JC Pernambuco Vivo

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  • DIRETOR DE REDAO: IVANILDO SAMPAIODIRETOR-ADJUNTO DE REDAO: LAURINDO FERREIRAEDITORA-EXECUTIVA: MARIA LUIZA BORGESEDIO: DIANA MOURA, MARCELO PEREIRA, OLVIA MINDLOEDIO DE ARTE: BRUNO FALCONE, FABIANA MARTINS, KARLA TENRIOEDIO DE FOTOGRAFIA: ARNALDO CARVALHO, HEUDES REGIS E CHICO PORTOCONCEPO E REPORTAGEM: MATEUS ARAJO CONCEPO GRFICA, ILUSTRAO E DIAGRAMAO: CARO BIONEFOTOGRAFIA E VDEO: HEUDES REGISEDIO DE VDEO: CAIQUE MULATINHOTRATAMENTO DE IMAGEM: JAIR TEIXEIRAREVISO: RITA KRAMERWEB DESIGNER: FBIO MONTEIROAGRADECIMENTOS: ACERVO DO MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE

    FUNDAO JOAQUIM NABUCO, PELA PERMISSO PARA FOTOGRAFAR A CALUNGA DONA JOVENTINA.

    RECIFE - PE, BRASILNovembro de 2013

    expediente

  • sumrioPREFCIOAPRESENTAODEPOIMENTOSMSICA

    LIA DE ITAMARACSELMA DO COCOGALO PRETOMAESTRO DUDAMAESTRO NUNESSOCIEDADE MUSICAL CURICAEUTERPINA DE TIMBABAORQUESTRA CAPA-BODEPAGODE DO DIDIJOO SILVACAMARO

    ARTES CNICAS & CINEMAFERNANDO SPENCERTEATRO EXPERIMENTAL DE ARTENDIA MORENA

    GRAVURA E CORDELMESTRE DILAJ. BORGESJOS COSTA LEITE

    CERMICA & PINTURAZ DO CARMOMARIA AMLIAZEZINHO DE TRACUNHAMMESTRE NUCAMANUEL EUDCIO

    AGREMIAESCABOCLINHO SETE FLEXASCABOCLINHO CANINDMARACATU LEO COROADOMARACATU ESTRELA DE OURO DE ALIANAMARACATU ESTRELA BRILHANTE DE IGARASSUO HOMEM DA MEIA-NOITECONFRARIA DO ROSRIO

    IN MEMORIANBASTIDORES

  • Quem so eles, de onde vm, que alegria essa to contagiante, que nem os dias tristes abalam o seu canto e o seu viver? Que mundo esse, fei-to de sonho e poesia, onde cantar lei, criar dote? Quem so esses filhos do povo, irmos da arte, esses pastores da divina criao, ungidos que se escondiam no anonimato e que agora saem do seu pequeno mundo para a posteridade? Foram por toda sua existncia pelotiqueiros e saltimbancos da grande comdia humana que agora so resgatados para obra e graa dos seus contemporneos, porque homenagem pstuma uma viso dis-torcida da histria presente. Alguns deram vida ao barro, outros perpetu-aram a imagem. Todos eles honraram a vida e escreveram uma pequena epopeia. Esses homens e essas mulheres que hoje so personagens deste caderno especial Pernambuco Vivo, essas instituies sacrossantas mais amadas do que conhecidas, so um pedao vivo do povo de suor e sand-lias, da histria e do orgulho de Pernambuco. Que sejam todos louvados, com licena de Vinicius de Morais.

    Louvada seja Selma do Coco, preta e sbia, elegante na sua echarpe co-lorida, faceira nos brincos de ametista guardi das melhores tradies do nosso cancioneiro popular: o coco, sob suas mais diversas manifestaes. Coco que j rendeu a Selma nove discos, um DVD e cinco filmes, patrim-nio to expressivo que bate o de muitos famosos do showbiz norte-ameri-cano. Seja louvada Lia de Itamarac, cujo nome e cuja fama se espalham por esses brasis to brasileiros, dado que a ela se credita o resgate da autn-tica ciranda. E ciranda, como se sabe, no coisa para amador. Louvada seja ndia Morena, que mambembou pelos picadeiros dos circos mais fa-mosos aos mais humildes, fazendo da cobertura de lona o teto seu de cada caminhada e que neste mundo de fantasia corre cho h mais de meio sculo. No ganhou dinheiro, no fez fortuna, no tem patrimnio mas virou Patrimnio e tem o riso largo dos que carregam nas mos os praze-res da vida. Seja louvada Maria Amlia, rainha do barro e da criao as imagens moldadas pelas suas mos talentosas so ornamentos admira-dos bem para l do horizonte. E o que dizer de Galo Preto, hoje de barba branca, com seu pandeiro e seu improviso, cortante como o chicote de um feitor vaidoso sempre com seu chapu quebrado?

    Este suplemento especial que hoje estamos entregando aos leitores, com textos de Mateus Arajo, fotos de Heudes Regis, criao grfica de caro Bione e edio de Diana Moura, tem bem mais no seu rico contedo. Ele fala de personagens e instituies que se tornaram, por justia e merecimento,

    preFCio

  • Patrimnios Vivos de Pernambuco. Perfilam nesta honrosa galeria os gran-des ceramistas Zezinho de Tracunham e Z do Carmo, o Mestre Dila da gravura, o cordelista Jos Costa Leite, o xilogravurista J. Borges, parceiro do no menos famoso Ariano Suassuna, instituies como os Maracatus Leo Coroado e Estrela de Ouro, a Confraria do Rosrio e o Caboclinho Sete Flexas. Pioneiro do cinema pernambucano, louvado seja Fernando Spencer, h mais de meio sculo envolvido coma stima arte. D para ver, portanto, que a leitura deste suplemento ser prazerosa e enriquecedora um dife-rencial que estamos colocando hoje nas mos de nossos leitores.

    IVANILDO SAMPAIODiretor de Redao

  • Eles so 29 homens, mulheres e agremiaes. Com poesia, escrevem a cultura pernambucana todos os dias. E fazem parte dela. Alimentam um mundo imaginrio habitado por bois, gigantes, calungas, bichos que fa-lam e santos que se transfiguram. Vivem em pequenas casas coloridas, pin-tadas por dentro e por fora. Quase todos vm da periferia, dos arredores, de onde o vento faz a curva. Talvez por isso, no falem em linha reta, mas em voltas. Contam de um mundo s deles, que encanta e, s vezes, faz doer. So os Patrimnios Vivos de Pernambuco que mantm a rica tradio da cultu-ra popular do Estado e do cores, sons e vozes identidade pernambucana.

    Pela imensa contribuio que oferecem ao seu povo, eles mereceram o ttulo de Patrimnios Vivos. O reconhecimento oficial oferecido pelo go-verno do Estado, por meio de um edital da Secretaria de Cultura/Fundarpe. Anualmente, uma comisso estadual, formada especificamente para a elei-o, rene-se, avalia os nomes inscritos e seleciona trs novos membros para o grupo. O processo passa pelo aval do Conselho Estadual de Cultura. O reconhecimento foi estabelecido por lei em 2002 ainda que os primeiros 15 nomes s tenham sido anunciados em 2005, retroativamente.

    Desde ento, a cada ano, trs novos artistas ou agremiaes so escolhi-dos. Eles tm que morar no Estado h pelo menos 20 anos e comprovar atua-o dentro da cultura local. Mensalmente, recebem uma bolsa vitalcia R$ 1.021,62 para pessoas fsicas; ou R$ 2.043,24 para instituies sem fins lucra-tivos. um incentivo para que se mantenham em atuao e repassem seus conhecimentos. Em outubro, o Jornal do Commercio publicou dois cader-nos Pernambuco Vivo, apresentando aos leitores um pouco da trajetria de arte e encantamento desses guerreiros. O material, que resultou neste e-book, reflete a prpria formao cultural do Estado, em sua diversidade mpar.

    Maracatus, caboclinhos, frevos, forrs, sambas e afoxs. Poetas da madei-ra, da cermica e das letras. Atores e bailarinos. Desenho, pintura e escul-tura. uma incrvel multiplicidade de manifestaes culturais que se des-dobram neste Pernambuco Vivo. Nomes que vo alm do Carnaval, do So Joo e do Natal. Artistas que, como j havia alertado o poeta Padre Antnio Vieira, deveriam estar na boca do povo, nas salas de aula.

    Para contar um pouco dessa histria, nos dedicamos por 18 meses. Os Patrimnios Vivos de Pernambuco abriram as portas de suas casas, ate-lis e sedes de instituies. s vezes, as memrias se diluem no tempo, e os registros se inscrevem nas entrelinhas. Suas biografias se confun-dem com a arte que professam. Nas reportagens, o leitor vai perceber

    ApresentAo

  • que, para essas pessoas, vida e obra so uma coisa s. Durante toda a viagem, impressiona o sorriso no rosto de cada um deles. Com orgulho, deixaram que seu mundo fosse compartilhado.

    S assim foi possvel narrar o retorno ao sucesso da cirandeira Lia de Itamarac e da coquista Selma do Coco, hoje grandes amigas. A contor-cionista ndia Morena redescobre a infncia. O elegante Galo Preto fala de superao. As criaes dos xilogravuristas e cordelistas Dila, J. Borges e Jos Costa Leite revelam cores e rimas. Abrem-se as cortinas do Teatro Experimental de Arte. Z do Carmo, Maria Amlia e Nuca fazem oraes em forma de esculturas. Arte e f se encontram na Confraria do Rosrio e nos batuques dos maracatus Leo Coroado, Estrela Brilhante e Estrela de Ouro.

    Em Pernambuco Vivo tambm passeiam mestres do Carnaval mais colo-rido do mundo. Reverenciamos O Homem da Meia-Noite, descemos ladeiras ao som dos frevos rasgados dos maestros Duda e Nunes e nos emocionamos ao ritmo hipnotizante dos caboclinhos Sete Flexas e Canind. Tambm tri-lhamos estradas para entrar nos sales do forr que marca o Serto, com Joo Silva e Camaro; e conhecemos o vigor das bandas filarmnicas da Zona da Mata: Euterpina Timbaba, Capa-Bode e Curica. Do Agreste e da Mata che-gam escultores como os mestres Nuca e Manuel Eudcio. Neste livro, por fim,nos despedimos dos Patrimnios que j se foram: Manuel Salustiano, Arlindo dos Oito Baixos, Ana das Carrancas e Canhoto da Paraba.

    Com delicados enredos de vida, esses artistas descreveram sonhos, amo-res, canes; e confidenciaram medos. Mesmo aqueles que esqueceram al-guma parte da histria pelo caminho, todos ainda acreditam num final fe-liz. Salvaguardados por um ttulo que os torna representantes oficiais da arte pernambucana, mestres do barro, msicos, cineasta e carnavalescos recontam narrativas to suas, ao mesmo tempo to nossas.

    O projeto Pernambuco Vivo foi concebido por Mateus Arajo, autor da maior parte dos textos, com algumas reportagens assinadas por Jos Teles, Bruno Albertim e Diogo Guedes. As fotografias so de Heudes Rgis, com colaboraes de Ricardo Labastier e Priscila Buhr. Todo o conceito visual dos dois cadernos especiais e deste e-book foi pensado pelo desig-ner grfico caro Bione. O hotsite hospedado no JC Online foi desenhado por Fbio Monteiro. O material do e-book muito enriquecido ainda pelos vdeos editados por Caque Mulatinho.

  • Falar de universos muitas vezes

    estereotipados, mundos talvez esquecidos. Dar voz aos artistas, permitir que contem suas prprias histrias. Foi isso que propusemos no especial Pernambuco Vivo. A partir de horas de entrevistas gravadas, fui seguindo narrativas, desvelando lembranas ora confusas, ora to vivas. Um desafio de apurao e um desejo de revelar para Pernambuco os seus grandes Patrimnios. muito honroso entregar este especial, um trabalho de equipe. Um grupo dedicado e sempre disponvel. Dois cadernos nossos, e, antes de tudo, desses 30 orgulhos pernambucanos.

    MATEUS ARAJOReprter

    O grande desafio desse trabalho

    foi entrar na casa dos personagens, na intimidade de cada um, sem que a nossa presena interferisse no universo deles. Sem que os apetrechos guardados para ocasies especiais sassem das gavetas e armrios, em reverncia visita da imprensa. Precisamos nos desprender do olhar viciado para desnudar suas verdadeiras identidades. Queramos nos surpreender, como no Turista aprendiz, de Mrio de Andrade, e experimentar o prazer da descoberta a cada encontro. Praticamos o exerccio de desconstruir a imagem desses artistas (sedimentada nos jornais, na TV ou no rdio) para trazer, em retratos do cotidiano, um pouco da elegncia e dignidade que lhes so merecidas.

    HEUDES REGISFotgrafo

    Ser no a nica questo para

    eles, mas sim o quanto podemos compartilhar o que cada um deles para ns. A pura e crua cultura pernambucana permeada em nosso imaginrio. Cada morador do Estado tem em si um pouco da realidade desses 30 personagens, talvez no no cotidiano, mas em nossas razes. Smbolos, cores, vestimentas, rosas e lanas so representados aqui por um outro ngulo, um olhar contemporneo, numa estrutura que procura harmonia, leveza e ritmo para incitar o leitor a passear por cada histria como se fosse uma nica - nossa - prpria histria.

    CARO BIONEDesigner

    depoimentos

  • MSICA

  • A primeirA VoZ dA CirAndALIA DE ITAMARAC

    Lia tinha um medo. Em abril de 1998, a cirandeira da Ilha de Itamarac foi convidada para cantar no festival Abril pro Rock (APR), no Recife. Olha, eu me meti no meio dos roqueiros. Menino, me deu um medo. Eu pensei: ciranda com essa batucada ser que casa, meu Deus?. E fui embo-ra. Lia estava longe da mdia. Lanou um LP em 1977, A rainha da ciran-da, e sumiu do mapa. O convite representava uma possvel volta. Rapaz, o show foi to bom, mas to bom, que, se eu pudesse, estava l todo dia. Os roqueiros ficaram doidos. Danaram, cantaram, bateram palma. Parecia que eu estava ali dentro h sculos. Depois disso, j gravou mais dois l-buns, Eu sou Lia (2000) e Ciranda de ritmos (2008), e participou de fil-mes, entre eles o incrvel Recife frio, de Kleber Mendona Filho. Lia um Patrimnio Vivo de Pernambuco.

    O ttulo lhe engrandece a alma. bom ter o trabalho reconhecido com a pessoa viva. Se algum tiver de fazer alguma graa pra mim, faa comigo

    Fotos: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

  • viva, para eu ver. No faa depois de eu morrer, no. Esse negcio de a Rua de Lia, a Praa de Lia, a esttua de Lia... Faa comigo viva, avisa. Alm da projeo nacional, conquistou respeito ao redor do mundo. Foi chamada de diva da msica negra, pelo jornal norte-americano The New York Times, e comparada voz da cabo-verdiana Cesria vora, pelo jornal francs Le Parisien. Mas sua histria no feita s de alegrias.

    Aos 69 anos, completados em 12 de janeiro de 2013, a artista vive um momento tranquilo depois de muitos altos e baixos. A cantora, que nos anos 1970 experimentou o apogeu da ciranda, conheceu o aban-dono na dcada seguinte e voltou a brilhar fora da ilha depois de ser apadrinhada pelo movimento manguebeat, no APR.

    Altiva e elegante, Lia era chamada de Rainha da Ciranda na dcada de 1970. A classe mdia e o pblico universitrio saam da capital nos finais de semana em busca das rodas de cantiga beira-mar. O destino era Itamarac ou a praia do Janga onde morava a famosa Dona Duda. No livro Do frevo ao manguebeat, o crtico musical do JC, Jos Teles, explica que outros ar-tistas tambm foram importantes na afirmao da ciranda. Em 1967, Teca Calazans lanou um disco com a cano mais conhecida da cirandeira, Quem me deu foi Lia, gravada inicialmente por Expedito Baracho. A auto-ria da msica foi discutida por muito tempo. E no fim das contas a msi-ca termina sendo minha mesmo, n? Quem deu foi Lia e acabou, brinca. Hoje a composio de domnio pblico.

    DE SOL E DE SAL

    Foi no auge da popularidade, em 1977, que Lia lanou seu primeiro lbum. Logo depois foi esquecida. Na virada dos anos 1970 para a dcada seguinte, as indstrias fonogrfica e cultural passaram a marginalizar a msica po-pular brasileira no elitizada. Esse ostracismo, somado ao alcoolismo e m administrao da carreira, levou a cantora a uma crise artstica e pessoal.

    Eu vivia dentro de um poo. Hoje ela credita a fama e a vida estvel que tem ao trabalho do seu empresrio Beto. Depois do show do APR, ela con-quistou a admirao do pblico jovem e ganhou o mundo. Perdi a conta de lugares por onde j andei. Eu pensei que nunca ia sair dessa ilha. Aqui um mato sem cachorro. Ningum olha pela cultura. Mas j fui Alemanha, Paris, Lisboa. Menino, eu j bati o mundo, Jesus!, sorri, sem esconder a satisfao. Mesmo assim, diz que no quer ser a rainha da cocada preta.

    Lia tem a humildade daqueles que j perderam tudo e tiveram que re-comear. No uma vez. Mas vrias. No vero de 1988 para 89, ela teve a residncia incendiada. Eram 2h da madrugada quando a casa detaipa co-meou a pegar fogo. Foi muita inveja. Eu tinha acabado de ganhar uma geladeira, e os vizinhos estavam de olho grande. No outro dia, acharam uma espcie de tocha no cho. Algum tinha tocado fogo na minha casa. As idas e vindas da vida e da ciranda obrigaram Lia a ser, por 28 anos,

  • merendeira em uma escola pblica da ilha, trabalho que lhe deu sustento durante o perodo longe dos palcos.

    A casa onde mora com o marido foi herdada da me adotiva a quem Lia foi dada, aos dez anos, por falta de condies financeiras dos pais biol-gicos. Chegar at l tarefa fcil. Ela mora em Jaguaribe, uma comunida-de perifrica da Ilha de Itamarac, no Litoral Norte do Estado, que ainda vive da pesca e do vero. Chegando em Jaguaribe, s perguntar onde minha casa que todo mundo sabe. E sabe mesmo. Pegue direita e v em frente. A casa dela tem uns nomes no muro, diz um ilhu. So os nomes da prpria artista, grafados em mosaico na parede. Uma batida na porta, e a mulher de 1,87m de altura atende com um sorriso largo e um abrao forte. Morena da beira do mar, queimada do sal e do sol, Lia doce.

    A conversa no terrao, de frente ao jardim. As paredes da pequena casa guardam emolduradas as lembranas dos 50 anos de carreira. Entre re-portagens e cartazes, ela tambm eterniza seu amor pelo marido, Antnio. As fotografias dos dois so intercaladas por pequenas frases de declara-es deamor. Acho que vi um gatinho uma delas. Uma foto de Mestre Salustiano relembra a amizade dos dois. No jardim, entre plantas e flores, esto esculturas de pssaros, sapos, golfinho e de Nossa Senhora da Graas.

    IEMANJ, RAINHA

    Como boa filha de Iemanj, Lia gosta de azul e de enfeites. Usa cola-res, pulseira e brincos. Adora batom. Da Rainha das guas, diz que her-dou o amor pelo mar, mas no frequenta o candombl. S vou num ter-reiro quando estou precisando de ajuda. A fao uns trabalhos. No fao o mal para ningum, s peo ajuda para mim. Transitando pelo sagrado e o profano que se unem na cultura afro-brasileira, Lia amiga do padre

    da capela de Jaguaribe, a quem prometeu s come-ar suas apresentaes aps s 21h, quando termina a missa. O templo est localizado bem pertinho do Centro Cultural Estrela de Lia. s vezes a gente es-tava ali com a ciranda, a tinha maracatu, tinha coco. Tudo quase na porta da igreja. E o padre coma hstia na mo. Eu via a hora o santo cair. A ele pediu para eu s comear quando a missa acabasse, explica.

    Nas lembranas que tem da infncia em Itamarac, Lia guarda as imagens e a alegria das noites de pastoril e cavalo-marinho na praa de Jaguaribe. Entre seus 21 irmos, ningum canta, dana nem participa dos brinque-dos. S ela. Desde criana se interessou pela ciranda. Aos 12 anos, j dava entrevista a jornais e rdios e aos 18 se firmava como cantora. Atualmente a senhora de sorriso largo faz da beira do mar seu palco e sua inspirao. H trs quarteires de casa fica o Centro Cultural Estrela de Lia, na areia da praia. s noites de sbado, o lugar recebe a famosa roda de cirandeiros,

    Oua a msica Eu sou Lia

    J fui Alemanha,

    Paris, Lisboa. Menino, eu j bati o mundo, Jesus!

  • com cerca de 500 pessoas, entre ilhus e turistas.A cantora fez da sua vida uma roda de ciranda. A velhice

    que chega lhe aflige. H um medo do esquecimento, como tambm h um medo do cio. beira das guas, ela compe suas msicas. Sentada na praia, escreve as letras que so apa-gadas pelas ondas, e reescritas, e cantadas. da areia para o crebro, do crebro para o papel. Depois eu canto.

    H 15 anos, Lia tinha medo de subir no palco dos roqueiros. Agora tem medo do futuro. Ela se ressente da falta de um suces-sor. A artista conta que teve quatro filhos, mas nenhum quis cirandar. Todos morreram recm-nascidos. J perdeu a espe-rana que depositava no sobrinho Ezaquiel, 22 anos: O negcio dele futebol, lamenta. Tanta coisa que voc tem. Seu traba-lho, sua fora, sua luta. E voc vai embora e no tem ningum que diga eu vou cantar hoje, vou fazer o trabalho dela, vou fazer o show dela. Infelizmente, cada cabea um mundo.

    s noites de sbado, a cantora realiza sua famosa roda de ciranda, no Centro Cultural Estrela de Lia, em Itamarac

  • noVe disCos, um dVde CinCo FilmesSELMA DO COCO

    Ra-r. , tch. Ra-r. Tch, tch, tch, tch. Dona Selma do Coco, 78 anos, entoa essa onomatopeia em toda msica que canta. Repete-a tambm, intercalando s suas respostas, durante a entrevista. Virou uma frmula, um cacoete indispensvel quando ela sobe ao palco ou assume a postura da figura pblica que conquistou fama no Estado, no Brasil e fora daqui, graas ao mel da rolinha fujona, sucesso no final dos anos 1990. Assim como Lia de Itamarac, a coquista tambm foi redescoberta pela mdia nacional numa edio do Abril pro Rock, em 1997, um ano antes que a amiga. A projeo conquistada colocou a ex-tapioqueira do Alto da S em pontes areas at ento inimaginveis por ela.

    Aquela noite continua bem viva nas lembranas da senhora cuja boca

  • reluz ouro a cada sorriso desde os 15 anos. Ela escancara com orgulho o piv dourado que j vi-rou refro de uma de suas msicas: Moreninha do dente de ouro, parece um tesouro a boqui-nha dela. Se eu pudesse e tivesse dinheiro, eu ia em Barreiros e casava com ela. O show no APR foi, de certa forma, fruto da ligao que a cantora alimentava com Chico Science (1966-1997). O cone do manguebeat gostava de be-ber da fonte do trabalho, da experincia e da sa-bedoria de Selma do Coco, como afirma o cr-

    tico musical Jos Teles, no livro Do frevo ao manguebeat. Acostumada a cantar na praieira e popular Festa da Lavadeira, Dona Selma padecia do mesmo medo que afligia Lia em relao aos roqueiros.

    O nico show que eu fiz em que fiquei cismada de ningum me derrubar do palco foi o Abril pro Rock. Ali dose, n? um perigo para no cair do palco. Misturar coco com rock, Ave-Maria, no foi fcil, no. Eu fui porque sou doida mesmo. Ra-r. Sempre penso assim: se perdi, perdi; se ganhei, ganhei. Menino, o povo gostou mais do meu show do que do show dos ro-queiros. Os roqueiros ficaram arretados comigo. Pegaram os panos de bun-da e foram embora. Ra-r. Eu dei tanta entrevista depois daquilo, recorda.

    Antes desinibida e alegre, Dona Selma tem se dobrado ao tempo e s in-tempries da vida. Tornou-se uma mulher de humor retrado, demora a se soltar e traz o sorriso acompanhado por um olhar evasivo. Na casa em que mora com uma nora e as netas, passa os dias sentada em frente televiso: Se chegar gente, eu converso. Se no chegar, eu no converso. Quando no est se apresentando, ela rima na cabea a saudade que guarda do filho Zezinho, que era seu brao direito, amigo e produtor musical. Ele morreu em abril de 2010. Nem sempre a gente tem o que quer. No vou dizer que no sou feliz. Dependendo do meu Deus,eu sou feliz, e do meu coco. S no sou mais feliz porque eu tinha uma pessoa que vivia do meu lado, era tudo na minha vida, mas Deus levou.

    MORRE QUEM CANTA, MAS A CULTURA NO MORRE NUNCA

    Ela recebe a equipe de reportagem numa sala pequena, no trreo de uma casa de primeiro andar bem conhecida entre os moradores do Largo do Amparo, no stio histrico de Olinda. Sarcstica e com respostas curtas no incio da conversa, Dona Selma atropela palavras ao narrar lembranas com uma voz cansada, marcada pelo peso da idade. Diz que chegou m-sica encaminhada pela famlia. Meu pai e minha me. Minha av e meu av. Todos eles cantavam. Quando eu cantei o primeiro coco, tinha na base de uns dez anos. Mas ainda no pensava na msica como um ganha-po.

    Nascida em Vitria de Santo Anto, Dona Selma o sobrenome Ferreira

    Dona Selma do Coco, durante apresentao na Festa da Lavadeira, na Praia do Paiva, em 2005

  • Durante seu anonimato, Dona Selma trabalhou como tapioqueira no Alto da S, em Olinda

    da Silva ela quase nem se lembra de usar veio para o Recife aos 10 anos e por muito tempo foi apenas mais uma entre os milhares de mo-radoras do bairro da Mustardinha, Zona Oeste do Recife. Eu vivia abandonada. Ningum me conhecia na rua. Hoje todo mundo me conhe-ce. Tu me conheceria se eu morasse l ainda?, pergunta a coquista.

    O anonimato saiu de sua vida quando ela pas-sou a vender tapioca no Alto da S, em Olinda. Foi peneirar a goma de mandioca e fazer a ale-

    gria dos turistas. Tapioqueira, antes, s tinha na S. Agora tem em todo canto. Como o coco de roda. Antes s havia perto de onde tinha escravi-do. Agora tem em tudo que lugar. Mas no tem a mesma qualidade, alfineta. Alis, tem. No vou nem dizer que no tem qualidade, pra no dar confuso, desconversa. Ra-r.

    Era exatamente na S que a coquista dialogava sobre msica e cultura com Chico Science. Na febre dos anos 1990, que misturava lama e caos, alfaia e guitarra, Dona Selma viu seu trabalho ser aproximado do pop o mesmo processo que contagiou a ciranda de Lia de Itamarac. Nesse pe-rodo, as duas se tornaram grandes amigas. Quando eu estou arretada, esculhambo com ela. Digo: canta a, nga safada, comenta Dona Selma, numa gargalhada. A mulher, que no tem papas na lngua, comea a se sol-tar na entrevista. Trinta minutos depois, ela se convence de que a reporta-gem chegou para conversar. Mas alerta: No gosto de dar entrevista no. Estou gostando de dar entrevista a vocs porque eu gostei de vocs. R-r.

    Em 60 anos de carreira, Selma do Coco j gravou nove discos, um DVD, fez participao em trabalhos de outros artistas e em cinco filmes per-nambucanos. Ela sabe todos os nmeros de cor. Em casa, h uma sala s para guardar discos, ttulos, trofus e recordaes espao que ela e a nora pretendem transformar em um pequeno museu. Morre quem canta, mas a cultura num morre nunca.

    ESTOU ENSINANDO E VOU ENSINAR

    A neta Polyana, aos 9 anos, olha de lado a av fazendo pose para as fotos. A menina talvez no compreenda algumas frases tristes, ditas displicente-mente, entre gargalhadas, por Dona Selma. Eu estou morrendo. A mulher que j gravou disco na Alemanha, conheceu a Europa e fez shows no Brasil inteiro aos poucos vai preparando a neta mais nova para cantar. J tem ou-tras netas que lhe acompanham nos palcos, mas Polyana agora a sua prio-ridade. Vou colocar ela para dar trs palavras para o vdeo de vocs. Vou co-locar ela aqui do meu lado. Eu estou ensinado e vou ensinar. Porque, quando eu morrer, ela vai ficar com a me dela tomando conta do meu trabalho.

  • A metodologia que naquela casa se segue no tem mistrio. sem ro-deios. Cantar coco abrir a boca e cantar. Aprender a letra e sair entoan-do. A nica exigncia da matriarca que a pessoa tenha energia e ritmo. Num todo mundo que tem no, diz Dona Selma. Rar, solta Poly ao finalizar uma das msicas, no colo da av, imitando a coquista.

    A senhora j no tem a mesma fora que antes. Nos shows, alterna-se ao microfone com outras pessoas. A idade vai dando os seus sinais. Algumas lembranas comeam a lhe escapar da memria. Saudosista, ela confron-ta o presente com um certo ressentimento sobre o vaivm da cultura pop. As pessoas chamam para os shows quem tem fama, quem bonita, quem todo mundo conhece. Se voc pudesse escolher entre eu e aquela menina da Bahia (Ivete Sangalo), para contratar para um show, escolheria quem? A uma questo de gosto.

    Dona Selma, que em 2011 ganhou o prmio Afro-latino como destaque de mulher negra do Pas ficou em segundo lugar, depois da atriz Zez Mota e frente da cantora Margareth Menezes , agora leva uma vida cal-ma, depois de ter se dedicado famlia e msica. A vaidade virou apenas obrigao de quem famosa, deixou de ser um prazer. Eu era vaidosa. Agora num sou mais no. Sou velha, desarrumada. Estou arrumada agora para dar entrevista. Voc pega essa matria e vai botar no jornal. O povo vai me ver. No posso estar rabugenta no jornal. Eu tenho que ajeitar o pi-xaim, pra ver se chego metade do que era. Ra-r.

    Oua a msica Moreninha do dente de ouro

  • peripCiAs de um VAlenteGALO PRETO

    Tomaz Aquino Leo, Mestre Galo Preto, enfrenta uma vida de adver-sidades e superao. Uma confuso o levou a um perodo de ostracis-mo num momento decisivo para sua carreira. Em 1992, s vsperas das eleies, o embolador e coquista foi preso acusado de liderar um grupo de extermnio, em Peixinhos, uma das comunidades da periferia de Olinda. Foram dois anos, dois meses e seis dias na cadeia. Ele sabe de cabea. No havia prova que o condenasse. Nenhuma testemunha sequer. Mas ficou a raiva e a vergonha. Nesse perodo, Galo Preto deixou de ver e viver a eclo-so do manguebeat, a poca em que uma nova gerao em Pernambuco exaltou os mestres da cultura popular.

    Nascido em Bom Conselho, no distrito de Princesa Isabel, no Agreste,ele

  • chegou ao Recife aos 12 anos. Veio com o irmo, o cantador Preto Limo. Fomos morar no bairro de Campo Grande. Meu pai no vivia em casa e meu irmo terminou sendo um segundo pai. Naquela poca, Preto Limo fazia uma dupla de embolada com outro irmo nosso, Curi, cantando nas praas e nos mercados do Recife. Muita gente me confundia com eles. Ma seu no gostava de cantar na rua, de rodar o chapu para pedir dinheiro, lembra o artista, hoje com 78 anos.

    O jovem Tomaz, recm-chegado ao Recife, em 1947, sem ainda ter sido batizado com apelido artstico, foi vender frutas nas ruas da capital e ter-minou chamando a ateno do influente poeta Ascenso Ferreira. Como eu gostava de futebol e msica, meu irmo me colocou para trabalhar como ambulante. Disse que no queria que eu virasse vagabundo. Mas eu saa vendendo fruta fazendo rima. E passava todo dia na porta de Ascenso Ferreira,at que um dia ele me chamou e disse que gostava da minha msi-ca. Ele me deu um carto de Zil Matos, que tinha um programa de rdio na poca, e fui atrs. L cantei minha primeira msica, que eu tinha feito aos nove anos, chamada A pinta. Dali pra frente, a vida foi de altos e baixos.

    Galo Preto resolveu seguir carreira solo, sem a parceria de Curi, aps participar do programa de rdio. Participou de caravanas culturais de uma emissora local. Terminou sendo enganado e voltou sem cach. Na dcada de 1970, poca em que as televises lo-cais veiculavam programao musical, o artista quela altura tambm tocando jazz alimentou parcerias com nomes importantes da msica bra-sileira, como Jackson do Pandeiro, Cauby Peixoto, Arlindo dos Oito Baixos e Luiz Gonzaga. Com sua cantoria, foi criar jingles em repente para as cam-panhas polticas de Miguel Arraes. Eu era pro-curado por todo mundo, porque o repente fazia

    sucesso com o povo. E dizem que nessa arte eu sou bom, brinca o artista.Dcadas depois, se Galo Preto perdeu o bonde da histria por conta de

    sua priso quando tinha tudo para estar no elenco de artistas populares das edies histricas do Abril pro Rock, como Lia de Itamarac e Dona Selma do Coco, em 1997 e 1998 , ao tentar refazer a vida, ele foi valente. Sem desistir da carreira, Galo Preto conseguiu aos poucos abrir seu espao na atual cena musical pernambucana.

    Em 2007, a convite da Secretaria de Sade de Olinda, o coquista foi in-tegrar um grupo de msicos locais que participou de uma campanha pu-blicitria, ao lado de Beth de Oxum, Dona Selma, Aurinha do Coco e Zeca do Rolete; e depois foi personagem-tema do documentrio O menestrel do coco, de Wilson Freire. De rima em rima foi limpando o seu nome, recon-quistando a fama. Na semana passada, ele fez shows, em So Paulo, divi-dindo o palco com o cantor pop pernambucano Otto.

    Sempre elegante, mestre Galo Preto no dispena roupa e chapu brancos

  • Senhor elegante, ele no dispensa a roupa clara. Em toda apresentao, est sempre com terno, cala e chapu. Recentemente eu estava com um empresrio que comeou a dizer para o povo que eu era de candombl, s porque me visto todo de branco. Como sou negro, me ligavam a um preto velho. Mas no sou do candombl nem tenho nada contra. S no quis que alimentassem uma mentira, conta.

    Hoje o mestre mora na casa da filha, com ela e o genro. Ele se casou cinco vezes, mas agora est vivo. Galo Preto tem um herdeiro musi-cal: o filho Telmo Anum, de 39 anos, que guitarrista e percussionis-ta. O ttulo de Patrimnio Vivo, no caso de Galo Preto, foi mais do que um reconhecimento artstico, um incentivo ao seu trabalho. Para ele, foi uma resposta sociedade.

    Oua a msica Preto bonita cor

  • msiCA CorrendonAs VeiAsMAESTRO DUDA

    O frevo, para o maestro Duda, no um simples gnero musical ou um patrimnio da humanidade, como o prprio msico do Estado de Pernambuco. O gnero sempre esteve na trajetria e no cotidiano do mltiplo instrumentista mais do que como acordes, partituras e arranjos. Duda capaz de se magoar com o frevo, demonstrar seu amor por ele, te-mer o futuro, dar conselhos para o presente. So duas personalidades for-tes, talvez, em uma relao de amor incondicional e mgoa reticente. Aos 78 anos, o maestro deve seu prestgio em Pernambuco ao frevo, mas a ale-gria do ttulo traz tambm o ressentimento com o pouco reconhecimento das suas outras composies.

    Porque, alm de mestre do frevo, Jos Ursicino da Silva, nome de cartrio

  • de Duda, um maestro mltiplo, que passeia, como todo bom mestre, do erudito ao popular. A msica faz parte do seu corpo, como se corresse no seu sangue. Mais do que contagiado pelo vrus da msica, Duda acredita que j nasceu com ele; estava fadado aos instrumentos, notas, partituras, sutes, arranjos e, claro, suor. Quando criana, aprendi a tocar em uma banda, a mesma em que meu pai tocava, a mesma em que meu av tocava. No tinha internet, porque hoje todo mundo nem sai dela. Naquele tempo no tinha internet, no tinha televiso, msica era o que eu tinha pra fazer. Eu no tinha outra opo, no, aponta.

    Diz logo que a sua histria, que comea em Goiana, pode ser facilmente encontrada na internet. E pode mesmo, nas mais diversas formas, de enci-clopdias de msica at duas dissertaes de mestrado. Mas, se voc qui-ser, conto novamente. Pernambucano e paraibano ao mesmo tempo, Duda se considera um meeiro, por ter nascido a 62 km de Recife, perto do limi-te com a Paraba. O comeo na msica, seguindo os passos paternos, foi na banda Saboeira, a grande rival do grupo Curica. Ali, aos oito anos, conheceu o saxofone, seu companheiro de dcadas que lhe introduziria ao frevo, partitura e a todo o universo musical. Dois anos depois, aos 10, j mostrava a sua criatividade precoce: depois de ver um filme com o mesmo nome no cinema, comps Furaco, o seu primeiro frevo, com um arranjo simples.

    A partir dali, foram mais de 500 discos gravados. Veio para o Recife em 1950 tocar na lendria Jazz Acadmica, fundada por Capiba. Sua trajetria se confunde com o frevo, mas ultrapassa em muito o gnero. A Sute nor-destina, por exemplo, j foi executada por orquestras americanas, japone-sas e alems e todas as bandas brasileiras. As orquestras sinfnicas do mundo todo e as bandas sinfnicas e filarmnicas do Brasil inteiro tocam msicas minhas. Tem frevo no meio. Mas tem baio, tem xote, tem mara-catu, tudo que msica nordestina tem, conta. O maestro Jlio Medalha disse em uma entrevista que, se eu tivesse nascido nos Estados Unidos, eu seria um Quincy Jones, revela, com orgulho.

    Nas composies eruditas, quase sempre arranja um modo de ressaltar sua origem, carregando-as do popular. S que sua capacidade de arranja-dor no para a. Vai de hinos de colgio (Vez ou outra paro um estudante do Colgio Bandeira, na frente de casa, digo venha c e peo pra ele can-tar o hino, s para brincar. Depois digo que eu compus) at arranjos para CDs de igrejas, de sutes a frevos de rua. Msica para mim tem que ser boa. Pode ser erudita, popular, sacra, evanglica.

    FREVO NO PARA OUVIR SENTADO

    Ao explicar uma msica, Duda para o que estiver dizendo e comea a cantarolar. Acompanha a voz com a mo, como se regesse a si mesmo. A melodia um idioma parte para o maestro, uma linguagem afetiva, em que ele capaz de contar a histria do Brasil, homenagear um filho ou um

  • amigo, representar uma regio, contar suas dores ou alegrias. A msica essa linguagem particular para Duda; o frevo, a sua primeira e

    mais dbia paixo. O ritmo parte da sua vida. Comps um para cada um de seus filhos. Um dos mais famosos em homenagem quele que seguiu seus passos na msica, Nino Pernambuquinho, hoje professor do Conservatrio Pernambucano. O problema que, como o frevo quase no lembrado fora do perodo carnavalesco, o maestro se ressente da falta de trabalho. S se lembram de mim no Carnaval, durante trs dias. E o resto do ano?, diz. Para tocar aqui em Pernambuco, tenho que enfatizar mais o frevo, o resto da minha obra esquecida. Afinal, santo de casa no faz milagre.

    Nesse vaivm sentimental, em determinado perodo da vida deixou de compor frevos. At nas sutes com ritmos populares, escolhia o maracatu e a ciranda. a mgoa que continua viva. Duda, no entanto, no consegue esconder por muito tempo a relao ntima com o mais pernambucano dos ritmos: se preocupa com seu futuro como se ele fosse um filho que vai se-guir aqui quando o maestro se for.

    Outro desapontamento no ser chamado para mais atividades. O ttulo de Patrimnio um orgulho, mas ele no quer ser entronizado em um ttulo: quer continuar tocando o tanto quanto possvel. J que eu estou vivo, sou patrimnio e estou me locomovendo, me usem! Estou pronto para trabalhar, eu preciso trabalhar, avisa. Apesar de estar com 78 anos de idade, eu estou vivo, brinca. Seu sonho poder no s tocar, mas ensinar seu conhecimen-to sobre o frevo para alunos, at para conect-los com a essncia do ritmo.

    Esto descaracterizando o frevo. A juventude est pensando que o que feito hoje o frevo de verdade. preciso que se conhea o frevo, no se pode colocar ele numa vitrine, tombar, como uma igreja, um museu, alerta. O problema, para ele, no a modernizao do ritmo, mas sim ver o frevo ser valorizado cada vez mais no palco e no na rua. Por mais moderno que um frevo seja, a orquestra na rua que toca ele como ele . No tem solis-ta, no, s a orquestra tocando frevo, ensina, lamentando que, em 2012, entre os trs primeiros lugares do concurso municipal, nenhuma cano era de rua todas seguiam arranjos que s serviriam para shows. O frevo contagiante, o frevo para balanar o povo, no formal. Ficar sentado ouvindo frevo como num velrio? O frevo no foi feito para isso, sentencia.

    DIOGO GUEDES

    Oua a msica Sute nordestina, executada pela Orquestra do Maestro Duda

  • CAso de Amor Com o FreVoMAESTRO NUNES

    Em 2003 o maestro Nunes, com a autoridade dos seus ento 72 anos, lanou dois lbuns de frevos, um de rua, outro cano. Ambos com composies inditas. Algo raro, numa poca em que o ritmo andava por baixo, vivendo de regravaes. Ele repetiria o feito cinco anos depois, quan-do completou seis dcadas dedicadas no apenas ao gnero, mas aos diver-sos ritmos pernambucanos.

    Obviamente ele mais conhecido pelos frevos instrumentais que comps, alguns quase de domnio pblico, como o caso de Cabelo de fogo, que divide com Vassourinhas (de Joana Batista e Matias da Rocha) o ttulo de marcha-frevo mais executada nas ruas do Estado du-rante o Carnaval. uma melodia que todo conterrneo conhece de

    Fotos: Marcos Michael/JC Imagem/22-1-2007

  • cor, embora boa parte no saiba o nome do autor.Nascido em Vicncia em 26 de junho de 1931, Patrimnio Vivo de

    Pernambuco desde 2009, Jos Nunes de Souza tem uma trajetria artsti-ca muito parecida com a de outros grandes nomes do frevo, como Levino Ferreira, Capiba, Jos Menezes. Comeou a tocar ainda de calas curtas, passou por bandas de msica do interior e veio desaguar no mar.

    No Recife passou por diversas agremiaes musicais, como Banda Unio Operria, Banda Manoel leo, Unio Operria da Macaxeira e Banda do Liceu de Artes e Ofcios, onde fez curso formal de msica. Tambm tocou na banda do Cassino Americano, no Pina, e foi funcionrio da Banda da Cidade do Recife. Sua ligao com o Partido Comunista do Brasil o levou trabalhar no apenas com as citadas orquestras operrias, como a ser um

    dos mais atuantes msicos do Movimento de Cultura Popular, o MCP, criado no primeiro governo Miguel Arraes.

    Militncia que no justifica, mas explica um pouco o ostra-cismo pelo qual o maestro Nunes passou ao longo dos anos. Ele tocou frevo na Assembleia Legislativa, na posse de Miguel Arraes como governador em 1960, como tambm esteve no pa-lcio do Campo das Princesas no dia 1 de abril de 1964, quando o Exrcito ocupou o local e prendeu o governador. Ele costu-mava contar que seguiu em passeata at o palcio para se soli-darizar com o governo eleito pelo povo. No caminho, os mani-festantes esbarraram nas foras militares que, embora o grupo que protestava estivesse desarmado, dispararam os mosquetes contra aqueles que faziam resistncia ao golpe. No extinto pro-grama do apresentador Roger de Renor na TV Universitria, Nunes contou que correu da Praa da Repblica, onde fica o Palcio do governo, at a Praa do Entroncamento. Quando che-gou em casa, criou logo um frevo. Depois passou alguns meses escondido no campo para no ser morto.

    Alm de ter trabalhado em vrios projetos do MCP, que em-pregava a cultura popular para politizar, alfabetizar e, claro, di-

    vertir, Nunes militava no PCB a ponto de dar uma de gazeteiro vendendo o jornal Novos Rumos, rgo do partido que funcionou de 1959 a 1964 e dava destaque aos acontecimento sem Pernambuco. Essa atuao o levou a ser demitido da banda municipal e amargar o isolamento de ser oposio, num tempo em que muita gente fazia questo de ser situao.

    Numa curta entrevista disponvel no YouTube, Nunes afirma que nun-ca comps pensando em dinheiro. Atendia o apelo da msica, que cor-re no seu sangue desde que nasceu: Aceito a msica como se fosse uma mulher que eu amasse e, ao mesmo tempo, ela fosse ingrata para mim.Talvez ingrata, mas nem por isso deixou de ser fonte de inspirao. Uma fonte mais que generosa, que lhe rendeu cerca de trs mil composies. No citado lbum 60 anos de frevo, Nunes, a exemplo do fez Lamartine

    Entre os frevos clssicos compostos por Nunes, esto Cabelo de fogo e de perder o sapato

  • Babo,homenageia diversas agremiaes carnava-lescas, dedicando-lhes frevos inditos. Foi o caso dos ttulos Este cachorro feio, mas no morde, para a troa Cachorro Feio de Santo Amaro, ou Pra voc doutora Mrcia, feito para a Turma da Jaqueira Segurando o Talo. Entre seus clssicos mais consagrados esto Cabelo de fogo, de per-der o sapato (que batizou o lbum duplo dedicado ao centenrio do frevo em 2007), e Mosqueto. Esta ltima acitada composio inspirada nos episdios que viveu no fatdico 1 de abril de 1964,

    quando fugiu para no morrer dos tiros disparados pelos soldados, que feriram e mataram manifestantes. A vingana do maestro foi um frevo: Onde o coronel usava o mosqueto, eu usava a alegria.

    Uma alegria que ele espalhou pelo Carnaval, apesar de durante muito tempo ter sido subestimado como compositor, pela estrutura simples dos seus frevos, nos quais incorriam poucos acidentes na execuo. No en-tanto, a gerao que j h algum tempo d as cartas no frevo tem Nunes como uma das principais influncias, chegando a estudar com ele, como Francisco Amncio de Souza, o Maestro Forr: Com uma habilidade tal-vez inconsciente, Nunes comeou a compor de uma maneira que sua m-sica pode ser executada por uma orquestra de qualquer nvel. Muita gen-te criticava, mas acabou que a minha gerao eu, Spok e muitos outros msicos passou pela escola de Nunes. Meu primeiro professor de msica sugeriu que os alunos fossem ensaiar na escola de Nunes, ali no Ptio de Santa Cruz. Fui vrias vezes. Ele foi de grande importncia para o frevo. Conseguiu criar um frevo instrumental bonito, simples e de fcil execuo, o que uma tarefa muito difcil.

    A escola de frevo do Maestro Nunes, dirigida principalmente para crian-as, filhos de integrantes de agremiaes carnavalescas, foi uma das res-ponsveis pela renovao de instrumentistas no Carnaval pernambuca-no. Na sua oficina na Casa do Carnaval, no Ptio de Santa Cruz, ele cui-dava com zelo e pacincia da restaurao de antigas partituras de fre-vo. Aos 82 anos, infelizmente, o maestro do povo foi pego pelo mal de Alzheimer. Fica a dvida se realmente esqueceu a msica, mulher amada e ingrata, que o tratou com carinho e desprezo ao longo de mais de sete dcadas de vida a ela dedicadas.

    JOS TELES

    Maestro Nunes tem parcerias com grandes nomes do frevo pernambucano, como Levino Ferreira, Capiba e Jos Menezes

  • meu time umA FilArmniCASOCIEDADE MUSICAL CURICA

    Maria nem quis ver a novela, tirou os bobes dos cabelos e saiu de casa s pressas para no se atrasar. Antnio foi direto do trabalho. Francisco levou os netos. Severina e Joo saram correndo da escola, assim que as aulas acabaram. Todo mundo foi chegando de mansinho, se sentando nas cadeiras de plstico para assistir apresentao. Todo mundo foi se cum-primentando. Todo mundo se conhecia. Bastou o maestro abrir a pasta de partituras e erguer a batuta para os cochichos silenciarem. E comeou o concerto em Goiana, na Zona da Mata Norte.

  • Patrimnio Vivo de Pernambuco, a banda filarmnica Curica se or-gulha tambm do outro ttulo: a mais antiga em atividade da Amrica Latina. O grupo, inicialmente com 15 msicos,foi fundado em 1848 por Jos Conrado de Souza Nunes, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos, para tocar nas festas catlicas da cidade. A origem do nome da agremiao tem duas verses. H quem diga que uma senhora chamada Iria, ao ouvir o som que a banda fazia na rua, disse ao maestro que a msica parecia o grito de uma curica (um pssaro de canto estri-dente). Outros afirmam que Iria, escutando uma das polcas do repertrio, achou que o refro soava como cu-ri-ca-c.

    Se nenhuma dessas verses prevalece sobre a outra, consenso que a fi-larmnica acabou se transformando em um mimo dos moradores. No de todos, mas de uma parte deles. Os goianenses dividem sua paixo entre duas bandas, a Curica e a Saboeira, fundada anos depois, em 1855. Filarmnica de interior que nem time de futebol da capital: cada famlia torce por uma, explica Edson Jnior, presidente da Curica.

    Edson e a famlia so exemplos dessa devoo banda. Ele chegou agre-miao ainda criana, sonhava em ser msico. Lembra-se daquela poca com orgulho. A gente mal tinha instrumento e uniforme, se mantinha a partir da ajuda dos scios-colaboradores. Quando eu ia fazer a cobrana, no dava nem um salrio mnimo. Cada um contribua com R$ 4, R$ 2, diz.

    Durante dois anos, ele ficou na filarmnica estudando teoria musi-cal, j que seus pais no tinham dinheiro para comprar instrumento. Um convite do maestro da Saboeira fez com que ele sasse da Curica e fosse para o grupo rival. L eu teria instrumento. A Saboeira sempre teve mais condies, porque uma banda de comerciantes, gente rica. A Curica do povo mais humilde, dos operrios, explica o msico. Depois que aprendi a tocar e com o dinheiro que juntei, comprei o trompete e voltei para minha banda de origem.

    Orgulho uma palavra-chave dentro da Curica. Na histria que repassada pelas geraes de m-sicos, uma das lembranas sempre recontada a do dia em que a banda tocou com o batalho da Guarda Nacional que recebia o imperador Dom Pedro II, quando ele visitou Goiana em dezembro de 1859. Essa presena em momentos importantes da histria nacional, aliada sua resistncia em fazer msica no interior, terminou fortalecendo a imagem da Curica no restante do Brasil e fora

    do Pas. Em 1944, a filarmnica recebeu a visitado musiclogo uruguaio Francisco Curt, para pesquisar de perto, na sede da banda, partituras do sculo 19.

    Patrimnio Vivo de Pernambuco desde 2005, atualmente o grupo se rene para os ensaios na rua da Igreja de Nossa Senhora de Rosrio dos

    Oua a msica Vassorinhas, composta por Matias da Rocha e Joana Batista

    Filarmnica do interior

    que nem time de futebol da capital: cada famlia torce por uma.Edson Jnior, maestro da Banda Curica

  • Negros, no Centro de Goiana. A casa-sede foi uma doao recebida no dia do centenrio da filarm-nica. O acervo do repertrio da Curica rene cer-ca de 800 peas, entre msicas religiosas, clssi-cos da MPB, composies barrocas e dobrados. Quando chega o Carnaval, os 60 msicos se di-videm tambm nas orquestras de frevo que ani-mam as festas locais.

    Um dos integrantes mais jovens da Curica Victor, 14 anos, h quatro dentro da filarmnica.

    So 165 anos que o distanciam da primeira gerao do grupo. Ningum me incentivou. Eu mesmo quis vir. Minha me no gosta que eu faa par-te, porque quer que eu v estudar, mas eu me esforcei e entrei. No comeo difcil. Mas,quando a gente se acostuma, passa, diz. Tmido, o pequeno trompetista vai se entrelaando aos mais experientes e um dos desta-ques das retretas. Dois dias por semana ele tem aula de msica na sede da banda. De Goiana j viajou para Macei e Portugal,a fim de se apresentar. Cursando o nono ano do ensino fundamental, o menino que adora tocar frevo O meu preferido Vassourinhas sonha com o futuro: Quero ser da Marinha ou do Exrcito, mas sem deixara msica de lado. Meus amigos da escola acham isso chato, falam para eu sair. Mas eu no vou sair, no. Gosto de futebol, mas prefiro a banda.

    Victor, trompetista, um dos integrantes mais novos da Banda Curica

  • FestA no interiorEUTERPINA DE TIMBABA

  • Toda a cidade estava l para assistir estreia. Em Timbaba, Zona da Mata, o povo se aglomerava na Praa Dona Guiomar (hoje Praa Joo Pessoa) para ver a primeira apresentao da banda Filarmnica Euterpina de Timbaba. Fundada em fevereiro de 1928, s dez meses depois ela fazia seu primeiro dobrado, no mesmo lugar em que havia sido criada, como se fosse um grito de independncia dado pelo professor Jos Mendes da Silva, na poca aos 23 anos. Existia a Sociedade Musical Primeiro de Novembro, mas a banda sozinha j no dava conta da demanda dos eventos da cidade. As apresentaes eram muitas e havia muitos msicos por aqui, lembra o atual presidente da Euterpina de Timbaba, Eder Gomes.

    Batizada com um nome que faz aluso deusa da msica, Euterpe, a banda filarmnica um orgulho de timbaubenses. A sede do grupo fica no centro da cidade, ao alto, de onde se pode ver parte do comrcio e das ave-nidas principais. A banda surgiu em nove de fevereiro de 1928. Atualmente as coisas vo bem para a filarmnica, mas nem sempre foi fcil. Em 1962, enquanto o Brasil fervilhava por causa dos movimentos poltico-sociais e

    conflitos partidrios, a falta de incentivo pblico fez com que a Euterpina de Timbaba fechasse as portas. Foram problemas externos, de persegui-o poltica; e internos, de divergncias da prpria diretoria, diz Eder. S em 1989 que o grupo foi re-montado, por deciso de ex-integrantes e com aju-da de scios e colaboradores, agora na sede atual.

    O prdio de dois galpes, que aos poucos vai sendo reestruturado, guarda as lembranas e a

    histria da msica de Timbaba. Aqui 42 msicos com idades de 17 a 65 anos redescobrem todo dia o prazer da arte e lutam para se modernizar. Desde 1995 frente da regncia da banda, o maestro Josivnio Rique de Lima, 41 anos, deu uma revirada no repertrio das apresentaes, incor-porou novos arranjos e canes contemporneas s retretas, incluindo uma feliz releitura de Toque de Luanda, criada a partirdas partituras do Maestro Forr, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetrio.O pblico jovem no estava muito interessado nas nossas apresentaes. Mudamos o repertrio da banda, tocamos msicas mais jovens e fazemos algumas coreografias desde que o novo maestro assumiu.

    O resultado que, alm de concertos mais atrativos, o grupo ganhou mais alunos. A cada ms, graas a um projeto municipal, a Euterpina e a Primeiro de Novembro circulam pelos bairros mais carentes da regio levando msica para todos. A banda de Timbaba Patrimnio Vivo de Pernambuco desde o final de 2012. Alm da filarmnica, o grupo tambm tem uma orquestra de frevo, criada em 2010.

    Mudamos o repertrio da

    banda, tocamos msicas mais jovens .Eder Gomes, presidente da Euterpina Timbaba

  • sAlVos pelA retretAORQUESTRA CAPA-BODEAs bandas de interior equivalem aos conservatrios da capital. A afirmao feita por Joo Paulo Ferreira da Hora, 42 anos, pre-sidente e maestro da Banda Euterpina Juvenil Nazarena, de Nazar da Mata. Ele o prprio exemplo de suas palavras. Foi no grupo que comeou a dar os primeiros passos como msico. Hoje ganha o Pas como integrante da banda do cantor Siba.

    A Juvenil Nazarena foi criada no dia 1 de janeiro de 1888. poca, Nazar era uma cidade pequena, onde existia um grmio dos comercian-tes locais msicos nas horas vagas. Por isso surgiu a ideia de se criar uma banda. Como tradio no interior, o grupo passou a celebrar o anivers-rio de fundao comum churrasco de bode. O animal era capado meses antes. Quando o povo da cidade via os msicos passarem, dizia: l vo os capa-bode, diz Joo, explicando a origem do nome popular que a banda recebeu na cidade: Capa-Bode.

  • Num bonito casaro, em frente Praa do Frevo, fica a sede do grupo, onde acontecem ensaios e reunies. Tem fachada de platibanda com de-senho marcante e dentro um lindo piso de ladrilho hidrulico. H cinco anos o lugar passou por uma reforma para consertar o telhado, danificado pelas chuvas. Nas paredes, as recordaes desses 125 anos de histria esto enfileiradas em fotografias e psteres, ao lado de uma imagem de Santa Ceclia, padroeira dos msicos.

    Manter uma banda filarmnica no tarefa fcil nem barata. Os custos para comprar e manter os instrumentos so altssimos. Graas ao ttulo de Patrimnio Vivo, que concede uma bolsa mensal Capa-Bode, a situ-ao melhorou um pouco, segundo Joo Paulo. A gente pode dar uma gratificao aos msicos. O trabalho de incluso social. A gente prepa-ra o cidado, d uma profisso. Os professores que esto aqui muitas ve-zes trabalham voluntariamente. Mas eles precisam ganhar alguma coisa, tm famlia, diz ele, que tambm representante comercial. Tiramos muita gente do meio da rua e formamos profissionais. H pessoas que sa-ram daqui e hoje so professores do Conservatrio Pernambucano ou tocam em grupos de renome.

    Alm da banda, a Juvenil Nazarena mantm uma escola de formao na qual atende crianas a partir dos 8 anos. Ao todo, so 60 alunos. Eles tam-bm se dividem em uma orquestra de frevo. Uma das maiores dificuldades da agremiao, no entanto, a preservao de sua memria. Com mais de um sculo de existncia, a filarmnica deixou de registrar vrios fatos do passado e agora no tem como resgat-los.

    Alm de maestro da Capa-Bode, Joo Paulo integra a banda do cantor Siba

  • reFernCiA no sAmbAPAGODE DO DIDIO pagode, no bar do Didi, acontece. No agendado. Tudo comea com um encontro de amigos. H 32 anos, Valdemir de Sousa resolveu dei-xar o trabalho de gerente no restaurante portugus Adega da Mouraria, no Bairro de Santo Antnio, para abrir seu prprio negcio. Levou consi-go um violo, a coragem de viver um sonho e a ousadia de ser seu prprio chefe. Ele nem esperava que as suas partituras de clssicos da MPB da-riam lugar s rodas de samba que j trouxeram ao Recife grandes nomes nacionais antes mesmo de se tornarem famosos.

    No apertado estabelecimento da estreita Rua Ulhoa Cintra, em meio ao caos do Centro do Recife, seu Didi relembra a vida de festas. Enquanto arruma o bar para mais uma noite de rodas de samba, que tomam o es-pao de quinta a sbado, das 18h s 23h, o senhor de cabelos grisalhos vai fazendo listas. Aqui eu deixo todos os meus instrumentos: violo, cava-quinho, reco-reco, pandeiro. Mais tarde os meninos chegam e pegam os

  • instrumentos, a vira pagode, diz. Foi assim que as coisas comearam.

    Recifense, Didi viveu a infncia na Bomba Grande, Zona Oeste da capital, onde brincava beira do rio. Em casa, acompanhava a boemia do pai, que virava a noite tocando boleros, tangos, valsas e sambas no violo. O menino gostava de ver o pai e seus amigos tocarem. Observava cada nota, prestava ateno nos acordes e aprendeu as-sim, s de olhar. O pai no queria. Naquela po-

    ca, andar com violo debaixo do brao era perigoso. Voc podia ser preso e era descriminado. Hoje a turma tem respeito.

    J adulto, dominando o violo, Didi foi trabalhar na Adega da Mouraria. Antes havia sido almoxarife, datilgrafo e auxiliar de escritrio. Na Adega da Mouraria, viu passar nomes importantes da msica nacional e lusitana: Jair Rodrigues, Cauby Peixoto, Amlia Rodrigues, Pery Ribeiro e Agnaldo Timteo. Na mesma poca, era aluno do Conservatrio Pernambucano.

    Foi no beco estreito do bairro de Santo Antnio que Didi conseguiu unir suas paixes: a msica e um restaurante s seu, de onde tirou sus-tento para criar os trs filhos. Hoje eu sou a referncia do pagode em Pernambuco, diz, com orgulho de ser pagodeiro.

    O estabelecimento fica numa rua estreita do centro do Recife, de quinta a sbado vira uma grande roda de pagode

  • um outro rei do bAio JOO SILVA Joo Silva, 78 anos, confirma o velho ditado sobre a fora que as coisas parecem ter quando precisam acontecer. Roupa do couro como nico patrimnio, 16 anos incompletos, resolveu se mandar para o Rio de Janeiro, a ento ferica capital federal. Queria ser artista de todo jeito, lembra ele, que morava com a me no bairro recifense de Cajueiro. Grande m..., gar-galha ele, dono de um humor to indomvel quanto o talento. Peguei uma carona em Garanhuns e fui-me embora at Alagoas.

    No caminho se ofereceu para trabalhar num trem. Como pagamento, teria a passagem. O sujeito perguntou quem conhecia o Rio e eu disse logo que conhecia.Joo nunca tinha sado de Pernambuco. O candidato a artista chegou ao Rio para entregar a planilha de passageiros da viagem e, sonho maior, conseguir uma vaga na Rdio Nacional. Morou por trs dias num albergue pblico. Se eu no arrumasse emprego, teria que sair de l.

    Menos de trs luas depois, tinha arrumado no s ocupao como

  • moradia. Fui trabalhar na oficina de uns portugueses e fiquei moran-do por l. Lavava a roupa e ficava de cueca, esperando secar, diz ele. Uma semana depois, os primeiros sinais concretos da prosperidade: j tinha dinheiro para mudar de trajes.

    A arte lhe deu mais que camisas. Comum a carreira ascendente nos tem-pos ureos da rdio brasileira, iria se tornar um dos maiores parceiros de Luiz Gonzaga, conterrneo que s conheceria na Cidade Maravilhosa. O filho de Janurio gravaria, ao longo da vida, nada menos que 140 canes assinadas por Joo. Uma pequena parte, contudo, de seu enorme cancio-neiro. Com mais de mil composies, ele costuma ser regravado por gente como Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo... Ivete uma danada, uma beleza de cantora, diz ele, que teve a sua Nem se despediu de mim gravada recentemente pela sacolejante diva baiana. tambm uma amiga arretada. Vai longe na conversa de safadeza, brinca.

    Gonzaga to importante na vida de Joo como ele o foi na trajetria do amigo. Faz uma falta arretada, um buraco que ningum tapa, diz ele, os olhos marejados ao se lembrar do Velho Lua. Quando Joo se tornou um bem-sucedido cantor de baies na Rdio Nacional, Gonzaga j era majesta-de. Mas, contraditoriamente, vendia muito pouco.

    Atuando como produtor, Joo disparou as ven-das do Trio Nordestino, que alcanou a marca de 280 mil unidades. Gonzaga, apesar da fama, ven-dia mirradas 2,5 mil cpias por lbum. A BMG me chamou para produzir o disco de Gonzaga. E eu disse que, se no desse um disco de ouro a ele, nunca mais precisavam falar comigo, lembra o homem que aprendeu a tocar violo sozinho, aos

    10 anos. Sua escola foram os cabars de Arcoverde.Joo Silva se disps a mexer, justamente, no esprito lrico do Rei do

    Baio. Gonzaga era um gnio, foi quem criou o baio. Mas s cantava la-mento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria mais era esquecer, no lembrar o sofrimento. Na ocasio, houve a primei-ra das muitas brigas entre os dois. Ele disse que no ia gravar embolada, que aquilo no era coisa para ele. Mas faltavam s dois dias para entrar no estdio e eu disseque, se ele no gravasse, eu sairia do disco. Com seis msicas de Joo programadas para o lbum Danado de bom, Gonzaga no teve escolha. Ou aceitava as imposies, ou ficava com o disco esvaziado de ltima hora. Eu ainda disse a ele: Olhe, se eu tivesse chegado antes, quem era o rei do baio era eu, e no tu!. No que Gonzaga assentiu: E era mesmo!.

    Rebelde, Joo exigiu tambm o desmonte de um esquema mais ou me-nos comum nas gravadoras. Os caras gastavam uma fortuna. Ningum

    Gonzaga era um gnio, foi

    quem criou o baio. Mas s cantava lamento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria mais era esquecer, no lembrar o sofrimento.

  • sabia para onde ia aquele dinheiro. Com um disco drasticamente mais barato, ele imps a aplicao da verba economizada. Eu disse: vo pegar o dinheiro e fazer dois Fantsticos e um Globo de ouro. Estrategista impa-gvel do marketing, Silva dirigiu Gonzaga num clipe em que ele aparecia na caamba de um pau de arara, anunciando o caminho inverso. Gonzaga dizia no vdeo que ia largar tudo e voltar ao serto, que aquele era o ltimo disco dele. Gonzaga era um artista, um ator, chorou logo, ri.

    Disco pronto, Joo Silva voltou para Arcoverde tremendo de inseguran-a. Passava os dias bebendo, com medo de no chegar ao Disco de Ouro, diz. Mas o lbum Danado de bom (1984) vendeu nada menos que 1,6 mi-lho de cpias. Gonzaga s aprendeu a ganhar dinheiro comigo, ri, mais uma vez, dando um trago comedido no cigarro que fuma com cada vez mais parcimnia. Em trs meses, Gonzaga vendeu trs discos de ouro! Coautor de Sanfoninha choradeira, Pagode russo e Nem se despediu de mim, Joo Silva seria o grande parceiro de Gonzaga a partir da. O que ajudou o mestre a ganhar um prmio Shell.

    Joo no ficou rico. Mas consegue, como poucos, viver de direitos auto-rais, com mais de duas mil composies gravadas por grandes nomes da MPB. Os 49 anos devida no Rio, precisamente no subrbio de Duque de Caxias, no foram suficientes para mudar o sotaque nitidamente pernam-bucano do compositor. E eu sou besta?! Tem gente que nem chega no Rio e j est entronchando a boca, ri mais uma vez.

    H seis anos, Joo Silva voltou ao Recife. Veio em busca de paz interior. Fiquei vivo da mulher com quem passei minha vida toda, o maior amor, minha grande amiga na vida, diz. Como no conseguisse recobrar as for-as, ouviu os conselhos de um amigo psicanalista. O terapeuta disse para arrumar as malas, largar as lembranas e a condio de vivo coitado a que estaria confinado na comunidade em que vivia. Minha mulher era to arretada que disse que, se ela morresse antes, eu chorasse um pouqui-nho, mas arrumasse logo um rabo de saia, diz ele, as lgrimas rompendo a moldura das plpebras, ao se lembrar de dona Sebastiana Gomes.

    Virou Patrimnio Vivo de Pernambuco h quatro anos. O dinhei-ro at que bonzinho. Mas bom mesmo o reconhecimento, o prest-gio, n?, diz ele, que at largou a boemia. Tinha todos os defeitos do b-bado, ficava rico e chato. Agora que sou patrimnio, tenho que manter a compostura!, gargalha.

    BRUNO ALBERTIM

    Oua a msica Pagode russo, composta por Joo Silva e Luiz Gonzaga

  • no ritmo dA orquestrAsAnFniCACAMARO

  • Reginaldo Alves Ferreira, Mestre Camaro, tinha 7 anos quando fez seu primeiro grande show. Foi submetido ao crivo dos sanfoneiros da sua famlia, numa das reunies no quintal da Fazenda Camala, no interior da Paraba. Tinha sido levado pelo pai, Antnio, e a me, Josefa. Foi to apro-vado que tomou gosto. Continua um nota 10 at hoje, sempre que empunha a sanfona sobre os palcos agora maiores e na presena de outros pblicos.

    Nascido na vspera de So Joo de 1940, o msico, que foi apelidado aos 18 anos pelo cantor Jacinto Silva, por causa das suas bochechas avermelha-das, natural de Brejo da Madre de Deus, no Agreste de Pernambuco. Ele aprendeu sanfona olhando o pai tocar. Aproveitava a ida de Antnio lavoura para ensaiar algumas notas no instrumento. Aos 10 anos, foi para Caruaru. Aos 18, j fazia parte do elenco de msicos contratados da Rdio Difusora.

    O trabalho em Caruaru foi ampliando a bagagem de Camaro. Em 1961, mesmo ano em que representou o Estado na festa de aniversrio de Braslia com o Trio Nortista (ele, Jacinto Silva e Ivanildo Peba), gravou seu pri-meiro disco, pela Rozenblit. Foi numa das apresentaes na Difusora que

    Camaro tocou com nomes como Hermeto Pascoal e, claro, o onipresente Luiz Gonzaga. Novamente o Rei do Baio deixa sua marca imprescindvel na histria dos Patrimnios Vivos de Pernambuco. O Velho Lua levou Camaro para gravar dois discos com ele, em 1969 e 1970, na RCA.

    Nossa amizade durou enquanto ele foi vivo. Luiz Gonzaga tambm lutou pelos sertanejos, pela fam-lia dele, por Exu. Foi quem levou a (rodovia) BR at em cima da Serra do Araripe. Ele chegou a trocar shows por alimentos, na poca de seca, para levar para o povo dele, lembra o sanfoneiro, em entrevista no camarim da TV Jornal, no Recife.

    No entanto, o que transformou Camaro em um grande mestre foi sua ousadia e inovao. O sanfoneiro criou em 1968 a primeira banda de forr do Pas, a Bandinha do Camaro, em que introduziu ao ritmo at ento compassado pela zabumba, o tringulo, o pfano e a sanfona instrumen-tos de sopro como tuba, trombone e clarinete. No mesmo ano lanou a Orquestra Sanfnica, projeto no qual a sanfona deu base tambm para o frevo e o maracatu. Era um encontro de famlia.

    Atualmente Camaro d aulas na escolinha Acordeon de Ouro, que criou em casa, no bairro da Estncia, no Recife. Ensina as primeiras lies do instrumento a crianas e adultos. Com trs filhos, todos msicos,ele ga-rante a continuidade da sua obra, mas padece de uma sade fragilizada. H quatro anos, fez uma cirurgia para a retirada dos rins e hoje precisa se submeter a trs sesses de hemodilise por semana.

    Em 1968, Camaro criou a primeira banda de forr do Pas, a Bandinha do Camaro

  • Artes

    CNICAS

    CINEMA

    &

  • As fotografias e os psteres pendurados na parede do terrao de casa esto entre as histrias de que o cineasta Fernando Spencer ainda se lembra com mais facilidade. Aos 86 anos, sentado na sua cadeira de balan-o, o artista e jornalista enumera momentos e fatos da sua vida numa con-versa emaranhada de saudosismo. Junto TV, na qual o grande nome do Super 8 pernambucano hoje assiste a desenhos e clssicos da stima arte, esto algumas das homenagens que ele recebeu nos ltimos anos: trofus, certificados, cartas de honra ao mrito. Uma celebrao ao homem que de-dicou sua vida ao cinema.

    Os olhos, na infncia, descobriram a alegria e os movimentos da s-tima arte nos trejeitos de Charles Chaplin e nas aventuras dos caubis

    CineAstA dAstrs bitolAsFERNANDO SPENCER

    Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

  • Fernando Spencer comeou a sua carreira em 1969 com o curta A busca

    Assista ao filme Evocaes... Nelson Ferreira de 1987, com roteiro de Fernando Spencer e Flvio Rodrigues

    norte-americanos. Descendente de alemes, Spencer era levado pelo pai, Nicodemes Brasil Hartmann, aos cinemas do Recife. Aos 12 anos, ganhou seu maior presente: um projetor de fil-mes de 35 mm. Ali nascia uma paixo para a vida toda. Ele montou no quintal de casa o Cine Metro, para 20 pessoas.

    Em 1969, o cineasta comeou a carreira de rea-lizador. Filmou em preto e branco A busca, o pri-meiro de seus 44 curtas-metragens, rodado em

    16 mm. Nos anos 1970 ele descobriu o Super 8, uma bitola que tinha pel-culas mais baratas e fceis de manusear, dispensando um aparato tcnico muito caro e sofisticado. Virou uma referncia no formato, enfaticamente defendido nas crticas que publicava no Diario de Pernambuco, jornal pelo qual ele teve a honra de entrevistar nomes como Alfred Hitchcock. Era, sim, mais fcil de fazer cinema nos anos 1970 e 1980. Mas hoje h a van-tagem do apoio da prefeitura e do governo, coisa que no se tinha, antes, diz o senhor que, como mestre, acompanha o que tem sido feito no cinema local. No se contm ao elogiar como elegante e bom o cineasta Kleber Mendona Filho, de O som ao redor: Ele sabe onde bota as ventas.

    Spencer se tornou um grande cronista da cultura e do comportamento pernambucano, contextualizando seus filmes num Recife de folguedos e de desenvolvimento urbano. O diretor vive h 20 anos no calmo e potico bairro Poo da Panela, na Zona Norte da cidade. um lugar muito bom de morar, mas confesso que esse aumento de prdios s vezes me impressiona. Est havendo um exagero, diz ele, que agora busca recursos para trans-formar em digital dois filmes rodados na dcada de 1970: um sobre Manuel Bandeira e outro, feito em parceria com o escritor Ariano Suassuna, sobre os sons do Recife.

    Atualmente, Spencer mora com uma filha e um neto. H quatro meses, ficou vivo. Sua mulher, Ins, faleceu dentro de casa. Agora, a saudade no deixa o cineasta em paz. J nem escuto mais msica, porque me lembro dela. A gente passava a tarde ouvindo bolero, valsa, orquestras, desabafa.

    Em janeiro do ano passado, para custear o tratamento mdico dele e da esposa, o cineasta vendeu parte do seu inestimvel acervo Fundao Joaquim Nabuco. Me arrependo, mas eu precisava, conta o cineasta das trs bitolas, como ficou conhecido por j ter rodado em Super 8, 16 mm, 35 mm. A esses formatos, ele tambm somou trabalhos em vdeo e digitais.

  • Eles foram para provocar. Chegaram com palavras complicadas, expres-ses acadmicas, teorias e metodologias estranhas para quem vivia ali. Alis, desconhecidas pela maioria mesmo daqueles que subiam ao palco para interpretar. O que a trupe de professores e atores vindos da universi-dade da capital levou para o Agreste foi pura provocao.

    O Festival de Teatro Universitrio chegou a Caruaru rasgando a histria da cidade em dois eixos, como aqueles que dividem a humanidade entre antes e depois de um grande acontecimento, estabelecendo o fim e o incio

    o tAblAdo espelho do poVoTEATRO EXPERIMENTALDE ARTE

    Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

  • de uma poca. Era junho de 1962. E, dali por dian-te, amador passou a ser uma palavra incmoda ou, usando a linguagem de Bertolt Brecht, o termo passou a causar estranhamento. Naquele tempo, o Teatro de Amadores de Caruaru atraa as atenes e os olhos da sociedade ainda imune febre da televiso. No Recife chegava a notcia de um festival universitrio com oficinas, palestras e espetculos que, embora sim-ples, prezavam por um trabalho ainda desconhecido por ali: a preparao cnica e corporal dos atores.

    At ento fazer teatro em Caruaru seguia uma receita: escolher o tex-to, dividir os papis e correr para o ensaio. Tudo errado. Aquelas oficinas mostraram isso. Apontaram o quanto era importante preparar o ator teo-ricamente, mesmo que ele tivesse muito talento. Todo aquele escarcu foi a gota dgua e o impulso que faltava para a criao do Teatro Experimental de Arte (TEA). Naquele momento, vimos o quanto estvamos atrasados na nossa maneira de fazer teatro, lembra a atriz Arary Marrocos, que co-meava a dar as primeiras lies como professora nas escolas caruaruen-ses, quando a cidade vivia o auge de uma produo teatral.

    Arary seguiu os passos do marido, Argemiro Pascoal, que foi o nome frente da fundao da companhia. Argemiro e seu grupo pediram ajuda ao professor Joel Pontes, que integrava a equipe dos acadmicos. Eles solici-taram e o mestre topou. Arranjamos hospedagem e durante dois meses, a cada final de semana, vinha um professor do Recife para c nos dar au-las. Parte do Teatro de Amadores no quis. Quem queria terminou saindo e fundando o TEA, em 17 de julho de 1962.

    Durante 16 anos, os ensaios e encontros do Teatro Experimental ocor-reram no auditrio da Rdio Difusora de Caruaru. Em 1978 os ensaios passaram a ser realizados na garagem da casa de Arary e Argemiro. O casal decidiu ento que era hora de construir uma sede prpria. Tudo aos poucos,tijolo por tijolo, moeda por moeda. Hoje o pequeno palco ita-liano com uma plateia de 60 cadeiras de plstico, coxias e camarim guarda nas paredes preenchidas por fotos e cartazes a memria de uma histria de mais de cinco dcadas.

    Desde a criao, o TEA encenou 54 espetculos, alm de promover cur-sos e oficinas de teatro, palestras, debates e seminrios. Levou ainda a sua arte a 65 cidades brasileiras. Em agosto do ano passado,o grupo entrou em uma nova fase. Argemiro morreu, aos 83 anos, deixando para Arary e o filho Fbio a tarefa de sustentar um sonho de teatro numa cidade em que os palcos que interessam grande plateia j so outros: os do forr.

    TEATRO PARA TODOS

    A criao do TEA foi resultado de uma reverberao de ideias. Havia, sim,

    Cena da pea Morte e vida severina, encenada pelo TEA em 1977, sob direo de Agemiro Pascoal

  • o desejo de se profissionalizar. Mas o impulso de tudo foi a vontade de fazer do tablado o espelho do povo. Quando a caravana acadmica chegou a Caruaru, Pernambuco assistia ao crescimento do Movimento de Cultura Popular (MCP). Germano Coelho lanava sua cartilha poltico-cultural com base nos rebulios que fervilhavam nas ruas e praas da Europa.

    Argemiro Pascoal estava entre os artistas que par-ticiparam da reunio do MCP no Recife. Nascido em Bezerros, ele se mudou para Caruaru aos 18 anos e l iniciou a carreira teatral. O a-b-c da Cultura

    Popular chegava cena do Teatro de Amadores da cidade e, posterior-mente, do TEA atravs de montagens de textos norteadas pelos pensa-mentos brechtianos. A primeira pea encenada pelo grupo, em 1963, foi Um elefante no caos. O texto de Millr Fernandes causar a frisson trs anos antes no Rio de Janeiro e em So Paulo, mergulhando no teatro do absurdo, refletindo sobre as hipocrisias e a corda bamba dos momentos que antecediam o Golpe de 1964.

    O TEA referncia nas artes cnicas pernambucanas. Alm de for-mar atores, o grupo foi responsvel pelo fortalecimento da cena teatral no interior, criando festival estudantil e mostra com espetculos nacio-nais. Mas nem tudo so luzes na ribalta. Este ano, Arary recusou o convi-te do Festival de Teatro de Curitiba, um dos mais importantes do Brasil, por falta de verba para arcar com as despesas de viagem, hospedagem e alimentao durante a estada da trupe no Paran. Em 2012 eles haviam participado da mostra, mas conseguiram o dinheiro com muito sacrif-cio, pedindo ajuda a empresrios locais. A bolsa de Patrimnio Vivo ofe-rece ao grupo apenas uma parte da verba necessria para sua sustenta-o. Arary se v dividida entre os clculos do escritrio de contabilidade e as aulas de histria do teatro no TEA.

    Em 2012, o grupo participou do Festival de Teatro de Curitiba com a pea Auto da Compadecida

  • Era mais uma noite de calouros no Circo Democratas e Margarida Pereira de Alcntara queria participar do concurso. Tinha decidido cantar o bolero Corao materno, de Vicente Celestino, um dos seus pre-feridos. Ela precisava ganhar o corte de tecido e o par de sapatos. Quando pisou no picadeiro, era evidente o seu nervosismo. De repente, uma vaia. Ningum tinha pago ingresso para ver aquela menina com pouco mais de 9 anos, franzina, catadora de crustceo, malvestida e descuidada fazer qual-quer coisa. Da plateia, algum gritava para ela sair e ir tomar banho. Era preconceito daquele povo. Pedi o microfone e disse que eu estava malves-tida porque no tinha condies de me arrumar e que catava siri para que meus irmos no precisassem ir para porta deles pedir esmola.

    A meninA que FugiuCom o CirCoNDIA MORENA

  • O silncio na arquibancada evidenciou a perplexidade do pblico. Algum ensaiou bater palmas, e comearam a surgir novos gritos, desta vez diziam que a menina j tinha ganhado. Talvez a resposta dada j bastasse e lhe tivesse feito vencedora. Eu disse que eles no podiam dizer que eu tinha ganhado sem cantar. E cantei. Todo mundo parou para escutar. possvel que a menina nem soubesse o que significavam aqueles tristes versos sobre a ingratido de um filho. Sua voz firme e seu jeito precoce aumentaram o espanto de quem a assistia e garantiram de vez a premiao. O pano, ela dividiu com as duas irms e fez uma roupa para usar com os sapatos no Natal, que estava prximo. Tudo que ganhasse era lucro. Havia perdido o pai h pouco tempo e partilhava com a me as tarefas de casa para sus-tentar os quatro irmos mais novos. Na escola, sequer terminou a quarta srie. O Circo Democratas foi embora e a menina ficou.

    Pouco tempo depois, uma nova trupe mambembe aparece na vida de Margarida. Um macaquinho na porta de casa, de manh cedo, assustou a

    me da menina, que naquela poca j tinha 10 anos. O animal tinha fugido do circo que aca-bara de chegar Vila So Miguel, no bairro de Afogados, comunidade onde ela morava. Margarida foi devolv-lo ao grupo e conquis-tou a amizade da dona do circo, que depois foi convidada para ser sua madrinha de crisma. A recompensada menina foi ir a todos os espe-tculos de graa. Logo na primeira apresen-tao que eu fui, a contorcionista me chamou ateno. O nome dela era Linda Morena. Eu olhei e disse: Eu vou fazer aquilo que ela faz. Vou fazer at melhor. E todo dia eu ia l ver.

    No dia em que o Circo Itaquatiara foi em-bora, a menina deixou a casa e seguiu com a trupe, auto batizando-se de ndia Morena. O pouco dinheiro que ganhava nas apresentaes era o su-ficiente para ajudar a me e os irmos.

    ndia, a mais famosa contorcionista do Estado e uma das artistas Patrimnio Vivo de Pernambuco, reside hoje em uma casa simples e pe-quena, em Muribeca dos Guararapes, uma comunidade pobre da Regio Metropolitana do Recife, bem prxima a um aterro sanitrio. As paredes rachadas chamam a ateno para o perigo em que vivem a artista e sua fa-mlia. Ela mora com o marido, uma filha e um neto. Enquanto aguarda o incio da reforma a ser bancada pelo Governo do Estado, a mulher guarda entulhados, nas estantes da sala, pastas com recortes de jornais, trofus, car-tas de autoridades, prmios, fotos e vdeos que durante os quase 60 anos de carreira formam o acervo de uma vida dedicada arte circense. Na vspera desta entrevista, ela tinha ganhado o ttulo de Mulher Evidncia concedi-do pela Cmara Municipal do Jaboato dos Guararapes. Um dia depois, foi

    Em dezembro de 2011, um incndio destruiu o trailer do circo da artista. S restou a lona

  • titulada cidad jaboatonense. Parece ser um dos maio-res reconhecimentos da minha vida. O que eu no tive na juventude estou recebendo agora na velhice.

    Em dezembro de 2011, um incndio destruiu o trailer do seu Gran Londres Circo. Um dos artistas da trupe acendeu uma vela e terminou dormindo. Conseguimos salvar a lona por sorte, porque estava longe. Agora estou sem me apresentar. Em quase seis dcadas, a primeira

    vez que ela fica longe do picadeiro. ndia passou por 50 companhias,integrou o Garcia e o New American Circus, que a levaram Argentina, ao Paraguai e Bolvia. Alm de contorcionismo,a artista j se apresentou no trapzio voador, na escada giratria e no arame vertical. Aos 69 anos, ela mestre de cerimnias; mas decidiu tambm se aventurar na corda bamba social da defesa da classe mambembe.

    Com uma vida marcada por tristezas seu ex-marido, pai de dois dos seus filhos,que morreram ainda bebs, a traiu com uma parceira de circo , ndia foi parar no hospital. Um problema de pulmo,h cerca de 30 anos, deixou a artista internada. Eu passei dois meses hospitalizada. A, como eu fiz amizade como pessoal, o mdico me deixou ficar mais um ms, para eu me recuperar melhor. Foi quando conheci Maviael, tambm internado por causa do pulmo, conta. Maviael o seu atual marido.

    Hoje os dois compartilham o amor, a responsabilidade de cuidar da famlia e do circo. O casal pretende inaugurar um circo-escola e tam-bm est frente da Associao dos Proprietrios e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco. O trabalho duro, requer sacrifcios, recur-sos e valorizao. Eu tenho lutado por uma classe de minorias. Hoje eu tenho lutado por alcolatras, drogados, esquecidos e abandonados. Ser artistas de circo no fcil, desabafa.

    Eu tenho lutado por

    uma classe de minorias. (...) Ser artista de circo no fcil.

  • GRAVURA

    CORDEL

    &

  • pelejAs de um mundo FAntstiCoMESTRE DILA

    Foto

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    B. L

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  • Lampio moreno, chocho e tem olhos azuis. Em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, vive escondido em uma casa pequena, com dois quar-tos apertados e uma sala minscula, longe de luxos, pratarias, ouros e cou-ros. As paredes frgeis guardam o cangaceiro de traos fortes e pele ama-deirada em tons de verde, preto e azul. Lampio est vivo com esses traos e cores dentro da memria e da obra de Jos Soares da Silva, Mestre Dila. O xilogravurista e cordelista, que nasceu em 23 de setembro de 1937 (em-bora durante a entrevista ele diga ter nascido em 12 de agosto do mesmo ano) no vilarejo Pirau, no municpio de Macaparana, Zona da Mata Norte do Estado, veio ao mundo dez meses antes de Lampio desaparecer (ou morrer assassinado pelas volantes, como narra a histria).

    Na sua memria de infncia, entretanto, ainda sobrevivem no s o se-nhor do cangao, como detalhes de sua fisionomia e seus feitos. H 60

    anos, Dila descobriu os versos da poesia popular e os desenhos en-talhados na madeira com o pai caricaturista, Domingos Soares da Silva, num stio na cidade natal. A ligao com cangaceiros tambm seria herana paterna: Meu pai e alguns dos meus irmos eram do cangao. Conheciam Lampio. Eu vi Lampio. Dila teve 11 irmos.

    Na casa em que mora no Centro de Caruaru cidade para a qual se mudou desde 1952 , Mestre Dila empilha as marcas de Virgulino em uma estante de cinco prateleiras, no canto da sala, perto da por-tade entrada. Nas matrizes de madeira e borracha em que talha formas, rostos, animais e palavras, reconstri com a imaginao as aventuras e as histrias de mitos nordestinos. Eu gosto de escrever sobre Lampio. o que vende mais. Sempre falei sobre o cangao. Escrevia e vendia bem. Tinha pessoas da famlia dos cangaceiros que compravam de uma vez s uns 100 ou 200 folhetos para distribuir.

    por detrs do Parque Luiz Gonzaga, principal polo das festas juninas de Caruaru, que fica a casa de Dila. Na fachada h uma placa com sua foto. A casa de dois quartos, de sala e cozinha espremidas,

    um destino de turistas. Eram mais numerosos quando se vendia cordel em dezenas. Hoje a pessoa compra no mximo dois ou trs, ao preo de R$ 1 cada. A tradio ensaia desaparecer, mas o desejo de mant-la viva no para de aflorar.

    Os rostos sorridentes nos porta-retratos espalhados pela sala, sob a in-tercesso dos santos e santas enfileirados ao lado da televiso, j no tm nome. Dila, entre olhares baixos e risos de canto de boca, teima com a memria, mas fica nas reticncias. Aos 76 anos, as nicas certezas que ha-bitam sua cabea so escritas em rimas. Nas mais de seis dcadas como cordelista e xilogravurista, percorrendo as feiras livres de Pernambuco, Paraba, Cear e Alagoas, a vida lhe rendeu bons causos. Nesse caminho, revelou-se sua f em padre Ccero Romo e frei Damio, alm do seu res-peito por Lampio.

    O poeta ainda se recupera de um acidente vascular cerebral (AVC), sofrido

    Capa de cordel escrito e ilustrado pelo mestre Dila

  • em junho de 2012. Depois de cinco dias internado no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru, ele passou a viver sob cuidados da esposa, dona Valdeci, e dos seis filhos. Dila passou meses se mandar e falar. Agora vai aos poucos reaprendendo tudo, com calma e timidez. A mulher pede para que encare a cmara,mas o rosto continua curvado sob a mesinha em que trabalha diariamente,das 8h s 16h. H muito o que se falar de Lampio, no h tempo para perder.

    A vida que Dila leva como poeta popular a mesma de muitos outros artistas. Para ele, pouco importa a origem dos folhetos no medievo euro-peu. A tradio chegou a esses homens do interior nordestino como ex-presso de uma cultura oralizada, rimada e ritmada, sob tom de humor e sarcasmo, que foi ganhando espao nas feiras. Debaixo do sol, com varais de livretos, os cordelistas contam suas narrativas, provocam o pblico, re-criam o pico e o mtico. No caso de mestre Dila, sua tcnica foi cada vez mais aperfeioada.

    Ele descobriu os artifcios da fabricao de carimbos e passou a usar a borracha na produo de seus trabalhos. Dila lanou um modo par-ticular de imprimir seus cordis (o que o pesquisador pernambucano Roberto Benjamin chama de folk-off-set): seja nas cores diversas que usa em uma s matriz ou nas combinaes de vrias formas separadas e depois unidas em um conjunto nico. A partir dos anos 1970, ele inova e passa a imprimir folhetos coloridos.

    Autor de cordis como O sonho de um romeiro com o padre Ccero Romo e A bagagem do Nordeste, o poeta usa o dinheiro que recebe como Patrimnio Vivo de Pernambuco para ajudar a manter a casa e a comprar os remdios para hipertenso e diabetes. Ele torce para que o dinheiro no atrase. A famlia se vira como pode. Na sua casa, Dila mantm a editora Art Folheto So Jos. Alm de imprimir os livretos populares, faz rtulos de bebida.

    LAMPIO MORREU H DOIS ANOS,NUM INTERIOR DE MINAS GERAIS

    H sempre um segredo prestes a ser revelado pelo artista. O homem que no passado tagarelava, mas hoje vive de poucas palavras, dono de uma doura,mansido e carinho emaranhados de mistrio. A conversa quase sempre uma visita s memrias. Esquecido pela plateia que o aplau-dia nos anos 1970, o mestre j chegou a ser internado trs vezes para tra-tamento psiquitrico. A fantasia lhe rendeu, socialmente, o nome de lou-co. Mas seu talentos e sobressai. Dentro do mestre poeta,um mundo se move, e a figura de Lampio retorna frequentemente: homem moreno, chocho e com olhos azuis.

    O universo dos bandos armados que espalhavam o medo pelo Serto nordestino no embrio da Repblica (incio do sculo passado), com re-latos de saques a fazendas, ataques a comboios e sequestros, to bem

    Assista ao vdeo com Mestre Dila

  • desenhado aos olhos de Dila que arrebatam as grades do inconsciente dele para se erguer com veracidade nos ouvidos de quem escuta a fala do poeta. Os netos dele, seus sucessores, j no sabem falar de cangao. No sabem porque no entendem nada sobre o tema o mestre que diz. Na verda-de, Dila parece estar to a par do que narra, que agora conta uma hist-ria de um Nordeste muito seu. Um Nordeste que talvez s ele conhea. Uma histria da qual ele prprio dono.

    Lampio que para Mestre Dila uma espcie de Dom Sebastio, o rei portugus Desaparecido numa batalha contra os mouros e eternamente aguardado talvez nunca tenha sido to cultuado quanto dentro desta casa pequena e apertada. Sentado, encostado na parede, com o rosto que vez ou

    outra escapa do flash fotogrfico, Dila olha a rua e suspira. Ensaia dizer algo. Os segredos e as histrias vo se moven-do dentro dele com as reticncias. Um silncio de quem quer lembrar ou procura a fala: Morreu h dois anos,num inte-rior de Minas Gerais. Vivia escondido por l. Muita gente se passava por ele, inclusive aquele que mataram em 1938, diz, retomando a conversa. O rosto moreno, o corpo cho-cho, os olhos azuis de Virgulino Ferreira da Silva jamais vo sair das lembranas de Dila, que continua a vida talhando madeiras, contado histrias e criando seus prprios fatos: Para realizar, eu no tenho mais nada.

    TRECHO DE CORDEL

    Caruaru de hoje

    Deus criou Caruaru!Jos Rodrigues de Jesus

    Lembra 150 anos;Caruaru me conduz

    De 1952Me dando conforto e luz

    Ipojuca corta ao meioDa fazenda CaruaraAonde Rodrigues SA sua terra no paraA igreja da conceioPonto zero no rara

    Dr. Jos Carlos FlorncioMuitos e Pontes Vieira

    Vanguarda, A Defesa, Agreste,E locutores tm fronteira

    E o saudoso LdioTeve voz bem lisonjeira

    Luiz Gonzaga de OliveiraO saudoso Lula da Vanguarda

    Me ensinou artegrafiaGilvan Jos da Silva, cada camarada,

    Como Edvaldo Barros,Ivan Galvo e todas grficas na parada

    Caruaru tem a benoQue Deus deu a cada filho

    Apenas sou cordelistaAdotado e sem empecilho

    Meu pai foi igual a mim

  • Aquela pequena sala do burocrtico prdio da reitoria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, nunca serviu como cen-rio para tantas fotografias como foi naquele dia da coletiva de imprensa convocada pelo professor e escritor Ariano Suassuna. Ainda mais quan-do o cheiro do livro recm-lanado por ele dava pano para as mangas aos jornais do Pas. Quatro reprteres corriam a caneta sobre o bloquinho de papel. Ariano desta vez no era o foco do encontro, s adjetivava sua desco-berta: um ilustrador que nunca sequer havia escutado falar dO Romance da Pedra do Reino, nem mesmo do escritor paraibano, virou notcia no Brasil. O melhor gravador popular do Nordeste, dizia Suassuna. J. Borges ja-mais esqueceu tudo aquilo e jamais foi esquecido.

    Xilogravurista e cordelista, o mais pop dos artistas Patrimnios Vivos mora em Bezerros, numa boa casa s margens da BR 232, principal rota que liga o Litoral ao Serto de Pernambuco. J. Borges nasceu num stio

    A tAlho seCoJ. BORGES

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  • a 16 km do centro da cidade, em 1935. Eu comecei a tra-balhar aos 16 anos, na agricultura, com o meu pai. A fo-mos morar na Zona da Mata Sul, em Ribeiro e depois em Escada. Foi l que comecei a trabalhar com cordel, fazer gravura, diz Jos Francisco Borges, 78 anos.

    Chegava nas cidades, colocava o trip com folhetos e abria a mala. Depois comprei um alto-falante. Quem tinha isso era chamado de camel rico. Pobre declamava era no peito bra-

    bo. s vezes, a polcia dava uma bronca, proibia o som. Era uma confuso. Eu vendia bastante, relembra.

    Em meados da dcada de 1970, Suassuna vivia um auto-exlio. Mas re-solveu abrir uma exceo. Precisava conhecer aquele homem que sabia tra-duzir to bem a sua obra atravs da xilogravura. Mandou me levarem at ele. Eu tive sorte. A entrevista foi numa tera-feira. No sbado da mesma semana, j comearam a chegar carros l em casa e at hoje eu no tive

    mais sossego na vida, brinca J. Borges, que s estudou dez meses e abandonou a escola ainda na infncia, por determi-nao da av, que temia que o neto fosse atacado pelo papa--figo nas ruas de Bezerros.

    Foi tudo muito rpido. Nem o prprio J. Borges se dava conta do quanto sua vida ia mudando. Famos