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Jânio Quadros Para o nosso número de aniversário, já tínhamos tudo arrumado: logotipo com generoso pavio aceso, número de páginas, esses trecos. Faltava o principal; e a entrevista? AQUELA entrevista Tinha que ser uma entrevista muito especial para o oitão. JÂNIO QUADROS! disse alguém e todo mundo jurou que estava pensando justamente no nome dele. Ligamos para o presidente, ele marcou a hora e fomos comemorar a façanha, eufóricos. Logo surgiu a dúvida: era dia 25, às 11 da manhã, ou dia 11, às 5 da tarde que ele tinha marcado? Nova pasquinada, novo telefonema, Jânio confirma: dia 25, 11 da manhã. Quinze minutos depois, novo telefonema. De Jânio, meio desconfiado, pra confirmar que a entrevista seria mesmo dia 25,11 da manhã, é o tal negócio de escrever direito por linhas tortas: às 11 da manhã lá estávamos, Ziraldo, Iza, Ricky e eu, às 11 da manhã, na porta de sua casa (com gramado, piscina e tudo) em pleno urbe paulista. Uma verdadeira casa de campo dentro daquela cidade de dez milhões de habitantes. Como entrevista foi — como vocês verão — muito interessante e como papo - garantimos - um dos melhores que já tivemos. (Jaguar) NO ESCRITÓRIO A casa num bairro chic de S. Paulo é imensa - quatro salas, varanda, jardim, piscina e sabe-se lá quantos quartos - mas Jânio parece ter escolhido o menor dos cómodos para seu escritório. Percebe-se que, ali, só ele mexe nas coisas: os livros estão amontoados, com alguma poeira. Mas, diz ele, ali bate sol pela manhã e não faz muito frio no inverno paulista. Muitas fotografias, soltas, sem molduras, pela estante, recostadas ou presas nos livros. Algumas mais em destaque: a de Juscelino ("quando morreu era meu amigo"), a de Fidel Castro, Sukarno, Afon- so Arinos de Melo Franco, todas autografadas, Abrão Lincoln (seu guru, lembram-se?), foto da sua posse ao lado de Jango. Bem de frente para quem entra, a mais "quente": Jânio condecorando Guevara. Uma estátua da Justiça e sua balança (que Ziraldo, sem o mínimo respeito, pôs no chão para não atrapalhar a fotografia) enfeita a mesa. De suéter, paletó xadrez, cabelos bem penteados, um pouco corado pelo frio, Jânio, como notou Jaguar, está cada vez mais parecido com um inglês.) Ziraldo - Na entrevista que deu ao PASQUIM Orlando Villas Boas conta que lhe conheceu com 13 anos. O Senhor era um menino magrinho que foi na fazenda deles com seu pai, que era médico. JÂNIO QUADROS - É provável. Minha infância está tão distante que não me recordo nem quero recordar. Vivemos neste mundo acostumando-nos às suas amarguras, e minha infância me parece tão irreal que às vezes me pergunto se não foi de outro. Ziraldo - O senhor é de Mato Grosso? . JÂNIO - Nasci em Campo Grande. 1

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Jânio Quadros

Para o nosso número de aniversário, já tínhamos tudo arrumado: logotipo com generoso pavio aceso, número de páginas, esses trecos. Faltava o principal; e a entrevista? AQUELA entrevista Tinha que ser uma entrevista muito especial para o oitão. JÂNIO QUADROS! disse alguém e todo mundo jurou que estava pensando justamente no nome dele. Ligamos para o presidente, ele marcou a hora e fomos comemorar a façanha, eufóricos. Logo surgiu a dúvida: era dia 25, às 11 da manhã, ou dia 11, às 5 da tarde que ele tinha marcado? Nova pasquinada, novo telefonema, Jânio confirma: dia 25, 11 da manhã. Quinze minutos depois, novo telefonema. De Jânio, meio desconfiado, pra confirmar que a entrevista seria mesmo dia 25,11 da manhã, é o tal negócio de escrever direito por linhas tortas: às 11 da manhã lá estávamos, Ziraldo, Iza, Ricky e eu, às 11 da manhã, na porta de sua casa (com gramado, piscina e tudo) em pleno urbe paulista. Uma verdadeira casa de campo dentro daquela cidade de dez milhões de habitantes. Como entrevista foi — como vocês verão — muito interessante e como papo - garantimos - um dos melhores que já tivemos. (Jaguar)

NO ESCRITÓRIOA casa num bairro chic de S. Paulo é imensa - quatro salas, varanda, jardim, piscina e sabe-se lá quantos quartos - mas Jânio parece ter escolhido o menor dos cómodos para seu escritório. Percebe-se que, ali, só ele mexe nas coisas: os livros estão amontoados, com alguma poeira. Mas, diz ele, ali bate sol pela manhã e não faz muito frio no inverno paulista. Muitas fotografias, soltas, sem molduras, pela estante, recostadas ou presas nos livros. Algumas mais em destaque: a de Juscelino ("quando morreu era meu amigo"), a de Fidel Castro, Sukarno, Afon-so Arinos de Melo Franco, todas autografadas, Abrão Lincoln (seu guru, lembram-se?), foto da sua posse ao lado de Jango. Bem de frente para quem entra, a mais "quente": Jânio condecorando Guevara. Uma estátua da Justiça e sua balança (que Ziraldo, sem o mínimo respeito, pôs no chão para não atrapalhar a fotografia) enfeita a mesa. De suéter, paletó xadrez, cabelos bem penteados, um pouco corado pelo frio, Jânio, como notou Jaguar, está cada vez mais parecido com um inglês.)

Ziraldo - Na entrevista que deu ao PASQUIM Orlando Villas Boas conta que lhe conheceu com 13 anos. O Senhor era um menino magrinho que foi na fazenda deles com seu pai, que era médico.

JÂNIO QUADROS - É provável. Minha infância está tão distante que não me recordo nem quero recordar. Vivemos neste mundo acostumando-nos às suas amarguras, e minha infância me parece tão irreal que às vezes me pergunto se não foi de outro.

Ziraldo - O senhor é de Mato Grosso? .JÂNIO - Nasci em Campo Grande.

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Iza Freaza - Criado em fazenda?

JÂNIO - Nada, nasci na rua principal de Campo Grande. É verdade que quando nasci só havia essa rua lá, mas já era a mais importante.

Ziraldo - Quer dizer que o senhor é do novo estado de Campo Grande?

Jaguar - Tiraram-lhe até o estado.

JÂNIO - Não, deram-me um estado, e Campo Grande vai virar até capital.

Ziraldo - O nome natural desse estado não seria Mato Grosso do Sul?

JÂNIO - Fico com a impressão de que é esse o pensamento de todo mato-grossense do sul. Teria sido melhor até para efeitos históricos. Acredito que se repare esse equívoco porque o nome de "Campo Grande" não agradou a ninguém.

Iza - O senhor é filho único?

JÂNIO - Tive uma irmã que faleceu de uma moléstia rapidíssima e irreparável na época. Eu era estudante de Direito em São Paulo quando ela morreu.)

Iza - Que tipo de educação vocês tiveram?

JÂNIO - Logo depois que nasci meus pais seguiram para Curitiba. Meu pai era um pouco de tudo: farmacêutico diplomado, engenheiro agrónomo diplomado, médico diplomado e estava estudando Direito.

Jaguar - Era antes de tudo um estudante.

JÂNIO - Colecionava diplomas mas não colecionava fortunas, de maneira que vivia errante do Paraná para o Mato Grosso e de volta para o Paraná. Ele era muito vinculado ao velho PRP. Aliás, a ambos os PRD: Partido Republicano Paulista e Partido Republicano Paranaense. Quando estourou a Revolução de 30 decidiu exilar-se em São Paulo, onde fiz os Últimos anos do ginásio.

Ziraldo - Como era o nome dele?

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JÂNIO - Gabriel Quadros, um homem excepcional e extraordinário. É quase forçoso um filho prestar esse depoimento do pai, mas não estou fazendo uma homenagem pois ele tinha qualidades raras. Era um lutador. Nunca desistiu ou desanimou, sem embargo das tempestades todas. Sempre lhe faltou a sorte. Costumava brincar dizendo que no dia em que fizesse uma fábrica de chapéus todo mundo começaria a nascer sem cabeça.

Ziraldo - Em que ano o senhor nasceu?

JÂNIO - (ri) Essa é uma pergunta que você só faz porque sou homem. Nasci em 1917 e já completei 60. A Eloá diz que cheguei àquela idade em que se perde o nome. Se eu sair nos jornais será assim: "Atropelado o sexagenário..." Lá embaixo é que o jornalista recorda-se de colocar o nome da vítima.

Ziraldo (fazendo as contas) - O senhor foi presidente com 43 anos!

JÂNIO - Sim, fui eleito em 60.

Ziraldo (espantado) - Com minha idade o senhor já tinha sido presidente! Não consigo imaginar um homem de 43 anos como Presidente da Nação!

JÂNIO - E é bom que não imagine (risos) Não tenha ilusões a respeito. Em Curitiba, por coincidência, fui colega de internato do Nei Braga. Éramos terrivelmente levados.

Iza - O que é que vocês faziam?

JÂNIO - Tudo aquilo que geralmente nos era proíbido.

Ziraldo - No colégio o senhor já era um líder?

JÂNIO - Talvez eu o fosse, não pelas minhas virtudes mas pelos meus defeitos. Terminado o ginásio entrei para a Faculdade de Direito. Na pobreza da família comecei a lecionar para custear minha vida.

Ricky - Que matérias o senhor lecionava?

JÃNIO – Português e ocasionalmente Geografia. Lecionava à noite na Lapa, no Tatuapé, em vários colégios de vários bairros, até conseguir uma posição melhor no magistério, quando, já formado, comecei a dar aulas no Dante Alighieri. O Dante era um dos grandes educandários de São Paulo, remunerava bem, e exerceu uma influência muito grande sobre mim. Em primeiro lugar, me permitiu casar.

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Iza - Há quanto tempo o senhor namorava D. Eloá?

JÂNIO - Conheci Eloá no Quinto Ano de Direito e um ano depois de formados já estávamos casados. Saí da Faculdade com 22 anos e só não saí antes porque havia limite de idade para prestar o vestibular. Como eu não tinha idade suficiente fiz um ano de Curso Pré-Juridico na própria faculdade Nosso casamento foi felicíssimo, (ri) Digo a Eloá que sou um marido tão bom, mas tão bom, que tudo que eu desejaria era ter nascido mulher para casar comigo mesma (risos) Em segundo lugar, o Dante me influenciou porque a uma certa altura houve uma eleição para vereadores e aquela meninada do colégio, meninada de classe média superior quase elitária - que não votava porque não tinha 18 anos - saiu à rua pregando cartazes, carregando escadas, latas, fazendo toda minha campanha e me elegi comodamente pelo Partido Democrata Cristão. Entrei em segundo lugar na legenda.

Ziraldo - Como é que nasceu essa candidatura?

JÂNIO - Sugestões dos estudantes.

Iza - Notaram alguma capacidade de liderança nas suas aulas?

JÂNIO - O que sei é que gostavam de mim a despeito da minha extrema severidade. Fui um professor muito exigente, basta contar que eu reprovava como ninguém. Em primeira época e em segunda época. Era também um professor muito austero, não permitindo o uso do batom nas aulas nem deixando ninguém fumar.

Iza - Percebia-se essa austeridade também durante o seu governo, mas tenho a ligeira impressão de que hoje o senhor mudou, não?

JÂNIO - "Adapte ou morre". Ou você se ajusta ou não consegue sobreviver. Estou mais tolerante mas ainda guardo meus padrões.

Ziraldo - Sua mãe era uma mulher muito rígida?

JÂNIO - Não, é que eu entendia que estudar no Brasil era - e em larga medida ainda é - um privilégio. Ter pais capazes de custear um colégio caro num país de analfabetos e marginalizados faz do estudante um privilegiado. Como o estudante aproveita esse privilégio? Estudando, dando conta

Ziraldo - Era uma atitude consciente ou algo decorrente do seu temperamento?4

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JÂNIO — Nunca fui muito severo comigo mesmo nem cresci num ambiente muito severo. O que me parecia é que os estudantes precisavam cumprir o dever. Esse dever era raro, excepcional, oneroso para os pais e que no futuro lhes daria frutos compensadores.

Jaguar - De certa maneira - naturalmente por outros motivos - é isso que o governo quer dizer com "o dever do estudante é estudar".

JÂNIO - Bem, não quero fazer essa extrapolação, que corre por sua conta. Meus propósitos eram inteiramente diferentes. Não se esqueça nunca que estou falando do magistério em uma escola aristocrática e elitária desta cidade, que ainda hoje é uma escola muito cara e de acesso difícil, e na qual os alunos geralmente matriculam, por um adiantamento fantástico, os filhos que vão ter no futuro. Uma escola trancada.

Iza - Essa afirmação do Jaguar não tem muito sentido porque, aparentemente nas suas aulas o senhor estimulou a participação política dos alunos, tanto que fizeram sua campanha.

Ziraldo - O senhor era um professorzinho de classe média empolgando meninos de classe média alta.

JÂNIO - Quando eu lecionava na Lapa, por exemplo, era muito mais tolerante Lecionava à noite para rapa-zes que haviam trabalhado durante o dia e chegavam exauridos e mal alimentados para receber aulas. De quando em quando surpreendia um deles cochilando, com a cabeça caída sobre o peito. A paciência ali era outra, não seria a mesma com o estudante profissional e privilegiado.

Iza - Era porque o senhor também tinha passado por essas dificuldades.

JÂNIO - Me recordo bem das terríveis dificuldades com as quais meu pai pagou o internato do Ginásio Paranaense, e depois o Arquidiocesano de São Joaquim de Lorena aqui em São Paulo, colégios muito caros.

Ziraldo - O internato influenciou muito a sua personalidade?

JÂNIO - Cá em São Paulo comecei externo mas fiz tantas e tão boas que passei a semi-interno. Também não servi ao semi-internato então lá fui para o internato. E já vinha com uma folha corrida respeitável do Paraná. Só o regime de internato é que me pôs nos trilhos, de alguma forma. Como moleque, estudando no Grupo Escolar Conselheiro Zacarias, em Curitiba, tive mais de uma régua de professora quebrada na minha cabeça.

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Ziraldo – Conte uma dessas tantas e boas.

JÂNIO – Eu gostava muito de mascar mata-borrão e atirar bolotas no pescoço da professora com um elástico, (risos) Sempre quando ela estava de costas. Ou então fazia pequenos montes de lama bem à frente do grupo ou das casas dos homens que não me agradavam, e acendia uma grande bomba debaixo. Imagine como ficava o pórtico das casas!

Jaguar - Foi o precursor do mar de lama.

Ziraldo - Era o primeiro da classe?

JÂNIO- Vou contar a você o que a experiência talvez já tenha lhe contado: todos os primeiros alunos que encontrei resvalaram para a mediocridade. Gastaram a pilha cedo e perderam velocidade.

Jaguar - Então meu filho vai ser um gênio!

JÂNIO - Não ria porque é provável que esteja bem encaminhado.

Ziraldo - Parece que sua vocação mesmo era ser professor, pois exercia o magistério com um grande carinho.

JÂNIO - Eu gostava de lecionar. Não sei se foi Dionísio, tirano de Siracusa, que disse certa vez que não podendo ser ditador desejaria ser professor, pela influência que exercia na formação do caráter dos homens.

Ziraldo - Dita pelo senhor essa frase é perigosíssima.

JÂNIO - Eu sei. De qualquer maneira. alguns de meus professores marcaram minha vida de tal maneira que quando era Presidente da República fui a Curitiba inscrever na Ordem do Mérito a professora que de quando em quando me corrigia com a régua. Chamava-se Maria Estrela e fui oficialmente ao Paraná, como Presidente, conceder-lhe a Ordem do Mérito. Cá em São Paulo apanhei um irmão Marista que atendia pelo nome carinhoso de Feijoada e lhe concedi o Cruzeiro do Sul mais ou menos na época em que condecorei Guevara. Esse homem era francês.

Jaguar-Então era Irmão Cassoulet.

JÂNIO - Pouca gente se lembra da condecoração desse irmão.6

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Ziraldo-Já a outra marcou demais.

JÂNIO - Todos se lembram e muitos me cobram a condecoração concedida a Guevara.

Ziraldo - Com tanto conhecimento dos estudantes, o que o senhor está achando do movimento estudantil hoje? JÂNIO - O estudante brasileiro hoje não é melhor nem pior do que o estudante que eu fui ou que todos fomos. As várias gerações a que pertencemos não foram melhores nem piores. Considero-os menos dotados em termos políticos ou sócio-econômicos porque lhes foi vedada a atividade política. Não sei como a atividade política possa iniciar-se após a conclusão dos cursos. Antes de mais nada a escola deve ser, no mundo em que vivemos, centros sócio-políticos. A formação política é a formação do cidadão. Se não se permite a atividade política nas escolas como se pode esperar a criação de cidadãos? É a única restrição que faço à juventude mas não posso culpá-la disso. Ela está sendo plasmada assim, com consequências terríveis para o futuro. Gostaria muito de dizer isso ao Ministro Ney, de quem sou amigo: "com consequências terríveis para o futuro", (marca as palavras na mesa) Haverá - e já se registra - um vazio de lideranças políticas e sócio-econômicas capaz de prejudicar, e muito, nosso processo de desenvolvimento e de independência.

Ziraldo - Mas não estão pensando no futuro. Qualquer pessoa com um pouco de vivência sabe que não se pode cercear o jovem numa hora em que o país está crescendo. Esse medo da atividade política do jovem é uma obsessão pela segurança nacional.

JÂNIO - Não é apenas o pais. O mundo sofreu transformações das quais muitos podem não gostar mas nem por isso deixam de existir. Este é um mundo diferente, comunitário, de comunicações fáceis, de conscientização de massa. O estudante me faz lembrar muito o analfabeto, também marginalizado. Por que o analfabeto é marginalizado? Entende-se que não tem consciência cívica, o que não é verdade. O radinho de pilha, o sindicato, a conversa de esquina, já integraram o analfabeto à vida nacional. Já está conscientizado. Sempre vi o voto do analfabeto com muita simpatia. Para ser franco, receio menos o voto do analfabeto do que o de determinadas camadas urbanizadas que estão mais interessadas em si próprias, no seu status, nas suas vantagens. O analfabeto, sendo ingênuo em alguma medida, puro embora consciente, é capaz de votar melhor. Certa vez saí de São Paulo e fui ao Chile, presidido por Eduardo Frei, um homem magnífico. Lá estava um jesuíta holandês chamado Veekmanns que me fez uma observação guardada por mim para sempre. Veekmanns dizia que na América Latina - do México para cá inexiste uma sociedade. Toda sociedade – disse ele - lembra uma pirâmide cuja base se apóia na grande massa. A seguir vem o corpo médio e depois vem a cumeada, a elite da pirâmide. Essa pirâmide deve caracterizar-se também pela unidade solidariedade e pela permeabilidade, de modo que quem esteja cá embaixo pode ascender e chegar à classe média, quem esteja no corpo médio pode ir à cumeada, e quem

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esteja na cumeada pode resvalar para o corpo médio ou mesmo para a base. Ora - diz ele - se alija o analfabeto da sociedade latino-americana, constituindo 1/3 ou 1/2 da população, como pretender edificar uma pirâmide? Como pretender construir um corpo social? Examinando o argumento não encontrei nenhuma brecha e até hoje parece perfeito. Enquanto não construirmos a nossa pirâmide não teremos nenhuma possibilidade de estado democrático nem possibilidade de justiça social. Esse não é um pensamento esquerdista mas legitimamente democrático. E cristão.

Iza - Quando o senhor era presidente teve problemas com os estudantes?

JÂNIO - Tive problemas seríssimos.

Iza - Como é que o senhor agiu?

JÂNIO – Distinguo entre a atividade política do estudante e a arruaça do estudante Não sou a favor da arruaça, da desordem e da irresponsabilidade nos campi. Recordo-me por exemplo, do caso de Recife onde os estudantes pretendiam que eu destituísse o reitor. O reitor não é eleito por mim mas pela congregação, quando muito me vem em lista tríplice como em São Paulo. Mandei dizer isso aos estudan-tes. Responderam-me que entravam em greve.

Iza - Mandou dizer através de um emissário?

JÂNIO _ Do Ministro da Educação Brígido Tinoco, que hoje é deputado do MDB. Mandei dizer aos estudantes que entrar em greve era direito legítimo, apenas não contassem comigo para relevar as faltas. Estudante que entra em greve tem que estar disposto a perder as aulas correspondentes ao período de greve. Se não tiver o número de aulas suficientes que lhe permita prestar exames depois, que pague o preço, (autoritário) E mais: que não se tocasse nos bens da universidade, que não pertenciam aos estudantes mas ao povo brasileira Promoveram vários quebra-quebras dentro da universidade que eu corrigi com tanques do Exército. Mandei tanques para eles, aí vieram conversar comigo, depois de suspender a greve.

Ziraldo - O senhor crê no direito de greve?

JÂNIO - Ah sim, acho que é sagrado.

Iza - esses tanques fizeram o que?

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JÂNIO - Reocuparam a universidade Custou várias centenas de cruzeiros para reparar os danos causados a bens patrimoniais do povo brasileiro! E numa área paupérrima a do nosso país.

Iza - Houve algum estudante ferido?

JÂNIO - Não me recordo que houvesse. E quando vieram me procurar no Horto Florestal a conversa foi excelente.

Ziraldo - Suas reivindicações não lhe pareceram justas?

JÂNIO - Eu nem sequer havia nomeado aquele reitor, mas o herdara da administração do presidente Juscelino. Ouvi que esse reitor deixaria a desejar. Nunca comprovei isso, até porque não tive tempo, renunciei alguns dias depois. Este movimento ocorreu logo antes do período de férias do meio de ano e em 25 de agosto eu ia embora. Mas não sou a favor da irresponsabilidade nem da subversão. Acredito muito em autoridade. A autoridade emana do povo para ser exercida em nome dele. No momento em que o povo me elege vereador, deputado, prefeito, governador ou presidente.

Ziraldo – Só faltou ser senador...

JÂNIO - ... quer alguém seguro e eficiente, um homem rigoroso que cumpra a lei e a faça cumprir como está escrita. Eu costumava dizer àqueles que não gostavam da lei que não a havia redigido. Quando Presidente da República desci do Horto Florestal num Volks ao lado de Faria Lima. Eu mesmo estava guiando o Volks e entrei numa contramão. O guarda civil me deteve e me multou. Certo. O Presidente da República não tem imunidades para viajar na contramão.

Ziraldo - Ele não te reconheceu?

JÂNIO - Nem me olhou na direção. Olhou minha carta, escreveu a multa, deteve-se no "Quadros", deixou cair o livro de multas e o lápis e desapareceu em uma feira livre (risos).

Jaguar - Deve estar correndo até hoje.

JÂNIO - Juntei tudo e mandei para o Diretor de Trânsito com Cr$ 20 - uma multa de contramão àquela altura - e acrescentei uma observação para que chamasse o guarda e lhe dissesse: "O Presidente da República não tem imunidade para viajar na contramão". Estou sujeito à lei como qualquer outro.

Ziraldo - Coitado, ia ser condecorado e não sabia.9

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Jaguar - Pô, multar logo o presidente... é uma espécie de Loteria Esportiva ao contrário.

Ziraldo - Voltando aos estudantes: mais uma vez o poder vem negar a capacidade do estudante brasileiro pensar por ele mesmo dizendo que os estudantes são massa de manobra sendo conduzida por subversivos profis-sionais. O senhor acha que realmente está havendo infiltração entre os estudantes?

JÂNIO - Não sei. Tenho tido alguns contatos com eles. Anteontem esteve cá uma grande delegação da Faculdade de Economia da Álvares Penteado. Esses rapazes estão querendo montar uma série de palestras e. debates na faculdade, sugerindo nomes da mais alta respeitabilidade. Desejariam, por exemplo, o ex-Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, Teotónio Vilela, Franco Montoro, Brossard e também me distinguiram com um convite. São moços da classe média, das melhores famílias, de excelente extração. Não registrei dentre eles nenhum comunista, se é isso que deseja saber. O que registrei neles foi o desejo de saber, de conhecer nossos problemas, e suas eventuais soluções, mesmo conflitantes (os depoentes certamente queriam soluções conflitantes). Mesmo conflitantes essas soluções iriam ajudá-los a encontrar sua própria solução.

Ziraldo - Eu também acho que é isso que está acontecendo.

JÂNIO _ Há quem suponha que, sendo favorável ao divórcio, ao voto do analfabeto, a uma lei severa de Remessa de Lucros, à Reforma Agrária seja eu um homem de esquerda ou tenha eu compromissos com a esquerda. Não tenho. Sou um democrata que acredita que as democracias modernas não sobrevivem a não ser no atendimento às reivindicações irresistíveis de todas as camadas da população e particular-mente das mais sofridas e necessitadas, pois essas reivindicações serão atendidas de uma forma ou de outra. Acho que foi Abraão Lincoln quem disse: "Se você estiver segurando um elefante pela pata traseira e o bicho quiser soltar-se, o melhor é deixá-lo ir". Essa reivindicações têm a força de um elefante. "Eu não vou continuar segurando um elefante pela pata traseira.

Iza - Foi isso que o senhor pensou ao renunciar? O senhor deixou de segurar o bicho?

Ziraldo - Ah, não aguento mais as versões sobre essa renúncia!

JÂNIO - Até os mortos estão falando, não é"? Vocês viram o depoimento do Carlos Lacerda publicado ontem (24 de maio) no Jornal da Tarde? Hoje tem o depoimento de um jornalista ligado a ele dizendo que o Carlos teria me chamado de traidor. Traidor do quê? Nunca fui procurá-lo, ele é que veio à minha casa. Até prefiro não faiar mais porque qualquer diálogo com Carlos morto deve ser mais difícil do que com ele

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vivo. A não ser que fosse realizado em sessão espírita Deixo o Carlos agora a cargo do Pedroso Horta, que também está morto e deve estar o repreendendo lá em cima.

Ziraldo - Eu gostaria então que o senhor contasse a versão verdadeira e definitiva sobre sua renúncia.

JÂNIO - A existência dessas diversas versões deve-se ao fato das pessoas desconhecerem os fatos da História do Brasil. Isso também aplica-se a você em alguma medida. Cá está a obra de Afonso Arinos de Melo Franco, "História do Povo Brasileiro" (mostra na estante). Os três últimos volumes cuidam dos vivos. Eu cuidei dos mortos e por isso não escrevi uma linha a respeito. De Cabral para cá posso escrever com segurança porque não me aborreça Afonso Arinos escreveu de D. João VI até Castello Branco.

Ziraldo - Reconheço que essa obra eu não li, por isso estou pedindo que o senhor narre o que aconteceu.

JÂNIO - Bem, eu abri O Estado de São Paulo e lá estava um jornalista ilustre me atribuindo, em negrito, a expressão "forças ocultas". Mandei-lhe uma carta dizendo: "Não é possível, você não deve sequer ter lido o documento. É um documento público e oficial. Falei em forças terríveis, porque ocultas nunca o foram". Eram forças escarradas, escancaradas, á mostra. Toda a nação acompanhou o cerco que eu estava sofrendo, um cerco que ainda é atual.

Ziraldo - O senhor não usou a expressão "forças ocultas"?

JÂNIO - Não ora Deus do céu!

Iza - Esse cerco continua?

JÂNIO - O cerco é ao poder.

Ziraldo - E consequentemente é ao povo.

JÂNIO - Sobretudo ao povo Extrapolando-se - como diria nosso Roberto Campos - para o poder. Era absolutamente impossível governar dentro daquela constituição voltada contra o Dr. Getúlio Dorneles Vargas. Essa constituição não foi feita a favor do povo brasileiro ou do presidencialismo, mas, contra um homem.

Iza - A semente plantada pela UDN - pela qual o senhor foi candidato - voltou-se contra ela mesma.

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JÂNIO - Era possível governar sim, desde que se dividisse o País em capitanias entregando cada uma a um grupo político ou econômico. Quando cheguei à Presidência convoquei o General Afonso de Albuquerque Lima, alta expressão do nacionalismo em nossas Forças Armadas, a fim de convidá-lo para assumir o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Neste departamento haviam ocorrido todos os abusos que vocês possam imaginar. Convertera-se de Departamento da Viação em património de alguns chefetes políticos. Toda sua maquinaria e todo seu pessoal estava a serviço de latifúndios no Nordeste, pertencentes aos grandes senhores de engenho. A primeira coisa que pedi ao então Coronel foi que tirasse o DNOCS do asfalto de Copacabana e o levasse para Fortaleza. O Rio de Janeiro não conhece o drama da seca, a ecologia do Nordeste nem sua figura humana. Esse pedido foi atendido gostosamente pois por coincidência ele era cearense. Muito bem, o coronel só conseguiu reaver algumas das máquinas do DNOCS arrombando porteiras com tropa armada. Há muito tempo estavam incorporadas em definitivo ao património particular de fulana beltrano e sicrana Por que comprar trator, carregadeira, caminhões, pás e pagar pessoal quando o , Governo Federal pode trazer isso em benefício de fulana beltrano e sicrano? E apenas um pobre detalhe, mas nesse instante alijei os setores dos donos de latifúndios no Nordeste.

Ziraldo - Foi um detalhe das forças visíveis.

JÂNIO - No dia em que este General, ex-Ministro da Revolução, prestar esse depoimento ficarão assombrados. Tenho aqui as documentações, que um dia serão publicadas pelo José Aparecido de Oliveira. Não o será feito enquanto eu viver pois alcançam figuras da nossa vida pública julgadas "mode-lares".

Iza - O senhor acabou de se referir à oligarquia. Existe uma escala entre essas forças?

JÂNIO - Bem, isso reclama uma exposição cuidadosa e criteriosa. Em primeiro lugar, lembrem-se todos que não desejei ser presidente (peio menos naquela ocasião). Um pouco antes eu poderia ter me candidatado e preferi apoiar o General Juarez Távora, chefe da Casa Militar do Presidente Café Filho.

Ziraldo - Disputou a eleição com Juscelino.

JÂNIO - Acredito que pudéssemos ter ganho. Empenhei-me nessa eleição viajando pelo país todo em pequenos aviões dos quais tinha e tenho muito medo. Estive por toda parte do Brasil. Sandra Cavalcante foi minha companheira nessa pregação. Juarez revelou um grande preparo, um grande destemor, e poderia ter sido um grande presidente. A ele eu sucederia, de forma quase inevitável. Juarez conhecia bem o país e se fizera um nacionalista vigoroso. Nasceu no Nordeste (13º filho) e conhecia bem o drama daquela área que representa o nosso problema mais grave, sem embargo de eu entender que todo o povo brasileiro vem empobrecendo (ressalta para o gravador): o povo. A inflação sempre favoreceu os ricos,

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sendo um meio de cultura para as fortunas fáceis, dos escândalos, da corrupção, dos favores ilícitos. Bem, a candidatura do Juarez foi arruinada por alguns artigos do Sr. Carlos Lacerda, publicados na Tribuna da Imprensa.

Jaguar - Como sempre o galinho tava lá.

JÂNIO - Recordo-me do título de um deles: "A BARGANHA", abrindo um artigo de extrema virulência e de uma injustiça brutal, ferindo Juarez Távora de tal sorte que renunciou á candidatura. Demovê-lo foi uma luta pessoal minha, com a grande ajuda do Café Filho, Presidente da República. Algum tempo depois, terminado o mandato do Presidente Juscelino, saio eu como candidato a Presidente da República, mas sofrendo pressões políticas de tal ordem que também renunciei à candidatura. Muito pouca gente se lembra disso: renunciei para valer! Escrevi uma carta duríssima, dando as razões pelas quais não desejava concorrer, e saí com minha família para local ignorado a fim de não ser convencido a voltar.

Ziraldo - Como você fizera com o Juarez.

JÂNIO - Apôs ter recebido determinadas garantias de liberdade de movimentos fiz um discurso em Recife que não poderia enganar ninguém. Não enganei ninguém quanto à política externa que me propunha a realizar, pois seria uma política de janelas abertas, isto é, eu desejava relações com todos os povos sem nenhuma exceção. Não enganei ninguém quanto à política econômica de austeridade e seriedade. Não enganei ninguém quanto ao exercício da autoridade a que me propunha, nem no referente á reforma agrária, à reforma educacional visando à democratização do ensino... Havia também outros pontos que me pareceram essenciais. Tenho uma cópia do discurso aqui microfilmado. Foi proferido na presença dos próceres dos partidos que me elegeram. O governador de Pernambuco à época estava do meu lado e me recordo que foi um comício extremamente perturbado pelos comunistas, não queriam me deixar falar. Eis-me eleito por quase seis milhões de votos. Não tive a maioria absoluta que se propala pois não tive sequer a metade dos votos válidos.

Ziraldo - Mas foi a maior votação que um presidente já tinha tido até então.

Ricky - Até então e até agora porque não houve mais eleições diretas.

JÂNIO - Tenho a impressão de que Getúlio me sobrepujou quanto á proporcionalidade no seu confronto com Cristiano Machado. Como eu previa, fui eleito sem que se elegesse o Congresso comigo. Minoria no Senado e na Câmara Federal. E a maioria estava furiosa pois fora batida por mim nos seus respectivos redutos (esmurra a mesa) Maioria que sabia que se eu continuasse presidente dificilmente se reelegeria nas próximas eleições.

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Ziraldo Isso foi mais um. pedaço das forças.

JÂNIO - Houve ainda um erro maior, tão sério e tão grave que me levou a considerar a hipótese de não tomar posse. O povo elegera como vice-presidente o Sr. João Goulart, com quem eu não tinha relações de nenhuma espécie. Lá estava eu representando uma corrente política e o vice-presidente da República representando outra que acabava de ser batida fragorosamente nos comícios da Praça Pública. Minha política econômica necessariamente me alijaria boa parte da popularidade. Era uma política de sacrifícios. A 204 caiu como um gravame nos ombros do povo, mas ou eu a adotava ou íamos para a insolvência. O processo inflacionário infrene era o preço que pagávamos por Brasília, preço que ainda estamos pagando.

Ricky - O que era a 204?

JÂNIO - Desvalorizava o cruzeiro, estabelecendo um novo valor, o que aumentava enormemente com suas repercussões o índice de custo de vida, embora possibilitasse uma melhoria vital nas exportações. Ao mesmo tempo eu gravava o preço dos combustíveis, do trigo e do papel, tomando uma cautela que podia (e devia) servir de exemplo: mandei antes oficiais superiores do Exército conferir os estoques de petróleo, óleo, trigo e papel a fim de evitar que aqueles que possuíam esses estoques se locupletassem com os novos preços. O governo promoveu uma espécie de confisco desses estoques para que fossem vendidos aos preços anteriores. Ninguém pôs no bolso um níquel! Um de meus melhores amigos aqui em São Paulo amanheceu com oficiais do Exército na sua usina.

Iza - O senhor disse que a 204 atingiria o povo mas a resistência maior foi da classe dominante. Os interesses da classe dominante seriam outra força?

JÂNIO-Sem nenhuma dúvida.

Ziraldo - Me lembro do senhor indo à televisão acusar a Anderson Clayton de manobras no Nordeste.

JÂNIO - Irritei os moageiros poderosos em geral, irritei o mundo do petróleo e do óleo combustível...

Iza – E na política externa?

JÂNIO - Resolvi reestabelecer relações diplomáticas com a Rússia. Há dois anos havia estado com Khruschev em Moscou e notara o maior interesse da parte dele num intercâmbio legítimo. A troca de

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representações diplomáticas só poderia engrandecer às duas nações. A Rússia já estava a caminho de se tornar uma superpotência. O Brasil se afirmaria internacionalmente como nação soberana que mantém interesses com as nações que julga de relações repercutiu pessimamente e foi objeto de explorações sem tamanho.

Iza - Os Estados Unidos sentiram-se lesados.

Ziraldo - O senhor antecipou a política africana em dez anos.

JÂNIO - A política africana que preconizei alcançou franceses, ingleses, americanos em cheio, as nações que ainda teimavam na velha política colonialista do Cabo ao Cairo.

Iza - Hélio Silva afirma no seu livro que apesar de seu governo ter durado apenas sete meses foi marcante por determinadas ousadias, a principal sendo a política externa.

JÂNIO - Veja, hoje recebi isso do Presidente do Conselho de Ministros de Lisboa, o Sr. Mário Soares, (mostra uma carta e lê): "Mas creia que não esqueço as palavras que proferiu em Lisboa a favor da libertação democrática, a lúcida politica africana que delineou quando assumiu a Suprema Magistratura de seu país, e o carinho que sempre dedicou às coisas e ao povo português". Esse documento chegou hoje falando de idéias que proferi há quinze anos atrás.

Iza - Os Estados Unidos, na época, manifestaram algum desagrado em relação à sua política?

JÂNIO - Sim. Não nos esqueçamos da aventura da Baia dos Porcos. Quando o embaixador americano me visitou em Brasília a fim de perguntar se o Brasil iria participar ou não com força armada da invasão de Cuba. Ao que lhe respondi: "Embaixador, não vai e não aprova Se eu me envolvesse pessoalmente nessa aventura até as pedras das ruas se levantariam contra mim. Diga ao Presidente Kennedy que vou ser dos primeiros a protestar porque toda nossa política externa - pela voz do Ministro Afonso Arinos - está fundada na autodeterminação dos povos. Essa autodeterminação é sagrada (é interrompido pela invasão súbita de uma malta de cães que avança, primeiro sobre as botas da fotógrafa. Depois Iza Freaza fica encurralada na cadeira, pedindo ajuda. Muitos latidos. Jânio Quadros impõe sua autoridade e os cães deitam em silêncio à sua volta) Quinta-feira! Dulcinéia!

Jaguar (tentando impor sua autoridade como presidente dos entrevistadores) - Dulcinéia! Dulcinéia! (os cães rosnam e Jaguar recua desolado). Nem todos nascem pra ser presidente do Brasil...

JÂNIO - (continuando sua briga com o embaixador) - "Não Interferimos em outros Estados porque não admitimos interferência aqui.'"

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Iza (voltando à calma) - Quem era esse embaixador?

JÂNIO (franze as imensas sobrancelhas) - Acreditam que eu não lembro?

Jaguar - Era o Cabot Lodge.

JÂNIO - Ele ficou embaraçado de tal maneira que ao invés de apanhar a porta da rua entrou no banheiro, (risos vingativos) Kennedy Ficou amolado de tal maneira - sobretudo depois do desastre - que mandou Adlai Stevenson para cá, só para acertar a vinda de outro embaixador, era Stevenson um americano de outra estirpe.

Ziraldo - Jantou com a gente no O Cruzeiro.

JÂNIO - Tenho uma fotografia tirada com ele no Horto Florestal.

Iza - O senhor deu outra resposta a esse mesmo embaixador "Meta-se com seus problemas que nós cuidaremos dos nossos". Qualquer coisa assim Me lembro que saiu publicado em todos os jornais.

Ziraldo - O episódio Guevara foi pra reafirmar ainda mais a sua posição?

JÂNIO - Não apenas por isso.

Ziraldo - Não lhe avisaram que isso seria muito imprudente?

JÂNIO - Não, não acredito que ninguém no governo tivesse a coragem de opinar a respeito, mas ainda que tivessem me avisado, eu o faria. É o que eu digo: a autoridade é colhida do povo através do voto livre. Assim eu fora para a Presidência.

Iza - E o episódio Guevara?

JÂNIO - Guevara acabara de desligar-se praticamente expulso da Conferência de Punta del Este. Fez um discurso terrível avisando as várias delegações latino-americanas e retirou-se. De volta para Cuba passou por Brasília. Desejo que registrem bem que Guevara era Ministro da Economia de Cuba com poderes excepcionais. Depois de Fidel era a grande figura da revolução. O que ligasse em Cuba estava ligado e o que desligasse estava desligado porque Fidel lhe dava absoluta autonomia.

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Jaguar - Era um Superminstro tal qual o nosso atual da Economia.

JÂNIO _ Coincidentemente. Dom Mazzei, Núncio Apostólica havia me procurado para observar que vários padres espanhóis estavam ameaçados de fuzilamento em Cuba. Isso é público e notório e consta na imprensa. Esses sacerdotes haviam se envolvido em questões políticas contra o governo cubano, tinham sido julgados sumariamente e condenados ao fuzilamento Dom Mazzela me pediu para interceder. Bem. conversando com Guevara de me mostrou a disposição de importar caminhões e bens de consumo du-ráveis do Brasa além de abrir outras perspectivas para o nosso comércio exterior. Obviamente lhe perguntei como pagariam. Açúcar nós tínhamos, tabaco também. "É fácil. Presidente abrimos créditos na Tchecoslováquia, na Hungria, na Roménia, na Polónia e na própria Rússia. Vossa Excelência então importa o que desejar desses países. Nós nos encarregamos da triangulação." Quando mencionei o pedido dos padres ele disse: "Bem. um pedido de Vossa Excelência é uma ordem para Fidel. Vão ser soltos, mas expulsos incontinenti. Que vão fazer política de Franco lá na Espanha, em Cuba não". Eu lhe dei a única condecoração que um Presidente da República dá a Ministros de Estado estrangeiros: o Cru-zeiro do Sul. Que por sinal já foi dado até pela revolução a dirigentes comunistas, creio que da Roménia. Pouca gente sabe disso.

Ziraldo - Os padres foram soltos?

JÂNIO - Foram todos soltos e deportados. Concedi o Cruzeiro do Sul a Guevara e não me arrependo de forma alguma, o faria mil vezes se necessário. Era do interesse do meu país e cabia a mim, somente a mim. julgar o interesse do meu país. Para efeitos futuros a responsabilidade seria minha, eu a estava aceitando publicamente, e a ninguém mais caberia esse julgamento (pausa). Aí aparece a história da dita-dura que eu desejava implantar, (acende um cigarro) Sempre acreditei em governos representativos da vontade popular mas que fossem fortes.

Ziraldo - O senhor acredita na autoridade

JÂNIO - Ninguém nunca atribuiu a mim, diretamente, qualquer veleidade ditatorial. O sr. Carlos Lacerda fez acusações de madrugada, na calada da noite, enquanto eu dormia tranquilamente no Palácio.

Iza - O senhor não ouviu o pronunciamento dele?

JÂNIO - Eu o li no dia seguinte nos jornais de Brasília. Tratava-se de uma vasta conspiração que me passara inteiramente ignorada. O Congresso transformou-se em Comissão Geral de Inquérito, figura inexistente no Direito Constitucional, (exalta-se) Mesmo de madrugada essa Comissão já intimou o primeiro de meus ministros, e o intima para o dia seguinte e o intima sem o questionário a que devia

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responder, como a lei determinava. Ministro nenhum poderia ser questionado a não ser para responder um questionário previamente estabelecido.

Jaguar Como o Reis Veloso vai responder agora.

JÂNIO - Ministro nenhum podia ser convocado com data certa! O Ministro é que escolhe a data.

Ziraldo Isso foi na manhã do dia?

JÂNIO - Foi na madrugada do dia 25 de agosto. Então havia o propósito nítido de me pôr de joelhos. Nítido! Não havia dúvida nenhuma, até por que se murmurava nos corredores da Casa que outros ministros se seguiriam e que minha própria esposa, presidente da legião Brasileira de Assistência, seria também convocada, (pausa paratodos perceberem a gravidade da situação).Reuni Oscar e os Ministros militares para lhes dizer: "Que me sugerem?" Eram oito e meia da manhã e eu ainda ia à cerimónia do Dia do Soldado. Fui, condecorei bandeiras, ouvi o hino, já estando de decisão tomada e declarada a todos eles.

Iza - Quais foram as sugestões que eles deram?

JÂNIO - Houve várias sugestões e não desejo individualizar. A dominante era fechar o Congresso.

, .

Ziraldo - O senhor tinha poderes para isso.

JÂNIO - Força eu tinha, poderes não.

Ziraldo - Naquela época não podia declarar estado de sítio, né?

JÂNIO - O estado de sítio é votado pelo Congresso. O presidente declara mas o Congresso é que vota.

Ziraldo-Isso antes.

Rickv - O senhor gostou da sugestão de fechar o Congresso?

JÂNIO - É claro que senti tentação pois aquele Congresso não me merecia o mínimo respeita Havia nele figuras eminentes mas quem o dominava eram os políticos profissionais, figuras pouco escrupulosas e

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muito discutíveis que eu conhecia de longa data. alguns com cadeiras cativas obtidas à base de focos de ignorância mantidos pelo coronelato, explorando demagogicamente os trabalhadores, iludindo-os permanentemente. Ao verem surgir assuntos vitais para os trabalhadores — a liberdade sindical, o imposto sindical, a reforma agrária, o voto do analfabeto - recuavam de pronto e espalhavam confusões para que os projetos dormissem nas gavetas. Interferiam até na ordem econômica e financeira crivando o orçamento da União com emendas, todas elas de despesas sem indicar nenhuma fonte para a obtenção de recursos. Como cumprir a lei era inteiramente, impossível a possibilidade de fechar o Congresso me passou pela cabeça. Mas havia algumas particularidades que me fizeram pôr a idéia de lado sumaria-mente, não chegando nem a exumá-la. isto é, não aprovei essa sugestão.

Ricky -Quais eram essas particularidades?

JÂNIO - Como fazer com a Guanabara, por exemplo? Lá estava um governador declaradamente hostil. Como fazer com o Rio Grande? O curioso é que eu não receava muito o Governador Brizola, que fora elegantíssimo comigo durante os sete meses. Desejo prestar esse depoimento porque corresponde à verdade Elegantíssimo (com o superlativo), nunca me causou aborrecimento. Mas havia lá um exército poderoso - as Forças Armadas de lã eram numerosas e as mais bem equipadas do país - que talvez não se conformassem com uma providência drástica.

Ziraldo - O senhor teria o apoio de seus ministros militares?

JÂNIO (dubitativo) - Sim, teria sim. Aqui, ali e acolá tenho ouvido que nem sempre procederam comigo com a elegância desejável depois da renúncia. Se não todos alguns, mas até aquele momento foram absolutamente perfeitos, não podendo fazer nenhum reparo. Havia problemas também no Nordeste. Sim, estou convencido de que isto também deve estar presente na consciência dos que me fazem críticas. Existem interesses políticos próprios e divergentes quase todos empenhados em arruinar-me para a posteridade, esquecidos de que disponho da melhor documentação que se possa imaginar. A frente dessa luta e desse derramamento de sangue eminentes eu lhes disse que não havia nascido Presidente, mas havia nascido livre. Apanhei um pedaço de papel e escrevi o documento da renúncia.

Ziraldo - Ali na frente deles, sem nenhum rascunho?

JÂNIO - Sem nada. Imperturbável. Telefonei para minha esposa, mandei fazer as malas, e voei para Cumbica (então comandada pelo irmão do Faria Lima, meu companheiro até a morte). De Cumbica apanhei um cargueiro inglês e fui para a Inglaterra. Nunca houve uma lágrima sequer! E há quem fale em crise de choro. Disso dão testemunho todas as pessoas que estavam comigo em Cumbica. e que estão vivos ainda.

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Ziraldo - O senhor não chorou?

JÂNIO - Nunca derramei uma lágrima sequer. E por que iria derramar?

Iza - Nunca sentiu remorso ou arrependimento?

JÂNIO - Não.

Ziraldo - Pelo que o senhor contou ?u também não sentiria.

JÂNIO - Há instantes em que é preciso tomar uma decisão. As pontas do meu dilema eram: fecho o Congresso ou me deixo cair de joelhos. No momento em que caio de joelhos desapareceu a autoridade que o povo me emprestou! Lá sigo eu para a velha política das capitanias e dos feudos: devo entregar o Ministério da Fazenda a um grupo, o Ministério da Agricultura para outro, o IBC para um terceiro, o Ministério da Viação para um quarto, o Ministério do Trabalho para um quinto... Assim eu me acomodo e governo cinco anos. (em tom de comício) Saio daqui com a pior de todas as imagens, porque então sim terei frustrado todas as minhas idéias reformistas e todas as esperanças que o povo depositou num governo limpo, corajoso, independente e honrado! Governo sério! Governo que não furta e não deixa furtar! Governo no qual não entra congressista ou homens influentes no Banco do Brasil exceto pelos seus méritos! Eu era um homem tranquilo em todos os setores. Tinha como Ministro de Minas e Energias esse grande paraibano que é o João Agripino. No Ministério do Exterior eu tinha o Afonso Arinos de Melo Franco. Tinha Clemente Mariani no Ministério da Fazenda. Estava cercado de homens como Brígido Tinoco, Castro Neves...

Ziraldo - Quem eram os militares?

JÂNIO - Almirante Heck, Brigadeiro Moss e Marechal Deny, (o telefone toca e Jânio pede para ligar daí a meia hora. Aliás durante todo o tempo em que estivemos em sua casa D. Eloá atendia ininterruptamente o telefone, mas para Jânio).

Iza - Quantas horas o senhor ficou em Cumbica?

JÂNIO - Passei uma noite, se não me equivoco. Vejam, não tenho uma nota. Estou lhes falando o que me vem à memória, com as fraquezas inerentes a uma memória que começa a mostrar-se cansada. Para onde poderia eu ir? Não tinha sequer casa em São Paulo. Para o Palácio não poderia ir.

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Ziraldo - Era um homem comum de novo.

Iza - Passou a noite dentro do avião?

JÂNIO - Passamos em um quarto que o comando pôs a minha disposição.

Iza - O que o senhor sentia durante aquelas horas todas?

JÂNIO - Grande perplexidade. Pensei que a país passasse por uma grande reforma, uma reforma completa em suas instituições, e que aparecesse um governo forte, democrático, capaz de convocar uma Constituinte e elaborar uma nova Constituição

Iza - Pensou na possibilidade de que lhe pedissem para voltar atrás?

Ziraldo - Era um golpe pra voltar mais forte?

JÂNIO - Naquele quadro eu não voltaria. Como já observei, acredito muito em governos fortes (podem me culpar disso). No mundo em que vivemos não há mais oportunidade para a democracia liberal com a qual sonhava Rui Barbosa, copiando os pais da pátria americana. Essa democracia está extinta, sepulta, como o pássaro Dodô, das Ilhas Mauricio.

Ziraldo - Que os portugueses mataram.-

.JÂNIO - Naquele quadro não voltaria, e não quis aceitar a responsabilidade da implantação de uma ditadura isto é, do fechamento ao congresso. Não quis aceitar porque fora eleito dentro de determinadas regras de jogo e que não poderia ou devia ignorar. Na impossibilidade de continuar governando dentro dessas regras do jogo só havia uma solução para mim: procurar a porta da saída. Não deixei o país tumultuado, não sou responsável pelos tumultos posteriores. Deixei o país economicamente ordenado e se algum dano a renúncia provocou de então para cá, danos inevitavelmente se verifica- eram sem que ninguém seja culpado de forma direta. Minha situação é mais ou menos a seguinte: os políticos que não gostam de mim - e formam legiões - me culpam da renúncia e do governo do Jango. Enquanto a Revolução caminhava pela estrada de otimismo do Ministro Delfim eu continuava culpado da renúncia e do governo do Jango. Quando a Revolução começou a experimentar problemas e dificuldades de toda natureza, sobretudo no campo econômico e em consequência no político, começo a ser culpado da Revolução. De maneira que estou culpado pelas duas coisas.

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Jaguar - Uma pergunta do Felix de Athayde. "Justamente, qual a sua responsabilidade no impasse a que o Brasil Chegou? Sua renúncia não teria criado condições para o regime de exceção?"

JÂNIO - Pois sim, sempre sou o responsável. Não sei porque não me culpam também das caravelas portuguesas! Já e já vão me ver à beira do Ipiranga sendo o culpado da independência deste país. Ou então culpado pelo 15 de novembro de Deodoro, ou do movimento de 30. Sempre, sempre sou culpado, e nem respondo mais a essas críticas. Já não tem significado para o povo. Tenho uma pretensão e convido-os a conferí-la: estou inteiramente restituído ao povo de São Paulo. Que ninguém suspenda a proibição que tenho de candidatar-me que é vitalícia, como sabem, indo comigo até o túmulo. Meus direitos políticos estão restituídos pela metade: posso votar mas não posso ser votado, uma disposição transitória mas constitucional. Por contágio isso acontece a minha esposa também. Mas que ninguém corrija ou levante essa proibição. (pontificando na mesa) Quero saber quem ganha uma eleição de mim em São Paulo se eu me candidatar! Quero saber!

Jaguar - E é claro pelo seu tom de voz que o senhor se candidataria imediatamente.

JÂNIO - Estou restituído ao povo, sem embargo da imprensa no geral e dos políticos no particular que não fazem mais nada senão me difamarem sistematicamente! Sabendo até que eu não poderia responder! Alguém vem e diz: "Ouvi do Carlos Lacerda o seguinte..." Qual é a resposta que posso dar? Ouviu de um morto! (apanha novamente o Jornal da Tarde) Aqui está um jornalista dizendo que ouviu do Carlos Lacerda que eu o traí. A ele, Carlos! Que vou fazer para desmanchar isso? É ou não vilania? Vilania pura! Um homem com escrúpulos nem sequer diz uma coisa dessas, mesmo que seja verdade. Lacerda veio almoçar comigo, sem ser convidado. Veio com a esposa, tocou a campainha, e almoçou comigo e minha esposa também. Nunca fui procurá-lo no Rio de Janeiro. Nunca toquei a campainha lá depois de 61 pra almoçar com ele.

Iza - O que foi que ele disse? "Bom dia. Presidente. Desculpe por tudo"?

JÂNIO - "Passado é passado, vamos examinar o futuro."

Jaguar - O senhor disse que ele mudou de opinião a seu respeito mas que o senhor não mudou de opinião a respeito dele.

JÂNIO - (voltando a exibir o recorte) - Olha o que o jornalista afirma: "Há quinze dias fui a serviço profissional ao Rio e procurei como sempre Carlos Lacerda na Nova Fronteira. Após vários assuntos dei o recado de Jânio". Eu teria pedido ao Carlos para que viesse a São Paulo e me telefonasse. E Carlos, de forma textual: "Errar todos erramos Luís Ernesto. Eu principalmente errei e tenho errado muito. Mas trair

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é outra coisa. Jânio Quadros traiu, é um traidor. Nunca mais quero ter conversa com ele". A quem eu traí. A ele, que desejava ressurgir na política à testa da chamada Frente Ampla. Não, a Frente Ampla era uma aventura espúria.

Iza - Ele convidou o senhor para essa Frente?

JÂNIO - Mandou me convidar. É publico e notório que me neguei terminantemente a participar da Frente Ampla.

Jaguar - Foi isso que ele considerou uma traição?

JÂNIO - Quem sabe? De que maneira posso conferir isso? Não estivesse morto eu lhe tocava um telegrama pedindo que confirmasse ou não e que dissesse qual a traição que cometi.

Iza - Quando foi que esteve aqui?

JÂNIO - Faz uns dois anos.

Iza - Ah. então foi recente!

Jaguar - O que o senhor achava da Frente Ampla?

JÂNIO - Para lhe ser franco, eu nem conhecia os objetivos dessa Frente, mas minha experiência com o Carlos me impedia de participar de qualquer movimento político com ele. Talvez eu participasse de um movimento político mesmo com o Dr. Ademar Pereira de Barros. (Quinta-feira late) Porque o Ademar eu situava bem, mas o Carlos eu nunca situava; era inteiramente errático e imprevisível. E a mim é que culpava de ser imprevisível. Nestas declarações atribuídas a ele há lá uma passagem na qual ele se escandaliza em Portugal pelo meu comportamento". Não é o que o governo de Portugal hoje me diz, na palavra de seu Primeiro-Ministro. O depoimento do Carlos é desmentido pelo Único depoimento que me interessa pois não é o do ditador da época mas de um governo legitimamente eleito em Portugal.

Iza - Por que ele baixou aqui sem mais nem menos? Será que veio fazer sondagens? Estava querendo fazer ou-tra Frente Ampla?

JÂNIO - Não sei o que o trazia a minha casa. À minha casa. (frisa bem no microfone) Sem que eu o tivesse provocado ou o tivesse visitado no Rio de Janeiro. Só o vi no Rio numa conferência de governadores, presidida por mim. Não sei. Certa vez o Carlos apareceu no Palácio do Alvorada para conversar comigo.

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Era urgentíssimo, mandei até um avião buscá-lo. Pedira audiência à Eloá, minha esposa. Era urgentíssimo, sentou-se à minha frente e não disse nada. Mas nada mesmo. Tinha apenas o problema financeiro do filho, ao que respondi: "Mas você vem conversar comigo? Clemente Mariani, o Ministro da Fazenda, não é sogro do seu filho?"

Iza - O Movimento Popular Jânio Quadros, ao lançar sua candidatura, publicou um manifesto onde condenava o militarismo de certas pessoas que visavam impedir a posse de presidentes. Isso seria uma indireta para um certo espírito puntchista do qual Carlos Lacerda dera provas antes, na Novembrada. O MPJQ estava se dirigindo a esse militarismo que tentara impedir a posse de Juscelino e que continuaria existindo?

JÂNIO - Para ser leal e honesto: não. Não tenho razões para fazer festa aos militares ou temê-los. Devem ter consciência cívica, cuidam da sua vida, e eu cuido da minha. Nunca tive nenhum problema de nenhuma natureza com os militares.

Ziraldo - Não faziam parte das forças de pressão?

JÂNIO - Não.

Iza - E o sentimento golpista lacerdista no tempo do Juscelino?

JÂNIO - Se existiu, ao meu tempo deve ter desaparecido de forma completa. Me recordo de ter dito ao Ministro da Guerra que era e sou Reservista de Terceira Categoria, logo não entendia nada de Exército. Confiava nele e nos seus critérios para dirigir nosso Exército, apenas me reservando o direito de escolher nossos oficiais generais. Se não me equivoco coube-me promover a general de brigada o então coronel Emílio Garrastazu Médici, que foi promovido só por merecimento. Levei todos os assentamentos para o Palácio e me pus a examiná-los. O então coronel Médici tinha as melhores notas possíveis ao longo de sua vida.

Iza - Lacerda teve uma participação muito atuante no lançamento de sua candidatura Pressionou o tempo todo, investiu contra Juracy na Bahia porque competia com o senhor dentro da UDN, lutou vigorosamente a seu favor Como o senhor explica que, numa reviravolta, tenha se transformado no seu principal adversário?

JÂNIO - Não posso responder. Não sou psicólogo nem psiquiatra.

Iza - Existiam forças econômicas por trás de Lacerda?

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JÂNIO - Não sei. Vivi em Brasília inteiramente alheado de quaisquer maquinações. Começava a trabalhar às 5:30 ou às 6:00. Quando saía do Palácio da Alvorada cruzava com os trabalhadores braçais, sobretudo de construção civil, e ainda era noite. E quando saía do Palácio dos Despachos era noite já fechada. Trabalhava de limpar a mesa, com despachos do próprio punho. Nenhum deles foi corrigido até hoje. Me recordo de ter despachado inúmeros processos dos governos do Presidente Vargas (um grande presidente) e do Presidente Juscelino (de quem me aproximei depois de alguns desentendimentos). Quando Juscelino morreu era meu amigo.

Ziraldo - Fale-nos de JK.

Iza - Deixa ele acabar de falar do fenómeno Lacerda.

JÂNIO - Eu gostaria de encerrar o capítulo Carlos Lacerda até em deferência ao morto. Acho que os mortos são matéria de estudo para os historiadores, ou, pelo menos, não devem ser examinados por quem teve eventuais discrepâncias com eles. Já me arrependo até do que ditei ontem a um jornalista de São Paulo: (lê) "A entrevista do Sr. Carlos Lacerda, publicada após seu falecimento - à parte o mau gosto da ocasião - tem contorno nitidamente mediúnico. Confusa e desconexa, deixa o leitor à porta de um dilema: o depoente estava esclerosado ou mentiu mais do que o Barão famoso. Mas com que propriedade dialogar com um morto se com o vivo o diálogo era difícil? A matéria sem desrespeito, pertence às luzes mortiças das sessões , espíritas, nas quais o Sr. Carlos Lacerda seria gostosamente chamado às falas pelo leal e inolvidável Pedroso Horta". Oscar está morto também e devem , entender-se por lá.

Ziraldo - E JK?

Félix - Antes, a que o senhor atribui sua cassação?

JÂNIO - Essa é uma história que conheço e que tenho documentada. Quando ocorreu o episódio do Recife transferi daqui para Pernambuco o General Costa e Silva, que saiu profundamente irritado comigo. Por que o transferi para o Recife? Porque dera provas, em São Paulo, de ser um general com grande coragem pessoal e um rigoroso cumpridor de ordens. Ao eclodir a Revolução, Costa e Silva foi surpreendido no Rio de Janeiro como o general mais antigo. Para as Forças Armadas isto tem um grande significado. Coube a ele instituir o chamado Comando Revolucionário, que recebeu a primeira lista de políticos que deviam ser cassados. Meu nome não constava da lista, mas o General Costa e Silva lembrou-se de mim, da sua transferência, e de alguns incidentes de natureza pessoal - eu era governador quando ele servia em São Paulo - e acrescentou meu nome à tinta: "Jânio da Silva Quadros". E mostrava

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a caneta para os amigos mais chegados dizendo com singular orgulho: "Com esta caneta cassei o Jânio". Aí está a história. Pode não ser bonita mas é verdadeira.

Jaguar - Pergunta do Ivan Lessa: "Há cassados que hoje em dia aderiram ao sistema ou o justificam. E o se-nhor?" (os cães voltam a latir)

JÂNIO - Quinta-feira! Vassoura!

Iza - Falou no sistema Quinta-Feira latiu outra vez. Será que não gosta da Revolução?

JÂNIO - É provável, mas não há de ser por contágio. Respondendo: não aderi. Provavelmente teria aderido nos seus primórdios porque pensei que chegasse para reformar o país, emprestar-lhe uma nova Constituição, promover uma limpeza na nossa vida pública, restaurar a nossa economia a qualquer preço, mesmo ao custo de sérias dificuldades e sofrimentos. Mas essas dificuldades e esses sofrimentos precisariam ser bem distribuídos porque conter a inflação apenas a custo do salário do trabalhador, ou da produção agrícola, não me parece muito apropriado. Hoje, eu não lhe levaria a minha adesão, que também não tem significado maior. Não foi pedida e nem oferecida. Vi a eleição do Presidente Geisel com muitas esperanças. Em toda minha vida dificilmente encontrei um general com os mesmos méritos. É um homem excepcionalmente inteligente e pessoalmente honrado, mas depois dessas reformas políticas oferecidas ao país minha decepção é muito grande. E minha apreensão também. E a decepção do cidadão e a apreensão do cidadão. Sou apenas um dentre os 115 milhões que não se sente feliz nem se sente tranquilo.

Ziraldo - Fale do seu relacionamento com Juscelino.

Jaguar - Isso é um capítulo depois.

Ziraldo (para Jânio, irritado) - É impressionante, não me deixam fazer uma pergunta! Tem uma hora que quero perguntar uma coisa e fica todo mundo me segurando.

Iza - (rindo) Presidente, ele briga com a gente em todas as entrevistas porque quer fazer perguntas demais.

Ziraldo - (protestando) Mas minhas perguntas são importantes!

Ricky - (acalmando) E que toda hora você quer mudar de assunto.

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JÂNIO - Estão vendo como os congressos são difíceis? E vocês são poucos, multiplique isso por dez e por cem...

Ziraldo - ... acrescente alguns assuntos ululantes...

JÂNIO - Como compor as opiniões?

Iza - Como é que o senhor definiria o seu próprio governo de sete meses dentro da História do Brasil?

Ziraldo - Deixa essa pergunta pro final porque tenho três perguntas importantes pra fazer,

Iza - (rindo) Vamos fazer assim: nós fazemos todas as nossas perguntas e aí deixamos só você conversando com ele.

JÂNIO - (enquanto isso já respondendo à pergunta) - Como um ensaio. Eu ainda estava sentindo a presidência. Minha política externa já se tornara bem nítida, seguia aquilo que eu havia traçado, mas nos campos econômico e social eu ainda tateava. Sabia que iria para uma lei severa de Remessa de Lucros. Nada que assustasse o empresário estrangeiro mas algo que defendesse o nosso empresário e a nossa economia. Mantinha a atuação das multinacionais sob exame constante e permanente. Dentre todos seus vícios de presença existe um que é seríssimo: não transferem tecnologia exceto a já obsoleta. Quando vêm para cá a fim de produzir entre nós não produzem o que ha de melhor ou mais moderno, mas geralmente trazem maquinaria e concepções anacrónicas.

Ziraldo - Que já foram substituídas lá.

Ricky - Inclusive pra dar saída a essa mercadoria que não tem mais lugar no mercado de lá.

JÂNIO - Estão superadas no país de origem. Como vêm com fartos recursos impedem o aparecimento da concorrência nacional. Até porque um de nossos graves defeitos - no meu entender um dos mais sérios - é não estarmos procurando desenvolver tecnologia própria, mesmo à custa de qualquer sacrifício. Já poderíamos e deveríamos ter mandado gerações de estudantes para a Europa, Japão e Estados Unidos. Já deveríamos ter centros experimentais, centros de pesquisa, bem instalados. Já deveríamos estar encorajando nosso espírito inventiva Quando comecei a encorajar nossos inventores em São Paulo esse espírito produziu milagres. Apareceram inúmeras descobertas, relativamente modestas, mas capazes de demonstrar que há em todo brasileiro um traço de genialidade. É só o governo lhe oferecer condições para o trabalho.

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Ziraldo - Essa genialidade vem da miscigenação?

JÂNIO - Quem sabe? É difícil explicar. Quando a Volks veio para São Paulo eu havia estado na Alemanha com o Nordoff, o poderoso presidente do complexo. Me recordo que Nordoff havia me transmitido apreensões quanto à nossa mão-de-obra inteiramente desqualificada. Dois ou três anos depois, os nordestinos que trabalhavam na Volkswagen, apenas alfabetizados, revelavam uma capacidade espantosa para o campo da engenharia e da construção automobilística. Marcelo de Souza Campos, nos estudos que elaborou para a construção do primeiro reator nuclear no Brasil, observou também isso. Nosso reator nuclear era um sonho, eu ainda no governo. Eu pretendia instalar um no interior e distribuir a energia produzida por várias usinas produtoras de energia de sorte a diminuir o custo. Seria um reator pequeno, quase experimental, e se desejasse aproveitar somente sua energia o custo seria várias vezes o da energia hidrelétrica ou mesmo o da energia de óleo diesel, produzida pela queima do óleo. Não lhe posso dizer por que. Quem sabe se porque nunca experimentamos as limitações de trabalho que a Europa conhece por herança, onde as pessoas são operários porque o pai, o avô, o bisavô o foram.

Ziraldo - É a clausura das classes

JÂNIO - Isso limita, como se fosse antolhos, a capacidade de pensar, de ver, e de julgar. O brasileiro é mais versátil.

Ziraldo - (para Iza) Vou fazer um tipo de pergunta que americano adora (para Jânio) O que teria aconteceido com o Brasil, a América Latina, e a Àfrica se o senho tivesse cumprido cinco anos de madato? Como seriam o seus cinco anos de Governo?

JÂNIO – ( pausa perplexa) Não sei.... É uma previsão que nem mesmo as Sibilas se atreveriam a fazer. Eu penso que tivesse contado com o apoio do Congresso, se o Congresso fosse eleito unto comigo, teria deixado uma bela lei de Reforma Agrária mais ou menos no termos da Venezuela. Ainda ontem eu conversava com o Consûl-Geral da Venezuela e eu disse a ele que essa reforma agrária estava caminhando muito bem. (pausa) Teria deixado uma lei de Remessas de Lucros, teria promovido uma grande reforma educacional, teria estendido o voto ao analfabeto.

Ziraldo – O senho acredita que o ensino tem que ser gratuito?

JÂNIO – Ah sim. Não há dúvida nenhuma que é dever fundamental do Estado proporcionar ensino gratuito a todos que o desejem. Isso não exclui o instituto privado.

Ziraldo – O crédito universitário não é uma violência alucinante contra a juventude?28

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JÂNIO – Não conheço a mecânica desse processo. (Ziraldo dá uma explicação detalhada sobre o sistema de funcionamento do crédito educativo, mas Jânio está empolgado com a exposição do seu programa de um suposto governo) Eu teria dado um grande impulso à tecnologia e a à pesquisa no Brasil. Teria apoiado muito a nossa agricultura e nossa pecuária, ou seja, a produção dos campos em geral. Creio que o grande destino do Brasil ainda está na sua produção agrícola e agro-pastoril. O grande destino! Isto não exclui um processo de industrialização prudente, seguro, e quo reclame a proteção do empresa nacional media e de proporções continentais. Em linhas gerais é disso. Teria feito o que o governo fez no caso do mar territorial. Isto já me ocorrera e cheguei a apoiar a medida-providência de publico, e que muitos entenderam também como imperialista.

Ziraldo - (não se contendo mais) – O governo é o rei da meia-medida, da solução meia-bomba tipo Funrural. Pode-se pensar em justiça social no Brasil com meias medidas dessa ordem?

JÂNIO - Não acredito que cheguemos a estabilizar nossa produção agro-pastoral, desenvolvendo-a de modo a atender as exigências do nosso povo e de exportação, sem a fixação do homem ao campo. A fixação do homem ao campo não se fara nunca através dos boias-frias, isto é de um regime que lembra de alguma forma a escravidão. Logo, a Reforma Agraria é uma necessidade numa nação onde a agricultura e a agropecuária continuam mais ou menos periféricas, explorando terras cansadas, terras em alguns casos sujeitas a fenômenos naturais gravíssimos, como a geada no Paraná, onde se plantaram milhões de cafeeiros. Não sei bem a que o governo anda fazendo nesse setor.

Ziraldo - Fazem INCRA mas ninguém tem coragem de pensar numa reforma agrária.

JÂNIO - A reforma agrária não é apenas uma imposição de nossos latifundiários ou das imensas áreas inexploradas e que ainda são patrimônio da União. É uma exigência também minifundio no Nordeste e ao longo do litoral, e tão antieconômico quanto o latifúndio ou as terras inexploradas. Não é uma necessidade é uma premência ineludível.

Ziraldo - Por que não se faz?

JÂNIO - Não precisa ser feita contra ninguém. Nenhum de nós quando pensamos

em reforma agrária imaginamos invadir a fazenda de quem quer que seja para reparti-la, desde que esteja sendo economicamente útil. O que sedeseja é emprestar utilidade à terra, fazendo com que ela produza no benefício do seu proprietário. Por isso nobenefício social. Não e preciso desapropriar, confiscar, que ninguém tema por sua propriedade, se lhe tiver emprestado sentido social, se a tornou rentável.

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Esta rentabilidade já um serviço prestado ao país, embora, evidentemente, seja prestado ao dono.

Iza - Num certo sentido, é isto que está sendo posto em prática, e só o trabalhador sai prejudicado. A política agrária do governo esta sendo no sentido de maiores estímulos aos proprietários. Não existe solução do governo para os boias-frias.

JÂNIO - O boia-fria e um substituto mais barato da mecanização. A fazenda moderna, se for realmente moderna, não comporta o boia-fria em termos econômicos. A mão-de-obra que a fazenda moderna e mecanizada reclama é muito menor do que a mão-de-obra da fazenda arcaica e obsoleta, ainda do senhor de escravos, a fazenda do produtor de café do Vale da Paraíba ou do senhor de engenho do Nordeste. Toda essa mão-de-obra disponível e crecente poderia ser fixada em áreas próprias para trabalhar nelas no seu interesse e no interesse coletivo.

Ziraldo - Meu fascínio pelas coisas novas me levou a ser seu eleitor.

Iza - Todo mundo aqui menos Ricky, que não tinha idade - foi seu eleitor.

Ziraldo - O senhor foi a primeirapessoa a ter consciência do lado estético do seu papel. Me lembro que o senhor preocupava-se com o selo e participei de uma comissão para redesenha-lo. Participei também duma Comissão Nacional da História em Quadrinhos Brasileira. E me lembro também de seu cuidado em usar-se como logotipo. O senhor tinha uma consciência de que precisava ter uma imagem fácil de guardar, daí o bigode, a sobrancelha grossa, a roupa indiana. Existem pessoas, como Sukarno, que são internacionalmente conhecidas pelo desenho.

JÂNIO - No caso do selo, sim. Eu estava procurando desenhar uma personalidade nova para o Brasil, de sorte a ser identificado como uma grande e Jovem nação emergente. Uma nação democrática, generosa, justa, estranha a blocos ou a composição do poder internacional.

Ziraldo - Correndo em faixa própria.

JÂNIO - Chamava-se a isso de Terceiro Mundo mas não pretendi necessariamente que o país se incorporasse a esse bloco. Os blocos da política internacional não me parecem ajustar-se a nossa grandeza. O caso do selo era uma

minucia, mas nosso selo é nosso embaixador por toda parte. Veja que beleza estes que acabo de receber de Portugal. (mostra para todos).

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Ziraldo -E quanto a sua imagem?

JÂNIO - Não. O slack me pareceu necessário. Como eu trabalhava muito, e o clima de Brasília era terrivelmentequente e seco, procurei alguma coisa mais cômoda. Copiei o uniforme dos ingleses na Índia pois era muito agradável. Enfrenta-se uma Jornada de dezou doze boras livre do colarinho, da gravata, e da casimira. que quase sempre era importada.

Iza - Lançou moda na Época.

JÂNIO - Eu não tinha essa preocupação.

Ziraldo - Falou-se muito no caso das Guianas, dizendo que o senhor queria chamar a atenção do do mundo para o Brasil. É verdade que o senhor pretendia interferir nas Guianas?

JÂNIO - Não estava pensando em chamar a atenção do mundo para o Brasil, pensava era no Brasil mesmo.Aquela época as Guianas eram apenas três colônias quase ultrajantes para a civilização latino-americana pois colocadas lá em cima nas bordas de nossas fronteiras, numa área de grande Interesse estratégico e econômico. As Guianas estão muito próximas do petróleo. Abandonadas pelas metrópoles, que apenas as exploravam, mostravam se sem destino. A Guiana Francesa iria produzir mais uma republiqueta. A Guiana Holandesa iria produzir uma segunda republiqueta. A Guiana Inglesa, então, estava nas mãosde um líder de extração Indiana que não inspirava confiança. No seu ódio aos Ingleses cometia excessos que no meu entender poderiam tornar-se perigosos. O que me passou pela cabeça foi negociar com as respectivas metrópoles as três Guianas para acabar por incorpora-las. Plácido de Castro fezmais ou menos o mesmo com o território do Acre que hoje é estado.

Ziraldo - Então o senhor mandou fazer mesmo aqueles estudos sobre a possibilidade de anexação das Guianas.

Iza - O senhor era um imperialista! Depois anexaria o Uruguai. a Bolívia, o Peru...?

JÂNIO - Apenas acuso os Portugueses de não terem atravessado os Andes e chegado ao Pacifico. Minha única queixa da colonização portuguesa é essa.

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Iza - É ou não é um imperialista?

JÂNIO - Sou imperialista ou sou realista? Quem sabe se as duas coisas se confundem. Nosso país tem destino, o que e preciso é afirma-lo. Uma dascondições para afirmar esse destino é uma política externa independente!'.Outra condição é procurar incorporarmos 115 milhões de habitantes numa sociedade solidária. Como decorrência deste destino acredito que nos tornemos em grande potência, ainda que muitos não se esforcem nesse sentido. Esta escrito no nosso destino e tudoque eu possa fazer para o apressamento da concepção desse destino o farei. Sempre tive os governos generosos. Nosso passado prova nossa generosidade no caso do Paraguai. O que eu pudesse fazer para que o Brasil se tornasse uma grande potência o fariasem hesitar. Se chamam a isso de imperialismo devo aceitar a incriminação. (acende um cigarro e nos fita tranquilo)

Eloá- Jânio, Dr. Natali está no telefone.

JÂNIO - Meu bem, você não quer dizer ao Natali que eu o chamo depois?

Eloá - Ele vai a um enterro às duas horas.

JÂNIO - (bem humorado)- E daí? Não é meu enterro. (Risos. Atende o telefone)

Jaguar (lendo) - Outra pergunta do Ivan Lessa: - "Presidente, a vida de cassado é boa?

JÂNIO - Fui cassado mas nunca me considerei cassado. Sempre mantive contactos políticos de toda espécie e natureza, cassado ou não. Isso até jáme custou quatro meses de confinamento em Corumbá. Só Hélio Fernandes e eu recebemos essa distinção. Tentei advogar, mas minha atividadepolítica havia afugentado meus clientes. Ficava muito difícil voltar ao Fórum porque eu Já não conhecia ninguém.

Ziraldo -... e todo mundo conhecia o senhor...

JÂNIO - ...e me sentia envelhecido. Eu vivia num ambiente de marcado constrangimento. Passei a escrever e ultimamente a pintar. Dia 15 de junho

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Lanço o meu Dicionário Conciso da Língua Portuguesa. (apanha alguns volumes na estante para todos folhearem).

Jaguar - (avaliando seu conteúdo pelo peso) E um dicionário bem grosso.

JÂNIO - Costumo dizer que tem duas finalidades: uma Interna, para quem quer estudar, outra externa, para quem o leve na cabeça.

Ricky - Vou passar a andar armado com um dicionário.

JÂNIO - Pinto, escrevo, e me sinto inteiramente realizado. Minha Gramática, por exemplo, vendeu cerca de 500 mil coleções. Acho que só a Bíbliavendeu mais.

Jaguar - Qual foi a tiragem desse dicionário?

JÂNIO - Não sei, tenho a Impressão de que se trata de uma tiragem experimental. Ha correções a serem feitas.Brígido Tinoco, ex-Ministro da Educação e Antonio Soares Barbosa, a maior autoridade da lingua que conheço, fazem a apresentação do dicionário.

Iza - O senhor é pobre, rico ou remediado?

JÂNIO - Remediado, e bem remediado. O Imposto de Renda que o diga. Declaro tudo com a maior exacção.

Ziraldo - Quantas propriedades o senhor tem?

JÂNIO- Esta casa.

Jaguar - Mas é uma casa que e casa de campo ao mesmo tempo.

JÂNIO - E tenho uma meia dúzia de casas para renda. Não tenho muitaspreocupações com o futuro. (sorri)Sem ter dado o golpe o Baú, casei-me com a filha única de pais rico. A menos que a natureza me defraude, chamando-me antes, posso ficar sentado à espera de alguma coisa.

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Iza – Considerei aquela frase que o senhor disse no Estadão como mais bem-humorada da semana. “Lacerda, Jango, Juscelino. Todos estão indo e eu ficando...já estou até sentindo saudades do Ademar Barros”. Aliás o Prestes – que há 20 anos atrás o senhor chamou de defunto – também continua vido. O Senhor está mesmo com saudade de Ademar Barros? (Au! Au!Au!)

JÂNIO – Quinta-feira!

Iza –Falou em Ademar Barros. Quinta-feira tornou a latir.

JÂNIO - Esta casa está transformada em canil. Você estava perguntando se me sinto muito só?

Iza – Não, fiz três observações. 1º) achei o senhor muito bem humorado. Mas dizem que o senhor tem momentos de depressão muito grandes.

Ziraldo – É Aquário né?

Iza – 2º) Os políticos do seu tempo estão morrendo e o senhor continua...

JÂNIO - Sim, me sinto um pouco só. Essa solidão decorre do fato de ver desaparecerem á esquerda e à direita os homens que representaram muito a minha vida, ainda que eu não tenha representado muito na vida deles. Honestamente, não identifico nenhum inimigo, mesmo dentre os mortos. Se Costa e Silva me suspendeu os direitos políticos já deve ter prestado cotas a alguém bem mais poderoso do que eu. Minhas discrepâncias com Carlos? Bem já foram acertadas também. Nunca detestei o Carlos, apenas não quis á distância. Perdi Oscar Pedroso Horta, perdi o Quintanilha, perdi Milton Campos, Queiroz Filho. Fernando Ferrari...Fulano e Beltrano me fazem falta. (cortando rapidamente para não parecer nostálgico) Acho que respondi a sua pergunta.

Iza - Quando o senhor faz assim com o queixo para (rente e com esse sotaque me lembrei de um fato: o senhor foi o último presidente a ser imitado natelevisão.

Ziraldo - Como a que a censura funcionou no seu governo?

JÂNIO - Sou inteiramente a favor da liberdade de imprensa, mas isso não exclui a responsabilidade. Era preciso encontrar um Justo termo. Talvez eupedisse a sindicatos de jornalistas órgão assim, para

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elaborar um texto legal que permitisse a responsabilização.O que não é possível é a imprensa marrom, a imprensa que calunia ou mente, determinada imprensa que sóexplora escândalos, crimes, sem nenhuma função educativa num pais como o nosso. Acho que uma Lei deImprensa prudente mas de responsabilização rápida é uma necessidade nacional

Ziraldo - Nem Jefferson nem Lincoln acreditavam nisso.

JÂNIO - Pois sim, mas hoje não há justiça mais rápida para responsabilizar quem difama pelo rádio ou pela televisão do que nos Estados Unidos.

Ziraldo - Mas e pelo Código Penal.

JÂNIO - Qual e a diferença? Faça-se pelo Código Penal.

Iza – Getúlio ria muito das piadas que faziam a seu respeito usando o humor como uma forma de fazer politicas. Mas eu Insisto: o senhor viu asimitações que faziam na televisão?

JÂNIO - Vi com frequência.

Ziraldo - Não se chateava?

JANIO - Não, por que? Rir é gostoso.

Jaguar -(A queima-roupa - Quem é o próximo presidente do Brasil?

JÂNIO -(imitando uma cartomante) Bem, minha bola de cristal anda embaçada...

Jaguar -(para os outros) - Não custava nada perguntar.

Iza - O senhor teve contato depois com o Jango?

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JÂNIO - Não. Recebi mais de uma carta do ex-presidente João Goulart vinda de Portugal, uma inclusive pedindo que eu Ihe mandasse uma coleção da Gramática para o filho João Vicente. Ele se preocupava muito com o fato dos filhos já estarem com o linguajar acastelhanado. Mandei a coleção com uma dedicatória. Jango morreu com boas relações comigo.

Ziraldo - Ele foi "o grande presidente que esse pais teve"?

JÂNIO - Eu discordava muito de Juscelino, tendo em vista o processo pelo qual governava, pois para permanecer em Brasília fez concessões detoda espécie. Não sou capaz dessas coisas, não chego a essas concessões. Em outras palavras: não devo ser muito bom politico porque não consigovergar. Prefiro estalar e quebrar a vergar.

Jaguar - Questão de estilo.

Ziraldo - Ou de estalo.

JÂNIO - Discordei também da velocidade que imprimiu as obras de Brasília e do gravame que impôs ao povo por causa dessas obras. Eu teria tocado Brasília em outro ritmo. Quando andei pela Austrália fui visitar Camberra. Se não me engano o Príncipe George, que depois seria George VI, inaugurouCamberra em 1922. Visitei essa cidade em 1962. Quarenta anos depois boa parte dos Ministérios ainda era constituída de casas de madeira. O governoaustraliano projetara Camberra como obra de varias gerações e vários governos.

Iza - Aqui também o senhor faria assim?

JÂNIO - Faria com vagar.

Iza - Se o senhor pusesse em prática tudo aquilo que disse aqui não seria deposto como o Jango?

JÂNIO - Não sei, essa é uma previsão que deixo por sua conta.

Eloá - Escuta, não dá pra terminar depois do almoço? Senão fico sem empregada.

NA VARANDA AGUARDANDO O ALMOÇO36

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(Dona Eloá gosta de plantas. Dezenas de vasos enfeitam a varanda, junto à piscina. Aperitivo para todos, à espe-ra do almoço).

Ziraldo - O senhor viu. né Presidente, não me deixaram fazer nenhuma pergunta! (fazendo género de vítima) Eu tinha perguntas brilhantíssimas para fazer mas eles ficaram me reprimindo. (para Iza) É por isso que o nível das entrevistas tem caído muito.

Iza (explicando) - O problema é que a gente passa o tempo todo das entrevistas apavorados com medo do Ziral-do fazer uma das tais "perguntas impertinentes" que diz que são pertinentes.

Ricky - Quando ele começa a fazer um preâmbulo muito grande é porque vai fazer uma pergunta indiscreta e fora de hora.

Jaguar - (serve-se de mais um copo de uísque) - Sempre a mesma discussão.,

JÂNIO (consolando Ziraldo) - O jeito é você voltar outro dia para termos uma entrevista exclusiva.

Ziraldo - Tem problema não. Presidente... (abraçando Jânio e posando para uma fotografia) Nós os grandes homens sempre fomos incompreendidos.Quinta-Feira, Dulcinéia e Vassoura - Au! Au! Au!

Ziraldo - Eu queria ter insistido no problema da Reforma Agrária que considero fundamental.

JÂNIO - Quando eu era presidente tive a idéia do crédito agrícola para o posseiro, o sitiante, o pequeno agricultor. Falei com o João Batista Leopoldo Figueiredo: "Como o pequeno produtor não chega ao Banco do Brasil que tal fazermos uma experiência? Vamos por dois estados bem pobres, como o Maranhão e o Piauí. Mande o Banco do Brasil comprar várias peruas e organizar alguns funcionários. A perua caminha ao longo das estradas, para e pergunta: "Essas vaquinhas são suas? Esses porquinhos são seus? E essas cabras?" "São, sim senhor." "Se você tivesse mais vacas, porcos e cabras não acharia melhor?" "E o dinheiro?" "O dinheiro nós damos. Eu sou do Banco do Brasil." "Mas eu não sei assinar." "Põe o dedão aqui," "Olha, você tem 500 contos pra comprar mais vaquinhas. porquinhos e cabrinhas." Fizemos essa experiência e nenhum desses empréstimos deixou de ser pago. Nenhum! O pobre paga seus empréstimos.

(pausa para tirar fotos junto à piscina).

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JÂNIO - Um dia o João chegou para mim: "Nós podemos perder dinheiro com isso! O Banco do Brasil está acostumado a trabalhar com outras taxas e outras condições". "João, no momento em que você me disser que o Banco do Brasil perdeu dinheiro vai me fazer muito feliz. O Banco do Brasil existe para correr este risco. O Banco do Brasil não é um banco privado."

Jaguar - A filosofia do Banco do Brasil é concorrer com os bancos privados.

Ziraldo - O governo agora acha que ele e uma empresa.

Eloá (da sala) Jânio está na mesa

Iza - Só moram vocês dois aqui? E a Dirce Maria?

JÂNIO - Dirce Maria hoje está casada com um americano. O primeiro casamento acabou em desquite. Tem cinco filhos: três do primeiro e dois desse matrimónio.

Iza - Mas o senhor passa as férias com ela?

JÂNIO - Ah, sim, todos os anos, em que pese minhas divergências com meu genro, (pausa). Sim, Dirce Maria teve o mau gosto de se casar com um republicano (risos). Mais que isso: um oficial americano que serviu no Vietnam. Vocês hão de compreender que não posso ter boas relações com quem é a favor da guerra e de que se jogue napalm nos vietnamitas. Não, não há diálogo. Conversamos o estritamente necessário. Evito até me encontrar com ele, naquela casa. Mas Dirce Maria é feliz, ele é bom para ela. O que é que se pode fazer?

Eloá - (da sala) Jânio, está na mesa.

ALMOÇO MENU

Picadinho à moda paulista.Vagem na manteiga, enfeitada com puré de batatas.Bolinhos de camarão.Arroz soltinho.Feijão bem temperadoVinho chileno: Concha y Toro (1971)Sobremesa: ameixas em calda.Frutas (tangerina, caqui, maçãs etc.)

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Ziraldo (beliscando um pouco de cada prato)

JÂNIO - Minha cozinheira é singular: o nome dela é Eva e o do marido dela é Adão. (risos) De maneira que tenho aqui o Paraíso Terrestre.

Jaguar - Para nós que estamos acostumados com os edifícios dos gomesalmeidas aqui realmente é um paraíso. Tem alguma lei que proíbe construir edifícios aqui?

JÂNIO - Havia, agora começo a me ver cercado por prédios de muitos andares. Não demorará muito para essa casa ser uma ilhota sem nenhuma privacidade. Terei os vizinhos pendurados em vários andares.

Ziraldo (servindo o prato) - Arroz soltinho assim só lá em Minas Gerais! (o assunto volta a ser novamente Carlos Lacerda)

Iza - Teve uma hora em que havia pouquíssimas pessoas no velório. Ele não foi realmente um homem que em vida despertasse muitos amores.

Eloá - Mas era um bom administrador. A cidade do Rio de Janeiro ficou bonita com ele.

Jaguar - Bom, mas fez uma coisa terrível que acabou com a Zona Sul: liberou o gabarito em Ipanema de quatro andares para onze. Aí tava liberado mesmo e passaram a fazer edifícios de 30. Transformou o Rio numa cidade desumana, pelo menos na área que caiu sob a sanha das imobiliárias.

Eloá - Aqui também está começando a ficar assim.

Ziraldo - Não existe uma maneira de evitar isso? Eles alegam que a construção civil absorve a maior mão-de-obra do país e em nome disso estão desgraçando as cidades.

Jaguar (derramando um vinho chileno) - O Chile ainda tem uma coisa boa! (barulho intenso de pratos. copo

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Eloá - Não vou contar senão vão condizer que estou louca, (ante a insistência dos entrevistadores narra o acontecido) Jânio ainda era governador e estávamos indo de lancha para a Ilha bela. Era uma noite de tempestade, o mar estava todo encarpelado, e a lancha não poderia continuar. Numa certa altura, perto do Guarujá, nós voltamos. Aí vi uma coisa... não era redonda nem oval. não tinha uma forma definida.

JÂNIO - Parecia um prato?

Eloá - Não, era mais redondo em cima do que um prato. Vinha do Cubatão, da Refinaria de Passos, em direção à praia. Era uma coisa iluminada por de dentro.

Ricky - Alguém mais viu?

Eloá - Minha filha. Quando chamei o Jânio já não dava mais tempo, foi uma coisa ultra-rápida. No dia seguinte, em Ilha bela, ouvimos que o pai de um amigo nosso, que era juiz em Santos, e estava passeando na praia de São Sebastião - na direção pra onde este suposto disco deve ter ido - virá o disco-voador descer, foi lá e conversou com os tripulantes.

JÂNIO - Depois dessa história nunca mais foi promovido, (risos).

Eloá - O que ele fez eu não sei, mas naquela noite eu vi. Não falei nada porque sabe como é, muita gente não acredita.

Iza - Imaginem a manchete: MULHER DE GOVERNADOR VÊ DISCO VOADOR!

JÂNIO - Esse juiz teria até viajado no disco.

Eloá - Com a promessa de que volta- para levá-lo num outro planeta se não divulgasse o que tinha acontecido.

JÂNIO - Existe uns livros americanos sobre disco-voadores que são muito curiosos, com fotografias autênticas.

Ziraldo - É evidente que a vida fica I muito melhor quando você acredita em disco-voador!

Eloá - Vocês não querem mais um pouquinho? (segundo Ricky essa foi a melhor pergunta da entrevista. Todos responderam afirmativamente)

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Ziraldo (raspando o fundo da travessa) - Olhai, D. Eloá, não vai sobrar nada!JÂNIO (provocando Ziraldo) - Ele deve estar descontando porque não lhe deixaram fazer perguntas.

Iza - Ele é um entrevistador que não deixa ninguém falar. O senhor não percebeu isso?

JÂNIO - Realmente, percebi que é loquaz, (provocando D. Eloá) Se eu afirmasse isso em se tratando das mulheres seria uma redundância.

Eloá - Não sei porque. Está provado que os homens falam muito mais do que as mulheres. Conseguem atraves-sar a manhã inteira, a tarde inteira, a noite inteira e a madrugada inteira só conversando. As mulheres não têm assunto pra isso. (recebe o apoio da Iza)

JÂNIO - Porque nós falamos de coisas muito sérias. (os homens aplaudem) Sobretudo quando falamos das mulheres, (risos)

Ziraldo (que antes de almoçar havia observado atentamente alguns quadros na sala) - Como foi que o senhor resolveu ser pintor?

JÂNIO - Tenho que dar meus pulos, né?

Jaguar - Ele tem até marchand, Ziraldo. Vendeu mais de cem telas!

Ziraldo - São muito caras?

JÂNIO - 10, 12, 14... até 20 mil. E agora acabo de receber uma encomenda de escrever uma peça de teatro que devo entregar até dezembro. Não escolhi o título ainda.

Ziraldo - Comédia ou drama?

JÂNIO - Uma lição de costumes.

Jaguar - Encomendada por quem?

JÂNIO - Daqui a pouco vocês vão querer saber até quanto vou ganhar.

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Ziraldo - Lá dentro ele disse que queria ser mulher só pra poder casar consigo mesmo. A senhora acha que ele é o melhor marido do mundo?

Eloá - Não sei se é o melhor do mundo, mas é o meu marido, uma pessoa muito importante pra mim.

JÂNIO - Em outras palavras: sou insubstituível.

Eloá - Olha, a essa altura da vida é insubstituível mesmo.

Ziraldo - Ele faz muito charme, né?

Eloá - Aí eu disse a ele que gostaria de ser sua vizinha para ver como estaria indo esse casamento consigo mes-mo. (risos. Para Jânio) Olha, por falar nisso, minha mesada está precisando de ser reajustada porque não está dando.

JÂNIO (faz gesto de quem lava as mãos) - Não sou mais responsável pelos problemas desse país.

Eloá (para Iza) - Dizem que os preços estacionaram, mas hoje fui ao supermercado e vi que aumentou tudo.

Iza - Quando seu marido era Presidente a senhora também fazia o supermercado?

Eloá (ri) - Aí não.

Iza - Os preços também subiam naquela época?

Eloá - Acho que o custo de vida nunca subiu tanto como agora.

Ziraldo - Presidente, o senhor ainda tem problemas com a sua privacidade?

JÂNIO - Não. É claro que quando vamos a um restaurante algumas pessoas nos reconhecem.

Jaguar - O senhor sai muito para jantar?

JÂNIO - Não, de vez em quando. Saio mais para tomar chopp e comer pizza.

Jaguar - Aqui em São Paulo é diferente: tem pizza na pedra! Comer pizza no Rio é a mesma coisa que mastigar chiclete.

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(a essa altura todas as travessas foram metodicamente esvaziadas pela equipe do PASQUIM. D. Eloá toca uma campainha e pede ã empregada que tire a mesa.)

Iza (romântica) - Vocês dois me parecem ainda apaixonados e...

Ziraldo (por falar em romantismo) - Vocês vêem televisão?

JÂNIO - Vemos muito.

Ziraldo - Estão acompanhando “Duas Vidas”?

JÂNIO - Não, não vemos novelas.

Jaguar - E a tão apregoada "violência na televisão"?

JÂNIO - Acho que a violência na televisão até prepara a juventude para o mundo em que vivemos.

Eloá - A violência não é só na televisão, mas em todo lugar.

Jaguar (de repente) - Ô Iza, você que é mulher, esqueceu de perguntar o que ele acha do feminismo!

Iza - Já sei a resposta dele. (Jânio concorda com a cabeça) Tá vendo? É contra.

Jaguar - E a Betty Friedan, hein?

JÂNIO - Feia daquele jeito ela não tinha outro remédio.

Jaguar - Quê isso, é uma mulher maravilhosa, tomamos um litro de batida de limão juntos no Antonio's.

Ziraldo (rindo) - Mas aposto que essa você não cantou.

Jaguar (ergue o copo e afirma dramaticamente) - A beleza é interior. (Iza o apoia com entusiasmo). Depois de meio litro de batida de limão... (Iza retira o apoio)

Eloá - Feminismo é uma tolice.

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Iza - Feminismo não é muita tolice que estão divulgando por aí. O feminismo que considero válido está sendo posto em prática aqui, na periferia de São Paulo, onde a mulher se reúne para lutar por seus direitos, reivindicar melhoramentos, creches, esgotos etc. e que...

JÂNIO - Ah, você está falando da conscientização da mulher cívica, como parte da sociedade. Disso, nenhum de nós discorda.

. . ,

Iza - Estou falando da participação política da mulher que pode ser feita através de atos políticos ou reinvindicações específicas. As mulheres da queima de soutiens ou da greve de sexo não representam o verdadeiro feminismo que cresce aqui ou em qualquer parte do mundo.

Ziraldo - Me lembrei de uma historia engraçada. O senhor saiu de Inhapim e foi de carro até Caratinga. Chegando lá seu assessor local lhe informou quem eram as personalidades da cidade.

JÂNIO - Havia um fichário.

Ziraldo - Seu Rocha, Dona Isabel o problema da xistossomose, os problemas do café... ele deu todo o relatório para o senhor. Seu cabo eleitoral lá era o Zito Chagas, um dos chefes políticos que sempre estavam buscando votos. Altair Chagas, o filho dele, era deputado federal pela UDN. Então o senhor fez um discurso: "Quero cumprimentar Caratinga... e o seu Rocha... e a Dona Isabel, velha professora..." O assessor' tava doido pro senhor falar do Zito Chagas e ficava lá atrás: "Fale do Chagas... Fale do Chagas...' Aí o senhor falou: "... porque essa região aqui tem o problema da xistossomose, da doença de Chagas..." (risos gerais) Jaguar - O senhor conhece todas as bibocas desse Brasil, né?

JÂNIO - Uma vez um chefe politico da Paraíba ofereceu um banquete para mim e para o Juarez Távora. Fomos lá. A casa dele era de esquina. Quando olhei para o portão tinha algumas centenas de pessoas olhando com aqueles olhos de Portinari para o nosso churrasco que ia passando. Como é que alguém come numa hora dessas.

Jaguar - Esse caso é de cortar o coração (voltando de uma outra sala, onde fora telefonar) - Olha, disquei um número e saiu outro completamente diferente. Eles não estão incomodando o senhor? , .

JÂNIO - E possível.

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Jaguar - Isso acontece nas casas das melhores famílias.

.

JÂNIO- A censura remonta desde os tempos do Paraíso. Toda ver que Adão e Eva se encontravam ouviam uma voz poderosa dizendo: "Não comam do fruto da Árvore Proibida". A censura existiu em todos os governos.

Iza - Mas o senhor viu o Nixon, né.

JÂNIO - O que aconteceu a Nixon foi um acidente de trabalho do qual não foi capaz de sair-se airosamente. Deveria ter dito ao povo americano: "Mandei fazer sim. E quem não o faz ou não o fez?" Pronto, encerrava-se o Watergate. Mas foi negar uma bobice...

Iza - O senhor mandou espionar o partido adversário?

JÂNIO (rindo) - Meu partido adversário não merecia ser espionado.

Ziraldo - Escuta, falamos pouco de seu tempo de governador. O senhor foi eleito em 54, com apenas 37 anos de idade. O que é que os líderes políticos antigos pensavam daquele menino?

JÂNIO - Em primeiro lugar, naquela : época eu não era mais um menino. Em segundo lugar, os lideres políticos não estavam tão velhinhos como você pretende descrevê-los. Tinham que ser realistas: eu era uma expressão popular que não era subversiva. Em terceiro lugar, a maioria deles desejava um governo sério e justo e encontrava isso no meu modo de governar.

Jaguar - Não havia um certo paternalismo?

JÂNIO - Não. Vocês conhecem o Cyd Franco, vereador e deputado do Partido Socialista. Até hoje ninguém sabe porque foi cassado pela Revolução.

Jaguar - Pra eles socialista e comunista é tudo a mesma coisa.

JÂNIO - E Cyd era espiritualista, uma das melhores figuras do espiritismo. O Presidente da Câmara de Vereadores era um homem de bem, que depois inclusive seria meu Secretário de Justiça, mas que atendeu a pressões políticas e tentou provar que "prova de títulos" e "concurso público" eram duas

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coisas semelhantes. Se assim fosse bastaria uma prova de títulos para constituir o funcionalismo. Pois Cyd e eu levantamos uma tempestade terrível. E éramos apenas dois jovens vereadores.

Jaguar - O senhor tem alguma religião?

JÂNIO - Sou católico apostólico romano. embora muito por hereditariedade. Não sou praticante como deveria ser. Eloá me puxa a orelha por entender que eu deveria aproximar-me mais da igreja. A Igreja Católica está vivendo um momento de perplexidade, e se a própria Igreja está perplexa, quanto mais eu que sou um fiel. Mas é provável que eu regresse a ela porque estou muito impressionado com o Cardeal de primeira ordem. Um homem que acaba de receber uma distinção nos Estados Unidos como defensor dos direitos humanos.

Ziraldo - O senhor viu a notícia no Estadão de hoje sobre os padres que foram presos em Recife?

JÂNIO - Infelizmente sei o que anda acontecendo, (para preocupado e faz um pedido). Por favor, se forem reproduzir meu pensamento que o façam sem tirar ou alterar nada. Bom, não conheço o Presidente Geisel intimamente. mas sei que se um fato dessa natureza chegasse ao seu conhecimento pessoal, faria com que ficasse bastante nervoso. Em primeiro lugar porque não é católico mas sente as responsabilidades e as dificuldades de ser católico. Em segundo lugar, porque não tolerará nunca as perseguições religiosas.

Ziraldo - Há hipótese de que essas informações não estejam chegando a ele?

JÂNIO - Há.

Jaguar - Houve isso no seu governo?

JÂNIO - Não houve por temperamento. Todos os dias eu tinha recortes de todos os jornais do país sobre minha mesa. Começava às cinco horas da manhã e ia arrancando as páginas do meu interesse, sobre violência, os excessos as desonestidades, as acusações assinadas, punha aquilo de lado para transformar em memorandos. E com prazo certo! Não sei como o Presidente trabalha. O que posso assegurar é que parece estar no espírito de todos que o máximo que se possa desejar nesse país é chegar à Presidência da República, mas juro que é das piores coisas que se possa desejar. A vida do Presidente responsável e consciente não é vida!

Eloá - Também acho.

Jaguar - Não existem maiores autoridades pra dizer isso.47

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Juscelino era um político habilíssimo, extremamente dúctil. Fixou algumas diretrizes - a dominante era construir Brasília - e pronto. A serviço dessas diretrizes era capaz de compactuar com tudo.

Jaguar-Topava qualquer negócio.

JÂNIO - Minha filosofia e estilo não era essa. Não é que eu seja melhor ou pior, simplesmente não negocio nem transijo. Já houve um presidente deposto porque não transigiu, Washington Luís.

Eloá - Era um homem bonito fisicamente.

JÂNIO - Jango era um homem acomodado, com uma grande medida de indiferença por tudo que o cercava, porque não tinha nenhuma objetividade. Castelo Branco foi para o governo com o propósito de reestabelecer a ordem no Brasil. Não o conseguiu porque seu governo foi muito perturbado. General Costa e Silva, sem embargo de suas diferenças pessoais comigo, começava a tomar o caminho de uma liberalização crescente em relação ao regime que herdara. Aí adoeceu. Esta moléstia teve atribuições políticas muito graves. Veio o governo Médici e agora o governo Geisel. Todos nós nos perguntamos: "Até quando"?

Jaguar (solenemente) - Quosque tandem?

JÂNIO - É uma transferência de poder pequena demais para a grandeza I nacional. Não se pode deixar de procurar o povo! Quem vai procurar o povo? IComo se procurará o povo?

Ziraldo - Se continuar assim não vai demorar muito.

JÂNIO - O que é que o governo pode fazer? Não é nenhum mágico. Começaram atirando dois ou três ovos para o ar e conseguiram fazer malabarismos. Agora estão atirando uma dúzia de ovos para o ar e o espetáculo continua. Mas que vai acabar em omelete, isso vai! (risos) Não há nenhuma dúvida. E como sou o responsável por tudo que aconteceu nesse país desde que Pedro Álvares Cabral aportou em Porto Seguro vão acabar vindo me buscar. Me confinam de novo, me exilam, me prendem, confiscam meus bens. Quem sabe? Como não quero essa brincadeira, nem a quero para meus vizinhos, nem para um operário de Vila Maria, estou profundamente inquieto. Inquieto para servir mas sem nenhuma pretensão. Como disse o Zé Aparecido: minha biografia já está escrita. Não adianta muitos quererem conspurcá-la. Podem votlar-se contra mim pela televisão, pelo rádio ou peio poder económico, não me importa. Tudo

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isso passa. O que não vão passar são os ideais que me inspiraram. Estão documentados inclusive na vida de muitos dos supostos homens da Revolução, gigantes com pés de barro.

Jaguar - Devem estar tremendo nas bases.

JÂNIO - Depois de me difamarem à larga após minha renúncia, voltei a São Paulo, candidatei-me a governador, e tive 1.100.000 votos. Dr. Ademar de Barros teve apenas 100.000 votos a mais, e eu ainda enfrentava Carvalho Pinto, o governador que eu criei. Carvalho Pinto me arrebanhou uns 600.000 votos. Ganhei a eleição na capital e em todos os grandes centros politizados, mas perdi nas pequeninas cidades. 1.100.000 votos! Se essa gente me restitui à vida pública, convido quem quer que seja para concorrer contra mim.

Jaguar - É, o chofer do táxi em que eu vim te mandou um abraço.

JÂNIO - Logo após a renúncia o povo estava abafado sob aquele impacto tremendo.

Jaguar - Sentiam-se órfãos.

JÂNIO - E mais: para determinada imprensa eu andava permanentemente bêbado. Noticiava-se que eu estava me desquitando de Eloá'.

Iza - David Nasser fez uma campanha incrível contra o senhor.

JÂNIO - Hoje restabeleci relações com quase todos os jornalistas de maior responsabilidade, mas o que sofri naquela época não foi fácil. Desejavam me erradicar, rasgando aquela página da minha eleição. Tentaram me discriminar mas acabaram me restituindo ao povo. Que mais podem desejar? Não tive enfartes e vou procurar não tê-los.

Jaguar - O senhor está bem de saúde?

JÂNIO - Excelentemente. Não tenho nenhum motivo para morrer nos próximos anos. (risos) Que aqueles que esperam essa morte tomem cuidado para não seguir antes.Dona Eloá nunca foi de dar entrevistas. Muito pelo contrário. Mas, depois do almoço, sentou-se conoscona varanda. Conversa vai, conversa vem (principalmente com Iza Freaza) acabou dando um entrevista exclusivo para o PASQUIM.

ELOÁ (chegando na varanda, muito elegante) — Olha Jânio eu vou pro médico.49

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JÂNIO (brincando) — E a que hora pretende voltar?

ELOÁ - Ah, meia noite é cedo (senta-se, começa a mexer num crochet e explica) E para eu me distrair no médico. Papai e mamãe também vão se consultar. Vai demorar

Iza — É engraçado: nunca ninguém entrevistou Dna. Eloá. Nem quando era primeira dama.

ELOÁ — Ah, para quê.

Iza — Ora, para saber o que a senhora pensa de...

ELOÁ — Não, tudo o que eu tinha a dizer Jânio já disse.

Iza - Como foi que a senhora conheceu o Jânio?

ELOÁ (pausa de desenrolando a linha do crochet) - Eu estava com crupe mas não queria ficar internada. Minha família procurou um médico que me tratasse em minha casa mesmo. Esse médico era o Dr. Gabriel Quadros. Depois, um dia, fomos convidados para tomar um lanche na sua casa. Mas nesse dia não conversei com o Jânio, acho que nem o vi.— Papai tinha uma casa no Guarujá e o pai dele também. Passados 20 dias o pai dele telefona convidando-nos todos para irmos a Guarujá. Papai não gostou muito da idéia mas acabou aceitando. E o pai dele ainda nos pediu um favor: "Passe lá em casa e apanhe o Jânio que ficou fazendo exame na faculdade". Foi aí que fiquei sabendo quem ele era.

Iza - Gostou logo?

ELOÁ — Não, foi um negócio que veio devagarinho. Ele tinha uma prosa interessante que os rapazes àquela altura não tinham. Fazendo o confronto...

JÂNIO — Está querendo dizer que sou bom de bico, né?

ELOÁ — Hoje em dia ele não é mais porque eu já o conheço.

Ziraldo — Namoraram muito tempo?

ELOÁ — Quase três anos. Eu ainda estava no Sion e ele fazia faculdade. Passávamos todas férias no Guarujá. Foi indo, foi indo, ficamos noivos. Me lembro bem que

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ele foi me pedir em casamento à moda antiga. Bateu lá em casa no domingo todo formalizado, até de guarda- chuva. Primeiro telefonou dizendo que precisava falar com Papai. Papai veio me perguntar: "O que está havendo"? "Acho que o Jânio vai me pedir em casamento." "Ah, é muito cedo pra você casar, tem que ficar noiva pelo menos uns três anos. "Papai falou com ele: "Só daqui a três anos". Não sei porque "três anos".

Jaguar - Devia estar com esperanças de que ele desistisse.

ELOÁ - Quando fez dez meses não aguentei e me casei. Não dava pra ser noiva dele e filha da minha mãe ao mesmo tempo. Àquela altura noivo não podia sair com a noiva. Se eu saísse com minha mãe ele não gostava.

JÂNIO — Consultávamos os almanaques para saber quando haveria eclipses da Lua. (risos).

ELOÁ - Fomos noivos dez meses e nunca saí sozinha com ele. Me casei com 18 anos.

Iza — Qual foi a fase mais difícil de seus 35 anos de casados?

ELOÁ — Não senti nenhuma fase da minha vida que fosse mais difícil. Sempre sentimos essas coisas depois, na hora estamos muito ocupados.

Iza — O que é que a senhora sentiu quando ele renunciou?

ELOÁ — Nada, achei que teve seus motivos e que sabia o que estava fazendo.

Jaguar — No fundo a senhora deve ter ficado aliviada de se livrar daquele cargo pesado.

Iza — As pessoas diziam que a senhora foi a Primeira Dama que menos se sentiu à vontade...

ELOÁ — Isso não é exato. Fui para Brasília numa altura muito difícil de minha vida mas procurei me ambientar e ajudar a todo mundo. Porque todo mundo detestava Brasília, reuniam-se para falar mal da cidade. Apesar de também não gostar de lá eu fazia o contrário: convidava todos para conhecer Brasília.

JÂNIO (rindo) — A fase mais difícil de nossa vida foi quando ela deu à luz porque eu é que senti as dores.

ELOÁ — (passando pito) — Faz favor Jânio, estão gravando aqui e você fica falando isso...

Iza - Como é o temperamento do Jânio?

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ELOÁ — Bravo. É muito temperamental, uma pessoa muito boa mas explosiva. O que sente ele fala e não guarda pra depois, mas tem uma grande qualidade: volta atrás. Quando sabe que estava errado pede desculpas.

Iza — A senhora já sabe como controlá-lo, né?

ELOÁ - Sim, sei a hora de falar.

Iza — Ele sempre tem esse senso de humor?

ELOÁ — Tem, mas quando é pra ser bravo não existe ninguém igual.

Iza — E quando é que ele fica bravo?

ELOÁ — Sempre. Ele se contraria com tudo, com a situação, com o pessoal que fala...(entrevista interrompida pela entrada ruidosa de Quinta-feira, Dulcinéia e Vassoura. Iza fica novamente encurralada a pedir socorro.)

Ziraldo - Qual é o seu signo?

ELOÁ - Gémeos. 13 de junho, dia de Santo Antônio. (Dona Eloá e Jânio acompanham os visitantes até a porta. Todos, de passagem, examinam os quadros de Jânio. Dna. Eloá aponta um deles, representando uma menina de grandes olhos negros e tristes, vestida de azul; "Aquele é o que mais gosto. Jânio me deu de presente, fez para mim". Numa vitrine, as comendas recebidas por Jânio. Numa outra, lembranças das muitas viagens. Jânio vai até o portão, no mesmo instante em que chegam os pais de Dna. Eloá, para buscá-la).

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