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João Peçanha

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João Peçanha

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O Sonho Três e tantas da madrugada. Eu estava completamente

assustado. Fazia tempo que não tinha sonhos tão horrendos

quanto esse. Sentei-me na cama. Acendi a luz. Estava atordoado

e achei que ainda estava sonhando. Pensava que a qualquer

momento o cachorro iria aparecer com uma revista de fofocas

do demônio para ler o meu horóscopo de sangue. As lágrimas

desciam de meus olhos. Estava traumatizado com o que eu tinha

visto. E depois que percebi que estava acordado, começou a

paranoia. Olhava de um lado para o outro até descobrir alguma

coisa, até ver alguém. Foi em vão. Depois de algum tempo, o

sono me veio com força. E não resisti. Voltei a dormir mesmo

com medo de reencontrar aquela coisa em meu subconsciente

guardada em alguma gaveta.

Descanso por pouco tempo. Já era hora de ir para a escola.

Como de costume, tomei meu banho. Achei que a madrugada

conturbada foi um sonho. Fui para a aula e quando entro na sala,

vejo Flávia solitária em sua mesa. O único lugar que havia, era

do seu lado. E não hesitei ao me instalar ali. Ela me desejou bom

dia. E eu também a desejei um bom dia. Ficamos apenas nisso.

– Otávio tem certeza que sua avó está dormindo?

– Tenho. (Respondi com convicção)

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– Eu sei bem quantas pessoas tem em um ambiente.

Meu sarcasmo falou mais alto...

– Eu também. É a minha avó. E ela está dormindo.

O cão de minha avó observava tudo do cesto no outro lado da

casa, como se estivesse entendendo o que estávamos falando.

Ele se levanta e vem caminhando em nossa direção como um

gato. Uma pata na frente da outra. Parecia estar atravessando um

abismo em uma corda. Flávia pôs a mão no crucifixo e gritou:

– Eu invoco o meu bisavô, soldado João Peçanha para nos

proteger.

Eu ria por dentro. Mas não conseguia gargalhar. Parecia que

minha voz estava presa. O cachorro continuou caminhando.

Porém, na medida em que ele se aproximava, vinha crescendo. E

quando parei para perceber, já estava do tamanho de um leão.

Minhas pernas ainda se moviam. Mas queria ver o que iria

acontecer. Sempre fui muito curioso e dessa vez não iria ser

diferente. O cachorro tinha um olhar que nunca havia tido antes.

Parecia me desafiar, parecia dizer que eu não era capaz...

Mais um passo. O cão começou a andar em duas pernas. E

continuava crescendo. Adquirindo músculos de humanos, mãos

e peitorais humanos. Até que chegou diante dos meus olhos.

Flávia ainda estava segurando o crucifixo. Ambos paralisados. E

de repente, quando achei que a situação não podia piorar, ele

puxou respiração, olhou para ela, e numa voz afeminada

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esbravejou: “Amiga! Conta-me como você está!”. Como se

estivesse encontrando uma companhia de longa data. Caímos.

De joelhos. Não queríamos, mas as colunas se dobravam. A dor

era insuportável. E lembro-me que chorávamos feito crianças até

eu acordar.

Eu e Flávia nunca fomos muito próximos. Sempre nos falamos,

mas por questão de educação. Afinal ela era linda e eu era

inteligente. Portanto, algum dia um precisaria do outro. E em

meio à lição de português, me encontro numa dúvida: Por que

com tantas garotas a minha volta, o sonho acontece logo com

Flávia? Nunca tivemos uma conversa duradoura ou algo além da

sala de aula. Sempre foi... Bom dia. Bom dia. Sabe a resposta da

dois. Sim, é a letra A. Obrigado. De nada. Então o que levara a

ser Flávia em meu sonho? Por que não minha namorada ou

minha melhor amiga?

Parei para pensar por um bom tempo. E acabei me desligando

da aula. Tentava buscar na lembrança todos os detalhes daquele

sonho. O mistério era imenso. Por que Flávia e não Luiza? E o

que aquele cachorro queria dizer? Sinto uma dor de cabeça

enorme. E Flávia vem me perguntar se estava tudo bem. “Estou

ótimo”, disse eu amenizando.

– Ah, que ótimo. Eu não sei por quê. Mas hoje sonhei

contigo. (Disse Flávia)

Confesso que me assustei. Era a primeira vez que nós

começávamos um assunto. E logo este assunto. Seguro-me.

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Sempre fui bom em controlar minhas reações. E pergunto:

– Sério? O que você sonhou?

– Nada demais. Você me passava uma cola na prova de

matemática e o professor pegava.

Minhas expectativas foram no chão. Mas não deixaria de

perguntar:

– Flávia, me diz um negócio rapidinho.

– Fala, amor. (Disse Flávia)

– Você por acaso sabe o nome de seu bisavô? (Perguntei

direto ao ponto)

– João. Na verdade deve ser isso. Porque todo velho tem

nome de João...

– Ah tá. (Eu disse decepcionado)

– Por quê? (Perguntou Flávia querendo saber por que eu

fiz uma pergunta tão inusitada)

– Nada não. Só para comparar. Meu avô também se chama

João. Olha só que coincidência... (Mentira, o nome do meu avô

era Antônio)

Mas qualquer resposta servia para fugir daquele assunto

constrangedor. A aula acabou. Voltei a minha casa ainda

indagado com o fato de Flávia estar no meu subconsciente. E

outra pergunta também, era se aquelas palavras ditas por ela,

eram verdadeiras ou não.

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Quem é João Peçanha? Os dias se passaram. O mês de março já estava na metade. E

acabei deixando toda essa curiosidade sobre o sonho para

segundo plano desde que contei para minha melhor amiga.

Estava falando sério e ela zombando do fato. Fiquei puto. Pois

não se faz uma coisa dessas. Pode parecer idiota. Mas não é.

Estava precisando de ajuda. Queria alguém que me

tranquilizasse. E achei que nada melhor que um amigo para

conversar. Pensei errado. Ela minimizou o pesadelo. Como se

fosse mais uma de minhas histórias. Dizia-me que não era nada

e que eu podia conversar com mais cachorros por aí. Um dia

viraria o Doutor Dolittle. Esse comentário foi à gota d'água.

Todos da praça de alimentação do shopping olhavam para nós. A

gargalhada de Suzana estava escandalosa. Então saí de lá. “Ei!

Não vai comer o seu lanche não?”. Perguntou-me. “Não!”.

Respondi seca e friamente. “Vai salvar mais cachorros por aí?”

gritou Suzana às gargalhadas. Não respondi por respeito às

pessoas que estavam observando. E desde então não procurei

saber.

Sentado diante de meu computador, lendo uma matéria que

havia me interessado, senti a presença de alguém. Como se me

observassem por trás. Como alguém que queria me chamar

atenção. Apesar da pouca idade, eu morava sozinho. Trabalhava

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até meados de fevereiro como atendente em um banco. Porém

fui demitido em meio a um corte de gastos que houve na

empresa. Olho para trás e nada. Coisa de minha cabeça. E

quando volto a olhar a tela, me aparece um daqueles anúncios de

“Aumente seu pênis”. Até desisti de terminar de ler a matéria.

Volto para a sala e ligo a tevê. E assistindo o noticiário, me senti

novamente sendo observado. As crianças brincam na rua. Fazia

tempo que eu não os escutava. E chamavam por um João. Ué,

mais aqui na rua não tem nenhum João. Indaguei-me. Fui até a

janela para observar. Entretanto já era tarde. Todas elas já

tinham ido para a rua de trás.

E mais uma vez. João Peçanha na cabeça. Por que Flávia havia

dito esse nome? Quem era João Peçanha?! Putz. Novamente

essas perguntas me atormentando. Mas desta vez não deixei que

me fugissem as dúvidas. Voltei ao computador e comecei a

pesquisar. Google. João Peçanha. Apenas endereços de lojas.

Nenhuma página que disse quem era este homem. Nada me

provava que ele existia. Nem dava uma pista de que já esteve

entre nós. Pelo amor das flores! Quem é este homem?! Gritei.

Batem-me a porta. “Quem é?”. Perguntei. “Filho, estou indo à

igreja. Só passei pra avisar que seu pai está em casa se você

quiser sonhar.”. “Está bem”. Era minha mãe que morava por

perto. E eu não tinha muito talento para cozinhar. Então

costumava almoçar na rua e jantar na casa de meus pais. Tive

irmão até novembro do ano passado. Leucemia. Minha mãe,

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extremamente religiosa não deixou que ele recebesse uma

doação de sangue. E acabou. Desde então fico me indagando se

Deus é contra ou a favor de nós. Caso ele exista. E se existir, por

que não deixou que meu irmão recebesse o sangue para ficar

vivo? Por que não permite isso? Desde então deixei de confiar

em Deus. E também não confio muito em sua existência. Se

houver uma força maior assim como é dita nas bobagens

numeradas em capítulos e versículos da “Bíblia Sagrada”,

deixaria que meu irmão sobrevivesse.

Não quis jantar. Voltei a pesquisar sobre o tal João Peçanha. Já

estava desanimado, quando achei uma página do Wikipédia

dizendo “João”. E a internet me cai antes mesmo de eu acessar.

Era a conta que eu não havia pagado. Realmente algo

desesperador.

Desisto da busca. Foi inútil gastar meu tempo com esta

porcaria. Tomei um banho para esfriar a cabeça antes que

também cortem a água. Era o meio do mês e o meu dinheiro de

seguro desemprego já estava no fim. Assim que saio do banho, o

telefone toca. Atendo:

– Alô?

– Oi, amor. (Era Roberta, minha namorada)

Fazia alguns dias que eu não havia e já estava cheio de

saudades de seus beijos e abraços...

– Boa noite, meu amor. Tudo bem? (Perguntei)

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– Tudo ótimo. Já vai dormir? (Disse Roberta)

– Pretendo. Acabei de sair do banho e não tenho mais nada

para fazer. Vou fazer um café e dormir. (Respondi)

– Se incomoda de eu te ver?

– Agora?

– É.

– Venha. Estou te esperando.

– Beijinho, amor. Daqui a pouco estou chegando.

Ela desligou o telefone. Roberta, apesar de seus dezoito anos,

era um tanto infantil. Às vezes me tratava como se eu fosse seu

filho. Eu tinha dezenove anos e já era mais responsável que seus

pais. Portanto, eles não viam problemas em deixá-la dormir em

minha casa. Afinal, daqui a alguns dias completaríamos quatro

anos de namoro oficial e dois de noivado. Portanto, minhas

intenções eram sérias e respeitosas. E nunca tive medo de

mostrar isso.

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O Primo Roberta chega a minha casa em menos de meia hora. Perecia

que o transito fluía bem àquela hora. O final do horário de pico

nunca costuma ser tranquilo. Havia dias que demorava quase

uma hora para chegar a casa dela. Mas nada disso importava.

Estava diante da minha amada. A loira estava poderosa.

Maquiada e cheirosa... A saudade nos faz achar que a pessoa que

a gente ama é mais bonita. Ela entrou, tranquei o portão e ela me

deu um beijo. A levei para a sala. E quando nos sentamos no

sofá para matar a saudade, minha mãe me chama. A casa era

pequena. O quintal era mínimo. Apenas um espaço descoberto

entre a porta e o portão para eu poder estender minhas roupas.

Na prática era inútil. Pois minha mãe fazia questão de lavá-las.

“Oi, mãe.”. “Meu filho, abre a porta.”. Abri.

– Aconteceu alguma coisa? (Perguntei preocupado)

– Sim. O seu primo morreu.

Que primo? Nunca tive primos. Crescemos apenas eu e meu

irmão. Achei que minha mãe estava ficando louca. O fanatismo

religioso dela a deixava cada dia mais paranoica. Aliás, o

fanatismo religioso de minha mãe não era de hoje. Já vinha de

muito tempo. Ela não nos deixava comemorar nossos

aniversários. Eram tristes as noites de natal e ano novo. Todos os

vizinhos comendo em ceias fartas e fazendo festas. Nós

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comíamos pão com margarina e dormíamos antes das dez. As

queimas de fogos eram o que mais me doía. Não podia assistir

os brilhos no céu. Durante minha infância, nunca tive uma ceia

de natal, um pudim no ano novo, um bolo de aniversário, um

presente de formatura, um ovo de páscoa... E quando indagava

minha mãe sobre isso, ela respondia “Porque Deus quis assim”.

É isso mesmo que ele quer? Uma vida monótona? Desculpe.

Mas se for pra ser assim, prefiro nem acreditar.

– Primo? Que primo, mãe? Nunca tive primo algum.

– Você sempre teve primo. Só que nunca conheceu.

– E você espera ele morrer pra me dizer isso?

– Ela tinha pra lá de quarenta anos. Era polícia. Vivia

matando gente. Não queria que você conhecesse um assassino.

– Então um defensor da lei agora é assassino?

– Só quem tem o poder de julgar é Deus, meu filho.

– Você acabou de chamar o cara de assassino e agora vem

com esse salmo de preguiçoso pra cima de mim?!

– Olha, isso não importa. O João vai ser enterrado amanhã

no cemitério do Caju às oito e meia horas da manhã. Eu já vou

indo. Boa noite, meu filho. Boa noite, Roberta.

– Boa noite, mãe.

“João? O nome dele era João?! Será que é João Peçanha? Eu

não posso acreditar. Será que o caso está resolvido?”. Entrei em

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euforia. Estava ansioso para saber de que João estava sendo

falado. Tão ansioso que não conseguia mais me concentrar em

Roberta. Ela estava implorando meu carinho. E eu não era capaz

de dar o que ela me pedia. A preocupação era enorme, claro.

Uma hora ela compreendeu que eu não estava para carícias.

Alguém da minha família havia falecido. Não precisava de sexo

ou amor. O que eu precisava, era tranquilidade e consolação.

Afinal, quando a morte ronda nossa família, por mais que não

tenhamos conhecido quem se foi, ficamos cabisbaixos.

Dormimos. O relógio desperta cinco horas da manhã. Horário

que eu costumava acordar aos sábados para fazer minhas

corridas periódicas. Porém, o enterro não podia me espera. E

troquei gato por lebre. Tirei o terno do armário e me vesti. O

terno preto sinalizaria a minha dor de nunca ter conhecido meu

primo. A dor de dizer adeus sem antes poder dizer olá. Roberta

só observava a minha movimentação. Achei que ela estava

dormindo. Sempre costuma acordar tarde. Achei improvável que

estivesse assistindo aquilo. E digo mais, pensei que sairia,

voltaria e ainda viria Roberta dormindo. Não naquela

madrugada. “Amor, posso ir com você?”. Perguntou ela para a

minha surpresa. “Claro”. Respondi. Ela se levantou, foi até o

meu armário. Havia uma parte onde ela deixava algumas de suas

roupas. E tirou dali uma calça jeans e uma blusa branca. Vestiu-

se como um foguete. E estava pronta antes mesmo de mim.

Resolveu prender seus cabelos loiros enormes, dispensou

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maquiagem e pouco fez questão de perfumes. Acho que ela

queria ser discreta no velório. Vamos? Vamos!

Fui à casa de meus pais para buscá-los e assim todos nós irmos

juntos. Sempre morei no bairro de Campo Grande na cidade do

Rio de Janeiro. Zona oeste. E os problemas sempre foram

imensos para chegar ao centro da cidade. Trânsito, transporte e

conforto não cabiam na mesma viagem. Se eu não pegasse

trânsito, o ônibus demorava e vinha cheio. E por aí vai. Assim

que minha mãe viu Roberta vestida de branco, logo perguntou:

“Mas o que é isso? Ela vai a uma festa? Não se usa branco em

enterros.”. Nunca achei que as cores influenciavam em alguma

coisa. Se fosse assim, só andaria de amarelo para ganhar

dinheiro. Que é o que a superstição de minha mãe diz. O detalhe

é que a religião da igreja dela não acredita em superstições. Mas

todos os seus fieis acreditam. E não sou eu quem vai mudar isso.

“Ela não pode usar a roupa que bem entender?”. “Mais isso é

branco. Tem que ir de preto." É só uma blusa, mãe. “Não vai

mudar em nada.”. Ela, que estava vestido de preto, concordou

com meu argumento. Meu pai também vestia preto. Já passava

da hora dele tirar o seu terno preto com cheiro de naftalina e

vestir para alguma ocasião. E assim todos nós entramos no

ônibus.

Minha mãe tinha uma certe cisma com Roberta. Pois depois

que eu a conheci, comecei a fazer as coisas que sempre tive

vontade. Comecei a sair mais de casa, ir às festas de todos os

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gêneros, escutar músicas além de louvores, até minhas roupas

mudaram. Mas o que deixou minha mãe realmente indignada foi

quando eu saí definitivamente da igreja. Na minha concepção eu

via que aquilo não me acrescentava em nada. Depois da morte

de meu irmão, Olavo, deixei tudo para trás. É engraçado dizer.

Minha mãe sempre fala que a Roberta é do demônio, que não

presta... Mas se não fosse por ela, seria por outra pessoa. Já era

desacreditado desde criança. E a ida de Olavo me tornou ateu.

Chegando ao cemitério, todos de branco. Apenas minha mãe,

meu pai e eu estávamos de preto. Sentia-me um ser bizarro em

meio a toda aquela gente. Eles me olhavam como se eu estivesse

cometendo um crime. Fazendo algo de muito errado. Ainda

meio ignorante, num clima de rivalidade entre minha mãe e as

pessoas presentes, Roberta me diz: “Seu primo era fiel à religião

dele. Nunca vi tantos espíritas em um enterro.”. O espiritismo é

uma religião muito rejeitada pela sociedade. Pessoas todos os

dias sofrem com a discriminação e o preconceito. E eu nunca

havia tido a oportunidade de ver tantos deles juntos. Era uma

pena que eu estivesse rotulado pelo meu terno. A ocasião não era

das melhores para que eu tomasse conhecimento das tolices de

acreditar em Ogum ou Oxalá.

Depois de muito tempo sendo observado por olhares tortos, me

veio uma senhora em direção à gente. Tratava de minha tia. Na

verdade, minha parenta. Não sabia nem qual grau de parentesco

tinha com aquela mulher. Afinal, eram uma parte distante da

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família. Ela se refere a minha mãe:

– Maria, que bom que você veio. Aceita um café ou uns

biscoitos?

– Não, obrigada. Prefiro ficar com fome vendo esse monte

de macumbeiros.

– É triste ver pessoas cuspindo n prato em que comeu. Não

se esqueça de que você conheceu o pai de seus filhos no terreiro.

E saiu sem nem ao menos agradecer.

– Não devo nada aos demônios.

– Não. Você não deve aos demônios. Até porque eles não

são demônios.

Tive de interferir a discussão que começava a chamar atenção

de todos:

– Olá.

– Olavo! Como você cresceu! (Ela não falou por mal. Meu

irmão mais velho.)

– Eu sou... Otávio. Olavo faleceu há pouco tempo.

– Sinto muito. Eu realmente não sabia. Faz dezenove anos

que eu não os vejo.

– Tudo bem. Essa aqui é Roberta, minha noiva.

– Nossa! Ela é linda. Seja bem vinda.

– Obrigada. (Disse Roberta meio envergonhada)