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Javier Moro Isabel Zendal A paixão de salvar o mundo António Carlos Carvalho Tradução Isabel Zendal_3as.indd 5 23/03/17 11:16

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Javier Moro

Isabel ZendalA paixão de salvar o mundo

António Carlos CarvalhoTradução

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Para Carlos, Carolina, Candela e Violeta.Para Rina Anoussi, Francisco Gómez Bellard, in memoriam.

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As epidemias tiveram mais influência que os governos na sequência da nossa História.

George Bernard Shaw

Não existe herói solitário: os actos sublimes são sempre determinados pelo entusiasmo de muitos.

Eliphas Lévi

A misericórdia brilha mais do que a justiça.

Miguel de Cervantes, Don Quixote

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Capítulo 1

A jovem abriu passagem aos empurrões entre os animais comprimi‑dos na entrada da sua casa sempre imersa na penumbra. Além do fedor habitual a urina, a suor animal e a palha molhada, uma exalação de mandrágora deixou ‑a de sobreaviso. O médico?, perguntou ‑se espantada. Só se ouvia a respiração da vaca e o piar dos pintos que bicavam furiosa‑mente o solo. Nenhuma voz, nenhum som humano, nenhum latido saía do interior da casa em geral atestada de animais e de gente. Que estranho, pensou Isabel. Sabia que a mãe estava lá dentro, porque se encontrava acamada. Por isso pousou num desvão o punhado de couves que o pai a encarregara de apanhar, tirou os tamancos sujos de lama e empurrou o portão. Cheirava a fumo, a humidade e a bafio.

Semicerrou os olhos, que demoraram uns segundos a adaptar ‑se à escuridão. O raio de luz que se infiltrava através de uma greta numa das paredes fê ‑la descobrir, para sua surpresa, que toda a família se encon‑trava presente nessa única divisão que fazia as vezes de estábulo, cozinha, pocilga, dormitório, sala e até de enfermaria. No catre de madeira cheio de palha coberta com um lençol de estopa, onde costumavam dormir todos juntos, jazia deitada de costas uma mulher de meia ‑idade que parecia uma anciã. A sua mãe. Ignacia. A que não parava de trabalhar, a que animava os outros, a que não se amedrontava com o frio nem com a fome, a que parecia imortal. No entanto, há três dias que estava com febre, arrepios, vómitos e convulsões. Isabel assustou ‑se ao ver que lhe tinham aparecido manchas vermelhas na cara.

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Ajoelhado no chão, com um rosário na mão, o padre Don Cayetano Maza, um homem gordo com bochechas encarniçadas, murmurava uma oração. Isabel sentiu um nó no estômago. O pároco não costumava entrar nas casas, não gostava de conviver com a pobreza nem com a doença. A última vez que o fez foi quando veio baptizar o irmão recém ‑nascido, mas quando chegou o bebé já tinha morrido.

– Mãe? – perguntou Isabel com voz trémula.Viu que as irmãs mais novas, María e Francisca, choravam em silên‑

cio. Juan, o mais velho, contemplava absorto o corpo deitado na cama; a seu lado estava o pai, Jacobo Zendal, um camponês musculoso de pele curtida e enrugada, que levantou o olhar para a filha. Tinha os olhos inchados, febris.

– O que aconteceu? – perguntou Isabel.Em vez de responder, o pai devolveu ‑lhe um olhar de impotência.

Ao seu lado, a tia María, irmã da mãe, encolheu os ombros. O miúdo que trazia no regaço estendeu os bracinhos para Isabel, que lhe fez um gesto de ternura.

– Varíola – disse o médico –, varíola maligna.Isabel passou os olhos pela sua casa, que nem dispunha de chaminé.

O tecto, as paredes e as vigas estavam negras de fuligem. Em cima do fogão de lenha empilhavam ‑se duas frigideiras, um monte de pratos, colherões de madeira e um cesto com ameixas; dois cântaros, uma cadeira e uma grande quantidade de alfaias e ferramentas estavam espalhadas pelo chão, onde um leitão e vários pintos passeavam à vontade. Isabel reparou na roca encostada ao fogão, essa roca para fiar linho que não faltava nas casas da Galiza e que fora a companheira inseparável da mãe, e então, de repente, tomou consciência da realidade. A mãe acabara de falecer. Era quinta ‑feira, 31 de Julho de 1788.

O contraste entre a miséria escura do interior da casa e o esplendor da natureza lá fora não podia ser mais pungente. Os campos de trigo, centeio e milho que se estendiam pelas suaves colinas dos arredores da pequena aldeia de Santa Mariña de Parada, no município de Ordes, tinham ‑se tingido de ouro. Em breve haveria que ceifar. As florinhas amarelas do tojo, um matagal que, misturado com bosta de vaca, servia como adubo, pontuavam o monte. Sobrepondo ‑se ao canto dos pássaros,

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os sinos tocavam a finados. A partir das suas casas dispersas e miseráveis, os vizinhos acorriam ao enterro de Ignacia, muitos deles descalços, por‑que o campo estava seco. As suas roupas remendadas de cores escuras ou pardas, impregnadas de cheiro a fumo, prendiam ‑se nas silvas. Não muito longe da igreja para onde se dirigiam erguia ‑se o paço do dono e senhor da maioria das terras do município, junto de um celeiro gigantesco onde armazenava castanhas e mel.

Os Zendal chegavam por um dos atalhos, caminhando atrás do cadáver deitado numa carroça que chiava, puxada por uma vaca. Rodeado por macieiras, pereiras e castanheiros, e por grandes carvalhos onde faziam ninhos rolas e gaios, era o mesmo caminho que Isabel percorria todos os sábados para assistir às aulas de alfabetização que o padre dava na paróquia. Apesar de constituir uma anormalidade ser a única mulher numa aula «só para varões», o padre tinha ‑a aceitado porque era esperta e também porque se cansou de discutir com Ignacia. Farta de se sentir enganada com os pesos e as contas, a mulher utilizara toda a sua energia para vencer a persistente oposição de muitos vizinhos, e até a do marido, a fim de que a menina apren‑desse a contar. Estava longe de suspeitar que essas aulas iriam transformar para sempre o destino da filha. Para Isabel, esses momentos que pareciam fora do tempo, os únicos em que aprendeu algo que não estivesse relacionado com o mundo em que nascera, tinham chegado ao fim com a varíola da mãe.

Na sacristia, Don Cayetano mostrou ‑lhe um papel em cima da mesa: a certidão de óbito.

– Assina aqui – disse ‑lhe o pároco –, tu que conheces as letras.Muito devagar, hesitando e com a melhor caligrafia possível, escreveu

o seu nome. Depois leu, na parte inferior do documento, três palavras:– Padre, o que significa pobre de… sole…?– Nada, filha. Isso é para que o enterro não vos custe nada.Para o pároco, «pobre de solenidade» não era apenas uma defini‑

ção, era um termo de direito que permitia que Ignacia Gómez, esposa de Jacobo Zendal, jornaleiro toda a vida, um homem calmo, de bom génio, sem bens nem terras, fosse «credora dos benefícios processuais da pobreza». Um desses benefícios era ser enterrada gratuitamente em sepultura individual dentro do recinto da igreja, porque o custo era assumido pela paróquia.

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De modo que, a poucos metros da igreja, cujos muros estavam cober‑tos por rosas silvestres, em redor das cruzes do cemitério, foram ‑se jun‑tando os vizinhos, sem se aproximarem demasiado dos familiares da defunta para evitar o contágio. A varíola causava um medo de morte, sobretudo nas mulheres. Embora a peste ou o tifo pudessem matar mais depressa, a varíola causava um terror intenso por causa das suas sequelas, ao provocar umas erupções na pele capazes de deformarem para sempre os rostos mais belos. Para as moças em idade casadoira, isso era pior do que a morte.

Isabel não se lembrava de ter visto tantos vizinhos juntos desde que o bispo de Santiago viera sete anos antes com a missão de confirmar na fé católica os paroquianos. Agora todos partilhavam uma mesma expressão de perplexidade atravessada por um vislumbre de pânico. A morte levara consigo uma boa mulher que menos de uma semana antes se encontrava de boa saúde. Na manhã em que caiu doente tinham ‑na visto ordenhar as vacas do amo e, à tarde, acarretar grandes novelos de linho. De repente deram ‑lhe uns sufocos, depois ficou com febre e à noite retorcia ‑se de dor na cama. Tendo sido avisado o padre, este mandou chamar o médico, que vivia em Ordes, mas só chegou ao terceiro dia. Demasiado tarde, ainda que, se tivesse vindo antes, também não teria podido fazer nada. A flor negra, como chamavam à varíola, era cruel e caprichosa, sobretudo com os pobres.

No momento de se enterrar o cadáver, envolto numa mortalha suja de terra húmida, Isabel abriu passagem entre os irmãos. Também queria participar no último adeus à mãe; e assim, juntos, depositaram o corpo no fundo de uma cova funda, e com uma pá deitaram cal viva e terra sobre ele. Cá em cima, à beira da cova, o jovial Don Cayetano, abraçado a Jacobo, rezava um responso pelo eterno descanso da defunta. As suas palavras, as mesmas que os homens usam desde o começo da História para se protegerem da morte, não ofereceram grande consolo. Ignacia partira demasiado rápido, semeando o desconcerto e o terror, e uma pergunta que inevitavelmente pairava no ar: quem será a próxima vítima? Ao levantar a cabeça, Isabel viu um bando de pássaros sulcando o azul do céu. Pensou na alma da mãe, que por não ter um real viajava com eles para o Além. Mesmo assim, tinham de estar gratos ao pároco, porque à

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maneira de consolo disse que ia conseguir do dono e senhor das terras uma missa rezada de dois reais à Nossa Senhora dos Desamparados, e talvez outra na capela das almas de Santiago.

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Capítulo 2

Aos treze anos, Isabel assumiu que lhe cabia substituir a mãe. Teve de esvaziar a casa de objectos, caiar as paredes, depois salpicá ‑las com cal viva e arejar a casa um dia inteiro. Eram as instruções de Don Cayetano, que repetia no púlpito os conselhos do médico para evitar epidemias. Em nenhum momento permitiu que as irmãs a ajudassem; estar ocu‑pada era para ela a única maneira de esconjurar a dor tão grande que lhe corroía o coração.

O mais duro foi reunir toda a roupa da mãe e atirá ‑la para a fogueira com a ajuda de uma forquilha. Gostaria de ter ficado com alguma recor‑dação, mas a varíola levava tudo consigo: um gibão, duas saias, um cor‑pete, três lenços e a roupa interior, feita toda ela de um tecido áspero de linho urdido com trama de lã. Depois reuniu todas as vestes da família e mergulhou ‑as num alguidar para as tingir de preto: saias, calças, casacos, coletes e meias. À sujidade habitual que se incrustava na pele, de agora em diante acrescentar ‑se ‑iam manchas escuras difíceis de tirar, produzidas pelo corrimento da tinta. Mas esse luto rigoroso era bem devido a Ignacia.

Mergulhados na melancolia, os Zendal não podiam interromper a sua rotina diária. Se tinham trabalhado sempre por empreitadas no cultivo de terras que não lhes pertenciam e a cuidar de animais que também não eram deles, agora tinham de repartir entre eles as tarefas que cos‑tumava desempenhar a mãe da família, que era a primeira a levantar ‑se e a última a deitar ‑se, sempre seguida por Isabel, a sua preferida, a mais velha e a que mais a ajudava, a mais viva e a mais alegre também, e a

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mais carinhosa. A sua sombra. Cada criança que nasce não é uma boca que come, são dois braços que trabalham, dizia ‑se na Galiza. Aos cinco anos, Isabel gostava de ir à frente das vacas, marcando ‑lhes o caminho para que fizessem um sulco a direito ao ararem a terra. Nos dias de festa tinha a missão de vigiar a cozedura do pote, que durava horas durante as quais tinha de manter o lume aceso. Aos sete anos, depois de ter tido sarampo, mandavam ‑na sozinha ir buscar lenha ao monte, água à fonte ou farinha ao moinho. «Já ganha o pão que come», dizia a mãe, e essas palavras enchiam ‑na de orgulho.

Os seus melhores momentos, além dos que viveu com a única com‑panhia da mãe, eram quando a mandavam pastorear. Acompanhada por outros miúdos, passavam as tardes a perseguir as galinhas e a alvoroçar as ovelhas, brincando com tudo o que a natureza oferecia às crianças. Desde muito pequena, não só se afadigava nas coisas da casa, fazendo tarefas ou recados de pouca importância, como também cuidava dos seus sobrinhos pequenos, que viviam a uns cem metros de distância, em Grela de Arriba. Dava ‑lhes de comer duas ou três vezes por dia, e mais tarde ensinou ‑os a comerem sozinhos. Quando os pais precisaram dela no campo, recusou ‑se a deixar os sobrinhos que tinham como única companhia o cão e as galinhas. Tanto lhe fazia que todas as crianças se criassem sozinhas e entregues à sorte: Isabel não estava disposta a fazer o mesmo até que começassem a andar. E mesmo assim custou ‑lhe. Era dócil a acatar ordens, mas, quando se tratava de crianças, deixava ‑se dominar pelo temperamento, esse que herdara da mãe, e agia segundo o que lhe ditava a consciência.

Isabel disse adeus aos cadernos, aos lápis e à aula semanal, esse parên‑tesis de sossego nas árduas tarefas do lar e do campo. Acordava de madru‑gada, acendia uma vela, dava de comer aos animais, acendia o lume no fogão e punha a caçarola de leite a aquecer, quando havia. À medida que os outros se iam levantando, serviam o leite numa tigela, a que acres‑centavam farinha de painço. Sentados no chão e encostados à parede, tomavam o pequeno ‑almoço em silêncio. Mal comentaram a varíola que levara Ignacia com ela, com medo de atraírem o mal mencionando ‑o. Também não referiram as vicissitudes do enterro: estavam acostumados à fatalidade. Gente de poucas palavras, agora a saudade tornava ‑os mais

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taciturnos. Só falavam de alguma incidência na tarefa que tinham pela frente. Quando acabavam o leite, cada um metia no bolso um pedaço de toucinho e outro de pão de milho que Isabel lhes tinha preparado para quando tivessem de «tomar as onze», como chamavam ao almoço, e despediam ‑se. A rapariga ficava a esfregar as tigelas e os talheres, e depois fazia o que teria feito a mãe: recolhia a cinza do fogão e espalhava ‑a na horta à maneira de fertilizante.

E o dia só tinha começado. Tinha de tratar dos sobrinhos, da casa, dos animais e do campo. De acordo com as estações, também tinha de segar com a foice e debulhar o trigo, apanhar alhos e cebolas, pegar no arado, semear couves, favas, repolhos e couves, podar os carvalhos e cortar lenha, colher o painço, arrancar as ervas daninhas, ir com uma foice apanhar tojo ao monte para fazer a cama das vacas do amo, prepa‑rar a terra para a sementeira do linho, fazer estopa, fiar… uma lista tão interminável como variada.

A tudo isso acrescentavam ‑se as dificuldades de cada temporada. A despensa estava quase vazia desde o início da Primavera, porque já tinham consumido o produto da matança do porco e da colheita de cereais do ano transacto. Que na época de mais trabalho houvesse menos alimento para repor forças era um paradoxo difícil de encaixar. Mas era assim em todas as casas. No fim do Verão, Isabel ficou sem farinha porque teve de devolver às vizinhas a que a mãe pedira emprestada dois meses antes. Também racionou o leite e os ovos, que eram bons produtos para vender ou trocar. Pensava desenvencilhar ‑se com couves, feijões, casta‑nhas, pão de milho e toucinho. Não provava carne fresca desde o Inverno, quando ela e a mãe fizeram um pote no Natal. Aos treze anos, Isabel não sabia o que era peixe e no entanto vivia a poucos quilómetros do mar.

Essa vida precária era muito sensível a qualquer desequilíbrio, por pequeno que fosse. Que chovesse mais do que a conta ou que houvesse uma seca, era o bastante para que voltassem as carências, o espectro da fome e as epidemias.

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