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134 Jomard Muniz de Britto um livre pensador a serviço do cinema e da cultura POR pedro nunes Foto por Fred Jordão

Jomard Muniz de Britto: um livre pensador a serviço do cinema e da cultura

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Artigo-entrevista com o professor Jomard Muniz de Britto sobre o terceiro ciclo de cinema na Paraíba (1979-1983).

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Jomard Muniz de Britto um livre pensador a serviço do

cinema e da cultura

POR pedro nunes

Foto por Fred Jordão

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“Sobrevivemos pelo

desencantamento

do mundo e

reencantamento

das linguagens.”

JMB

Jomard Muniz de Britto pode ser descrito como um livre pensador que incorpora a dimensão de um poeta ir-reverente. Habitualmente esse ilósofo-poeta caminha na contramão dos acon-tecimentos. Esse guru acadêmico que vislumbra possibilidades estranhas e ra-dicais no campo da arte, consegue rein-ventar o seu próprio cotidiano através da inscrição de marcas libertárias e de resistência cultural muito bem expressas em seus manifestos, ilmes, declama-ções, performances e discursos que co-meçam pelo avesso, livros, experimentos e manifestos. Esse seu peril singular é impregnado por essas diferenças que se proliferam na contracorrente. A sua sin-gularidade criativa e intelectual resulta de um eu plural com múltiplas faces.

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Paulo Cunha, em A pesquisa cultural nas margens: universidade, vanguarda, periferia1, faz a seguinte observação sobre a produção conceitual de Jomard Muniz de Britto:

Parece claro que o traço unificador mais genérico da produção de Jomard Muniz de

Britto é a ruptura com as esferas tradicionais da cultura e a instituição do sentido do

novo como produtor do novo sentido. Há um permanente elogio da experimentação,

das vanguardas - embora esse elogio seja problematizado pelas próprias contra-

dições que ele expõe. Trata-se, muitas vezes, de uma espécie de antissaudosismo

militante em que o novo se localiza como desafio.

Jomard Muniz de Britto é um militante despojado que maneja com ideias ino-vadoras no campo da produção de conhecimentos e de sua produção cultural. Age e pensa em ritmo de ruptura, confrontos e diálogos. Pode-se dizer que a sua con-dição de ser revela uma pessoa avessa às convenções, aos rituais e aos protocolos. Integra esses protocolos, mas prefere as dobras, as margens, os paradoxos, a peri-feria e os percursos errantes. A sua produção intelectual relete essas contradições e conlitos de um Brasil utópico em busca de novas identidades: “O Brasil não é meu país, é o meu ABISMO”, airma. Essas posturas pensamentais e performan-ces Jomardianas geram atritos, colisões e promovem a curiosidade. Desaguam e se espraiam em toda sua produção conceitual e fazem do humano pensador Jomard Muniz de Britto uma pessoa amada e odiada por proclamar o respeito às diferen-ças, por adotar posturas contra as farsas políticas, os valores morais, a hipocrisia social e as imposturas acadêmicas.

Jomard Muniz de Britto é por natureza própria um protagonista da cena cultural, polêmico, que se estrutura sob o paradigma da ousadia. Encampa outros adjetivos qualiicativos. Essa irreverência enquanto postura existencial de vida contra o que sempre denominou de BURROcracia não impediu que ocupasse cargos públicos de destaque, a exemplo de diretor da Fundação de Cultura da Cidade do Recife ou, ainda, a sua atuação como diretor do Departamento de Extensão Cultural da Uni-versidade Federal de Pernambuco.

Seus textos, produções culturais e legados poéticos ressigniicam a vida ao valori-zar o contraditório, as posturas libertárias e os novos arranjos estéticos que violentam as construções narrativas mais tradicionais.

Em um AUTORRETRATO verbal, Jomard Muniz de Britto relata o se-guinte: “Eu sou sobrevivente da Bossa Nova, pra mim, a modernidade surgiu na Bossa Nova e corresponde ao Cinema Novo...”.

Em 1964, ano de instauração do Golpe Militar Brasileiro, Jomard Muniz de Britto lança Contradições do Homem Brasileiro, sendo logo em seguida o livro proibido, tempos depois, o autor preso. Na condição de professor da Universidade Federal da Paraíba respondeu a um inquérito policial em decorrência de uma palestra que teve como tema o AMOR.

Autor de uma vasta obra literária destacando-se: Do Modernismo à Bossa Nova

1

Texto apresentado

no Encontro

de Estudos

Multidisciplinares

em Cultura,

realizado no

período de 23 a 25

de maio de 2007,

na Faculdade

de Comunicação

da Universidade

Federal da Bahia,

Salvador/Bahia-

Brasil.

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(1966), Inventário de um Feudalismo Cultural (1979), Terceira Aquarela do Brasil (1982), Bordel Brasilírico Bordel (1992), Arrecife de Desejo (1994) e Atentados poéticos (2002), entre outros.

Glauber Rocha, ao prefaciar Do Modernismo à Bossa Nova (1966), reeditado pela Civilização Brasileira em 2009, nos traça um peril afetuoso que revela o amplo es-pectro criativo de Jomard Muniz de Britto. Glauber Rocha assinala o seguinte:

O que me fez amigo de JMB foi nossa comum paixão pelo cinema, isso já faz dez

anos (em 1956, portanto), na decente Recife. Depois, nosso desencontro de tempe-

ramentos criou compensações: JMB veio escrever crítica de poesia numa revista li-

terária que eu dirigia em Salvador, depois veio mesmo para a Bahia, onde agiu com

brilhantismo e polêmica nas rodas jovens das artes e letras locais. E assim foi, se

revelando palmo a palmo: o crítico de cinema era professor de filosofia, o teórico

de poesia era entendido de teatro, o esteta rigoroso era jornalista, o jornalista era

professor e o professor sambista, outra vez no teatro! Fascinante timidez evoluindo

por meandros táticos, aqui e ali exercendo sua função precisa, consequente. Outra

coisa que me fascina em JMB é a sua desaristocratização [...]. Sua erudição é diluída

no seu grande interesse pela vida, sobretudo pela vida que o cerca, a que vive nos

inesperados caminhos de hoje.

No campo da produção audiovisual, a obra de Jomard Muniz de Britto é igual-mente perturbadora e mordaz. Em pleno auge de repressão do regime militar, começa a produzir a partir do ano de 1974, ilmes na bitola Super-8. A sua pro-dução audiovisual em Pernambuco é constituída por 28 ilmes irreverentes ou por assim dizer, desestabilizadores. Destacamos alguns desses títulos: Ensaio de androgi-nia (1974), Esses moços, Pobres moços (1975), Alto nível baixo (1977), O palhaço degolado (1977), Inventário de um feudalismo cultural nordestino (1978), Jogos frugais frutais (1979) e Jogos Labiais Libidinais (1979).

Em 1980, a ação que tramitava na Justiça garantiu a Jomard Muniz de Brit-to o direito de reintegração à UFPB. A partir daí passa a compor o quadro de docentes do então Departamento de Artes e Comunicação, ministrando au-las no Curso de Comunicação Social. O Brasil desde 1978, em plena vigên-cia do regime militar, se articulava a partir de grupos organizados em favor da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.

A presente entrevista com Jomard Muniz de Britto, realizada no dia 06 de junho de 1985, retrata esse período de vivência intensa do autor em termos da efervescên-cia cultural que forneceu suporte para a construção do terceiro ciclo de cinema na Paraíba. Jomard Muniz de Britto foi uma das iguras de destaque desse movimento por conta de sua sólida formação intelectual, produção de ilmes Super-8, participa-ções em seminários, debates e posicionamentos na imprensa. Ele integrou a segunda geração de cinema paraibano, sobretudo com sua produção literária, fazendo uma ponte entre João Pessoa e Recife e atuou de forma ativa junto aos protagonistas do surto de produção audiovisual ocorrido na Paraíba de 1979 a 1983. Como contrar-

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resposta ao Cinema Direto, Jomard Muniz de Britto ajudou a criar o Núcleo de Cinema Indireto, estimulou a escritura de manifestos e produziu três ilmes na bitola Super-8 que são considerados basilares no contexto de uma produção audiovisual na Paraíba, visto que apresentam marcas de experimentação e transgressão temática envolvendo a sexualidade: Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Paraíba, Masculina, Feminina Neutra (1983).

No ano de 2007, a Universidade Federal da Paraíba outorgou o título de Profes-sor Emérito a Jomard Muniz de Britto como forma de reconhecer a sua relevante produção acadêmica prestada à ciência, à cultura e à instituição.

Na presente entrevista Jomard Muniz de Britto levanta questões conceituais sobre o cinema, destaca as iniciativas regionais de produção audiovisual, põe em relevo o papel da Universidade Federal da Paraíba, evidencia o contexto de época que cir-cunscreve o Terceiro Ciclo de Produção Audiovisual na Paraíba, levanta os conlitos em torno do Cinema Direto e do Cinema Indireto, fala dos ilmes onde a sexuali-dade é posta em debate, critica as ações da censura no contexto da ditadura militar e sinaliza apontando os principais desaios quanto à ausência de uma infraestrutura necessária para a produção audiovisual na Paraíba. A entrevista inédita integra o corpo da dissertação de mestrado, intitulada Violentação do ritual cinematográico: Aspectos do cinema independente na Paraíba - 1979 -1983, defendida no ano de 1988 na Universi-dade Metodista de São Paulo.

O que você considera como Cinema In-dependente e Cinema Alternativo? Você faz alguma distinção entre esses dois conceitos?

Associo muito esse problema de Cine-ma Independente ou Cinema Alternati-vo ao problema da cultura de um modo geral. Fala-se muito de Poesia Marginal, a Geração de Mimeógrafo, que foi em 70, chamada geração 70, quer dizer, um bocado de poetas, escritores num sentido mais amplo, mas preponderantemente poetas, que com diiculdades de acesso às grandes editoras, começaram a furar o circuito de divulgação dos seus traba-lhos, através de uma produção indepen-dente. Eles próprios, através de recursos artesanais - mimeógrafo - iam divulgan-do seus trabalhos. Havia uma produção. Tem a tese interessante chamada Retrato

de Época, que airma de início: era uma produção que estava ligada a grupos, como Nuvem Cigana, Frenesi, quer di-zer, poetas, cada um com sua caracterís-tica própria, mas que se agrupavam. A produção independente surgiu por uma necessidade de expressão do pessoal, e de furar o bloqueio das editoras. Todo o cir-cuito, tanto a produção como a difusão em si, iam aos bares vender seus livros, para as portas de teatro, aos lugares onde tinha um público, que eles achavam que tinha identiicação com essa proposta de trabalho. O cinema que foi feito na dé-cada de 70, no nosso caso, sobretudo nos meados de 70, que se pode chamar de Produção Independente ou Alternativa (esses rótulos são muito questionáveis) que se coloca dentro dessa produção mais ampla da cultura brasileira alter-nativa, marginal ou marginalizada dos

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grandes circuitos, das grandes editoras, das grandes produtoras, uma forma de furar esse bloqueio. Poesia Marginal é uma poesia que se fez à margem, ela foi editada à margem das grandes editoras, marginal neste sentido, ou alternativa, com circuito de distribuição ou de consu-mo, todo o elo da comunicação desde a produção até o consumo, se é que se deve ter um público diferente, uma alternativa diferente para aquela “produção indus-trial”, eu diria que uma coisa mais de um certo resíduo de coisa artesanal. Na épo-ca da censura muito forte, essa “geração mimeógrafo” na literatura... signiicava, também, um confronto, uma “guerrilha cultural” diante das tremendas frações da censura.

Quer dizer que você situa o Cinema In-dependente dentro desse contexto mais amplo, com outros movimentos, da poe-sia, teatro. Então, qual a relação de seu trabalho com esses conceitos que você teorizou de uma forma mais ampla, como é que você associa seu trabalho com...

As peculiaridades de meu trabalho ou particularidades eu já procuro um pouco justiicar, no caso de carecer justiicativa, pelo fato de eu ser professor de Comuni-cação, eu acho que há um certo estímulo para os próprios alunos com os quais eu trabalho, de que o professor não apenas teorize ou discuta problemas de comuni-cação, mas que ele também se exercite através dos meios de comunicação. Eu gostaria muito de fazer programas de te-levisão, mas não tenho acesso à televisão; eu participei um pouco de entrevistas de televisão, até como entrevistador convi-dado da Globo durante algum tempo em

que entrevistei muita gente. Para mim surge como necessidade desse compro-metimento didático, de que o professor deve também mexer com os meios de co-municação, e o professor, à medida que faz coisas fracas, também, coisas criticá-veis, e isso tudo mostra que ele está se desmistiicando também e que os alunos achem que se o professor faz um ilme ele também pode fazer. Acho que é dentro desse espírito muito pedagógico. Agora, a coisa ao mesmo tempo extrapola a di-dática, a pedagogia. Eu sempre fui muito voltado para o problema dos audiovisu-ais, eu me lembro, teve uma época em que eu dava todos os meus cursos basea-dos em episcópio e pegava músicas, cola-gens... e eu me lembro de uma aluna que participava de um curso meu na Secre-taria de Educação e Cultura de Pernam-buco e disse: “Isso parece Godard, essas montagens que você faz”. Eu cheguei ao cinema através de um trabalho audiovi-sual, música e colagens, uma montagem que eu fazia com episcópio, eu treinava muito em casa para que houvesse a coin-cidência do ritmo e da música com aque-las imagens que eu mesmo projetava. Eu achei esse encaminhamento de chegar ao cinema da década de 70, já que es-tava desligado desde ins de 50... época dos debates dos ilmes, cineclubismo, etc. É uma motivação didática ligada a essa paixão que eu tenho pelo audiovisual.

De 1978 a 1983 nós temos 55 filmes re-alizados na Paraíba, em sua maioria na bitola Super-8 e alguns no formato 16 mm. A que você atribui esse surto de re-alizações?

São tantos fatores. Primeiro a necessi-

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dade de retomar uma própria produção que acabaria sendo pioneira na época do Cinema Novo. Isso sempre icou, apesar de muitos cineastas paraibanos terem ido radicar-se no centro-sul do país, mas icou dentro da ambiência cultural o de-sejo de retomar essa linha criativa, dessa produção criativa do cinema. Esse seria um dos elementos, outro, as Jornadas de

Cinema em Salvador tinham um efei-to de demonstração... assim você via as produções que estavam se realizando nos outros estados. Isso era uma fonte de estí-mulo para quem queria. Aqui em Recife, a inluência do crítico Fernando Spencer, também cineasta, divulgava muito, como também Celso Marconi divulgava a Jor-nada de Cinema de Salvador. As pessoas queriam participar, iam, e para partici-par tinham que fazer ilmes. Eu coloco muito isso e também na Paraíba o pro-blema da universidade que houve com o

Cinema Direto, o convênio com a Fran-ça gerou uma certa polêmica altamente produtiva. Ao pessoal que era ligado ao Cinema Direto eu colocava numa linha paródica o Cinema Indireto, que é um cinema oblíquo. Questionar um pouco o perigo de um certo dogmatismo do Cinema Direto. Mas, a Paraíba teve um mérito, um mérito, inclusive, que acho

importante, de ter recriado o Cinema Direto, de ter deturpado o purismo do Cinema Direto, a proposta do Cinema Direto. Recriação incluindo tudo, aspec-tos de deturpação, de formação da pro-posta inicial do Cinema Direto, de uma certa pureza do Cinema Direto. Então, a Paraíba é um negócio... as impurezas paraibanas, as impurezas do “masculi-no neutro”, como tem as impurezas do branco do poeta Carlos Drummond de Andrade, as impurezas do audiovisual que são as manchas paraibanas, as tintas

II Mostra de Cinema

Independenteem 1982

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paraibanas dentro de uma certa “ortodo-xia diretivista” por parte dos franceses. E depois, a facilidade de se fazer Super-8, em termos econômicos, é claro que mui-ta gente tinha vontade de fazer 16 mm, 35 mm, terceira dimensão, mas não se tinha grana, não se tinha condições eco-nômicas. Na década de 70 era uma coisa viável, eu pude fazer vários ilmes com recursos próprios, com o meu salário de professor, sem ajuda de nenhuma insti-tuição; conseguia tirar do meu salário para produzir esses ilmes, quer dizer, entrava na produção atores que nunca ganharam dinheiro comigo, mas alguns técnicos de montagens e cinegraistas ti-nham um cachê simbólico que eles pe-diam, a parte de montagem... não era só o ilme virgem não, mas alguns técnicos recebiam, e isso, com meu salário de pro-fessor, e hoje em dia a coisa seria muito mais difícil. Estou colocando a Paraíba, mas o intercâmbio entre Recife e João Pessoa é muito grande, sobretudo, por eu transitar semanalmente entre as duas cidades... eu tenho que colocar a coisa do ponto de vista da Paraíba e de Per-nambuco também, inclusive retomando aquele casamento tão ideal e tão perfeito que foi o do fotógrafo Rucker Vieira com o Linduarte Noronha, nas origens do Ci-nema Novo paraibano.

Observamos nos filmes paraibanos pio-neiros e na segunda geração de cinema uma tradição de cinema com uma pers-pectiva documental. Neste novo ciclo de cinema produzido na Paraíba você con-segue ver um corte nítido entre o docu-mentário e a ficção, ou não?

Mais do que um corte, é uma ruptura

mesmo, e isso para os defensores de um cinema, de uma linha da pureza docu-mental. Essas pessoas, evidentemente, se sentiam muito incomodadas, eu diria talvez, agredidas. Havia uma tradição sólida, muito forte, uma tradição crista-lizada de um cinema feito por cineasta antropólogo ou etnólogo, da linha mui-to mais Aruanda, da matriz Aruanda do Linduarte... Pois quando surgiu essa coisa iccional, a abertura para uma fantasia criadora, mistura de docu-mento com icção, gerando icções mais audaciosas. Isso naturalmente bulia muito com as tradições do do-cumentário, não só paraibano, mas nordestino, brasileiro.

As produções independentes em Su-per-8 tendem para experimentação com inovações da narrativa. É isso que observamos no conjunto de pro-duções emergentes em vários estados brasileiros. No entanto, percebo no conjunto das realizações paraibanas a utilização de códigos convencionais que tomam como modelo o cinema de concepção dominante. Identifico uma ausência de criatividade, falta ousa-dia para a grande maioria dos jovens da terceira geração. Eu consigo enxergar essa ousadia nos filmes de ficção ou pro-postas híbridas docuficcionais.

A linhagem documental, documen-tarista, tem as amarras históricas muito nítidas. O documentário faz uma opção, ou certo comprometimento, uma certa amarração histórico-social, ou histórico-sociológica, ao passo que a icção joga com as asas da liberdade. Embora, toda a icção relita um momento histórico. O

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projeto iccional é justamente o projeto de jogar com o imaginário. Logo, a pala-vra que você usou antes, um comporta-mento mais audacioso, um desaio maior para a parte inventiva, estaria na icção, embora sem tirar o mérito da criativida-de que existe nos documentários. Mas, eu acho que há um apelo mais veemente de identidade criativa na icção. O pro-blema mais sério é a partir de quando, por exemplo, Jean-Claude escreveu mui-to bem, por uma crítica iccional, que esses territórios de documentário e da icção já começam a estar muito mina-dos, uma vivência, uma relexão, não só a vivência, mas uma relexão metalin-guística, coloca muito, sobretudo a con-tribuição de semiologia e da semiótica. As análises, assim, freudianas, lacania-nas, já mostravam que esses territórios são territórios minados, e que não exis-tem fronteiras rígidas, separando a icção do documentário. E esse documentário, de qualquer forma, documenta o real, e também o que existe de iccional na pró-pria intenção ou na própria linhagem do documentarista. Eu acho que é a colo-cação mais forte a ser feita, justamente isso é uma coisa da década de 70 pra cá, é mostrar que não existe esse purismo documentarista, e que o documentário... ele aparentemente é um documentário, é um relexo... relexão sobre a realidade, mas tem muita coisa do delírio do autor, do apriori ideológico do autor... ele vai ser a realidade através de uma angulação so-ciológica (psicologia social) antropológi-ca e isso condiciona a visão dele da pró-pria realidade. As fronteiras se tornaram muito luidas, o campo de ambiguidade tende a crescer cada vez mais nessas rela-ções de documentário com a icção.

Embora eu conheça muito bem o seu trabalho, eu queria que você falasse sobre os seus filmes e temáticas perturbadoras.

Considerando num todo, num con-junto, ou num bloco, diria que é a proble-mática da crítica da cultura. É uma coisa meio pernóstica, mas é uma coisa que a gente tenta exercitar na universidade, que é a coisa da crítica cultural, muito ligada à cultura brasileira, especialmen-te. Eu procurei mobilizar o audiovisual, especialmente o Super-8, dentro dessa perspectiva de crítica cultural, que em alguns ilmes a coisa é bem evidenciada, ela tem um destaque muito... talvez mais do que óbvio, como Palhaço Degolado e Inventário do Feudalismo Cultural, esses dois ilmes eu acho que deinem bem. Outras Cenas da Vida Brasileira, também. A minha produção paraibana é uma produção muito limitada, são três ilmes de mais ou menos 30 minutos, Esperando João, A Cida-de dos Homens e Paraíba Masculina... O pri-meiro é uma tentativa de me antecipar ao ilme da Tizuka Yamasaki sobre Anayde Beiriz, mais uma vez mostra a facilidade do Super-8. Na verdade eu assisti a uma palestra de José Jofily no Departamento de Artes e Comunicação; durante a pa-lestra uma professora e ex-aluna nossa, Maria das Graças, fez uma pergunta ao Jofily sobre o problema das ligações da-quele assassinato de João Pessoa àquela trama entre João Dantas, João Pessoa e Anayde, se havia um comprometimento ideológico, ou era mais um caso senti-mental, um caso de amor, de uma pai-xão desvairada. Aquela pergunta, e até a própria notícia de que a Tizuka estava interessada em fazer um ilme sobre a

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Anayde Beiriz, me levou a ler o livro de Jofily, e de fazer um autodesaio a mim mesmo. Vamos fazer um ilme antes do ilme da Tizuka. É... essa coisa que eu diria assim: o espírito parodístico, a coisa da sátira, da paródia, que a gente gosta de usar muito como instrumental da crí-tica da cultura. E o que a gente pensou foi o seguinte: dar uma versão pirande-liana da Anayde. Seriam seis pessoas ou sete incluindo a narradora, seriam sete imaginários da Anayde Beiriz, como eu via, e como os autores tinham uma im-portância muito grande, cada um conce-beu a sua Anayde, como o ator Francisco Marto, que pesquisou muito. O Esperando João é essa colocação. São três atores e três atrizes, cada um encarnando, cor-poriicando a Anayde Beiriz. É muito como se fosse a ótica da cidade de João Pessoa, através da mulher, da condição feminina. Por isso eu iquei interessado em fazer dentro deste espírito parodístico inspirado em Fellini de A Cidade das Mu-lheres, fazer A Cidade dos Homens, que foi o segundo ilme, mostrando a presença predominantemente masculina na vida da cidade, desde o amanhecer, os pes-cadores indo trabalhar, os operários que estavam construindo, o tão controver-tido Espaço Cultural, a manhã na vida da cidade, os pontos que têm um aglo-merado masculino maior, bares, Ponto de Cem Réis. E o terceiro é a pretensão de fazer uma síntese do primeiro com o segundo, uma síntese que avançasse um pouco mais. E a partir da música Paraíba Masculina... misturando essa música com uma leitura que faço barthesiana de um livro chamado... Masculino Feminino Neu-tro. Eu iz Paraíba Masculina... E que eu acho que depois o que eu escrevi... (você

pega aquela página que saiu na edição de IV centenário da Paraíba, em A União) procurei teorizar mais a minha interpre-tação da cultura paraibana, dos modos vivenciais paraibanos.

Eu queria que você fizesse uma leitura geral desse bloco de filmes. Que elemen-tos você considerou importante nesse conjunto de realizações?

O grande corte, ou a grande ruptura em relação à tradição anterior do ilme paraibano mais contaminado pelo ideal de uma certa pureza documental, foi justamente essa coisa da fantasia e sobretudo a fantasia erótica, esses ilmes no conjunto dinamizavam esse dado da fantasia erótica, o fantasma da fantasia e do imaginário erótico, muito recalcado na província, assim, as pessoas numa leitura mais supericial, mais rápida diriam: é o toque do homossexualismo, inclusive gostei de ter criado a expressão “Cineguei”, mas no sentido do Nego da Paraíba, do verbo neguei, passado do... Cineguei, quer dizer, várias leituras dessa expressão. Mas não ica só nesse toque homossexual, homoerótico, é o problema do erotismo num sentido mais amplo, dentro daquela visão mesmo, muito questionada pelos pós-freudianos, que colocam essa dimensão da sexualidade como sendo perversa e polimórica. Gostaria de citar, já que falei em Freud, uma entrevista recente de Wally Salomão que está dentro deste pensamento, dentro da tropicália, até essa produção independente, o Wally Salomão disse: “eu quero ser, eu me assumo”. E cita a expressão de Freud: “O perverso e Polimórico”. A perversão

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é o dado polimórico da sexualidade. Essa é, pra mim, a contribuição mais abrangente da fantasia erótica. Havia também o sociólogo muito contestador, ele quer ser, sobretudo, antissociólogo, contra os modelos uspianos, ele tem uma formação uspiana, mas tenta passar um pouco de cuspe nessa formação dele, que é o Gilberto Vasconcelos. Ele viu o ilme

do nosso caro amigo Manfredo Caldas, Cinema Paraibano - Vinte Anos, que é uma antropologia muito bem realizada, que tem um dado muito importante, inovador, joga homenagem a Dziga Vertov... o Gilberto Vasconcelos assistindo ao ilme e depois a um debate que eu iz na sala de aula, fez o seguinte comentário: “mas o cinema paraibano não tem um beijo!”. Quer dizer que a sexualidade anda muito reprimida, opinião do Vasconcelos, um sociólogo antissociologal, um ensaísta da cultura. Eu jogo isso, os dados do Freud, do Wally Salomão, do Vasconcelos,

misturando no caldeirão dos mitos de Braúlio Tavares, pra ver isso, essa coisa, esse dado novo, que está muito ligado a toda essa produção cultural independente, esse alorar, delorar, transpirar a sexualidade no sentido mais aberto, mais ambíguo, do que eu chamaria da perversão, no sentido positivo e da transgressão e da polimoria.

Por que a preocupação por parte dos re-alizadores em abordar a questão da se-xualidade? Existe um dado importante, pois são esses filmes, que já conseguem atingir um grande público, seu filme Es-

perando João... e um exemplo disso visto que foi apresentado em quatro sessões. É uma coisa interessante, muito impor-tante, porque até então, havia uma le-targia, e mesmo os outros filmes num estilo mais documental, no sentido de registrar a realidade, conseguiam certo público, mas isso em nível de trabalhos mais ligados à comunidade, aos mo-

Pedro Nunes fala ao público

no lançamento de

Closes, 1982.

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vimentos de bairro... Mas os filmes que abordam a sexualidade extrapolam isso aí, criou-se em nível de público também.

Esses ilmes que estão mais ligados às comunidades são um cinema que pre-tende ser militante, mas é um cinema de assistencialismo social, é o problema do cinema como serviço social. Agora, o que acho dentro dessa temática nova dos curtas paraibanos, não tenha a me-nor dúvida, que não é apenas por moti-vação psicológica-sociais, mas em termos de um marco objetivo, é o ilme Closes, que por coincidência foi realizado pela pessoa que está me entrevistando ago-ra. O grande rebuliço na província de João Pessoa foi realizado pelo ilme Clo-ses. Era a temática nova, a problemática nova, em termo de sexualidade, pela be-leza formal do ilme. O ilme tinha um charme, um encantamento visual muito grande. Isso foi um grande motivo para acender a chama dessa sexualidade re-calcada nos ilmes. Coloco isso objetiva-mente, foi Closes. Todos os meus ilmes são devedores do ilme Closes. Acho que os ilmes de Henrique Magalhães, do Lauro Nascimento, estão dentro dessa linhagem, a partir do que Pedro Nunes fez. Não era somente o ilme exibido, era todo um movimento antes de di-vulgação, de mobilização da comuni-dade, o interesse, os debates em rádio, na universidade, no DAC, esse circuito de divulgação, essa animação cultural, que o ilme Closes promoveu, propiciou, e que nós pegamos, somos os aluentes dentro desse movimento da animação cultural closística.

Quanto à veiculação de filmes, qual o papel da animação cultural, en-quanto fator decisivo para o debate dessas realizações?

O fato de estarmos ligados à universi-dade, as pessoas todas que participaram desse movimento de curta-metragem, são pessoas ligadas, direta ou indiretamente, na condição de aluno-professor, de professor-aluno, ao Departamento de Artes e Comunicação da UFPB. Nós vivemos o DAC na época das produ-ções, um clima de animação cultural muito grande. Essa animação cultu-ral pré-existia aos ilmes. O próprio DAC era sinônimo de alguma coisa bendita (por que não maldita?) dentro da universidade, um corpo estranho dentro da universidade. Toda essa dinâmica, essa mobilização, ilhos bastardos do DAC. Então vejo essa animação cultural como um projeto muito intencional e não apenas como uma missão pedagógica, mas como um trabalho maior uma dinâmica dentro da comunidade. O importante é fazer a justiça histórica. O trabalho nosso é de resgatar, não o passado glo-rioso ou esses momentos culturais, mas resgatar a nossa contemporaneidade, a memória do presente, a memória viva do presente. O teu trabalho é impor-tante enquanto isso. Não esperava fazer uma revisão histórica desses ilmes daqui a dez ou vinte anos não. É na linha da tese, da dissertação de Carlos Messeder, Retratos de Época, que relete o presen-te, é a contemporaneidade em Closes, o Closes da contemporaneidade.

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Nós tivemos alguns cineclubes, não de forma tão organizada como nos anos 1960, mas tivemos alguns cineclubes como: Cartaz de Cinema, Filipéia, SESC, DCG. Esses cineclubes e as Mostras de Ci-nema tiveram um papel importante nes-se terceiro movimento de cinema.

Não tenho a menor dúvida. Mas de-pois de icar tanto tempo sem uma prá-tica de debate, as pessoas, os jovens, a geração famosa do AI-5... esse pessoal ainda está carecendo muito de prática de debate, do que se fazia na década de 1960, os chamados cine-fóruns, havia uma regularidade, um hábito de se de-bater. Hoje em dia, na sala de aula para fazer um debate, o pessoal está desacos-tumado. Esse movimento de cineclubis-mo que surgiu, mesmo espaçadamente, de uma maneira mais informal do que aquele cineclubismo institucionalizado das décadas de 1950 e 60, foi um fator muito bom para as pessoas começarem a falar, a perder o medo, perderem o aca-nhamento. Hoje em dia tem alunos que dizem: “Que bom, professor, que a gente teve a oportunidade de falar, quando eu comecei a falar estava todo empulhado”. Inibido não, empulhado mesmo. E com a prática, os debates que aconteceram, a imprensa... O papel da imprensa, espe-cialmente na Paraíba, foi muito forte, a imprensa dava uma força muito grande, havia um espaço muito aberto para o que a gente chama de animação cultu-ral. Pessoas como Carlos Aranha, Walter Galvão, participaram muito dessa polê-mica cultural, desse debate cultural. Ani-mação Cultural é tudo isso; é você ter es-paço no rádio, na imprensa, na imprensa governamental do jornal A União, que

abre para propostas novas. É a universi-dade como um polo mais catalisador de tudo isso, porque essas pessoas estão liga-das diretas ou indiretamente a uma con-vivência na universidade. A crítica cultu-ral passa pela própria universidade, ela é, sobretudo, uma autocrítica cultural.

A Censura Federal atuou com bastante veemência em algumas ocasiões com agentes federais armados com metra-lhadoras em punho, a exemplo da dis-persão da II Mostra de Cinema Indepen-dente que coordenei em João Pessoa no ano de 1981, ou mesmo atuação da censura por ocasião do lançamento do filme Closes, ou mesmo do seu próprio filme Paraíba, Masculina Feminina Neu-

tra. Eram ações intimidatórias com de-monstração de força. Como você analisa essas intervenções da censura?

Realmente. A censura estava sendo competente, estava realizando seu papel. Se existia uma censura ela tinha que se exercitar como censura. Você tinha que mostrar o ilme antes. A censura era ar-bitrária e tinha que ser arbitrária, porque a época era disso, de arbítrio. Essa pres-são da censura, mais do que a pressão, a repressão da censura, era o papel que ela estava representando, era uma perfor-mance censória típica do regime militar. Ela tinha que ser competente, mostrar que era competente, que era exigente e criava casos. O papel da censura era reprimir. Diferente de como se coloca agora, desse movimento de anistia e tudo mais. Um personagem... eu acho que o Dr. Pedro, que comandava essas ações, merecia até um ilme, um vídeo sobre ele. E não somente essa censura institu-

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cionalizada, a censura formal, mas tam-bém alguns jornalistas, não vamos dizer que vivíamos num mar de rosas não, alguns jornalistas conservadores, retró-grados, xenófobos, izeram movimentos mais impetuosos, mais virulentos, mais sanguinolentos do que a própria censura, o Wellington Aguiar não me deixa men-tir, que fez um trabalho de uma cruelda-de censória absurda e absoluta... notável!

O Cinema Direto enquanto uma das ativi-dades do Núcleo de Documentação Cine-matográfica da UFPB... Como você anali-sa o Cinema Direto tendo se distanciado, já um pouco mais...

Por mais que os franceses e alguns pa-raibanos afrancesados desejassem man-ter uma idelidade rigorosa ao projeto do Cinema Novo Jean Roucheano, a pro-víncia paraibana era tão “torta”, troncha e distorcida que ela distorceu esse projeto logo no começo. Quando as pessoas de-fendiam, elas já defendiam sabendo que era uma constatação, uma impossibilida-de de se fazer Cinema Direto na Paraí-ba. Era um projeto impossível, ele tinha que ser renegado, é esse comportamento antropofágico. Era uma compensação da falha do projeto, porque era um proje-to manco, e à medida que, manco como o Jango era manco, ele pendia para um lado, e à medida que ele tinha que ser realizado na Paraíba, ele já começava a ser abortado, a ser visto... A proposta do Cinema Direto é uma proposta que vai sendo antropofagizada, quer dizer, os paraibanos comendo os franceses, devo-rando os franceses. O Cinema Direto co-meçou a ser minado: contaminado pelo vírus paraibano, pelas negações, pelas

negatividades paraibanas. Dá para escre-ver uma tese: “Como o Cinema Direto se torna Indireto na Paraíba”. Como o Cinema Direto entrou nesse sistema an-tropofágico de deglutição, de devoração de seus próprios deuses e mitos. Como ele foi repensado, questionado na Paraí-ba, como ele possibilitou um movimento paralelo a ele, de pessoas que estavam ligadas a ele, mas que faziam a sua an-títese. Foi bom. Foi um movimento vivo, as picaretagens são muito comuns no campo da cultura, os jogos de interes-ses, as facilidades, as barganhas. Se não existisse essas picaretagens não existiria cultura, a cultura icaria numa redoma, sacriicada, faz parte da vida cultural es-ses jogos de interesses, essas ligações peri-gosas entre o artista e o poder... O artista querendo fazer uma coisa independente, mas ele está atrelado ao esquema, à uni-versidade, ao poder. E o negócio para a província é um negócio fascinante. A Europa, o mito da Europa. Esse convê-nio do NUDOC com o Cinema Direto francês possibilitou esse frenesi cultural de pessoas que icavam: Vamos ver como é a Europa, Paris cidade luz, vamos ter transas europeias, vamos conhecer os ho-mens e as mulheres francesas.

Quer dizer que você postula que houve uma deformação da proposta, da matriz do que seja Cinema Direto e ao mesmo tempo isso despertou um desejo, uma fascinação da questão de ir a Paris?

É difícil pra eu comentar mais por-que não fui a Paris, o problema mais sério é esse, mas é bom ouvir as pessoas que foram, até mesmo mais de uma vez. As pessoas que participaram do projeto

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mais diretamente é que têm um melhor depoimento a dar. Eu, numa visão vul-garmente chamada de despeitada ou uma visão dos marginalizados, dos não beneiciados, diria que esse pessoal que teve oportunidade de ir à França, uma

oportunidade muito boa, inegavelmen-te de intercâmbio cultural, de conhecer, de atualização, esse pessoal na volta não colocava muito, a não ser para grupos pequenos de amigos, o que eles tinham aproveitado lá, acho que deveria partici-par do convênio, de qualquer convênio, as pessoas na volta dar uma geral do que viu, isso é importante, as pessoas só fala-vam quando eram solicitadas, já devia fa-zer parte do esquema de trabalho. Agora, sobre a produção do Cinema Direto, era uma coisa tão variada, é difícil a gente colocar, inclusive, o problema mais sério era a deiciência técnica dos ilmes, não que eu esteja defendendo um tecnicismo,

mas o nível era bem elementar, parece que o curso não funcionava bem, havia muita pobreza técnica, e não uma pobre-za intencional, uma pobreza por falta de habilidade, por carência, eu sentia mui-to isso; o som direto não funcionava; em

princípio qualquer coisa com som dire-to era Cinema Direto, usou som direto é Cinema Direto, não é. Os professores que iam ou vinham não satisfaziam não, o problema de língua, de linguística, um negócio muito fraquinho em termos de criatividade no plano da técnica, de um modo geral. E esse sistema, esse exercício de colocar logo as pessoas com a câmera é bom, isso quando você tem ilme, é o de aprender fazendo, mas eles desmis-tiicavam o problema técnico, é aquela coisa muito francesa, de uma certa linha francesa, de um certo enciclopedismo de uma camada de cineasta faz tudo, e eu acho que era muito papo furado, e o que

Sessão de estreia de

Closesem 1982

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sempre caracterizou o cinema é ser uma arte coletiva, toda angústia de criação é uma angústia compartilhada, uma an-gústia coletiva, esmo o cinema que não seja industrial, o cinema Udigrudi, o ci-nema é sempre uma proposta de criação coletiva, então por que esse negócio de uma só pessoa fazer tudo? Isso é uma das bobagens do Cinema Direto, o ca-marada ser o autor da ideia, o diretor, o fotógrafo, o cinegraista, o montador, o editor do ilme, eu acho isso uma boba-gem, porque pode ser o mito do Chaplin, o gênio da criação, mas isso pode funcio-nar ou não, pode ser o Cinema Direto, Indireto, Oblíquo, mas o cinema é basi-camente uma arte coletiva. E essa coisa da pessoa fazer tudo como aprendizado é interessante, faz parte de certa inclina-ção, pessoas que gostam de fazer monta-gens outras não, pessoas que gostam de trabalhar na trilha musical, embora que no Cinema Direto não tenha esse negó-cio de trilha musical. Em síntese, existia uma certa bitola, não no sentido da bito-la Super-8, mas a bitola ação, ou um cer-to padrão, o que era Cinema Direto, por mais que houvesse essa deturpação, no bom sentido que estou falando, essa an-tropofagização do Cinema Direto Fran-cês, mas as pessoas tinham na cabeça um fantasma, o Cinema Direto é isso, um certo modelo prejudica, castra a criativi-dade. Um pessoal jovem querendo ousar mais, mas no modelo do Cinema Direto havia aquela pressão em cima do que era direto, o que não era direto, e tem alguns que izeram o Anticinema Direto, o não Cinema Direto. Mesmo assim, foi tanta coisa feita que eu não sei se conheço to-dos os ilmes.

Considerando que essas realizações em sua maioria foram feitas em Super-8, que perspectiva se apresenta ante o sur-gimento de uma nova tecnologia que é o vídeo?

O que muita gente está fazendo é transcrever esses ilmes em vídeo, em que se começa a surgir um circuito de vídeo, e eu confesso, não tenho me motivado, não só pela falta de grana, mas por preferir fazer ilmes novos, do que copiar. O vídeo agora está desem-penhando o papel do Super-8, o fator econômico mais uma vez, a facilidade de se fazer Super-8 é relativa porque o equipamento do vídeo é muito caro, e você tem que depender de um ami-go, de um grupo, mas no vídeo a ita é muitíssimo mais barata, a dinâmica é outra. Tudo pra mim é cinema, como dizia Glauber Rocha: tudo é produto audiovisual, cinema, TV, vídeo, Su-per-8, é ridículo essa coisa que teve de muita gente não considerar o Super-8 como cinema, isso é um preconceito absurdo. Os grandes cineastas do mun-do usam Super-8. É a possibilidade de se fazer cinema mais experimental, tan-to curta-metragem como bitola Super-8 ou vídeo, você tem um campo mais livre para experimentação.