latim,

    despachada de Florena, datada de25 de junho de 1474. A cana foi,depois, traduz ida pelo filho deColornbo, Fernando, quando narroua vida de seu pai. Na carta, queFernando encontrou entre os papisde seu pai, o autor fala de uma cidadeconhecida como Quinsay. "A cir-cunferncia dessa cidade de 160quilmetros. Tem dez pontes e seunome significa A Cidade dos Cus. Acidade fica na provncia de Mango,perto de Catai. No ser necessrio,entretanto, atravessar uma grandeextenso de mar por rota desconhe-cida." provvel que Colombotenha acreditado piamente e seguidoesse conselho decidindo fazer dadescoberta da cidade de Quinsay,seu objetivo secreto.* O nome medieval do Ceilo, atual-mente Sri Lanka.

    III

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    26 / O Sonho do Cart6grafo .9IsMeitaes de '.fra :Mauro / 27

    as delcias dos navegadores, pois so as linhas que todomarinheiro percorre em busca dos vrios pontos da bsso-la. O lugar onde essas linhas se encontram torna-se o pontode referncia. Funcionam como guias. Um marinheiro nun-ca ultrapassa esse ponto, de onde no poderia voltar. Aslinhas de rota so o elo mais seguro que ele tem com seupassado e sua identidade. Elas o mantm em contato com oque ele conhece, com o mundo que lhe familiar.

    Ptolorneu" sempre foi meu heri. Desde que li, duran-te o meu noviciado, os oito volumes de sua maciaGeographia, fiquei encantado. Ele nos forneceu as coorde-nadas da latitude e da longitude, o prprio princpio daordem na superfcie da Terra. Quantas vezes queimei lam-parinas, noite adentro, estudando minuciosamente seusmapas, embrenhando-me na frica e pelas montanhas doParmir at alcanar a ndia. Ptolorneu fez descortinar, antemeus olhos, um mundo misterioso, um mundo suspensopor seguras mos de sbios, enquanto se esfriava na respira-o de ventos com cara de querubim.

    Tantos nomes nos mapas invocam um senso de mistrio- lndias Orientalis, Maris Pacifici, Totius Africa, ParsOrbis, Americae - tantos lugares! Todos os nomes trazem

    mente orientais de turbante, sereias e homens com cascosde cavalo. Tenho observado figuras de muitos braos emulheres com o corpo cabeludo, gravadas na margem des-ses mapas e tenho me perguntado porque o mundo como. At agora, no cheguei a concluso alguma. O mundopermanece to enigmtico como era no primeiro dia daminha primeira tentativa em fazer minha a sua diversidade.

    claro que o ascetisrno tem sido, h muito, reforadopor tais consideraes. Mas, tambm, estou consciente deque certas linhas de investigao podem ser perigosas. Oque est alm dos limites do mundo s vezes nos atrai comoum canto de sereia. Ouvimos o canto, ficamos fascinados e,finalmente, somos seduzidos. Os limites fortemente deli-neados dos mapas que tenho observado, ao longo dos anos,so indicadores dessa atitude por parte dos navegadores.Eles so completamente seduzidos pela perspectiva de con-tinuar em determinada direo at alcanar O ponto maisdistante. Querem descobrir se esse ltimo objetivo corres-ponde s suas idias de como o mundo realmente .

    Alm disso, h pouca diferena entre rezar o tero nacapela pela manh ou desenhar a rosa-dos-ventos nummapa. Um homem vivencia a Via Sacra cada vez que se pro-pe a criar algo belo. Muitas vezes, tenho pensado que aIlor-de-lis da rosa-dos-ventos pode ser to difcil de ser fei-ta com convico quanto a Orao do Senhor. Sua exatidoe determinao obriga a um determinado tipo de empenho.So coisas passveis de verificao, mas que eu no consigoapreender com segurana.

    No creio, de maneira alguma, que a minha obsessopor mapas e histrias de viajantes entre em conflito com os

    "Ptolomeu foi um famoso gegrafo eastrlogo no reinado de Adriano eAntonius, Nascido em Alexandria,ele recebeu, entre os gregos, os epte-tos de "mais sbio" e "mais divino".Em seu famoso sistema do mundo,colocou a Terra no centro do Uni-verso. Explicou o movimento doscorpos celestes atravs de uma apli-

    cao de ciclos e epiciclos quase inin-religvel, uma doutrina universal-mente aceita como verdadeira e ado-tada pelos estudiosos at o sculoXVI, quando foi contestada porCoprnico. Num de seus livros, fazuma valiosa avaliao das estrelasfixas e d a latitude e longitude de1.022 delas.

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    28 / O Sonho o Cart6grafo .9!s Meditaes de 'Fra 'Mauro / 29

    meus preceitos espirituais. Meu papel como cartgrafo equivalente ao descobrimento do mundo. Embora, svezes, desprezado por meus companheiros frades comoobra do demnio, no considero esse mundo, de maneiraalguma, diferente daquele esposado por nosso Salvador. apenas outra forma de manifestao de Seu reino sagrado,disfarado sob uma aparncia mltipla e mutvel. Paramim, o que brota dos lbios de viajantes pode ser to aro-mtico quanto o incenso que emana dos ossos dos santosem dias de festa.

    Cada lugar que gravo em minha mente me conduz auma terra imaginria. Estou a procura de novas idias evises. No quero afirmar o que j sei. Cada mapa quedesenho feito tanto com as informaes que recebi de visi-tantes minha cela, quanto com as minhas prprias idias,inspiradas por seus conhecimentos e, freqentemente, porseus comentrios preciosos e fantsticos. De maneira estra-nha, entretanto, me encontro vivendo na presena do quepara eles j passado. Conversando comigo, eles podemrelembrar tudo que tinham pensado estar completamenteperdido. .

    um acontecimento salutar para ns dois; duas pessoastrocando idias sobre observaes que elevam um homemacima de seus contemporneos. Ele o senhor, eu sou oescravo. Sentamos num banco em lados opostos da mesa, abrisa do Adritico refresca nossos rostos nos dias quentesde vero. Estudamos os mapas que nossos olhos gravaramno corao de cada um. Juntos, cartgrafo e aventureirodiscutem sobre distncias e rotas sabendo, silenciosamente,que nada mais so do que diverso, pois o que estamos ten-

    tando dar um sentido a conhecimentos disparatados.Somos iguais ao remo e cavilha, tentando determinar amedida do poder de cada um, mesmo que saibamos queestam os viajando em direo ao mesmo destino.

  • CAPITAL DO MUNDO! O umbigo do mundo,Jerusalm. O bom Dante achava que era orefgio de todos os homens, logo a seguir suaamada Florena. Nosso Senhor entregou sua

    condio humana ali dentro de suas muralhas turbulentas.No meu pensamento, tenho, muitas vezes, caminhadopelos seus becos, sofrendo com Ele enquanto Ele se esforapara absolver-me de meus pecados. Nulidade de frade!Nunca na minha vida sou be o que sentir a dor plena desaber a verdade.

    o meu 'dilema. s vezes penso que cada porto dessacidade est impedido por pesados blocos de pedra. Parte demim anseia por prostrar-se nos lugares sagrados e beijar asrelquias, enquanto que a outra parte anseia por subir aosmais altos e livres cumes da Terra. Sou atrado para a ao,

    .9IsMeitaes de Fta MauTO I 31

    mas, igualmente, repelido por ela. Numa poca em que osvalores importantes so o dinheiro, o comrcio e a coloni-zao de lugares desconhecidos, sinto-me incapaz de darqualquer contribuio. Afasto-me e observo os esforos demeus compatriotas, sem compartilhar de seus triunfos.

    Quem sabe? Uma peregrinao Terra Santa podesinalizar o incio de minha participao na vida. Pela Portado Califa Abd al Malik!' Atravs dela, talvez, eu entre numlugar onde meu apetite ser, afinal, estimulado. Sou eu queme afasto da vida ou a vida que se afasta de mim? O sim-ples fato de que penso em mim e na vida separadamentesugere um rompimento no fio que nos une. Sou como olagarto que abandona a cauda para sobreviver. A cauda dacriatura e a minha vida foram deixadas a se contorcer nocaminho.

    Os guias de peregrinao a Jerusalm, que tive a felici-dade de ler, em vrias ocasies, encheram-me de real excita-o. Eles sugerem uma viagem a um estado alterado, comose a longa estrada de Jafa, sob as vistas dos saqueadores sar-racenos, fosse um preldio para uma nova vida. Um dessesguias, escrito pelo digno Saewul,'] falava de cadveres cris-

    '.. :"

    "A PortadeAbdaIMalik,conhecidacomo a Porta Linda, era uma dasnumerosas entradasdo zimbriodaRocha, em Jerusalm. Dizem queSoPedro e SoPaulo curaramumaleijadopertodo recinto.Mais tardeconhecida como a Porta Douradapelosgregos,foi associada entradatriunfalde Cristo emJerusalm,nodomingo de Ramos. Esta histria

    podeter sido inventadaparaexplicarporque a Porta foi bloqueadapeloCalifaAbd aIMalik, durante o seureinado,no perodoUmayyad.t Saewulf,provavelmentebritnico,fez uma viagem Terra Santa em1101-2. Ummanuscrito,detalhandosua viagem,foi achadonaBibliotecade Mathew Par ker, Arcebispo deCanterbury,duranteo sculo XVI.

  • 32 / OSonho do Cart6grafo

    tos que jaziam meio comidos, ao lado, na estrada, certa-mente um sinal de que esse castigo o indicado para fazervaler antigos preconceitos tais como o "significado da vida"ou o "nobre ideal cristo". Os sarracenos, ao que tudo indi-ca, tm outras maneiras de definir tais coisas.

    A pessoa precisa aceitar sua concepo de vu se quiserentender a antipatia que sentem por ns. Chamar-nos deinfiis , tambm, um velho truque sarraceno. Mentiras queso verdades com o valor de algo por detrs de lacres decera num edito, todas contendo o selo da autoridade.Quebrar um lacre apenas inspira a necessidade de se que-brar outro. A cada significado que se esfacela sob a pressodo conhecimento, o significado essencial ainda espera arevelao.

    Esse o princpio do vu to bem conhecido dos sarra-cenos." Aqueles cristos desgraados, que encontraram amorte na estrada para Jerusalm, poderiam ser perdoados sereconhecessem que, em primeiro lugar, abandonar o lar foium erro. Infelizmente, eles, como aqueles lacres de cera,

    " Provavelmente Mauro est aludin-do explicao alcoranista dos Se-tenta Mil Vus, que diz: "Al temSetenta Mil Vus de Luz e Escuri-do: se ele abrisse as cortinas, o es-plendor de seu aspecto, certamente,consumiria todos que o idolatram."De acordo com al-Ghazali, umfamoso filsofo rabe, h trs cate-gorias de vus: escurido pura, escu-rido mesclada e a luz pura. As pes-soas so envoltas por cada um dessesvus de acordo com seu tempera-

    mento espiritual. Elas so, assim,dominadas em vrios graus pelos (a)sentidos, (b) imaginao e intelign-cia discursiva ou pela (c) luz pura.Para aqueles que atingem o "vu daluz", a epifania de Deus vem comoum raio, assim tudo entendido luzdos sentidos ou por um claro dainteligncia, e "o esplendor de sua fi-sionomia , completamente, absorvi-do". AI-Ghazali ligou esse desvelarprogressivo (esclarecimento) s "Es-taes do Caminho da Luz".

    5ls Meditaes de :FraMauro / 33

    foram quebrados e descartados antes que pudessem experi-mentar a viso que eles buscavam to desesperadamente.

    Jerusalm encarna sua prpria ambivalncia peculiar.Toda a minha experincia como frade tem me levado a acre-ditar que essa , realmente, a capital do mundo. Aqui ocor-reu um milagre. Aqui, um homem morreu como Deus.Entretanto, na realidade, a cidade, desde ento, tem pesadonos ombros dos cristos. Embora Sua morte acontecessepara livrar-nos do pecado de Ado, parece que estamos,mais do que nunca, enredados nele.

    Eu especulo. Os criadores de mapas tm de especular,pois sabem que no esto de posse de todos os dados.Estamos sempre lidando com narrativas em segunda mo,resumo de impresses. No trabalhamos com uma cinciaexata. O que fazemos imaginar contornos litorneos,penhascos e esturios para compensar aquilo que noconhecemos. Quantas vezes desenhamos um cabo ou umabaa sem saber em qual continente podem estar localizados?No sabemos essas coisas porque estamos lidando, cons-tantemente, com as observaes de outros homens, poucomais do que uma olhadela, em direo costa, do convs deum navio que passa.

    De vez em quando, tento me colocar no lugar deoutros. Olhar a distncia provoca um encantamento parali-sante, como se o espao fosse, realmente, ilimitado. Quemsou eu para estar to convencido que todo esse vazio no a manifestao de alguma substncia invisvel? At mesmoo vo preguioso do albatroz no pode diminuir a difanapresena do que l no est. Algumas vezes me pergunto semeus olhos no esto me pregando uma pea. Mas, no -

  • 34 / O Sonho do Cartgrafo

    uma linha de horizonte ininterrupta sinal de que o meudesejo de ver algo especial alm dela permanece sem apazi-guamento. Como Jerusalm, tenho de conviver com essaidia como o mais prximo de uma imagem celestial a quejamais chegarei. O ar, tambm. Devo aprender a aceitar ainvisvel substncia que lhe intrnseca.

    Tais meditaes me levam a concluir algo: minha predi-leo por horizontes desconhecidos habitados por selva-gens me faz lembrar como estou afastado dos contornos daminha prpria cidade. Veneza! Esta laguna de canais lama-centos, pipi de gato e pompas. Quem poderia imaginar queestas ilhas poderiam suscitar em seu povo uma bem planta-da mentalidade mercantil? Entretanto, aqui est o armazmdo Levante,':' o principado de comerciantes espera da che-gada da prxima frota de Constantinopla ou Chipre. nossa revelia aprendemos a ter lucro com o comrcio e nocom nossas idias ou a defesa de certos conceitos.

    No nos faz mal exercermos uma certa autocrtica. Seh uma coisa que ns venezianos entendemos plenamenteso nossas limitaes. Viemos nos refugiar nessas ilhas paraescapar dos brbaros do norte. Ser que no tnhamos cons-cincia de que queramos reservar algo para ns, de suaconquista do imprio? At a, nenhum crime. Ao ficarmosisolados em nossos pntanos, tornamo-nos fortes, objeti-vos, oportunistas, timos marinheiros, com um desejo pro-fundo de provar nosso estofo. Tudo que fizemos ou pensa-

    " Levante, um termo que designatodos os pases da parte oriental doMediterrneo. A palavra derivada

    da palavra francesa leuer, que signi-fica "levantar", como faz o sol noleste.

    5t5 :Meitaes de '.fra 'Mauro / 35

    mos tornou-se a viva expresso de ns mesmos. No havialugar para a contemplao e ns as deixamos para os povosdo Leste, que pareciam to adeptos de observao do pr-prio umbigo." Digo essas coisas porque sinto que devo sersincero. Como monge dediquei-me a Deus. Mas comohomem, sempre me senti atrado pela viso de uma cordaenrolada no convs, caravelas recentemente cal afetadas eancoradas. Estou dividido entre os dois - o primeiro, umpresente divino, o outro, a fascinao pelo que ainda no foidescoberto. Toda vez que uma galera se prepara para partirdo rio Galeazzo em direo a algum porto estrangeiro, levacom ela minhas oraes por sua segurana. Rezo por ela,porque no fundo do meu corao desejo que retome comnotcias de outro mundo, onde homens no so exiladospor cometerem algum crime contra si mesmos, mas vivem

    " Observar o prprio umbigo umaantiga prtica crist adotada pelosmonges hesychast da Igreja Orto-doxa Grega. De acordo com SoJoo Clmaco, um hesychast aqueleque se esfora para manter aquiloque incorpreo (isto , a mente)dentro do corpo. Numa tcnica derezar integrada respirao, os mon-ges costumavam abaixar a cabeapara meditar, ganhando com isso oridculo epteto de omplalopsychoiou "observadores do umbigo" por-que era acreditado por alguns que aalma do homem estava situada noseu umbigo. Rezando sem cessar aOrao de Jesus e controlando a res-pirao, um monge pode alcanarum estado de xtase religioso. SantoGregrio Palamas, famoso telogo

    ortodoxo, descreveu a tcnica assim:" necessrio, principalmente nocaso dos iniciantes, ensin-Ios aolhar para dentro de si mesmos edirigir sua mente para o seu interioratravs da respirao ... at que, coma ajuda de Deus, avanando parauma maior perfeio (eles), tornam amente impermevel e impenetrvel atudo que os rodeia. Ficaro numaposio como se fossem um perga-minho bem enrolado dentro de umcilindro." Ele acrescenta depois quehesychia (quieto) "a parada abso-luta da mente e do mundo, o esque-cimento do que est abaixo, a inicia-o em conhecimentos secretosdo que est acima, o desapegodos pensamentos em troca do que melhor. "

  • I,

    36 / O Sonfw do Cart6grafo

    em ilhas por sua prpria vontade, moldando sua viso ni-ca do que certo ou errado.

    Tudo isso verdade, entretanto: vejo o mundo comouma srie de pistas que, de alguma forma, explicam o Uni-verso. Paquidermes e narvais, palmeiras asiticas e plantascomedoras de insetos, pssaros que no voam e grandes ser-pentes no-venenosas que matam animais e pessoas enro-lando-se a elas e apertando-as - todos fazem parte de algu-ma mensagem secreta que precisa ser decifrada se quiser-mos entender a totalidade.

    No somos as nicas fontes de saber. Nossa percepopode ser posta prova quando apreciamos um boto brin-cando para merecer nossos aplausos, uma vez que seudesempenho que determina o nvel de alegria que podemossentir. Quando ouvimos o som dos sinos de So Marcosrepicando na gua ao anoitecer, no apenas o som dobadalo no bronze o que ouvimos; o eco de um convite,extensivo a todos ns, para participarmos de alguma coisamais profunda do que imaginamos.

    ~_Si ODO O DESEJO QUE EU possa ter de desistirdesse. mundo originou-se na morte de um ps-saro ferido por uma flecha que atirei quandojovem, um dia, na floresta. A lembrana de seu

    peito sangrando deixou suas marcas em mim. At hojevejo-me como aquele pssaro, capaz de voar livre e solto, esubitamente jazendo por terra. s vezes, comparo a feridaque infligi que o soldado infligiu a Nosso Senhor noCalvrio. De qualquer maneira, tenho ligado a vtima cadaa uma nsia profana de torturar-me. Parece que o pssaroque h em mim encontrou a mortalidade nesse ato to desu-mano, tal como aconteceu a Nosso Senhor quando a lanaatravessou o Seu peito.

    Meus demnios esto ativos esta manh! Na minha celade pedra cinzenta, com cheiro de cera de vela, acho difcil

  • ,II

    111,

    II

    38 / O Sonho do Cartgrafo

    no dar importncia a pequenos remorsos. A morte de umpssaro um acontecimento insignificante, realmente,quando comparado perturbao do meu corao. Meuesprito est inquieto porque estou sempre procurando poralguma coisa que desafia a lgica. Nem a minha f parecesuficiente para abarcar a arena de meus prprios anseios.

    Essa palavra outra vez: abarcar! O que mais, alm deum barco ou o m de uma bssola, pode nos encaminharem direo luz boreal, que dizem existir no rtico? Ho-mens viajaram por l, dizem, em trens puxados por renas.Viajaram por terras polares desertas em busca de um siln-cio invisvel. At hoje nenhum viajante me explicou de quematria feita esse silncio. Eles falaram sobre isso, claro,contornaram seus limites por meio de entoaes ou gestos.Ajudaram-me a sentir a sua realidade, seu vazio, sua essn-cia peculiar. Mas at agora nenhum foi capaz de me dizer oque ; tudo o que conseguem expressar sua surpresa.

    Quando esses viajantes deixam a minha cela, depois denossos encontros, sinto que alguma coisa deixou de ser dita.O ar est carregado com o eco de palavras cuja articulaosignificaria sua profanao. Ns nos despedimos sabendoque o que talvez desejssemos dizer no deveria ser revela-do. Por qu? Tudo o que sei que esses homens acumula-ram, nas terras geladas do norte, impresses que preservamo contorno desse silncio. Rodeados pela amena presenadas renas, eles percorreram uma brancura que em si osilncio, que nada mais , por sua vez, seno a sua maneiraparticular de meditar.

    Um acordo tcito, todavia, se estabelece entre ns, qua-se uma intimidade. O silncio que experimentam, mas no

    YIs Meitaes de 'Fra Mauro / 39

    podem explicar, o silncio que conheo sempre que meajoelho para rezar. Meus olhos absorvem a Cruz, conscien-tes de que, atravs dos tempos, temos tentado expressar oque est alm do alcance de nossos coraes e mentes.Somos iludidos pelo que mais buscamos. Procuramos, ataos confins da Terra, por algo que, acabamos descobrindo,morreu, um ms, um dia, at mesmo um minuto antes.Temos que lidar com o sentimento de que, se tivssemosdecidido agir mais cedo, talvez tivssemos descoberto o queprocurvamos.

    Consideremos um viajante intrpido com quem meencontrei, recentemente. Ele veio a mim, recm-chegado deuma longa viagem martima, ansioso em compartilhar seusconhecimentos. O sal ainda estava em sua barba. O homemmostrava sinais de estar dominado pelas lembranas de umevento que mudara sua vida. Contou-me sobre a sua via-gem ndia e como havia chegado plancie atravs dosdesfiladeiros de Pamir e Kush. Era um mercador e tinha idol procura de especiarias e pedras raras, mas se depararacom algo completamente diferente.

    - Cheguei, por acaso, ao tmulo do Imperador Niza-muddin, em Delhi - ele me contou, certa manh, quandoestvamos sentados no jardim. A primavera florescia, esti-mulando nossos sentidos. - Era construdo com pedras ver-melhas, rodeado de gramados literalmente cobertos de flo-res rasteiras. As mulheres, agachadas na grama, cortavam asfolhas com o cuidado com que cortavam seus prprioscabelos. Sob o zimbrio, o carro fnebre do Imperadorjazia como um pequeno barco ancorado. Pombos flanavamno espao acima de ns. Depois de ter prestado meus res-

  • I

    I

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    40 / O Sonho do Cartgrafo

    peitos memria do Imperador, atravessei a arcada princi-pal e olhei para cima. Vi, ento, um bando de papagaios ver-des sorvendo vorazmente o mel que estava na lpide.Imagine, papagaios se alimentando com toda a doura quevinha do tmulo de um Imperador!

    "Somente quando comecei a atravessar o gramado,entendi o significado completo do que havia observado. Fuiabordado pelo zelador do tmulo, que me disse para pres-tar ateno onde eu punha os ps. Estava com medo que eutivesse pisado numa abelha enquanto andava. Parecia ansio-so em preservar a vida das delicadas criaturas, pois assim opoder espiritual do tmulo continuaria inalterado. De umamaneira bastante estranha, os restos mortais de Nizamud-din haviam se tornado o foco de toda essa doura. Tais qua-lidades so consideradas muito importantes para os adora-dores de Brahma."

    Imaginem como me senti quando ouvi o relato de meuvisitante a respeito do encontro com as abelhas de Niza-muddin. Ali estava um homem que havia presenciado o queele acreditava ser um milagre. Sob um dos arcos tinha vistobandos de papagaios de cores brilhantes banqueteando-secom o mel que filtrava da prpria pedra tumular. O zeladordo tmulo tinha reforado sua crena, enfatizando a neces-sidade de se tomar cuidado para no pisar numa abelhaextraviada, receando que as condies ideais que cercavamo tmulo do Imperador fossem alteradas. Era como se otmulo tivesse um qu especial de santidade que o diferen-ciasse dos outros edifcios.

    Percebi, imediatamente, que essa era a forma que o seusilncio tinha tomado, e que ele viera a mim na esperana de

    .9Is Meitaes de ;Fra Mauro / 41

    partilharmos a estranheza de sua experincia. Decep-cionado, descobrira que era impossvel explicar como sesentia. Foi s ento que comecei a entender por que visitan-tes como ele estavam, constantemente, indo de um lugarpara outro, procurando sempre, esperando descobrir o queoutros antes deles no tinham conseguido.

    O mercador tinha me deixado com um relato especialdo que lhe havia acontecido. Os incidentes, presenciadosno tmulo de Nizamuddin, tinham sido trazidos de volta,milagrosamente, pelos desfiladeiros de Pamir e Kush, epelos seus lbios tinham feito sua entrada triunfal na lagunade Veneza. Sua histria era mais real, para mim, do quetodas as especiarias desembarcadas de seus navios.

    Como poderia registrar eu no meu mapa o que ele haviame contado? Seria possvel inserir a brilhante plumagemdaqueles papagaios como se fosse a substncia invisvel darosa-dos-ventos? Ou simplesmente deveria apagar as pala-vras Mares del Sud, nome do oceano no qual eu estava tra-balhando e escrever: Mare d' Eluceo significando "O que serevela?". Sem saber, meu mercador do Oriente tinha merevelado a essncia de seu silncio; pois tinha viajado, pormim, atravs das desertas terras remotas de sua prpriaobsesso pelo inexplicvel.

  • l1S VEZES, QUANDO O VENTO est soprando doLi Adritico, posso ouvir o som da marreta e doserrote, atravs do lago, no estaleiro do, ~" Arsenal. Os rsticos esqueletos das galerasesto repletos de homens ocupados em cobrir os cascoscom tbuas de madeira das florestas da Lombardia. Esta aVeneza que conheo e amo. Campanrios e prticos, est-tuas e arabescos, o cheiro das folhas de loureiro de um jar-dim oculto - essas so as impresses que compem a cida-de. Tornei-me um dos seus gondoleiros, mergulhando osremos nas profundezas de suas guas escuras.

    Embora raramente transponha as muralhas do mostei-ro, o mundo inteiro est nas pontas dos meus dedos. Elechega a mim por meio das impresses dos outros homens. como se eu aguardasse em minha sala do trono a visita de

    .9Is Meditaes de Fra Mauro / 43

    meus compatriotas, suas capas ainda manchadas com apoeira do desapontamento ou do encantamento. Eles vm amim para livrar-se de seus fardos. Vm a mim em busca deconselhos. Mais do que qualquer coisa, querem que eu con-firme a preciso de seus esforos. Para eles sou um farol bri-lhando num promontrio pedregoso.

    Estarei indo alm do que sou capaz? Mas, claro! H mui-to tempo aprendi a no refrear minha tendncia de enfeitar arealidade. Um n cltico seria uma coisa banal no fosse ins-pirado por uma viso que tornada concreta pela pacincia ecuidado de um arteso. Os criadores de mapas enfeitam omundo, e eu no sou exceo. Meus mapas so elaboradospara transmitir uma iluso, disso tenho certeza.

    Cada fato novo que chega a mim como a migalha damesa de um homem rico. Eu o absorvo vorazmente. Afome do meu corao me faz sabore-lo. At mesmo meiludo acreditando ser um convidado mesa do homem rico.Por que no? A fome leva o homem a perder o controle.Transforma-o num faminto insacivel, de modo que elecorre o perigo de tornar-se a migalha.

    Recordo-me de um erudito que me visitou no tempoem que meus olhos eram ainda inocentes quanto s artima-nhas que usamos para escapar morte. Falou-me sobre umammia egpcia que havia visto na biblioteca de um amigo.Descreveu a mmia em tais detalhes que ainda posso v-Iacomo se estivesse em minha cela.

    Era uma mulher, filha de um sacerdote. Sua pele eranegra, e possua todos os dentes. A cavidade dos olhos esta-vam estofadas com grande quantidade de pequeninos teci-dos podres e o nariz estava, parcialmente, arruinado. Muito

  • 44 I O Son/w do Cart6grafo

    pequena, essa jovem sacerdotisa virgem jazia em seu caixo,a cabea pousada num travesseiro de veludo desbotado. Osbraos esguios e as mos revelavam delicadeza, uma quaseefmera leveza de ser, como se, de alguma forma, tivesseconseguido escapar das conseqncias de sua prpria mor-talidade. Segundo o erudito, a presena dessa mulher insi-nuava uma paz de esprito que ele jamais havia sentido.

    - Na morte dela encontrei alguma coisa bastante estra-nha. - O erudito admitiu para mim, virando as pginas doseu caderno, pensativamente, enquanto falava. - Era comose a vida tivesse se soltado do seu corpo numa revoada deasas, deixando-a surpresa com a sua sada precipitada. Sim,surpresa, isso descrevia bem sua expresso gelada. Deu-mea impresso de que at mesmo na morte a vida lhe dera umtranco. Est claro para mim agora que no nos engajamos vida to facilmente. No algo que se ganhe naturalmente,como se fosse nosso por direito. Num certo sentido, preci-samos ser sacudidos para dentro dela, no ~

    O erudito continuou a descrever os seus sentimentosdepois de observar a mmia na biblioteca. Embora a simplesidia de qualquer transmigrao da alma fosse abominvelpara ele, sentia uma estranha sensao como se a alma damulher tivesse entrado em seu prprio corpo, ou que ela esti-vera esperando no caixo at ele aparecer, como um pequeni-no pssaro preto. Suas feies impassveis eram uma mscaraencobrindo tudo que ele havia pensado ou imaginado. Deque maneira ela conseguira tornar-se parte dele, estava almda sua compreenso. O pssaro preto do esprito dela tinhaabsorvido o seu. De alguma forma sentiu que a mortalha queenvolvia a mmia o retinha mesmo quando tentou ir embora.

    .91.5 9.ieitaes de Fra 9.iauro I 45

    - possvel - ele perguntou - que sejamos todos vti-mas de uma iluso sobre o que seja a morte? Ser que cadaum de ns seja arrastado, em agonia, em direo a uma vidamais plena em outra pessoa?

    O erudito tinha proposto um enigma que nenhumammia, por mais velha que fosse, poderia resolver. Ospequenos artifcios de horizontes ou cadeias de montanhasque eu pudesse desenhar no meu mapa tampouco seriamsuficientes para descrever este terreno peculiar. A Terra,simplesmente, no era grande o bastante para diferenciar asdeliberaes de um velho erudito sobre a natureza da vidaaps a morte da vagarosa decomposio dos restos mortaisde uma sacerdotisa virgem.

    Quem quer que empreenda a viagem de barco deVeneza at esta ermida dentro de muralhas, na ilha ondevivo, traz consigo todas as suas contradies. Felizmente,na minha cela, h -a possibilidade de uma autntica con-fluncia de idias, uma vez que as minhas prontamente semisturam quelas dos meus convidados. Juntos, entrelaa-mos tudo que podemos concluir do joio e do trigo dasexperincias de um e de outro. Quanto ao erudito, acho quese livrou de um fardo que o estava atormentando. Saiudaqui sabendo que havia contribudo com informaesimportantes para o mapa que eu tinha em mente. O que eleme transmitiu foi o conhecimento de que o encontro dasacerdotisa egpcia com a morte, embora to virginal, tocativante, tinha sido to abrupto quanto o encontro delacom a vida. Senti que isso poderia vir a ser um interessanteterreno para ambos explorarmos em nossa busca pelos res-pectivos parasos.

  • (I] ERTO DIA, um judeu idoso, de Rodes, veio mevisitar. Tinha vivido na ilha at o domniootornano. Depois da derrota dos Cavaleiros da~... ~ ~ Ordem dos Hospitaleiros de So Joo de

    Jerusalm pelas foras do sulto Suleyman, tinha abando-nado a cidade na esperana de encontrar um lugar maisagradvel para viver. Agora, que o Levante tinha sido inva-dido pelos turcos, O xodo de seu povo do Egito tinha setornado, para ele, um exemplo a ser imitado. Almejavaalcanar uma terra onde houvesse abundncia de leite e mel.

    Fiquei surpreso pelo interesse do homem em encon-trar-se comigo. Havia ouvido meu nome ser mencionadopelo capito do navio no caminho de Corfu para Veneza.Fora informado que, em San Michele, encontraria um mon-ge que talvez estivesse preparado para ouvir o que ele tinha

    .9tr '.Meitaes e ;rra '.Mauro / 47

    a dizer, pois o capito lhe assegurou que eu sempre encon-trava tempo para ouvir histrias de homens voluntariamen-te exilados.

    Sentado no banco oposto ao meu, na minha cela, ojudeu regalou-me com fragmentos de informaes quehavia assimilado das zonas porturias de Rodes, Creta eChipre. Ao que tudo indicava, desde o colapso dos reinoslatinos na Palestina, o mundo inteiro havia mergulhadonum estado de insegurana total. O Crescente tinha, final-mente, triunfado sobre a Cruz; e ele, um representante doCandelabro do Templo de Salomo, observara, com o cora-o partido, o declnio da ordem na regio.

    Seus olhos transmitiram todo o sofrimento de seu povono alvorecer dessas transformaes. Quem seria mais apto arelatar a destituio do Reino do que um descendente doresponsvel pela morte de Nosso Senhor? Seu povo, afinal,escolhera rejeitar a Presena Viva quando estava no meiodele, a inimitvel angstia da existncia no ato de sua pr-pria transcendncia. Por esse crime eles tinham sofrido,tendo a plena noo de que o que haviam rejeitado nadamais era do que uma encarnao de seu desejo de superar acondio humana.

    O judeu era um homem culto. Conhecia a Bblia a fun-do, embora, claro, tivesse a perspectiva de que o LivroSagrado representava apenas o princpio, no o fim.Segundo ele, s entendemos o significado do Livro depoisque o perdemos numa catstrofe. Eu no sabia se ele se refe-ria ao xodo do seu povo do Egito ou do seu prprio exlioem Rodes, no comeo da derrocada.

    Como ele mesmo observou:

  • 48 I O Sonho do Cartgrajo

    - Abandonar o lugar que amamos significa ficarmoscondenados a conviver com a nossa perda para sempre.

    Seu discernimento me cativou. Sentia, s vezes, queestava na companhia de algum que recuara do turbilhonormal dos acontecimentos para ter uma viso mais impar-cial de suas implicaes. Olhava para o mundo e para mimcomo se estivesse a uma grande distncia. Separado de suasorigens tanto como homem quanto como judeu, ele desco-brira na sua falta de razes como habitar uma regio criadaem sua prpria mente. Eu tinha encontrado algum queescolhera redirnir-se em vez de deixar que algum o fizessepor ele. Nesse sentido, ele era mais do que um judeu, umavez que a volta do Messias era algo pelo que ele no maisansiava. Ele tinha se tornado seu prprio instrumento derenovao. Sobre os seus ombros pesava o fardo de ter deconviver com a sua alienao aos olhos do mundo. Comojudeu e exilado, esse homem parecia ter dominado essesdois corcis da derrota e transformado-os em incompar-veis cavalos de batalha.

    Ocorreu-me, enquanto estava sentado ouvindo-o, queele havia feito de sua origem judia um emblema que osten-tava com orgulho. Em vez de ficar desesperado com seusofrimento, ele escolhera assumi-lo. provvel que tenhaquerido conversar comigo, tambm, porque sentiu afinida-de com o que entendeu que fosse meu isolamento. Afinal decontas, as muralhas do mosteiro tinham sempre estado alipara isolar, do mundo, os iguais a mim. Associou sua soli-do e a minha ao intricado e solitrio prazer que ambos sen-tamos sempre que nos defrontvamos com uma tarefa cujaconcluso permanecia incerta.

    Jils !Meditaes de 1"ra !Mauro I 49

    _ Bom frade, acontece que o meu mosteiro o mundo_ o idoso judeu anunciou quando eu o acompanhava aoembarcadouro, pois o navio que o levaria de volta a Venezaatracaria a qualquer momento. nossa volta, os estorni-nhos planavam em crculos, como se estivessem procuran-do um caminho para o sul agora que o inverno estava para

    chegar._ Olhe, eles tambm parecem desnorteados quando

    comeam a buscar um clima mais quente - ele acrescentou,olhando para cima, para o bando de pssaros em redemoi-

    nho._ Est em todos ns - continuou - o desejo de experi-

    mentar a ligao que existe entre o nosso ser mais ntimo eavontade que criou essa ligao. Quando tal desejo reali-zado, ficamos preocupados com os estranhos e misteriososaspectos na prpria natureza. Somos quase tentados a con-sider-Ios como nossas prprias vontades, nossas prpriascriaes. Da minha parte, sei que os limites entre mim e anatureza s vezes oscilam e diluem-se, assim no tenho maiscerteza se o que vejo com meus olhos nasce de impressesque vm de fora ou de dentro. Tal experincia uma dasmaneiras corretas de se descobrir o quanto somos criativose o quo profundamente participamos na perptua criaodo mundo. A mesma divindade invisvel est trabalhandoem ns e na natureza. Se o mundo estivesse em vias de pere-cer (como aconteceu comigo em Rodes), sei que qualquerum de ns seria capaz de reconstru-Io. Digo essas coisasporque acredito que a montanha e o rio, a folha e a rvore,a raiz e a flor, tudo que j foi formado na natureza jaz pr-formado dentro de ns e nasce da alma, cuja essncia a

  • :llill

    50 I O Sonho ia Cart6grafo

    eternidade. Naturalmente essa essncia est alm de todo onosso concebvel conhecimento, mas, apesar de tudo, pode-mos senti-Ia.

    Por que o judeu de Rodes sentiu necessidade de dizeressas coisas? Talvez porque tenha detectado uma seculari-dade em mim que nem eu mesmo percebera. O Evangelhonos separou, disso ns ambos sabamos, entretanto nossahumanidade tinha conseguido superar o constrangimento.

    Como os estorninhos acima, parecamos estar planan-do livremente no ar, enquanto reunamos as nossas maisntimas deliberaes para podermos fazer aquela longa via-gem para o sul. Quando nos abraamos no embarcadouro,ocorreu-me que esse cavalheiro idoso, cujo destino defini-tivo nem mesmo uma viagem atravs dos mares poderiadeterminar (condenado como estava a uma vida errante),era, realmente, da mais translcida plumagem. ECEBI UMA CARTA, certo dia, de um velho ami-

    go qU,eestava procura de uma imagem quetinha sido vista pela ltima vez numa capela

    ..-3~;Jem Chipre. Desde a derrota dos Cavaleiros daOrdem dos Hospitaleiros de So Joo de Jerusalm, emRodes, Nossa Senhora de Damasco achou-se vagando noLevante nas pegadas do gro-mestre e sua comitiva. Porcerto tempo a Ordem viveu perto de Roma, sobrevivendograas boa vontade dos outros. Quando o ImperadorCharles ofereceu Ordem um abrigo em Malta, tudo indi-cava que Nossa Senhora tambm achara um novo e compa-tvellar nessa pedregosa fortaleza. Felizmente para o meuamigo, ele afinal descobriu a imagem numa pequenina igre-ja por ali - construda, parece, para proclamar o supremodom aos habitantes locais.