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OBSERVAÇÕES SOBRE TIANA, A PRIMEIRA PRINCESA NEGRA DA DISNEY João Paulo Baliscei - Universidade Estadual de Maringá (UEM) Giane Rodrigues de Souza Andrade - Universidade Estadual de Maringá (UEM) Literatura infantil e os contos de fadas: da oralidade às produções cinematográficas A literatura infantil, especificamente os contos de fadas, tem um significado relevante para o desenvolvimento infantil. Pesquisas no âmbito da psicologia têm demonstrado isso (BETTELHEIM, 2002), embora sua repercussão já tenha sido percebida empiricamente desde a época em que esses contos eram narrados oralmente por adultos que os utilizavam como um meio de manterem vivas as tradições culturais, assim como alertar as pessoas sobre os perigos iminentes. Em meados do século XVIII, com as mudanças ocorridas na sociedade, sobretudo decorrentes do crescimento da produção industrial, foi se consolidando uma nova concepção de criança na qual a infância é concebida como um estado constante de irracionalidade ou ausência da razão, atributos contrários àqueles próprios dos indivíduos adultos (SARAT, 2009). Segundo Cunha (2011), a literatura infantil acompanhou as mudanças da concepção de infância e contribuiu para sua consolidação. Histórias que antes eram contadas, sobretudo, através da oralidade foram transcritas, transformando-se em obras literárias destinadas, principalmente, ao público infantil. Estas narrativas passaram a estar presentes, inclusive, no espaço escolar, fazendo parte do cotidiano das crianças. Embora essas histórias contribuam para o desenvolvimento infantil, chama-nos a atenção o fato de que representações estereotipadas inerentes aos contos de fadas oferecem padrões de comportamentos que são imitados pelas crianças. Por vezes, quando as histórias retratam figuras femininas, as chamadas mocinhas, representam-nas magras, altas, loiras, brancas, com cabelos longos e lisos. São apresentadas também como fracas e incapazes de sobreviver aos perigos sem alguém que lhes proteja: um homem. Estas constatações são recorrentes nos estudos de autores e autoras como Baliscei (2014; 2015), Cunha (2008; 2011; 2014), Giroux (1995; 2001; 2013), Nunes (2010) e

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OBSERVAÇÕES SOBRE TIANA, A PRIMEIRA PRINCESA NEGRA DA DISNEY

João Paulo Baliscei - Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Giane Rodrigues de Souza Andrade - Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Literatura infantil e os contos de fadas: da oralidade às produções cinematográficas

A literatura infantil, especificamente os contos de fadas, tem um significado relevante

para o desenvolvimento infantil. Pesquisas no âmbito da psicologia têm demonstrado isso

(BETTELHEIM, 2002), embora sua repercussão já tenha sido percebida empiricamente desde

a época em que esses contos eram narrados oralmente por adultos que os utilizavam como um

meio de manterem vivas as tradições culturais, assim como alertar as pessoas sobre os perigos

iminentes.

Em meados do século XVIII, com as mudanças ocorridas na sociedade, sobretudo

decorrentes do crescimento da produção industrial, foi se consolidando uma nova concepção

de criança na qual a infância é concebida como um estado constante de irracionalidade ou

ausência da razão, atributos contrários àqueles próprios dos indivíduos adultos (SARAT,

2009). Segundo Cunha (2011), a literatura infantil acompanhou as mudanças da concepção de

infância e contribuiu para sua consolidação. Histórias que antes eram contadas, sobretudo,

através da oralidade foram transcritas, transformando-se em obras literárias destinadas,

principalmente, ao público infantil. Estas narrativas passaram a estar presentes, inclusive, no

espaço escolar, fazendo parte do cotidiano das crianças.

Embora essas histórias contribuam para o desenvolvimento infantil, chama-nos a

atenção o fato de que representações estereotipadas inerentes aos contos de fadas oferecem

padrões de comportamentos que são imitados pelas crianças. Por vezes, quando as histórias

retratam figuras femininas, as chamadas mocinhas, representam-nas magras, altas, loiras,

brancas, com cabelos longos e lisos. São apresentadas também como fracas e incapazes de

sobreviver aos perigos sem alguém que lhes proteja: um homem.

Estas constatações são recorrentes nos estudos de autores e autoras como Baliscei

(2014; 2015), Cunha (2008; 2011; 2014), Giroux (1995; 2001; 2013), Nunes (2010) e

Sabat(2002), que investigaram os discursos e representações presentes nas personagens de

contos de fadas, desenhos animados e filmes voltados ao público infantil.

Dentre os muitos artefatos visuais, neste estudo, discutimos sobre a história A Princesa

e o Sapo1(2009) por se tratar da primeira produção cinematográfica da Disney que apresenta

um casal negro como protagonista, diferente dos príncipes e princesas de filmes anteriormente

produzidos pela empresa. Em razão disso questionamos: Quais as representações sobre

negritudes são produzidas, oferecidas e divulgadas pelo filme A Princesa e o Sapo?

Para debater sobre essa questão, selecionamos onze cenas do filme, considerando que

nelas podemos identificar e problematizar os modos como personagens negras e brancas são

apresentadas para o público infantil.

Os estereótipos raciais: as imagens que a Disney produz e reproduz

Giroux (2013) se refere a Disney Company (ou Walt Disney, como é popularmente

conhecida) como um excelente exemplo de produtora de estereótipos raciais usados de forma

a favorecer a política e cultura do país de origem: os Estados Unidos. Com o famoso slogan o

“lugar mais feliz do globo”, divulgado por suas produções, segundo o autor, os Estados

Unidos conseguiram atrair a atenção de diversos investidores/as, trabalhadores/as, empresas e

turistas, fortalecendo e disseminando uma cultura de “felicidade e inocência” por meio dos

produtos da Disney.

Em análise das personagens do “maravilhoso mundo da Disney”, Giroux (2013)

identifica características homogeneizantes como a valorização das tradições, da moral e da

família, o pertencimento à classe média, a soberania das pessoas de pele branca e corpo

magro. Essas características foram corporificadas em personagens como Cinderela (1950), A

pequena sereia (1989), A bela e a fera (1991), Enrolados (2010) e Pocahontas (1995), que

são desenhos animados voltados, principalmente, para as crianças. Nesse último, é recontada

em linguagem infantil, inocente, poética e romântica o massacre dos/as índios/as nativos/as do

oeste americanos pelos/as brancos/as colonizadores/as.

O autor assevera que as narrativas dos filmes e desenhos animados da Disney

defendem valores hegemônicos e transformam assuntos sérios e polêmicos em comédias

românticas, nostálgicas e “inocentes” para o divertimento e distração do público. Tais

1 O filme foi inspirado na obra literária “O Príncipe Sapo”.

estratégias podem levar os/as telespectadores/as infantis ou até mesmo os/as adultos/as a

menosprezarem uma visão histórica e crítica dos fatos.

Temas como prostituição e guerra civil foram abordados nos filmes Uma linda mulher

(1990) e Bom dia Vietnã (1987), respectivamente. Ambos apresentam representações raciais

estereotipadas. Em Bom-dia, Vietnã, a personagem principal, Adrian Cronauer, interpretada

por Robin McLaurin Williams (1951-2014), é um disckjocker enviado ao Vietnã para animar

as tropas e levantar a “moral” dos soldados combatentes. Assim como muitas personagens

que representam o homem estadunidense, ele é inteligente e enfrenta as autoridades quando

necessário, deixando sempre transparecer uma inocência e uma doçura típicas dos contos de

fadas. E o que seria desse homem branco se não fosse seu servo negro? Edward Garlick,

interpretado por Forest Steven Whitaker (1961--) uma das poucas personagens negras do

filme, é posto como uma figura resmungona e atrapalhada (GIROUX, 2013).

O filme Uma linda mulher, por sua vez, apresenta três personagens negros que aparece

na última cena, nos segundos finais do filme. Nessa "linda história de amor", pouco sabemos

sobre os rapazes negros, apenas que, servem a Edward, o galã branco, interpretado por

Richard Tiffany Gere (1949--). Dois dos negros são funcionários do hotel onde Edward está

hospedado, inclusive, um deles carrega as malas do mocinho, que mantém as duas mãos

desocupadas. A terceira personagem negra, o motorista, dirige a limusine branca do mocinho

branco, aguardando-o em pé, sorrindo, enquanto Edward entrega flores para sua amada

Vivian, interpretada por Julia Roberts (1967--).

Esses exemplos corroboram os apontamentos de Steinberg e Kincheloe (2001, p. 43)

de que filmes e animações podem reforçar valores culturais hegemônicos e apresentam heróis

e heroínas primordialmente brancos/as, de classe média. Nestes casos, os/as protagonistas

"[...] carregam valores WASP (branco, anglo-saxão, protestantes)", como se não houvesse

variações desse modo de ser.

Quando não-brancos[/as] são convocados[/as], eles[/as] são freqüentemente

colocados[/as] na periferia (no canto esquerdo da tela da TV) da ação; papéis

instigantes, de líder do grupo, são para os[/as] garotos[/as] brancos[/as].

Personagens negros[/as] nos comerciais de crianças muitas vezes dançam e

jogam basquete [...]. Por fora da realização consciente de seus[/as]

expectadores[/as], os comerciais de crianças que usam atores [e atrizes] não-

brancos[/as] reproduzem hierarquias raciais que privilegiam os[/as]

brancos[/as]. (STEINBERG E KINCHELOE, 2001, p.44).

Ainda segundo a autora e o autor, é recorrente nos filmes e animações infantis que os

vilões e vilãs sejam não-brancos/as. São exemplos os filmes Aladim (1989) e Rei Leão (1994)

que representam de modo caricaturado as personagens não-brancos/as de cultura árabe e

africana, respectivamente. Nestes filmes as personagens não-brancas-vilãs apresentam

características exageradas: barbas longas demais, sotaques carregados demais, narizes grandes

demais, cicatrizes aparentes demais. Enquanto que os mocinhos não possuem barbas nem

sotaque carregado, têm nariz pequeno, pele lisa e clara. Entendemos essas representações

como estereótipos raciais, uma vez que apresentam "fórmulas" e “modelos”, conjuntos de

características restritas e simplificadas das raças brancas e não-brancas.

SegundoWortmann (2005) discursos são grupos de ideias, imagens e práticas que

compõe várias formas de se falar, conhecer, e de se produzir valores ou condutas que estejam

associadas particularmente às atividades sociais. A autora afirma ainda que se constitui

discurso tudo o que vemos, lemos ou escutamos em todas as mídias. Em outras palavras, são

artefatos que por meio da linguagem educam os indivíduos sobre como eles “devem” se

comportar. Com base nessas considerações, a seguir discutiremos o filme A Princesa e o Sapo

(2009) com o objetivo de identificar e problematizar os discursos sobre negritudes divulgados

por esta animação.

Tiana, a primeira princesa negra da Disney

O filme A Princesa e o Sapo (2009) conta a história de Tiana, uma moça negra que

vive na cidade de Nova Orleans, Estados Unidos, e que sonha abrir um restaurante. Em nome

desse sonho, ela trabalha arduamente, o que preocupa sua mãe, Eudora, uma costureira que

trabalha principalmente para famílias ricas da cidade, como a de Charlotte.

O Príncipe Naveen, da Maldonia 2 , chega à cidade, fazendo com que Charlotte

vislumbre a chance de se casar com ele e realizar o sonho de se tornar uma princesa. Ocorre

que Naveen fora deserdado por sua família, em função de sua vida boêmia, e o que o jovem

príncipe procura, na verdade, é uma moça rica com quem possa se casar para manter seu

confortável padrão de vida. O bruxo Facilier propõe ver o futuro do príncipe em um baralho

de cartas: as imagens impressas nas cartas, assim como a música e voz do bruxo, anunciam

que, no futuro, o Naveen se casará com uma moça rica. A notícia agrada o rapaz, pois assim,

não precisará trabalhar. No entanto, quando aperta a mão do bruxo Facilier, Naveen é

2 País fictício mencionado no filme.

transformado em um sapo. Buscando desfazer o feitiço, o príncipe supõe que, assim como nos

contos de fadas, precisa ser beijado por uma princesa.

Numa festa a fantasia organizada por Charllote o sapo encontra Tiana fantasiada de

princesa em função da festa. Confundindo Tiana com uma princesa, Naveen convence a moça

a beijá-lo. Por não ser uma verdadeira princesa, Tiana acaba se transformando em uma rã.

A primeira cena do filme apresenta o quarto de Charllote com muitos brinquedos e

enfeites na cor rosa. Tiana e Charllote estão sentadas no chão (Figura 1).

Figura 1: Charllote e Tiana ouvindo histórias.

Fonte: Print Screen, 1’34’, A Princesa e o Sapo (2009).

Tiana usa um vestido com corte reto e simples, em tons pasteis e uma coroa de

princesa. Charllote, por sua vez, veste-se de modo bastante extravagante: usa um vestido

longo, rosa, com fitas, camadas sobrepostas, babados e volume. As duas meninas de

aproximadamente oito anos ouvem a mãe de Tiana, dona Eudora, contar a história “O

príncipe sapo” ao mesmo tempo em que termina os últimos ajustes do vestido de princesa de

Charllote.

Embora a cena seja aparentemente inocente, ressaltamos que as características das

vestimentas de ambas as personagens (as quais irão se repetir nas outras cenas do filme),

deixam explícito qual das duas personagens tem maior e menor poder aquisitivo. Enquanto

Charllote, neste caso, com maior poder aquisitivo, é retratada com uma fantasia sofisticada,

feita com muito tecido e com a predominância de cores vibrantes, Tiana é caracterizada com

roupas simples, em tons de amarelo-claro, verde-claro e marrom, embora seja filha da melhor

estilista da cidade.

Essas características das personagens vão a encontro da afirmação de Giroux (2013, p.

136) de que “A aparência de aventura feliz e inocência infantil, embora atraente, encobre, [...]

um universo cultural amplamente conservador em seus valores, colonial em sua produção de

diferenças raciais”. As diferenças econômicas e sociais das duas personagens nos remetem

que a cidade de Nova Orleans, nos Estados Unidos, onde se passa a história, é reconhecida

pela venda de escravos e escravas 3 , assim como pela resistência aos movimentos pela

igualdade racial de negros/as e brancos/as (SCOTT, 2013).

Quando saem da casa de Charllote e voltam para sua casa de bonde, Tiana e Eudora

passam por diferentes mansões, com grandes portões e jardins planejados e ruas asfaltadas

onde algumas mulheres brancas com roupas de cortes refinados passeiam (figura 2).

Conforme se aproximam da sua casa, o cenário muda: as residências são menores, sem muro,

ruas sem asfaltamento e calçadas. Neste bairro, são retratadas apenas pessoas negras (figura

3).

Figura 2: Bairro de Charllote

Fonte: Print Screen, 3’51’’, A princesa e o sapo (2009).

Figura 3: Bairro de Tiana

3 Nova Orleans foi uma das últimas cidades do estado de Louisiana a dar a alforria aos seus escravos e escravas

(SCOTT, 2013).Além disso, os/as habitantes dessa região ao sul dos EUA demonstraram resistência aos

movimentos dos negros e negras pelo fim do apartheid.

Fonte: Print Screen, 3’55’’, A princesa e o sapo (2009).

Pelo modo como essa organização é retratada, parece haver "naturalidade" e

"espontaneidade" nas divisões raciais e sociais das comunidades as quais as personagens

pertencem. Ou seja, parece óbvio que Tiana e Eudora vivam nas condições em que vivem. A

maneira natural como as duas comunidades são retratadas nos remete novamente aos escritos

de Giroux (2001, p.89) quando salienta que os filmes da Disney inspiram “[...] autoridade e a

legitimidade culturais para ensinar papeis, valores e ideais específicos”.

Na cena em questão o fato de as pessoas brancas e ricas viverem em um lado da

cidade, enquanto as pessoas negras que desenvolvem trabalhos manuais vivem no lado

oposto, isto é, o mais simples, é tratado como natural e esperado. As condições de infra-

estruturados bairros são desiguais, evidenciando a inferioridade do bairro onde moram as

pessoas negras.

Em outra cena, ainda criança, Tiana cozinha para seu pai, James, para que ele

experimente a sopa que ela aprontou. Depois de prová-la, o pai satisfeito, pega a filha no colo

e diz que ela tem um “dom” especial – cozinhar – e que, por isso, as pessoas precisam

conhecê-la. Tiana abre a porta e convida a vizinhança para comer a sopa. Em seguida todos/as

se sentam na varanda e, enquanto comem, o pai abraçado com sua esposa e filha diz: “Sabe o

que a comida tem de bom? Ela reúne as pessoas de todas as classes sociais”. Ainda que a frase

dita valorize a interação entre classes distintas, naquele grupo estão reunidas apenas homens e

mulheres com condição econômica e raça similares as de sua família.

A contradição entre o dito – classes sociais reunidas ao redor do dom da cozinha – e o

acontecido – apenas pobres e negras/os reunidos ao redor da sopa feita por Tiana - pode ser

explicada em parte pelas considerações de Wagner e Sommer (2007). De acordo com os

autores, a mídia se utiliza de uma estética para suas produções capaz de fabricar “um mundo

paralelo” que se assemelha a realidade existente e, ao mesmo tempo, se mantém distante dela.

Embora a cena representada (figura 4) seja esteticamente agradável não condiz com a fala de

James, o pai, uma vez que o grupo reunido é composto apenas por negros/as que pertencem a

uma mesma classe econômica e social.

Figura 4: Vizinhança reunida.

Fonte: Print Screen, 4’49’’, A princesa e o sapo (2009).

Em outro momento, quando o Tiana e Charllote já são adultas, o príncipe Naveen, da

Maldonia, futura paixão de Tiana, chega a uma embarcação acompanhado de Lawrence, seu

criado. O príncipe se apresenta com seus trajes reais, mas logo tira-os e passa a se vestir de

maneira menos formal. Pega um instrumento de cordas nas malas que Lawrence carrega e

começa a tocá-lo. Ao pé da escada, diferentes moças o cercam (figura 5). Em seguida, Naveen

demonstra interesse pelos músicos que passam pela rua, seguindo-os. Naveen é um homem

negro, mas com características físicas semelhantes aos demais príncipes brancos da Disney –

atlético, alto e com um grande sorriso – mas, ao contrário dos demais, é um bonvivant,

irresponsável e aproveitador, que apresenta repulsa por trabalhar - por isso procura uma

jovem rica de quem possa tirar proveito.

Figura 5: Chegada do príncipe Naveen na cidade.

Fonte: Print Screen, 9’01’’, A princesa e o Sapo (2009).

Naveen foge à regra da representação de príncipes dos filmes da Disney. Nenhum

outro príncipe fora retratado desta maneira até este desenho animado. Além de ser negro e

bonvivant, a personagem não é o “solucionador de problemas”, disposto a salvar a mocinha de

todas as formas possíveis. Ao contrário, é retratado como "causador de problemas", um "anti-

herói", um “boa vida” charlatão.

Apoiando-nos em Pillar (2011, p.132) podemos dizer que cenas como esta manifestam

propósitos moralizantes que podem vir a orientar o comportamento das crianças. São produtos

midiáticos como desenhos, filmes, brinquedos derivados “[...] de publicações e filmes – dos

estúdios Disney, por exemplo – que reforçam clichês em relação à classe social, etnia, gênero,

etc.”.Consideramos que no filme A princesa e o sapo, ao contrário dos príncipes brancos, os

negros não são confiáveis.

Clichês relativos à classe sociais, sexualidades, gêneros e raças podem ser percebidos

também em outra cena quando Tiana organiza o espaço que futuramente será seu restaurante.

Eudora, sua mãe, a aconselha a se preocupar menos com o trabalho e mais com sua vida

amorosa: “É isso que eu quero para você. Que conheça seu príncipe encantado, dance com ele

e que sejam sempre felizes” (figura 6).

Figura 6:Tiana e sua mãe dentro do salão.

Fonte: Print Screen, 13’37’’, A princesa e o Sapo (2009).

Esses discursos legitimam os clichês também evidenciados em outros filmes e

animações da Disney (PILLAR, 2011; SABAT, 2003). Em sua fala, a mãe enfatiza a

importância da figura do homem, reforçando o discurso de que, para ser feliz, a mulher

precisa encontrar seu “príncipe encantado” e se casar com ele4. Como se não houvesse outra

possibilidade de realização para uma mulher. As frases ditas pela mãe demonstra a

"naturalidade" das relações heterossexuais, legitimando-a como normatividade (SABAT,

2003).

Sem dar ouvidos à mãe, Tiana canta e imagina como será bem sucedida quando o

restaurante for inaugurado. Diferentes das demais personagens protagonistas da Disney,

Tianna parece não ser obcecada por romances, beijos e casamentos. Para Cechin (2014,

p.143) Tiana "[...] é determinada, independente e forte. O trabalho duro como a melhor

maneira de alcançar seus objetivos é seu lema.” Em nossa análise, tais características são

interessantes por não reduzir a felicidade e a realização feminina à união com um homem e ao

casamento. O comportamento de Tiana, seu comprometimento com o trabalho e com sua

profissão servem como referência para meninos e meninas no que tange às muitas

possibilidades de realização pessoal e de "finais felizes".

No entanto, chama-nos a atenção a projeção que Tiana têm sobre seu futuro e sonhos.

Em suas idealizações, Tiana está vestida totalmente de branco (figura 7). Além disso, do

conjunto de funcionários/as – 34 no total –, apenas dois não são negros. Os únicos braUma

garçonete e um sommelier são brancos/as e usam trajes claros. Todos os outros funcionários

são negros e usam trajes escuros (figura 8).

4 Esse discurso tem seu ápice na última cena do filme, quando Tiana e Naveen, após terem se casado, dançam na

sacada do restaurante em que trabalham.

Figura 7: Sonho de Tiana.

Fonte: Print Screen, 14’12’’, A princesa e o Sapo (2009).

Figura 8: Os funcionários e funcionárias do sonho de Tiana.

Fonte: Print Screen, 14’18’’, A princesa e o Sapo (2009).

Em nossa análise, estereótipos raciais e de classe são percebidos na projeção utópicas

que Tiana faz de seu restaurante. É como se o "restaurante ideal" tivesse que ser repleto de

funcionários e funcionárias negros/as vestidos com roupas escuras, servindo pessoas brancas.

Enquanto que ela, proprietária, usa a cor branca– cor que reforça sua posição privilegiada.

Neste caso, há uma polarização que relaciona a cor branca com a riqueza e o poder e a cor

preta com a submissão e a servidão. Conforme Farina, Perez e Bastos (2006) a cultura

ocidental emprega à cor branca significados como pureza, neutralidade, castidade, limpeza,

leveza e santidade, ao mesmo tempo que atribuí à cor preta aspectos como sofrimento,

tristeza, pessimismo e desgraça. Além disso, as cores branco e preto podem significar,

respectivamente, bem e mal5.

Mais adiante, Tiana desempenha um comportamento diferente do demonstrado então.

Desde o início da história, Tiana aparenta ser honesta, ingênua, inocente, focada em seu

trabalho e incorruptível. Não apresenta comportamentos gananciosos e egoístas - ao contrário

disso, demonstra preocupação e solidariedade com as demais personagens do filme.

No entanto, quando encontra o príncipe Naveen transformado em sapo e barganha seu

beijo (figura 9), Tiana -diferente das protagonistas brancas da Disney- exibe seus desejos

próprios, seu interesse e sua ambição. Dizemos isso pois Tiana só aceita beijar o príncipe-

sapo quando passa a ter conhecimento de que ele pertence a uma família rica, disposta a dar-

lhe uma recompensa.

Figuras 9: Tiana beija Naveen.

Fonte: Print Screen, 00’28’51’’, A princesa e o Sapo (2009).

Em análise de outros filmes e desenhos animados da Disney, Giroux (2001, p.103)

destaca que “Os papéis destinados às mulheres e às pessoas de cor, junto com as idéias

5 Os autores e a autora demonstram os reflexos e fortalecimento de tais significações em frases de uso comum

como "De repente a situação ficou preta".

referindo-se a uma rígida visão dos valores familiares, [...] precisam ser combatidos e

transformados”. Em nossa análise não é isso o que ocorre no filme A princesa e o sapo(2009),

pois, além dos aspectos que mencionamos anteriormente, a partir da cena do beijo, Tiana é

representada como uma rã. Dos noventa e sete minutos de duração do filme, em sessenta e

oito, Tiana, a primeira protagonista negra das animações Disney, é representada verde, como

rã.

O fato de a personagem principal passar aproximadamente 69% do filme como rã,

desvia o foco da questão da negritude de Tiana. Os estereótipos raciais dão lugar ao discurso

sobre a “beleza interior”, corporificada no casal de sapos. Concordamos com Cechin (2014, p.

140) quando alerta que o discurso sobre “beleza interior” é sempre diretamente relacionado a

“[...] corpos disformes, fora dos padrões estabelecidos, [que] devem compensar esses

desajustes com certa candura, ingenuidade, bondade e ‘beleza interna’”. Enquanto rã e sapo,

Tiana e Naveen são personagens disformes e, para que não sejam julgados como vilã e vilão

por causa de seus erros, interesses e egoísmo, precisam transparecer a bondade, o sofrimento e

o amor. E é pelo amor que as personagens se redimem e voltam a ser belas e felizes.

Diferentemente dos demais filmes da Disney em que os protagonistas se casam e

“vivem felizes para sempre”, em A princesa e o sapo (2009), mesmo após o casamento, Tiana

e Naveen continuam trabalhando para se sustentar e, inclusive, são ele e ela que realizam a

reforma de seu restaurante (figura 10). Será que nos "finais felizes" dos filmes cujas

personagens principais são brancas, os serviços manuais, que exigem desgaste físico, seriam

realizados por elas? Consideramos que não por acaso, a narrativa do filme A princesa e o sapo

(2009) indica com naturalidade que o casal precisa continuar a trabalhar e a servir para ser

bem sucedido.

Figuras 10: Tiana e Naveen depois de se casarem vão trabalhar na reforma do futuro restaurante.

Fonte: Print Screen, 01’29’05”, A princesa e o sapo (2009).

Considerações finais

Neste artigo, nosso objetivo foi analisar os discursos sobre negritudes produzidos,

oferecidos e divulgados pelo filme A Princesa e o Sapo (2009). O filme foi escolhido por se

tratar da primeira produção da Disney que apresenta um casal negro como protagonista.

Nossa análise revelou um grande avanço na produção desta animação quanto à

abordagem da negritude ao apresentar Tiana e o príncipe Naveen. Em sua totalidade, até este

filme, as produções da Disney apresentavam protagonistas brancos/as com características

europeias e germânicas. Contudo, algumas situações encenadas ainda sugerem

demasiadamente a produção e reprodução de estereótipos de raça.

Constatamos a ocorrência de distinções entre personagens brancas e personagens não-

brancas, principalmente em relação às desigualdades sociais e econômicas: os negros e negras

são caracterizados/as pela pobreza, servidão, pelo desempenho de trabalhos manuais, que

exigem desgaste físico; enquanto os brancos e brancas são retratados/as como ricos/as com

posições privilegiadas. Além disso, o casal de protagonistas é apresentado como interesseiro e

manipulador. Demonstram desvio de caráter. Diferente dos/as demais protagonistas da

Disney, Tiana e Naveen não são pessoas absolutamente boas, ingênuas e que pensam

exclusivamente no bem coletivo. Trata-se do anti-herói e da anti-heroína da Disney.

Ao final do filme, Tiana e Naveen encontram o seu "felizes para sempre" no trabalho

com o restaurante, servindo as pessoas brancas – o que parece confirmar e reforçar os

estereótipos de servidão para negros e negras e de deleite e consumo para brancos e brancas.

Talvez a narração fora organizada como se a redenção de suas mazelas de caráter pudesse ser

efetivada através do trabalho manual e de servidão no restaurante. Ou talvez a história reforce

os limites e possibilidades de "finais felizes" que um casal negro pode conquistar. Cinderela,

Ariel, Bela, Aurora, Branca de Neve tiveram "finais felizes" semelhantes a esse?

Referências

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