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2
Jonas Vieira
O homem que matou o
Palhaço do Circo Budapeste e outras
divagações com o demônio
1ª Edição
Coleção Contos Ilustrados
3
O homem que matou o palhaço do Circo Budapeste
e outras divagações com o demônio
Jonas Vieira
2017
Projeto de livro e diagramação: Jonas Viera
Revisão: Ana Luíza Freitas, Velber Viana
Ilustrações: Matheus Silqueira
Edição: Livro do Autor
Capa: Poliana Mota
Foto: Daniel Henrique Studio
Agradecimento: Barbearia do André
7
“Idiota mesmo é o sujeito que, ouvindo uma
história com duplo sentido, não entende
nenhum dos dois”
Millôr Fernandes
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Prefácio
Por se tratar de uma obra póstuma, o presente
livro não carece de prefácio, palpite de editor ou
qualquer outro tipo de enfeite que, por ventura,
possa ter sido acrescido no decorrer da produção ou
depois dela. Peço ao leitor que faça uso de
voluntária compreensão e não se prenda a detalhes,
a mesquinharias, nem às luzes do lado de fora da
lona; o grande espetáculo encontra-se em seu
interior... entre sem fazer barulho, o espetáculo já
começou!
O Palhaço
10
Nota importante e
contraindicações
Se o leitor é otimista, religioso ou deprimido, favor
não prosseguir. Este livro foi escrito por uma pessoa
morta que, em vida, era um palhaço. Já não sei mais
o que é piada e o que não é. A gramática, tutora
semântica das palavras, fracassa quando tenta
explicar sarcasmos e ironias... o que cabe ao olho de
quem lê, a letra não explica. Poderia até me arriscar,
pois nada tenho a perder, visto que feneci. Mas... a
prudência é um benefício para os vivos! De forma
que terei complacência do leitor e não o darei a
chance de lançar-se ao abismo, cuja queda
certamente o traria para esse lado. É verdade que
morri de forma trágica e tive minha vida subtraída
por um instante da fúria alheia... mas, com o tempo,
até a dor da subtração cessa. O benefício do lado de
cá vale o susto do abraço da morte. Não os convido
para que venham antecipadamente, porque não sei
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da hora de cada um. O tempo é o verdadeiro
ministro da morte e o juiz de eventuais
reminiscências. Não devo mais nada a ninguém,
nem posso ser vítima de maus agouros. A língua
alheia é um chicote que não transcende. Para
aqueles a quem devi alguma coisa, peço que
usufruam do conforto que traz o tempo, pois já não
há mais nada a fazer, a morte é um grande perdão!
12
Por onde findou o
finado...
Não há motivo para rodeios. Aquele que veio trazido
pela curiosidade de saber quem levou à morte esse que
agora vos escreve não haverá de ser torturado pela espera.
O desejo do homem por sangue é insaciável e jamais será
vencido pela procrastinação de uma narrativa enfadonha
e perversa. Foi o atirador de facas que cumpriu a tarefa
de despachar-me para a eternidade! Com maestria
exemplar, exímia pontaria e meia dúzia de lâminas afiadas,
o homem fez uso de seu ofício e vingou o desaforo que
seus lençóis testemunharam.
A primeira fincou na perna e eu caí. Tentei correr
inutilmente de dentro de sua barraca... talvez desse tempo
de chegar à lona e me esconder em algum lugar — pensei.
Mas não deu. A segunda veio logo em seguida e a terceira
não demorou mais que um suspiro para penetrar-me a
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epiderme. A quarta e a quinta não vi por onde entraram e
mal as senti. A última veio no coração... E essa não foi
lançada, mas transpassada com fúria! Um homem traído
descobriu tê-lo sido! A mulher, que andava cabisbaixa,
resolveu aprumar a vista e olhou para onde não devia.
Sobrou-lhe coragem, encurtou-lhe o vestido. O que eu
podia fazer? Quando a tentação vem de saia, há de se
pensar duas vezes antes de despedi-la... algumas podem
não voltar.
Agora lhes pergunto... quantos possíveis desfechos
poderia ter essa história? Poucos. Quantos que não em
tragédia? Nenhum! E assim foi feito... uma faca cravada
no peito! Errar é humano, mas ser apanhado em flagrante
é tolice! Perdoam-se dívidas, mas nunca traições!
Todavia, não se preocupe o leitor com os sofrimentos
que tive, a duração parece interminável só no instante. Do
susto do flagrante até a última lâmina foram poucos
segundos. O ódio é como a paixão, suspende o juízo e
dispensa a espera. E, ainda assim, não havia o porquê de
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se estender a barbárie... Churchill tinha razão: quando se
deve matar um homem, não custa nada ser gentil.
Assim dito, o leitor cuja ânsia era apenas de vísceras, dê-
se por satisfeito. Sobre minha morte, não há mais o que
ser dito. Depois de cravado o peito, houve algumas
poucas lágrimas, um caixão improvisado e toda a
melancolia do homem frente ao que ninguém escapa. A
mulher foi duramente julgada e comigo não seria
diferente. Mas... como já disse, a morte perdoa tudo.
15
“Nada merece nosso esforço, todas as
coisas boas são apenas vaidades, o
mundo é uma bancarrota e a vida, um
mau negócio, que não paga o
investimento. Para ser feliz, é preciso ser
como as crianças: ignorante.”
(Arthur Schopenhauer)
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A chegada depois da partida
Agora sim! Posso dizer que o livro que me interessa
começou. As páginas anteriores são obrigações das
quais não consegui me desvencilhar. Estou morto e
não posso ser cobrado — já disse —, mas parece
que um pingo de compaixão me acompanhou o
espírito. Na verdade, mais um pouco que isso.
Surpreendeu-me que nem tudo do homem tenha
ficado no plano terreno de onde me desprendi.
Junto da consciência, outros respingos
acompanharam-me à alma recém-chegada. Pensei
que sentir fosse coisa da carne. Mas, adianto-lhes
desde já que é um pouco diferente. E, aqui, faço
outra ressalva: não se deixem levar pelo ingênuo
pensamento da bondade. Cá estou em pleno
espírito, mas ainda sou capaz de maledicências!
Não que eu vá me fartar delas, mas posso
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eventualmente precisar agir de má-fé. Assim como
fiz com o título, a fim de seduzir a maldade do
leitor e atraí-la para cá. Digamos, com clareza —
porque o pudor não veio na bagagem —, o bom da
vida é o escárnio, o proibido, a tragédia! Aquele que
se diz livre desse prazer só está escondido num
outro canto da cela, em que estamos todos
encarcerados. Diz-se que não porque a vergonha é
a sombra de todo prazer. Mas essa, caro leitor, é
uma luta perdida. A cadela da curiosidade anda
sempre no cio.
....
Abri os olhos ainda no circo. Mas, não mais com
meu corpo humano, e sim com uma espécie de
vulto que só eu via. Até aí, sem surpresas. A fantasia
de transcender é universal, e estou certo de que o
leitor visualizou a cena em seu pensamento. O que
lhes conto de novo é a sensação... uma belezura!
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Assim que dei por mim e senti o frescor do além,
invadiu-me um sentimento e uma certeza: a
melhor coisa da vida é morrer! Nada mais
incomoda. Nada urge ou anseia. Nada preocupa ou
faz preocupar. Nem respirar parecia mais
necessário. O lugar, no entanto, ainda era o
mesmo. Eu ainda estava no circo, um passo atrás de
meu cadáver furado e da mulher que me segurava
em prantos. Pobre Darlene! Traiu o homem que
tinha e perdeu o que não era seu! Meu carrasco não
ficou para ver o último suspiro. Confiava no talento
que tinha e na lâmina da faca. E eu, se não morresse
de morte vingada, iria de vergonha. Darlene chorou
minha honra e o homem lavou a sua! Não pareceu
ter hesitado nem mesmo depois, com o sangue
arrefecido... era cabra-macho o desgraçado!
Algum tempo depois, chegaram meus colegas de
picadeiro, cujo espanto só não foi maior que o
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meu... segundos antes da morte e com as nádegas
ao vento. Houve quem lamentasse o ocorrido e
quem não... opinião que não se dividiu quando do
veredicto da mulher: adúltera! Faltou-lhe um
Cristo, sobraram pedras! A redenção não faz parte
do espetáculo.
Sei que já disse, mas vou tornar a repetir: a
morte paga todas as contas! O homem não perdoa
quem ficou vivo para fazer outra vez, tampouco
mulher adúltera que não paga com sangue... Pobre
Darlene! Foi-se a dignidade, ficou a vida.
20
Receita de
Presunto:
01 Homem + 01 faca
01 Mulher com 01 palmo de saia e o
cão dentro
01 dia ruim de 01 Palhaço sem sorte
Misture tudo!
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O Velório
— Tão jovem!
— Tão sem graça!
— Ah!... Eu gostava dele.
— Filho da puta! Morreu me devendo!
Como eu era amado! Tirando quem não foi, todos
compareceram! Artistas, montadores de lona, dois
curiosos e um bêbado... Quase morri de emoção! Eu era
amado! Colocaram-me no centro do picadeiro, num
caixão improvisado, cercado de petúnias roubadas e
margaridas murchas. — Quanto amor! — À medida que
me encomendavam a alma, caminhei ao redor de cada um
e lhes abracei o espírito. Saudade também é dor de morto!
Mas, o que me cortou o coração mesmo foi Matilda,
minha grande amiga de face felpuda! Ela chorava
copiosamente sobre meu cadáver. Se eu pudesse, mataria
22
Matilda ali mesmo e trataria de buscá-la para as bandas de
cá. E, cabendo mais, ainda traria outros. Tem gente boa
demais nessa vida para durar nela!
E, como o leitor já deve ter notado, nem tudo foi riso. Eu
descobri que tem jeito de se arrepender depois de
empacotado. Pensei que essa bobiça fosse coisa de gente
viva... vivendo e aprendendo! Descobri que Vanessa,
assistente de malabarista e minha paixão secreta, nutria
uma coceirinha por mim também.
Oh... Vida! Por que não rasguei
o coração com minha amada,
ao invés de reservá-lo à fúria
cega de uma lâmina afiada?
O arrependimento matou-me outra vez! A novidade da
morte começou a perder o sabor, e eu fiquei como quem
tenta comer o segundo pudim com a boca do primeiro...
decepcionado! Ninguém morre de amor não
correspondido, mas morre de novo por causa dele!
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(...)
- Filho, faça a oração do jantar.
- Deus, por que precisamos agradecer pela comida, se
estamos pagando por ela?
(Bart Simpson)
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UM AVISO IMPORTANTE QUE
DEVERIA TER DADO ANTES!
Embora tenha feito ressalvas importantes sobre
este conjunto desorganizado de palavras que
insisto em chamar de livro, preciso reiterar ao
leitor que, desta página em diante, minha história
descamba por uma espiral de melancolia,
decepção e tragédia. De forma geral, a sugestão
que dou é que ninguém prossiga. Existem leituras
ótimas que podem ser feitas no lugar dessa, ou
afazeres mais produtivos. É certo, claro, que o
avesso da advertência chamará ainda mais a
atenção de alguns. Como disse antes, a cadela da
curiosidade anda sempre no cio! O leitor que
escolher prosseguir, saiba que estará por sua
conta e só! Eu descobri a verdade da vida e não
vou me calar! Contudo, alerto aos interessados do
quão devastador pode ser o sabimento dessa
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O SUJEITINHO POR TRÁS DAS CORTINAS...
E não é que serviram um café?! Fiquei lisonjeado até a
alma! Agora só falta rezar um terço para Santa Tereza
para terminar o encomendo — pensei. Mas, não saiu nem
uma ave-maria ou pão com salame... Povo sem fé, esse!
De lisonjeado, passei-me a ofendido! E mais... tramei com
meus botões tirar a limpo essa história de morto puxar
pé. Porque, se assim acontecesse, iria tratar de matar
alguns! Nem que fosse de susto! E, digo-lhes uma coisa...
a maldade é doce até depois de morto.
Já tinha maquinado metade do mal feito, quando percebi
uma coisa estranha vinda do outro lado do picadeiro, de
pareio com a cortina — tinha um homem lá! Não me
lembro de ter visto ninguém quando cheguei. De onde
ele veio, então? Será que acabou de morrer também? —
Pensei. Olhamo-nos um ao outro durante um comprido
instante................................................... até que ele puxou
assunto:
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— És o palhaço?
Olhei-me de cima a baixo e me percebi trajado como de
costume. Depois, corri o olho ao redor e vi que ainda
estava no circo.
— Consegues pensar em outra coisa?!
— És um piadista! Acertei o endereço! – disse ele,
largando a cortina e caminhando em minha direção. O
sujeito era alto, magro, pálido e mancava de uma perna...
claudicância que compensava com uma bengala.
— Então, quer dizer que você é o Palhaço?!
— E o senhor, um bom observador!
— Você é engraçado!
— Ossos do ofício!... Agora, acho que nem isso.
(Ambos riram) E o senhor, quem é?
— O “senhor”, não... “você”! Deixe de lado as
formalidades... muito prazer, eu sou o diabo!
— O quê???
— Isso mesmo... Sou o Diabo. Muito prazer!
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— És o Diabo???
— Já disse que sim. Você está morto, mas ouve
bem.
— Aparta- te daqui, intruso!
Eu nada tenho contigo!
— Podemos negociar...
— Jamais faria negócios
contigo! Nem caminharia ao teu
lado, nem me sentaria à tua
mesa!
— Mas deitar na cama alheia pareceu-te lícito, não?
...morri de vergonha!
31
— Não te constranjas. A hipocrisia não me
incomoda — disse o diabo, pegando no bolso um
isqueiro.
— Cigarro?
— Você fuma?
— Você também.
— Mas era escondido.
— Não de mim.
— Você sabe de tudo?
— O necessário.
— Acho que estou começando a ficar com medo.
— Estranho se não ficasse... Agora me responda
uma coisa, do fundo desse seu coração furado e partido:
eu pareço assim tão assustador?
— Até que não.
— Viu?... Não tenho por quê ser temido —
respondeu-me o diabo, com uma voz amena, abraçando-
me como se fôssemos amigos.
— Mas... calma lá, senhor das trevas! — retruquei,
fugindo do afago — sei que és um sedutor!
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— Nem tanto.
— E que usas de tua astúcia para ludibriar o
homem!
— Nem sempre é necessário.
— Porém, comigo, criatura das trevas, não terás
bom êxito, pois sou protegido!
- Não vejo ninguém.
PALHAÇO: “Que a Cruz Sagrada seja a minha luz e que
não seja o dragão meu guia...
DEMÔNIO: ... Retira-te satanás! Nunca me aconselhes
coisas vãs. É mau o que tu me ofereces, bebe tu mesmo o teu
veneno em nome de Jesus... amém!”
— Meu Deus!
— Qual a surpresa?
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... O tinhoso era devoto do
santo! ...
PALHAÇO: “São Miguel Arcanjo, protegei-nos no combate,
cobri-nos com vosso escudo, contra os embustes e ciladas do
demônio... Subjugue-o, Deus, instantemente o pedimos e vós, príncipe
da milícia celeste, precipitai no inferno a Satanás e a todos os outros
espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.
Amém!”
— Faltou o sinal da cruz...
— Também és devoto de Miguel?
— Que mal há?!
— Mas não foi ele quem lhe esmagou a cabeça?!
— Desavenças passadas... Miguel é
temperamental.
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— Ainda assim, afasta-te de mim, infernal! Não
tocarás em um só fio da minha peruca!
“Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador se a ti me confiou
a piedade divina, sempre me rege, guarde, governe, ilumine,
amém!”
— Oração do anjo da guarda? É sério?!... Isso é
para criança. Não faz nem cócega...
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- Me responda uma coisa: você conhece todos os meus
pecados?
- Sim.
- Todos, todos?!
- Sim...
- Até minhas traquinagens de criança e aquelas outras
coisas que eu fiz?
— Você se refere àquilo de pegar no...
- Shhhh!!! Pode ter gente lendo isso aqui!
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— E tu, com que propósito viestes aqui?
— Até que enfim!... Pensei que não fosse mais
perguntar.
— Sem rodeios, dize-me! E abrevies a aflição de
minha alma!
— Tá bom, mas vamos fazer um combinado
antes? Teria como reduzir o mais-que-perfeito? Tá ficando
chato de ler...
— A gramática do sofrimento tem sua própria
forma de redigir!
— Ai, que drama!
— Diga apenas o que veio fazer e me poupe do
restante. Depois da morte, o resto é silêncio.
— Ai, meu Deus! Agora, qualquer palhaço cita
Shakespeare, então?!
— O que viestes fazer, entrave do mal?
— Eu vim te buscar!
— O quê???
— Abaixa a fonte, querido, não tem ninguém
surdo aqui...
38
“Além de morto, condenado ao inferno!... Que triste fim!”
— Mas quem falou que é o fim?
— Eu não estou falando com você! Não há travessão
na frase, não seja inconveniente!
39
— Ainda não belzebônico! Pois está escrito: “Eu
sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja
morto, viverá.”
— Você pelo menos sabe onde está escrito?
— Bom... não, mas eu creio na misericórdia do
meu Senhor!
— Com a alma no limbo, quem não?!
— “Todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá!”
— Também está escrito: o sábado é uma ilusão!... As
escrituras, minha jovem alma, não passam de um
amontoado de palavras! Escritas por homens tão mortais
quanto você.
— Mas inspiradas por Deus!
— E quem disse isso não foi outro homem?
(Um breve instante de silêncio reflexivo)
— Não importa! Nada que disser convencer-me-á
o coração a ir contigo.
— E o que te faz pensar isso?
40
— Não sou digno de misericórdia! Mas, basta que
meu senhor diga uma só palavra, que serei salvo.
— Você acha mesmo que citar as escrituras para
mim mudaria alguma coisa? Fartou-se da carne e agora
quer vomitar arrependimento sobre meus pés?
— Sei que adulterei, mas seria justo ser condenado
por isso?
— Pelo adultério, não... mas pela estupidez de ser
pego!
{......................Faz sentido!}
... ninguém sofre pelas mentiras que ouve, meu caro,
somente por aquelas que descobre. Não o condeno pelo
que fez. Afinal de contas, o que seria da vida sem um
pouco de sacanagem? — Enquanto discursava suas
pieguices, o tinhoso deu-se a rodear-me — Veja você
mesmo, o homem que ceifou-lhe a vida é autor do
mesmo pecado!
— Hipócrita!............... ainda me matou!
41
— Mas é claro! Você deixou que ele visse. O orgulho
humano é o único órgão que nunca se cura. Ele foi
tomado pela ira porque, no fundo, sabia que não era
digno nem disso. Era um adúltero como todos os outros
aqui.
— Quem mais pega quem?
— Ele pega ela, ele essa aqui, esse pega esse e ele pega
ela e ela aqui.
— As duas?
— E juntas!
— Meu Deus! Um antro de perdição!
— Mas nem tudo é luxúria, libido e lençol debaixo
dessas lonas. Não se surpreenda com tão pouco. À mercê
dos próprios instintos, vocês são capazes de muito mais!
— Quem mais faz o quê?
— Ela é invejosa, ele morre de preguiça, esses dois
avarentos estão tramando fugir e ele, se pudesse, faria a
mesma coisa.
— Meu pecado já encolheu pela metade... mais um
pouco e saio santo daqui.
43
O macaco é um animal demasiadamente
simpático para que o homem descenda dele.
(Friedrich Nietzsche)
44
— Posso te fazer uma pergunta?
— Todas que quiser.
— E eles? Terão todos o mesmo destino?
— Sem exceção...
—... você se referia aos
leitores?
— Sim.
— Sem exceção!
45
— Erros e acertos são intenções que têm o mesmo
tamanho e finalidade. Tudo mira na direção do
famigerado conceito que vocês tanto perseguem,
denominado Felicidade! A transgressão nada mais é que o
lado avesso da virtude.
— Um mal necessário?
— Não... “O” mal necessário! Não me venha com
puritanismo barato! Pois “O” mal é necessário! Quantas
moedas de uma única face você já viu?...
— Nenhuma.
— Claro que não! Porque não existe!... Sem mim,
o que seria de vocês? Quem precisaria de Deus se não
fosse o Diabo?
— Blasfêmia! ! !
— Blasfêmia, mas você concordou!
— Não torne a repetir isso! O Senhor É aquele que É!
— E vocês, quem são?
— Criaturas feitas à sua imagem e semelhança!
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— Exatamente! Disse bem... semelhantes, não iguais! E
sabe o que os difere, alma ingênua? A imperfeição!
Somente Um foi gerado, consubstancial ao Pai. Matéria
de sua matéria. Filho, não criatura! Agora, vocês, bom...
quem são?!
— Por acaso está dizendo que Deus errou?
— Cristo não seria uma errata do projeto da criação?
— Jesus!!!
— Ele mesmo.
—Blasfêeeemia! ! !
— Para de gritar!
— Ele é a destra do Altíssimo sobre nossa pobre e
frágil condição humana! O cordeiro de Deus que remiu
os pecados do mundo!
— Ai, maritaca de sacristia! Comeu o missal do padre,
foi? Chatice! “que remiu o pecado do mundo...”
— Pecado que só entrou no mundo por culpa sua!
— Minha? Quem comeu a maçã e ainda dividiu?!
47
— Mas fostes vós, Mochila Branca, a soprar
desobediência nos ouvidos de Eva!
— Que, diga-se, cumpriu a bom termo.
— És tu o responsável!
— Opa! Opa! Opa! Não ponha na minha conta o que é
de responsabilidade sua! Já não basta o mal que vocês
fazem todos os dias e atribuem a mim? É verdade que sou
mal e capaz de maquinações terríiiiiveis, mas lhes dar o
livre arbítrio é maldade demais até para alguém como eu!
Quem sacaneou vocês foi o Todo Poderoso!... Eu só me
aproveitei.
— Difamador!
— Quem plantou a árvore? Quem colocou vocês lá?
Quem estabeleceu a proibição e depois deu a liberdade
para transgredi-la?... E queres culpar a mim?!
— Fomos criados para o amor. E não existe amor sem
liberdade... Só ama quem poderia ter escolhido o
contrário. Amor é decisão! É reconhecer-se incompleto.
O amor tudo suporta. A tudo transforma... redime. A
criação é fruto do amor. Deus é amor! Blá blá-blá-blá blá-
48
blá blá-blá-blá blá-blá blá blá-blá-blá blá-blá blá-blá-blá-blá-blá-
blá blá-blá blá blá-blá-blá blá-blá blá blá-blá blá blá-blá-blá blá-
blá blá blá-blá blá blá-blá-blá blá-blá blá blá-blá blá blá-blá-blá
blá-blá blá blá-blá blá blá-blá-blá blá-blá blá blá-blá blá blá-blá-
blá blá-blá blá blá-blá blá blá-blá-blá blá-blá blá blá-blá blá blá-
blá-blá blá-blá blá........
—Ei! Tô falando com você!
— Opa! Desculpa! Eu acabei cochilando aqui... o
amor me entendia.
49
— Posso te perguntar mais uma coisa?
— Claro.
— Chamam-no de muitas coisas: demônio, satanás,
belzebu... Qual dentre tantos é seu verdadeiro
nome?
— Evandro.
— Como assim? Evandro?
— Evandro da Silva Rezende... Rezende com z.
51
... “sabe, eu acho que ele não gostou
muito quando eu falei, mas é o meu
jeito de pensar. Eu acho que o negócio
começou a dar errado quando o Poderosão
lá inventou de dar o livre-arbítrio pra
eles... não adianta, eles não sabem
usar”.
(Evandro)
53
— Cigarro?
— Me dá um.
— Posso te falar uma coisa?... Eu pensei que seria
diferente.
— É o que todo mundo pensa.
— Eu pensei que, no fim das contas, eu seria salvo.
— É o que todo mundo pensa.
Aff...
— Não se lastime tanto... A vida é enfadonha
como uma história contada duas vezes.
— É bíblico?
— Shakespeare... Mas deveria ser. Posso colocar
uma música?
— À vontade.
— Aceita uma bebida?
— O que tem?
— A que você quiser.
— Uísque.
— Mas você não gosta!
54
— Mas não é todo dia que o diabo te oferece um
drinque.
— Você que pensa!
.................................... muito álcool depois
— Então é isso?
— A que você se refere?
— A vida, a morte, a salvação... é só isso?
— A primeira não é escolha, a segunda é
inevitável... a terceira, uma invenção.
Aff... (de novo)
— Mas, devo admitir que é surpreendente a
capacidade criativa que vocês têm! Toda essa história de
céu, inferno, merecimento, castigo etc. é de uma
genialidade ímpar! Um pouco infantil, às vezes... mas
muito convincente e, o mais importante, conveniente!
— Já não estou entendendo mais nada... Deus
existe ou não?
— A essa altura, isso já não faz a menor diferença!
55
— ???
— Vocês já acreditaram nessa ideia. Fizeram desse
delírio coletivo um mito! Se isso é verdade ou não, não
faz a menor diferença. Vocês já falam em nome de Deus,
respondem por Ele, educam seus filhos falando Dele... e
castigam a dúvida, que certamente surgirá. Se, no final das
contas, Deus não existir, doce alma... vocês trataram de
inventá-lo!
— Eu tenho um cunhado que é crente, sabe? Se
ele te ouvir falando uma coisa dessas...
— “Tá amarrado!” Eu sei. Ouço isso toda hora.
Não entendo que fetiche é esse?! Para quem fala tanto em
mim, eles poderiam ser mais gentis no tratamento. Tem
mais de mim em torno do altar que no fundo dessa
garrafa.
— Você se julga muito importante, não?
— Mas eu sou! Imagina se eu me aposento
amanhã? Seu cunhado fica sem lugar para ir. Sem mim, as
igrejas acabariam uma a uma. Declarariam falência!... Sabe
56
por quê, minha jovem alma? Porque o mal é um bom
negócio!
— Misericórdia!
— E, digo mais: o homem sem o medo fica
preguiçoso!
— És mesmo um dissimulado! Ainda há pouco
concebia a existência de Deus. Agora, tenta me convencer
do contrário... Se Deus não existisse, como você poderia
estar aqui?
— Admite então que sou fruto da criação?
— Não ponha palavras na minha boca, seu
transgressor!
— Tem medo de Ele estar ouvindo, não é?
— Não desvie o assunto!
— E não estou! Eu apenas fiz perguntas. Não
precisa se irar comigo. Não fui eu quem te contou essas
histórias e te colocou para dormir e sonhar. Eu estou
apenas te acordando. Quem vai descobrir de que lado está
o pesadelo é você!
57
(...) me fala uma coisa aqui, é verdade mesmo
aquele negócio de rodar o disco da Xuxa ao
contrário?
— Pura besteira!... Eles adoram me procurar
onde não estou!
58
— Mais?
— Sim...
(...glup ...glup... copos se enchem)
... Tem cigarro ainda?
— Claro.
— E a felicidade? Ela existe, mesmo?
— Capciosa a pergunta... mas, não... ela não existe.
Aliás, depende!
— Do quê?
— Deixa eu ver como te explicar... ela existe
enquanto for a cenoura na ponta da vara, entende? Um
ideal para não ser atingido.
— Por que não?
— Se for, acaba, palhaça alma!... Conceba comigo
a metáfora: imagine um homem sedento, parado, debaixo
de uma caixa d’água que goteja.
— Tá. E aí?
— É só isso...
(Cara de Frustração!)
59
— ... O que mais eu preciso explicar? Vocês
reclamam do que têm, desejando o que veem.
— Então, quer dizer que, se o homem aí da
metáfora fosse cego, ele não se queixaria da água que não
tem, porque não a vê?
— Isso. Mas se queixaria de ser cego!... A felicidade
mora na ausência, nariz vermelho! Vocês sempre
conseguem um jeito de reclamar.
— De todo jeito... Um jeito!
— Sempre haverá algo de podre no reino da
Dinamarca!
— Shakespeare de novo?... Nem tinha a ver com o
contexto!
— Mas eu adoro!!!
— O livro vai acabar assim?
— Não. Antes, preciso te contar mais uma coisa...
você não foi o único a suar sobre os lençóis daquela
mulher insaciável.
— Miserável! Ela mentiu pra mim?!
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— E você também... ou foi apenas uma única vez
que vocês se enroscaram?
— Uma mentira em nome de uma indulgência!
Quem compraria um livro de uma “Madalena não
arrependida”?
— Madalena... Madalena... (suspiros)
— Já estamos nas últimas páginas... Vamos
encerrar assim? De forma tão trágica e melancólica?
— Com a vida, é assim... com um conto, não seria?
— E se fosse um romance?
— Páginas não salvam livros, meu caro! Assim
como longevidade não garante benesses. Prolongar a
carne não lhe fará vencer a batalha contra o verme.
— Quanto pessimismo!
— Otimismo fez do mundo um lugar melhor?
— E o que eu devia ter feito, então?
— Eu que sei?... Eu sou só o Diabo!
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Bom, como dito ao leitor anteriormente, a
história não passa de um dramalhão sem fim:
melancólico, mal escrito, repleto de exclamações e
reticências... Não valia a primeira página, quiçá a
última! Mas, compromisso é compromisso. Os últimos
acontecimentos me permitiram descobrir o grande
segredo da vida, e eu prometi ao leitor revelá-lo... não
criem expectativas, não há o que comemorar:
“A vida é uma piada sem graça!”