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João Carlos Marinho O LIVRO DA BERENICE © João Carlos Marinho, 1986 7 a EDIÇÃO, 1998 Diretor Editorial - JEFFERSON L. ALVES Produção Gráfica HÉLIO DAZIANO Revisão ANA A. ROTONDANO FRANZ KERPLER ANTÔNIO J. FONSECA Ilustrações ROBERTO BARBOSA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Marinho, João Carlos, 1935- O livro da Berenice/João Carlos Marinho. - 7ª ed. - São Paulo: Global, 1998. Bibliografia. ISBN 85-260-0300-3 1. Literatura infanto-juvenil I. Título. 93-3684 CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático:

João Carlos Marinho - O livro da Berenice

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Page 1: João Carlos Marinho - O livro da Berenice

João Carlos Marinho

O LIVRO DA BERENICE

© João Carlos Marinho, 19867a EDIÇÃO, 1998

Diretor Editorial - JEFFERSON L. ALVES

Produção Gráfica HÉLIO DAZIANO

Revisão ANA A. ROTONDANO

FRANZ KERPLER ANTÔNIO J. FONSECA

Ilustrações ROBERTO BARBOSA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marinho, João Carlos, 1935- O livro da Berenice/João Carlos Marinho. - 7ª ed. - São Paulo: Global, 1998.

Bibliografia.ISBN 85-260-0300-3

1. Literatura infanto-juvenil I. Título.93-3684 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura infanto-juvenil 028.52. Literatura juvenil 028.5

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Dedico aos queridos amigos Plínio e Rosali Paiva

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Capítulo 1

O sol da manhã iluminava suavemente a mansão do pai do gordo no Alto de Pinheiros, perto da Praça Panamericana.

O gordo saiu da cama, escovou os dentes, tomou banho, vestiu-se e acionou o computador doméstico.

Na tela apareceu escrito:FALTAM TRINTA DIAS PARA O ANIVERSÁRIO DA BERENICEA única maneira do gordo não esquecer o aniversário da namorada foi

pedir ao pai um computador doméstico.A Berenice ficava de mal quando o gordo esquecia o aniversário dela, e

já tinha acontecido duas vezes.Berenice ia fazer dez anos, Bolachão tinha dez e meio.O gordo acionou outro botão e a tela ficou cheia de nomes da Berenice,

escritos em horizontal e vertical, enviezados, ao contrário, formando acrósticos, pirâmides, as letras se mexendo e entrando uma na outra.

Dali o gordo passou para o quarto dos aquários, mais de vinte, iluminados, fazendo bolhas, os peixes passeando ou se escondendo nas cavernas de pedras.

A mania daquele ano era aquário, aquário de água doce, de água salgada, aquário-maternidade com a fenda para os recém-nascidos escaparem para a mãe não comê-los (e sempre comia alguns, nhoc, sem o menor sentimento), o aquário-berçário, o aquário-hospital, o aquário-quarentena e, grande, brilhante, colorido, cheio de plantas, o aquário principal.

Bolachão deu comida, o que provocou uma briga entre o peixe Disco e o Acará Bandeira, examinou a temperatura que o termostato mantinha automaticamente entre 24 e 27 graus, pescou o peixe Beta com a redinha para ver se estava com fungos. Estava. Depositou-o no aquário-hospital junto com outros doentes e pingou azul de metileno na água.

Depois desta revisão demorada dos peixes e dos mecanismos dos aquários, o gordo entrou no estúdio particular e foi cuidar da outra grande mania: os selos.

Sentou na escrivaninha, abriu o álbum, tirou do envelope a folha completa de 20 selos Europa Lischstenstein que o correspondente do pai lhe mandara da Europa e ficou admirando.

Bolachão preferia selos sobre o envelope original, valiam muito mais, como aquele Double de Genève que ele tinha, mas nem sempre isto era possível. Freqüentava anualmente a feira de Wiesbaden e seu grande sonho da vida era comprar o One Penny Black, o primeiro selo do mundo, impresso

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em 1840.Desceu para o andar térreo e comeu a imensa refeição matinal.A mãe do gordo, para não engordar, comia só iogurte, sem pão sem

nada.Ela falou para o filho:— Você vai se dar mal com essa Berenice. Ela é meio cigana.— Não implique com a menina — disse o pai do gordo. — Eu acho ela

um amor.— É que ela é inconstante — falou a mãe do gordo. — Primeiro largou

nosso filho pelo Biquinha, depois voltou, depois namorou o Alcides, depois voltou, ainda vai aprontar outra.

Pancho, o novo pastor alemão que o gordo comprara para substituir o Pirata (morto pelos bandidos), assim que viu o gordo sentar na copa entrou na casa e começou a repartir as costeletas com Bolachão.

A mãe do gordo falou:— Ainda não me acostumei com esse monstro. Cada vez que o vejo levo

um susto. Essas manias do gordo, cachorros caríssimos, peixes caríssimos, selos caríssimos, a crise econômica está aí, Marcelo, se a gente fica pobre de repente esse menino não vai se adaptar. Ele pede dinheiro e você: tó.

— E você quer que eu faça o quê, meu bem? — perguntou o pai do gordo.

— É preciso instituir a mesada semanal — falou a mãe do gordo. — Tanto per semana, nem mais um centavo, isto prepara para o futuro.

— Quem pensa muito no futuro, acaba esticando ele de verdade e compra um túmulo — disse o pai do gordo.

— Você é um imbecil, Marcelo — falou a mãe do gordo.— A psicologia ensina que os pais não devem ter cenas na frente dos

filhos — disse o pai do gordo.— Então eu te dou um bofetão quando o gordo sair — falou a mãe do

gordo.— Isto é mais científico — concordou o pai do gordo. O gordo terminou

de comer e falou:— Pai, posso esquentar e manobrar o Mercedes?— Pode, filho, mas não afogue nem acelere demais que você desregula o

carro.Bolachão tinha satisfação especial de manobrar o carro do pai toda

manhã.Deu a partida, esquentou, manobrou, saiu pelo portão, encostou no meio-

fio, deu uma rezinha. O mordomo veio avisar:— Gordo, o microônibus da escola chegou.Bolachão pegou os cadernos e saiu pelo jardim, o Pancho atrás. Quando

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chegou no limite da calçada da rua o Pancho parou. Já estava ficando ensinado, isso de treinar o Pancho custara quatro horas por dia ao gordo.

O mordomo acompanhava. Mais parecia um roqueiro que um mordomo: usava tênis vermelho e amarelo, cabelo enorme e o pescoço cheio de correntinhas.

Era assim, na linguagem de certos locutores, um mordomo descontraído.E tão descontraído era que, antes do gordo chegar ao portão, pegou no

braço do menino e falou baixinho:— Gordo, me empresta quinhentão.— Você já está me devendo dez mil — falou o gordo.— Belo argumento — disse o mordomo. — Veja bem, quando a gente

pede dinheiro emprestado, a dívida aumenta, é uma evidência. Vou ficar te devendo dez e quinhentos. Fora o caso da gente ter saldo a favor. Aí é o outro que fica devendo menos para a gente. Há também o caso da gente não estar devendo nada: então a dívida principia.

O gordo emprestou quinhentos cruzeiros para o mordomo e entrou no microônibus da escola.

Havia lá dentro uma guerra de cadernos, um atirando caderno no outro.A espiral de arame de um caderno voador fez uma ferida na cara do

gordo.O gordo, para descontar, deu um pontapé na cara do magrela que estava

mais próximo.O ônibus andou. O chofer era tão carente que, depois de catar um aluno

que morava a dois quarteirões da escola, voltava para trás, até Osasco, para pegar um aluno que morava lá.

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Capítulo 2

O microônibus chegou à rua Joaquim Antunes, onde fica a Escola Três Bandeiras.

As três bandeiras estavam hasteadas no mastro: a do Brasil, a de São Paulo e a da escola.

O gordo e a turma dele estudavam no quinto ano.A turma vocês conhecem: o Edmundo, o Pituca, a Berenice, a

Mariazinha, a Sílvia, o Godofredo, o Biquinha e o Zé Tavares, muito tímido, não falava nada, mas era indispensável para a formação química do grupo.

Agora tinha mais o Hugo Ciência, o menino do Q.I. 250, que gostou tanto da turma que se transferiu do Pueri Domus para o Três Bandeiras.

A professora Jandira continuava dando aula.Depois da aventura do Sangue Fresco, onde a professora Jandira se uniu

a Ship O'Connors contra os alunos, ela foi a júri, mas absolveram sob o argumento de que a mulher não é obrigada a denunciar os crimes do marido.

Mais do que a defesa (brilhante) do advogado, que falou durante trezentas e dezoito horas, valeu a beleza total da Jandira e seu trejeito brasileiro de impressionar o júri.

Ship O'Connors foi condenado a trinta anos. Ficou preso na mesma cela que o anão Gênio do Crime: ele e o anão juraram vingança contra o gordo.

Mas Jandira, apesar de tudo, era ótima professora.O Godofredo não desistira da paixão por ela.Naquele dia o Godofredo levou um poema para a professora Jandira

escrito assim:

Jandira Meu coraçãoFiraNão.Nossa lonjuraDe idadeÊ puraFormalidade

O Pituca achou o poema babão, o Hugo Ciência apontou alguns defeitos estilísticos e disse que coração com não é rima pobre.

O Biquinha falou que parecia rima encavaladinha do Chico Buarque.A Sílvia adorou, a Mariazinha ficou com ódio, quis rasgar o poema,

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Godofredo saiu correndo, antes que Mariazinha rasgasse, e entregou à Jandira.

A professora Jandira, de pé sobre o estrado, leu, agradeceu, riu e começou a aula:

— Grandes poemas da história da literatura surgiram de paixões impossíveis, como esta do Godofredo por mim. A paixão impossível é um estímulo para a poesia.

Edmundo pediu um aparte e falou que preferia os poemas do Carlos Drummond de Andrade que não falavam de paixão e sim das coisinhas do dia-a-dia.

— Isto é uma maneira muito simplista de examinar o Drummond — falou Jandira. — Mas vá, entendi o que você quis dizer.

Jandira dividiu a classe em dois grupos e deu como lição de casa a um grupo trazer poemas de paixão impossível e a outro de poemas falando de coisinhas do dia-a-dia.

A aula de Jandira era a última. Os alunos foram saindo c conversando e brincando na calçada.

— Deve ser engraçado ter uma paixão — disse Pituca. — Nunca tive. Como será?

— Paixão é uma doença delirante — falou Mariazinha. — Homem e mulher foram feitos para fazer filho e não para ficarem se lamentando em rimas e estrofes por aí.

— Trata-se de uma opinião filosófica defensável, porém, discutível — ponderou Hugo Ciência.

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Capítulo 3

Pelas três da tarde o gordo boiava, deitado no colchão de ar no meio da piscina, comendo uns picles.

O Pancho nadava em volta dele, sem fazer marola, com o focinho de fora.

A turma apareceu. Eles gostavam de reunir na casa do gordo.A Berenice botou as mãos na cintura e proferiu:— Hoje decidi. Vou escrever um livro. O melhor livro do mundo.— E aquele que você ditou ao Hugo Ciência na Amazônia? —

perguntou Edmundo.— Com a malária ele esqueceu — falou Berenice. — Não faz mal. Era

livro de principiante. Agora é que estou inspirada.— Foi aquela aula sobre poesia que te inspirou? — perguntou Sílvia.— Uma boa professora de literatura sempre ajuda — falou Berenice.— Boa professora — resmungou Mariazinha. — A Jandira é uma

canalha, eu sei.— Nenhum livro de criança de dez ou quatorze anos conseguiu nada em

literatura — falou Hugo Ciência. — Teve aí umas memórias, tipo diário, um vomitório da alma, dumas menininhas, mas literatura nunca.

— Tem razão — falou Edmundo. — Diário de jovenzinho é pior que purgante. Bó!

— Falta experiência, falta leitura, falta distanciamento — explicou Hugo Ciência. — Os poemas precoces dos grandes escritores, como o do Neruda, com quatorze anos, não valem nada, são lembrados porque depois eles foram alguma coisa. Precocidade há, mas sempre depois dos dezessete anos, como a Clarice Lispector, o Álvares de Azevedo.

— Serei a primeira — falou Berenice.— Xê — falou o gordo. — Literatura aos dez anos não existe, mas

delírio de grandeza existe demais.

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— Você tem medo do meu sucesso — falou Berenice. — Vou ficar muito em evidência e você vai se sentir inseguro.

— Aposto que você leu isso na Cláudia — disse o gordo.— Mais força do que a Berê tem feito para deixar o gordo inseguro é

impossível — falou Pituca.— A Berenice tem razão — falou Mariazinha. — Os editores e os

intelectualóides como o Hugo Ciência têm preconceito contra livro de criança. A Berê deve ir em frente.

— E quem é que tem preconceito duma criança querer namorar a professora? — perguntou Biquinha, olhando para Mariazinha e para Godofredo.

Mariazinha ficou vermelha e respondeu:— Sou uma pessoa livre. Não tenho preconceito. O caso do Godofredo

com a Jandira é uma impossibilidade biológica. O Godofredo ainda não pode procriar, não tem maturidade para casar, nem barba ele tem.

— Meu pai é imberbe e completamente imaturo — falou Pituca.— E esse negócio de casar pra fazer filho é mania da Mariazinha —

falou Sílvia.— Ela quer superlotar o planeta — falou Biquinha. — Acho que a

Mariazinha nunca foi ao Play-Center no domingo. Metade daqueles chatinhos não faria falta nenhuma.

O mordomo trouxe laranjadas e doces num carrinho.— Acharam uma estranheza o Pelé ir para a seleção com dezesseis anos

— falou Godofredo, muito animado. — Depois o Coutinho e o Edu foram para a seleção com quinze.

— O Pelé ganhou a Copa de 58 com dezessete anos — contestou Edmundo.

— Mas estreou na seleção com dezesseis — falou Godofredo. — Um amistoso contra a Argentina, o técnico era o Pirilo, está no meu almanaque. Foi 3 a 1.

— A idade para os recordes olímpicos já chegou aos treze anos — falou Biquinha. — Teve um caso de doze. Daqui a pouco chega a dez.

— As crianças estão avançando em cima do mundo — disse Berenice.— Pois vá lá que seja — disse o gordo. — Que venha a tal escritora

precoce. De retardados precoces eu estou por aqui.— Os exemplos atléticos que vocês referiram não se aplicam à literatura

— falou Hugo Ciência. — A literatura e o esporte são fenômenos diferentes. A própria superinteligência precoce, como a minha, também nunca levou à boa literatura precoce. Já fiz uma equação física provando o dia e a hora exatas em que o sol vai apagar, mas literatura não consigo fazer. Só dar palpite.

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— Eu vou abafar na literatura com dez anos! — exclamou Berenice.O gordo lembrou do computador e disse:— Se você publicar o livro antes de trinta dias, vai ser gênio com nove.— Não acho graça nenhuma você precisar de um computador para

lembrar meu aniversário — falou Berenice. — Isso não é amor. Isso é tecnocracia.

— O gordo transformou o aniversário da Berê num vídeo-game — falou Pituca.

— E se não tiver cuidado vai virar um wargame — falou Biquinha.— Chega de conversa — disse Edmundo. — Vou tomar essa laranjada e

cair na piscina.A turma imitou o Edmundo, tomaram laranjada geladinha, comeram os

doces, se trocaram no vestiário e caíram n'água. A Sílvia deu um caldo no Zé Tavares.

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Capítulo 4

Saíram d'água, sentaram nas cadeiras brancas da piscina e continuaram conversando.

O mordomo, a cabeleira balançando, veio acompanhando um frade capuchinho, vestido com batina marrom e capuz, forte, grande, suado, vermelho, musculoso, mãos enormes e os pés sem meia, calçando sandálias rústicas de couro grosso que deixavam o dedão do pé para fora.

— Frade João! — gritou Berenice. — Você por aqui?— Vejo uma bela assembléia de amigos conversando — disse o frade.

— Vocês têm razão, a melhor coisa do mundo é conversar. Sabem por que Eva se interessou tanto pela maçã? É porque Adão era um chato, ficava só admirando a maravilha do paraíso e não conversava.

— Sente-se e venha conversar conosco — falou Berenice. — Estávamos com saudade de você.

O frade sentou, mandou o mordomo trazer vinho e disse:— Eu converso bebendo. Sou como meu antepassado o Frère Jean des

Entommeures. Fico contente em rever os amigos que salvei do tal americano. Vim a São Paulo visitar uma tia. Uma tia chata, mas sou muito rigoroso com as obrigações de família.

O mordomo trouxe o vinho e o frade perguntou:— Quero lhe fazer uma pergunta, mordomo. Se você acertar ganha um

doce.— Pede fazer — disse o mordomo.— Então me diga — falou o frade. — A burrice é a falta de inteligência

ou a inteligência é a falta de burrice?— Eu acho que...— Demorou muito para responder — falou o frade, tirando um doce do

bolso e comendo. — Quem pensa muito a onça come.— Frade João — falou a Berenice. — Decidi escrever um livro. Qual a

melhor hora para escrever?— Isso é muito pessoal — disse o frade. — Rabelais escrevia coisas

notáveis comendo carne e bebendo vinho, Balzac escrevia de noite, varava as madrugadas escrevendo e tomando bules de café, tem gente que só escreve em silêncio, alguns franceses adoram escrever naqueles botecos deles, os bistrôs, cheios de barulho, alguns escrevem de manhã, quando a cabeça está fresca, Victor Hugo escrevia de pé, nunca sentava. Eu, por mim, faço minha reza diária na privada: mato dois coelhos com uma paulada.

Berenice pensou e disse:

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— Vou escrever ao crepúsculo, na hora que o sol desce, aqui na piscina do gordo.

— Ótimo — disse o frade. — Não vejo o momento de ler seu livro, lá na missão, numa tarde calorosa do Equador.

— Pelo menos vai servir para espantar mosquito — disse o gordo.Berenice deu uma olhada raivosa para o gordo e disse ao frade:— Quando sair eu te mando um de presente.— Não faça isso! — disse o frade. — Escritor bom não dá seu livro de

presente. Os outros é que devem comprar. Faço questão de vir aqui comprar um.

— Como vai sua missão lá na Amazônia? — perguntou Edmundo.O frade cocou o dedão do pé, que sobressaía da sandália, e falou:Os grileiros brancos vivem querendo invadir as reservas indígenas,

vivem querendo tirar a terra dos índios. Eu faço o que posso, outro dia dei quarenta cacetadas em vinte grileiros.

— Duas para cada um — disse Pituca.— Não — disse o frade. — Teve um mais assanhado que levou sete.— Ficaram trinta e três cacetadas para serem distribuídas entre dezenove

— falou Godofredo.— O que dá 1,73684210526 cacetadas para cada um — falou Hugo

Ciência.— Não — disse o frade. — Teve um grileiro atarrachadinho, me

chamando de subversivo e ameaçando me botar na Lei de Segurança Nacional, que levou dezesseis cacetadas. Lembro bem, foram dezesseis pro atarrachadinho.

— Alguma coisa está errada — falou Sílvia. — Ficaram dezessete cacetadas para dezoito grileiros.

O frade pensou, deu um murro no joelho e falou:— Tem razão! Não contei direito. O Modestino, aquele desdentado, de

lenço vermelho no pescoço, escapou, não levou cacetada. Quando voltar eu desconto. Esse negócio de contar me atrapalha, é meu defeito, sempre passei colando nos exames de matemática.

— Fazer uma boa cola é complicado — disse o mordomo. — Fiz uma cola tão caprichada para passar no vestibular que, na hora, não consegui decifrar. Por isso sou mordomo, não ganhei diploma.

— É que você não usa saia — falou o frade. — As mulheres e os frades sempre foram beneficiados com a cola. Aqui, nas dobras da minha batina, cabe uma enciclopédia, em tiras e tiretas.

O Pancho deu um pulo no colo do frade, que estava sentado, tomando vinho.

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— Esse cachorro é pastor legítimo? — perguntou o frade. O gordo se ofendeu.

— Que pergunta besta. Claro que é. Tirei o pedigree dele até a centésima geração.

O padre riu e disse:— Vocês vivem com essa conversa de direitos humanos, de igualdade

entre as pessoas, e quando é para comprar cachorro fazem uma questão danada da nobreza do sangue. Viram racistas. Eu só compro vira-lata, sou um democrata.

— O gordo é reaça — falou Mariazinha.— O cachorro está com mau hálito — disse frade João, afastando a cara

da lambida do Pancho, — deve ter um dente cariado. Quer que eu arranque? Lá na missão sou eu que arranco os dentes dos outros frades.

— É gastrite — disse o gordo. — Vivo dizendo para ele mastigar mais devagar, que o prato não vai fugir, que o mundo não vai acabar. Está sendo medicado.

— Me admira muito você andar de batina — falou Pituca. — Devia andar de calça como todo mundo.

O frade fingiu que não ouviu e perguntou ao gordo:— Esse cachorro fedido sabe atacar bandido?— O Pancho ataca quem eu quero — falou o gordo. — É muito treinado.O frade largou o Pancho no chão, saiu correndo pelo gramado e falou:— Aposto cinco mil que ele não me ataca.— Isca, Pancho! Isca! — falou o gordo. O Pancho se crispou para o

ataque.— Não faça isso, gordo — falou Edmundo. — O Pancho mata o frade.— Que brincadeira de mau gosto — falou Berenice.— Isca! — continuou o gordo, com um sorriso de vitória nos lábios. —

Ele te chamou de fedido, acaba com ele, Pancho.O Pancho foi para cima do frade, cercando, numa enviesada firme, sem

rosnar, olhando fixo para o alvo.— O Pancho sempre ataca enviesado — falou o gordo. — É para

confundir a vítima.De repente o Pancho pulou na jugular do frade, mas frade João tinha

tirado a batina, saiu de banda, o pulo do Pancho caiu na batina que o frade esticara no ar.

Frade João enrolou o cachorro na batina, deu um nó em cada ponta e devolveu o pacote ao gordo, o Pancho dentro, se mexendo e uivando.

— Passa cinco mil, gordo. O gordo pagou.Frade João virou para Pituca e disse:

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— Sua pergunta está respondida com um exemplo real. Gosto de responder com exemplos, é mais didático. Com esta batina até tourada eu faço. Afora as facilidades de colar em exame. Vou escrever um manual sobre as mil utilidades de uma batina. As mulheres são fascinadas por uma batina. Ela veste o personagem.

— Gostei dessa — falou Berenice.— Essa batina aqui já serviu de vela pra minha canoa no Amazonas —

falou o frade.Mariazinha sentou perto do frade e falou:— Frade João, eu sou uma ateia, uma materialista. Não acredito em

Deus. Você é capaz de me provar a existência de Deus?O frade passou a mão no cabelo de Mariazinha e falou:— Isso é conversa do século dezenove. Deus não faz a mínima questão

que acreditem nele. Só um neurótico é que precisa desta acreditação forçada. Deus é como eu, ele gosta de um bom papo, você vai ver quando for para o Céu. Já o Diabo é o contrário, esse aí, ele vive querendo provar que existe.

— Pelo que reparei — falou Berenice —, você, frade, além de um bom papo e de um bom vinho, você gosta de uma boa briga.

— Isso gosto mesmo — falou o frade. — Herdei este temperamento belicoso do Frère Jean. E tenho também um pinguinho de sangue irlandês na veia. Acima de tudo sou paraibano, a gente é um povo meio cangaceiro.

— Você está muito vermelho e muito suado — falou Sílvia. — Não gostaria de esquecer um pouco dessa inseparável batina e dar um mergulho na piscina?

— É uma boa idéia — disse o frade.— O vestiário é lá — falou Berenice. — Pegue o calção do pai do gordo.

Está pendurado no cabide.O frade foi ao vestiário, voltou de calção, o peito todo peludo, deu uma

disparada, se atirou na piscina que levantou água por cima do muro até a calçada.

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Capítulo 5

FALTAM VINTE E NOVE DIAS PARA O ANIVERSÁRIO DA BERENICE.

MUITA ATENÇÃO, GORDO CRETINO

O gordo desligou o computador e falou:— Interessante. Esse computador deu para me xingar. Ainda está na

garantia. Vou reclamar do fabricante.Olhou os peixes, consertou a bomba de ar do aquário grande, deu

comida, trocou a lã de vidro do filtro, mediu o pH da água, examinou a coleção de selos, abriu a carta do correspondente europeu, que trazia uma folha de selos e mais um selo separado dentro.

Caro Senhor Bolacha

Espero encontrá-lo gozando de boa saúde.Mando-lhe uma folha de 24 selos Pro Iuventute-1953 — obliterados,

valendo 2.500 francos suíços.Mando-lhe também um Carmesin Escuro da Guiana Inglesa, de 1856,

que comprei por 550 mil dólares, já debitados na conta de seu pai na Suíça.Estou na pista de seu sonhado One Penny Black.Mantê-lo-ei informado.Queira receber as minhas melhores e mais calorosas saudações.HENRY

Desceu ao andar térreo, tomou a refeição matinal, a mãe continuava discutindo com o pai, tentando convencê-lo de que a Berenice não prestava.

Esquentou e manobrou o Mercedes do pai, deixou na calçada, entregou a chave ao mordomo e entrou no microônibus da Escola Três Bandeiras.

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Naquela manhã o divertimento da turma foi amarrar o chofer no banco do fundo e um dos alunos saiu guiando.

Fez um trajeto muito mais lógico.Cada um dos grupos apresentou os poemas pedidos pela professora

Jandira, o que a deixou satisfeita.A professora Jandira deu uma ótima aula de literatura.Pela tardinha, à hora do crepúsculo, Berenice sentou à beira da piscina

do gordo, uma mesinha em frente, com bastante papel.A Berenice pegou a esferográfica, olhou para o papel branco, cocou o

buraco do nariz com a esferográfica e perguntou ao gordo, que estava de calção, deitado no colchão de ar, no meio da piscina:

— Gordinho? A gente põe o título no livro antes ou depois?— Não sei — disse o gordo. — Nunca escrevi um livro. Aliás, nunca li

um livro.Hugo Ciência se espantou, tirou os óculos e falou:— Nunca leu um livro! Com dez anos e meio! É um absurdo! É

inominável! Você sabia que as pesquisas da Unesco provam que a pessoa que não se acostumou a ler livros até aos onze anos, nunca terá gosto pela literatura?

— E eu com isso — disse o gordo. — Vou viver muito bem sem livro, como vivi até agora. Você não acha que vivo bem?

— Viver sem livro é vegetar, não é viver — falou Hugo Ciência. — Você é uma criança dominada pelo mundo visual da televisão.

— Xi — disse o gordo. — Já ouvi essa besteira em algum lugar.O mordomo, que vinha trazendo camarões empanados para o gordo

falou:— A Berenice quer saber se põe ò título no livro antes ou depois de

escrevê-lo? Mas é lógico que é antes. Veja este livro que estou lendo: O Mistério das Mulheres Nuas e Loucas do Taiti. Começa pelo título.

— Isso é livro pornográfico — falou Mariazinha. — Credo! Mulheres nuas e loucas. Você é um mordomo tarado.

— É meio pornográfico e meio mundo-cão — disse o mordomo. — Tem um pouco de suspense também. A gente fica todo o tempo pensando que a assassina é a nua baixinha e vai ver não é. A assassina é a nua grande.

— Ótimo — falou Berenice. — Você me convenceu. Vou começar pelo título.

— Não vá atrás da opinião de um mordomo ignorante e devorador de literatura de terceira categoria — falou Hugo Ciência. — Quando o livro está pronto, a pessoa tem mais condição de inventar o título. O livro toma caminhos que o autor não espera.

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— Por isso que eu acho que o pai e a mãe só deviam botar nome na gente depois dos dez anos — falou Pituca. — Tem cara aí que não tem nada a ver com o nome que leva.

— É mesmo — disse o gordo. — O Zé Tavares tem cara de Onésio.— Vou começar pelo título e acabou-se. — falou Berenice. Pegou o

papel e escreveu o título em letras grandes e arabescadas:

NINGUÉM FAZ MINHA CABEÇA

O mordomo leu o título e falou:— Inteiramente de acordo! Totalmente de acordo! Eu sou empregado do

pai do gordo, sou empregado do gordo, mas uma coisa eu digo: esses desgraçados não fazem minha cabeça. Nunca! O que eu acho eu acho!

— Gostei do título — falou Sílvia.— Continuo dizendo que deve deixar a escolha do título para depois de

escrever o livro — falou Hugo Ciência, queimado por ver a idéia do mordomo prevalecer sobre a sua.

— Não discuto com criança metida a intelectual — disse o mordomo. — Nem largou a mamadeira direito e quer dar uma de bom. A pior raça que tem é esses primeiros da classe, esses Q.I., esses imbecis exibidos, esses debilóides, esses hipócritas, esses pífios, esses cretinos.

— Está me ofendendo — falou Hugo Ciência tremendo de raiva e batendo o queixo. — Não quero mais saber dessa turma, volto para o Pueri Domus.

— Huguinho, deixe de ser melindroso — falou Berenice.— Esses xingamentos fazem parte de um papo entre amigos. Um papo

animado tem exaltação também.— Você tem razão — disse Hugo Ciência. — Fui dominado pela

impulsividade.— A capa eu desenho — falou Mariazinha.E fez um desenho magnífico, cheio de cores e furta-cores, em que a

cabeça de uma menina era rodeada de mãos peludas, de aparelhos informáticos, de textos jornalísticos e de livros didáticos que queriam fazer a cabeça dela.

Berenice adorou.— Que beleza, Mariazinha! Você faz também as ilustrações dos

capítulos?— Lógico, eu gamo em desenho. Quero ser pintora.— Peço-lhe um favor — falou Berenice. — Não identifique com clareza

a cara dos personagens. Quero que cada leitor imagine o personagem do jeito que ele quer. Se a cara do personagem está detalhada no desenho, o leitor é

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forçado a imaginar o personagem igual ao da ilustração. Isso corta a imaginação, entende?

— Farei um figurativismo abstracionista — falou Mariazinha. — Pode deixar.

— Gostei do raciocínio da Berenice — falou Hugo Ciência.— Olhe o caso dos personagens do Monteiro Lobato. Foram desenhados

tão bem que as crianças estão proibidas de imaginarem a Dona Benta, a Tia Nastácia, o Pedrinho, a Narizinho, o Visconde e a Emília com outra cara. E lamentável.

O gordo é que não gostou do mordomo ter ofendido Hugo Ciência e fez uma dura advertência:

— Tome cuidado com sua língua.— Você está querendo fazer minha cabeça? — gritou o mordomo. — Eu

me demito. Acabou-se o tempo em que patrão falava ao empregado com o dedinho no nariz.

— Pois demita-se — disse o gordo. — Quero ver você achar emprego com essa crise. Existem vinte milhões de desempregados, vai ficar vinte milhões e um. Vai dormir debaixo da ponte. Rá Rá. Se achar lugar. Rá Rá.

— Então não me demito — falou o mordomo. — Curvo-me diante da ingrata fatalidade social. Mas deixo marcado o meu protesto. Um dia enveneno essa família toda.

— Isso é coisa de mordomo inglês — disse Pituca. — Com mordomo brasileiro tem que ser na faca.

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Capítulo 6

Na tarde seguinte, ao crepúsculo, Berenice sentou à beira da piscina para escrever o primeiro capítulo de Ninguém Faz Minha Cabeça.

— Vamos fazer assim — falou Berenice. — Eu escrevo e, como minha letra é péssima, vou passando para um de vocês bater à máquina.

— Eu bato — falou Pituca. — Tenho diploma de datilografia. Escrevo até de olhos vendados.

O mordomo trouxe a máquina de escrever, puseram numa outra mesinha.O gordo olhava aquela movimentação, boiando na piscina sobre o

colchão de ar e comendo.— Escreva aí — falou Berenice. — Capítulo um. Pituca se ajeitou diante

da máquina, se aprumou, arrumou a cadeira como um pianista que vai dar um concerto famoso, pôs os dedos nas teclas e saiu assim:

Wtgoprv$ %?Biquinha olhou e disse:— Ótimo. O livro da Berenice já começa traduzido em japonês.Berenice ficou furiosa com o Pituca.— Mas que energúmeno!— Deixa que eu bato — falou Edmundo. — Eu cato um milho mas faço

melhor que o Pituca.— Não seja modesto — falou Sílvia. — Você que bate o mimeógrafo do

jornal da escola.— Não vejo praquê tanta trabalheira — falou o mordomo. — Uma

escreve à mão e o outro copia à máquina. A Berenice já podia ir ditando o livro para o Edmundo. Economizava tempo.

— Nunca! — exclamou Hugo Ciência. — A criação literária nasce do fluxo entre o cérebro, a mão e o olho. A mão é indispensável. A ligação cérebro-boca dá curto-circuito na corrente criadora. Se a pessoa, em vez de olhar o que está escrevendo, começa a ouvir o que está falando, dá uma

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bagunça na cabeça.— Também acho — disse Berenice. — Se eu for ditar fico sem mão, a

mão do escritor pensa, e não acompanho imediatamente as palavras se formando na minha frente. Perco a intimidade com o livro.

A Berenice começou a escrever o primeiro capítulo do Ninguém Faz Minha Cabeça, com a colaboração do Edmundo, que batia à máquina as folhas que ela ia enchendo; da Mariazinha, que desenhava uma ilustração para cada capítulo; da Sílvia, que fazia a revisão gramatical, e do Hugo Ciência, que foi nomeado assessor literário.

Pituca, chateado por estar fora da "comissão técnica", ficava rodeando por ali, fazendo gracinhas: algumas boas, outras horríveis.

O gordo, na piscina, lá do colchão de ar, de vez em quando tirava uma fotografia da Berenice escrevendo, com aquela cara inspirada que ele achou linda.

Mandou fazer um pôster, do tamanho da parede, e colocou a fotografia da Berenice no quarto dele.

Biquinha, Godofredo, Zé Tavares, o mordomo e o Pancho jogavam bola no gramado.

Botavam o Pancho de João-Bobo e ficavam trocando passes.Era divertido porque o Pancho era rápido e conseguia repetidamente

roubar a bola, o que obrigava os jogadores a usar muita técnica. Tinha que devolver de primeira, porque, se fosse driblar, o Pancho mordia o tornozelo.

Quando o sol deitou no horizonte a Berenice terminou o primeiro capítulo.

— Pronto — falou Berenice. — A menina Alice começa a perceber que o mundo inteiro está ali para fazer a cabeça dela, mas ainda não sabe como reagir para atingir sua personalidade. Ela está dividida entre o que ela é, entre o que ela quer ser, entre o que ela pode ser e entre o que "eles" querem que ela seja.

— O capítulo é interessantíssimo. — Falou Edmundo.— A idéia não é original — falou Hugo Ciência. — A procura de si é um

tema repetitivo em literatura. Isto não é defeito. Quase nenhum grande livro desenvolveu um tema original. A maneira literária e pessoal de levar a coisa é que torna o livro bom. O toque literário deste primeiro capítulo está ótimo. Gostei.

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Capítulo 7

Os dias passavam, a cada manhã o computador do gordo diminuía o tempo que faltava para o aniversário da Berenice.

O livro foi tomando forma.A Berenice estava inspirada: a história era movimentada, poética, triste,

irônica, engraçada, emocionante e cheia de ritmo.Para melhorar as ilustrações, Mariazinha encomendou uma mesa de

desenhista.O gordo ficou umas tardes sem aparecer: estava ocupado com um

Congresso de Filatelia no Maksoud Plaza e com um Congresso de Aquaristas no SESC-Pompéia.

Aquilo sim interessava ao Bolachão, ele que nem ligava para as excelentes aulas de literatura da professora Jandira, ouvia embevecido as conferências chatíssimas daqueles maníacos falando horas e horas sobre selos e aquários, pedia apartes, contestava o orador, tomava notas num caderninho.

Um dia, saindo da escola, o Godofredo acompanhou a professora [andira até o carro dela.

A professora Jandira estava elegantíssima, com um novo penteado, toda vestida de veludo verde, andando com aquele passinho de cavalo de raça que desfila antes da corrida.

O povão que passava na calçada olhava deslumbrado.Os pais que vinham buscar os filhos na porta da escola brecavam

subitamente os carros e ficavam olhando a Jandira, se remoendo de raiva por terem casado com mulheres tão feias, quando a natureza produzia fêmeas miraculosas como aquela.

Jandira estava livre de novo: conseguira divorciar de Ship 0'Connors, mas a Justiça confiscou os bens do americano e ela não levou nada na partilha.

Como todo sujeito encabulado que quer cantar uma mulher, o Godofredo nunca tinha o assunto na ponta da língua e, não tendo o que dizer, falou:

— Sabe, Jandira, a Berenice está escrevendo a maior obra-prima da história universal da literatura.

— Como é que você pode saber? — perguntou Jandira.— O Hugo Ciência afirma isso.Jandira respeitava o Hugo, sabia que o Hugo Ciência era a criança mais

culta do mundo, e acreditou.— Diga à Berenice que ela está de parabéns — falou Jandira.

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E se despediu, virando as costas e ajeitando o cabelo, deixando Godofredo com cara de desapontado na calçada.

"Ela não se interessa por mim" — pensou Godofredo. "Mas hei de conquistá-la."

A professora Jandira foi almoçar num restaurante chique com Papoulos Scripopulos, um industrial grego.

Jandira era bonita demais e toda hora tinha gente importante querendo namorá-la.

Papoulos Scripopulos não era moço nem era bonito, mas cuidava-se muito: só vestia roupa estrangeira, tecido inglês, fazia a unha na manicure, cooper de manhã, e tinha aquele à-vontade de dono do mundo que só os ricos têm.

Entrava em todo lugar com a tranqüilidade de quem entra em casa, era bem moreno, precisava fazer a barba duas vezes ao dia e tinha aquele olhar astuto e negro do meridional.

Não tinha nenhum caráter: durante a segunda guerra mundial, na Grécia, traiu sua pátria, colaborando com os nazistas contra os gregos, depois colaborou com os americanos para instaurarem a ditadura de Pinochet no Chile, foi convocado por bom preço pelo governo racista da África do Sul para ir lá torturar uns negros do Congresso Nacional Africano, finalmente veio ao Brasil e instalou uma fábrica de macarrão em São Paulo.

Mas, com a crise econômica, a indústria de macarrão de Papoulos Scripopulos estava indo mal. Tivera que despedir 80% dos empregados.

Não é que, se a indústria de macarrão de Papoulos Scripopulos fechasse, ele ia ficar pobre de tudo: tinha umas terras, capitais aplicados, apenas deixaria de ser milionário para ser só rico, e isso milionário não suporta.

Daí a razão dele estar procurando um golpe.O maître, com reverência episcopal, acompanhou Jandira e Papoulos

Scripopulos para a mesa preferida do grego, perto do piano, de onde ele gostava de pedir suas músicas prediletas.

O garçom apresentou o cardápio encapado em couro legítimo.Três outros garçons, os isqueiros acesos, se lançaram sobre o grego para

acender-lhe a cigarrilha.Os acordes do piano começaram a tocar a música suave que o grego

pediu.Comprou uma rosa e enfiou na gola da professora Jandira.Nas mesas em redor conversavam-se em voz baixa, comia-se com a boca

fechada, faziam-se gestos educados: o mundo elegante de São Paulo estava lá.

Papoulos disse ao garçom:— Ponha um vinho do Reno para gelar e me traga uma dúzia de ostras

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de Cananéia. Adoro ostras, deixam no estômago um gosto de fundo do mar. E você, Jandira, o que quer como entrada?

— Coquille Saint Jacques.— Uma boa escolha — disse o grego. — Me diga uma coisa, Jandira,

aquele idiota do Godofredo continua apaixonado por você?— Os idiotas geralmente se apaixonam por mim — respondeu sorrindo a

professora Jandira.— Rá Rá — riu o grego. — Gostei da resposta. Em cima. Rá Rá. Você

me pegou! Sutil. Você é bela e inteligente.— Meus aluninhos também são muito inteligentes. A Berenice vai fazer

dez anos e está escrevendo o livro mais importante da literatura brasileira e quiçá mundial.

— Tem certeza?— Absoluta — afirmou Jandira. — Quem falou foi o Hugo Ciência, que

é o menino mais culto do mundo.O pianista foi descansar um pouco e apareceu o violinista, vestido de

cossaco, tocando coisas ciganas; e como queria ganhar gorjeta do grego, debruçou-se sobre a mesa, entre Papoulos e Jandira, fechou os olhos em alta inspiração, deitou a cabeça no violino como se fosse um travesseiro, de modo que a vareta do violino ia e vinha, a professora Jandira desviava para não levar uma varetada no olho, pulava de um lado e pulava do outro, mas, no super-romântico e esticadíssimo tremente acorde final ela não pôde escapar, a varetada enfiou no penteado dela.

Papoulos Scripopulos riu, tirou a vareta da cabeça dela, tomou um gole de vinho, engoliu uma ostra bem regada a limão e sal e falou:

— Isto é sensacional. O melhor livro de literatura do mundo. Vai dar uma fortuna. A Berenice ficará milionária.

— Sorte dela — falou Jandira. O cérebro do grego se iluminou.Se conseguisse roubar o livro da Berenice e publicá-lo em seu nome, ia

dar uma nota, além da fama de artista que todo milionário persegue como um colorido final de sua felicidade.

— Qual o endereço dessa Berenice?— Ela está escrevendo na casa do gordo, ao crepúsculo — falou Jandira.— Qual o endereço do gordo? Jandira deu o endereço do gordo.— O pai dele não é um tal de Marcelo, que tem uma fábrica de arruelas

no Ipiranga?— É.O grego afastou o prato e pegou a mão da professora Jandira.Jandira retirou a mão e disse:— Não sou qualquer uma. Não vou dando a mão logo de cara.Papoulos Scripopulos pegou um diamante luminoso e deu de presente

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para a professora Jandira.Jandira pôs o diamante na bolsa e deixou o grego pegar na mão dela.O pianista tocou uma balada de Roberto Carlos.

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Capítulo 8

Sábado à tarde Berenice escrevia na beira da piscina, rodeada pela turma, e ia passando os rascunhos para Edmundo bater à máquina.

Com o tempo Edmundo estava ficando prático, e já se ouvia aquela batida uniforme de bom datilografo.

O gordo examinava contra o sol a radiografia do estômago de Pancho, que mandara tirar para ter certeza de que a gastrite não se transformara numa úlcera.

O pai do gordo, sentado numa cadeira preguiçosa vermelha, tomava um uísque e conversava com a mãe do gordo.

— Escute, benzinho, você não acha que o jardineiro pôs barrilha demais e sulfato de menos na água da piscina?

— Isso não me interessa — disse a mãe do gordo. — O que me deixa furiosa é esta Berenice da Fonseca vir se instalar em nosso jardim e ficar escrevendo livro com essa cara de quem diz: eu sou escritora e o Bolacha não é.

— É uma interpretação sua, benzinho. Eu não acho que a cara da Berenice esteja dizendo isso. Ela está só entusiasmada com o livro.

— Você não é psicólogo, Marcelo. Olhe a cara dela lá, está escrito na cara dela: eu sou escritora e o Bolacha não é. Desaforada.

O pai do gordo colocou mais um gelinho no Balantines e falou:— O que eu acho, benzinho, é que de segunda a sexta vá, mas pelo

menos no sábado você devia parar de dizer asneira.Nesse momento Papoulos Scripopulos, de terno branco e chapéu

panamá, tocou a campainha da mansão, identificou-se pelo interfone e o mordomo veio abrir.

O grego andou até a piscina, entregou um buquê de flores para a rnãe do gordo e cumprimentou o pai do gordo.

— Sou Papoulos Scripopulos, fabricante de macarrão. Como o senhor tem uma fábrica de arruelas, vim trocar idéias.

— Sente-se — disse o pai do gordo, mandando o mordomo trazer um uísque para o grego.

— Minha visita prende-se ao motivo que desejo propor seu nome para a presidência da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo — disse o grego para o pai do gordo. — Nesta crise que atravessamos precisamos de um homem firme como o senhor.

E agarraram numa conversa sobre a situação econômica da indústria paulista, Papoulos sabia conversar, sabia enfeitar um assunto e, enquanto

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falava, observava com cuidado a Berenice escrevendo, a turminha em volta, a conformação do jardim e o resto todo da casa do gordo.

Frade João chegou e foi conversar com as crianças.Pancho olhava com desconfiança para a batina do frade.— Como vai sua obra-prima?— Vai bem, frade João — respondeu Berenice. — Estou no capítulo 21.— Acho formidável uma menina de sua idade gostar de literatura —

falou o frade. — Eu, com dez anos, só sabia é fazer armadilha para pegar passarinho, fazer balão, botar cortante na linha da minha pipa para cortar as linhas dos outros, espiar pelas fechaduras, amarrar gato pelo rabo, roubar galinha do vizinho, brincar de quem mija mais longe e puxar a fita do cabelo das menininhas.

O mordomo trouxe vinho tinto e churrasco para o frade João.— Como é que um moleque safado sem-vergonha como você virou

frade? — perguntou o mordomo.— Tive uma revelação divina — respondeu frade João. — Eu era um

menino pobre da Paraíba. Um dia roubei umas laranjas do laranjal dum fazendeiro, dormi embaixo da árvore e tive um sonho revelatório. Sonhei com um frade comendo um pernil, bem tenrinho, com gordurinha, e tomando vinho. Ao acordar achei que aquilo era uma mensagem de Deus e entrei para o convento dos capuchinhos.

— Já vi tudo — falou o mordomo. — Você virou frade para subir na vida.

— Não ofenda o frade — falou Edmundo. — Ele dedica a vida a defender os índios e nos salvou dos bandidos de Ship O'Connors na Amazônia. Sozinho derrubou um exército, batendo com a cruz na cabeça deles.

— Quando me elogiam eu fico sem graça — disse o frade, cocando a orelha. — Me mostre a cópia datilografada dos vinte capítulos do livro da Berenice. Estou curioso.

Edmundo abriu uma pasta cheia de papéis datilografados e de desenhos e deu ao frade.

— As ilustrações são da Mariazinha — falou Edmundo. Papoulos Scripopulos, enquanto conversava com o pai do gordo sobre política internacional, não perdeu de vista aquilo.

O frade levou a papelada para um banco embaixo da jabuticabeira e começou a ler.

Depois de uma hora de leitura atenta o frade voltou junto às crianças e falou:

— Pelo Verbo Divino! Nunca houve livro assim. Coitada dessa Alice, que luta enorme para que "eles" não façam a cabeça dela.

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A Berenice, que não ficava sem graça quando a elogiavam, falou:— Também acho meu livro sensacional.— E as ilustrações estão ótimas — disse o frade, dirigindo-se à

Mariazinha.— Obrigado, frade.— A gente deve dizer obrigada quando se é mulher — corrigiu Sílvia.— Nunca! — exclamou o frade. — Isso são besteiras lingüísticas. É

como dizer meio-dia e meia. Uma vez eu rachei a cabeça de um sujeito porque ele disse que era meio dia e meia.

— Está vendo — falou Berenice para Sílvia. — Você me força a escrever meio-dia e meia. Vou corrigir de novo e botar meio-dia e meio. Isto quando a Alice fala. Agora, quando são "eles" que falam, "eles" vão dizer meio-dia e meia. É típico vocabulário "deles".

— A professora Jandira obriga a gente a escrever meio-dia e meia — falou Pituca.

— Deve ser um péssimo caráter essa professora — falou o frade.Godofredo deu uma pedrada no frade e partiu de soco para cima dele.— Não quero que ofendam a Jandira! Não quero!O frade era forte, nem sentiu a pedrada, muito menos os socos do

Godofredo: deixou o menino ficar socando ele.— Eu bem que disse — falou Mariazinha. — Todo apaixonado é

histérico e patológico.— O gordo é apaixonado por mim e não é histérico — falou Berenice.— É sim — falou Mariazinha. — É que o gordo disfarça, ele é muito

orgulhoso.Frade João virou-se para Berenice e falou:— Gostaria de dar uns palpites sobre um ponto de seu livro. Pena que só

li uma vez. O Alceu Amoroso Lima diz que só depois da terceira leitura é que apreciamos de verdade uma obra-prima.

— Terceira leitura! — exclamou Pituca. — Não concordo. Depois da primeira leitura a gente já sabe o que acontece, não tem surpresa nenhuma.

— Isto é para literatura policial — falou o frade —, ou para esses livros de má qualidade. A grande literatura é um mistério renovado, é como a Santíssima Trindade, não cansa nunca.

— Qual o palpite que você gostaria de dar? — perguntou Berenice.— Tenho um pouco de medo de dar palpite em livros que os outros

escrevem — disse o frade. — Os escritores são muito vaidosos, ficam com ódio de quem critica. Uma vez critiquei um escritor e ele me mandou uma carta-bomba.

— Ela explodiu?— Explodiu sim — falou o frade. — A carta-bomba tem um explosivo

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minúsculo de plástico ligado a uma linha esticada. Quando você abre a carta, puxa a linha e detona a bomba. Passei dois meses no hospital, quase fiquei cego, só porque critiquei um livro. Depois disso eu só elogio, não sou besta.

— Comigo você pode ser sincero, frade — falou Berenice.— É que achei o capítulo 5 um pouco delirante — disse o frade. — Não

está ao nível dos outros.Berenice pegou o capítulo 5 e falou:— Discordo de você, frade João. Este capítulo é uma inspiração que me

veio direto da alma. Escute.E leu em voz alta, tremendo de emoção:— Alice, Alice, a tua cabeça ninguém fará! "Eles" não farão. Porque

"eles" são a corja mandante da humanidade, manejam currículos escolares, manejam a informação, manejam a moral, manejam o pensamento íntimo da família. Não! "Eles" vão se funicar!

O frade riu e falou:— Está muito declamatório. A idéia é boa mas o estilo parece discurso

pomposo de prefeito do interior da Paraíba.— Vou pensar no assunto — falou Berenice, um pouco ofendida.— Olha o biquinho dela, frade — falou Pituca. — É como você falou,

escritor não agüenta crítica, ela vai até mandar uma carta-bomba.— Ou um doce-bomba — disse Edmundo.— Eu preferia um beijo-bomba — falou o frade.Berenice sorriu, desamarrou a cara, esqueceu a raiva, levantou e deu um

beijo-bomba, bem estralado, na bochecha vermelha de frade João.Ouviu-se um grito.Era o Biquinha que, junto com o Zé Tavares, estava fazendo o Pancho de

João-Bobo. Em vez de devolver a bola de primeira, quis dar um drible no cachorro; o drible foi bonito, mas o Pancho enfiou os dentes no calcanhar do Biquinha.

O gordo sorriu e falou:— Que bom. O Pancho está mordendo. Fiquei com medo que ele

perdesse a agressividade depois que o frade deu aquele vexame nele. Aquilo foi humilhação. Humilhação influi na psicologia de cachorro. Tem cachorro humilhado que nunca morde mais.

A mãe do gordo providenciou a medicação, protestando:— A mania de meu filho de ter estes monstros dentro de casa. O

próximo que ele morder eu jogo esse cachorro no rio Tietê.— Bom — disse frade João. — Vou me retirando para a minha missão

dos capuchinhos no Amazonas. Os índios precisam de mim. Li no jornal que um destes incompetentes da Funai aprontou uma nova sacanagem contra eles.

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— Que sacanagem?— Mandou os índios se retirarem da reserva indígena para deixarem

construir uma estrada no meio. Já começou a dinamitar a floresta.— O aniversário da Berenice é daqui a sete dias — falou Edmundo. —

Você não pode faltar, frade.— Eu volto para o aniversário.— Ótimo — disse Edmundo.— Diga uma coisa, frade João — falou Pituca. — Você não acha um

absurdo a Berenice estar apaixonada pelo Bolacha, um iletrado, que não lê livro e nem ao menos teve a curiosidade de olhar os originais dela?

O frade riu.— Conheço esse gordo. É mais inteligente que nós juntos. Todas as

aventuras de vocês foi ele que resolveu.O frade foi saindo, no mesmo momento que Papoulos Scripopulos se

despedia da mãe e do pai do gordo. Frade João encarou o grego e perguntou-lhe:

— Ilustre cavalheiro. Não o conheço. Mas tenha certeza que a sua fisionomia não me é estranha.

— Claro — disse Papoulos. — Você já deve ter comprado o macarrão Scripopulos. Minha fotografia está na embalagem. Sou eu que fabrico.

Frade João agarrou o grego pelo colarinho e começou a sacudi-lo:— Seu verme! Seu pulga! Então é você que faz esse macarrão sem

farinha de trigo, que só tem química e corantes? Quase me matou de dor de barriga! Não tem vergonha? Vou te torcer o pescoço como se faz a um frango.

O chapéu panamá caiu da cabeça de Papoulos Scripopulos e a cara do grego ia ficando branca, sem sangue, o pescoço apertado nas mãos do frade.

O pai do gordo teve que usar muita diplomacia para convencer o frade a largar o pescoço do grego.

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Papoulos Scripopulos entrou no automóvel esportivo bege-equatorial e foi para o apartamento de cobertura no Morumbi.

Seu capanga, o Mathias, o esperava, tomando um aperitivo no bar da sala.

Mathias tinha a cara magra, bigodinho de malandro, cabelo brilhantinado, e sua biografia, não tão brilhante como a de seu chefe, não deixa de ter algum interesse.

Começou como batedor de carteira na linha Penha-Lapa, depois lançou-se em negócios imobiliários.

Achou uma praiazinha isolada e belíssima no litoral norte de São Paulo, expulsou os caiçaras de lá com ameaças e mortes e fez um loteamento classe A, chamado, Marinha-Mathias, que teve muito sucesso, vendendo lotes até para milionários europeus e americanos.

Todos os folhetos de propaganda, distribuídos aos compradores, impressos em papel de primeira e com fotografias coloridas mostrando a delícia da vida à beira-mar, traziam o lema da imobiliária escrito em verde e amarelo:

NÃO VENDA O BRASIL — COMPRE-O

Mathias ficou rico, mas gastou tudo em aposta de cavalos em Cidade Jardim, de modo que agora era um simples capanga de Papoulos Scripopulos.

Mathias cumprimentou Papoulos Scripopulos e perguntou:— Tirou as fotografias, chefe?— De todos os ângulos.Papoulos Scripopulos retirou um minifilme do relógio de pulso, Mathias

trouxe o projetor, baixou a tela e começaram a passar os slides.As tomadas do jardim do gordo, com as crianças, o frade, o Pancho, a

piscina, as flores e as árvores foram aparecendo.

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Quando chegou o slide do Edmundo batendo à máquina, o grego mandou parar.

— Olhe aí, Mathias, note bem o ângulo em que a máquina de escrever está em relação ao muro. Naquela trepadeira do muro vamos instalar o meu microcomputador-auditivo-transmissivo.

— O chefe quer ouvir as conversas deles?— Não, Mathias. O microcomputador-auditivo-transmissivo está

alimentado para só pegar os barulhos das teclas da máquina de Edmundo quando ele copia o livro da Berenice.

— E os outros sons?— São eliminados automaticamente. Pode até um boi mugir na cara do

microcomputador-auditivo-transmissivo que ele não registra. Está programado só para nos transmitir o barulho das teclas da máquina batendo no papel.

— E daí?— Daí que o microcomputador possui um cérebro eletrônico onde irá

identificar cada letra que Edmundo bate, cada letra tem um barulho diferente, que vem de seu próprio formato. O computador aqui de casa receberá a transmissão e as letras aparecerão instantaneamente no telão da sala. Um outro sistema informático acoplado irá imprimindo em livro o texto que assistiremos no telão.

— Ótimo sistema para chupar o livro da Berenice, chefe. Como vai instalar o seu microcomputador na trepadeira do muro?

— Você conhece o Kuntz, o gerente de minha fábrica de macarrão. Foi soldado alemão-nazista durante a guerra, especializou-se em missões arriscadas atrás das linhas inimigas.

— O chefe sabe como é o sistema de segurança da casa do gordo?— Perguntei e olhei. De noite há dois guardas do lado de fora. Um na

guarita e outro que faz a ronda com o walkie talkie.— E tem mais aquele baita cachorrão que passou no slide — falou

Mathias.— Não será problema para o Kuntz. É um pastor alemão, eles se

entendem entre eles.— Eu sempre achei que um italiano daria mais certo como gerente de

uma fábrica de macarrão, chefe. Alemão devia ser gerente de fábrica de salsicha.

— Seu raciocínio é ilógico, Mathias. É mesma coisa que dizer que só um bêbado pode ser gerente de uma fábrica de cachaça.

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Capítulo 10

Kuntz fez seu trabalho com perfeição naquela noite.Nem os vigias nem o Pancho perceberam nada, e o micro-computador-

auditivo-transmissivo foi instalado por dentro do muro do gordo, numa reta sobre a máquina de escrever de Edmundo.

Papoulos Scripopulos ficou contente e falou para Mathias:— Nessas minúcias de guerra e de espionagem, alemão é o melhor do

mundo. São perfeitos. Tudo que eles fazem dá certo. A única coisa que não aprenderam até agora foi ganhar uma guerra.

— É porque os outros reagem, chefe.— Deve ser por isso.Papoulos Scripopulos e Mathias almoçaram numa cantina, voltaram ao

apartamento e ficaram esperando ansiosamente o momento de Edmundo bater à máquina o rascunho do livro da Berenice.

Pelas cinco da tarde a turminha foi chegando na casa do gordo: a Berenice, o Edmundo, a Mariazinha, a Sílvia, o Biquinha, o Pituca, o Godofredo, o Hugo Ciência e o Zé Tavares.

O Pancho recebeu-os com alegria, foi buscar a bola e trouxe na boca, para a brincadeira de João Bobo com o Biquinha, o Godofredo, o Zé Tavares e o mordomo.

Biquinha estava com o tornozelo enfaixado, tinha tomado soro antitetânico, mesmo assim topou jogar.

— O jogo de futebol está estragando o gramado — falou a mãe do gordo. — Vou proibir.

— Não seja uma idiota repressora — disse o mordomo.— Que mordomo atrevido! — exclamou a mãe do gordo. — Acho que

vou evaporar, vou sumir, esse mundo está muito virado.Berenice foi sentando em frente ao papel branco e falou:— Que beleza o papel branco! Este é o mundo do escritor. E começou a

escrever.Edmundo esperava ela terminar, para copiar à máquina. Enquanto

esperava já foi batendo no alto da página: Capítulo 22.Capítulo 22 saiu enorme no telão da sala de Papoulos Scripopulos, todo

verde, em letras itálicas.— O sistema dela é numerar simplesmente os capítulos — falou o grego.— Você queria que ela fizesse o quê, chefe?— Bem se vê que você é um asno em literatura, Mathias. Muitos autores

dão nome aos capítulos, como o autor de Tom Jones. Um capítulo dele

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chama:Em que se contêm diversos diálogos entre fones e Partridge a respeito

do amor, do frio, da fome e outros assuntos; com o feliz e penoso escape de Partridge, na iminência de fazer um descobrimento fatal a seus amigos

— Que comprido, chefe, o título parece um capítulo.— Cada escritor tem seu sistema, Mathias. O Guimarães Rosa escreveu

um livro de 460 páginas, chamado Grande Sertão — Veredas, onde a narrativa vai direta, não interrompe o livro por capítulo nenhum.

— O chefe entende paca de literatura. Por que não escreve um livro, em vez de chupar o da Berê?

— Não tem nada a ver, Mathias. Veja o Hugo Ciência, tem o Q.I. mais alto do mundo e quem está fazendo o melhor livro do mundo é a Berê, muito menos culta do que ele.

Mathias serviu um licor ao grego e Papoulos Scripopulos falou:— O verde está doendo na vista, Mathias.Mathias apertou um botão e o Capítulo 22 apareceu escrito em rosa-lilás.— Assim é melhor — falou o grego.— O chefe não quer uma música de fundo para acompanhar o

desenvolvimento do capítulo? Um Júlio Iglesias, um Boccherini?— Não, Mathias. A literatura é uma coisa silenciosa. Na casa do gordo,

Edmundo falou:— É preciso trocar a fita da máquina. Ficou gasta, o texto vai sair

apagado.O gordo mandou o mordomo trocar a fita da máquina. O mordomo

protestou:— Não está no meu contrato de trabalho trocar fita de máquina e ficar

com a mão suja de tinta! A Consolidação das Leis do Trabalho diz que o empregado pode recusar serviço que não seja de sua função.

Berenice fez um lindo sorriso cativante para o mordomo e pediu:— Por favor, fofura, fofinho, vai lá.— Pedindo assim eu vou — falou o mordomo. — Como um favor, coisa

de amigo, não como obrigação.— Esse mordomo entende muito bem os seus direitos mas não quer

saber dos seus deveres — disse a mãe do gordo.— Isso é uma frase-feita que está escrita na cabeça de cada patrão —

respondeu o mordomo.A mãe do gordo gritou:— Marcelo! Não suporto mais as impertinências dessa figurinha.

Despeça-o se for homem!O pai do gordo tomou mais uma dose de uísque e permaneceu num

mutismo eloqüente.

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No apartamento do Morumbi, Mathias falou:— Concordo que o chefe não queira barulho durante o texto. Mas o seu

computador aqui faz efeitos de cheiro e de tato. Se o escritor está descrevendo uma praia, o computador faz a gente cheirar o cheiro do mar, o cheiro do vento salino, o cheiro do noroeste chegando e, se o personagem usa perfume, a gente cheira o cheiro do perfume.

— Por enquanto deixe como está, Mathias. Não quero me arriscar a sentir um pontapé no traseiro se o raio do escritor escreve um sujeito chutando o traseiro de alguém.

— Não se preocupe chefe. Programo o computador para você sentir o pé que deu o chute e não o traseiro que o levou.

— Estes progressos da informática me deixam confuso, Mathias. Não invente moda.

Na casa do gordo a Berenice interrompeu de escrever o capítulo 22, pediu a Edmundo uma cópia do capítulo 21, releu-o três vezes, mordeu a esferográfica (de tanto que mordia as esferográficas, Berenice precisava de dez para cada capítulo) e falou:

— Vou fazer de novo o capítulo 21. Estendi demais uma idéia boa que tive no capítulo 20. Prolonguei um ritmo de narração além da medida.

Rasgou o capítulo 21 e o pedaço que fizera do capítulo 22, Hugo Ciência falou:

— Acontece muito do escritor ser tomado de uma idéia tão ótima que esquece o limite de parar de desenvolvê-la. Fica escravo da idéia ótima, não quer largá-la.

— Eu fiz isso — falou Berenice. — E ficou artificial. Hugo Ciência, em sua condição de eruditíssimo conselheiro

literário, pronunciou:— André Gide dizia: Nunca se aproveite de seu próprio embalo (Ne

profitez jamais de 1'élan acquis.) e Voltaire repetia: Não apóie demais (N'appuiez pas trop.). Em literatura os gênios costumam jogar as regras no lixo, mas esta geralmente funciona.

— Todo mundo já tinha entendido — falou o mordomo. — Não precisa ficar aí dando show de Q.I., falando francês como um pernóstico.

— Não continue implicando com o Hugo — falou Sílvia para o mordomo.

— É que eu sempre tive ódio de primeiro da classe — disse o mordomo. — São todos uns fedidos.

Berenice começou a reescrever o capítulo 21. Tem mais coisa aí que eu já joguei fora neste livro do que a que ficou.

— Esse é o bom caminho — sentenciou Hugo Ciência. — A luta do escritor com o seu livro.

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Capítulo 11

Demorou uma hora de espera impaciente, mas chegou o momento cm que Edmundo começou a bater à máquina o capítulo 21 (refeito) do livro da Berenice.

Papoulos Scripopulos e Mathias arregalaram os olhos e seguiam as frases que corriam pelo telão.

Era assim:

* * *Sentir a beleza só é possível enquanto temos dentro de nós a sagrada

música com que fazemos dançar a vida.Não adianta ir para lá e para cá, querendo captar a beleza, igual turistas

fantasmas, se a música de dentro de nós calou.E "eles" querem roubar de nossa alma esta sagrada música, a tarefa

"deles" é esta.Onde iremos, perguntou Alice, se nos tiram da alma a quantidade

indispensável de delírio?Querem substituir nosso delírio e nossa música pela Verdade "deles". E a

Verdade "deles" é uma agonia monótona, repetida, sem fim, que nos obriga a achar a morte muito melhor do que a vida.

* * *

Papoulos Scripopulos, lacrimejando de felicidade, bateu palmas, abraçou Mathias e dançou uma dança grega.

— Mathias! Mathias! — exclamava o grego. — Podem me chamar de safado, mas de literatura eu entendo. O estilo da Berenice é inigualável, é o maior livro do mundo. Que poesia! Como correm as frases! Que força de imagem! É total, Mathias, é total!

— Parece bom, chefe.— Bom? Mas que bom nem meio bom, é sensacional. Você reparou,

Mathias, nessa profunda imagem da sagrada música que temos dentro de nós e que faz dançar a vida. Dançar a vida, Mathias, a Berenice tem razão, nós é que fazemos, enquanto podemos, a vida dançar. E que faremos sem nossa ração de delírio, Mathias? Como é bem achado, Mathias. E que grito trágico e no entanto tão simplesmente escrito este: uma agonia, monótona, repetida, sem fim! Eu choro de alegria, Mathias, eu choro. Eu fico de joelhos diante de um texto assim.

Papoulos Scripopulos ficou de joelhos sobre o carpete, levantou os

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braços ao céu e falou:— Depois de eu chupar inteirinho este livro ele vai ser meu, Mathias.

Ninguém Faz Minha Cabeça, por Papoulos Scripopulos. Prêmio Nobel, Mathias. A glória literária e o dinheiro, Mathias. E o meu nome, no plano da comunicação, soa muito melhor que o da Berenice. Compare só, Mathias: — Papoulos Scripopulos — Berenice da Fonseca. Quem é que tem nome de gênio?

— Não tem comparação, né, chefe, Berenice da Fonseca é nome de professora de crochê.

— Um crítico de literatura observou que os grandes personagens literários têm nomes significativos — falou o grego. — Este crítico afirma que, só vendo o nome dos personagens, ele pode dizer se o livro é bom. Imagine o nome do autor! Papoulos Scripopulos. O meu nome é um hino de amor à estética da nomenclatura. É um nome parido para a arte. Eu amo meu nome, Mathias.

— Tem um problema, chefe.— Problema?— Quando uma pessoa está entusiasmada, não repara nas coisas óbvias

— falou Mathias. — O chefe vai ter do capítulo 21 em diante aqui no seu computador. E os atrasados? Nunca vi um livro começar no capítulo 21.

Papoulos Scripopulos ficou subitamente sério e disse:— Precisamos roubar os primeiros vinte capítulos. Estão numa pasta, em

cima da mesinha do Edmundo, ao lado da máquina de escrever.— Serviço para o Kuntz, chefe.O grego e Mathias entraram no automóvel esporte bege-equatorial e

foram até a fábrica de macarrão.A Fábrica de Macarrão Scripopulos ficava no bairro de São Miguel

Paulista. Subiram até a gerência, onde um segurança, armado de metralhadora eslovaca, reconhecendo o grego, o deixou entrar no escritório de Kuntz.

O alemão cumprimentou Papoulos Scripopulos e Mathias, que lhe explicaram a missão de ir roubar os primeiros vinte capítulos da Berenice.

— De noite, certamente, os capítulos não estarão na mesinha da piscina — falou Kuntz. — Devem guardar dentro de casa. Não há problema, vou lá e trago.

— Tire um microfilme e deixe os capítulos no mesmo lugar — falou o grego. — A Berenice não deve desconfiar de nada, para não perder a inspiração e poder terminar o livro em grande forma.

— Ela não pode abrir um processo judicial contra o chefe, por plágio de obra literária? — perguntou Mathias.

— Ninguém vai acreditar que uma menina de dez anos escreveu uma

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obra-prima dessa qualidade — falou o grego.

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Capítulo 12

Na mesma noite, quando o gordo se preparava para dormir, depois de escovar os dentes e bochechar com Malvatricin, o mordomo bateu na porta:

— Correspondência urgente para você, Bolachão.O gordo abriu a porta, o mordomo passou-lhe um envelope. Vinha da

Europa, urgente, era uma carta do Henry, o correspondente filatélico do gordo.

Bolachão ia fechar a porta mas o mordomo falou:— Gordo, me empresta mil e duzentos.— Empresto nada — falou o gordo. — Você me deve dez mil e

quinhentos e nunca paga. E não me venha com teorias. Desta vez não empresto.

— É assim, não é? — falou o mordomo. — Pois então não pago os dez mil e quinhentos.

— Eu cobro na Justiça — falou o gordo. — O Direito Civil protege os credores.

— Ninguém viu você me emprestar — falou o mordomo. — Um processo precisa de provas. Você não tem testemunhas nem documento assinado. Rá Rá. Eu falo para o juiz que você nunca me emprestou. Rá Rá.

— Você não tem palavra — disse o gordo.— E você não tem provas — disse o mordomo.O gordo bateu a porta na cara do mordomo, sentou-se na escrivaninha,

abriu cuidadosamente o envelope com o corta-papéis (afiadíssimo) e leu a carta do Henry:

Prezado Senhor BolachaFinalmente, depois de vários anos de paciente procura, consegui para

V.S. o primeiro selo do mundo, o One Penny Black, que mando junto a esta carta.

É absolutamente legítimo; mando junto, também as autenticações feitas pelos melhores peritos da Europa, a quem submeti o selo: Diena, Nussbaum, Hunziker, Von der Weid, Calves, Brun, Schelegel Lowe, Bolaffi e Hertsch.

Todos atestam a legitimidade do selo que lhe mando.Para consegui-lo foi necessário que eu assassinasse uma velha inglesa

que não queria vendê-lo.Cometi um crime perfeito. V.S. sabe como sou cuidadoso, ninguém vai

descobrir.

Page 39: João Carlos Marinho - O livro da Berenice

V.S. não imagina como é emocionante cometer um crime perfeito. Dá uma emoção desgraçada, quebra a rotina da vida da gente.

Queira receber minhas melhores e mais afetuosas saudações,HENRY

Dentro de um papel de seda estava o selo, e acompanhavam a carta os atestados dos peritos.

O gordo ficou uma hora namorando o selo negro, com os dizeres amarelos e a cabeça da rainha Vitória, colocou no álbum e foi dormir.

Enquanto o gordo dormia, Kuntz, vestindo sua roupa aderente preta de comando nazista, entrou na casa sem ninguém perceber.

Revistou o jardim, o vestiário, a lavanderia, a sauna, o bar da piscina, abriu a casa com chave falsa e verificou milímetro por milímetro.

Não sobrou uma gaveta, um vão de armário, um quadro, um livro, um bolso de roupa que não fosse revistado.

Acontece que Bolachão fora o único a desconfiar que podiam querer roubar o livro da Berenice. Toda noite dormia com as cópias datilografadas debaixo do travesseiro (embora não tivesse lido nem uma linha).

Depois das aventuras do Gênio do Crime, do Caneco de Prata e do Sangue Fresco, o gordo não se iludia com a humanidade e sabia que todas as coisas que a gente faz tem gente safada querendo se aproveitar.

Kuntz entrou no quarto do gordo, remexeu tudo, descartou uma por uma as revistinhas em quadrinhos (única literatura que o gordo apreciava), examinou a coleção de selos, passeou no meio dos aquários, ouvindo o borbulhar feito pelos aeradores, revirou o material escolar de Bolachão.

O gordo roncava altíssimo, babava no travesseiro e sonhava com a Berenice.

O Pancho tirava uma soneca ao lado da cama do gordo. Pressentiu o alemão, levantou, mas Kuntz adotou sua tática especial de fazer pastor alemão ficar quieto.

Falou baixinho em alemão com Pancho e o cachorro do gordo veio lamber a mão de Kuntz.

"Onde será que eles botaram as cópias desse livro?" — pensou Kuntz.Ficou acariciando Pancho e tentando achar a solução."Talvez estejam debaixo do travesseiro do gordo. Vou verificar."Kuntz caminhou para a cama do gordo. Na mesinha de cabeceira de

Bolachão havia um prato com sete brigadeiros.Kuntz adorava brigadeiro: tirou um brigadeiro do prato e comeu.Pra quê meu Deus!Começou a soar uma sirene, um gravador começou a gritar Pega

Ladrão!, um outro gravador tocava uma marcha de carnaval, um outro

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gravador reproduzia a risada de uma hiena, um outro um lobo uivando, luzes de todas as cores começaram a piscar, bombinhas explodiam, um urubu saiu automaticamente da gaiola, dez baratas pularam de uma caixa em cima de Kuntz.

É que, como o mordomo costumava invadir de noite o quarto de Bolachão para pegar brigadeiro, o gordo resolvera preparar uma armadilha. Colocou o prato de brigadeiros sobre uma balança ultra-sensível, ligada ao sistema de alarme geral. Enquanto o gordo estava acordado, ele desligava a balança e comia os brigadeiros. Quando sentia o sono chegando, ligava a balança, de modo que a mínima diferença de peso destrambelhava o alarme.

Apesar de sua experiência guerreira Kuntz ficou confuso.Bolachão acordou e, pensando que era o mordomo, começou a gritar:— Abreu vigarista! (Abreu era o nome do mordomo). Abreu ladrão-de-

brigadeiro! Abreu vigarista! Abreu-que-não-paga-o-que-deve! Me devolve meus dez mil e quinhentos! Eu quero meus dez mil e quinhentos! Abreu disgramado! Vai comer brigadeiro na casa da tua mãe! Abreu vigarista!

Tudo na vida é psicológico. Se o gordo soubesse que estava diante de um alemão perigosíssimo, não sentiria nenhuma valentia, mas pensou que era o Abreu e atacou Kuntz feito um furacão.

Deu um pulo da cama e, enquanto Kuntz tentava tirar uma barata peluda da boca, o gordo mandou-lhe uma cabeçada na boca do estômago, uma cotovelada no olho, uma dentada na mão, uma unhada no nariz e continuava xingando o Abreu:

— Eu quero os dez mil e quinhentos! Abreu vigarista!O cérebro do alemão estava paralisado: lobo uivando, bomba estourando,

a sirene, tantas luzes piscando, as baratas, o urubu, um gordinho exaltado cobrando dez mil e quinhentos dele, e, em briga, quem pára um segundo de agir e quer pensar, esse é o que apanha.

Ainda mais que o mordomo apareceu na porta, com a cabeleira enorme cobrindo toda a cara, porque levantara da cama, não se via a cara dele, só cabelo, e, com essa mania de ser diferente, vestia um pijama roxo com dragões fosforescentes desenhados, parecia um monstro saído das profundezas de um filme de Drácula, e deu de gritar também.

— Não permito que me chamem de vigarista! O gordo respondeu:— Não adianta você se dividir em dois que você não me engana.E cortou a orelha de Kuntz com o afiadíssimo corta-papéis. O último

pensamento de Kuntz, logo depois de ver sua orelha cair no carpete, foi:— Tá tudo doido!Saiu correndo, tropeçou no urubu, deu um grito, levantou de novo, pulou

a janela e sumiu.

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Capítulo 13

Papoulos Scripopulos e Mathias esperavam Kuntz em São Miguel Paulista, na Fábrica de Macarrão. Kuntz chegou.

— Onde estão os vinte capítulos? — perguntou o grego.— Mim non ser Abreu. Mim ser Kuntz. Mim querrer brigadeirra. Gorda

non deixar mim querrer brigadeirra. Gorda bater em mim, me fazer engolir barrata e cortar o meu orrelha. Mim non ser Abreu. Mim ser Kuntz.

— Parece que ele está louco — falou Mathias. — E tiraram a orelha dele mesmo.

— Deu problema de dupla personalidade nele, Mathias.— Mim non ser Abreu — falou Kuntz.— Não adianta, chefe — falou Mathias. — Esse alemão endoidou.

Parece que viu fantasma. Vamos embora.— Espere um pouco — disse o grego. — Tenho uma pílula

antineurótica. O Kuntz é forte. Vou dar-lhe a pílula, um copo de água com açúcar e ele cura já do susto que levou. Os problemas de infância é que desviam a personalidade, Mathias. Um susto só, isso cura depressa.

Papoulos Scripopulos deu a pílula antineurótica para Kuntz, um copo d'água com açúcar, Kuntz sentou, o olhar voltou ao normal, recomeçou a falar direito.

— Fiquei confuso — falou Kuntz. — Agora entendo o que aconteceu. Um alarme geral ligado numa balança, coisa de criança. Estou prevenido. Volto lá e cumpro minha missão.

O grego se animou e disse:— Ótimo. Nós esperamos aqui. Mas não falhe de novo. Kuntz sorriu e

disse:— Não tem perigo. Os vinte primeiros brigadeiros que você pediu

estarão aqui num instante. Como eu comi um, são dezenove agora. E tenho que pagar dez mil e quinhentos para o gordo. Será que ele aceita cheque especial?

O grego e Mathias viraram as costas e voltaram desanimados para o apartamento do Morumbi.

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Capítulo 14

Papoulos Scripopulos e Mathias subiram ao apartamento do Morumbi, que ficava no 45.° andar.

Era de madrugada, a neblina cobria São Paulo.— Estou deprimido, Mathias. Não tenho sono. Vamos tomar um Martini

no bar da sala.Sentaram nas banquetas do luxuoso bar da sala, o grego acendeu um

charuto cubano e fixou seus astutos olhos negros na fumaça que levantava da ponta do charuto.

— Eu tinha um pressentimento. Mathias, eu desconfiava, Mathias, esse gordo é o demônio. Tudo ia tão bem até que fomos mexer com o gordo. Não sei o que esse gordo tem, ele dá uma surra num alemão guerreiro, tira a orelha dele, solta urubu em cima dele, e o desgraçado do alemão, em vez de ficar com raiva, ainda quer ir lá pagar dez e quinhentos para o gordo.

— Estou pensando uma idéia, chefe.— Minha única idéia é contratar um pistoleiro para matar o gordo,

Mathias. O gordo fica boiando na piscina, sobre o colchão de ar. Com um fuzil de mira telescópica é alvo fácil. Sem o gordo aquela turma não tem cabeça, não teríamos mais problemas.

— Acho outra coisa, chefe. — Use a sua gatinha.— Brilhante idéia, Mathias. Vamos dormir.Na manhã seguinte o grego acordou bem disposto, fez a barba com

navalha, fez a ginástica matinal para evitar barriga, deu um cooper no bosque do Morumbi, tomou banho de sol na cobertura, telefonou para a Escola Três Bandeiras, mandou chamar a Jandira e convidou-a para jantar no Terrazza Itália.

Pela tarde assistiu no telão o vigésimo segundo capítulo do livro de Berenice, que foi automaticamente impresso pelo computador acoplado.

Às nove da noite Papoulos Scripopulos botou um discreto perfume masculino atrás da orelha e nos punhos, barbeou-se de novo com a navalha, entrou no carro bege-equatorial e pegou a professora Jandira no apartamento dela, um duplex nos Campos Elíseos, comprado pelo Sistema Financeiro da Habitação.

Jandira estava vampira, de negro, brincos de ouro, cabelos em cascata e um colar de pérolas.

Papoulos Scripopulos estacionou na Avenida Ipiranga, esquina São Luiz, deu uma gorjeta ao manobrista e subiram ao último andar do Edifício Itália no rapidíssimo elevador.

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Sentaram na mesa; as luzes de São Paulo, desta vez sem neblina, brilhavam lá embaixo.

— Sinto vertigem — falou Jandira. — Tenho vontade de me atirar lá embaixo.

— É a atração do abismo — falou o grego. — Todos nós temos um pouco disso.

— Mas eu tenho demais — falou Jandira. — Quero comer um prato leve, senão embrulha o estômago.

— Não espere comida excepcional — falou o grego. — O Terrazza Itália é um restaurante meio cafona, meio classe-média, olha lá aquela mesa de bancários cantando parabéns a você. Mas eu gosto, é bem paulista, tem duas orquestras se revezando e o panorama é inigualável. Você continua com vertigem?

— Continuo — falou Jandira.— O que me dá vertigem, Jandira, é a alta literatura Por mais Terrazzas

Itália que os homens façam, por mais viagens interplanetárias que realizem, isto nunca chegará aos pés da literatura. A literatura é a única coisa que nos liberta da estupidez humana.

— E daí? — perguntou Jandira.— Daí resolvi roubar o livro da Berenice e publicá-lo em meu nome.Jandira levou um susto de ouvir uma desonestidade falada tão seca.Mas o grego era experiente. Sabia que a professora Jandira, embora

tivesse um fundo bom, era subornável, louca por diamantes e apaixonada por luxo.

Tem horas que, para subornar os outros, a gente tem que ficar dando voltinha, dando indireta, pisando mansinho, e tem horas que é preciso ir de rojão.

Todo sujeito que já subornou um guarda, para evitar uma multa, sabe dessa variante.

Nos altos negócios é a mesma coisa.Jandira respondeu, pálida de raiva:— Papoulos, isso é um crime.— É lógico que é um crime — disse o grego. — Desde quando roubar

livros dos outros não é crime? É crime sim. Crime da silva. E preciso de sua ajuda.

— Nunca — falou Jandira. — Isso me enoja.A mão de Papoulos Scripopulos abriu-se e dois magníficos diamantes

rolaram na mesa, na direção da professora Jandira.A mesa dos bancários ribombou num pique-pique em homenagem ao

aniversariante.Os diamantes, igual duas bolinhas de bilhar, passaram ao lado do prato

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de trutas de Campos do Jordão, foram para a borda da mesa, iam cair no chão, Jandira olhava a trajetória, lembrando da letra daquele samba que o Chico Alves cantava:

Quem somos nósQue vivemos entre o malE o bem

A mão trêmula da Jandira agarrou os diamantes na ponta da toalha.— Que devo fazer?— O Godofredo é maluco por você, Jandira. Se você pedisse ele traria a

cabeça da mãe degolada, numa bandeja, enfeitada com rodelas de abacaxi.— Você quer usar criança?— Quero — falou o grego. — Faça um charminho para o Godofredo,

prometa que o amará e dê-lhe este anel com microfilme para ele fotografar os primeiros vinte capítulos do Ninguém Faz Minha Cabeça. Ele é da turma, será fácil.

A orquestra tocava uma romântica e melosa música italiana de Domenico Modugno.

Papoulos Scripopulos tirou Jandira para dançar, caminharam entre as mesas de mãos dadas, entraram na pista redonda em frente à orquestra, o braço direito do grego enlaçou a cintura finíssima de Jandira e dançaram paradinho, de rosto colado feito dois pombinhos.

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Capítulo 15

Na manhã seguinte a professora Jandira continuou suas aulas sobre literatura.

— Um francês chamado Marcel Proust dizia que não adianta o autor ficar pesquisando o livro fora de si. Ê dentro de si que está o livro de cada escritor. Basta ver Monteiro Lobato, passou a vida olhando lá fora e só aos cinqüenta anos olhou para dentro dele e tornou-se um gênio, inspirado nas emoções que guardara da infância.

Mariazinha protestou, dizendo que Jandira defendia um ponto de vista burguês e subjetivo da literatura.

O gordo, como sempre, nem ouvia. Aproveitava a aula para fazer negócios, trocando peixes, que trazia dentro de bolsas de plástico com água, ou trocando selos com outros alunos, sempre levando vantagem, lógico, que o gordo não era português para fazer negócio empatado. O Biquinha pagava ao ganhador o resultado do bolão de domingo, retendo 10% de comissão como taxa de organizador.

O sinal tocou, os alunos foram saindo da classe e indo para casa.Godofredo, como de costume, acompanhou a Jandira até o carro dela.Acompanhava por acompanhar, por bestice de apaixonado. Sabia ser

irrealizável sua paixão pela professora.Levou um susto quando Jandira falou:— Godô. Gototrinho. Quer que eu te leve para casa de carro?Godofredo perdeu o resto da naturalidade que já não tinha e, pálido e

mudo, entrou no carro da professora.Jandira engatou a primeira, o pezinho dela que usava sapatilha vermelha

tocou o acelerador, e o carro foi andando, saindo fora da nervosa buzinação das mães que vão buscar filho em porta de escola.

Foi Jandira quem falou:— Gototrinho. Eu te acho um pão. Eu te acho um avião.— Então por que não me dá bola? Por que casou com Ship 0'Connors?

Por que anda se esfregando nesse grego?— O regulamento da escola proíbe que professora namore aluninho —

falou Jandira. — A escola, Gototrinho, é o aprendizado da hipocrisia cultural. Mas Gototrinho, escute uma coisa: regulamento nenhum, lei nenhuma podem mudar o coração da gente. Eu te amo.

Dizendo isso, largou o volante, abraçou Godofredo e deu-lhe um beijo na boca.

Godofredo via o arco-íris, via a Via Láctea, agradecia ao Criador.

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O beijo foi tão chupado que a Jandira engoliu um dente de leite do Godofredo, que estava meio bambo.

"Pô" — pensou Jandira. — "Namorar criança dá nisso, a gente acaba engolindo dente de leite."

Pararam um pouco para respirar e o Godofredo pediu outro beijo.— Não — disse Jandira. — Outros virão, vamos casar, vou te trazer café

na cama, mas tem uma condição.— Farei o que você pedir — disse Godofredo.— Estou escrevendo um trabalho sobre a literatura brasileira nos anos

oitenta — falou Jandira. — Preciso dos primeiros vinte capítulos do Ninguém Faz Minha Cabeça.

— Por que não pede direto para a Berenice?— Quero fazer uma surpresa para ela. Se contar antes estraga tudo. Já

imaginou a alegria da Berê lendo um trabalho meu, publicado no jornal, elogiando o livro dela?

Jandira deu o anel para Godofredo e explicou como devia usar a minicâmera que estava dentro para fotografar os capítulos. Godofredo topou. O plano estava dando certo.

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Capítulo 16

Godofredo, de tão emocionado, nem almoçou direito. Ficou olhando o prato, esquecido de tudo, pensando na professora Jandira. A mãe falou:

— Que cara é essa, meu filho? Você viu o bicho-papão?— Não, mãe. Eu beijei a onça encantada.De tarde, chegou na casa do gordo, com o jeito vitorioso do bandeirante

que descobriu as Minas de Prata, embora com um peso na cabeça de estar traindo a turma.

Ou a turma ou a mulher, problema dilacerante que se antecipava a Godofredo e que ele resolveu como todo mundo: a mulher.

Berenice, com a esferográfica, pensava e escrevia, amassava papel, escrevia de novo, Hugo Ciência dava conselhos literários, Sílvia corrigia a ortografia, Mariazinha, debruçada sobre a prancha, desenhava e coloria, Edmundo esperava o capítulo para datilografar, Biquinha, Zé Tavares e o mordomo jogavam bola com o Pancho, o gordo boiava no colchão de ar, enfim, aquilo de sempre.

Para matar o tempo, antes de receber o capítulo, Edmundo ia escrevendo a biografia da Berenice, para sair nas últimas páginas do livro, depois do FIM, junto com a fotografia dela.

Edmundo escreveu:

BIOGRAFIA DA AUTORA

Berenice da Fonseca

Nasceu em São Paulo há dez anos atrás. Fez o prezinho na Escola Três Bandeiras. Fez o pré-primário na Escola Três Bandeiras. Está no quinto ano da Escola Três Bandeiras. Ajudou o gordo e a turma a descobrir o mistério do Gênio do Crime, a desbaratar a quadrilha do Sangue Fresco e a acabarem com a farofa do Professor Giovanni, no Caneco de Prata.

Vida Sentimental Primeiro namorado: Bolachão. Segundo namorado: Biquinha. Terceiro namorado: Bolachão. Quarto namorado: Alcides. Quinto namorado: Bolachão.

EstatísticaPercentagem a favor do gordo: 60%Maiores amigas Sílvia e Mariazinha.Maior inimiga Mãe do gordo.Signo

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Balança (23/9 a 22/10).Horóscopo do diaA Lua vibra harmoniosamente em Libra marcando um bom dia para

você se fortalecer por dentro. Marte numa linha declinante sobre Júpiter significa criatividade e espontaneidade. Por uma singular inversão astral (Saturno e Plutão) as verdades de hoje serão mentirosas e as mentiras verdadeiras. Só acredite nas mentiras. Cuidado com o número 8. Não atenda o telefone. Capte os fluxos' do sol. O homem de sua vida está viajando de trem. Cultive o otimismo e acredite na intuição. Não perca o pique. Manhã vegetal. Conjugue o verbo telegramar.

Livros publicadosNinguém Faz Minha Cabeça — 1.ª edição

Como Edmundo batia à máquina, a biografia da Berenice foi aparecendo no telão da casa de Papoulos Scripopulos.

— Que porcaria — disse o grego. — Mathias descompute a impressão dessa biografia. O livro é meu. Compute a minha biografia.

Mathias descomputou a biografia da Berenice e escreveu no telão a biografia do grego, que principiava aos sete anos, quando furou o ouvido da mãe com saca-rolha e riu depois.

O grego gritou lá da poltrona:— Mathias. Apague essa barbaridade.— O chefe vive dizendo que ter bom caráter não é critério para avaliar o

escritor, que grandes gênios foram traidores, egoístas e ruins.— O que eu falei está certo, Mathias. Mas o problema agora é vender o

meu livro. É preciso dar uma imagem do escritor que o público aceite. Diga aí que sou a favor de todas essas manias que estão na moda. Não se esqueça sobretudo, Mathias, ah, não se esqueça de dizer que eu saio pela Mangueira. Isso dá uma imagem fortíssima.

Na casa do gordo, Godofredo pediu a cópia dos primeiros vinte capítulos.

— Você já leu — falou Edmundo.— Sigo o conselho do Alceu Amoroso Lima — respondeu Godofredo.

— A terceira leitura que é a principal.Godofredo levou as cópias para um canto, fingiu que lia, enquanto

fotografava os capítulos.Depois se despediu e levou os filmes para Jandira que prometeu casar

com ele no fim do bimestre.Jandira entregou ao grego.Papoulos Scripopulos estava com o livro completo até agora. O resto iria

passar no telão, o computador imprimindo dois milhões de volumes pelo

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sistema acoplado.O grego estava feliz.Mathias alisou o bigodinho, virou para Papoulos Scripopulos e falou:— É isso aí, meu chapa, eu sempre disse, eu sempre falei: mulher

brasileira não é alemão. Mulher brasileira vai lá e faz.

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Capítulo 17

Os dias passaram, Berenice escrevendo um capítulo por dia, o computador do grego chupando e imprimindo, e chegou o aniversário da Berê.

A mãe do gordo andava afobada na cozinha, dando ordens a cozinheiras e copeiras, tratando das nozes fingidas, das cocadas, dos fios de ovos, das tortas de maçã e de morango, dos biscoitos de nata, dos quindins, dos papos de anjo, pavês de chocolate, olhos de sogra, tâmaras recheadas, bolo de amêndoa, gelatinas, salgadinhos, refrescos, queijos, de tudo.

— Imagine. Essa Berenice da Fonseca resolve ser gênio na minha casa, se aboleta aqui, faz acampamento aqui, toda tarde, por causa desse livrinho, e agora cisma de comemorar o aniversário dela aqui. Já se viu?

— Não é culpa dela, bem — falou o pai do gordo. — Foi o Bolacha quem ofereceu. A Berenice mora num apartamento pequeno, não ia caber tanto convidado.

A mãe do gordo continuou protestando e fazendo doce, protestando e fazendo bolo, no que se revelava melhor que muita mãe aí que só protesta e não faz nada.

O mordomo se engalanara: tomou uma ducha, esfregou-se com esponja felpuda, lavou o cabelo com xampu, espalhou creme rinse para ficar bem soltinho, calçou um tênis verde-musgo, pôs sete correntes no pescoço e vestiu a camisa listrada do Juventus de Turim, a das grandes ocasiões, com as assinaturas do Paolo Rossi, do Platini e do Boniek.

O gordo é que ao chegar da escola teve uma surpresa chata: o termostato do aquário grande destramelou e a temperatura subiu demais. Encontrou todos os peixes mortos e cozinhados.

O gordo olhou aquilo, pegou na mão o cadáver do Molinésia Branco dos Alpes, que havia comprado ontem, e chorou uma lágrima.

Só mesmo um aquarófilo fanático é que pode avaliar a tristeza que o gordo sentiu.

Pelas três da tarde os convidados foram chegando.Seu Tomé, gordo e careca, foi o primeiro a abraçar Berenice.— Parabéns, minha boa menina. Dez anos, hein, um pé na infância e um

pé na vida.— Como vai sua fábrica de figurinhas de futebol? — perguntou

Edmundo.— Não faço mais figurinhas de futebol, meu bom menino. A criançada

não se interessa mais por esse jogo. É muito lento, demorado, demora para

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sair gol. As crianças querem coisas eletrônicas ou espaciais, é a moda, sair do planeta, fuçar pelo espaço. Por isso faço figurinhas de aventuras espaciais e jogos eletrônicos. Isso que criança quer.

Chegaram o Alcides, a Nádia, o Paulo, a Simone e a Vera Xavier, junto com a turma do gordo.

Redimir, o cozinheiro baiano, com a naturalidade espantosa dos baianos, conversava em todas as rodinhas.

— Dez anos, lá no sertão da Bahia, é idade de casar — falou Redimir para Berenice. — Aproveite os doces, garre no gordo e eu chamo um padre.

— Padre não vai faltar — falou Berenice, rindo. — O frade João vem aí.O cambista do Largo de São Bento apareceu, acompanhado dos filhos.— Que que você está vendendo de proibido agora? — perguntou Pituca.— Um tempo vendi numerada falsificada na porta do Morumbi. Depois

andei passando maconha na porta das escolas, mas aí deu cana brava e o delegado me convenceu que prejudicava a saúde das crianças. E eu não sou homem pra isso. Agora estou vendendo micos e papagaios no viaduto do Chá, que eu compro de um caçador do Pantanal de Mato Grosso. O negócio é bom mas a turma da ecologia já começou a cismar comigo. Seu Tomé é que tem razão: o ramo hoje está para coisa eletrônica. Por falar nisso, tenho aqui um mini-relógio, com pilha de quartzo, que dura cem anos, e um mostrador com oitocentos jogos eletrônicos. Está baratinho. Quem vai querer?

Zé Tavares comprou o relógio com pilha de quartzo contendo oitocentos jogos eletrônicos.

— O jogo não acendeu — falou Pituca, olhando o Zé Tavares mexer aflitamente no relógio. — E a hora não marca.

— Esse relógio precisa acostumar com a carga elétrica do corpo do dono — falou o cambista. — Amanhã ele funciona.

Frade João entrou no jardim, todo enorme, numa batina marrom nova, trazendo uma pequena cruz de mogno que ele mesmo fabricou na carpintaria da missão, e deu de presente para Berenice.

— Essa cruz é para você enfiar no nariz do gordo quando ele te contrariar — falou o frade, abraçando e levantando Berenice no ar. — Você sabe que considero, a batina e a cruz armas de defesa e de ataque também.

— Resolveu o problema com o diretor da FUNAI que estava prejudicando os índios? — perguntou Mariazinha.

— Resolvi sim. Atirei ele no Amazonas mas as piranhas acharam a carne dele ruim. Tive que pôr um molho de pimenta no diretor da FUNAI para elas comerem. Mesmo assim tiveram indigestão. Me arrependi. Diretor da FUNAI polui mais o rio Amazonas do que mancha de petróleo.

O garçom chegou perto do frade com uma bandeja. O frade gritou:

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— Pela Virgem da Fátima! Pelo Santo Graal! Servir uma empadinha para mim? Uma empadinha! E um queijinho! Vocês acham que viajei dois mil quilômetros para comer empadinha?

O mordomo providenciou um pernil e vinho tinto para frade João, que rejeitou os talheres e comeu o pernil segurando o osso com a mão e limpando a gordura da boca com a ponta da batina nova.

A professora Jandira, elegantíssima, esportiva, começou a discutir o problema da mesada semanal com o pai do gordo.

— Professora Jandira — disse o pai do gordo. — A senhora acha que a mesada deve ser dada no sábado ou no meio da semana?

— É um problema insolúvel — respondeu Jandira. — Se vocês dão a mesada no sábado, eles gastam no domingo e pedem mais na terça-feira. Se dão na terça-feira eles gastam até sexta e pedem mais no sábado.

Até Ship O'Connors e o anão Gênio do Crime tiveram licença para sair da cadeia e ir à festa, algemados, cada um escoltado por dez guardas.

Hugo Ciência jogava xadrez em latim, sem tabuleiro, com o Gênio do Crime.

Papoulos Scripopulos trouxe um diamante para Berenice.O grego evitava chegar perto da professora Jandira para Godofredo não

ficar com ciúmes e delatar o roubo dos capítulos.— Ainda está de pé sua promessa de casar comigo no fim do bimestre?

— perguntou Godofredo para a professora Jandira.— Só se você não ficar de recuperação — respondeu. — Não caso com

vagabundo. E tira a mão do meu joelho seu sem-vergonha, tem gente olhando.

Mister John Smith Peter Tony aterrisou o helicóptero azul no gramado.O famoso detetive escocês, sempre de olhos azuis e paletó multicolorido,

beijou Berenice.— Trouxe para você uma boneca escocesa que chora, fecha o olho e faz

pipi. Com enxoval completo — falou o Mister. — As meninas crescem, aparecem brinquedos modernos, mas a boneca é eterna, para qualquer idade da mulher.

— Que maravilha — falou Berenice. — Essa boneca vai enfeitar muito bem meu quarto. Adoro bonecas, Mister, você acertou.

O gordo andava pelo meio da festa, distraído, sem prestar atenção em nada. O Mister chegou nele e falou:

— Descobri o culpado da morte de seus peixes. É o mordomo, aquele ali, cabeludo e de tênis. Sou testemunha. Vi e filmei. Tenho o vídeo-cassete no bolso, ele destramelando o termostato.

— Como entrou em casa? — perguntou o mordomo, tremendo.— Me disfarcei de pai do gordo — falou o Mister. — Sou perfeito em

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disfarces. O gordo negou mil e duzentos para você e você se vingou.— O que é pouco cristão — disse o frade. — Pena que esse mordomo

seja tão simpático, se não eu dava uma surra nele já. É impossível ter raiva dele. Tem gente que nasce assim: vive fazendo besteira e ninguém castiga. Já outros levam uma vida impecável, como anjos, e na primeira besteirinha o mundo se levanta contra eles.

— É como esse tal de Henry, o correspondente filatélico do gordo — falou o Mister. — Sempre foi bom cidadão, ótimo pai, esposo amantíssimo, herói de guerra, ajudava os pobres, só assassinou uma velha e eu prendi. E recuperei o selo da velha no quarto do gordo.

Tirou do bolso o One Penny Black do gordo e mostrou.O gordo ficou acabrunhado. Num dia só perder os peixes e o selo de sua

vida! O Mister deu um tapinha nas costas do gordo e falou:— Vamos lá, heia, ânimo seu gordo. A vida não é só selos e peixes. A

vida é uma aventura diversificada.— Você está falando português sem sotaque. — disse Berenice para o

Mister.— Namorei muitas turistas brasileiras — disse o Mister. — A coisa

melhor para a pronúncia é namorar. Vocês brasileiros e brasileiras não imaginam como estão perdendo tempo namorando entre vocês: um vive pronunciando o que o outro já sabe.

As meninas foram jogar voleibol no gramado.Nádia sacava Jornada nas Estrelas e Simone sacava Viagem ao Fundo do

Mar.Para quem gostava de apostar, tinha rinha de galo de briga, promovida

pelo cambista, um divertimento apaixonante que provocou protestos de uma tia do gordo, diretora da Sociedade Protetora dos Animais; corrida de grilo, promovida pelo Redimir, e uma aposta sensacional, que foi o braço de ferro entre o frade João e Mister John. Fazia meia hora que os dois estavam vermelhos, dando toda força, e o braço deles não saía do lugar, o que fazia as apostas subirem.

Comia-se e bebia-se fartamente.O mordomo fazia mágicas, tirando pombos e avestruzes dos ouvidos das

pessoas; Biquinha no Ovation, acompanhado por Godofredo na bateria, Edmundo na flauta, o pai do gordo no contrabaixo e o Zé Tavares no violino, faziam o som, perto da lavanderia.

Quem apreciava literatura podia ouvir Papoulos Scripopulos, recitando o canto XXII da Ilíada, o da briga fantástica entre Aquiles e Heitor, as pancadas, a correria e os xingamentos dos dois em volta dos muros de Tróia.

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"Assim como um astro caminha entre os astros durante o curso da noite — Vésper, o mais belo dos astros que há no céu — assim brilhava a ponta agudíssima que brandia Aquiles na mão direita, execrando o divino Heitor e considerando-lhe a formosa pele, para ver onde cederia melhor".

Alcides, bonitão, o cabelo encaracolado, rondava Berenice, querendo encantá-la e voltar o namoro de novo. Alcides estava irresistível.

— Olha lá — disse a mãe do gordo. — Olha lá a cigana da Berenice. Já está toda risonha, se desmanchando para aquele Alcides. Eu disse para você, Marcelo, a Berenice não presta.

O pai do gordo parou de tocar o contrabaixo e falou:— Acho que você tem razão. Desta vez eu te dou razão. A Berenice está

conversando muito pertinho do Alcides.— E estão entrando no bambuzal de mãos dadas. O" gordo também

observa aquilo.— Hoje perdi peixe, perdi selo, mas a Berenice é que não!— exclamou o gordo.O gordo pegou no afiadíssimo cortador de papel, levantou-o no ar, e tal

Aquiles contra Heitor, partiu na volada para cima de Alcides.Alcides ficou apavorado, não só pelo cortador de papel, mas pela

ferocíssima cara do gordo, e fugiu para a rua pela porta principal.Vendo a fuga do rival, o gordo voltou para a festa. Alcides tentou entrar

de novo pela porta de serviço, mas o Pancho estava de guarda, rosnou e não deixou.

Alcides falou:— Esse gordo joga sujo. Ê cortador de papel, é cachorro. Assim bradou

o despeitado amante.E, ficando mais vermelho e mais colérico, gritou:— Não é assim que se conquista uma mulher!O vigia da casa do gordo deu uma paulada na cabeça de Alcides e disse:— Não fique fazendo frase de efeito, mocinho. Alcides caiu desmaiado

na calçada.Experientes carpinteiros mandaram parar o jogo de vôlei e, num instante,

ergueram um altar no gramado, tendo ao fundo uma cruz de marfim.Todos se ajoelharam e frade João subiu ao altar e fez a oração católica

em homenagem e bênção aos dez anos da Berenice.Assim falou o frade com sua possante voz:— Deus, bom Deus, fazei com que todos os demônios do mundo se

encarnem sobre aquele que entristecer ou roubar esta bela e inteligente menina que hoje completa dez anos. Que aquele que a entristecer vá para o inferno chamejante e sofra durante milhões de anos a tortura dos pecadores:

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ser chamuscado a cada segundo por espetos em brasa, nos olhos, no sovaco, na planta do pé, no céu da boca. E a carne nunca cicatriza, permanece sensível como a de uma criança, o pecador nunca desmaia, nunca morre, nunca dorme, não conversa com ninguém, e a dor vai aumentando, o fogo vai queimando. O pecador sabe que essa tortura nunca irá terminar. Nunca! Sempre sofrer, nunca deixar de sofrer, pela eternidade afora. Nenhuma esperança! A sentença foi dada! A dor doendo sempre mais. E nem enlouquecer poderá o pecador. Ficará sempre lúcido e sensível. Pedirá perdão e o perdão não virá. A sentença foi dada!

O frade falava bonito, com ênfase, soltava e segurava as frases conforme o momento, acompanhava a oração com gestos terrificantes, os olhos flamejando.

Papoulos Scripopulos não agüentou:— Mathias, sinto que vou desmaiar. Juro que não acredito em inferno,

mas esse frade fala muito bem, está me convencendo.Saiu correndo da festa e, chegando ao apartamento do Morumbi, foi ao

bar da sala e tomou uma cervejinha gelada que nunca alguém achou tão gostosa.

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Capítulo 18

A algazarra da festa estava grande, mas chegou cinco horas e a Berenice falou:

— Vou escrever mais um capítulo. E sentou na beira da piscina.— Você não vem soprar as velas do bolo? — perguntou Sílvia.— Depois do capítulo, tem tempo.Bolachão e Hugo Ciência foram mexer no computador doméstico do

gordo.Hugo Ciência envenenou o computador do gordo, pacientemente,

mexendo nas peças, e conseguiu um efeito especial da Berenice dançando em meio a quatrocentos milhões de cores diferentes.

Cores lindas e nunca vistas apareciam no vídeo do computador.— Computei uma nova subdivisão de cores — falou Hugo Ciência.— Ela vai gostar — disse o gordo.— Tem este sintetizador de som que eu acoplei ao computador — falou

Hugo Ciência. — Reproduz uma sinfonia de um bilhão de acordes e harmonias superpostas por segundo. Esse presente ficou bom.

Hugo Ciência ligou o sintetizador e foi aquela loucura no vídeo, a Berenice dançando, seguindo o ritmo, dando saltos eletrônicos vertiginosos, rodopiando o corpo fantasticamente, tantas cores, tantos sons, a casa do gordo tremia, uma porção de vidraças e copos quebraram com a vibração.

Lá na piscina a Berenice terminou o capítulo e Edmundo começou a datilografar.

Como sempre o capítulo ia aparecendo no telão do computador do grego.E, de repente, o capítulo começou a aparecer também na telinha do

computador doméstico do gordo.— Puxa — falou Hugo Ciência. — Envenenei tanto esse seu computador

que ele ficou supersensível. O Edmundo bate à máquina lá e sai aqui.— Negativo — disse o. gordo. — O máximo que o meu computador

poderia pegar seriam os sons das batidas das teclas da máquina do Edmundo.— É mesmo — falou Hugo Ciência. O gordo pensou um pouco e falou:— Para transformar esses sons em palavras escritas tem de haver um

computador pirata instalado no jardim, interpretando os sons das batidas das teclas e transmitindo os capítulos do Ninguém Faz Minha Cabeça.

— Estão chupando o livro da Berê! — exclamou Hugo Ciência.— Exato — disse o gordo. — Você envenenou o computador e botou ele

na freqüência do transmissor pirata. Alguém, em algum lugar, está recebendo a transmissão e querendo publicar o livro da Berenice como se

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fosse dele.— Vamos procurar o computador transmissor pirata no jardim — falou

Hugo Ciência.— Negativo — disse o gordo. — Não quero que o bandido desconfie,

quero pegá-lo em flagrante. Se interrompemos a transmissão, o bandido fica sabendo que descobrimos o truque dele. Tenho outra idéia.

— Diga.— Outra noite entrou em meu quarto um fulano. Pensei que fosse o

Abreu mas não era. Devia ser um capanga do bandido querendo roubar os primeiros capítulos do livro. Cortei a orelha dele.

— E daí?— Tenho a orelha do sujeito guardada na geladeirinha do meu quarto.— Uma orelha na geladeira! — exclamou Hugo Ciência. — Parece filme

de terror. Por que guardou a orelha?— Pensei que fosse do Abreu, fiquei com pena, e pus na geladeira para

ser feito um reimplante no dia seguinte. Depois esqueci ela lá.O gordo abriu a geladeirinha ao lado da cama, cheia de Coca-Cola,

Danone, iogurte, maçã, melão, sorvete, morango, leite e tirou a orelha de lá.Pôs dois dedos na boca, assoviou forte e logo o Pancho apareceu.— Faço o Pancho cheirar a orelha e o Pancho nos leva ao sujeito —

disse o gordo. — O Pancho tem o melhor faro do mundo.Hugo Ciência riu e disse:— Meu avô sempre repete um ditado: Guarda o que não queres e terás o

que precisas. Tá aí.O gordo fez o Pancho cheirar a orelha e, com gestos e mímicas, ordenou

ao cachorro que os levasse até o dono da orelha.O Pancho ficou fogoso, pulou a janela, por onde Kuntz saiu, cruzou o

jardim e foi para a rua.Hugo Ciência e o gordo foram seguindo, precisavam correr, o Pancho

tinha o passo largo, ia cheirando o chão, dobrava uma esquina, fungava, ia, voltava, achava o rumo e continuava.

O Pancho começou a subir a Rebouças, virou à direita, entrou na Avenida Paulista, alargou o trote, via-se que tinha certeza aonde ia, o gordo suava, as banhas tremelicavam, era difícil seguir o Pancho, o Hugo Ciência, que era um pensador e não fazia esporte, foi ficando roxo, foi ficando verde, e teve um enfarte em frente ao McDonald's.

Hugo Ciência, deitado no chão, balbuciou:— Tive um enfarte, gordo. Me faça uma respiração boca-a-boca.— Misturar cuspe com cuspe, beijar homem — disse o gordo. — Eu,

hein?Dizendo isso Bolachão abandonou Hugo Ciência lá e continuou

Page 58: João Carlos Marinho - O livro da Berenice

seguindo o Pancho que já estava longe, sempre cheirando o chão.Felizmente um pedestre sentiu o drama, chamou uma ambulância e Hugo

Ciência foi levado para o hospital.Pancho desceu a Avenida Liberdade, entrou pela Praça João Mendes,

desceu a Celso Garcia e foi indo, era bem de noite, chegou a São Miguel Paulista e parou em frente a um prédio que tinha a placa:

FABRICA DE MACARRÃO SCRIPOPULOS

Bolachão olhou para a placa e pensou:— Aquele grego. Aqui, na certa, mora o capanga que esteve em meu

quarto. O capanga não interessa. Amanhã procuro o endereço do grego na lista telefônica e vamos pegar ele em flagrante, na casa dele, ao crepúsculo, na hora em que estiver chupando o livro da Berê.

O gordo chamou um táxi, enfiou o Pancho dentro, deu um biscoito para o cachorro e voltaram para casa.

Todos estavam dormindo, era de madrugada.Em cima do travesseiro, o gordo achou um bilhete da Berê escrito assim:

"Nunca te perdoarei por não estar presente na hora que assoprei as dez velinhas do meu bolo."

O gordo leu o bilhete, cocou a cabeça, pôs o pijama, entrou na cama e dormiu, cansadíssimo.

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Capítulo 19

Na manhã seguinte a professora Jandira, bela e formosa, com dois brincos de diamante, continuou suas aulas de literatura.

— O navio com que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil é inferior a um navio de hoje; um automóvel ou uma máquina fotográfica do século passado são ridículos comparados aos de hoje, mas a literatura não progride. A experiência acumulada da humanidade, que faz progredir tudo, não faz progredir a literatura.

— E as novas técnicas literárias? — perguntou Hugo Ciência, já operado do coração e com duas pontes de safena. — E Joyce, e Oswald de Andrade, e Guimarães Rosa, e Clarice Lispector, e os concretistas?

— As novas técnicas são maneiras diferentes de usar a língua ou os temas — respondeu Jandira. — Diferença não é progresso. As grandes obras escritas antes do Brasil ser descoberto, assim como as grandes obras escritas atualmente, são coisas completas em si, permanecerão atuais para sempre.

O sinal tocou, na calçada a Berenice fez uma cena, xingando o gordo porque ele abandonou a festa de aniversário e não deu nenhum presente para ela.

— Larguei a festa por um motivo importante que eu te conto hoje à noite — disse o gordo. — Mas o presente eu e o Hugo Ciência fizemos. Preparamos um vídeo-cassete no computador de você dançando em meio a quatrocentos milhões de cores diferentes e com um som, no sintetizador, de um bilhão de acordes por segundo. Nenhuma menina do mundo nunca ganhou isso.

— Quero ver — falou Berenice, muito animada. Foram para a casa do gordo.

Berenice sentou em frente à tela do computador e o gordo, muito orgulhoso, apertou o botão.

Em vez da sinfonia de um bilhão de acordes por segundo o computador tocou o hino do Corinthians cantado pelos Gaviões da Fiel, e em vez das quatrocentas milhões de cores diferentes, só se viam bandeiras alvinegras se agitando.

— Achei seu presente muito careta — falou o mordomo. — Apaguei o seu e botei este efeito especial que eu inventei. Porreta, né?

O gordo desmaiou de ódio, Berenice foi embora, batendo a porta.Frade João chegou, acompanhado de Pituca, deu uns sais para o gordo e

Bolachão acordou.— Recebi seu telefonema — disse Frade João. — Eu e Pituca estamos

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aqui para a missão final. Crime contra a literatura! Quero esmigalhar aquele grego. Ele vai ver o que é um frade bravo!

— Vamos pegar o grego em flagrante — falou o gordo. — Esperamos a hora em que Edmundo começará a bater à máquina o capítulo de hoje, e invadimos o apartamento de Papoulos Scripopulos, bem no momento em que estiver chupando o livro da Berê.

— Bem pensado — disse o frade. — Vamos almoçar.O almoço do frade demorou três horas, tirou uma soneca e se dirigiram

para o prédio de Papoulos Scripopulos, no Morumbi.Eram seis horas quando Papoulos Scripopulos e Mathias,

confortavelmente sentados, começaram a assistir ao capítulo da Berenice que ia passando no telão.

Do lado de fora, o gordo, frade João e Pituca saíram do elevador e chegaram em frente à porta do apartamento do grego.

— Vamos tocar a campainha? — perguntou Pituca.— Não — disse o frade. — Vamos bater na porta.E dizendo isto, o frade João levantou a perna direita e mandou um tal

pontapé na porta, que ela saiu voando pelo apartamento do grego, passou em frente ao telão, furou a parede, passou pelo quarto de dormir de Papoulos Scripopulos, furou essa parede também e despencou lá de cima do 45.° andar do prédio.

— Uma porta voadora, chefe? — perguntou Mathias. — Ou será um UFO?

— Pegue sua automática, Mathias, estão invadindo o apartamento.O frade, o gordo e Pituca invadiram a sala, mas Papoulos Scripopulos e

Mathias, com as suas automáticas, começaram a atirar, as balas zuniam.— É o gordo, Mathias, eu te falei, esse gordo sempre estraga tudo. E

mais aquele frade e um menino. Fogo neles! Estão sem proteção! Aproveite, Mathias.

O frade viu que estavam em perigo de morte. De onde estavam entrando, eram alvo fácil para os bandidos.

— Vamos pular para trás do balcão do bar — disse o frade. Os três, com a rapidez do raio, pularam para trás do balcão do bar da sala e se entrincheiraram lá.

A madeira do balcão era grossa, os tiros não atravessavam, outros tiros pegavam nas garrafas das estantes do bar e, com tremendo barulho, jogavam cacos e bebidas para todo lado.

Mas a situação não era boa, eles não tinham armas e o grego e Mathias tinham duas automáticas cada um.

— Chegou a hora, Mathias, chegou a hora! — gritou o grego. — Eles estão desarmados. Vamos nos aproximar do balcão do bar e acabar com eles

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à queima-roupa. Rá Rá.— Vai ser fácil, chefe.Quando Mathias colocou a cabeça por cima do balcão, para atirar nos

três, o gordo jogou na cara dele o seu cortador pontudo de papel.O cortador entrou no olho de Mathias, esguichou sangue pela sala,

atingiu o cérebro e Mathias caiu morto no chão.Papoulos Scripopulos, mais astucioso que Mathias, colou-se à parede,

num lugar onde, em linha reta, o balcão do bar abria um vão, deixando nossos três heróis desprotegidos.

Do jeito que o grego fez não havia escapatória, ia mesmo matar o frade, o gordo e Pituca.

Frade João desagachou-se rapidamente, pegou na estante do bar uma garrafa de vodca polonesa, a 95% de álcool, agachou-se novamente, três tiros rasparam sua cabeça, tirou a rolha da garrafa, rasgou um pedacinho da batina, fez uma mecha, acendeu, colocou a mecha no bocal da garrafa de vodca, levantou-se de repente e atirou a garrafa em cima do grego.

A garrafa de vodca, com a mecha acesa, cruzou os ares, bateu no peito de Papoulos Scripopulos e deu uma explosão flamejante, que deixou o grego feito uma bola de fogo amarelo-avermelhada.

O frade deu uma risada e disse:— Perfeito! Fiz um coquetel Molotov. Era assim que os guerrilheiros

russos, que tinham poucas armas, combatiam os alemães na segunda guerra mundial.

Pituca e o gordo bateram palmas e abraçaram o frade.Da cabeça, dos cabelos, do tronco e dos membros de Papoulos

Scripopulos saíam labaredas, junto com fumaça e o desagradável cheiro de carne humana chamuscada.

Papoulos cambaleava, tropeçou, quebrou a perna, caiu deitado no sofá, o sofá era de tecido inflamável e o fogo cresceu.

Por trás do sofá estavam empilhados alguns milhões de páginas impressas do livro chupado da Berê, a papelada desmoronou sobre Papoulos Scripopulos e, aí sim, virou uma fogueira que benza Deus.

O grego soltou um urro, uma labareda levantou-se do peito dele, arregalou os olhos e morreu.

Era uma vez um ladrão literário.— Esse aí vai chegar no inferno acostumado. — disse o frade — Vamos

embora.Os três desceram de elevador e voltaram para casa. Enquanto o carro

rodava o frade falou:— Mais um exemplo para o meu manual sobre as mil utilidades de uma

batina. Mecha para coquetel Molotov.

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— Essa batina falta só virar pára-quedas. — disse o gordo.

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Capítulo 20

Passaram-se vinte dias e o livro da Berenice terminou.Para a obra ficar perfeita, Berenice seguiu o conselho de Hugo Ciência:

esqueceu o livro dois meses, ficou fazendo outras coisas, para dar um distanciamento, depois pegou o livro de novo, refez cada capítulo, melhorando, cortando aprimorando.

Berenice falou para Hugo:— Você tinha razão de pedir que eu esquecesse o livro um tempo.

Muitas cenas que eu achava ótima estou vendo agora que estão fracas. Tirei fora. E nesse tempo me surgiram novas idéias que eu pus agora. Fiquei com o equilíbrio do livro na cabeça, veja, este diálogo do capítulo 15 ficava muito melhor no capítulo 28. Tirei do capítulo 15 e adaptei o diálogo ao 28.

— Foi bom deixar o inconsciente trabalhar — disse Hugo Ciência. — O inconsciente digere o livro, choca o livro, o autor nunca deve se apressar.

As páginas do livro, datilografadas por Edmundo, formavam uma pasta de 220 páginas.

Tudo foi numerado e grampeado.O gordo tirou uma fotografia da Berenice para sair na biografia.— Temos tudo — falou Berenice. — Texto, título, biografia e fotografia

da autora, ilustração da capa e ilustrações interiores. Vamos levar ao editor.— Que editor? — perguntou Mariazinha.— Conheço o endereço de um — falou Hugo Ciência.A turminha pegou o ônibus, pegou o metrô e chegou em frente à casa

editora.O coração de Berenice pulava de emoção.— Quero falar com o editor — disse Berenice para a atendente.— Qual é o assunto?— Escrevi um livro para ele publicar.— Entre naquela fila.Havia uma fila de seiscentas e trinta e cinco mil pessoas, todas com uma

pasta de páginas debaixo do braço, esperando a vez.Eram os novos autores nacionais.Berenice entrou na fila.A fila andava devagar, demorou um mês e Berenice ainda não havia

chegado ao editor.De vez em quando havia uma briga porque um autor novo tentava furar a

fila.A turminha ia trazendo comida e água para a Berenice agüentar.

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Da fila se levantava um vozerio, que eram os autores conversando entre si, um com o outro, misturando assuntos:

— Eu escrevi poesia.— Poesia não vende.— Poesia que é literatura. Romance é uma invenção da burguesia

decadente.— Eu só faço livro de protesto. — Pois eu sou da arte pela arte.— Eu fico no meio — dizia um baixinho.— Baixinho sempre fica no meio. Fedelho!— Escrevi um livro e fui preso.— Eu sou o inverso. Fui preso e escrevi um livro.— Eu só deixo publicar meu livro se pagarem 10% do preço de capa.— Isso pagam. Mas tem uma cláusula safada, sobre direitos do editor se

a obra for para a TV.— Eu é que não discuto com o editor. Dou graças a Deus se ele for com

minha cara.— Frouxo.— Quer brigar?— Intelectual não briga, intelectual bebe.— Então a gente se encontra no Pirandello.— Eu sou meio primo da Lygia Fagundes Telles, será que isso influi?— Demorei sessenta anos para escrever meu livro. Se eu morrer aqui

você segura meu lugar?Finalmente um dia, com as pernas doendo, Berenice entrou na sala do

editor, um moço de óculos, tomando água mineral. O ar condicionado tornava a temperatura agradável.

— Você é a Berenice? — perguntou o editor.— Sou.— Quer um copo de água mineral?— Aceito, estou com muita sede. Berenice tomou dois copos e

agradeceu.— Deixa eu ver seu livrinho — disse o editor.— Não é livrinho — disse Berenice. — É livro. Berenice estendeu a

pasta ao editor, ele pegou, alisou a pasta, colou uma etiqueta em cima e escreveu o número 1.796.444.813.

— Vou mandar seu livro para meu conselho editorial — disse o editor. — Deixe seu endereço. Se o livro for aprovado mando-lhe uma carta.

— Quanto tempo demoram para ler?— De cinco a dez anos — disse o editor. — São muitos autores, você

viu.

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— Me devolva a pasta — falou Berenice. — Não posso esperar tanto, eu estouro.

Berenice pegou novamente seus originais e foi encontrar com a turminha na casa do gordo. Ela chegou chorando de decepção.

A professora Jandira, que estava arrependida da sacanagem que fez com a Berenice, falou:

— Escute, Berê. Eu posso ajudar. Não tenho falsa modéstia, sei que sou linda, sei que sou de fechar o comércio, sei que sou uma mulher de quatrocentos talheres. Vou lá no editor, bem vestida, ele se apaixona por mim e publica seu livro logo.

— Chega, Jandira — falou Edmundo. — Você já criou muita confusão com a sua beleza e as chantagens que ela faz.

— Pela literatura eu faço tudo — falou Jandira.— Não confiamos em você — disse Berenice. — Vou chamar o frade

João. Ele sim, ele resolve.Pituca riu e falou:— No mínimo o frade taca fogo naquele editor.

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Capítulo 21

Berenice mandou um telegrama chamando frade João. Dali a três dias recebeu uma carta.

Formosa BerêNão posso sair da Amazônia porque estou preso.Os grileiros brancos, que vivem tirando terras dos índios, levantaram

uma calúnia contra mim, compraram o delegado e a polícia me prendeu. Quem defende índio acaba preso, eu já sabia. O cacique Juruna tem razão. Mas tenho um bom advogado e espero ser absolvido.

Daqui mesmo vou fazer uma feitiçaria infalível para seu livro ser publicado logo. Preciso de um sapo, uma lagartixa, uma lua cheia, doze velas, um Ás de espadas, um burro caolho e uma mecha de seus cabelos. Mande-me a mecha dos cabelos. O resto arranjo por aqui. Não corte uma mecha grande, não vá estragar o seu penteado.

Aqui despeço-me, esteja com Deus.FRADE JOÃO

Berenice mandou a mecha de cabelos.— Hugo Ciência — falou Mariazinha —, como é que você explica um

frade católico praticar feitiçaria?— A Igreja Católica bebe de todos os rios — falou Hugo Ciência. — Foi

assim que conquistou o Brasil. No seio da Santa Madre Igreja cabe tudo, até sapo. É o sincretismo religioso de que fala Gilberto Freyre.

— Eu acho que faltou uma galinha preta e um galo branco nessa receita — falou Pituca.

— O frade entende mais do que você — disse Sílvia.— E você, gordo, que que acha?— Depois que eu vi o frade fabricar uma bomba com um litro de vodca e

um pedaço de batina eu acho ele capaz de tudo. Estou preparando uma bomba igual, no bar do pai, para jogar em cima do Abreu se ele não me pagar os dez mil e quinhentos. Quero ver.

Alguns dias depois, terminada a aula de literatura da professora Jandira, Berenice ia saindo na calçada e sentiu um tapinha nas costas.

Virou-se. Era um senhor grisalho, bem vestido, que falou:— Você é a Berenice da Fonseca?— Sou.

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— Eu sou editor. Tive um sonho esta noite, uma coisa estranha, sonhei com toda a literatura mundial, todos os livros do mundo galopando no meu sonho, depois apareceu um livro fantástico, que ninguém havia publicado antes, escrito por uma tal de Berenice da Fonseca. O nome aparecia bem nítido no sonho. Fiquei impressionado, telefonei para todos os Fonsecas da lista telefônica, acabei falando com sua mãe, que me indicou o endereço da escola.

— É a feitiçaria do frade! — exclamou Berenice. — Escrevi um livro sim.

— Leve na minha editora às quatro da tarde. E deu um cartão para a menina.

Berenice correu pela calçada e contou o milagre para a turma. Todos se abraçaram e foram comemorar na lanchonete da esquina.

— Estou muito emocionado — falou Hugo Ciência. — Acho que vou ter outro enfarte.

Trouxeram um bujão de oxigênio para Hugo Ciência, que sentou na lanchonete e entre uma aspirada e outra de oxigênio tomava milk-shake de canudinho.

— Eu acho que não devemos comemorar demais antes da hora — falou Edmundo. — Deixem primeiro o homem ler o livro.

Às quatro da tarde Berenice deixou o livro datilografado no escritório do editor, que prometeu ler naquela noite e pediu que a menina voltasse no dia seguinte à mesma hora.

No dia seguinte, Berenice entrou novamente no escritório do editor. O livro dela estava em cima da mesa dele.

— Muito bem — disse o editor. — Isto aqui é altíssima literatura. Vou publicar. Se fosse nos Estados Unidos já começava com um milhão de exemplares ou mais. Como estamos no Brasil vou publicar cinco mil, o que é muito para aqui.

— Cinco mil! — exclamou Berenice. — Então não vou ficar rica?— Nenhum grande escritor brasileiro conseguiu ficar rico cem literatura.

Machado de Assis vivia de um empreguinho público, Guimarães Rosa vivia de um empreguinho no Itamarati, Graciliano Ramos e Clarice Lispector viviam sabe Deus lá como. Carlos Drummond de Andrade também viveu de um emprego público modestíssimo, a lista é grande e nunca leva para a riqueza.

— Mas o Papoulos Scripopulos esperava ficar milionário com meu livro! Gastou uma fortuna para chupá-lo.

— É comum os vigaristas sonharem alto demais e se enganarem. Aquele grego disparou numa fantasia onde ia ganhar menos dinheiro do que gastou. A psicologia dos criminosos é estranha, um dia dão um grande golpe e outro

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dia cometem uma infantilidade fantástica.— Famosa pelo menos eu fico? — perguntou Berenice.— Fica — disse o editor. — Com um livro destes você fica. Mas não é

uma fama igual à de cantor popular ou de artista de novela. Vai ser uma fama discreta, gostosa, você será querida por um pequeno número de leitores, também discretos, que não te pedem autógrafo na rua, não param o trânsito quando você passa, mas, carinhosamente, farão de você uma pessoa imortal, silenciosamente imortal.

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Epílogo

Pouca gente compareceu à tarde de autógrafos do Ninguém Faz Minha Cabeça.

Mas foi um lançamento simpático, ali na Livraria Capitu, na rua Pinheiros.

A turma do gordo, os amigos, os parentes e alguns curiosos foram lá dar uma força.

Berenice sentou à mesa, as pessoas compravam o livro no caixa e levavam para ela assinar e fazer uma dedicatória.

Frade João, de batina marrom, sandália e capuz, entrou na livraria.— Frade João! Você fugiu da cadeia?— Não. Consegui um livramento condicional de um dia para vir aqui

comprar seu livro e lhe dar um abraço. Hoje mesmo pego o avião e volto para a prisão.

Os dois se abraçaram.— Como vai o lançamento? — perguntou o frade.— Está legal, frade. Só tem uma dificuldade: apesar de não ter muita

gente, nunca pensei que autografar um livro fosse tão difícil. Achar uma dedicatória diferente para cada leitor é mais complicado que escrever o livro.

O frade riu e falou:— Bem se vê que você é novata. Invente só quatro dedicatórias

diferentes — Para fulano com alegria — Para fulano com carinho — Para fulano com amizade — Para fulano um abraço contente da — deixe escritas num cartão em cima do joelho, e vai autografando pela ordem. Quando chegar na quarta você recomeça da primeira.

— Isso eu posso decorar — falou Berenice. — Não precisa escrever. São só quatro.

— Nunca confie em memória de escritor e de padre — falou o frade. — Olhe a palma de minha mão.

E frade João mostrou a enorme mão esquerda onde estava escrita a reza do Pai Nosso que Estais no Céu.

— Até pra rezar você cola, frade — falou rindo Berenice. — Mas no dia do meu aniversário você fez um sermão muito bonito, falando do inferno, feito de improviso.

— Improviso nada — falou o frade.E mostrou a manga da batina onde ainda estava escrito o sermão do

inferno que o frade fez no aniversário da Berenice.— Eu falava e olhava para a manga da batina, você não reparou?

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— Então vou escrever os quatro cartões com as dedicatórias diferentes e colocar no meu joelho — falou Berenice. — Foi um bom conselho o seu, frade João, eu estava ficando desesperada.

Frade João foi até o caixa, comprou o livro, voltou até a mesa da Berenice, Berenice pegou o livro, abriu numa página inicial, olhou para um dos cartões do joelho e escreveu a dedicatória.

O frade recebeu o livro de volta, deu um beijo na menina e falou:— Estou curioso para ver qual das quatro você escolheu. Abriu o livro e

leu:

A amizade de um fradeco como você é mais importante que escrever um livro.

Beijocas daBERÊ

O frade deu uma gargalhada que fez estremecer os vidros da vitrine da livraria e falou:

— Você me pegou, fez uma dedicatória improvisada. Está linda. Vou seguir seu exemplo, na minha próxima reza não vou olhar para a mão, vou improvisar. Acho que Deus vai gostar.

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Índice das citações

O trecho do livro da Berenice, no capítulo 11, é uma adaptação livre do seguinte trecho de Louis Ferdinand Céline em Voyage au bout de la nuit, Gallimard, collection Folio, pág. 256:

"On n'a plus de musique en soi pour faire danser la vie, voilà. Toute la jeunesse est allée mourir déjà au bout du monde dans le silence de la vérité. Et ou aller dehors, je vous le demande, dès qu'on n'a plus en soi la somme suffisante de delire? Lá vérité, c'est une agonie qui n'en finit pas. La vérité de ce monde c'est la mort. II faut choisir, mourir ou mentir."

O que se traduz:

"Não temos mais na alma a música com que fazemos dançar a vida. É isso. Toda a juventude foi lá morrer no fundo do mundo, no silêncio da verdade. E aonde ir, onde passear, pergunto-lhes, depois que nos foi arrancada a ração indispensável de delírio? A verdade, ela é uma agonia que nunca termina. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher: ou morrer ou mentir."

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João Carlos Marinho

Nascido no Rio de Janeiro em 1935, João Carlos Marinho (cujo nome completo é João Carlos Marinho Homem de Mello) fez os primeiros estudos em Santos, mudando-se logo para São Paulo, onde cursou a admissão e o ginásio no Colégio Mackenzie. Em seguida, fixou residência em Lausanne, Suíça, onde obteve o certificado de Maurité Fédérale Suisse. Em 1962, formou-se em Direito pela Faculdade do Largo São Francisco e passou a morar em Guarulhos, onde foi titular do escritório de advocacia trabalhista J. C. MARINHO até 1987, ano em que voltou a morar em São Paulo. Desde 1997 reside em Monte Verde, Minas Gerais.

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LEIA DE JOÃO CARLOS MARINHO

O Gênio do Crime: Inaugurou em 1969 as aventuras da Turma do Gordo (Bolachão), Berenice, Edmundo e Pituca.

O Caneco de Prata: Biquinha, Mariazinha, Godofredo e Sílvia entram para a turma. Primeira aparição da professora Jandira.

Sangue Fresco: Fantástica aventura da Turma do Gordo nas florestas da Amazônia - Vencedor do Prêmio Jabuti de 1982 - Vencedor do Grande Prêmio da Crítica de 1982, outorgado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte - Considerado Altamente Recomendável para o Jovem pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Ou seja, uma das obras mais premiadas da literatura brasileira.

O Livro da Berenice: Um bandido grego, através de um sistema de computador, rouba o livro da Berenice, instantaneamente, enquanto ela o escreve. A turma e o frade João entram em ação. Primeira aparição do alucinante mordomo Abreu.

Berenice Detetive: Um mistério empolgante e uma obra-prima de suspense. Vencedor do Prêmio Mercedes Bens outorgado ao melhor livro infanto-juvenil escrito no biênio 1986/1988 - Considerado Altamente Recomendável para o Jovem pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Berenice contra o Maníaco Janeloso: Balas assassinas entram pelas janelas das escolas. O negócio é reagir. Mas é muito perigoso!

Pai Mental e Outras Histórias: Quatro histórias de uma beleza irresistível; quatro crianças em situações diversas, buscando compreender o universo dos adultos, o mundo e sobretudo a si próprias.

Anjo de Camisola: Obra poética que coloca João Carlos Marinho entre os poetas significativos da língua portuguesa.

Cascata de Cuspe: O gordo é perseguido por um grupo de extermínio e tem de fazer Cascata de Cuspe para se safar desta.

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O Conde Futreson: O gordo e a sua turma são ferozmente atacados por um monstro dotado de poderes sobrenaturais. Considerado Altamente Recomendável para O Jovem pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

O Disco: Primeira aventura espacial da Turma do Gordo, atualmente editada pela Companhia das Letras.

A Catástrofe do Planeta Ebulidor: Uma fantástica aventura espacial da Turma do Gordo, cheia de lances emocionantes e muito perigosos.