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João Cabral de Melo Neto Prosa MINISTÉRIO DA EDUCAÇAO PNBE 2003

João Cabral de Melo Neto - Prosa

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João Cabral de Melo Neto

ProsaMINISTÉRIO DA EDUCAÇAO

PNBE2003

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João Cabral de Melo Neto

Prosa

3” impressão

▲EDITORA

NOVAFRONTEIRA

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© by João Cabral de Melo Ñeco

D ir e ito s dc e d iç ã o da o b ra em lín g u a p o r tu g u e sa no B ra sil a d q u ir id o s p e la E d i t o r a N o v a F r o n t e i r a S .A .

E d it o r a N o v a F r o n t e i r a S.A.R u a Bam bina, 25 — Botafogo — 22251-050R io de Janeiro - R J — BrasilT el.: (21) 2131-1111 - F a x : (21) 2537-2659h ttp ://w w w .n ovafron te ira .com .b re-m ail: sac@ novafronteira.com .br

E quipe de P rodução:

Regina Marques Carlos Alves Leila Name Julio Fado

R evisão :

Sofia Sousa e Silva

D iagram açao:

Marcio Peres de Araujo

CIP-Brasil. Catalogação-na-fontc Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, R J

M elo Ñeco, João Cabral dc, 1920-1999Prosa / Jo ã o Cabral de M elo N e to . - R io de

Janeiro : N ova Fronteira, 1997.

ISB N 85-209-0896-9

1. Prosa brasileira L Título

97-1464C D D 869.98 C D U 869.0(8 3)-8

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P r e f á c io

João Cabral de Melo Neto, nosso nunca excessivamente lou­vado poeta, que conseguiu reunir leitores cultos e jovens despertan­do para a vida, e tendo ainda uma crítica que o situa entre os maiores poetas da língua portuguesa, em todos os tempos, nunca atribuiu excessiva importância à sua obra em prosa, tendo-se dedicado de corpo e alma à poesia e com ela realizado a crítica que desejava.

Em muitos momentos declarou que se tivesse tido cultura suficiente quando começou sua vida literária, sua opção seria pela crítica e pelo ensaio. No entanto, mais que qualquer outra coisa dá a impressão de que projetos teóricos ou formulação de teorias levam ao conceito e à abstração, ao passo que o fazer poético, além de exigir concisão, objetividade, concretude, podia ser tam­bém um meio de criticar a realidade, usar até mesmo o humor negro e a ironia. A poesia brasileira ganhava o poeta antilírico, mudando seu rumo, de depoimento sentimental e subjetivista.

Por isso, referindo-se à “ função da poesia moderna” , em sua longa fala, ressalta sobretudo a pesquisa formal, cujo melhor exem­plo é sua própria obra. Na crítica à geração de 45 é a ausência mesma dessa pesquisa que o incomoda. Os discursos, pelos pró­prios fins a que se dirigem, não podem deixar de ser sobre­tudo laudatorios.

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João Cabral de Melo Neto * * Prosa

Diferente é o livro sobre Miró, com quem conviveu intima­mente, desde sua chegada a Barcelona em 47, seu primeiro posto. Com Miró proibido por Franco de expor desde sua volta da Fran­ça, João Cabral teve a oportunidade de acompanhar essa fase, a que só ele tinha acesso.

Curiosamente, não fez um livro didático partindo do início figurativo, que culmina com L a Masía. Tierra labrada, Paisaje catalán não são apontados como uma espécie de introdução de um pro­cesso introspectivo, respectivamente de 1921-22,23-24, época em que Breton lançou o manifesto surrealista.

Algum crítico chamou as telas ocres e azuis seguintes de "mag­nética do vazio", mas entre 26 e 27 retorna ao equilíbrio entre o imaginário e o real, volta a trabalhar a partir do modelo, passa à colagem, atitude em que se nota uma rebelião contra o clima da guerra civil espanhola.

João Cabral de Melo Neto começa seu estudo já opondo Miró ao Renascimento, tentando reincorporar o dinamismo fixado na estática superfície da tela, limpar o olho do visto, a mão do auto­mático, tal como ocorreu com ele mesmo, o gosto do fa^er fazen­do, preocupado com a "validade de seus resultados", cuja quali­dade seria o "vivo" da coisa, o inquietante território "onde a vida é instável e difícil".

Pois até isso João Cabral resumiu no poema famoso, que começa:

Miró sentia a mão direita demasiado sábia

e que de saber tanto já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesseo muito que aprendera,

a fim de reencontrar a linha ainda fresca da esquerda.

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Prefárío

Pois que ela não pôde, ele pôs-se a desenhar com esta até que, se operando,

no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não é canhoto) é mão sem habilidade: reaprende a cada linha,

cada instante, a recomeçar-se.

Marly de Oliveira

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S u m á r io

Considerações sobre o poeta dormindo, 11 Joan Miró, 17

Poesia e composição, 51 Crítica literária

A. geração de 45, 71 Esboço de panorama, 85

Como a Europa vê a América, 91 Da função moderna da poesia, 97

Elogio de Assis Chateaubriand, 103 A diversidade cultural no diálogo Norte-Sul, 125

Agradecimento pelo prêmio Neustadt, 133 Prefácio a Antologia poética de Marly de Oliveira, 137

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C o n s id e r a ç õ e s s o b r e o p o e t a d o r m in d o *

" O sono, um mar de onde nasce Um mundo informe e absurdo,Vem molhar a minha face:Caio num ponto morto e surdo. ”

W illy Lewin

Creio que a razão da escolha da palavra “ tese” para designar os trabalhos que seriam apresentados neste Congresso, foi mais uma obediência inconsciente, não pensada (fico mais certo disso cada vez que reflito nos nomes dos seus principais organizadores), a uma praxe seguida no comum dos Congressos, do que a exigência de se verem provadas com evidências científicas (evidência das coisas) essas realidades do espírito, diante das quais todos os nossos movimentos são, mais ou menos, como movimentos de sonâmbulos. Pois foi pensando na desnecessidade de demonstrar uma tese (eu sei que todos compreendem perfeitamente que o assunto do qual tentarei falar aqui, é um desses assuntos em que são mínimas as possibilidades de demonstração), que me animei a chegar ao fim destas considerações, às quais tentei em vão, dar um desenvolvimento e uma ordenação lógicos.

* Tese apresentada ao Congresso de Poesia do Reáfe, 1941.

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I

Diversas pessoas têm falado no sono como trampolim para o sonho, essa fuga efetiva do homem às dimensões comuns do seu mundo. Eu tentarei falar aqui do sono em suas relações com a poesia (relações se­cretas, porém não apenas: suspeitas), do sono como fonte do poema.

Penso que estas palavras exigem uma definição, sobre a qual me apres­so em insistir: não creio existir nenhuma relação de natureza entre o sono e o sonho (e neste caso estariam aqueles que consideram o sono apenas a parte “não iluminada” , a parte em que não existe a “projeção” que é o sonho, um desses intervalos de sessão cinematográfica em que o filme se parte e ficamos inteiramente mergulhados no escuro). Antes, uma diferença de causa e efeito.

II

Há inegavelmente, nos críticos e poetas de hoje, uma decidida preo­cupação com o sonho. Fala-se nele muito freqüentemente. Quando se escrevem poemas procura-se fazê-lo com a linguagem do sonho. Pode- se dizer que em torno do sonho estão limitados os estudos contempo­râneos de psicologia. Já repararam em todas essas seções que os jornais e revistas mantêm, de “interpretação dos sonhos” ? Em todas essas apli­cações práticas que se fazem hoje do seu mistério (sem nenhuma humil­dade), esquecendo-se completamente seu mistério e sua sombra?

Sei bem que a atitude do homem, ou por outra, que nossa atitude diante do sonho é uma dupla atitude, é uma atitude (deixem-me empre­gar uma imagem que é tão comum a certa classe desses pesquisadores) de quem come o sonho e de quem é comido pelo sonho. Sinto muito bem, igualmente, que não saberei falar da parte de erro que essas visões comportam. O que eu procurei, tentando assinalar o modo como o sonho enche a vida do nosso tempo, foi apenas fazer uma constatação que vejo como um dos argumentos para chegar ao fim que persigo. Refiro-me a isso que, como a obra de arte, o sonho é uma coisa sobre a qual se pode exercer uma crítica. O sonho é como uma obra nossa.

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Considerações sobre o poeta dormindo

Uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. O sonho é uma coisa que pode ser evocada, que se evoca. Cuja exploração fazemos através da memória. Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição. Porque é preci­so lembrar que o sonho é uma obra cumprida, uma obra em si. Que se assiste. Esta fabulosa experiência pode ser evocada, narrada. Como a poesia, ou por outra, em virtude da poesia que ela traz consigo, apenas pode ser transmitida.

III

Contrariamente ao sonho, ao qual como que assistimos, o sono é uma aventura que não se conta, que não pode ser documentada. Da qual não se podem trazer, porque deles não existe uma percepção, esses elementos, essas visões, que são como que a parte objetiva do sonho (gostaria que fosse percebida sem outras explicações o sentido em que emprego aqui a palavra: objetiva). O sono é um estado, um poço em que mergulhamos, em que estamos ausentes. Essa ausência nos emudece.

Creio ser necessário, antes de darmos as relações do sono com a poesia e o poeta (essas relações constituindo o assunto destas conside­rações), nos determos, embora de passagem, nas relações entre o sono e o sonho que numa procura de síntese assinalei no início como rela­ções de causa e efeito. Nesse sentido, o sono não só provoca o sonho, não só tem no sonho sua linguagem natural, como também o condiciona.

É o fato de estarmos adormecidos que dá ao sonho aquelas dimen­sões, aqueles ritmos de escafandristas às coisas que se desenrolam dian­te de nós. Aquelas distâncias, aqueles acontecimentos nos quais não podemos intervir, diante dos quais somos invariavelmente o preso, o condenado, o perseguido. Contra os quais não podemos de nenhum modo agir.

Não sei se será adiantar-se demais pelo terreno do “literário” , dizer que é possível reconhecer em todos esses elementos que compõem o clima do sonho, esse clima que como o da poesia, é um clima de tem­pestade, uma imagem da própria aparência do homem adormecido.

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João Cabral de Melo Neto & Prosa

Ambos: os acontecimentos do sonho e o homem adormecido, profun­damente marcados pela presença mesma do sono, essa presença que não é de nenhum modo, apenas a ausência de nossas vinte e quatro horas, mas a visão de um território que não sabemos, do qual voltamos pesados, marcados por essa nostalgia de mar alto, de “águas profun­das” , para empregar a tradução que Américo Torres Bandeira faz das desconhecidas sensações nele provocadas por uma anestesia de cloro­fórmio. Como não reconhecer essa presença do sono na atitude do cor­po de quem dorme, nessas poses não raro trágicas (irônicas), nas pala­vras que se quer balbuciar, na fisionomia em que adivinhamos, inegavelmente, os sinais de uma contemplação, e que é sob outro aspec­to, um sinal de vida?

IV

Talvez eu deva novamente insistir nas dificuldades que existem em se falar de um assunto em que é tão considerável a parte do vago. No meu caso essa dificuldade se multiplica em impossibilidade. Impossibi­lidade de poder, por exemplo, penetrar no mistério de “olhos abertos” , e com essa segura tranqüilidade, aventura tão comum mas que ainda não deixou de me espantar em Paul Valéry.

Além de tudo, porém, uma observação se faz necessária: a poesia não está no sono, no sentido em que ele constitua um reservatório, do qual, em sucessivas descidas, o poeta nos aporte os materiais de seu lirismo. O sono predispõe à poesia. Reconheço que o próprio elemento, o sono em si, a própria palavra: sono (feita de sons que parece se prolongar no escu­ro; a voz do homem falando no escuro), são coisas enormemente poéti­cas. Entretanto, a ação do sono sobre o poeta se dá em outro nível que o de simples material para o poema. Num terreno em que ele deixa de ser um objeto e se transforma como que num exercício, num apronto para o poeta (no sentido esportivo do termo), aguçando nele certas aptidões, certa vocação para o sobrenatural e o invisível, certa percepção do “ senti­do oculto das coisas inertes” , da fórmula de Pedro Nava.

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Considerações sobre o poeta dormindo

V

Tentarei agora, embora com o risco de cair numa generalização gros­seira (numa generalização de aparências) indicar os dois tipos dessa in­fluência do sono nas obras de fundo poético.

Antes de tudo, há a parte de “ aventura” , como diria Murilo Mendes, o que de um certo modo já sugeri acima, escrevendo que o sono predis­põe à poesia.

Ainda aqui penso existir dois tipos nessa “predisposição” , um deles realizado pela idéia de abstração do tempo, de “ fuga” do tempo, que Jorge de Lima considera “ a pedra de toque do verdadeiro poeta” , e que no sono se reveste de um caráter, já não mais “ideal” , de pensamento, mas efetivo.

O outro, realizado por essa idéia de morte a que o sono se associa para o poeta (seria interessante mesmo notar a insistência desse tema na poesia moderna; desse medo de acordar piano, como disse Newton Sucupira; e certamente a quem se propusesse esse trabalho haveria de espantar essa “tranqüilidade” com que se morre — que é a meu ver um fenômeno bem aproximado dessa preocupação de fugir que tanto agita hoje em dia a humanidade acordada); o sono sendo como que um mo­vimento para o eterno, uma incursão periódica no eterno, que restabe­lecerá no homem esse equilíbrio que no poeta há de ser, necessariamen­te, um equilíbrio contra o mundo, contra o tempo.

VI

Uma outra observação a fazer (este sendo o segundo tipo de influên­cia do sono sobre o poeta) é a de que o sono promove esse amálgama de sentimentos, visões, lembranças, que segundo Cocteau fará o verda­deiro realismo do poeta. Pode-se dizer do sono que ele favorece a for­mação de uma zona obscura (um tempo obscuro), onde essa fusão se desenvolve (os nossos sentidos oficiais adormecidos) e de onde subirão mais tarde esses elementos que serão os elementos do poema e que o poeta surpreenderá um dia sobre seu papel sem que os reconheça.

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Sobretudo, favorece aquele recolhimento, aquela presença em si (o poe­ta andando a longas pernadas dentro de sua noite), cujo efeito sobre o poeta, um grande poeta comparou ao de uma verdadeira purificação do espírito (Raissa Maritain).

VII

Talvez seja minha obrigação, agora que termino estas considerações, senão resumir-me, ao menos identificar a presença do sono nas obras de fundo poético, presença aliás que preferi sempre chamar: influência, por me parecer que o poeta, não tendo uma percepção objetiva do que acontece durante o sono, não poderia assumir em sua obra um caráter de presença, em imagem, ou coisa formulada. Assim, pode-se adiantar que o sono não inspira uma poesia (a poesia moderna, por exemplo, coisa que se dá inegavelmente com o sonho, cuja mitologia é a da pró­pria poesia moderna), no sentido em que o poeta se sirva dele como uma linguagem ao seu uso. Apenas, fecunda-a com o seu sopro noturno— o hálito da própria poesia em todas as épocas.

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J o a n M ir ó

§ Mais do que uma época fecunda em pinturas, o Renascimento criou a pintura. Fixou a arte que cha­mamos hoje pintura.§ Até o Renascimento, o objeto pintado não esta­va em nenhuma relação com os limites da superfí­cie que o continha. Estava tão solto no espaço como uma estátua qualquer. A parede da caverna ou a madeira do retábulo eram mais bem o vazio. Eram como um elemento neutro, cuja função estava uni­camente, em conter, suportar a figura pintada.§ Paralelamente, a superfície — definida por seus limites — existia, como elemento essencial, em outro tipo de arte: na decoração. Na pintura deco­rativa, o objeto (quando acontece, ou aparece; quan­do não se esvazia em sua estilização, quando não se apaga em favor da superfície) não pretende agir por si, como o bisonte ou o santo do primitivo. Ele se anula na sintaxe onde se inscreve, na superfície ati­va ao serviço da qual o puseram.§ Pode-se dizer que o Renascimento associou es­ses dois tipos de arte, de funções. Associou o obje­

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A.S pinturas pré- Kenascentistas

J í criação da pintura

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João Cabral de Melo Neto Prosa

Terceira dimensão e estatismo

to, isto é, a representação utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorada, isto é, à utilidade da contemplação. Dessa associação nas­ceu a pintura, o que tem sido para nós a pintura, o quadro. A partir de então, já uma superfície ativa onde se inscreve, também ativo, um bisonte.§ Dessa associação, nasceu um gênero novo, mais ágil do que a escultura (já que trazia a cor, já que se libertava das leis do mundo físico que pesavam de­mais sobre a pedra); uma espécie de escultura mais rica de possibilidades para o crescente espírito cien­tífico de então (que, em arte, ia mais e mais esgo­tando os graus da aparência); uma escultura mais fácil de ser produzida e, portanto, mais apta a satis­fazer as necessidades do consumidor individual de obras de arte, entidade que se ia cristalizando na­quela época de expansão e de fermentação.§ Contudo, nessa associação, a presença do objeto representado parece ter sido violenta demais para permitir um equilíbrio de forças. A presença inte­lectual do objeto desenvolveu-se à custa da utiliza­ção sensorial da superfície. Porque o aperfeiçoamen­to na representação do objeto terminaria por passar do desejo de obter a ilusão do relevo desse mesmo objeto — já lograda, aliás, anteriormente ao Renascimento — ao desejo de obter a ilusão do ambiente em que ele se situava. Isto é: a pintura desenvolveu-se em outra dimensão. Em profundi­dade (o que é mais do que relevo).§ Desenvolveu-se em profundidade: esse aparen­te enriquecimento da superfície vinha, na realida­de, limitá-la. Por exigências da terceira dimensão se anulava na superfície a possibilidade de receber o

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Joan Miró

tempo ou uma grafia qualquer que exigisse para sua contemplação um ato não estático do espectador. § A terceira dimensão em pintura anula a existên­cia do dinâmico (essa riqueza da antiga pintura de­corativa) porque para ser percebida, em sua ilusão, exige a fixação do espectador num ponto ideal a partir do qual, e somente a partir do qual, essa ilu­são é fornecida. Essa ilusão só pode ser apreendida enquanto conjunto. E esse ponto teórico, onde de­vem deter-se os dois ou três segundos iniciais da atenção do espectador, que são o essencial de sua contemplação (já que a apreciação do detalhe se dá independentemente da apreensão do conjunto), é importantíssimo. Esse ponto é o único em que, as três dimensões, por se reunirem em sua mínima medida material, podem ser apreendidas simultaneamente.§ Essa ilusão é fornecida através de certas con­venções lógicas e para ser recebida necessita que o espectador se submeta a uma convenção — a uma posição — preliminar. Desse modo, o enriqueci­mento trazido pela invenção dos meios de repro­duzir a terceira dimensão priva o espectador de usar livremente de sua atenção.§ E, noutra ordem de fenômenos, ela significa o abandono do ritmo pelo equilíbrio. Equilíbrio e rit­mo: dois empregos possíveis da superfície, anulado o último quase completamente (ou até um ponto de difícil reconhecimento) pela pintura criada com o Renascimento.§ E, portanto, fácil de compreender aquilo para que tende sempre a composição de tal pintura. Ela busca fazer instantânea a contemplação do quadro e obrigar a atenção a deter-se naquele ponto ideal

Compor como equilibrar

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Mais sobre o equilíbrio

de onde é possível a apreensão das três dimensões, a ilusão de profundidade.§ Nela é por isso, essencial, a idéia de equilíbrio. Equilíbrio significa estabilidade obtida por meio de uma correlativa distribuição de forças. Num tipo de arte que pede a fixação da atenção é fácil de com­preender como qualquer força excessivamente po­derosa, por atraí-la, por impor-lhe mobilidade, se­ria fatal à ordem do conjunto. Mais do que à ordem: à existência desse conjunto como expressão de um mundo em profundidade. E é ao equilíbrio que se confia a missão de defender aquele ponto teórico, chave dessa ilusão.§ A busca de equilíbrio é, assim, subjacente a to­das as leis que constituem o bem-compor renascen­tista — ainda o nosso bem-compor. E não somen­te, àquelas que constituem o equilíbrio teorizado nas preceptivas. São considerações de equilíbrio que existem no fundo de princípios como proporção, destaque, contraste e, inclusive, no fundo da pró­pria eleição da anedota. Inclusive, são submetidos às razões de estado do equilíbrio, ou plasmados por ele, os débeis movimentos que as preceptivas de­nominam ritmos: permitidos apenas enquanto con­tribuam para realçar essa estabilidade geral ou en­quanto não a perturbem nem a ameacem.§ Da mesma maneira que é a contemplação estáti­ca, instantânea, a convenção a que se submete o contemplador desta pintura, é o estatismo, nascido daquela convenção, o que se poderia chamar seu estilo, o espírito de sua organização. A princípio cien­tificamente elaborada, depois obscuramente obe­decida, uma arquitetura abstrata existe sempre por

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Joan Miró

detrás das obras executadas nestes séculos de pin­tura ocidental — posteriores ao Renascimento — assegurando uma ordem estática à anedota aparen­te, mesmo quando essa anedota pretende uma sig­nificação de movimento.§ Esse estatismo, imposto pela presença e pelos O estatismointeresses da terceira dimensão, define a pintura como estilorenascentista, que é (ao menos a chamamos), hoje, a Pintura. Parece inclusive contribuir para a defini­ção da idéia de beleza da época (pensemos nas pa­lavras que nos acostumamos a associar a essa idéia: serenidade, impassibilidade. Baudelaire, um dos autores que mais violentamente subverteram esse mesmo conceito de beleza, a faria chamar-se rêve de pierre), que como marcada pelo desejo de construir um tipo de universo que, depurado da realidade, habitasse uma dimensão de serenidade e afastamen­to do ambiente. Idéia de beleza que ainda é nossa, embora já não seja a nossa (e por isso, à palavra be­leza preferimos poesia — com seu sentido extraído de não sei que perturbadora atmosfera metafísica).

§ Seria possível outra forma de composição? Seria Miró contra apossível devolver à superfície aquele sentido antigo pinturaque seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente? A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a esta pergunta.Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar à superfície seu anti­go papel: o de ser receptáculo do dinâmico. Ela me parece uma tendência para libertar o ritmo do equi-

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Miró e seus

Sua história: abandono da terceira

líbrio que o aprisiona e que aprisiona toda a pintura criada com o Renascimento.§ A partir desse ponto de vista, examinaremos o sentido em que Miró fez explodir as normas da composição renascentista. O sentido e a história dessa explosão: a história de sua luta contra o está­tico e, assegurada sua vitória sobre este, a maneira como se entregou às possibilidades de um ritmo livre de qualquer limitação.§ Os primeiros passos da originalidade de Miró e do que, a meu ver, significa a revolução que sua pintura trouxe à Pintura, são comuns aos primeiros passos de muitos contemporâneos seus. Em rela­ção a alguns, até posteriores. Entretanto, Miró — ao contrário de muitos deles — levou mais ao ex­tremo o caminho iniciado.§ Este não fixar-se numa solução para convertê-la em maneira, este saber-passar permanente de uma a outra solução impediu qualquer estagnação no artista. Foi esse saber-não-chegar que lhe permitiu dar a sua obra uma continuidade que nada tem a ver com a versatilidade de muitos de seus contem­porâneos.§ Há em sua obra — a partir do momento em que aboliu de sua pintura a terceira dimensão — um caminho. Mas esse caminho tem um sentido: Miró, colocado diante da superfície, começou a fazer, em sentido inverso, o caminho que a superfície havia percorrido até que pudesse conter aquela terceira dimensão imaginária.§ É importante assinalar sua sensibilidade para compreender o que em cada nova solução conduz à solução seguinte. Miró não era o primeiro pintor

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Joan Miró

do mundo a abandonar a terceira dimensão. Mas talvez ele tenha sido o primeiro a compreender que o tratamento da superfície como superfície liberta­va o pintor de todo um conceito de composição.§ E contra o conceito limitado de compor (com­por como equilibrar) que Miró empreende então sua luta obscura. Como é fácil de se compreender, essa libertação, por não se dar com bases em prin­cípios teóricos, não se processa bruscamente. A composição renascentista em Miró não é brusca­mente destruída. Aquela libertação se exprime em luta, numa luta lenta, em que o novo tipo de eco­nomia se vai fazendo mais e mais presente em cada quadro, e esses quadros mais e mais numerosos dentro da obra do pintor.§ Os primeiros passos de Miró contra a composi­ção renascentista se dão a partir dos quadros de 1924. É neles que Miró abandona a terceira dimen­são e toda a sólida estrutura que se pode notar em sua primeira fase. Estrutura esta, absolutamente clás­sica, ou renascentista, dentro da qual esse pós- cubista se ocupava em criar variações tão seguras. Variações, jogos teóricos de composição, que esta- vam a denunciar nele muito mais do que a existên­cia de um simples domínio instintivo.§ Embora poucos tenham se detido a falar disso, já que a crítica prefere realçar, em tal primeira fase, seus dons de colorista e de lírico, a verdade é que quadros como Ym Masía apresentam uma estrutura tão cerrada, uma ordenação tão firmemente estabelecida, que não seria demais defini-los como obra de um pintor essencialmente marcado pela preocupação de construir. Um quase Lhote.

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João Cabral de Melo Neto Prosa

Sua história: uma composição descontínua

Sua história: ainda o descontínuo

§ Nos quadros que realizou a partir daquele ano, Miró começou a pintar aquelas figuras simplificadas, verdadeiras cifras da realidade, que para muita gen­te constitui, ainda hoje, e somente, a maneira Miró. Essas figuras, aliás, atravessarão quase toda sua fase de pesquisa. Essa simplificação da realidade, essa estilização saída da realidade mais imediata porém levada a um ponto de abstração sempre crescente, tem mesmo uma importância primordial: foram elas que lhe permitiram desvencilhar-se da terceira di­mensão, já que tudo ficava colocado como que num primeiro plano absoluto. Nessas figuras nítidas e recortadas, mesmo a sensação de relevo era anulada. § O abandono da terceira dimensão foi seguido do abandono, quase simultâneo, da exigência de centro do quadro. Miró que, ao desenhar cada uma das figuras estilizadas de seus quadros de então con­tinuava obediente às proporções e aos ritmos renascentistas (isto é, individualmente em cada uma das figuras), lança-se contra qualquer hierarquização de elementos de seu quadro. À idéia da subordina­ção de elementos a um ponto de interesse, ele subs­titui um tipo de composição em que todos os ele­mentos merecem um igual destaque. Nesse tipo de composição não há uma ordenação em função de um elemento dominante, mas uma série de domi­nantes, que se propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro. § Isso não significa que Miró haja abandonado completamente, desde então, a preocupação de equi­librar. E o equilíbrio que preside à construção de cada um desses quadros inscritos num quadro, cada

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Joan Miró

um por si uma pequena estrutura clássica. O que Miró parece ter pretendido será impossível dizer. O que Miró obteve foi uma desintegração da uni­dade do quadro.§ Essa fragmentação do quadro também não cons­titui descoberta de Miró. Aliás, esse tipo de com­posição apenas superficialmente vai de encontro ao estatismo renascentista. Ele multiplica quadros den­tro de um quadro e obriga o espectador a uma série de atos instantâneos, a uma contemplação descon­tínua. Mas, em sua natureza, a composição estática continua inalterável.§ Aquele tipo de composição, ainda hoje caro a alguns pintores, principalmente àqueles que, reali­zando uma pintura em duas dimensões não se po­dem socorrer da profundidade para ajudá-los a or­ganizar superfícies muito grandes, não o seduziu muito. Pouco depois, Miró abandona essas superfí­cies como em ebulição para abordar composições de estrutura menos complexa. Quadros menores, apresentando objetos individuais ou pequenos gru­pos de objetos. Suas cifras se fazem talvez mais herméticas; sua anedota mais pobre: sintomas que se poderiam interpretar como de uma maior preo­cupação de construir.§ Neste seu passo — e este Miró o deu sozinho— o pintor ainda está longe de sua posterior inven­ção. Mas ele constitui sua primeira incursão fora do estatismo. O só abandono da terceira dimensão e do conceito de centro do quadro, na evolução de Miró, tem um sentido, hoje, porque o pintor não permaneceu aí; a abolição da terceira dimensão e do centro de interesse se não se acompanhava

Sua história: o objeto e a

moldura

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Sua história: o falso dinamismo

do abandono de todo aparato compositivo criado para ela, pouco, ou nada significava em favor da superfície.§ Esse primeiro ataque direto contra o estatismo vai dirigido contra leis em que este se apoiava es­sencialmente: aquelas que determinam a situação de um objeto na superfície: a relação entre o objeto e a moldura.§ Da mesma maneira como se pode dizer que o trabalho de composição do pintor renascentista busca chegar a um ponto focal principal, se pode dizer, que esse trabalho parte do limite (a contem­plação fará, posteriormente, o caminho contrário: ela se concentra nesse ponto focal já estabelecido e se vai diluindo até a beira da superfície pintada), isto é, da moldura do quadro. E a contar daí que se estabelece a situação daquele ponto e, posteriormen­te, os pesos desse jogo de equilibrar.§ Pouco interessado em equilibrar, em fixar, as ex­periências que Miró realiza nessa época parecem buscar uma medida fora daquela medida fatal, por meio da qual se obtém o equilíbrio sólido e não ameaçado da pintura nascida no Renascimento. Nessa época, ainda distante do dinamismo posterior, o que Miró explora não é um ato temporal do es­pectador. E mais bem uma forma de energia, até então não descoberta: a que pode advir da coloca­ção de uma figura numa posição tal, dentro da su­perfície, que produz no espectador uma sensação de que ela se vai precipitar, mudar de lugar.§ Essa energia, evidentemente, é uma ilusão. A um olho não automatizado, não acostumado inconscien­temente às proporções e ao equilíbrio que se ad-

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Joan Miró

quirem na contemplação de museus e reproduções, ou melhor, a um olho selvagem, virgem dessas for­mas com as quais o hábito visual amoldou nossa contemplação, essa energia é imperceptível. Sem­pre que não se dê a tendência espontânea de todo olho, de colocar a coisa onde se acostumou a ver as coisas colocadas, essa energia, essa sensação de coisa que se precipita e quer buscar sua própria estabili­dade, será imperceptível.§ Miró parece haver conseguido essa libertação da moldura nos quadros que pintou antes da guerra de 1939. Essa libertação não é assinalada por uma exclusividade da maneira dentro de suas obras des­sa época, e sim, pela freqüência sempre maior que se nota no emprego dessa liberdade. É uma liberta­ção não sistemática, interrompida por outras expe­riências contrárias, em que o artista parece medir-se.

§ Esse aspecto da evolução da pintura de Miró — na qual distingo uma continuidade coerente, em­bora nem sempre uma exclusividade absoluta den­tro das fases que constituem a história de seu estilo— me parece perfeitamente compreensível se se tem em conta o caráter não teórico do artista. Mes­mo em sua última fase, quando parece estar mais seguro de sua composição, se observarão no con­junto de seus quadros essas oscilações, normais num trabalho que não se baseia em sistemas, isto é, em algo preciso e inalterável.§ Miró não realizou um sistema de composição. Não existe uma gramática Miró. Mais ainda: Miró não só não a formulou jamais como, e estou seguro disso, não possui um conceito exato do que tecni­

Mirónão-gramatical

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camente, ou esteticamente, pode constituir sua maneira atual de compor.§ Mais ainda: creio que, mesmo sumariamente, o que constitui sua maneira de compor não pode ser reduzido a leis. Senão a leis negativas. Mas a indica­ção das leis tradicionais que em tal ou qual quadro ele desobedece, terá alguma utilidade? Para os que acreditam que sim, deixo a sugestão, sem acom- panhá-los porém no exercício, que, de resto, não oferece nenhuma dificuldade.§ Eu, por mim, creio que não. Miró não aborda as leis da composição tradicional para combatê-las. Miró não busca construir leis contrárias, uma nova preceptiva paralela à dos pintores renascentistas. O que Miró parece desejar é desfazer-se delas, preci­samente porque são leis. Livrar-se, lavar-se delas, coisa a meu ver absolutamente diversa da atitude de substituí-las ou de usá-las pelo avesso.§ Dito de outra maneira: Miró parte de uma atitude psicológica. E da mesma maneira como a ela se deve atribuir as causas de sua invenção — e isso será o objeto da segunda parte deste ensaio — é a ela que se deve atribuir o desenvolvimento conseqüente que se observa na evolução do estilo de Miró. Na qual, apesar daqueles recuos aparentes e da coexistência de maneiras dentro dos quadros de uma mesma épo­ca, existe como que uma luta oculta, mas constante, entre a velha maneira de compor e certos elementos perturbadores que a vão corroendo internamente. Luta que se resolve pela vitória posterior desses ele­mentos, que acabam por se tornar predominantes nas obras que o artista pintou nestes últimos anos.

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Joan Miró

§ À libertação da moldura como ponto de partida do trabalho de compor, seguir-se-ia, na pintura de Miró, a exploração — e a consolidação — das pos­sibilidades dinâmicas da superfície. Historicamen­te, creio que ela data de sua volta à Espanha, du­rante a última guerra européia, e de seu isolamento em Maiorca. Ali, Miró parece haver encontrado uma disposição de espírito favorável a um demorado diálogo com sua pintura. Demorado e tranqüilo. Mantido nesse plano simples do fazer, artesanal, em que a mão fabricadora, por não estar dissociada da inteligência fabricadora, não necessita criar expres­são teórica para sua norma.§ (Apesar da impossibilidade de haver uma gra­mática Miró, creio que é possível esboçar, através de seus resultados objetivos, o que se pode chamar a constante dinâmica que vemos hoje predominar nos quadros do mais recente Miró. Essa constante dinâmica se expressa por um crescente poder da linha e pelo desejo de obter, com sua linha, melodi­as absolutamente livres das limitadas melodias ad­mitidas pela pintura fundada no Renascimento.§ Antes porém de estudar esses aspectos objeti­vos do dinamismo de Miró, deve salientar-se que o artista não parece jamais interessado em realizar quadros obedientes a um plano geral de circula­ção, grandes painéis em que o percurso do olho espectador seja cuidadosamente previsto e con­trolado. O dinamismo dessa sua pintura mais re­cente se caracteriza bem mais pela presença de pequenas melodias dentro do quadro, que o olho aborda por onde melhor lhe parece. Esses qua­dros não impõem ao espectador um movimento

Aparece o dinamismo

O que é o dinamismo

de Miró

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Importância da linha

continuado e único, como é único e exclusivo o ponto a partir do qual pode ser abordada a com­posição estática.)§ O que caracteriza seu trabalho, a partir de 1940, é um crescente poder da linha. Uma mancha de cor, uma superfície dentro de outra superfície perten­cem à categoria do estático. A atenção, para apreendê-las, não é obrigada a realizar um ato tem­poral. Uma linha, pelo contrário, pertence à cate­goria do dinâmico e exige, para ser percorrida, um movimento do espectador. O corpo de uma linha pode ser mesmo, a expressão de um movimento.§ Nesta composição, a linha não é um elemento perigoso como se dá com a composição tradicio­nal, onde ela, se não está dominada, é um elemento dissociador. Nesta composição, a linha é a mola. E não somente o que contemplar, mas a indicação, o guia, a norma da contemplação. Ela vos toma pela mão, tão poderosamente, que transforma em cir­culação o que era fixação; em tempo, o que era ins­tantâneo.§ Aí, agora, já o dinamismo não é ilusório como no caso daquela energia que Miró se dedicou a criar, ao propor ao olho automatizado, relações contrári­as a seu automatismo. Trata-se, agora, de uma sen­sação real, que pode ser verificada. O que essas li­nhas vos dão, não é uma Êusão de movimento. Elas vos impõem um verdadeiro movimento.§ Evidentemente, esta pintura que exige um dis­correr da atenção sobre a superfície, isto é, que exi­ge um novo tipo de contemplação, necessita asse- gurar-se de que as linhas em que ela se baseia são poderosamente fortes para impor circulação. Por-

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que em caso contrário, isto é, se essas linhas não são suficientemente fortes como guia, e não obri­gam ao espectador esse dinamismo visual, todo o edifício do quadro desmorona.§ Na composição estática renascentista, a linha está deliberadamente empobrecida. Porque sua na­tureza é essencialmente dinâmica, isto é, inimiga, a linha é eliminada ou anulada. Basta pensarmos no que os preceptistas chamam ritmo. Esse mínimo de movimento é estabelecido segundo minuciosa polí­cia e autorizado apenas em algumas poucas formas, simples e débeis, já monótonas. Isto é: o ritmo é permitido apenas enquanto não ameace o estático ou enquanto seja mantido como um elemento aces­sório, à margem da ilusão de profundidade.§ Se pode mesmo afirmar que naquela composi­ção se permitem unicamente as linhas plasmadas pelas exigências do estático. São geralmente formas simples, de base geométrica, curvas que sempre se voltam sobre si mesmas, em desenvolvimentos har­mônicos que asseguram seu próprio equilíbrio. Isto é: são formas em que se anulou, completamente, qualquer excitação ao dinâmico. Quer por se have­rem anulado, criando sua própria estabilidade e re­pouso, quer por se entregarem ao espectador, des­de seu primeiro movimento.§ Portanto, linhas capazes de ser apreendidas ins­tantaneamente. No primeiro caso, porque, haven­do criado seu próprio equilíbrio se revelam ao es­pectador mais como massa ou superfície do que como linha; e no segundo porque o olho, que as adivinha desde o primeiro momento, nada encon­tra que o obrigue a percorrê-las completamente.

A. linha na estrutura estática

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A linha na pintura de Miró

§ A datar esses quadros que pintou na Espanha, vemos que Miró vai abandonando as pobres e re­petidas melodias da linha renascentista. Já não é com a linha elegante ou harmoniosa, formas plasmadas pelas necessidades do equilíbrio, que ele conta. Ele tem de reencontrar a função da linha. Tem de aban­donar as linhas onde a contemplação permanece es­tagnada e entregar-se à criação de novas melodias.§ Miró parece haver compreendido perfeitamente a força de sua linha. Observemos os quadros que pintou a partir dessa época. Veremos como são mais freqüentes neles essas linhas soltas, colocadas pelo pintor em posição essencial dentro da obra. Obser­vemos suas formas, essas manchas tão simples — tão limitadas como vocabulário, como literatura — luas, estrelas, circunferências. Podemos notar como se vai fazendo mais e mais poderoso, nelas, seu con­torno, sua linha. Essas formas, que em seus qua­dros antigos eram desenhadas quase geometrica­mente, ou melhor, dentro do espírito harmônico da linha renascentista, em sua versão atual incitam a que as exploremos completamente, em todos os milímetros de sua fisionomia e de seu contorno, mesmo quando não existentes como linhas em si, mas como limite de uma figura e de uma mancha. Aí, ainda, é uma luta contra o estático da atenção que vemos em Miró: uma dupla luta, contra o está­tico próprio da cor e contra o estático próprio da contemplação de figuras conhecidas e aprendidas de memória.§ É a esse exercício que Miró parece entregar-se. Em seus quadros dessa época, suas linhas apare­cem com uma liberdade de destinação que nosso

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olho desconhecia. Mais do que a uma linha, isto é, em lugar daqueles organismos harmônicos e frios, sobre os quais nossa atenção deslizava meio indife­rente, que nos agradavam precisamente pela indi­ferença com que podíamos executar nelas melodi­as conhecidas, o que nos parece assistir, diante de suas obras dessa época é ao próprio crescimento de um organismo. Assistimos, temos a ilusão de assistir, ao nascimento dessa linha, que parece estar crescendo a nossos olhos, acabada de nascer com mil reservas de surpresa.§ O que chamei surpresa é nelas essencial. Sua li­nha, a partir dessa época se vai estabelecendo à medida que a contemplais. Vosso olho não pode prever, absolutamente, a seguinte direção de qual­quer desses organismos. Eles parecem recomeçar a cada momento um novo caminho. Parecem burlar­se de vossos olhos automatizados, parecem inte­ressados em livrar-se do caminho fatal que vosso olho automatizado, ou vossa mão automatizada de pintor deseja para eles, ao qual deseja condená-los. § Através dessa luta entre vosso costume e sua sur­presa essencial, de cada milímetro, essas linhas se apoderam de vossa atenção. Elas sujeitam vossa atenção, acostumada a querer adivinhar as linhas, e a mantém presa através de uma série ininterrupta de pequenas e mínimas surpresas. Aqui, vossa me­mória não ajuda vossa contemplação, permitindo- vos adivinhar uma linha da qual apenas percebestes um primeiro movimento. Aqui não podeis adivi­nhar, isto é: dispensar, nada. O percurso tem de ser feito, e isso só pode realizar-se dinamicamente.

O segredo de sua linha

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nQuando a estrutura foi pesquisa

aestrutura

§ Os primeiros pintores do Renascimento — in­ventores do que é hoje a Pintura — eram obriga­dos a um trabalho de criação eminentemente inte­lectual. Em teoria, podemos imaginar esse tipo de artista. Ele estava colocado diante de um problema permanente que resolver. O mínimo detalhe de sua composição significava problema.§ Que resolver cientificamente (Para ele, as idéias de ciência e de arte não se tinham dissociado como posteriormente, até se tornarem antagônicas). A criação de uma pintura coincidia então, com a cria­ção da Pintura. Ele ainda não dispunha de uma arte— de uma técnica — e, muito menos, de memória. Era, a sua, uma pesquisa de cada minuto, num cam­po desconhecido, lúcida e intelectual. Era ainda, e essencialmente, invenção. Posteriormente, passaria a ser descoberta.§ A inteligência, eminentemente pragmática, resol­ve cada problema de uma vez por todas. Mata cada problema ao resolvê-lo. Anula o que é pesquisa, convertendo resultados em leis, isto é, em receitas. § Depois, o sistema dessas leis, dessa experiência, passou a poder ser transmitido. O pintor já possuía então a sua arte. O trabalho de criação era reduzi­do, da pesquisa de uma solução conveniente, para a aplicação do que se sabe ser a solução convenien­te. A lei desintelectuaüza o trabalho de criação, já que foi formulada para que esse trabalho não ti­vesse de se repetir sempre.§ O pintor que já não criava uma lei mas aplicava uma experiência recebida de outro, o pintor já ar­tista, vai-se tornando cada dia menos intelectual.

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Ele, nessa época, já o era, apenas, parcialmente: apenas enquanto a manipulação dessas soluções artísticas continham esforço, aprendizado. Mas à medida em que essas soluções foram sendo mais dominadas, em que o conjunto de regras se foi fa­zendo instinto e habilidade, sua desintelectualização se foi acentuando.§ Evidentemente, não existiu aquele pintor inicial, colocado diante de todo um gênero a criar. Mas o artista daquele tempo — e tanto mais quanto re­cuamos dentro do Renascimento — era obrigado a um trabalho de criação lúcido e minucioso, que exigia a participação inteira de sua personalidade, mobilizada — pelo esforço — no que ela possuía de melhor e mais potente.§ Com o tempo, não só o número de cadáveres de problemas, tanto vale dizer: de problemas resolvi­dos, de leis, foi aumentando, como também a fre­qüência na manipulação dessas soluções. E por esse motivo se foi criando o hábito dos resultados des­sas soluções, seu automatismo. Com o tempo, a transmissão do conjunto de leis que constituía a arte da pintura se foi fazendo menos e menos teó­rico. Isto é: mais e mais inútil. Talvez o mal das academias, hoje, não esteja na mutilação que pos­sam representar para a livre expressão da persona­lidade. Talvez seu mal maior esteja em sua meio ridícula inutilidade.§ A escola substituiu o museu; ao trabalho inte- Quandolectual, a criação intuitiva; à inteligência, a me- estruturamória. Àquele tipo de pintor intelectual, mais ou é instintomenos intelectual segundo sua prática ou sua época, obediente ao teórico não pelo gosto da

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A estrutura

inalterável

limitação — como se dá com o acadêmico — e sim porque somente através do teórico lhe podiam che­gar as soluções que o problema de seu trabalho lhe propunha, substituiu um tipo de pintor que, sem conhecimento do teórico, com desprezo dele ou mesmo voltado contra ele, termina sempre por encontrar-se com os mesmos resultados. Um tipo de pintor integrado numa tradição, isto é, num automatismo, que lhe advém da impregnação des­ses séculos de arte anterior contemplados.§ Evidentemente, a atitude da pintura posterior ao Renascimento não tem sido, sempre, uma ati­tude conformista. Nela, atitudes as mais violenta­mente anti-renascentistas se podem apontar: quan­to ao tratamento da cor, ou da luz, dos valores, da matéria. (Isto é: tem havido momentos, na histó­ria da pintura, em que ela se manifesta estranha­mente sensibilizada em relação a um desses aspec­tos particulares da tradição recebida. Ela então expulsa todos os cadáveres veneráveis relaciona­dos com tal ou qual aspecto e se entrega, por um momento, a um trabalho de criação absoluta.) Mas no que diz respeito à estruturação do quadro, ne­nhuma transformação se verificou. Mais ainda: até o advento dos cubistas todas as transformações têm acontecido absolutamente à margem dos pro­blemas que com ela se relacionam.§ Não me parece simples coincidência o fato de ha­ver permanecido inalterável, debaixo das transfor­mações mais violentas, o esqueleto da construção renascentista. A automatização daquela composição não é adquirida, unicamente, pela repetição de ma­neiras de fazer. Não é só o costume que adquire a

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mão, ao fazer e refazer um gesto, mas o hábito de aparências construídas de maneira uniforme, verda­deiras fêmeas moldando a visão do homem. E, so­bretudo, uma automatização da sensibilidade.§ Isto é: ela se processa num plano estranho ao dos elementos anedóticos de um quadro, sobre os quais o espectador exerce normalmente sua análi­se. A composição é um elemento oculto no qua­dro; sustenta a aparência mas se apaga nela. Serve à aparência. A composição não existe para ser anali­sada. Teoricamente, a composição só deve propor- se ao espectador através de seus defeitos: quando esteja imperfeitamente realizada.§ Portanto, a composição é recebida sem que a atenção se dê conta. É nesse plano, em que a inte­ligência não se dá conta, que ela se cristaliza em hábito. E é desse plano obscuro de memória, como instinto, que ela se imporá ao pintor de hoje quan­do ele dispuser sobre a tela os elementos de sua obra. Porque nesse trabalho não é uma fórmula teórica que dirige o pintor integrado na tradição. É a busca de uma harmonia, de um equilíbrio co­nhecido, que ele não sabe definir e sim, reconhe­cer. Ao qual ele chegou pela sensibilidade. Que ele não inventa, descobre.§ Esse elemento, a composição, que deve ter exigi­do dos criadores da pintura renascentista um máxi­mo de elaboração intelectual, terminou por ser o mais instintivo dentro dos diversos componentes da pin­tura. Pode-se mesmo dizer que em todo quadro há boa composição, isto é, composição renascentista, equilíbrio; e que é a presença dessa composição que dá, normalmente, a um quadro, a categoria de pintu­

Porquê da estrutura

inalterável

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Psicologia de sua composição

ra. Ela é um elemento que o espectador, mesmo o menos informado, pressupõe, obscuramente.§ Afirmar isso não significa afirmar que todos os pintores têm sabido, ou sabem, jogar com as pos­sibilidades desse mesmo elemento (como Rafael, Seurat, Lhote). Sim, que existe sempre, mesmo na­queles que não tomam as regras do jogo como ponto de partida, um certo instinto do quadro, um mínimo de composição capaz de assegurar a esta­bilidade do olho espectador exigida pela ilusão de terceira dimensão.

§ Seria possível a existência de uma atitude criado­ra contrária a essa? Seria possível uma pintura vol­tada contra essa intuição, contra essa memória obs­cura que parece fazer inevitáveis os gestos da pintura contemporânea? A obra de Miró me parece uma resposta a essa pergunta.§ Ela me parece nascer da luta permanente, no tra­balho do pintor, para limpar seu olho do visto e sua mão do automático. Para colocar-se numa situação de pureza e liberdade diante do hábito e da habilidade. § Miró parte, portanto, de uma atitude psicológica. Se conseguimos entendê-la, teremos, a meu ver, a explicação de sua originalidade em relação à pintu­ra posterior ao Renascimento. E, sobretudo, a ex­plicação do processo através do qual essa originali­dade se foi consolidando, apesar das oscilações próprias a um trabalho que não quer apoiar-se no teórico, e adquiriu uma continuidade perfeitamen­te conseqüente. Em todo caso, absolutamente dis­tinta do simples e ocasional abandono deste ou

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Joan Miró

daquele principio compositivo tradicional (como em Bonnard, Matisse, Chagall).§ Em Miró, mais do que em nenhum outro artis- O gosto pelo fa^erta, vejo urna enorme valorização do fazer. Pode-sedizer que, enquanto noutros o fazer é um meio parachegar a um quadro, para realizar a expressão decoisas anteriores e estranhas a esse mesmo realizar,o quadro, para Miró, é um pretexto para o fazer.Miró não pinta quadros. Miró pinta.§ Essa valorização do trabalho de criar implica, for­çosamente, deixar em plano secundário tudo aqui­lo que — assuntos, anedota, intenções — constitui normalmente o móvel, e a justificação, desse traba­lho. Em Miró, isso é muito fácil de ser comprova­do. Há em toda sua obra um absoluto desinteresse pelo tema, expressado na limitação e mínima varia­ção de sua linguagem simbólica e, sobretudo, no esvaziamento desse mesmo simbólico.§ Uma estrela ou uma lua, num quadro, podem pertencer ao dom ínio do idiom ático ou do caligráfico. Mesmo em épocas em que parece mais interessado em fazer uma pintura literária (isto é, em empregar um idioma) é fácil constatar como o pintor vai corroendo internamente seu vocabulá­rio — essa lua ou essa estrela — até deixá-lo intei­ramente vazio de qualquer valor semântico. Não sei se têm pensado nisso os que propõem para essa obra chaves de decifração, como se se tratasse de um volapuque lírico.§ Essa valorização do trabalho criador como pura 0 fa%er comoatividade implica, forçosamente também, em dei- ponto de partida xar a iniciativa ao que possa surgir dessa luta entre a mão fabricadora e a matéria dura e irredutível.

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Aqui está a razão do que se poderia chamar seu experimentalismo, de suas cuidadosas pesquisas com a matéria e, principalmente, de sua curiosida­de — e capacidade de adaptação — às técnicas gráficas mais diferentes.§ Mas sobretudo, essa valorização do fazer, esse colocar o trabalho em si mesmo, esse partir das pró­prias condições do trabalho e não das exigências de uma substância cristalizada anteriormente, têm, na explicação da obra de Miró, uma outra utilidade. Esse conceito de trabalho, em virtude, principal­mente, dessa disponibilidade e vazio inicial, permi­te, ao artista, o exercício de um julgamento minu­cioso e permanente sobre cada mínimo resultado a que seu trabalho vai chegando.§ Talvez pudéssemos chamar a isso, o intelectuaüs- mo de Miró, aproveitando o que na palavra possa indicar uma atitude de vigilância e lucidez no fa­zer, e, ao mesmo tempo, de contrário ao deixar-se fa^er e ao saber fa^ r, ou por outra, ao espontâneo e ao acadêmico.

Miró e oSurrealismo

§ Esse conceito do trabalho de criação, que acaba resultando, essencialmente, em uma luta contra o instintivo, coloca a obra de Miró numa posição mui­to especial em relação aos surrealistas a que esteve associado em determinado momento.§ Especial: porque se oposta, essencialmente ao automatismo psíquico que os surrealistas aponta­vam como norma de criação, é evidente que Miró não parece haver sido estranho ao programa da­queles mesmos surrealistas, de buscar uma arte que pudesse atingir, e revelar, um fundo existente no

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Joan Miró

homem por debaixo da crosta de hábitos sociais adquiridos, onde eles localizavam o mais puro e pessoal da personalidade.§ A originalidade de Miró em relação a eles está em que buscaria realizar de maneira inteiramente diferente essa proposição inicial. A Miró, a seu es­pírito artesanal, quase, haveria de soar estra­nhamente a estética antiplástica dos surrealistas, que pareciam interessados em criar um tipo de arte su­perior e independente dos gêneros de arte, pai­rando independente da realização objetiva de uma obra e, às vezes, capaz de existir apesar de uma obra. § Se essa estética — ou mais justamente: essa ética— termina por significar um enorme desprezo pela forma, isto é, pela presença objetiva de uma obra, o meio que ela propõe, esse automatismo psíquico, significa — e a isso Miró haveria de ter sido mais sensível — um desprezo absoluto pelo fazer, pelo trabalho de criação da obra. Que o surrealismo tenta anular, reduzir ao máximo, submetendo-o ao dita­do do espontâneo; ou menosprezar completamen­te, admitindo o frio e amaneirado registro de esta­dos psicológicos ou visões oníricas, realizado posteriormente, dentro do clima de academia.§ A Miró, tão pintor, isto é, tão unicamente pin­tor, ou pintor tão pouco literário, esses tipos de antipintura não devem ter absolutamente interes­sado. Ele aceitou aquela proposição inicial do surrealismo, mas transformou-a num outro sen­tido. Ele entendeu-a não como a introdução do subjetivo e do psicológico como assunto da pin­tura de seu tempo. O que ele aceitou foi a idéia de levar até o campo mais profundo do psicoló­

Hntendimento do Surrealismo

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Ainda o Surrealismo

gico a busca de renovação formal a que a pintura se entrega há um século, com uma intensidade somente interrompida nos anos de ascendência dos pintores surrealistas.§ Assim, ao automatismo psíquico Miró opôs o que havia em seu espírito de mínimo e minucioso, de artesanal. A anulação da razão como caminho para aquele autêntico humano, preferiu o excesso de razão, de trabalho intelectual, na luta pelo au­têntico. Uma atitude de luta, a sua, absolutamente contrária à atitude de abandono dos surrealistas que, entregues ao puro instintivo, foram encon­trar, mais intensos, os hábitos visuais armazena­dos, a memória.§ Contrariamente também aos surrealistas, não é uma pintura psicológica, de tema ou de tese, de ane­dota psicológica, que Miró realiza. Miró sempre quis, e quase sempre o conseguiu, realizar pintura. Essa atitude psicológica, a partir da qual ele empreende sua aventura, informa apenas seu trabalho criador, seu processo mental de criação.§ Há quem imagine que Miró pinta visões ou re­gistra, plásticamente, estados psicológicos. Já se tem falado até de psicografia, a respeito de sua obra. Entretanto, essas pessoas não se dão conta de que Miró tem pintado, somente, o que até hoje tem sido objeto de representação pela pintura. O que acon­tece é que ele apresenta esses objetos num estado de criação e de invenção que não conhecíamos. Aquela lua ou estrela não são jamais luas metafísicas ou luas de sonho. São luas e estrelas pintadas abso­lutamente puras de outras representações de luas ou de estrelas.

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Joan Miró

§ O trabalho criador do pintor catalão, que tentó me representar tanto quanto esboçar, traz consi­go um problema especial. Sua consciência, seu ri­gor, não se apóia num elemento concreto: a lei, a norma exterior. Quando este elemento está pre­sente, o trabalho da consciência se exerce no sen­tido, apenas, de uma fiscalização de resultados. E o rigor dessa consciência estará em eliminar ou ajustar tudo o que não se adapte a essa regra ou idéia, sólida, externa ao artista e para ele uma rea­lidade precisa, inalterável. E a qualidade do artista estará na maior atenção com que exerça essa polí­cia e em sua capacidade de aceitar os despoja- mentos a que ela o obrigue.§ Inegavelmente esse tipo de trabalho pode evitar o espontâneo e o não autêntico. Mas somente até um certo momento. Porque a verdade é que essas formas exteriores, intelectuais apenas enquanto se opõem a uma fácil manipulação, podem ser pron­tamente transformadas em hábito. Elas acabam mesmo, sempre por perder esse caráter inicial de disciplina e se transformam em excitante do espon­tâneo e do instintivo. E possível a uma pessoa acos­tumar-se a conversar em sonetos camoneanos como foi possível ao olho ocidental acostumar-se com as sutis e complicadas proporções da pintura nascida com a exploração da terceira dimensão.§ N o trabalho de Miró, essa norma fixa de jul­gamento não existe. Nada existe exterior à sua atividade. Nada a que ele confie seu problema permanente, nenhuma fórmula à qual ele deixe a missão de buscar tal solução, com a qual ele com­para sua criação. Será a sua uma espécie de cria­

Continua a psicologia de sua

composição

Intelectualismo de Miró

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Ainda seu intelectualismo

ção absoluta, em que cada mínimo passo tem de ser realizado? O trabalho de criação de Miró, eu o imagino como o de um homem que para so­mar 2 e 2 contasse nos dedos. Não por ignorân­cia de sua tabuada — como se dá com a pintura infantil. Mas — e nessa capacidade de esquecer sua tabuada está uma das coisas mais importan­tes de sua experiência — pelo desejo de colocar seu trabalho, permanentemente, num plano de invenção da aritmética.§ Se é verdade que a lucidez da criação de Miró não se apóia em leis ou elementos teóricos — a que obedecer ou desobedecer — é verdade também que seu julgamento — e a lucidez não é mais do que o uso de um estado de julgamento permanente — não pode dispensar uma base, um critério de esco­lha e apreciação. Miró, e nisso ele se assemelha ao artista automatizado de seu tempo, usa, também, o critério de seu gosto, a reação de sua sensibilidade. § Mas somente nessa atribuição, que ambos fazem à sensibilidade, da missão de apreciar. Porque en­quanto o pintor integrado na tradição trabalha em sua linha até chegar a reconhecê-la, até dar-lhe tal aparência que ele não sabe porque chega a satisfa­zer-lhe, até colocá-la na linha da tradição e da me­mória, Miró luta para que, em nenhum momento, possa vir a reconhecer, na sua, harmonias obscura­mente aprendidas. Isto é: em Miró, não coincidem seu gosto e seu impulso obscuro; o gosto não é nele expressão de cultura, de hábito visual.§ Assim, o processo mental dessa consciência de Miró é essencialmente negativo. Não é o rigor para reproduzir o visto, para criar variações novas den-

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tro de harmonias vistas, mas uma depuração de todo costume. E a expressão dessa luta que aparece no quadro de Miró. Sua pintura é a expressão desse fazer com luta, desse fazer em luta. Jamais fáceis criações de um homem que tenha anulado em si todo o costume e a memória.§ Não será difícil compreender-se a natureza do­lorosa de um trabalho dessa ordem. Para o artista contemporâneo que imaginamos, integrado nessa tradição e aceitando-a inconscientemente, haverá luta e esforço, apenas, enquanto não houver do­mínio e habilidade. Para Miró, essa luta será per­manente. Trabalhar contra seus hábitos visuais não significa anulá-los. Esse esforço para vencê-los terá de renovar-se cada dia. O mínimo gesto criador será, necessariamente para ele, uma luta aguda e continuada.§ Nesse trabalho, não há, assim, momentos de fa­cilidade em que as coisas se resolvem ajudadas por uma descoberta anterior. Não há soluções que sig­nifiquem uma vitória mais longa que a de um mo­mento. Cada milímetro de linha tem de ser avalia­do. Não há, como no trabalho de certos poetas, o equivalente daquela primeira palavra, fecunda de associações e desenvolvimentos, que contém em si todo o poema. A luta, aqui, se dá na passagem de uma a outra palavra e se uma dessas palavras con­duz uma outra, em lugar de aceitá-la em nome do impulso que a trouxe, essa consciência lúcida a jul­ga, e ainda com mais rigor, precisamente por sua origem obscura.§ Essa atitude equivale a colocar-se, permanente­mente, não diante de um quadro a criar mas diante

Um rigor sempre mais agudo

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Criar como inventar

da pintura a criar. É uma aspiração a colocar-se num ponto anterior à primeira grafia pelo abandono de toda experiência que significa a pintura que tem existido até ele. Não por desprezo dessa experiên­cia ou de seu valor. Apenas, para encontrar e explo­rar em sua obra, a virgindade do homem anterior ao primeiro quadro, que podia traçar sua linha em condições de absoluta liberdade.§ Criação, portanto, como equivalente de inven­ção e não de descoberta. Equivalente a uma inven­ção permanente. Porque o rigor dessa consciência, a única talvez que conseguiu passar da luta contra o ponto de partida da regra, levando-a mais longe, à luta contra o resultado da regra assimilado a ponto de hábito, exerce-se tanto contra esse mesmo hábi­to como contra a solução ou a maneira por meio da qual, um momento atrás, ele conseguiu criar à mar­gem do costume.§ Colocado — pela permanente depuração de seus hábitos visuais, através da luta contra o há­bito e a habilidade — nesse ponto anterior à pin­tura, Miró refez a sua em sentido diverso do que realizou a pintura posterior ao Renascimento. Não se pode dizer que Miró tenha desejado — nem mesmo que ele tenha uma consciência teó­rica disso — realizar aquele tipo de pintura para o qual tentei oferecer uma teoria na primeira parte deste trabalho. O trabalho de Miró busca sim­plesmente outra coisa: a validade de seus resulta­dos. O que acontece é que nossos hábitos visuais estavam moldados por mil maneiras de com po­sição estática e fugir a eles significou, simples­mente, fugir ao estatismo.

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§ Na curta conversa de Miró, uma palavra existe: Sentido do “vivo” vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo é o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cor­tar qualquer incursão ao plano do teórico, onde ja­mais se sente à vontade. Vivo parece valer ora como sinônimo de novo, ora de bom. Em todo caso, ex­pressão de qualidade. Essa palavra a meu ver indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua pintura. Essa sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou de equili­brado. Ela nos é dada precisamente pelo que sai desse harmônico ou desse equilibrado, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida.§ E a esse vivo que parece aspirar a pintura de Miró.Isto é, a algo elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o hábito e a algo que vá, por sua ve2, romper, no espectador, a dura crosta de sua sensi­bilidade acostumada, para atingi-la nessa região onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito, o não-aprendido.§ A descoberta desse território livre, onde a vida é instável e difícil, onde o direito de permanecer um minuto tem de ser duramente conseguido e essa permanência continuadamente assegurada, não tem uma importância psicológica em si, inde­pendente do que no campo da arte ela pudesse ter produzido?

P.S.

§ A obra de Miró significa, para a pintura, muito mais do que a aportação de um estilo pessoal; muito mais do que o enriquecimento — afinal relativo, por estagnado — que pode advir, à pintura, da invenção de um

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formalismo a mais. Ela é também isso; e, infelizmente, é isso, é o que nela existe de estilo individual, que tem levado os críticos a valorizá-la. § Entretanto, ela é também outra coisa. Por debaixo do conjunto de maneiras pessoais que constituem a fórmula-Miró, há uma luta que trans­cende o limitado alcance de uma exclusiva busca de expressão original. Há uma luta contra todo um conjunto de leis rígidas que vem estruturando a pintura posterior ao Renascimento e que está presente, sem exceção, por debaixo das fórmulas individuais mais contraditórias, exploradas por pintores de hoje.§ A obra de Miró é, essencialmente, uma luta para devolver ao pintor uma liberdade de composição há muito tempo perdida. Não uma liber­dade absoluta, nem uma angélica liberação de qualquer imposição de realidade ou da necessidade de um sistema para abordar a realidade. É sim, uma luta para libertar o pintor de um sistema determinado, de uma arquitetura que limita os movimentos da pintura.§ Essa luta dá à história do pintor Miró a continuidade de um sistema e explica certas questões que algumas pessoas conhecidas do pintor não se podem deixar de propor. Explica, por exemplo, porque este homem, em cujos começos se notava tão grande amor à realidade, e em quem se nota, ainda hoje, tão desmedido amor por esse outro tipo de realidade— os materiais humildes de sua arte, dos quais sempre parte — foi levado a um ponto extremo de estilização, de abstração.§ De certa maneira, se pode dizer que o abstrato está nos dois pólos do trabalho de representação da realidade. E abstrato o que apenas se balbucía, aquilo a que não se chega a dar forma, e abstrato o que se elabora ao infinito, aquilo a que se chega a elaborar tão absolutamente que a realidade que podia conter se faz transparente e desaparece. No primeiro caso, a figura é abstrata por ininteligível; no segundo, por disfarçada. N o primeiro, se permanece aquém da realidade; no segun­do, se nega a realidade.§ O movimento que me parece haver determinado na obra de Miró o que se poderia entender como um desejo de dar caça à realidade, não me parece poder enquadrar-se nessas duas formas de ódio ou desprezo.

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Joan Miró

Nesse homem tão próximo ao que há de mais concreto na natureza e em seu trabalho, nesse sólido artesão da Catalunha, é impossível seguir o rastro de qualquer idealismo. Não há nele nenhuma intenção de ex­pulsar o assunto. (Ele poderá, mesmo, vos decifrar qualquer das man­chas de seu quadro; ele até parece se manifestar surpreendido de que não as possais decifrar imediatamente.)§ Melhor se definirá seu caso dizendo que, interessado em criar uma dinâmica para seu quadro — embora nem sempre se tenha dado con­ta disso — Miró teve de ir simplificando, a um ponto de puros esque­mas, o assunto de seus quadros. A estilização abstrata na obra de Miró está determinada pela luta de lograr uma mecânica diferente para a pintura; está determinada pelas exigências desse trabalho que se po­deria chamar teórico.§ E esta intenção e, principalmente, os resultados objetivos a que ela chegou, que salvam sua obra de ser um formalismo a mais. Não é ne­cessário que o pintor, agora seguro de sua mecânica, inicie a volta a um assunto e a uma pintura mais largamente humana, independente de tudo o que, por excesso de valorização do indivíduo, mantém a arte — e as artes — estagnada e sem saída possível. Com sua nova mecânica, e com a liberdade de composição que logra em sua obra, Miró terá aberto uma perspectiva. E a pintura, quando se lance numa nova história, mais are­jada e menos fechadamente individualista, quando empreenda a síntese dos elementos técnicos positivos que há em tal ou qual pintura de hoje, que há nas pinturas de hoje (não foi, na verdade a pinturas diferentes, a gêneros de pintura diferentes que nos conduziu o formalismo atual?), saberá aproveitar o exemplo e os ensinamentos do pintor de Barcelona.

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P o e s i a e c o m p o s i ç ã o *

A INSPIRAÇÃO E O TRABALHO D E ARTE

A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns é o momen­to inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição é, hoje em dia, assunto por demais complexo, e falar da composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.

Não digo isso somente por me lembrar das dificuldades que podem resultar da falta de documentação sobre o trabalho de composição da grande maioria dos poetas. O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força — é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de solu­ções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir.

No que diz respeito à outra família de poetas, a dos que encontram a poesia, se não é a humildade ou o pudor que os fazem calar, a verda­de é que pouco têm a dizer sobre a composição. Os poemas neles são

* Conferênciapronunáada na Biblioteca de São Paulo, 1952.

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de iniciativa da poesia. Brotam, caem, mais do que se compõem. E o ato de escrever o poema, que neles se limita quase ao ato de registrar a voz que os surpreende, é um ato mínimo, rápido, em que o poeta se apaga para melhor ouvir a voz descida, se faz passivo para que, na captura, não se derrame de todo esse pássaro fluido.

A dificuldade maior, porém, não está aí. Está em que, dentro das condições da literatura de hoje, é impossível generalizar e apresentar um juízo de valor. É possível propor um tipo de composição que seja perfeitamente representativo do poema moderno e capaz de contri­buir para a realização daquilo que exige modernidade de um poema. A dificuldade que existe neste terreno é da mesma natureza de contradi­ção que existe, hoje em dia, na base de toda atividade crítica.

Na verdade, a ausência de um conceito de literatura, de um gosto universal, determinados pela necessidade — ou exigência — dos ho­mens para quem se faz a literatura, vieram transformar a crítica numa atividade tão individualista quanto a criação propriamente. Isto é, vi­eram transformá-la no que ela é hoje, antes de tudo — a atividade incompreensiva por excelência. A crítica que insiste em empregar um padrão de julgamento é incapaz de apreciar mais do que um peque­níssimo setor das obras que se publicam — aquele em que esses pa­drões possam ter alguma validade. E a crítica que não se quer subme­ter a nenhum tem que renunciar a qualquer tentativa de julgamento. Tem de limitar-se ao critério de sua sensibilidade, e a sua sensibilidade é também uma pequena zona, capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar claramente sobre o que foi capaz de atingi-la.

Nas épocas de validade de padrões universais de julgamento, nes­sas épocas felizes em que é possível circular “poéticas” e “retóricas” , a composição de um dos campos preferentes da atividade crítica. En­tão, pode o crítico falar também de técnica, pois que há uma, geral, pode dizer da legitimidade ou não de uma palavra ou de seu plural, pois que o crítico é o melhor intérprete da necessidade que determina tal obra e a função crítica se exerce em função de tal necessidade. A ele cabe verificar se a composição obedeceu a determinadas normas,

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não porque a poesia tenha de ser forçosamente uma luta com a norma mas porque a norma foi estabelecida para assegurar a satisfação da necessidade. O que sai da norma é energia perdida, porque diminui e pode destruir a força de comunicação da obra realizada.

É evidente que numa literatura como a de hoje, que parece haver substituído a preocupação de comunicar pela preocupação de expri- mir-se, anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o leitor e sua necessidade, a existência de uma teoria da composição é inconcebível. O autor de hoje trabalha à sua maneira, à maneira que ele considera mais conveniente à sua expressão pessoal.

D o mesmo modo que ele cria sua mitologia e sua linguagem pes­soal, ele cria as leis de sua composição. Do mesmo modo que ele cria seu tipo de poema, ele cria seu conceito de poema, a partir daí, seu conceito de poesia, de literatura, de arte. Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra, nem mesmo àque­las que em determinado momento ele mesmo criou, nem a sintonizar seu poema a nenhuma sensibilidade diversa sua. O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma expres­são original. Por isso, ele procura realizar sua obra não com o que nele é comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado, diverso de todos. Para empregar uma palavra bastante corrente na vida literária de agora, o que se exige de cada artista é que ele trans­mita aquilo que em si mesmo é o mais autêntico, e sua autenticidade será reconhecida na medida em que não se identifique com nenhuma expressão já conhecida. Não é preciso lembrar que, para atingir essa expressão pessoal, todos os direitos lhe são concedidos de boa vontade.

Esta é a razão principal que faz difícil, ou impossível, abordar o problema da composição do mesmo ponto de vista com que se abor­dava na época da tragédia clássica, o problema das três unidades. Não vejo como se possa definir a composição moderna, isto é, a compo­sição representativa do poema moderno. Qualquer esforço nessa dire­

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ção me parece vazio de sentido. Porque ou proporia um sistema, tal­vez bastante conseqüente, mas perfeitamente limitado, sem aplicação possível a mais do que à pequena família de poetas que por acaso coincidisse com seus postulados, ou se veria condenado ao simples trabalho de catalogação — espécie de enciclopédia — das inúmeras composições antagônicas que convivem hoje, definíveis apenas pelo lado do avesso — por sua impossibilidade de definição.

A composição literária oscila permanentemente entre dois pontos extremos a que é possível levar as idéias de inspiração e trabalho de arte. De certa maneira, cada solução que ocorre a um poeta é lograda com a preponderância de um outro desses elementos. Mas essencial­mente essas duas maneiras de fazer não se opõem. Se uma solução é obtida espontaneamente, como presente dos deuses, ou se ela é obtida após uma elaboração demorada, como conquista dos homens, o fato mais importante permanece: são ambas conquistas de homem, de um homem tolerante ou rigoroso, de um homem rico de ressonância ou de um homem pobre de ressonâncias. Por este lado, ambas as idéias se confundem, isto é, ambas visam à criação de uma obra com elementos da experiência de um homem. E embora elas se distingam no que diz respeito à maneira como essa experiência se encarna, essa distinção é acidental — pois a prática, e através dela o domínio técnico, tende a reduzir o que na espontaneidade parece domínio do misterioso e a destruir o caráter de coisa ocasional com que surgem aos poetas certos temas ou certas associações de palavras.

O que observamos no trabalho de criação de cada artista individu­al, pode ser observado também na história da literatura — ela também parece desenvolver-se numa permanente oscilação entre a preponde­rância de uma ou outra dessas idéias. Não quero dizer com isso que vejo na luta entre essas idéias o motor da história literária. Apenas quero dizer que a composição é um domínio extremamente sensível no qual prontamente repercutem as transformações que ocorrem na história literária. Isto é — a predominância de um outro desses concei­tos, o fato de que se aproximem ou se afastem, suas tendências a con­

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fundir-se ou a polarizar-se são determinados pelo conjunto de valores que cada época traz em seu bojo. Quanto à nossa época, sua originali­dade parece estar em que a polarização mostra-se maior do que nunca e em que, no lugar da preponderância de uma dessas idéias, presen­ciamos a coexistência de uma infinidade de atitudes intermediárias, organizando-se a partir das posições mais extremas a que já se chegou na história da composição artística.

Não estou esquecido de que neste assunto, temos de levár em con­ta um fator importantíssimo — a psicologia pessoal de cada autor. E inegável que existem autores fáceis, cujo interesse estará sempre em identificar facilidade com inspiração, e autores difíceis, pouco espon­tâneos, para quem a preocupação formal é uma condição de existên­cia. E é inegável também que a disposição psicológica de cada autor, ou melhor, o fato de pertencer a uma ou outra dessas famílias, tem de refletir-se não só nas qualidades propriamente artísticas de sua poesia, mas, sobretudo, na sua concepção de poesia e de arte poética. Não será inexata a descrição de um autor difícil como um autor que des­confia de tudo o que lhe vem espontaneamente e para quem tudo o que lhe vem espontaneamente soa como eco da voz de alguém. Por outro lado, o autor espontâneo verá sempre os trabalhos de compo­sição como alguma coisa inferior, ou mesmo sacrílega, e a menor mudança de palavras como alguma coisa que compromete o poema de irremediável falsidade.

Esses traços psicológicos são um fator importante, não há dúvida, e em nosso tempo, um fator primordial. Mas a verdade é que eles ten­dem a confundir-se se literatura de determinada época corresponde a uma visão estética comum. Nesses momentos de equilíbrio — entre os quais não poderemos em absoluto colocar nosso tempo — esses traços pessoais não têm força suficiente para se constituírem em “teo­ria” da composição de seus autores, como se dá hoje. Ela é estabelecida por meio de uma dupla relação — de autor a leitor, de leitor a autor. O temperamento natural do autor, conforme a exigência da época, terá de ser mais ou menos subordinado, mais ou menos dominado.

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Mas ele jamais será ponto de partida; será sempre uma influência incô­moda contra a qual o autor tem de lutar.

Em nosso tempo, como não existe um pensamento estético univer­sal, as tendências pessoais procuram se afirmar, todo poderosas, e a polarização entre as idéias de inspiração e trabalho de arte se acentua. Como a expressão pessoal está em primeiro lugar, não só tudo o que possa coibi-la deve ser combatido, como principalmente, tudo o que possa fazê-la menos absolutamente pessoal. A inspiração e o trabalho de arte extremos são defendidos ou condenados em nome do mesmo princípio. É em nome da expressão, e para lográ-la, que se valoriza a escrita automática e é ainda em nome da expressão pessoal que se defende a absoluta primazia do trabalho intelectual na criação, levado a um ponto tal que o próprio fazer passa a justificar-se por si só, e torna-se mais importante do que a coisa a fazer.

Por tudo isso, se quisermos falar das idéias que prevalecem hoje em matéria de composição literária, temos de partir da consideração dos fatores pessoais. Podemos verificar que o conceito de composição de cada artista, da mesma maneira que seu conceito de poema, é determi­nado pela sua maneira pessoal de trabalhar. Libertando da regra, que lhe parece, e com razão, perfeitamente sem sentido, porque nada pare­ce justificar a regra que lhe propõem as academias, o jovem autor co­meça a escrever instintivamente, como uma planta cresce. Natural­mente, ele será ou não um homem tolerante consigo mesmo, e esse homem que existe nele vai determinar se o autor será ou não um autor rigoroso, se pensará em termos de poesia ou em termos de arte, se se confiará à sua espontaneidade ou se desconfiará de tudo o que não tenha submetido antes a uma elaboração cuidadosa.

O espetáculo da sociedade aparecerá a esse jovem autor coisa mui­to confusa e ele não saberá descobrir, nela, a direção do vento. Por isso, preferirá recorrer ao espetáculo da literatura. A partir da vida lite­rária que está fazendo no momento, ele fundará sua poesia. O confrade lhe é mais real do que o leitor. Ora, no espetáculo dessa vida literária ele pode encontrar autores justificando todas as suas inclinações pes­

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soais, críticos para teorizar sobre sua preguiça ou sua minúcia obses­siva, grupos de artistas com que identificar-se a partir de cujo gosto condenar todo o resto. Aí começa a descoberta de sua literatura pes­soal. Essa descoberta é curiosa de acompanhar-se. Primeiro, o jovem autor vai procurando-se entre os autores de seu tempo, identificando- se primeiro com uma tendência, depois com um pequeno grupo já de orientação bem definida, depois com o que ele considera o seu autor, até o dia em que possa dar expressão ao que nele é diferente também desse seu autor. E então neste momento, em que depois da volta ao mundo se redescobre com uma nova consciência, a consciência do que o distingue, do que nele é autêntico, consciência formada a custa da eliminação de tudo o que ele pode localizar em outros, que o jovem autor pensa ter desencavado aquele material especialíssimo, e exclusi­vo, com que construir a sua literatura.

Já que é impossível apresentar um tipo ideal de composição, perfeita­mente válido para o poema moderno e capaz de contribuir para a reali­zação do que exige modernidade de um poema, temos de nos limitar ao estudo do que as idéias opostas de inspiração e trabalho artístico trouxe­ram à poesia de hoje. Na literatura atual, a polarização entre essas idéias chegou a seus pontos mais extremos e é a partir desses extremos que se organizam as idéias hoje correntes sobre composição. Também cabe sa­lientar que essas posições extremas não estão ocupadas por um só con­ceito de inspiração e por uma só atitude radical de trabalho de arte. A inspiração será identificada por uns como uma presença sobrenatural — literalmente — e a inspiração pode ser localizada por debaixo das justi­ficações científicas para o ditado absoluto do inconsciente. Trabalho de arte pode valer a atividade material e quase de joalheria de construir com palavras pequenos objetos para adorno das inteligências sutis e pode significar a criação absoluta, em que as exigências e as vicissitudes do trabalho são o único criador da obra de arte.

Ê a partir desses pontos externos que tentaremos esboçar as idéias que prevalecem hoje a respeito da composição literária.

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No autor que aceita a preponderância da inspiração o poema é, em regra geral, a tradução de uma experiência direta. O poema é o eco, muitas vezes imediato dessas experiências. É a maneira que tem o poeta de reagir à experiência. O poema traduz a experiência, transcre­ve, transmite a experiência. Ele é então como um resíduo e neste caso é exato empregar a expressão “ transmissor” de poesia. Por outro lado, o que também caracteriza essa experiência é o fato de ser única. Ela ou é expressada no poema, confessada por meio dele, ou desaparece. A experiência, nesse tipo de poetas, cria o estado de exaltação (ou de depressão) de que ele necessita para ser compelido a escrever. Geral­mente, esses poemas não têm um tema objetivo, exterior. São a crista­lização de um momento, de um estado de espírito. São um corte no tempo ou um corte num assunto. Porque se em alguma circunstância ele vier a ser provocado por um tema e se cristalizar em torno de um tema, podereis observar que ele jamais abarcará esse mesmo tema, completa e sistematicamente. Do assunto ou do tema, ele mostrará apenas um aspecto particular, o aspecto que naquele momento foi ilu­minado por aquela experiência.

Quase sempre, tais poemas são construídos. Sua estrutura não nos parece orgânica. O poema ora parece cortar-se ao meio, ora parece levar em si dois poemas perfeitamente delimitados, ora três, ora mui­tos poemas. A experiência vivida não é elaborada artisticamente. Sua transcrição é anárquica porque parece reproduzir a experiência como ela se deu, ou quase. E uma experiência dessa jamais se organizará dentro das regras próprias da obra artística. Em tais autores o trabalho artístico é superficial. Ele se limita ao retoque posterior ao momento da criação. Quase nunca esse retoque vai além da mudança de uma expressão ou de uma palavra, jamais atingindo o ritmo geral ou a es­trutura do poema.

É comum a tendência de querer condenar tais poetas jogando-lhes as acusações de preguiça ou incapacidade ou falta de gosto artístico. Em geral, essas críticas são injustas. Tais autores não colocam o con­trário desses defeitos entre as qualidades de um poema. Eles jamais

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pretendem criar um objeto artístico, capaz de provocar no leitor um efeito previsto e perfeitamente controlado pelo criador. A poesia para eles é um estado subjetivo pelo qual certas pessoas podem passar e que é necessário captar, tão fielmente quanto possível. Tão fielmente, isto é, tentando reproduzir a impressão por que passaram. Para eles, o trabalho de organizar essa impressão só poderia prejudicar sua auten­ticidade. Nesse texto elaborado, o poeta já não reconheceria a expe­riência por que passou e a partir daí concluiria que o leitor também não poderia perceber. A existência objetiva do poema, como obra de arte, não tem sentido para ele. O poema é um depoimento e quanto mais direto, quanto mais próximo do estado que o determinou, melhor estará. A obra é um simples transmissor, um pobre transmissor, o meio inferior que ele tem de dar a conhecer uma pequena parte da poesia que é capaz de vir habitá-lo.

Para ele, o autor é tudo. E o autor que ele comunica por debaixo do texto. Quer que o leitor sirva-se para recompor a experiência, como um animal pré-histórico é recomposto a partir de um pequeno osso. A poesia deles é quase sempre indireta. Ela não propõe ao leitor um objeto capaz de provocar uma emoção definida. O poema desses poe­tas é o resíduo de sua experiência e exige do leitor que, a partir daquele resíduo se esforce para colocar-se dentro da experiência original.

Essa espécie de poesia, geralmente, e hoje em dia sobretudo, atinge mais facilmente o leitor. Ela é escrita em linguagem corrente, não por amor à linguagem corrente, mas como um resultado de sua pouca ela­boração. Também porque é pouco elaborada ela desdenha completa­mente os efeitos formais e tudo o que faça apelo ao esforço e à inteli­gência. Por outro lado, o tom nela é essencial. E através do tom, de suas qualidades musicais, e não qualidades intelectuais ou plásticas, que ela tenta reproduzir o estado de espírito em que foi criada. Muitas vezes, mais do que pelas palavras é pela entonação que o autor pene­tra em sua atmosfera. E uma poesia que se lê mais com a distração do que com a atenção, em que o leitor mais desliza sobre as palavras que

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as absorve. Vagamente, para captar das palavras, sua música. E uma poesia para ser lida mais do que para ser relida.

A literatura contemporânea essa atitude veio trazer um desprezo considerável pelos aspectos propriamente artísticos da poesia. Ela é completamente incapaz de dar à obra de arte certas qualidades como proporção, objetividade. Ela é desequilibrada como a experiência que diretamente transmite e tudo o que é a fúncionalidade do trabalho de arte, isto é, todos os recursos de que a inteligência ou a técnica pode servir-se para intensificar a emoção, é deixado de lado. Esse sentido do trabalho artístico é inconcebível para ela. Toda interferência inte­lectual lhe parece baixa interferência humana naquilo que imagina quase divino. Outro aspecto importante a que visa o trabalho artístico, a saber, o de desligar o poema de seu criador, dando-lhe uma vida obje­tiva independente, uma validade que para ser percebida dispensa qual­quer referência posterior à pessoa de seu criador ou às circunstâncias de sua criação, tudo isso lhe é completamente inimigo. Neles o poema não se desliga completamente de seu autor.

Esse traço aliás pode ser facilmente observado hoje em dia. Mais do que nunca, temos o escritor que se dá em espetáculo juntamente com sua obra. As vezes mais diretamente do que em sua obra — por fora de sua obra. Como o valor essencial da obra é a expressão de uma personalidade, como a obra será tanto mais forte quanto mais exclusiva a personalidade nela presente, o indivíduo que escreve tende a suplantar em interesse a coisa escrita. O que se procura é o ho­mem raro, lêem-se homens. Está claro que nesse tipo de escritores vamos encontrar todos os adeptos da sinceridade e da autenticida­de a qualquer preço, para quem essas palavras significam cinismo e deformação, vamos encontrar os mórbidos, os místicos, os inverti­dos, os irracionais e todas as formas de desespero com que um grande número de intelectuais de hoje fazem a sua profissão de descrença no homem.

A predominância do conceito de inspiração podemos atribuir a res­ponsabilidade de uma atitude bastante comum na literatura de hoje,

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particularmente na literatura brasileira. É a atitude do poeta que es­pera que o poema aconteça, sem jamais forçá-lo a “desprender-se do limbo” . De certo modo se pode afirmar que quase toda a poesia que se escreve hoje no Brasil, ou a parte mais numerosa dela, é uma poesia bissexta, e que se perdeu completamente o gosto pelo poema que não seja de circunstância. Não falo de poemas refletindo a circunstância ambiente, mas de poemas determinados por uma circunstância for­tuita na vida do autor. Esse conceito de circunstância geralmente põe em movimento as zonas mais limitadamente pessoais do poeta. A atitude deste é sempre a espera de que o poema se dê, de que se ofere­ça, com seu tema e sua forma. Essa atitude pode ser encontrada até nos poetas que mais conscientemente dirigem a escrita de seu poema. Eles dirigem seu poema, a feitura do poema que a circunstância lhe dita. Jamais dirigem o motivo de seu poema, jamais se impõem o poe­ma. O que desejam, e esperam, é o poema absolutamente necessário que se propõe com uma tal urgência que é impossível fugir-lhe. Isto poderia ser uma definição do poeta bissexto, em que as reservas de experiência parecem mínimas e que jamais pode encontrar em si mes­mo o material com que construir os poemas que a necessidade do homem lhe ordene.

Daí — e esta é uma conseqüência também da predominância da teoria da inspiração — advém, sobretudo entre os poetas, uma certa repulsa ao sentido profissional da literatura. Esta palavra profissional não está muito bem empregada aqui. Mas a continuação pode aclarar o meu pensamento. Falei em que esse tipo de poeta é um ser passivo que espera o poema. Note-se bem — ele não espera somente um mo­mento propício para realizar o poema. Ele espera o poema, com seu tema e sua forma. Há nele um grande preconceito contra o poeta que se impõe um tema, contra o poeta para quem cantar tem uma utilidade e para quem cabe a essa utilidade determinar o canto. O poema é o tema do poeta bissexto. O assunto do poema é o que está dito ali. E raro o poema sobre tal ou qual objeto. Quando esse poema ocorre, apenas comunica, do objeto, a visão subjetiva que o poeta se formou

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dele. Note-se, por exemplo, a freqüência de poemas que se chamam— poema, ode, soneto, balada.

Da mesma natureza deste é o preconceito que alimentam contra o poeta chamado de encomenda. Que um poeta se imponha um tema, cristalize seu poema a partir de um assunto ou de uma tese, é coisa completamente inconcebível para a moral do poeta bissexto de hoje. Não é por preconceito contra uma possível baixeza, ou banalidade, ou por prosaísmo desses temas de encomenda que os poetas se revoltam. Sua poesia geralmente aborda assuntos sem categoria e os temas que eles costumam desprezar como indignos são temas que ocuparam al­guns dos poetas mais altos que já existiram — os temas da vida dos homens. O que há no fundo dessa atitude é o desprezo pela atividade intelectual, essa desconfiança da razão do homem, essa idéia de que o homem apenas sabe quebrar as coisas superiores que lhe são dadas e que nada pode por si mesmo.

Pode-se dizer que hoje não há uma arte, não há a poesia, mas há artes, há poesias. Cada arte se fragmentou em tantas artes quantos foram os artistas capazes de fundar um tipo de expressão original. Essa atomização não podia acontecer num período como o do teatro clássi­co francês. E embora caiba ao individualismo romântico a formulação de sua justificação filosófica, somente com o que se chama literatura moderna o fenômeno chegou a seu pleno desenvolvimento.

Talvez uma rápida recapitulação das atitudes do artista diante da norma artística, no período que viu nascer e crescer o fenômeno, pos­sa ser de alguma utilidade aqui. Numa época como a do teatro clássico francês, a obediência à norma era um elemento essencial na criação. O artista era julgado na medida em que estritamente dentro da norma, realizava sua obra. A qualidade estava equiparada à capacidade de desenvolver-se dentro dos padrões estabelecidos e justificava qual­quer impessoalidade. No Romantismo, com o deslocamento para o autor do centro de interesse da obra, as normas continuaram a exis­tir,— mas somente até um ponto, até o ponto em que não prejudicam a expressão pessoal. Se se olha o artista romântico com os mesmos

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olhos com que se olha um artista clássico, o primeiro parecerá tão incorreto quanto o segundo parecerá impessoal. A partir do Romantis­mo, estilo deixou de ser obediência às normas de estilo, mas a maneira de cada autor interpretar essas normas consagradas. Na verdade, esse foi o golpe primeiro, e a partir daí o que houve foi apenas um agrava­mento do fenômeno. Isto é, aquele primeiro direito de interpretar a norma estabelecida à sua maneira viria a se transformar, depois do começo deste século, no direito de criar sua norma particular.

Essa transformação traria consigo uma conseqüência imediata: a criação de normas particulares, de poéticas individuais, se deu por meio de uma fragmentação do conjunto que antigamente constituía uma determinada arte. A criação de poéticas particulares diminuiu o campo da arte. Em vez de seu enriquecimento, assistimos à especiali­zação de alguns de seus aspectos, pois, em última análise, a criação de poéticas particulares não passa do abandono de todo o conjunto por um aspecto particular. Esse aspecto particular passa a ser considerado pelo artista que o descobre, o valor essencial da arte, e passa a ser desenvolvido a seu ponto extremo. Para muita gente, essa especializa­ção significa um maior aprofúndamento, absolutamente necessário se se quer fazer a arte avançar. Essas pessoas parecem contar com uma idadè futura, em que todos esses aprofundamentos particulares serão aproveitados numa síntese superior. Entretanto, creio que esse aprofúndamento é apenas aparente. Desde o momento em que a arte se fragmenta, desde o momento em que sua máquina é desmontada, sua utilidade, a função que aquela máquina exercia, ao trabalhar com­pleta, logo desaparece. Os que a desmontaram têm agora consigo pe­ças de máquinas, pedaços de máquinas, capazes de realizar pequenos trabalhos, mas incapazes de recriar aquele serviço a que a máquina inteira estava habilitada. A fragmentação da arte limita o artista for­çosamente ao exercício formal. O caso da pintura moderna parece mostrar o fenômeno bastante claramente. E mesmo o caso de certos poetas. O caso daqueles que se dedicaram, com intenções seríssimas, à exploração de certas qualidades de ressonância, ou mesmo semân-

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ticas, de palavras isoladas, isto é, de palavras que não devem servir, que não devem transmitir idéias — me parece bastante significativo. Esses mágicos, esses metafísicos da palavra acabaram todos entregues a uma poesia puramente decorativa. Se se caminha um pouco mais na direção apontada por Mallarmé, encontra-se o puro jogo de palavras.

Portanto, o que verdadeiramente existe no fundo dessa fragmenta­ção é o empobrecimento técnico. O poeta de hoje não poderia tentar todas as experiências. Sua técnica não é domínio de uma ampla ciência mas o domínio dos tiques particulares que constituem seu estilo. Uma vista ligeira sobre a corrente da produção literária de hoje confirma essa afirmação. A grande maioria dos livros de poesia são coleções de pequenos poemas, cristalizações de momentos especiais, em que o trabalho formal se limita ao exercício do bom gosto. Raramente se vê o esforço continuado, nem o gosto para os infinitos problemas que implica o poema que o poeta se impõe, com seu tema e sua estrutura, e que outrora levou à criação da poesia épica, do teatro em verso, dos poemas de arte mayor dos espanhóis.

Não se pode dizer que esse empobrecimento técnico não existe entre os membros dessa segunda família de espíritos, isto é, a daqueles que aceitam e procuram levar às últimas conseqüências o predomínio do trabalho de arte na composição literária. Na obra deles o empobre­cimento é bastante visível. Porque se é verdade que o individualismo coloca o adepto da teoria da inspiração numa posição privilegiada para captar e dar expressão ao mais exclusivo e pessoal de si mesmo, é verdade também que coloca o adepto do trabalho de arte, como ele­mento preponderante, numa situação sem esperança, absolutamente irrespirável.

De certa maneira, esta segunda atitude é muito menos freqüente. Na Literatura Brasileira, então, é raríssima, entre outras razões, por­que se coloca no lado oposto ao da porta por onde entram os adeptos mais numerosos da teoria da inspiração — os filhos da improvisação. Na origem da atitude que aceita o predomínio do trabalho de arte está muitas vezes o desgosto contra o vago e o irreal, contra o irracional

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e o inefável, contra qualquer passividade e qualquer misticismo, e mui­to de desgosto, também, contra o desgosto pelo homem e sua razão. Por outro lado, não se pode negar que essa atitude pode contribuir para uma melhor realização artística do poema, pode criar o poema objetivo, o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos.

Nestes poetas já o trabalho artístico não se limita ao retoque, de bom gosto e de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho artístico é, aqui, a origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta. Nes­tes poetas, geralmente, não é o poema que se impõe. Eles se impõem ao poema, e o fazem geralmente a partir de um tema, escolhido por sua vez, a partir de um motivo racional. A escrita neles não é jamais pletórica e jamais se dispara em discurso. É uma escrita lacônica, a deles, lenta, avançando no terreno milímetro a milímetro. Estes poe­tas jamais encaram o trabalho de criação como um mal irremediável, a ser reduzido ao mínimo, a fim de que a experiência a ser aprisionada não fuja ou se evapore. O artista intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma m aior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas. Quanto à experiên­cia, ela não se traduz neles, imediatamente em poema. Não há por isso o perigo de que fuja. Eles não são jamais os possessos de uma expe­riência. Jamais criam debaixo da experiência imediata. Eles a reser­vam, junto com sua experiência geral da realidade, para um momento qualquer em que talvez tenham de empregá-la. Não será de estranhar que muitas vezes esqueçam essa experiência, como tal, e que ela, ao ressuscitar, venha vestida de outra expressão, diversa completamente.

Também o trabalho nesses poetas jamais é ocasional ou repousa sobre a riqueza de momentos melhores. Seu trabalho é a soma de to­dos os seus momentos melhores e piores. Por isso, seu poema é rara­

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mente um corte num objeto ou um aspecto particular de um objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida própria. E um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo.

Ora, apesar de ser primordialmente artista, este poeta é, antes de tudo, de seu tempo. Ele é tão individualista quanto aqueles outros poetas que aceitam cegamente o ditado de seu anjo ou de seu incons­ciente. Da mesma forma que aqueles, este poeta-artista ao criar seu poema cria seu gênero poético. Só que nele esse gênero não é definido pela originalidade do homem mas pela originalidade do artista. Não é o tipo novo de morbidez que o caracteriza mas o tipo novo de dicção que ele é capaz de criar. E é aqui que começa o desesperado de sua situação. Porque essas leis que ele cria para o seu poema não tomam a forma de um catecismo para uso privado, um conjunto de normas pre­cisas que ele se compromete a obedecer. Ao escrever, ele não tem nenhum ponto material de referência. Tem apenas sua consciência, a consciência das dicções de outros poetas que ele quer evitar, a consciên­cia. aguda do que nele é eco e que é preciso eliminar, a qualquer preço. Com a ajuda que lhe poderia vir da regra preestabelecida ele não pode contar — ele não a tem. Seu trabalho é assim uma violência dolorosa contra si mesmo, em que ele se corta mais do que se acrescenta, em nome ele não sabe muito bem de que.

No tempo em que se reconheciam normas definidas para o verso, a situação era diferente. Estas regras estavam objetivamente fixadas e sua aplicação podia ser objetivamente verificada. A consciência poéti­ca era o conhecimento delas, seu domínio e a vigilância ao aplicá-las. O artista tinha onde apoiar-se. Sabia como limitar seu trabalho. Hoje em dia é impossível determinar até onde deve ir a elaboração do poe­ma. Onde interrompê-la. E possível fazê-la prolongar-se indefinida­

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mente. Quase como Juan Ramón Jiménez, sempre a organizar de novo seus livros, sempre a elaborar mais uma vez seus poemas.

Se esta é uma primeira contradição a envenenar, pela base, a ativi­dade do poeta desta família de espíritos, uma segunda existe, também igualmente grave e igualmente difícil de ser superada. Ela atinge a literatura num atributo essencial — o de ser uma atividade criadora, isto é, que visa a obter resultados concretos, obras. Na verdade, a pre­ponderância absoluta dada ao ato de fazer termina por erigir a elabora­ção em fim de si mesma. O trabalho se converte em exercício, isto é, numa atividade que vale por si, independentemente de seus resulta­dos. A obra perde em importância. Passa a ser pretexto do trabalho. Todos os meios são utilizados para que este se faça mais demorado e difícil, todas as barreiras formais o artista procura se impor, a fim de ter mais e mais resistências a vencer. Este seria o estágio final do caminho que a arte vem percorrendo até o suicídio da intimidade absoluta. Seria a morte da comunicação, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a outra incomunicação, a do balbució, que, por outros caminhos estão também buscando os poetas do inefável e da escrita automática.

Gostaria de deixar claro que ao referir-me ao leitor como contraparte essencial à atividade de criar literatura e daí, à existência de uma lite­ratura, não estou limitando o problema a questões como as de herm etism o ou obscuridade, ausência de rima ou de ritm os preestabelecidos, fatores em que, para muita gente, reside o motivo da indiferença e afastamento do homem de hoje pelos escritores de seu tempo. De forma nenhuma posso convencer-me de que a esses fatores caiba a responsabilidade pelo desentendimento. Prefiro vê-los, antes, não como fatores mas como conseqüência do desentendimento. Na verdade, quando se escrevia para leitores, a comunicação era indis­pensável e foi somente quando o autor, com desprezo desse leitor de­finido, começou a escrever para um leitor possível, que as bases do hermetismo foram fundadas. Porque neste momento, a tendência do autor foi a de identificar o leitor possível consigo mesmo.

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Quando falo no leitor como contraparte indispensável do escritor, penso no contrapeso, no controle que deve ser exercido para que a comunicação seja assegurada. Esse controle já foi exercido pela críti­ca, nos tempos em que, sendo a literatura comunicação, cabia ao críti­co um papel essencial, completamente diverso da criação de segunda mão a que está reduzido hoje. Esse controle se exercia a partir da necessidade do leitor, de sua exigência definida pelo que esse leitor desejava encontrar na literatura de seu tempo. Essa exigência nem sem­pre é clara de se ver e ativa. Em nosso tempo, os poetas podem fazer ouvidos de mercador a ela, ou mesmo desprezar até a possibilidade de vir a auscultá-la. Ela nunca está formada em termos precisos e con­cretos. Isso cabia aos críticos, da mesma maneira que ao autor cabia sentir essa exigência, vivendo a vida de seu leitor, identificando-se com ele, integralmente.

Evidentemente, a atitude do poeta de hoje não é essa. E a contrá­ria. O poeta se isola da rua para se fechar em si mesmo ou se refugiar num pequeno clube de confrades. Como ele busca, ao escrever o mais exclusivo de si mesmo, ele se defende do homem e da rua dos homens, pois ele sabe que na linguagem comum e na vida em co­mum essa pequena mitologia privada se dissipará. O autor de hoje, e se poeta muito mais, fala sozinho de si mesmo, de suas coisas se­cretas, sem saber para quem escreve. Sem saber se o que escreve vai cair na sensibilidade de alguém com os mesmos segredos, capaz de percebê-los. Aliás, sabendo que poucos serão capazes de enten­der perfeitamente sua linguagem secreta, ele conta também com aqueles que serão capazes de mal-entendê-la. Isto é, com o leitor ativo, capaz de deduzir uma mensagem arbitrária do código que não pode decifrar.

Este tipo de poeta individualista, apenas dá de si. A outra missão do leitor, no ato literário, a saber, a de colaborar indiretamente na criação é desconhecida ou negada. Este poeta não quer receber nada nem compreende que sua riqueza só pode ter origem na realidade. Na sua literatura existe apenas uma metade, a do criador. A outra metade,

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indispensável a qualquer coisa que se comunica, ele a ignora. Ele se julga a parte essencial, a primeira, do ato literário. Se a segunda não existe agora, existirá algum dia — e ele se orgulha de escrever para daqui a vinte anos. Mas ele esquece o mais importante. Nessa relação o leitor não é apenas o consumidor. O consumidor é, aqui, parte ativa. Pois o homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é incapaz de fazer.

Houve épocas, e creio que ninguém duvida disso, em que o enten­dimento foi possível. Infelizmente, o plano teórico a que me obriga o tamanho desta conversa não me permite a descrição concreta de uma delas. Naquelas épocas, inspiração e trabalho artístico não se opunham essencialmente. Isto é, não se repeliam como pólos de uma mesma natureza. Nessas épocas, a exigência da sociedade em relação aos au­tores é grande. A criação está subordinada à comunicação. Como o importante é comunicar-se o autor usa os temas da vida dos homens, os temas comuns aos homens, que ele escreve na linguagem comum. Seu papel é mostrar a beleza no que todos vêem e não falar de nenhu­ma beleza a que somente ele teve acesso.

Nessas épocas, a espontaneidade ganha novo sentido. Não é mais uma facilidade extraordinária de indivíduo eleito. É o sinal de uma enorme identificação com a realidade. Não é mais uma maneira de valorizar, indiscriminadamente, o pessoal. Nessa espécie de esponta­neidade o que se valoriza é o coletivo que se revela através daquela voz individual. Como na poesia popular, funde-se o que é de um autor e o que ele encontrou em alguma parte. A criação inegavelmente é individual e dificilmente poderia ser coletiva. Mas é individual como Lope de Vega escrevendo seu teatro e seu "romancero", de aldeia em aldeia de Espanha, em viagem com seus comediantes e profundamen­te identificado com seu público.

Nessas épocas, também é essencialmente diferente da que vemos hoje, a atitude do poeta em relação ao tema imposto. Esse poeta cuja emoção se identifica com a de seu tempo, jamais considera violentação à sua personalidade o assunto que lhe é ditado pela necessidade da

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vida diária dos homens. Para o poeta de hoje essa exigência é violenta porque em sua sensibilidade ele não dispõe senão de formas pessoais, exclusivamente suas, de ver e de falar. Ao passo que no autor identifi­cado com seu tempo não será difícil encontrar a mitologia e a lingua­gem unânimes que lhe permitirão corresponder ao que dele se exige.

N essas épocas de equilíbrio, fáceis de encontrar nas histórias literárias, não há na composição duas fases diferentes e contraditórias— não há um ouvido que escuta a primeira palavra do poema e uma mão que trabalha a segunda. Nessas épocas, pode-se dizer que o tra­balho de arte inclui a inspiração. Não só as dirige. Executa-as também. O trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a regra, posterior ao sopro do instinto. Também não se exerce nunca num exercício formal, de atletismo intelectual. O trabalho de arte está, também, subordinado às necessidades da comunicação.

As regras nessas épocas, não são obedecidas pelo desgosto da liber­dade, que segundo algumas pessoas é a condição básica do poeta. A regra não é a obediência, que nada justifica, as maneiras de fazer de­funtas, pelo gosto do anacronismo, ou as maneiras de fazer arbitrárias, pelo gosto do malabarismo. A regra é então profundamente funcional e visa assegurar a existência de condições sem as quais o poema não poderia cumprir sua utilidade. Para o poeta ela não é jamais uma mu­tilação mas uma identificação. Porque o verdadeiro sentido da regra não é o de cilicio para o poeta. O verdadeiro sentido da regra está em que nela se encorpa a necessidade da época.

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C r ít ic a l it e r á r ia

A GERAÇÃO DE 45*

Artigo I

Apesar de existir há alguns anos a querela que acompanhou o nas­cimento e o batismo da chamada geração de 1945 e apesar de os poe­tas dessa geração se mostrarem quase tão interessados em explicar-se quanto em criar, a verdade é que o denominador comum do grupo ainda não foi estabelecido com a desejada precisão.

Vamos, por enquanto, deixar de lado as tentativas de balanço e caracterÍ2ação que têm partido dos membros da geração, mais capazes de pensamento crítico. Essas tentativas de explicação, feitas de dentro para fora, se podem ser de utilidade para definir a atitude de tal ou qual poeta, quando aplicada ao grupo padece de um defeito essencial: ela é incapaz de mostrar uma visão de conjunto dessa poesia nova e tende facilmente à incompreensão. Pois a capacidade polêmica de muitos desses poetas novos, e seu gosto pelos bate-bocas da vida literária não se exercem apenas nos casos de legítima defesa. Exercem-se também em grande parte internamente, isto é, como uma luta de família, com as incompreensões e violências próprias das lutas de família.

Por isso me parece mais instrutivo tentar a caracterização desse grupo de autores a partir da atitude crítica que se formou em relação a

‘ Q uatro artigos publicados no Diário Carioca, 1952.

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ela pelos escritores de gerações anteriores. De certa maneira, algumas das afirmações que constituem essa atitude crítica geral parecem defi­nitivamente depositadas. Devo dizer que nem todas essas afirmações são justas e que a facilidade com que foram aceitas não me parece o resultado da visão certeira desses críticos. As opiniões que os autores mais antigos têm dos poetas da geração de 1945 são também igualmente polêmicas, embora menos violentamente polêmicas: elas se beneficiam da falta de entusiasmo excessivo que vem com os anos, com os anos da idade civil e com os anos de vida ativa na república literária.

Prefiro partir do que pensam e dizem sobre os jovens poetas, os poetas mais antigos, porque eles são capazes de fornecer sobre as no­vas tendências uma visão de conjunto, muito mais útil, embora incompreensiva, do que a dos elementos mais lúcidos entre esses mes­mos jovens poetas.

A primeira atitude que se nota em relação à nova poesia é a de considerar sua contribuição como de importância limitada pelo fato de não se haver voltado violentamente contra a poesia que a prece­deu, criando uma nova direção estética para a Literatura Brasileira. A essa atitude os poetas mais jovens têm procurado responder com a afirmação de que existe um espírito comum à sua geração (embora nunca tenham chegado a um acordo ao dizer o que é esse espírito) radicalmente diverso do que caracterizou a geração anterior e, apesar de não ter havido revolta em profundidade (embora escaramuças de superfície), absolutamente contrário a tudo o que foi realizado pelos poetas que o precederam imediatamente.

Creio ver um equívoco nesses dois pontos de vista. Ambos pare­cem partir da idéia de que é a revolta e a negação pelo avesso de tudo o que se estava fazendo ou pensando, que caracteriza um novo movi­mento literário. De certa maneira, em muitas literaturas, e na nossa principalmente, essa tem sido a lei que prevalece. Não, por exemplo, na Literatura Inglesa. Lembro-me, a esse respeito de um pequeno dis­curso de Stephen Spender, falando exatamente na sabedoria da poesia inglesa, que não parece jamais interessar-se em levar às últimas conse­

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qüências práticas as idéias estéticas de um momento determinado. A seu ver, essa capacidade para o compromise era o que a distinguia me­lhor da de outros países, da francesa, por exemplo.

No caso da Literatura Brasileira, se é verdade que prevalecem as reformas radicais, elas têm acontecido mais no âmbito de movimentos literários do que de gerações literárias. A poesia de um Castro Alves, em relação à de um Gonçalves Dias não é a de negação radical, mas de superação, dentro do mesmo espírito romântico.

Uma geração pode continuar outra. A poesia dos poetas brasileiros que, nascidos no princípio do século, estrearam por volta de 1930, quando a face mais agudamente destruidora dos modernistas de 1922 estava superada, não foi dirigida contra as idéias da Semana de Arte Moderna. Ao contrário — partiram deles, dos pontos de partida que eles haviam fixado no meio de seu combate. E não me consta que alguém, em nome da necessidade de renovação pela revolta, houvesse exigido desses poetas de 1930, o retorno ao que existia antes de 1922.

O que esses poetas fizeram foi tirar o máximo de partido possível das conquistas do modernismo. Aproveitando o terreno desentulhado, puderam iniciar logo seu trabalho de criação positiva. O fato de não terem participado na primeira fila do combate dava-lhes uma vanta­gem inicial: um recuo, um ponto de vista de meia-isenção, suficiente para que pudessem distinguir o que naquela luta era episódico, truque, deformação exigida pela própria luta. Em muitos casos, os autores dessa geração de 1930 iniciaram sua criação positiva antes mesmo dos responsáveis pelas operações de limpeza. Estes, em geral, tardaram ainda a se ver livres das deformações e só mais tarde, aproveitando-se muitas vezes das conclusões dos companheiros mais jovens, puderam iniciar sua obra pessoal. Não é preciso lembrar que alguns deles só foram capazes de realizar bem a primeira fase polêmica, a poesia da Semana de Arte Moderna.

A atitude dos poetas da geração de 1945 também não podia ser uma atitude de revolta. Na verdade, as possibilidades do terreno aber­to pelo modernismo longe estão de esgotadas. Os poetas dos anos 30,

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juntamente com os poetas de 1922 que puderam superar o combate pelo combate, estabeleceram dentro desse território, núcleos de explo­ração importantes. Mas se alguns desses núcleos mostram-se agora de fogo morto, se alguns dos exploradores mostram-se cansados ou dis­postos a abandonar o terreno, nada disso é prova contra a ri­queza que ali ainda existe.

Por tudo isso, me parece equivocada a exigência que se dirige geral­mente aos poetas mais recentes, de revolta contra a poesia que encon­traram no momento em que para eles se abriu a vida literária. A poesia que eles encontraram em funcionamento era uma poesia poderosa. Seis ou sete daqueles núcleos de exploração estavam naquele momen­to, em seu melhor período. Ofereciam possibilidades de trabalho con­sideráveis aos poetas que começavam. Não é de estranhar, portanto, que cada estreante lançasse mão de soluções e de uma experiência técnica já confirmadas, para fazer levantar o vôo de sua obra pessoal.

Por outro lado, considero equivocada, também, a afirmação de al­guns teóricos da poesia de 1945, da existência de um espírito de reno­vação radical, silencioso mas evidente por si mesmo. Não creio que haja esse espírito como não creio que haja nesses poetas de 1945 uma nova consciência, diversa dos poetas anteriores.

Existe uma diferença de posição histórica, no máximo. Ao momen­to da conquista do terreno, sucedeu a fundação dos núcleos de ex­ploração. E a este vem suceder, com os outros poetas de 1945, o mo­mento da extensão dessa exploração. A partir desse ponto de vista, creio divisar uma nova poesia, talvez mesmo uma nova sensibilidade. Talvez mesmo, uma nova geração, se por motivos de comodidade não temos escrúpulos de empregar um conceito tão impreciso.

Artigo II

O fato de constituírem uma geração de extensão de conquistas, muito mais do que uma geração de invenção de caminhos, é o que melhor me parece definir os poetas de 1945. Aliás (já que aceitamos,

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para facilidade de raciocínio o critério de geração), pode-se dizer que uma geração é melhor definida pela sua situação histórica, pelas con­dições a partir das quais lhe é dado viver, ou realizar uma obra. Isto é: uma geração é melhor definida de fora para dentro do que de dentro para fora, a saber, pela consciência que possa ter de si própria, pela sua maneira de reagir diante deste ou daquele problema. Uma geração é definível mais pelos problemas que encontra do que por uma maneira comum de resolver seus problemas.

Pois a diferença entre os problemas que enfrentam os poetas de 1945 e os poetas que, em livros publicados em 1930 ou suas imedia­ções fixaram os caminhos que a poesia brasileira até hoje vem seguin­do, parece-me radical. Somente tendo-se essa diferença em mente é possível compreender o processo da obra desses poetas mais jovens: a dependência em que eles estão de uma tradição, curta porém viva e atuante no momento em que penetraram na vida literária, e os esfor­ços no sentido do alargamento dessa tradição de vinte anos que têm, inegavelmente, realizado em seus livros de poemas os escritores que se revelaram por volta de 1945.

Os poetas de 1930 encontraram o terreno mais ou menos limpo, vale dizer: vazio de forma aceitas e exigidas pelo costume do leitor de poesia, dentro das quais tivessem de escrever sua poesia. Deixando de lado os tiques e vícios do estilo quase polêmico nascido dos combates da Semana de Arte Moderna, mas aproveitando os direitos que aquela revolta tinha posto em suas mãos, tais poetas puderam entregar-se livremente a escrever sua poesia. Como não havia nada ou quase nada a aprender, e sim a desaprender, qualquer esforço positivo eqüivalia a uma invenção pessoal.

Não é difícil notar, por exemplo, menos preocupação formal nos poetas de 1930 do que nos de 1922. Para o poeta de 1930 já não havia a necessidade de criar novas formas para opor, no combate, às formas antigas que se queria desmoralizar, atitude que é evidente nos moder­nistas da primeira hora. Os poetas de 1930 encontraram as formas velhas já desmoralizadas e nenhuma forma nova que as substituísse.

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Apenas uma vaga noção de verso livre; mas essa mesma noção de verso livre não era a de um verso mais plástico, com maior variedade de ritmos, mas a de verso em plena liberdade, como que autorÍ2ando qualquer maneira de fazer peculiar.

A despreocupação formal desses poetas, que sobrevive em quase todos, com uma ou outra exceção recente, parece vir daí: desse senti­mento de que sua voz não teria de se submeter a nenhuma forma preexistente, e de que sua forma seria definida depois da obra realiza­da, como soma das peculiaridades de sua voz.

Para o poeta de 1930, o que havia a fazer era cantar, simplesmente. Não havia uma sensibilidade criada, como sua exigência, sua prefe­rência por tal ou qual forma. A eles é que competia criar essa sensi­bilidade. Eles estavam colocados numa posição especial. Naquele momento coincidia a criação de sua poesia pessoal com a criação de uma nova poesia brasileira, com suas novas formas, sua mitologia, sua sensibilidade, isto é, seu público.

Sua despreocupação formal: quis dizer, seu desprezo pelo que na poesia pode vir do jogo ou dos recursos puramente formais. Se a poe­sia que muitos desses poetas escrevem hoje é diferente da que escre­viam em seus primeiros livros, o verso que eles empregam é, no fundo, o mesmo de antigamente, está claro que com bastante mais desenvol­tura. Mas é o mesmo, o verso nascido das exigências de sua expressão pessoal, o verso que se sentiam mais aptos a realizar, ou o único que lhes era possível realizar. Pois esses diferentes tipos de verso foram os que se transformaram nas matrizes que os poetas de 1945 encontra­ram em funcionamento e às quais tiveram de se submeter sua voz.

Para o poeta mais jovem, surgido quando a poesia brasileira, como conjunto de formas aceitas e como sensibilidade, estava cristalizada em torno da obra de sete ou oito desses inventores mais originais, a situação era completamente diferente. Em primeiro lugar, encontra­ram eles uma sensibilidade formada. Impor-se, para eles, era muito mais fácil do que os poetas de 1930, que tiveram de criar, com os anos, o seu leitor. Os poetas de 1945 encontraram já uma determinada

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poesia brasileira, em pleno funcionamento, com a qual era impossível não contar. Mas se é verdade que escrever poesia a partir do que se estava fazendo era uma atitude cômoda, a coisa se complicava para esse jovem poeta desde o momento em que ele se lançava em busca de sua dicção própria.

O poeta dessa geração de 1945, ao inaugurar sua obra, tinha de escrever para aquela sensibilidade, sem o que sua voz não seria per­cebida; mas tinha também de descobrir seu timbre próprio, dentro do conjunto daquelas vozes mais velhas, sem o que nenhuma atenção lhe seria concedida. Diferente do poeta de 1930, ele não pode apenas confiar-se à sua voz. Ele tem de refletir sobre ela, e, de certa maneira, dirigi-la. A criação de sua poesia não coincide mais com a criação da poesia brasileira. Os tiques de sua voz já não têm força de inaugurar um estilo. Ele tem de submeter-se às formas que encontra.

Há um traço bem sintomático em todos estes poetas de 1945: to­dos partem da experiência de um poeta mais antigo. Quase sem exce­ção, a obra de cada um desses poetas novos se filia à de um poeta mais antigo, à de um inventor. Mas isso não pode ser tomado, sempre, como falta de originalidade ou de timbre pessoal.

O que o poeta jovem procura nesse poeta mais antigo é uma defini­ção ou uma lição de poesia. É um esforço para sintonizar sua voz à sensibilidade vigente, e como esta se define d’après os pontos de crista­lização que são as obras dos autores mais poderosos, o que o autor jovem busca no exemplo, ou na influência, desses mesmos autores é um conceito de poesia, a partir do qual realizará sua própria poesia. O que o autor de 1945 busca no de 1930 é uma lição de poética.

Por tudo isso, a crítica que parece desdobrar-se daquela que recla­ma da geração de 1945 uma reação radical contra a poesia que se esta­va fazendo na época de seu aparecimento, ou melhor a conseqüência lógica que se esconde dentro daquela crítica, a saber, a de considerá-la como uma geração de simples continuadores de formas em uso, tem de ser escrita de maneira diferente.

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Não é simplesmente por falta de mensagem própria que um poeta de hoje funda sua obra a partir da experiência de um poeta mais velho. O que acontece é que não há uma definição geral da poesia, válida para nossa época, que permita ao jovem autor criar sua obra identifi­cado com seu tempo. Existem definições particulares, individualistas. No caso do Brasil, existem as definições de um Carlos Drummond de Andrade, de um Murilo Mendes, de um Augusto Frederico Schmidt; existem poéticas, a desses e a de outros inventores de poesia; existe uma sensibilidade dividida, organizada, em pequenos núcleos, grupos de sensibilidade formados em volta da maneira pessoal de cada um desses inventores.

Não existe uma poesia, existem poesias. E o fato de um jovem poeta filar-se a uma delas, na primeira fase de sua vida criadora, me­nos do que um ato de submissão de um poeta a outro poeta, é o ato de adesão de um poeta a um gênero de poesia, a uma poética, dentre todas a que ele pensou estar mais de acordo com a sua personalidade.

Artigo III

Agora: a posição histórica desses poetas de 1945, que os levou a fundar sua obra pessoal a partir de maneiras de fazer já existentes, não os impede, necessariamente, e para sempre, de realizar uma renovação dessas mesmas maneiras de fazer. Uma renovação é possível. Mas essa renovação não pode vir — e aliás não tem vindo — de uma atitude radical de revolta, em que, por meio de pontos de vista definidos e comuns a todos, se processe a uma substituição completa do que se estava fazendo anteriormente.

A renovação por que é responsável a geração de 1945 não se está dando no plano da teoria literária mas no plano, muito mais lento e mais difícil de precisar em termos de crítica, da criação literária. Ela se está dando por meio de incorporação àquelas maneiras de fazer já en­contradas, de novos repertórios, dos repertórios que constituem o patrimônio pessoal de cada jovem poeta, pouco visível em seus pri-

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meifos poemas, mas que se vai fazendo mais e mais aparente à medida em que, com o domínio da técnica adotada, ele vai conseguindo libe­rar mais e mais sua mensagem particular.

Essa renovação se processa, assim, como uma luta pela libertação. O que acontece é que essa luta está ainda em curso, e que ainda podem ser identificados, mesmo nos poemas dos que mais evidente­mente avançaram em seu caminho pessoal, a marca desta ou daquela maneira de fazer aprendida. Dito de outra maneira: o que já tem sido realizado passa desapercebido se o processo não é encarado como um processo em andamento, dinamicamente, ou se se exige desses poetas de 1945, desde o primeiro momento da luta, uma completa vitória.

Evidentemente, para que esse estágio final do processo, isto é, a obtenção de uma maneira de fazer completamente independente da que foi adotada como ponto de partida, já tivesse sido alcançado por muitos, seria necessário nos poetas dessa geração, mais do que ver­dadeira força poética. Seria necessário que cada um deles estivesse armado de uma aguda consciência de si mesmo e da tradição em que se tem de mover, inicialmente, a fim de poder apressar o processo de liberação por meio da eliminação de tudo o que em sua voz soasse como eco da voz de alguém.

Ora, é inegável que dentro da geração de 1945, esse tipo de escritor não é numeroso. Mas também eles não são freqüentes nem na Litera­tura Brasileira nem entre os poetas que foram os criadores das formas da poesia brasileira presente. Não foi uma grande consciência poética que transformou estes últimos em inventores de poesia, mas sua posi­ção histórica, que fazia deles cantores libertos de toda a tradição e dava categoria de estilo às próprias deficiências de seu canto.

Não é de estranhar por tudo isso, que o avanço da grande maioria dos poetas da geração de 1945 no sentido da obtenção de um timbre pessoal para sua poesia, se dê lentamente. Em muitos deles não existe mesmo uma consciência nítida daquilo que em seu poema é recebido de outro. Em outros, não existe uma adesão a uma forma já existente, um ponto de partida único, mas a incorporação de experiências de

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diferentes poetas. Tudo isso dificulta a luta que têm de realizar. Sua libertação terá de fazer-se pouco a pouco na medida em que o maior domínio de seus meios diminua o peso do ato de fazer e permita sua mensagem particular se revelar livremente.

Talvez seja este o momento de indicar em que sentido se está ope­rando a ação dos poetas de 1945 dentro da poesia brasileira contem­porânea. Tanto no que diz respeito às formas como no que diz respei­to ao repertório dessa poesia, a contribuição dos poetas mais jovens tem sido a de estender, alargar a base estreitamente individual com que, a partir da expressão de sete ou oito inventores mais poderosos se estava fazendo a poesia brasileira.

Isto é: estendendo a base dessa poesia, ampliando a experiência adotada como ponto de partida, desenvolvendo certas tendências ape­nas apontadas na obra daqueles fundadores de caminhos, a geração de 1945 está contribuindo para reduzir as diferenças entre os sete ou oito caminhos particulares, irredutíveis entre si, desde a linguagem empre­gada até o conceito mesmo de poesia e arte poética. E sobretudo, pode contribuir para a fusão dos grupos de sensibilidade que se organizam a partir da expressão pessoal de cada um desses inventores, numa sensi­bilidade mais geral.

Isto é, o trabalho de extensão, determinado pela sua posição histó­rica, pode levar perfeitamente à criação de uma expressão brasileira moderna, geral, que seja constituída não pela coexistência de um pe­queno número de vozes irredutíveis e dissonantes, mas por uma voz mais ampla e geral, capaz de integrar num conjunto todas as disso­nâncias.

No que diz respeito às modificações operadas pelos poetas de 1945 nas formas encontradas e adotadas como ponto de partida para sua expressão pessoal, creio ser evidente que eles a tornaram muito mais maleáveis. Porque não as inventaram, lhes foi muito mais fácil desenvolvê-las. Eles encontraram um conjunto de soluções resolvidas onde escolher livremente. Eles podiam facilmente, desenvolver solu­

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ções apenas esboçadas, que seus criadores haviam largado por falta de oportunidade ou de gosto.

Não há dúvida de que o verso perdeu o sabor de coisa nova, o encanto de coisa que se inventa, com sua dureza e seus tropeços freqüentes, e bastante, também, do outro encanto, a que nos acostu­mamos modernamente — o que vem de saber determinada coisa pes­soal, absolutamente, e exclusiva. Mas ganhou em desenvoltura, enri­queceu-se de novos ritmos, em fluência. Sobretudo, .ampliou-se consideravelmente, se fez polivalente, pôde ser empregado para trans­portar experiências diversas daquelas que o determinaram.

Neste ponto, é preciso fazer referência a uma outra opinião forma­da a respeito da geração de 1945, compartida aliás por alguns. Quero referir-me à opinião que enxerga numa certa tendência esteti ante o deno­minador comum da obra desses poetas.

Não creio que tal tendência possa definir a todos. Talvez ela seja válida para um grupo — para aquele grupo menos numeroso que, em­bora partindo da experiência de um poeta mais antigo, toma essa experi­ência quase que pelo seu lado negativo, quase como coisa contra que lutar. Mas os poetas que criam nesse estado de tensão são raros. A gran­de maioria dos poetas de 1945 não demonstra uma consciência de seu ofício suficientemente grande a ponto de constituir tendência.

Contudo, até o ponto em que tendênáa esteti ante não pretenda signi­ficar uma atitude mental definida, ela pode valer. Isto é, até o ponto em que com essas palavras se queira registrar a desenvoltura ou a plasticidade (o que não é consciência estética, ao pé da letra) com que muitos desses poetas de 1945 chegaram a manobrar o verso herdado dos poetas que os antecederam.

Artigo IV

Uma outra crítica dirigida aos poetas chamados de 45 por escrito­res de gerações anteriores, vem sendo formulada, mais inteligentemente do que por qualquer outro crítico, pelo sr. Sérgio Buarque de Holanda

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e diz respeito ao que se poderia denominar uma preferência idealista, nos poetas desse grupo; na seleção e tratamento da linguagem de sua poesia. Ou, como com mais clareza, coloca o problema o sr. Buarque de Holanda, diz respeito à sua “aplicação, por vezes obsessiva... aos meios de expressão aparentemente próprios e exclusivos da poesia, em contraste com os da prosa” .

Não há nenhuma dúvida de que esta tendência é o que há de mais oposto ao gosto, corrente entre os modernistas e por eles sempre defen­dido, pelo vocábulo prosaico ou pela imagem prosaica. E se compreen­de que assim, acontecesse: a preocupação desses primeiros modernistas era criar uma nova poesia, e, se não lhes coube fazê-lo, é indiscutível que sentiram o problema e o formularam melhor do que ninguém.

Não é difícil de compreender que, para eles, o vocábulo poético, o vocábulo já reconhecidamente poético, fosse o inimigo pior. Aquele vocábulo fora erigido à dignidade de poético por uma convenção e se aquela convenção tinha de ser destruída, também nada devia restar de seu repertório. O gosto pelo vocábulo prosaico, que muita gente pre­tende considerar um gosto bastardo pelo baixo ou pelo não-sublime, não devia ser, nada mais nada menos, do que uma conseqüência de tal atitude. Se parecia violento seu emprego em poesia, essa violência vinha da novidade de seu emprego, do choque de repertórios.

Mas se essa constatação é perfeitamente verdadeira em relação aos poetas do modernismo, não creio que o seja em relação aos poetas que, por volta de 1930, fixaram os rumos que a poesia brasileira segui­ria até hoje. Aliás, não é preciso ser muito arrazoado para confirmar isso. As crônicas que o sr. Mário de Andrade reuniu no livro O empalhador de passarinhos, escritas quando esses poetas de 1930 se desenvolviam em toda plenitude, parecem presididas por um só espírito: o de denun­ciar, com este ou aquele nome, segundo se tratasse deste ou daquele poeta, o que se poderia chamar o abuso poético da poesia. Não creio que o tema mais freqüente neste livro, o do relaxamento formal de certos desses autores, seja completamente estranho àquilo que penso constituir a idéia básica da crítica literária de Mário naquela época.

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Estes poetas de 1930 é que me parecem ter iniciado a delimitação para a poesia, de um território próprio, com sua mitologia e seu vocabu­lário. Não há dúvida de que, no caso do sr. Carlos Drummond de Andrade, a lição dos modernistas, a esse respeito, foi aproveitada. Mas quase em todos os outros essa delimitação se fez contra o emprego dos meios próprios da prosa e a favor dos meios próprios da poesia, a favor do vocábulo já reconhecidamente poético, já poético com anterioridade ao poema, a favor, não de palavras que o poema salva, que o poema faz poéticas, mas de palavras que vêm com sua carga poética, feitas poéti­cas pelo uso anterior, enriquecer o poema, isto é, dar qualidade poética ao texto indiferente onde são colocadas com função galvanizadora.

Não se pode negar que os poetas de 1945 deram um passo à frente no sentido indicado. Mas o essencial da concepção eles receberam, também, dos poetas de 1930. Era essa a lição que a poesia destes últimos parecia conter, era esse o conceito de poesia que se podia depreender do seu exemplo. Num ou noutro poeta mais antigo, e por herança num ou noutro poeta de 1945, essa concepção terá tomado um nome diferente. Ou melhor, ela terá sido justificada a partir de um conceito diverso. Mas o que o poeta mais jovem encontrou, plenamente vigente no contato inicial com a poesia de seu tempo imediato, foi a valorização do sublime contra o prosaico, do sobre-real contra o real, do universal contra o nacional ou o regional, do inefável contra o tangível.

Para o poeta de 1945, os meios próprios da prosa, isto é, os elemen­tos que permaneciam fora do uso poético, o prosaico, vinha a ser uma influência altamente perigosa. O prosaico está muito mais perto da reali­dade e o que esses poetas jovens viam, ao descobrir a literatura, é que à poesia se podia exigir tudo, menos, precisamente, integração na realidade.

A poesia que eles encontraram estava desenvolvendo-se paralela­mente àquele deslocamento, verificado entre os romancistas, para o que se conhece como a novela introspectiva. Paralelamente, isto é, a poesia que eles encontraram era determinada pelos mesmos impulsos que criaram uma certa zona de silêncio e de indiferença em torno ao romance do nordeste. E não só porque a poesia é um gênero mais

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passível de ser desligado da realidade do que a prosa, como também porque a tal novela introspectiva era uma tendência mais do que arti­ficial dentro da vida brasileira, a verdade é que a poesia brasileira veio a ser o instrumento com que melhor foram explorados os múltiplos caminhos de fuga da realidade.

É fácil compreender-se que a presença da palavra ou do recurso prosaico, numa poesia dessa espécie, só pode ser perturbadora. Teria de ser uma espécie de isolante. Só poderia quebrar, romper a trama de sutilezas do poema. Trata-se de uma poesia feita de sobre-realidades, feita com zonas exclusivas do homem, e o fim dela é comunicar dados sutilíssimos, a que só pode servir de instrumento a parte mais leve e abstrata dos dicionários. O vocábulo prosaico está pesado de reali­dade, sujo de realidades inferiores, as do mundo exterior, e em atmos­feras tão angélicas só pode servir de neutralizador.

Não quero dizer, em absoluto, que em todos os poetas da geração de 45 se encontra um mesmo conceito de linguagem e de poesia. Exis­tem, entre eles, poetas com preferência pelos “meios próprios da pro­sa” da mesma forma que entre seus antecessores se encontram alguns dos utilizadores mais exclusivistas dos “meios próprios da poesia” . O que quis mostrar — e isso venho tentando desde a primeira destas notas — é que a poesia de 1945 não pode ser definida por meio de uma tendência comum, uma orientação geral de seus poetas. A não ser que queira tomar uma tendência particular como a única caracterís­tica, eliminando todo o resto.

Essa poesia de 1945 é o desenvolvimento de uma poesia indivi­dualista, em que a expressão pessoal de sete ou oito criadores anterio­res, fixava, cada uma, suas formas exclusivas. E o desenvolvimento dessas formas em sua primeira fase. Mas como ela é individualista também, e a escolha da forma-ponto-de-partida é feita por motivos de preferência individual, é quase certo que vencida a primeira fase de desenvolvimento — que, em geral, é a fase presente da geração de 45— os melhores desses poetas se transformem também em criadores de formas de expressão exclusivas, irredutivelmente suas.

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O que há de comum entre os poetas que a constituem é sua posição histórica. O momento em que iniciaram seu trabalho de criação, e o que encontraram nesse momento. Esse problema, por exemplo, da uti­lização dos meios da prosa não se colocou igualmente para todos. Co­locou-se para aqueles que tomaram como ponto de partida a maneira de um poeta em que tal problema estivesse presente. Se o ponto de partida de outro poeta não o obrigava a considerar o assunto, ele terá ficado completamente estranho a tal preocupação.

E s b o ç o d e p a n o r a m a *

Não hesito em chamar de indiscutível ao fato de que é, principal­mente, em torno da poesia que se está fazendo a Literatura Brasileira de hoje. Não somente é bem maior o número de livros de poesia publi­cados anualmente, como também, nos suplementos literários dos jor­nais e nas poucas revistas que circulam (algumas exclusivamente de poesia), a parte de honra é reservada para a poesia e para os poetas.

Por outro lado, é a partir da poesia e de seus problemas que a crítica de hoje está encarando o fenômeno literário. Para teorizar sobre ele e como base de julgamento. E o único estado de espírito mais ou menos organizado a aparecer nos últimos anos, aquele que tomou a iniciativa de chamar-se “geração de 45” demonstra uma indiferença absoluta não somente pelo não poético como também, e principalmente, por qual­quer uso ou exploração do poético feito independentemente do poema.

Estes são os reflexos da preponderância dos valores poéticos no plano do que vem a ser mais propriamente vida literária. Mas o fenô­meno se faz sentir, também, na qualidade literária do que estão escre­vendo agora certos autores mais antigos, sobreviventes da fase de pres­tígio da literatura objetiva, realista, instalada nas letras brasileiras a partir do ano de 1930.

*A rtigo publicado tia revista Flan, 1953.

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Em muitos desses autores, mesmo naqueles que representaram um papel de combate teórico, não será difícil apontar os efeitos da com­pleta mudança de rumo ocorrida. Em alguns, deu-se o abandono puro e simples da atividade literária: em outros, o abandono dos temas ou da região que haviam explorado anteriormente, de que haviam falado com toda objetividade, talvez exatamente como uma maneira de fugir ã objetividade; em outros, até, a adesão ao novo conceito de literatura que se estava impondo, subjetivo e esteticista, como quer que seja: oposto a tudo o que caracterizou o formidável movimento conhecido como o “romance do nordeste” .

Entre estas atitudes extremas, outras atitudes intermediárias po­dem ser apontadas. Atitudes menos radicais, não há dúvida. Mas todas bem expressivas de certo arredondamento lírico nas arestas agudas e violentas de uma literatura que se queria, e se constituiu em muitos casos, arma de denúncia e combate.

Não há como negar o fato de que alguns desses autores, apesar de haverem perdido o fio cortante do que em sua literatura era arma de combate, continuam fiéis, no essencial, à sua mensagem antiga de realis­mo e objetividade. Diminuiu a freqüência de sua obra, mas suas quali­dades literárias persistiram sem alteração. Contudo, se o prestígio des­ses autores não caiu, se seus livros, continuam lidos, a verdade é que parecem haver perdido a capacidade de influenciar, de pesar com o exemplo de sua obra sobre os que têm chegado depois.

A capacidade de influenciar passou quase que completamente para as mãos dos poetas (contemporâneos ou mesmo mais antigos do que eles na vida literária; poetas que estiveram banidos, ou quase, nos anos de preponderância da novela realista) e dos romancistas subjetivistas, exploradores de um tipo de novela em que, sob mais de um nome, se pode encontrar o que mais unanimemente se procura na poesia; a tro­ca da realidade por sobre-realidades.

Um fato interessante que se pode observar em conexão com a mu­dança de rumo da Literatura Brasileira, é a diminuição do prestígio literário dos escritores de prosa histórica e ensaios sociológicos. A par-

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tir de 1930, eles se haviam aproximado bastante dos autores de ficção, como que empenhados num programa comum. Mas é fácil de compre­ender que desde o momento em que a Literatura Brasileira se fez poé­tica e abstrata, o divórcio entre expressão artística e prosa científica se tenha acentuado, o compromisso obtido naqueles anos se tenha rom­pido, levando de volta os sociólogos e historiadores para a posição de isolamento e distância que mantinham anteriormente.

A preponderância da poesia se faz sentir mais fortemente quando se consideram os gêneros literários que estão merecendo a preferência dos autores que surgem. A prosa de ficção perdeu a posição que de­pois de 1930 guardou por muitos anos. São os livros de poemas, esses pequenos livros de poemas que estão sendo publicados nos pontos mais insuspeitados do país, nos quais nada à exceção da realização gráfica bisonha, indica não se tratar de livro de poeta europeu natura­lizado, que absorvem as preferências dos que se sentem atraídos pela expressão literária.

Pode-se objetar a existência entre os escritores mais jovens de uma boa quantidade de contistas. Mas uma análise dos contos que estes autores novos estão escrevendo, como a que permite a Antologia de contos de escritores novos do Brasil que editou a Revista Branca, mostra que o conceito de ficção do sr. Breno Accioly é completamente diverso do que parece dirigir a obra do sr. Graciüano Ramos.

É a possibilidade de criação poética que parece atrair para o conto a maioria desses autores mais novos. São poetas muitos dos autores ali incluídos. E pertencem à natureza da poesia as pesquisas com a lin­guagem que realiza a sra. Clarice Lispector e o arbitrário das situações e do comportamento dos personagens que se pode encontrar no sr. Murilo Rubião. E falando do que mais extensamente parece caracteri­zar tais contistas, não é essencialmente poética essa atmosfera que todos procuram captar, com sacrifício de tudo o que no conto consti­tuía “contar” ?

A preponderância do poético tem de ser levada em conta, e por isso ocorreu-me registrá-la previamente, se se quer entender qualquer obra

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literária aparecida, hoje em dia, entre nós. Com ela, certos valores fo­ram substituídos, muitos deles pelos valores opostos aos que preva­leceram a partir de 1930. Outros dos valores introduzidos vão de en­contro ao movimento de apreensão da vida brasileira pregado pelos modernistas de 1922. E outros, enfim, vão contra a própria tradição da Literatura Brasileira e contra o que parece lícito esperar-se da lite­ratura de um país em construção.

O que parece existir por debaixo nos novos valores introduzidos poderia ser resumido dizendo-se que são portas para fugir da realidade que se reclama dos escritores de hoje. Para isso, substituiu-se o objeti­vo pelo subjetivo; o real pelo sobre-real; deixou-se de exigir de uma obra comunicação para exigir-se expressão; passou-se a renunciar ao que na literatura pode ser instrumento de influência coletiva em nome do que, nela, pode satisfazer a certas necessidades interiores, egoístas por sua exclusividade. Em resumo: passou-se a desprezar o que um livro vai ser capaz de realizar, uma vez publicado, e a valorizar-se o que um livro foi capaz de realizar, ao ser escrito.

A escolha da poesia como porta de saída da realidade, razão prin­cipal de sua posição na Literatura Brasileira de hoje, está justificada pela própria natureza moderna da poesia. Digo moderna pensando no conceito atual de poesia que a vê como uma substância comple­tamente independente do verso. Este, antes, era um instrumento rít­mico, capaz de criar a linguagem afetiva que iria dar um sentido poé­tico a determinada mensagem. Foi esse conceito que permitiu a existência de toda a poesia épica, da poesia didática e, ainda hoje, da poesia narrativa popular.

Desde o momento que se descobriu que a missão do poeta não era falar poeticamente de coisas do mundo, mas criar no leitor um estado especial, independente de todo o assunto que pudesse transmitir, a poesia perdeu sua capacidade de explorar a realidade, de transmitir, por meio da linguagem afetiva, um conhecimento da realidade. A poe­sia passou a ser um estado, uma sensação, a freqüência de realidades artificiais.

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Critica literaria

Todos esses valores têm de ser levados em conta se se quer enten­der, amar, a Literatura Brasileira moderna. Mas quando, além disso, se pretende julgar as obras dessa literatura, urna última coisa tem de estar presente na memoria do leitor.

A preponderância do poético atingiu profundamente, talvez mais profundamente do que a nenhum outro, os valores normativos defini­dos ñas preceptivas, em que tradicionalmente se apoiava a crítica. O valor básico, hoje em dia, é a presença do poético. Ora, o poético é uma substância caprichosa e para alcançá-lo todos os métodos são válidos. Sua apreensão justifica tudo, todas as violências contra a cien­cia literária (que nos colégios e universidades professores meio melan­cólicos ainda estão ensinando), as invenções formais mais gratuitas.

Pois a lembrança de que assiste a um jogo em que “tudo vale” deve ser o pensamento diretor de quem se disponha hoje a falar de livros.

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C o m o a E u r o pa v ê a A m é r ic a *R e s p o s t a à t e s e d o p r o f e s s o r R o g e r B a s t i d e

Sr. presidente, meus senhores e minhas senhoras. A comunicação do prof. Roger Bastide vem tão cheia de sugestões que é impossível comentá-la ponto por ponto. Permito-me, por isso, limitar-me a um aspecto de sua elaboração, aspecto, aliás, não apenas acidental, mas es­sencial à visão que o ilustre sociólogo nos apresenta do novo mundo.

Começa o prof. Bastide por perguntar até que ponto é possível fa- lar-se numa só Europa ou numa só América. E parece concluir que isso não é possível. Na verdade, ele examina cuidadosamente aquele “momento em que a América constitui para todas as Europas uma unidade real” (o que é já reconhecer que tal unidade não mais prevale­ce hoje) e, mais adiante, assinala com certa extensão a diversidade que existe entre a América Saxônica e os países da América Latina.

A observação, que desenvolve a partir da página 6, de que para o europeu de hoje existem duas Américas, é perfeitamente indiscutível. Pelo menos é inegável que diante dessas duas Américas o europeu reage de maneira diferente: não me lembra, por exemplo, haver visto diante de nenhuma embaixada brasileira ou mexicana as palavras go home, coisa de rotina na paisagem urbana de algumas capitais européias. Mas, a comunicação do prof. Bastide já deixa margem a reservas, desde o momento em que, ao descrever a atitude do europeu em relação a

' Congresso Intem adonal de Escritores, SãoV aulo, 1954.

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cada uma dessas Américas, parece entendê-la como sendo comum ao europeu em geral.

Pode-se dizer que, apesar de ter tido o cuidado de distinguir as Américas vistas pelos europeus, o prof. Bastide desprezou as diferen­tes espécies de europeus que vêem essas Américas. Ora, não sei até que ponto pode confundir-se a visão daqueles indivíduos que, nos países da Europa, vivem em função da supremacia econômica ou política da América Saxônica e a visão daqueles outros que sentem seus interes­ses prejudicados por essa mesma supremacia. Esses dois tipos de eu­ropeus vêem dois objetos, duas Américas, quando olham por cima do mar Atlântico, mas jamais concordarão a respeito da cor e da significa­ção de cada um desses dois objetos.

É verdade que o prof. Bastide, ao apresentar sua descrição dessa alegada atitude comum, parece desejar obter uma média, um compromise. uma conciliação entre as duas visões extremas. Sua visão parece ser a de um intelectual honesto, que, por se colocar acima dos dois tipos de interesse a que me referi, pode dar uma visão isenta e objetiva da pre­sença da América para o europeu. Uma visão também mais profunda, de intelectual, visão de quem sabe distinguir a “ categoria” da “anedo­ta” , para usar a distinção de Eugênio D ’Ors, ou, mesmo, para reduzir a “ anedota” a “ categoria” .

A visão de intelectual do prof. Bastide (e são de intelectuais o; testemunhos que ele invoca em sua comunicação) apresenta a imagem que o europeu faz daquela parte do novo continente, isto é, da Amén- ca Saxônica, como estando determinada pelo desejo de dar à Europ; “a consciência de seu destino próprio” , definido pelo eminente relator, poucas linhas acima desta expressão, como um destino de “huma­nismo” , ameaçado “pelos adeptos do progresso científico, do maqtii- nismo e da organização racional da sociedade” , segundo as própnaí palavras da comunicação.

Ora, é perfeitamente lícito indagar se os setores da sociedade eure- péia beneficiados em suas relações com esse “maqumismo desumi- nizador” vêem com cores tão trágicas os países que o representam. E.

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Como a fiuropa vê a América

por outro lado, cabe estranhar que certos setores da sociedade européia, esmagados na concorrência com essa sociedade maquinista norte-ame- ricana, procurem, exatamente, emigrar para o seio dela. (Não nos deve­mos esquecer de que as cotas nacionais estabelecidas pelas autoridades de imigração dos Estados Unidos são sempre muito inferiores ao núme­ro de candidatos à imigração e que em todos os países da Europa, ainda hoje, pessoas esperam, anos e anos, por sua vez na fila de candidatos a receberem visto de residência das autoridades norte-americanas).

Não é só da uniformidade de opinião dos europeus em seu julga­mento das Américas que fatos como estes nos levam a duvidar. Fatos como estes nos fazem ver com reserva a tese do prof. Bastide, segun­do a qual a visão que o europeu tem, hoje em dia, da América Saxônica, está condicionada por uma atitude de defesa do humanismo, face ao maquinismo desumanizador.

Mas, cabe a pergunta agora: não estaria sendo a interpretação do ilustre relator, apenas, aquela média entre as atitudes extremas que indiquei um pouco acima? Tenho, para mim, que tais pontos extremos de opinião são irreconciliáveis e que, mais do que uma média que ge­neralize a opinião do povo europeu, a interpretação do prof. Bastide representa o modo de ver das camadas intermediárias da sociedade européia, camadas que se situam entre aquelas outras cujos interesses determinam esses pontos de vista extremos. O que não é a mesma coisa: pois enquanto o estabelecimento de uma média aritmética é capaz de representar determinado conjunto (e este é um dos funda­mentos da estatística), a opinião de um setor intermediário da socie­dade não é forçosamente representativa dessa sociedade.

O fato de não ter o ilustre relator levado em conta a diversidade de opiniões dos diferentes setores da escala social em que se distribui o povo da Europa a respeito de cada uma das Américas, é mais de se lamentar, quando se pensa na América Latina. Não apenas por estar­mos incluídos nesta mesma América Latina. Sobretudo, porque o prof. Bastide parece esperar muito do perfeito entendimento entre o que se poderia chamar a velha e a nova latinidade. Não é pelo gosto da minúcia

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que eu desejava ver descritas as diferentes visões européias das dife­rentes Américas. Talvez, unicamente, por certo desgosto do vago.

Também em relação à América Latina, o sr. prof. Bastide parece distinguir uma atitude média, que seria característica do europeu de hoje. E ssa atitude estaria informada por certa “ solicitude nova” , que é como “a auscultação de um futuro possível” . Ora, acho mais pro­blemático enquadrar como “ solicitude” o motivo que faz grandes massas da população européia acorrerem em ondas regulares aos países da América Latina. Poderia também ser qualificado como “ so­licitude” o motivo que provoca a vinda para a América Latina de capitais europeus?

Ainda aqui, creio que o eminente relator está tomando como opi­nião média do europeu a opinião daqueles mesmos setores intermedi­ários, diversos daqueles onde se recruta o grosso dessas marés migra­tórias, e que, por virem em muito maior número para o nosso continente, são portadores de opiniões a nosso respeito de m uito m ais transcendência. Talvez a “ solicitude” que aponta o prof. Bastide este­ja no maior intercâmbio cultural que se está, sem dúvida, verificando desde o fim da última guerra. Mas, não sei até que ponto essas ativida­des de sala de visita ou essa cultura de salões de embaixada podem ter uma ação profunda na sociedade e na história.

Essa “ solicitude” de que fala com tanto brilho o prof. Bastide, pa­rece dar-se no campo cultural, mas ainda aí, sinto que não se dá num terreno amplo. Dá-se, pelo contrário, no campo restrito do intercâm­bio intelectual oficial e é a ação oficial que o planeja e executa. Quero dizer que essa “ solicitude” , mais do que a expressão do desejo da cul­tura européia de dar-se aos países da América Latina, vem a ser um simples aspecto secundário do intercâmbio protocolar existente entre governos que mantêm entre si representações diplomáticas.

A visão da América Latina que se depreende dos discursos troca­dos nesse intercâmbio (mais diplomático do que cultural), pode ser bela e solene. Mas, não foi nas mãos desses intelectuais do intercâm­bio, ou melhor, não foi nas mãos de certos profissionais do intercâm-

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Como a Huropa vê a América

bio cultural que veio para a América a civilização européia. Veio — e continua vindo — foi nas mãos daquelas pessoas sem capacidade de traçar perspectivas grandiosas, que vieram para cá movidas pelo interes­se. Não cabe então imaginar que tenha para nós muito mais valia a visão do homem que emigra da Europa, não por ambição nem por espírito de aventura, mas simplesmente em busca de condições humanas de vida?

Que me desculpem, não só o prof. Bastide, mas todos os presentes, se a um debate de “categorias” minha contribuição se limita à “anedo­ta” . Mas, gostaria de terminar com um caso, ou melhor, com uma ob­servação que tive ocasião de fazer.

Nos meus anos de Espanha — primeira fase de minha vida na Eu­ropa — , tive oportunidade de conhecer melhor as duas classes de indi­víduos: os intelectuais, com os quais convivia por força de preferên­cias comuns, e os trabalhadores, operários e gente do campo, com os quais estava em contato diário, por força de minha função consular. Pois bem, o que pude observar foi que os intelectuais, a despeito da já longa vigência do movimento da hispanidad e da teoria, repetida a cada momento, de que a Espanha de hoje em dia é mais América do que Europa, não só não pareciam sentir curiosidade pela América Latina como também mostravam uma visão inteiramente falsa do que somos do lado de cá do Adântico. Com exceção daqueles que, por força de sua atividade profissional, mostravam conhecer aspectos especiais da vida americana, a regra geral me parecia a ignorância e a indiferença por tudo quanto nos diz respeito.

Outra surpresa minha foi verificar que é em geral no intelectual, que nunca cogita de emigrar, que persiste aquela visão aventureira dos primeiros séculos do descobrimento, em que a América valia como o continente do enriquecimento rápido e da luta violenta pela existên­cia. Em geral, o intelectual não é seduzido pela América: ele não en­contra em si aptidões para participar da luta pela existência (que ele imagina em cores de fanvest), fora do campo intelectual, nem imagina que haja possibilidade na América Latina de que venha a exercer a atividade para a qual as universidades o prepararam.

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Por outro lado, uma visão muito mais realista da América Latina tive a surpresa de encontrar nos trabalhadores, candidatos à emigra­ção para o Brasil, a quem entrevistei e dei vistos em passaportes du­rante anos. Pois bem, não me lembro de ter encontrado no meio de tais emigrantes qualquer atitude messiânica quanto a uma sua possível missão na América Latina, como, tampouco, qualquer visão ideal ou simplesmente aventureira de possíveis eldorados americanos. Encon­trei, sim, uma atitude consciente, nascida de uma visão realista e in­formada da realidade brasileira, informada acerca de dados sobre as condições de vida no Brasil, mesmo acerca de dados considerados os menos relevantes; encontrei uma visão concreta, que a muitos pode parecer limitada e superficial, mas que existe indiscutivelmente e com a qual é indispensável contar.

Ora, a importância de termos, nós brasileiros, uma consciência exata do que é a visão desses homens, parece-me indiscutível. Quando nada, porque a visão que tenham de nós deixa de ser assunto para discussões acadêmicas, porque eles vêm, de fato, concretamente, agir sobre nossa vida de latino-americanos. E uma visão que se traduz em ação, desde o momento em que penetram, como imigrantes, na vida do país. Esses homens são, em geral, os que trazem na capacidade de suas mãos, os fatores que construíram a civilização européia, e eles é que operam aquele transplantamento de que tanto se fala.

Seria demasiada impertinência pedir ao eminente prof. Roger Bastide que, algum dia, reduza a “categorias” a visão que o imigrante europeu desse tipo tem da nossa América Latina?

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DA FU N ÇÃ O M O D E R N A DA PO ESIA *

Embora o que se costuma chamar de “poesia moderna” seja uma coisa multiforme demais, não é excessivo querer descobrir nela um denominador comum: seu espírito de pesquisa formal. Esse espírito tem caracterizado as diversas gerações que se vêm sucedendo no perío­do dito moderno, ainda que não se possa afirmar seja a pesquisa da forma o motivo nodal da criação poética de cada uma dessas gerações.

O poeta moderno, em geral, justifica a necessidade das inovações formais que é levado a introduzir na sua obra, a partir de uma das duas seguintes atitudes mentais: a) a necessidade de captar mais completa­mente os matizes sutis, cambiantes, nefáveis, de sua expressão pessoal e b) o desejo de apreender melhor as ressonâncias das múltiplas e com­plexas aparências da vida moderna. Mas, apesar da aparente oposição dessas duas atitudes — uma subjetiva e outra objetiva — as pesquisas formais a que são levadas as duas famílias de poetas estão, no fundo, determinadas pelas condições que a vida moderna, em seu conjunto, impõe ao homem de hoje. A realidade exterior tomou-se também mais complexa e exige, para ser captada, um instrumento mais maleável e de reflexos imediatos. E a realidade interior, daí decorrente, tornou-se também mais complexa, por mais inespacial e intemporal que o poeta pretenda ser, e passou a exigir um uso do instrumento da linguagem altamente diverso do lúcido e direto dos autores clássicos.

'Tese apresentada no Congresso de Poesia de São Paulo, 1954.

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A necessidade de exprimir objetiva ou subjetivamente a vida mo­derna levou a um certo tipo especializado de aprofundamento formal da poesia, à descoberta de novos processos, à renovação de processos antigos. Afirmá-lo não significa dizer que cada poeta de hoje é um poeta mais rico. Pelo contrário: esse aprofundamento deu-se por meio de uma como desintegração do conjunto da arte poética, em que cada autor, circunscrevendo-se a um setor determinado, levou-o às suas últimas conseqüências. A arte poética tornou-se, em abstrato, mais rica, mas nenhum poeta até agora se revelou capaz de usá-la, em con­creto, na sua totalidade.

Esse enriquecimento técnico da poesia moderna manifestou-se prin­cipalmente nos seguintes aspectos: a) na estrutura do verso (novas formas rítmicas, ritmo sintático, novas formas de corte e enjambement); b) na estrutura da imagem (choque de palavras, aproximação de reali­dades estranhas, associação e imagística do subconsciente); c) na es­trutura da palavra (exploração dos valores musicais, visuais e, em ge­ral, sensoriais das palavras: fusão ou desintegração de palavras; restauração ou invenção de palavras, de onomatopéias); d) na notação da frase, (realce material de palavras, inversões violentas, subversão do sistema de pontuação), e e) na disposição tipográfica (caligramas, uso de espaços brancos, variações de corpos e famílias de caracteres, disposição sistemática dos apoios fonéticos ou semânticos).

Em conseqüência de não se terem fixado tipos de poemas capa­zes de corresponderem às exigências da vida moderna, o poeta con­temporâneo ficou limitado a um tipo de poema incompatível às con­dições da existência do leitor moderno, condições a que este não pode fugir. A apresentação (não organizada em formas “ cômodas” ao leitor) de sua, rica embora, matéria poética faz da obra do poeta moderno uma coisa difícil de 1er, que exige do leitor lazeres e reco­lhimento difíceis de serem encontrados nas condições da vida mo­derna. Cada tipo de poema que conheceu a literatura antiga nasceu de uma função determinada; ajustar-se às exigências da estrutura perfeitamente definida do poema era, para o poeta, adaptar sua ex-

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rtressão poética às condições em que ela poderia ser compreendida e. portanto, corresponder às necessidades do leitor. O poema moder­no, por não ser funcional, exige do leitor um esforço sobre-humano nara se colocar acima das contingências de sua vida. O leitor moder­no não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica durante sua vida diária. Ele tem, se quer encontrá-la, de defender dentro de seu dia um vazio de tempo em que possa viver momentos de contemplação, de monge ou de ocioso.

Talvez a explicação desse aspecto da poesia moderna esteja na ati­tude psicológica do poeta de hoje. O poeta moderno, que vive no indi­vidualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisa ser ratificado pela possibilidade de comunicação. Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a de­terminadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se em espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.

Como a necessidade de comunicação foi desprezada e não entra para nada em consideração no momento em que o poeta registra sua expres­são, é lógico que as pesquisas formais do poeta contemporâneo não tenham podido chegar até os problemas de ajustamento do poema à sua possível função. As conveniências do leitor, as limitações que lhe foram impostas pela vida moderna e as possibilidades de receber poesia, que esta lhe forneceu, embora de maneira não convencional não foram ja­mais consideradas questões a resolver. A poesia moderna — captação da realidade objetiva moderna e dos estados de espírito do homem mo­derno — continuou a ser servida em envólucros perfeitamente anacrô­nicos e, em geral imprestáveis, nas novas condições que se impuseram.

Mas todo esse progresso realizado limitou-se aos materiais do poe­ma: essas pesquisas limitaram-se a multiplicar os recursos de que se

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pode valer um poeta para registrar sua expressão pessoal; limitaram-se àquela primeira metade do ato de escrever, no decorrer da qual o poe­ta luta por dizer com precisão o que deseja; isto é, tiveram apenas em conta consumar a expressão, sem cuidar da sua contraparte orgânica — a comunicação.

Desse modo, essas pesquisas não atingiram, em geral, o plano da construção do poema no que diz respeito à sua função na vida do homem moderno. Apesar de os poetas terem logrado inventar o verso e a linguagem que a vida moderna estava a exigir, a verdade é que não conseguiram manter ou descobrir os tipos, gêneros ou formas de poe­mas dentro dos quais organizassem os materiais de sua expressão, a fim de tornarem-na capaz de entrar em comunicação com os homens nas condições que a vida social lhes impõe modernamente.

O caso do rádio é típico. O poeta moderno ficou inteiramente indiferente a esse poderoso meio de difusão. À exceção de um ou outro exemplo de poema escrito para ser irradiado, levando em con­ta as limitações e explorando as potencialidades do novo meio de comunicação, as relações da poesia moderna com o rádio se limitam à leitura episódica de obras escritas originariamente para serem lidas em livro, com absoluto insucesso, sempre, pelo muito que diverge a palavra transmitida pela audição da palavra transmitida pela visão. (O que acontece com o rádio, ocorre também com o cinema e a tele­visão e as audiências em geral).

Mas os poetas não desprezaram apenas os novos meios de comuni­cação postos a seu dispor pela técnica moderna. Também não soube­ram adaptar às condições da vida moderna os gêneros capazes de se­rem aproveitados. Deixaram-nos cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as aucas catalãs, antepassadas das histórias de quadri­nhos), ou deixaram que se degradassem em gêneros não poéticos, a exemplo da anedota moderna, herdeira da fábula. Ou expulsaram-nos da categoria de boa literatura, como aconteceu com as letras das can­ções populares ou com a poesia satírica.

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No plano dos tipos problemáticos, tudo o que os poetas contemporâ­neos obtiveram, foi o chamado “poema” moderno, esse híbrido de mo­nólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de declara­ção de princípios, de balbució e de herm enêutica filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira pessoa e usado indiferente­mente para qualquer espécie de mensagem que o seu autor pretenda enviar. Mas esse tipo de poema não foi obtido através de nenhuma con­sideração acerca de sua possível função social de comunicação. O poeta contemporâneo chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a própria ausên­cia de construção e organização, é o simples acúmulo de material poéti­co, rico, é verdade, em seu tratamento do verso, da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa caixa de depósito.

Conclusão: acredita o autor que a consideração desse aspecto da poesia con­temporânea pode contribuir para a diminuição do abismo que separa hoje em dia o poeta de seu leitor. Não que acredite em que uma consáência nítida desse fato anule completamente esse abismo. A seu ver, as ratões de tal divóráo residem mais bem na preferênáa dos poetas pelos temas intimistas e individualistas. Mas acredita também que pesquisas no sentido de se encontrarem formas ajustadas às condições de vida do homem moderno, principalmente através da utilização dos meios técnicos de difusão que surgiram em nossos dias, poderá contribuir para resolver, ao menos até certo ponto, o que lhe parece o problema principal da poesia de hoje — que é de sua própria sobrevivência. Quando nada, pensa, a consáênáa deste problema poderá ajudar aqueles poetas contemporâneos menos individualistas, capazes de interesse por temas da vida em soáedade e que tam­bém não encontraram ainda o veículo capa^ de levar a poesia ã porta do homem moderno. A falta de tal veículo está também, condenando a poesia destes últimos autores ã espera, desesperançada, de leitores que venham espontaneamente à sua procura, leitores, de resto, cada dia mais problemáticos.

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E l o g io d e A ssis C h a t e a u b r ia n d *

Quando se vem ouvir falar de um homem como Assis Chateubriand, é natural que se espere ouvir falar tanto do homem (do homem, sim­plesmente, ou do homem de ação e de suas realizações) quanto do jornalista e do escritor. Talvez mesmo, ouvir falar mais do homem e de suas realizações do que do jornalista; e menos ainda, de certo, do es­critor. A partir de certa época, Chateaubriand se empenhou, tão inten­samente (embora paralelamente) em atividades estranhas à de jorna­lista, que o jornalista que ele foi, mais do que qualquer outra coisa, ficou num segundo plano, quase escondido pelas obras que, como ho­mem de ação, ele realizou: da mesma forma, aliás, como o escritor que havia nesse jornalista ficou num segundo plano, escondido pelo jorna­lista, e prejudicado pelas condições em que, como jornalista, ele tinha de trabalhar. Pois foi, precisamente porque a figura do jornalista e a qualidade do escritor estão, a meu ver injustamente, esquecidas de lado, que me decidi a concentrar-me nelas.

Compreendo os riscos dessa decisão. Falar do jornalista, e do escri­tor que foi exclusivamente jornalista, além de ser tarefa mais apropriada para um ensaio do que para um discurso, traz a obrigação de dar a ver o mais significativo de uma obra, escrita toda ela para jornais, que é imensa e variadíssima, e da qual é pequena a parte reeditada em livros. E compreendo, também, os “efeitos” de que estou abrindo mão: a

* Discurso de posse na Academ ia Brasileira de Loiras, 1969.

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extraordinária presença humana de Chateaubriand, de quem se disse que era um “homem do Renascimento” , parece pedir que se faça dele um perfil do mesmo tipo do que ele fez, aqui mesmo, de seu antecessor na Academia.

Contudo, mesmo que eu quisesse fazer de Chateaubriand um perfil do tipo do que ele fez de Getúlio Vargas, não passaria, esse perfil, de uma enumeração dissaborida de anedotas alheias, sabidas de ouvir con­tar. Estive com Chateaubriand uma única vez em minha vida, e embo­ra nosso diálogo se tenha prolongado por umas duas horas de monólo­go, esse contato não me permitiria trazer aqui a presença de um homem tão numeroso e complexo. Reunir anedotas sobre esse homem não seria tarefa difícil, materialmente. Muitas delas estão publicadas e muitas são conhecidas, até por tradição oral. Por outro lado, ainda vive, feliz­mente, a maioria dos companheiros que com ele conviveram tantos anos, e dos colaboradores que com ele viveram tantas campanhas. Mas que verdade, como retrato, teria esse Chateaubriand anedótico, feito por um homem que apenas o conheceu?

Quanto à obra não-literária do homem de ação Assis Chateaubriand, permiti que nem mesmo a enumere. Ela está aí, de pé, mais visível do que sua obra de escritor, e recordá-la é, por isso, desnecessário. A respeito dessa obra não-literária, eu gostaria apenas de chamar a aten­ção para dois de seus aspectos: para o fato de ter sido como jornalis­ta, por meio de campanhas jornalísticas, que Chateaubriand chegou a realizá-la; e para o caráter cultural da maioria das instituições que ele chegou a realizar. Esses dois aspectos, com a confiança no poder da palavra e com o apreço à cultura que fazem supor, muito mais de intelectual, bastariam para justificar minha preferência por vos falar do jornalista e do escritor, entre os vários Chateaubriands de que é possível se falar.

Devo esclarecer que não me proponho a deixar de lado, inteiramen­te, o homem Chateaubriand, e falar, técnica e profissionalmente, do jornalista e do escritor. O que me proponho a deixar de lado é a anedo­ta desse homem, aquilo que os que privaram mais com sua pessoa do

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E/ogio de A ssis Chateaubriand

que com sua escrita têm tendência a considerar todo esse homem: ou o mais significativo desse homem.

Nem poderia ser outro o método de ninguém que quisesse dar a entender a obra de um escritor que foi sobretudo um jornalista. Pois se, num jornalista qualquer, já é difícil traçar uma linha nítida entre sua obra e sua personalidade, em Chateaubriand essa dificuldade se faz impossibilidade. A obra de um jornalista, todos o sabemos, não é nunca a obra de um escritor de gabinete, e uma análise puramente estilística não levaria muito longe. Para se apreender a obra de um jornalista, creio, mesmo quando se está apenas à procura de sua quali­dade literária, é indispensável levar-se em conta o homem que a escre­veu: desde as condições em que esse homem escreveu, até o que leva­va esse homem a escrever.

No caso de Chateaubriand, essas condições foram as condições co­muns aos jornalistas profissionais. Mas há nele um traço psicológico que não se pode deixar de levar em conta, e que ele mesmo definiu, ao decla­rar no Senado: “Sou uma índole de controvérsia” . índole que, sem dúvi­da nenhuma, Chateaubriand pôde expressar amplamente, pois não sei de jornalista que mais se tenha envolvido em controvérsias, que mais tenha amado a controvérsia. Era como se só concebesse viver nesse clima; e não espanta que, apesar de tudo o que de positivo ele realizou, tenha vindo a ser um dos homens mais controvertidos de nosso tempo.

Esse traço de seu caráter, aliás, já se havia revelado em sua moci­dade. Lembremo-nos da maneira inteiramente desinteressada, com que, em A. morte da polide% lançou-se contra Sílvio Romero, na polêmica que este mantinha com José Veríssimo. E esse traço de caráter conti­nuou pela vida afora: a leitura de seus discursos no Senado dá a im­pressão de que o orador só “ entrava em calor” quando os apartes se cruzavam a sua volta, ou quando violentamente aparteado ele mesmo. Nessa atmosfera de polêmica viva ele parecia mais à vontade e toda sua vivacidade despertava. Essa era a atmosfera preferida de sua inte­ligência e a mais propícia a seu estilo de escritor, e ele tudo parecia fazer para provocá-la.

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No entanto, se reconhecer no homem esse gosto da controvérsia é a meu ver essencial para entender-se a obra do jornalista, é a meu ver dispensável o estudo da substância de suas muitas controvérsias. E não deixo suas idéias de fora deste elogio acadêmico apenas por con­veniência, pessoal ou acadêmica: por nem sempre estar de acordo com o que ele combateu ou defendeu, ou para não trazer aqui, hoje que a Academia lhe presta sua homenagem pública, motivos que possam embaçar a figura do grande escritor que por tantos anos foi membro desta Casa.

Deixo de lado essas idéias porque elas não ajudam a compreender a qualidade da obra do escritor. Elas foram para ele, mais que nada, o pretexto que lhe permitia escrever como ele preferia escrever: como quem luta. Mas essas idéias não constituem um corpo sólido e siste­mático que tivesse dado cor e sabor ao escritor Assis Chateaubriand; ou sem a consideração do qual não se pudesse sentir, nem dar a sentir, a maneira desse escritor, com o que nela é válido e pessoal.

O próprio Chateaubriand tinha consciência desse outro traço de sua personalidade e chegou mesmo a confessá-lo. Também no Senado, referindo-se um dia a Rui Barbosa, disse: “Era um vasto erudito; um maravilhoso ourives da língua; um gênio enciclopédico; mas faltava- lhe Weltanschauung... Sei bem o que é isso porque sofro do mesmo mal.”

Homem de idéias Chateaubriand o foi, mas num outro sentido: no sentido de homem capaz de levar até o fim as idéias que o interessa­vam em determinado momento; no de se comprometer por uma idéia. Por isso, mais do que as idéias desse homem, é a maneira como esse homem adotava as idéias que tem utilidade para se definir o jornalista Assis Chateaubriand.

Assim, é pedindo perdão por minha preferência de escritor, o que não pode ser de estranhar numa casa de escritores, e à qual comparece uma audiência já habituada, de certo, com a vaidade que dizem ser a nossa, a dos escritores, que venho à vossa presença pronunciar o elo­gio do grande prosador paraibano do Umbuzeiro. E não disse “grande prosador paraibano do Umbuzeiro” como fórmula retórica: é que, para

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mim, o jornalista Assis Chateaubriand foi na verdade um prosador dos melhores, e um prosador em que estão presentes os traços mais distin­tivos dos escritores do Nordeste.

Pode surpreender que, para tentar definir o tipo de jornalista que foi Chateaubriand, comece eu por dizer o que ele não foi nunca; ou nunca se interessou em ser: um editorialista. íntimo amigo seu, com­panheiro de jornal de dezenas de anos, disse-me, mesmo, que não se lembrava de haver visto um só editorial escrito por ele. Isso é signifi­cativo, embora possa surpreender num homem que, desde a mocida­de, foi um jornalista de redação, e que, mais tarde, dono de jornais, nunca se limitou a ser um homem de empresa, interessado exclusiva­mente em marcar a linha de seus jornais: mas que continuou, toda a vida, um jornalista de escrever.

Não sei as razões do desinteresse de Chateaubriand pelo editorial, esse gênero de jornalismo que é o de mais categoria entre os muitos ingredientes que entram na cozinha de um jornal; desinteresse tanto mais de chamar a atenção porque o editorial é a tribuna política do jornal, e quando se pensa que Chateaubriand foi um jornalista prepon­derantemente político. Talvez que esse desinteresse viesse da necessi­dade mínima de disciplina que o gênero requer. Mas acho mais prová­vel que Chateaubriand não confiasse em sua capacidade de escrever impessoalmente, e que achasse não haver sentido em escrever anoni­mamente editoriais cujo autor seria identificado, à leitura das primei­ras frases, pelo leitor menos arguto.

Esse desinteresse explica, a meu ver, muita coisa. Sobretudo mostra que Chateaubriand se sentia pouco inclinado a escrever com a impessoalidade de estilo do editorialista clássico, com sua superfície polida, com seu tom mais de árbitro que de advogado, mesmo quando advogado, e que, mesmo quando advogado, tem de eliminar de sua dic­ção tudo o que é o timbre, ou o sotaque, de um homem determinado,

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intérprete que ele é, no editorial, menos do ponto-de-vista de um ho­mem do que do de uma instituição ou do de uma corrente de opinião. Prosa essa, de editorialista, que tantos escritores de transparente factura deu a nossa história literária e que tantos nomes deu a vossa Academia.

Daí ter Chateaubriand preferido, sempre, o artigo assinado: é que nesses artigos ele podia se abandonar inteiramente a sua maneira pes­soal de escrever, sua maneira informal de escrever, sem ter de abafar para nada a viveza de sua frase nem de disfarçar seu sotaque inconfun­dível. Nesse sentido, vale notar que muitos desses artigos assinados, por sua matéria, caberiam melhor num editorial. Mas Chateaubriand preferia fazer deles a opinião de um homem: e muito embora os jornais em que os escrevia lhe pertencessem, escrevendo artigos assinados, esse homem radicalmente inconvencional, devia se sentir mais livre, não digo de contradizer a linha de seus jornais, mas de transbordar dela, como se fosse ele um colaborador de fora, um outro Assis Chateaubriand, livre dentro dos jornais de Assis Chateaubriand.

Imagino também que, assinando seus artigos, além de maior liber­dade digamos: literária, Chateaubriand devia sentir mais liberdade para exercer aquilo de que falei há pouco, com suas mesmas palavras: sua “índole de controvérsia” .

E não só mais liberdade como mais efetividade para abrir polêmi­cas, um artigo assinado podendo, muito mais do que um editorial anô­nimo, despertar debates e reações, por ser a obra de um homem deter­minado, que se identificando, faz-se responsável, e diante de quem é mais difícil a alguém fazer-se de desentendido; uma obra que não é uma obra sem face, como o editorial, que é obra como que de nin­guém, por parecer vir de uma entidade abstrata, quase obra como de máquina.

O gosto da controvérsia explica também o feitio desse polemista: sua maneira de lançar-se nos debates sem meias-tintas nem meias- palavras; empenhando-se neles apaixonadamente; entregando-se com­pletamente a cada um deles, sem o cálculo do homem político, que sabe até onde quer e deve chegar, nem as reservas do homem de em-

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Elogio de A ssis Chateaubriand

presa, que receia ir mais além desse onde chegar: para só citar dois tipos sociais com que ele tanto conviveu, cujos interesses sempre es­teve associado, mas que o devem ter visto sempre, quando seu asso­ciado, desconfiadamente, como um verdadeiro espalha-brasas. E (não creio que seja absurdo dizê-lo) esse seu gosto da controvérsia o deve ter levado, de propósito, e mais de uma vez, a adotar campanhas que ele sabia as mais impopulares.

Depois desse seu gosto da controvérsia, há um segundo traço em Assis Chateaubriand que me parece essencial para definir o tipo de jornalista que ele foi. Deste, também, ele tinha consciência, e muitas vezes aludiu a ele: gostando mesmo de se classificar como repórter, “ simples repórter” . N a verdade, em tudo o que escreveu, sente-se a preponderância do fato acontecido, do lado concreto, da observação de momento, da anedota vista ou ouvida; e tudo o que ele escreveu parte sempre do episódico e está limitado pelo circunstancial: coisas, todas essas, que constituem o instrumento e o material do repórter. E vê-se também, em Chateaubriand, muito pouco de discussão abstrata de idéias e quase nada de especulação ou de jogo de idéias.

Contudo, esse repórter que parece pensar somente a partir de fatos que observou, e escrever somente com os fatos que tem na mão, nun­ca foi o repórter que se apaga por detrás do que os fatos dizem. Chateaubriand participava, e nunca friamente, do sentido dos fatos que lançava, punha de enfiada, empilhava em cada artigo. E essa sua atitude não vem da época de jornalista eminente. Essa incapacidade de apagar-se por detrás da linguagem dos fatos é visível, já, no autor das reportagens sobre a Alemanha de 1920: muitas das entrevistas que fez então, quando não soam como verdadeiros debates entre o entrevistador e o entrevistado, revelam a mão do entrevistador, com­pletando, discutindo, sublinhando o que disseram os entrevistados; levando-os, a todos, na direção da tese de todo o livro.

Esses dois traços do jornalista Assis Chateaubriand criavam uma dualidade que descreve melhor do que nada, o que ele foi como jorna­lista: um curioso cruzamento de polemista e de repórter; de homem

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em quem era muito forte a “índole de controvérsia” e de homem que, à linguagem das idéias abstratas, preferia a linguagem fatual do repór­ter. Não é que o polemista e o repórter se alternassem, ora num ora noutro artigo. Eles se alternavam, mas dentro de um mesmo artigo, dando-lhe um hibridismo que não era a menor originalidade de seu estilo de jornalista. O jornalista Assis Chateaubriand era um repórter de debate e um polemista que escrevia com coisas.

E evidente que falar da obra de um jornalista, e de um jornalista prolífico e de toda a vida como Chateaubriand, obriga a simplificar e a generalizar. Não pretendo dizer que Chateaubriand não tenha escrito nunca uma pura reportagem. Em sua obra de jornalista existe de quase tudo, e até artigos da prosa mais desinteressada, quase como feitos para si mesmo. Lembro-me, por exemplo, dos artigos que escreveu na campanha pela criação dos aeroclubes, escritos muitos deles de bordo do Raposo Tavares, avião em que deve ter cruzado, palmo a palmo, todos os céus do país. Em muitos deles, a ausência do que defender, ou combater, levou-o a escrever, mais do que reportagens, inocentes crônicas de viagem. E às vezes mesmo, nessas viagens vazias, a ausên­cia do que reportar, levou-o a escrever, mais do que reportagens, ino­centes crônicas de viagem. E às vezes mesmo, nessas viagens vazias, a ausência do que reportar, levou-o a escrever páginas que poderiam passar, quase, como páginas de um jornal íntimo, e não de viagem.

Páginas menos para lidas que para escritas; porque escrever, embo­ra a luta fosse o clima de sua inteligência, é o que era para Chateaubriand a necessidade compulsiva. E nem o exílio, nem as viagens, nem qual­quer de suas atividades extra-jornalísticas conseguiu interromper essa corrente de palavra escrita que começou no jornalista adolescente do Diário de Pernambuco. Essa corrente de palavra escrita, só a doença final conseguiria rompê-la. Mas a qualquer melhora, ele recomeçava a escrever, e, sobrevivente do primeiro golpe da doença, ao querer se re­cuperar, vendo que não poderia mais escrever à mão, aprender a escre­ver à máquina foi seu primeiro cuidado. Como se nele o sentimento de existir coincidisse, ou se confundisse, com a atividade de escrever.

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Seu gosto da controvérsia explica, acho eu, certo ponto de sua bio­grafia: porque depois de um concurso para a Faculdade de Direito do Recife e de uma viagem ao Rio para defender a cátedra que por moti­vos políticos não lhe queriam dar, no Rio tenha ele permanecido, en­tregue ao jornalismo, como se de repente tivesse compreendido que a atividade de professor não poderia satisfazer aquele seu gosto da con­trovérsia; e que a atividade de jornalista num meio mais limitado, como o da província, não poderia satisfazer esse gosto, ou satisfazê-lo com a intensidade que, pelo que se depreende de sua vida posterior, Chateaubriand devia então desejar.

D a mesma forma que seu gosto da controvérsia, seu lado de repór­ter, de homem cuja linguagem é feita mais de fatos do que de idéias, explica outro ponto de sua biografia: seu curto exercício da profissão de advogado, a que se dedicou, em certa ocasião, no Rio de Janeiro. Quem sabe? Essa profissão, que lhe permitiria escrever e agir perma­nentemente num clima de controvérsia não o tenha interessado muito tempo porque, nela, a controvérsia, embora se inicie num plano con­creto, não permanece nunca nesse mesmo plano. Mas fatalmente se amplia, e vai subindo, de instância a instância, para planos em que é mais freqüente o debate de idéias, até acabar, muitas vezes, num plano de pura especulação de idéias. Ora, o gosto da especulação, nesse ho­mem de grande curiosidade intelectual, está tão ausente de seus temas quanto o abstrato do debate de idéias está ausente de sua linguagem.

Se não será motivo de surpresa para ninguém dizer que Chateaubriand foi um grande jornalista, creio que poderá, sim, causar surpresa dizer que ele foi, também, um grande escritor. Há certa tendência em se que­rer ver, num jornalista, menos sua obra escrita do que o que ela provoca; menos o prosador do que o homem público. Ora, como Chateaubriand manteve durante mais de cinqüenta anos seu braço a braço diário com a opinião pública do país, e como deixou toda uma série de realizações

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não literárias, mais de homem público, ele, mais do que nenhum, cor­reu o risco de que a qualidade de sua prosa ficasse despercebida.

Porque, para o leitor corrente, a expressão grande escritor, quando aplicada a um jornalista, está destinada ao escritor que, de fora da redação, também escreve para jornal; muito mais para este do que para quem, dentro da redação, escreve sujeito às condições em que tem de trabalhar o profissional do jornal; isto é, os que possuem aquele tipo de inteligência que Eliot definiu como a do jornalista: a “que só pode dedicar-se a escrever, ou que só produz o melhor do que escreve, de­baixo da pressão de uma ocasião imediata...” .

Assim, permito-me inverter os termos da tendência mais geral e dizer que Chateaubriand foi um grande jornalista não por suas realiza­ções nem por suas lutas, mas, antes de tudo, porque foi um grande escritor em prosa. E grande escritor não por haver escrito conservado­ramente, mas sobretudo porque foi um escritor criador: um escritor que soube passar ao lado de todos os rolos compressores a serviço da uniformidade, e, portanto, da pobreza, estilística, não pelo puro gosto de subverter regras, mas porque havia nele essa coisa especial, e rara, que revela, mais do que qualquer outra, o verdadeiro escritor: certa maneira pessoal de usar a linguagem que dá um sotaque original ao que ele escreve. Não gratuitamente mas funcionalmente original, isto é, adaptado ao que ele tem a dizer, e capaz de fazer mais significativo o que ele tem a dizer.

E o que é importante fazer notar: homem de redação toda a vida, mesmo quando dono de jornais, o exercício do jornalismo nunca neu­tralizou o que me parece o traço mais saliente de seu estilo de escritor: que foi o de escrever numa língua falada. Nisso, aliás, Chateaubriand, homem de redação, se aparta do que acontece aos homens de redação. Pois se as condições do trabalho de redação prejudicaram esse escritor sob certos pontos de vista, não puderam prejudicá-lo naquilo que, para um escritor, é essencial: encontrar sua voz própria, esse sotaque pes­soal que Chateaubriand, com o instinto de verdadeiro prosador, trans­formou em estilo.

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Elogio de A ssis Chateaubriand

A Mngua de jornal, por mais simples e espontánea que seja, e por mais dia a dia que seja o fato que tem de noticiar, não é uma língua falada. O exercício do jornalismo, a obrigação de escrever, de qual­quer maneira, sobre o que quer que aconteça, e sempre contra o reló­gio, não leva o jornalista a empregar sua maneira própria de falar, sua voz física; sim, o leva a empregar uma língua outra, a língua de jornal, o “jornales” . O corre-corre e a improvisação, entregando o jornalista a sua espontaneidade, não o entrega aos tiques pessoais de sua voz físi­ca mas a seus tiques profissionais automatizados: uma série de fórmu­las e de lugares comuns, absolutamente de ninguém, e que afloram mecanicamente a sua desatenção, precisamente porque ele não pode pôr toda sua atenção no que escreve.

Não creio que seja este o momento para entrar em considerações sobre a viabilidade de se escrever numa língua falada absoluta. Um leitor de Chateaubriand que o tenha conhecido, mesmo superficial­mente, como é meu caso, recordará como sua escrita se parecia com sua voz física. Como já disse, estive com ele uma só vez em minha vida. Mas se antes daquelas duas horas de monólogo quase ininterrupto, seus artigos já me pareciam bons exemplos de estilo falado, tive a im­pressão, ouvindo-o falar naquela noite, de que conhecia sua voz há muitos anos: desde os anos de minha primeira adolescência, em que lia seus artigos do Diário de Pernambuco.

E já nunca mais o pude 1er sem ter a impressão de que o estava ouvindo falar. Voltava-me sempre o timbre de sua voz, colocada sem­pre em seu mais alto registro, mas que parecia ter alguma coisa que a abafava, e que dava ao tom de sua conversa a sensação de que ele estava sempre em luta, em primeiro lugar contra sua própria garganta. E voz sempre tensa, intensa, apaixonada, como no limite de si mesma: por menos controvertido que fosse o assunto da conversa; por menos discus­são e mais narração que fosse o assunto da conversa, como no meu caso, que era de coisas da política de Pernambuco de sua mocidade.

Creio que se pode sentir uma evolução clara no estilo de Chateaubriand, assinalada, exatamente, pela maior freqüência, em sua

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João Cabral de Melo Neto * * Prosa

prosa, dessa língua falada. Ela está ausente, por exemplo, em A morte da polide% em que ele parece menos interessado em escrever com sua voz própria do que em dar uma demonstração de que o jornalista de vinte anos conhecia bem a técnica dos grandes polemistas da época. E se essa língua falada começa a aparecer oca. A Alemanha, livro de 1921, a verdade é que aparece em muito poucos momentos, como se o jornalis­ta de trinta anos ainda não tivesse consciência daquilo que viria a ser sua maneira, ou não se sentisse ainda com toda a liberdade de exercê-la.

Por outro lado, se é certo que o estilo do primeiro Chateaubriand é menos pessoal como textura, e está ainda longe da estupenda liberda­de com que escreveu a partir dos últimos vinte anos, é também verda­de que a estrutura de seus primeiros artigos é muito mais construída e bem acabada. Esses artigos e reportagens mais antigos têm mais coe­são e coerência, e não sofrem do fragmentarismo das obras de sua maturidade (que contudo são, como já disse, muito mais pessoais como textura). Ao mesmo tempo, sua prosa mais antiga parece saber melhor onde quer chegar, segue uma continuidade mais linear e clara do que a prosa de rumo caprichoso de sua maturidade, que é inesperada, sem­pre a ponto de transbordar de si mesma, ou de se bifurcar por atalhos incidentals absolutamente imprevisíveis.

Não pretendo que houvesse em Chateaubriand um projeto consciente de escritor de chegar a uma linguagem falada. Creio, mais bem, que ele chegou a ela por motivos psicológicos que estão, mesmo, no oposto de qualquer “vontade de estilo” . A linguagem falada se foi desenvolven­do nele à medida que foi mudando sua situação de jornalista: à medida que esta lhe foi dando uma maior liberdade como prosador. Mas seu estilo não é em nada um estilo construído, planejado: é simplesmente o estilo que ele achou quando sua situação de jornalista-dono-de-jor- nais lhe permitiu escrever, não em estilo de jornal, mas da maneira como bem lhe parecesse. Ora, ao poder escrever como bem lhe pare­cesse, Chateaubriand se viu escrevendo como falava.

Essa maior liberdade de que o jornalista-dono-de-jornais, com seu temperamento informal e insofrido, passou a gozar, explica, a meu

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ver, dois aspectos de seu estilo: o primeiro é essa falta de estrutura, a que me referi há pouco. A liberdade de poder escrever como bem lhe parecesse o impedia de dominar a impaciência e a pressa que o jorna­lista dos primeiros anos tinha de dominar, e como que o impedia de selecionar, entre tudo o que lhe ocorria sobre um assunto, os elemen­tos mais relevantes: escolhê-los e organizá-los numa estrutura deter­minada. Chega a parecer que Chateaubriand ignorava que a organiza­ção de uma mensagem aumenta o impacto dessa mensagem, tanto por impedir que seus diversos elementos percam sua força, anulando-se ou dispersando-se, quanto porque, em matéria de comunicação, o con­junto tem uma força maior do que a simples soma de seus elementos.

O segundo aspecto é a crescente presença, em sua linguagem de jornalista, da linguagem do Nordeste. Quando liberado dos espartilhos da convenção jornalística, a que o obrigava o fato de escrever para jornais de outros, Chateaubriand encontra, escrevendo sua maneira de falar, sua voz física: ora, por debaixo dela estava o Nordeste, que era o timbre e a dicção dessa voz. Foi a presença dessa linguagem do Nor­deste, viva ainda nesse nordestino depois de tantos anos de ausência, que a muitos de seus leitores de fora da região parecia, às vezes, gosto pelo puro pitoresco, senão expressões inventadas por um amor gratui­to ao pitoresco. Entretanto, sua maneira de escrever é a maneira de falar de sua região, tanto quanto os tons de humor, extremados em caricatura, que ele empregou freqüentemente.

Ao me referir ao emprego da língua falada como a qualidade que melhor define o prosador Assis Chateaubriand, talvez seja preciso um esclarecimento. Nesses artigos de sua maturidade que são aqueles em que sua prosa se faz mais pessoal, sua língua não tem a entonação horizontal, lhana, em tom de conversa, qualidades em que, geralmente se pensa, quando se fala de língua coloquial. Por isso, usei a expressão língua falada e não, língua coloquial. Esses artigos estão escritos numa língua falada, mas na língua falada pessoal do hom em A ssis Chateaubriand, e não numa língua de quem estava procurando repro­duzir a maneira de falar de uma situação determinada, ou de uma pes­

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soa outra. Assim, ela nada tem dos tons variados de uma conversa, mas o tom único de uma discussão, ou de um debate; e é a língua de uma pessoa que fala como quem discute, como era a própria fala de seu autor, e que discute sempre apaixonadamente.

E também não se sente nela, jamais, o tom do oráculo ou do pro­fessor; e menos o de quem pretende dizer a palavra definitiva e lapi­dar. É , sempre, a voz de Chateaubriand, a voz física de alguém que busca convencer e influenciar alguém; é sempre a voz de quem está numa discussão e se apoderou da palavra num interminável monólo­go, e que, por isso mesmo, porque parece monologar durante uma dis­cussão, nunca esquece a presença do adversário, e, embora não lhe ceda a palavra, monologa como antecipando todas as possíveis obje- ções desse adversário; e é sempre a voz de quem, embora apaixonado, não despreza esse adversário e não se situa jamais acima dele: mas se esforça sempre para manter um nível em que a discussão seja possível; e sobretudo em que a discussão possa continuar.

Essa prosa falada de Chateaubriand se foi fazendo tão natural nele que, a partir de certo momento, é impossível distinguir o que escreveu como artigo de jornal do que escreveu como discurso; ou o discurso que improvisou, e que, recolhido por algum taquígrafo, foi publicado como artigo de jornal, da transcrição de um monólogo informal do conversador infatigável que ele era. Seus discursos no Senado, tanto como seu discurso de recepção na Academia, e os muitos outros que ia improvisando nas mil inaugurações e batismos de suas campanhas, muitos deles publicados no local reservado a seu artigo diário, são boas confirmações disso.

Não creio que para chegar a esse estilo de prosa, que faz de Chateaubriand um caso especial em nosso jornalismo profissional, te­nha sido casualidade o fato de, nascido em 1891, ter sido ele contem­porâneo dos criadores de nosso Modernismo. Nada sei da opinião que Chateaubriand fazia do grande movimento renovador, nem até que ponto se interessou por ele. Na época da Semana de Arte Moderna, Chateaubriand já estava dedicado ao jornalismo político, e as questões

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literárias, que o haviam ocupado na mocidade, deviam estar fora de sua área de interesses; na época do Modernismo, seu destino de jorna­lista já estava cristalizado, embora não ainda a prosa desse jornalista.

Nem me causaria surpresa saber que sua atitude em relação a mui­tos dos princípios do Modernismo tenha sido de incompreensão. Mas não se pode deixar de fazer notar que sua prosa foi ganhando persona­lidade paralelamente à obra dos escritores de 1922. Temperamento que nada tinha do puritanism o do pseudo-clássico da época, inconvencional até no comportamento, espírito curioso e sem precon­ceitos, é impossível que Chateaubriand não tenha sido marcado, senão pelas teorias, sim pela maneira de fazer, primeiro, dos modernistas, que lutavam para criar uma literatura que usasse uma língua mais apro­ximada da que se usa no Brasil; e, depois, pelo Romance do Nordeste e pela obra de outros romancistas do Sul dos anos posteriores a 1930, que lutavam para diminuir o fosso que se tinha ido cavando entre nos­sa língua escrita e nossa língua falada. Ou marcado, senão pela manei­ra de fazer, ao menos pelo exemplo de inconformismo estilístico que davam todos aqueles escritores: inconformismo que não devia repug­nar ao homem inconvencional de raiz que foi Assis Chateaubriand.

Assis Chateaubriand com o sense of humour que não era uma das menores qualidades de sua prosa, ao se empossar nesta Cadeira, cha­mou-a de “paiol de pólvora” . Disse que era “barulhenta” a “memória dos que aqui se sentaram” , e chegou mesmo a falar na “rotina desse clima celerado da cadeira de Gonzaga...” . E com outro traço de humour., que completa e realça o primeiro, excluiu-se ele mesmo dessa rotina, dizendo: “Acredito que a Academia me elegeu como quem busca uma natureza de equilíbrio para tirar o demônio que há mais de cinqüenta anos ronda esta cadeira” .

Por mim, devo dizer que não consigo ver nenhuma tradição co­mum às personalidades de Tomás Antônio Gonzaga, Silva Ramos,

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Alcântara Machado e Getúlio Vargas; e à qual seria estranha a de Assis Chateaubriand. E se tento imaginar uma tradição que possa parecer comum ao patrono da cadeira e aos que me antecederam, descubro é que a memória do próprio Chateaubriand não foi a menos “barulhenta” delas.

É possível que o “demônio que ronda esta Cadeira” , e fez dela um “paiol de pólvora” , seja o demônio que gosta de seduzir o intelectual, soprando-lhe ao ouvido os encantos de uma carreira política. Mas se é esse o demônio, a verdade é que não é ele assim exclusivo da “cadeira de Gonzaga” , pois tem seduzido, ou tentado seduzir, tanto ocupantes de muitas cadeiras da Academia quanto escritores de fora daqui.

Possivelmente, nesta cadeira, os casos de sedução tenham sido mais freqüentes. Mas o tal demônio não parece ter prevalecido con­tra seu fundador, intelectual puro, professor que exerceu seu magis­tério com uma entrega absoluta. A vida de Silva Ramos é dessas que nos fazem acreditar que a vocação é uma força absorvente. Poeta e tradutor de poetas, seu interesse pela mecânica da língua o absorvia demais para que ele dedicasse mais tempo à pura criação. De certo foi a força dessa vocação que lhe deixou os ouvidos moucos à sedu­ção de tal demônio, isso numa época em que a rareza de homens com formação como a dele devia fazer mais fácil abrir-se um caminho na política. E é curioso notar que, de volta de Coimbra, não se demorou muito como delegado de polícia em sua cidade do Recife, e cedo preferiu a esse cargo, que era porta habitual de entrada na política, o encargo de professor de meninos.

É verdade que esse demônio parece ter prevalecido em dois casos: no do próprio Assis Chateaubriand e no de Gonzaga, patrono da ca­deira. Mas não sei até que ponto a participação na Conspiração Minei­ra do grande lírico brasileiro do Porto, sendo um ato político, continha o desejo de participar mais tarde, como político, da vida daquele Brasil pelo qual estava conspirando. Creio, mais bem, que a sua foi uma to­mada de posição diante de uma situação que considerou injusta, e que, participando da conspiração e escrevendo as Cartas chilenas, atos

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políticos ambos, estava agindo mais como um intelectual lúcido e res­ponsável do que se candidatando à vida de política profissional.

No caso dos dois outros ocupantes da cadeira, Alcântara Machado e Getúlio Vargas, se houve vitória de algum demônio, foi a de um demônio diferente do primeiro. Foi a vitória de um demônio outro, igual de ativo também, mas que age com intenções opostas às de seu companheiro; este outro seduz para a literatura pessoas cuja vocação é, primordialmente, a ação política.

No caso de Alcântara Machado, talvez porque lhe tenha cabido mais raramente o poder político, coisa que impede a entrega simultâ­nea a qualquer atividade fora dele mesmo, a sedução levou-o mais longe: levou-o ao exercício mesmo da literatura. Mas não é de estra­nhar que tenha sido história o que escreveu, gênero mais próximo de sua vocação verdadeira, a de político, e uma história bem próxima de seus interesses de político: a de coisas de seu estado de São Paulo. Sua inteligência e sua cultura extraordinárias salvaram-no de fazer obra de simples amador.

No caso de Getúlio Vargas, porque o exercício do poder político foi longo, e lhe coube desde muito jovem, o segundo demônio só o pôde seduzir com o gosto pela vida literária, no sentido em que esta pode ser tomada como convivência com escritores. Nessa convivência, Getúlio Vargas deve ter apurado certo bom gosto que se sentia na maneira como pronunciava seus discursos, sempre discreta, sem os derramamentos e dós-de-peito da maioria dos tribunos que, em 1930, o carregaram até o Catete, nos braços de uma oratória municipal e já então fora de moda, e que, para muita gente, ainda hoje, é o que significa “ falar bem” .

Quanto a Chateaubriand, seu caso é mais difícil de deslindar. Não chamo sedução política os mandatos de senador que lhe vieram já passada a maturidade, numa idade em que a experiência de viver imu­niza um homem de sua inteligência de querer ser o que sabe não poder ser. O demônio da política o seduziu não no sentido de levá-lo a fazer- se um político profissional, mas no de levá-lo a fazer do jornalismo político o gênero mais freqüente de sua atividade de jornalista.

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Além disso, Chateaubriand se viu constantemente envolvido na vida política de seu tempo, e não somente como jornalista mas como prota­gonista. Mas se se examina de perto sua “presença na política” , não se pode deixar de notar, e de admirar, a maneira como ele se movia den­tro dela: com uma liberdade e uma disponibilidade que têm mais a ver com o comportamento do intelectual do que com o do político, de profissão ou de vocação.

Essa incapacidade de ortodoxia, sensível no Chateaubriand “políti­co” , é muito mais do intelectual, gente que, para muita gente, sofre do que lhe deve parecer uma verdadeira perversão mental: a de querer analisar as coisas e as idéias a aceitá-las sem mais nada; a de querer enten­der pontos de vista os mais contrários e, sobretudo, a de não querer colocar sua capacidade de entendimento por debaixo de qualquer con­veniência de partido, ou sectarismo. Essa incapacidade de ortodoxia que, ao se manifestar em relação a certos valores chega a ser qualifica­da como criminosa, é não só a obrigação da inteligência como sua condição de ser. E no intelectual se manifesta em todo seu comporta­mento: inclusive em relação às regras recebidas de seu “que fazer” criador, e temos então os artistas; ou em relação às concepções recebi­das sobre a estrutura da realidade, e temos então os cientistas: como a história da cultura, em sua permanente sucessão de formas subverti­das nos mostra abundantemente.

Em Chateaubriand, a incapacidade de ortodoxia se mostra com cla­reza na história de seus contatos com políticos e em sua atuação den­tro da vida política. Se em sua vida não se encontra o caso de uma orgulhosa e definitiva retirada da política, encontram-se momentos, não tão raros assim, em que ele se abstém de participar, até como testemunha, de crises e de campanhas políticas importantes.

A impressão que se tem é de que, nesses momentos, um morno tédio pela política o invadia, e que ele ia buscar noutros tipos de ação, the sound and the fury que exigia sua extraordinária vitalidade. E natural que, nesses momentos de tédio, ele já não pudesse regressar aos inte­resses puramente intelectuais de sua mocidade. Condicionado tanto

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tempo pelo jornalismo político, só a ação viva, imediata, a ação sobre os homens, e não sobre as coisas e as idéias, poderia, já, satisfazê-lo. Pois foi desses momentos de tédio em relação à vida política que nas­ceram todas essas campanhas que ele lançou, e com as quais realizou toda essa obra não literária que todos admiramos.

Está em Marianne Moore: “O sentimento mais profundo se mostra sempre em silêncio; não em silêncio, mas contenção.”

Assim, permiti que vos expresse com a contenção de um lacônico (mas intenso) “muito obrigado” , meus agradecimentos por me haverdes acolhido a vossa companhia e pela maneira como me haveis acolhido. E agradecimentos, também, por haverdes escolhido para me receber o grande pioneiro, e mestre, não só de todos nós escritores do Nordeste, mas de toda uma geração de escritores brasileiros, José Américo de Almeida; e, para “ungir-me” , Múcio Leão, meu primo e conterrâneo, que publicou em seu Autores e livros os primeiros poemas meus divul­gados no Sul.

Um outro motivo tenho para esse laconismo. Fazer render demais meu agradecimento acabaria sendo uma forma de vaidade. Acabaria parecendo que eu, ao insistir em vossos gestos para comigo, estava querendo menos salientar vossa benignidade do que salientar a pes­soa, eu mesmo, a quem dispensastes tanta benignidade.

Assim, para compensar o laconismo de um “muito obrigado” e ex­pressar meu reconhecimento de outra maneira, quero dizer que me sinto muito honrado em vir ser um de vós. E não apenas pelo que cada um de vós representa em nossa vida intelectual, como porque a Aca­demia, que vós todos, em conjunto, constituis, é uma de nossas insti­tuições em que se tem mantido mais vivo o respeito pela liberdade do espírito. Daí (e não sei de maior elogio que possa fazer a um corpo de escritores, homens para cuja atividade a liberdade de espírito é condi­ção de existência) meu empenho em declarar que, entrando para a

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Academia, não tenho o sentimento de estar abdicando de nenhuma das coisas que me são importantes como escritor.

Na verdade, venho ser companheiro de escritores que representa­ram, ou ainda representam, o que a pesquisa formal, no nível da textura e da estrutura do estilo, tem de mais experimental; escritores outros cuja obra é uma permanente, e renovada, denúncia de condições sociais que espíritos acomodados achariam mais conveniente não dar a ver; escrito­res que, em momentos os mais diversos de nossa história política, têm combatido situações políticas também as mais diversas; escritores que, já Acadêmicos, têm julgado livremente a Academia, patronos de suas cadeiras e membros de suas cadeiras. E tudo isso sem que a Academia tenha procurado exercer nenhuma censura e sem que a posição de Aca­dêmicos tenha levado esses escritores a qualquer autocensura.

Nesses últimos instantes de meu discurso de posse, antes de que ela se tenha consumado, quando talvez ainda seja insuspeito para falar da Academia porque ainda não me “confundi” nela (como disse Valéry), quero dizer também que não a vejo, hoje em dia, menos representativa da Literatura Brasileira do que o foi, em seus primeiros anos, ou em qualquer época posterior; e, também, que a vejo mais representativa da Literatura Brasileira do que são, de suas respectivas literaturas, ou­tras Academias de Letras, mais antigas e prestigiosas.

Mais representativa e mais aberta do que outras Academias mais famosas. Porque não creio que nessas Academias se encontre, como entre vós, o número de escritores marcados pelo empenho de renova­ção e de transformação sem o qual toda cultura está condenada ao esclerosamento. E se, entre vós, há também escritores dedicados a gêneros de literatura que, por sua natureza, não dependem de maneira imediata, da pesquisa de novas formas de expressão, o fato de esses escritores haverem escolhido os renovadores que aqui estiveram e que aqui estão, demonstra neles uma compreensão do fenômeno literário que não se vê noutras Academias.

Assis Chateaubriand, embora de seus votos na Academia eu não tenha conhecimento, mas que, como dono de jornal, soube confiar a

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crítica e a orientação literária de seus jornais e revistas a escritores empenhados em renovar formas de expressão ou a teóricos e defenso­res do que estava sendo renovação, para não falar de todos os verda­deiros escritores que fizeram ou ainda fazem parte de seus jornais e revistas; Assis Chateaubriand, ia eu dizendo, foi um homem que com­preendeu a necessidade de renovação permanente de qualquer forma cultural. Pois este é um detalhe que me deixa também obrigado pela sucessão que me confiastes.

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A DIVERSIDADE CULTURAL NO

DIÁLOGO N o RTE-Su L*

Não creio que seja este o fórum apropriado para se discutir certos aspectos culturais no diálogo Norte—Sul — e que são seus aspectos determinantes — a saber, o lado econômico e político, como o inter­câmbio comercial, o neo-colonialismo, o imperialismo, etc.

Creio que esta reunião — no próprio título que a define, se limita aos aspectos culturais — a diversidade — deste diálogo.

Ressalvo que a palavra diálogo não me parece a mais apropriada. Se há diálogo, é um diálogo um pouco especial em que um dos interlocutores fala muito e que só é interrompido pela intervenção ocasional dos outros interlocutores. Isso é visível no intercâmbio cul­tural entre o Norte e o Sul, onde este último só dispõe da palavra quando sua obra é importante demais para ser ignorada. Refiro-me principalmente à literatura, e talvez possa fazer notar quão menor nú­mero dos aqui presentes que podem falar do Sul em relação aos que podem falar do Norte.

Além disso, cumpre-me fazer notar que essa formulação Norte—Sul é por demais vaga, e não leva em consideração situações de diálogo que não são as mesmas. O diálogo Grã-Bretanha—Estados Unidos nada tem de comum, por exemplo, com o diálogo Espanha—Venezuela, França—Senegal, Portugal—Brasil, e, imagino, porque não o conheço, o diálogo entre e a Holanda e suas antigas colônias.

'Tese apresentada a um coloquio em Barcelona, 1990.

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A meu ver, a diversidade — e por que não dizer, a incompreensão nesse pseudo-diálogo — sobretudo no terreno da literatura é antes de tudo uma questão de linguagem.

As línguas dos países colonizadores foram transportadas para culturas muito distintas e adaptadas para expressar realidades ain­da mais diferentes.

No caso da Grã-Bretanha—Estados Unidos, pode-se dizer que essa realidade foi muito menor, pois se deu entre dois países de igual latitu­de, e a adaptação do inglês foi mais fácil do que entre línguas de países de Zona Temperada e colônias situadas na Zona Tropical. O mesmo não aconteceu em relação a outros países da Zona Temperada que tiveram que empregar sua língua para expressar uma natureza comple­tamente diversa.

A semelhança não se dá nos primeiros séculos da colonização e só mais tarde, no século XIX , depois da Independência da América Latina e a divisão da África Tropical entre os colonizadores ingleses e franceses. Assim, conforme nos situamos nesta ou naquela fase de colonização, esse diálogo Norte—Sul teve características completa­mente diversas.

No caso dos colonizadores anteriores ao século XIX, estes se esta­beleciam na América Latina para ficar, e embora tenha havido a mes­ma depredação que na África do século XIX , havia, nesses coloniza­dores, o interesse em criar nas colônias americanas uma outra civilização. Para isso contribuíram as dificuldades de comunicação com a metrópole que os forçaram (os colonizadores) a criar, naquelas colô­nias onde ficariam por muito tempo, ou definitivamente, um arremedo das sociedades de onde eram oriundos.

No século XIX , com a navegação a vapor, e no século X X , com a aviação, os colonizadores viviam de passagem, provisoriamente, e não tinham interesse em criar uma sociedade permanente nem de criá-la com a miscigenação e a colaboração do elemento humano local, isto é, colonizado.

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Já antes da independência dos países da América Latina havia naquilo que eram colônias, uma literatura digna de atenção (não me refiro aos livros de viagem em que os colonizadores descreviam para a metrópole, a natureza dessas colônias). Os criollos podiam se expri­mir na mesma língua da metrópole, e embora a realidade de que fala­vam fosse muito diferente da Espanha e de Portugal, essa literatura subsidiária da literatura dos colonizadores (pois usavam a mesma língua e as mesmas formas de literatura da metrópole), já apresenta­va características distintas delas, sobretudo por não encontrarem em sua tradição, palavras que dissessem da natureza nova com a qual estavam confrontados.

Diverso desse fenômeno foi o que ocorreu no século XIX, com os países europeus que se instalaram na África. Não se criou uma classe de criollos, pois os colonizadores não estavam ali para ficar e confiaram o trabalho administrativo a outros povos, libaneses na África francesa, indianos na África inglesa. Esses, embora ali estivessem para ficar, por preconceitos raciais ou de outra ordem não se misturavam com a po­pulação local. Esta, embora tivesse aprendido o inglês e o francês, aprendera-os para fins práticos de trabalho e nunca deixaram de se entender entre eles nas centenas de línguas que usam ainda hoje as centenas de etnias em que se divide a África negra. Essas centenas de línguas africanas, que na sua maioria não são ainda línguas escritas, se continuaram com sua tradição de literatura oral, essa literatura não era entendida pelo colonizador e se restringe, ainda hoje, ao pequeno cír­culo de cada etnia. Se há escritores africanos na língua inglesa ou fran­cesa são em geral escritores que estudaram na Europa, graças a um sistema de bolsas com que os colonizadores usavam contemplar os alunos que mais se distinguissem por sua inteligência ou vocação ad­ministrativa. Por tudo isso, a literatura africana que se conhece — e a África é uma parte considerável do Sul, ou mundo subdesenvolvido — , é uma literatura escrita em uma língua aprendida, e embora expres­se realidades africanas, seus escritores têm uma atitude convencional, pouco renovadora, em relação à língua que escrevem.

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Essa situação não existiu nos países da América Latina, cuja co­lonização sistemática é anterior de alguns séculos. Nestes, como já disse, sua literatura foi a princípio, uma cópia das literaturas das me­trópoles. Mas aos poucos, a vida num ambiente tão distinto, cercado de coisas desconhecidas nunca expressadas anteriormente em litera­tura, fez com que se operassem certas transformações. Essa literatu­ra molla, feita pelos filhos dos primeiros colonizadores europeus, embora continuasse seguindo as formas dos colonizadores, já fala­va, usando essas formas, de uma outra realidade. E com isso muito antes de que surgisse nessa literatura criolla qualquer sentimento de nativismo político e de independência econômica.

Com a independência dos países da América Latina, nos princípios do século XIX , e depois de anos em que certo sentimento nativista se foi cristalizando e fazendo mais presente, surgiu uma literatura mais francamente de reação contra as metrópoles. Essa fase já não estava diretamente influenciada pela literatura dos colonizadores, mas pela influência francesa. Então já não eram os temas que eram dife­rentes, mas as formas, e principalmente o uso da linguagem. Pode-se dizer que a partir da independência os movimentos literários segui­ram os da França, e embora chegassem aos jovens países com algu­mas décadas de atraso, esses movimentos passaram a coincidir com os da França, que os escritores, por reação contra a cultura das anti­gas metrópoles, passaram a ver a matriz de todo movimento cultu­ral. Assim como na França, sucederam-se no século XIX , o Roman­tismo, o Realismo, o Parnasianismo, o Simbolismo, na mesma ordem e com a mesma ideologia dos movimentos homônimos da França. (Nas antigas colônias espanholas, a ordem sofreu uma pequena alte­ração: o chamado “Modernismo” combinava Parnasianismo e Sim­bolismo, enquanto que no Brasil, esses movimentos eram diferencia­dos e até antagônicos.) Estou generalizando a partir da experiência brasileira, mas não creio que nos países americanos de língua espa­nhola, apesar da exceção que apontei, a evolução tenha sido essen­cialmente diversa.

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Ora bem: há algum traço diferenciado nessas literaturas latino- americanas que as distingam dos modelos importados da França? Creio que é possível generalizar dizendo que essas literaturas são muito mais objetivas do que o subjetivismo que marcou esses movi­mentos na França. De certo houve autores, principalmente poetas, marcados por esse subjetivismo. Mas a realidade, nesses países da América Latina é, digamos, pesada demais, para não ser dela o traço preponderante. Isso é fácil de verificar principalmente no que diz respeito à linguagem. Os autores desses países recém-independentes ousaram romper os cânones da gramática das metrópoles, que dita­vam leis para uma fala que não era mais a que eles falavam. Aproxi­maram-se muito mais do coloquial e escreveram numa língua mais próxima da que falavam, usando formas de expressão correntes no seu falar mas que, por respeito à gramática dos colonizadores, não ousavam empregar em literatura.

Está claro que essa tendência não foi exclusiva. A verdade é que houve uma cisão na Literatura Brasileira que continua até hoje. De um lado, escritores que se desejam cosmopolitas ou interessados em ex­pressar sua subjetividade e, do outro, escritores mais objetivistas que preferem expressar a realidade que os envolve e pesa sobre eles mes­mo quando pensam estar fazendo uma obra de pura introspecção. Essa cisão marca a evolução da Literatura Brasileira e persiste até hoje, até depois da Semana de Arte Moderna de 1922, que pregava ao mesmo tempo que uma linguagem mais coloquial, uma volta à realidade brasi­leira atual e o rompimento com todas as formas consagradas. Mas o curioso é que, se essas tendências se opõem mesmo nos escritores mais subjetivistas, se encontra um sotaque próprio que nada tem a ver com o escrever da Literatura Portuguesa atual.

Ora, esse maior objetivismo, essa presença maior da natureza e da realidade, forçosa em escritores em que a realidade social pervade a vida do escritor, vem a ser o principal obstáculo para que se esta­beleça um diálogo Norte—Sul. Ao leitor do Norte, isto é, dos países desenvolvidos, a tendência é para apreciar a literatura do Sul pelo

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João Cabral de Melo Neto & Prosa

que ela tem de pitoresco ou de costumbrista, isto é, pelo que ela possui de exótico. O que essa literatura pode mostrar de novo e de profun­do sobre o homem de qualquer latitude não consegue ser assimilado. O leitor do N orte conhece tais literaturas mesm o quando são traduzidas e escritas em sua própria língua, apenas ocasionalmente e por amostras esporádicas. Não integra essa literatura no corpo da literatura universal (o que para eles é a do Norte), ou melhor, na tradição das literaturas européias.

Por esse motivo, não creio que se possa falar num diálogo cultural Norte—Sul, mas num quase monólogo dos países do Norte em que só esporadicamente um escritor do Sul consegue a palavra. Se reuniões como esta em que estamos podem se transformar num verdadeiro diálogo cultural é coisa que resta a ver. Não acredito muito em que discussões de intelectuais, que nada podem influenciar no estabeleci­mento de um diálogo econômico e político verdadeiro, possam deter­minar alguma transformação no estado atual das coisas. Como dizia Auden: “A poesia não faz nada acontecer.”

Henry James dizia mais ou menos que o que faz a diferença entre um escritor americano e um escritor europeu está em que o primeiro busca seu “bem” em qualquer literatura estrangeira, ao passo que o escritor europeu busca seus mestres dentro da tradição de sua própria literatura. Se James, norte-americano que escreveu numa época em que a literatura de seu país era já rica de tradição, que dizer dos países da América Latina, independentes no princípio do século XIX, e dos da África e da Ásia, independentes em meados do século X X ? Nossa tradição de escritores do Sul é curta, e não creio que nossa literatura se possa desenvolver endogamicamente como as literaturas européias. É certo que a tradição literária dos povos que foram colônias não se limita à literatura que foi feita a partir dos descobrimentos ou a partir da independência. A tradição é de toda a língua e embora nas colônias ela se tenha modificado, também na Europa ela se modificou a partir do século XVI, e o português que hoje se escreve em Portugal está quase tão distante de Camões como o que se escreve no Brasil. Mas

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A diversidade cultural no diálogo Norte-Sul

nessa tradição anterior aos descobrimentos do continente, se pode ser útil como forma, nada tem a dizer à situação do homem americano com outras coisas a nomear e a expressar.

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A g r a d e c im e n t o p e l o p r ê m io N e u s t a d t *

Na ocasião de receber um prêmio tão prestigioso, conferido pela primeira vez a um escritor da língua portuguesa, cabe-me uma explica­ção antes de tudo: haveis premiado um escritor brasileiro que, pratica­mente, só escreveu poesia, isto é, um poeta.

Não sei como em vossos países do Norte, mas no meu, no seu uso coloquial, a palavra poeta tem certa conotação que vai de boêmio a irresponsável, de contemplativo a inspirado, coisas essas que nada têm a ver com a minha maneira de conceber a poesia nem com o que con­segui realizar.

Lamento que Marianne Moore, que infelizmente morreu antes de receber vosso prêmio, não possa como Francis Ponge e Elisabeth Bishop, laureados ambos com o Neustadt Pri^e, não possa, com seu exemplo de poeta, confortar-me hoje, ao receber este prêmio, como poeta. N a verdade, eles foram poetas cuja visão da poesia não tem nada a ver com aquele lirismo confessional, que, hoje em dia, e desde do Romantismo, passou a ser tudo o que é considerado poesia. De certa maneira (e dizendo isso não posso deixar de sentir uma certa mauvaise consáencè) o que escrevi até hoje nada tem a ver com “lirismo” , que veio a ser, não somente a qualidade de certos poemas, mas sinôni­mo do que se espera de todos os poetas.

* Discurso de agradeámento pelo prêmio N eustadt, 1992.

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João Cabral de Melo Neto * * Prosa

Realmente, a partir do Romantismo e em nome da expressão indi­vidual, os poetas deixaram de lado a maior parte do material que anti­gamente podia ser tratado em poesia. A poesia histórica, a poesia di­dática, a poesia épica, a poesia narrativa, a poesia satírica, foram abandonadas em favor da poesia de expressão pessoal de “estados de espírito” . Todos esses gêneros foram sacrificados ao lirismo e este foi generalizado e chamado poesia. Ora, o lirismo foi simplesmente um dos gêneros em que a poesia se manifestava. Assim, eu não sei porque os críticos e historiadores de hoje, acham estranho que a poesia seja um gênero literário que sobrevive em pequenos círculos. Ao mesmo tempo, esses críticos e historiadores da literatura de hoje não deixam de dedicar a esse gênero tão minoritário o melhor de seus estudos, e com ele começam sistematicamente seus manuais e histórias da litera­tura, e isto não apenas aqui, mas em todos os países.

Sabemos que o lirismo foi, originalmente, um gênero para ser can­tado, e assim não é de surpreender que o lirismo atual, pós-romântico, não cantado, tenha se restringido a um pequeno círculo. O problema é, não estaria o verdadeiro lirismo de nosso tempo no que se denomina a canção popular, produzida e consumida em todo o mundo, por cima dos limites geográficos e diferenças de língua, em quantidades incom­paravelmente maiores que qualquer outro gênero literário, por mais popular que seja?

Não estaria esta natural necessidade pelo lirismo, que o homem sente, sendo compensada hoje por esse incalculável volume de obras às quais os refinados torcem o nariz e os eruditos excluem de seus estudos? Isto é, não estaria esta necessidade de lirismo, sendo com­pensada hoje pela lírica da canção popular? Nestas canções que, em virtude das novas tecnologias de comunicação, são produzidas e consumidas em nosso tempo, em quantidades muito maiores que aqueles que a literatura jamais alcançou, em todos os países, em to­das as épocas?

Senhoras e senhores, não é por simples aversão que me recuso a inscrever-me no exclusivo “ clube de líricos” que hoje constitui quase

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Agradecimento pelo prêmio Neustadt

inteiramente a poesia escrita em nosso mundo. Nem há qualquer des­dém de minha parte, por esse lirismo manifestado na música popular. Penso, ao contrário, que as novas técnicas deram ao lirismo uma pos­sibilidade de expressão e comunicação jamais conhecida antes. Estou somente oferecendo o possível assunto de meditação aos teóricos da literatura e fazendo-lhes um apelo para que não procurem na poesia não cantada (ou cantável) escrita em nossos dias, uma qualidade, o lirismo, que nunca foi a intenção de certos autores realizar ou mesmo de experimentar.

A poesia me parece alguma coisa de muito mais ampla: é a explora­ção da materialidade das palavras e das possibilidades de organização de estruturas verbais, coisas que não têm nada a ver com o que é romanticamente chamado inspiração ou mesmo intuição. A esse respei­to, creio que o lirismo, ao achar na música popular, os elementos que o completam e lhes dá prestígio, liberaram a poesia escrita e não canta­da, e permitiram-lhe que voltassem a operar em territórios que outrora lhe pertenceram. Fez possível também o exercício da poesia como ex­ploração emotiva do mundo das coisas, e como rigorosa construção de estruturas formais lúcidas, lúcidos objetos de linguagem.

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P r e f á c i o a A n t o l o g ia p o é t ic a

d e M a r l y d e O l iv e ir a

Antes de conhecer pessoalmente Marly de Oliveira conheci sua poesia. Mesmo sendo de outra geração eu a registrei, em primeiro lu­gar pela materialidade da linguagem, pela capacidade de objetivação.

O primeiro livro que li dela foi A suave pantera, que teve o prêmio de poesia Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras, em 1963. O livro incluía os dois primeiros Explicação de Naráso e Cerco da primavera.

Em segundo lugar, pela capacidade de construir, tanto o poema longo como o poema curto, sempre mantendo alto nível intelectual.

Por exemplo, ela usa o soneto-poema de forma bem diversa daque­la usada pela minha geração ou até por outros poetas da sua geração, a chamada geração de 60. A preferência pela palavra concreta e pela imagem desde o seu primeiro livro me impressionou, vi nela uma gran­de influência espanhola que me chamou atenção.

Setembro de espigas claras que as mãos colhiam no vento!

Mesmo o uso do decassílabo, no segundo livro, não tem qualquer ranço parnasiano, porque a acentuação é variada, não é só na sexta e na décima sílabas. Nessa etapa se sente a influência de Valéry e da Herodíade de Mallarmé.

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João Cabral de Melo Neto ^ Prosa

E para mim que brilho como um sol deserto, ó fonte, espelho necessário a essa presença em que ardo como a chama desnuda e colorida dos topázios.

A suave pantera é um poema objetivado, mas o primeiro livro já ti­nha poemas como “Romã” , “Poemas a Campos” e muitos outros, como “Natureza morta” .

O sangue na veia, embora fale de um conceito de amor de um modo diferente do que se usa sempre, tem também materialidade de lingua­gem, porque há símiles e constante uso de imagens:

O ver tranqüilo, sem excesso, eu quero, como a lu^ delicada que há num barco, numa folha, num bicho. Um ver quieto que, absorvendo o real, nos deixe fartos.

A vida natural — li uma versão francesa numa revista do primeiro poema e fiquei deslumbrado, mas quando reli, vi que o original era superior, confirmando-me a certeza de que a poesia, para qualquer língua que seja traduzida, viaja mal.

Salvo alguns poemas longos que vão predominar no Contato, é a ri­queza imagística combinada com a reflexão que me surpreende sempre.

O Contato me parece o mais hermético dos livros, porque o uso da cantone italiana eu desconheço e não tenho interesse especial pela literatura de um Guido Cavalcanti, que Marly acha admirável e usa como epígrafe.

No Orpheu de Marly, nem Vinícius nem Jorge de Lima estão presen­tes. Mas por indicação da autora, sei que o Orpheu é uma espécie de máscara e seu dizer é o dizer da perda.

Os livros me parecem estruturados, mas não de forma logo visível.Em Aliança pela primeira vez inclui uns poemas soltos, alguns de

homenagem. Mas nos poemas longos de Marly de Oliveira há um tipo especial de estrutura, como também nos poemas curtos.

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Prefácio a Antologia poética

Não é uma estruturação em linha contínua, como um tedious argument/ ofinsidious intent., como dizia Eliot. Eles não têm o discursivo de um argumento como princípio, meio e conclusão, como acontece em geral com a poesia de caráter reflexivo. Eles parecem recomeçar a reflexão a cada capítulo, mostrando novos aspectos do objeto de que fala ou novos pontos de partida da reflexão, como no Narciso e no Orpheu, em que a cada parte o mito é retomado para ser apresentado de um novo ângulo ou uma luz diferente. Nunca aquela penúria verbal de que se queixava José Guilherme Merquior nos poetas mais jovens de hoje.

Essa mesma técnica de recomeçar a cada passo a reflexão totalizadora é visível em A força da paixão, por exemplo, ou em O banquete. Em A vida naturais, estrutura se apresenta ambiguamente: é o poema lon­go, com uma unidade de livro acabado, fechado em si mesmo, mas no qual se podem isolar poemas inteiramente independentes do conjunto.

Outro aspecto ainda da obra de Marly de Oliveira é seu admirável espírito de autocrítica, ou melhor, de consciência da unidade geral reflexiva.

Em Retrato, a autora passa em revista os livros anteriores, deixando- nos ver a coerência absoluta de sua reflexão poética.

Nos livros posteriores como Vertigem c Viagem a Portugal, apesar da aparência de instantâneos ou de impressões esporádicas, corre subja­cente a elas o mesmo tom reflexivo, a mesma materialidade de lingua­gem, que fazem dos 15 livros publicados pela autora, incluindo O de­serto jardim, que não comento porque foi escrito sobre mim e o meu fazer poético, um exemplo único de coerência, com a paixão da língua portuguesa, ainda que possa muitas vezes usar a tal intertextualidade, de que falam tanto os críticos que escreveram sobre ela, sobretudo porque o verso é muitas vezes citado no original. Vejo tudo isso con­firmado em O m ar de perm eio onde a linguagem se vai ampliando com a incorporação de cenas do cotidiano, mesclada ao mesmo tempo de reflexão densa, profunda.

Rio, janeiro de 1994.

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Este livro foi impresso cm Guarulhos, em janeiro de 2004,

pela Lis Gráfica e .Editora para a Editora N ova Fronteira.

O papel dc miolo é offset 75g/m - e o de capa 6 cartão 250g/m 2.

Visite nosso site: www.novafrontcira.com.br

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Prosa, de João Cabral de Melo Neto, reúne desde textos do inicio dos

anos 40, quando o poeta, ainda na faixa dos vinte anos, sequer estreara em

livro, atë textos da década de 90, década que assistiu a seu definitivo

reconhecimento internacional com a atribuição dos

prêmios Neustadt, Camões e Rainha Sofia.

Nos textos mais antigos, o jovem poeta, armado da lucidez que jamais

o abandonaria, compreende que ser contemporâneo era, naquele

momento, confirmar e ampliar as conquistas dos modernistas de 22 e 30, e

não filiar-se ao conservadorismo de sua geração cronológica, a de 45.

Nos textos mais recentes, permanece a mesma consciência rigorosa na

percepção da poesia como uma “construção de estruturas formais

e lúcidas, lúcidos objetos de linguagem”.

Prosa reúne ainda, entre outros, dois textos clássicos de João Cabral, ambos

de fôlego ensaístico: “Joan Miró”, elogio da criação como libertação de leis

e cânones aprisionantes, e “Poesia e composição”, análise da criação

como acaso ou conquista laboriosa da razão.

Se a poesia de João Cabral, por se querer crítica da linguagem poética, sempre

se deixou contaminar pela prosa, sua prosa, que cobre um arco de mais de

cinqüenta anos, revela o desenvolvimento de uma consciência metódica

exemplar, que faz desse poeta um caso único em qualquer língua moderna.

C a r l i t o A z e v e d o

AEDITORA

NOVA FRO N TE IRA

S EM P R E UM BOM

LIVRO