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Título: A espiral vertiginosa © João Barrento e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2001 Concepção gráfica de João Botelho ISBN 972-795-014-0 João Barrento A espiral vertiginosa ensaios sobre a cultura contemporânea Cotovia

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Título: A espiral vertiginosa

© João Barrento e Edições Cotovia, Lda. , Lisboa, 2001

Concepção gráfica de João Botelho

ISBN 972-795-014-0

João Barrento

A espiral vertiginosa ensaios sobre a cultura contemporânea

Cotovia

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L

Que significa "moderno"?

INTRODUÇÃO

O meu título poderia facilmente sugerir a tentação de

seguir um caminho que o gosto da taxonomia ou a supersti­ção substancialista dos conceitos aceitariam sem hesitação.

Podíamos seguir o rasto das palavras - "modo"/ "moda", "moderno", "modernidade", "modernismo" e outras, suas

derivadas e afins - e procurar exemplos do seu uso, na mi­ragem de lhes fixar um sentido. Desiludamo-nos. Há nomes

que se substancializam, que se tornam abstractos, e, no seu

perfil, que o tempo vai tornando cada vez mais iinpreciso, de­

pressa deixam de poder reflectir minimamente o que está a

acontecer (ou o que aconteceu), o real vivo, o plano da expe­

riência: é o caso de "modernidade", que, como veremos, não

se sustenta sem o contributo de alguns adjectivos (ou o con­

traponto do seu reverso mais vivo, a noção de "actualidade");

e há nomes que se dessubstancializam a ponto de se tornarem

inoperantes, de não "transportarem o que indicam" (Blan­

chot) , e neste caso os seus conteúdos actuais, tradicionais, po­

tenciais e virtuais escapam-se-nos igualmente por entre os

dedos: é o caso de "moderno", que hoje já não significa pra­

ticamente nada, como já não significava para Pessoa, para

quem moderna é toda a civilização europeia pós-antiga.

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

Será preferível começar por interrogar a história e so­

bretudo questionar o uso ingénuo, desproblematizado e inoperante do conceito de "moderno", tão facilmente "na­turalizável" - como tantos outros, a começar pelo de "na­

tureza" . Para isso, convém não esquecer que há uma histo­ricidade das categorias históricas. "Moderno" tornou-se, como sabemos, uma categoria histórica e tipológica. Mas a

sua tendência natural vai mais para o tipológico ( com as inevitáveis pretensões de universalidade) do que para o uso historizado ( com a necessária remissão para um dado mo­

mento no tempo ou para uma manifestação histórica iden­tificável: por exemplo, o "Modem Style" para designar a Arte Nova em inglês, que, no entanto, já se chamará "mo­dernismo" se estivermos na Catalunha). Esse pendor tipo­logizante e universalizante cai geralmente, no uso mais cor­rente do termo, numa contradição: uma categoria que se pretende tipológica, que se quer aplicável a manifestações de qualquer tempo, é referida a parâmetros históricos, já historizados, do "moderno", que associam hoje o conceito, ou a um período da história da arte e da literatura do sécu-lo XX (e ent~ " d " , ao, mo erno sera o que se opõe ao "tradici-onal" · · d · • , u~ ~~nceito am a mais impreciso1) , ou a um perío-~o da histºna das ideias, que parte do Iluminismo e terá tido morte definitiva b , .

, mas tam em muito contestada com o advento do chamad " , d ,, '

" 0 pos-mo erno (e neste novo con-

texto, moderno" tant d . 0 po e ser eqmvalente de "progres-

. t Em A Arte do Romance, Milan Ku CISta Hermann Broche . ndera comenta a recusa do roman-

d m segwr O "modernism · uJ d » ( ' , nome a oposição a uma fórmuJ d .. 0 Ut a o 1. e académico) em sem distinção nada mais d a, a o romance tradicional "' onde cabem (A A ' na a menos do u , '

rte do Romance. Lisboa· D Q . q e quatro seculos de romance · · wxote, 1988, p. 84).

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QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

sista" como de "racionalista"). Sem darmos por isso, con­fundimos já "moderno" com "modernista" ou "iluminis­ta" . A confusão é perigosa, as definições são insuficientes.

Temos de reconhecer que a resposta à questão "Que significa 'moderno'?" , posta nesta forma assim absoluta, é uma missão impossível. É sempre mais fácil , e faz mais sen­tido, tentar responder à pergunta: "Que significa ser mo­derno hoje?" - como fizeram Cassiodoro no século VI, os intervenientes na Querelle des Anciens et des Modernes em 1687, os Românticos alemães em 1800, Baudelaire ao tomar por referência (como medida de defesa e precaução) a pin­tura de Constantin de Guy2, Antero, ao publicar as Odes Mo­dernas em 1865, os Naturalistas alemães no manifesto "Dez teses sobre a literatura moderna" , lido numa associação lite­rária de Berlim em 18863, Freud ou Georg Simmel quando analisam o "nervosismo moderno" no contexto explícito da civilização urbana, Aragon, na sequência da aventura estéti­ca e política do Surrealismo, em 1930 ("Qu'est-ce qu'être moderne aujourd'hui?") , ou mesmo Pessoa quando, no Livro do Desassossego, define o moderno em termos só pen­sáveis no contexto dos modernismos, como atitude de in­conformismo e autonomia estética: "Escapar às regras e dizer cousas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna." (LD II, 26) . A resposta à nossa pergunta torna­-se uma tarefa insensata e quase impossível, porque a ques-

2 O mesmo se não pode dizer de Rimbaud e da sua reivind'.cação, to­talmente vaga, "II faut être absolument moderne! ", nem do se.~ emulo ale­mão, 0 poeta Arno Holz, quando escreve, num poema de 1886: .. . Moderno deve ser o poeta,/ Moderno dos pés à cabeça!"~ . _

J Cf. J. Barrento (Org.), Literatura A /ema. 1 extos e Contextos (1 700-

-1900) . Vol. II. Lisboa: Presença 1989, pp. 225-227.

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

tão tem pelo menos um milénio de existência, na sua ver­

tente mais antiga4, e mais de dois séculos de discussão, na

sua versão mais recente. Tudo o que sobre ela se possa

dizer ressentir-se-á dessa sua história, hoje totalmente dis­cursivizada (vd. Bragança de Miranda 1994: 11-18). Quan­

do Kant, em 1784, escreve o seu célebre texto Resposta à questão: O que é o Iluminismo?, ele está a viver o começo

de um processo que é precisamente o das Luzes. Hoje,

qualquer síntese sobre a questão do moderno que não

queira ser uma mera acumulação de factos, referências e

testemunhos, tem de obrigar-se a si própria a ser uma cons­trução. Tentemos então construir um quadro de referên­

cias, usos, sentidos, problemas e contradições em cujo cen­

tro vamos encontrar o termo, o conceito, a categoria -

estética, filosófica, sociológica e histórica - do "moderno"

e seus derivados.

Começo por um exemplo do uso quase paroxístico do

termo "moderno" e seus derivados, para depois destrinçar,

esmiuçar e tentar ordenar o caos. Leio um parágrafo de um

livro recente, Traços. Ensaios de Crítica da Cultura, de José

Bragança de Miranda - talvez o autor português que mais

profunda e lucidamente pensou a questão do moderno nos

últimos anos -, numa secção subordinada ao título genéri­co "Da modernidade", a propósito de uma obra americana

' Isto, para não adaptarmos um ponto de vista ainda mais radical como 0 de Carlo Michelstaedter 't' · • ' (

, 0 nu 1co autor tnestmo de Persuasão e Retórica 1913), para quem só há dois tem tt· · · . _ . • pos na 1stona, o grego e o pós-grego (o

crmao, ou Ja o da filosofia ab t d • . d al

. d s racta o pos-socransmo que assinala a morte a p· avra viva e a experiê · ) " '

uma esc 1 al 1 • . ncia ' e para quem o nosso tempo é medido por a a epoc ongmss1ma onde a no ão d d 'd d

deixa de ter sentido" (A . . 'G . ç e mo erm · a e, por exemplo, boa, Cotovia, 2000, p. l;;; mo uerre1ro, O Acento Agudo do Presente. Lis-

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QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

importante para a nossa problemática (Marshall Berman Tudo o Que É Sólido se Dissolve no Ar. A Aventura da Mo~ dernidade):

" . .. Conclusão débil, apenas forte na sua ousadia mo­dernista, é ela que relança continuadamente a crítica bermaniana: no século XX, a modernização torna-se dominante, mas ao mesmo tempo a consciência da época fragmenta-se, pelo que nos 'encontramos hoje numa era moderna que perdeu contacto com as raízes da sua própria modernidade', o que faz com que os pensadores modernos estejam marcados por um 'em­pobrecimento radical de perspectiva e uma diminui­ção do espectro imaginativo'. Deste diagnóstico não escapa ileso nem o 'modernismo da forma pura' (Bar­thes, Greenberg), nem o 'modernismo da revolta pura' (Poggio1oi, Adorno, Trilling), nem o afirmativismo de um Cage ou de uma Sontag, que surgem como pionei­ros do 'pós-modernismo' ou 'modernismo pop', em que a procura de uma 'nova alegria' é desqualificada pela incompreensão dos 'limites dos poderes deste mundo'.

Situação, afinal, comum a todos os modernos, cuja falta maior já não é o esquecimento do Ser, mas o 'empo­

brecimento da consciência moderna'" (Bragança ele

Miranda, 1998:40. Destaques meus, J. B.).

No livro de Berman impera, de facto, a maior opaci­

dade no uso dos termos "moderno", "os modernos", "mo­

dernidade", "modernismo" e "modernização". Importa, por

isso, depois de um breve percurso pela história da palavra, assinalar as etapas fundamentais da sua evolução semântic(I e da sua história no âmbito do pensamento, da historiogra-

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

fia, da estética e da sociologia, preencher ao máximo todo

o campo dos conceitos afins, para, ao distinguir, começar a clarificar, recolher os testemunhos que nos permitam en­

tender cada conceito na concreticidade das suas relações

com uma experiência, um tempo e um lugar, enfim, tentar a síntese da questionação actual do problema, numa situação em que, paradoxalmente, se proclamou o fim da moderni­dade e da era do moderno - estamos irremediavelmente condenados a não poder ser modernos!-, e a superação

de todos os modernismos, mas em que o termo que aqui nos interessa continua a ser usado com a maior das natura­lidades. Uma situação - esquecemo-nos facilmente disso - que já tem mais de trinta anos, desde que o americano Leslie Fiedler, para poder justificar e nomear o fenómeno

emergente da arte pop, usou o termo "pós-modernidade"' e proclamou a necessidade de "fechar o abismo" que sepa-rava essa nova arte da dos "modernos" da primeira metade do século, e de "atravessar a fronteira" para entrar em novos-velhos territórios, os de uma reaproximação entre arte e vida. A sua fórmula, que haveria de ser esquecida na Europa pelas polémicas geradas por Jean-François qotard e a sua obra A Condição Pós-moderna ( 1979) era em 1965

"c!ose the gap and cross the border" (Fiedl;r, 1;65). Par: alem do voluntarismo que a informa (sintomático de um

' A rdera de "pós-mode ·d d " . de superação d u1 d mi ª e remonta a Nietzsche e à sua proposta

a c tura mo ema da d d ' . d ºil' . d "sobre-homem" O . eca encia e o m ismo pela figura o • termo aparece Já f, ºd _ .

do autor alema-0 R d 1f p . • re en ° a essa superaçao, num ensaio u o annw1tz ("A · d l

Num contexto históric -1" _ . • _ cnse a cu tura europeia") em 1917. L . o lterano pos-modem. " - . - d A - . arma e nos Estados Unid d d ismo e Ja usa o na mer1ca 1994: 347 segs.) os es e os anos trinta do século XX (Borchmeyer

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QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

desejo de ser época próprio desta, ainda nossa, fase "pós­moderna"), a fórmula levanta também já toda a questão da epocologia, das razões ou desrazões que determinam os cor­tes (epistemológicos, sociais, estéticos) que se instituem para marcar o começo de épocas a que se chama modernas, de modernidade, modernistas ou pós-modernas/pós-modernis­tas. Que esses cortes são arbitrários, construções de conve­niência, instrumentos meramente discursivos, já o disse Hans Blumenberg, ao lembrar que "na história não há co­meços, alguém os institui como tal". Não perderemos, por isso, de vista esta questão, interrogando sempre cada um desses cortes no sentido de saber: Que acontecimentos ou factos explicam ou justificam tais cortes (roturas, viragens)? Por que se consideram eles modernos, e em relação a quê? Ao colocar estas questões, iremos configurando progressiva­mente uma concepção de modernidade feita das mais díspa­res ideias do moderno.

A HISTÓRIA DE UMA PALAVRA

E O DESTINO DE UM CONCEITO

Para organizar sumariamente a história da palavra e a evolução semântica do conceito, alinho já alguns momen­tos nucleares na história do "moderno". O termo (tal como o de "moda") deriva do latim modo (ablativo de modus), que refere aquilo que é de agora, do instante, recente ou circunstancial. E. R. Curtius assinala, em Literatura Euro­peia e Idade Média Latina, o aparecimento do termo mo­dernus na Alta Idade Média, como herança linguística tardo-latina, com dois sentidos, o de "actual" e o de

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

"novo" (está já aqui a distinção entre o uso histórico e • o ti-

pológico de "moderno"). A partir daí, é possível organizar

a história das palavras e dos conceitos (moderno, moderni­

dade e modernismo) em várias etapas que me parecem co­

brir a totalidade do espectro de significações de "moder­

no" , os domínios em que se desenrolam as metamorfoses

do conceito e as diversas "apostas" filósóficas subjacentes:

1. Uma proto-fase, a da Idade Média, que, não tendo a obsessão de ser moderna6, recorre ao termo para se de­

marcar do mundo antigo. A grande aposta desta "moder­

nidade:' em que, no século VI, surge a primeira oposição

antiqui-moderni (em Cassiodoro), é a aposta no teológico. 2. A Idade Moderna, um conceito da historiografia

política, da ciência e do pensamento, em que o moderno se

refere, tanto ao mundo pós-teológico e pós-feudal da secu­

larização e da auto-afirmação burguesa, como à nova filo­

sofia e à nova ciência que, na viragem do século XVI para

o XVII, como se lê num célebre poema de John Donne,

"tudo põem em dúvida" (The new phtlosophy calls all in doubt ... ). A aposta faz-se agora no mundo e no homem.

3. A modernidade das Luzes, o Iluminismo como era

moderna de afirmação do sujeito triunfante e da Razão crí­tica - e será esta última a grande aposta desta modernida­

de das Luzes que, segundo Jürgen Habermas, é ainda o "projecto inacabado" da nossa "pós-modernidade".

6 Que os Anti · . gos contmuam a ser venerados pela Idade Média adentro, mostra-o a mfluente metáE d S B d j

ora e . ernar o (de Chartres) segundo a qua os seus contemporâneos ( d ' 1 ) . os mo ernos, que se vangloriavam de ver mais onge senam apenas anões ao b d .

transmitida por John of Salisbs om ros e g'.ga~tes (~s Antigos) . A metáfora, ça de Mi d 199 ury, perdurara ate ao seculo XVII (cf. Bragan-

ran a, 4, pp. 176 e 200-201).

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I

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

4. O Romantismo, que a si próprio se vê como sinóni­mo de moderno (isto é, novo), quer na sua versão trans­cendental (a primeira geração alemã, em 1800), quer nas suas versões nacionalistas (os romantismos europeus mais tardios). No processo histórico do século XVIII, entre Ilu­minismo e Romantismo, a modernidade terá como referen­cial maior uma classe e uma ordem social, com implicações em todos os campos da vida e da experiência. Derivando da emancipação das ciências nos começos da Idade Mo­derna, o moderno ganha agora contornos ideológico-críti­cos apoiados no novo individualismo burguês; inicia-se um processo de autonomização dos campos do saber, e tam­bém da literatura e da arte; nascem o autor como criador "independente" e a instância do mercado literário; a obra liberta-se das normas e funda-se na experiência subjectiva, a estética (proposta em 1750 por Baumgarten) substitui-se às poéticas, a originalidade à convenção. O postulado da autonomia estética, formulado por Kant, provoca uma re­volução no modo de encarar a produção e a recepção da obra de arte, que perdurará até hoje (com alguns ataques desferidos em certos momentos pelas vanguardas dadaísta ou pop) , radicalizando-se nos postulados da arte pela arte, que Mallarmé e o abstraccionismo moderno tentariam levar

às últimas consequências. A aposta do Romantismo deci­diu-se, no final deste processo, pelo Absoluto (que tanto pode ser a Natureza como a Arte, o Eu ou a Nação). , .

5. A modernité, a modernidade como projecto estetlco inovador, em Baudelaire, usa pela primeira vez O termo para o fazer entrar numa dialéctica com a antiq~ité, da qu~l o conceito sairá com o sentido de: arte que realiza a eterm-

'd al' , e ela i·á tinha nos zação do instante. Um senu o, ias, qu

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

primeiros romant1cos alemães, para quem O

român . ( , . , . d d ) ttco que agora e smommo e mo erno é a capacidade d

1 e e e­var o comum a uma potência superior. Percebe-se melhor

através desta filiação, a inclusão do conhecido ensaio d: Baudelaire sobre a modernidade - "Le peintre de la vie

moderne" - num volume intitulado L'art romantique, em

1868. Também Pessoa verá, no Livro do Desassossego, 0

Ro­

mantismo como moderno, isto é simbolista: na arte român­

tico-simbolista dá-se "a exteriorização do sonho e do que há dentro de nós" (LD I, 42-43 ).

6. As "modernidades programáticas" do Fin-de-siecle (Simbolismo, Esteticismo, Decadentismo, Impressionismo,

Arte Nova ... ), versão so/t, estetizante, dos modernismos

posteriores. Pela primeira vez a ideia de modernidade,

sempre vista como evolução, época, movimento no tempo

(desde o século XVIII), dá lugar à de Modernidade como

pluralidade de processos e conteúdos de um amplo movi­

mento artístico na sincronia (antes e depois de 1900).

7. Os Modernismos, versão em geral dura e pura de

uma modernidade que (para alguns) remonta aos Simbo­

lismos do século anterior (ou mesmo ao Romantismo), e

para outros se confunde com as vanguardas históricas, ex­

plosão espectacular e re-vitalizada dos modernismos (ou

também já a sua negação, como acontece com Dada).

Todos estes momentos da modernidade estética, de Baude-

laire aos modernismos, se orientam progressivamente por

uma aposta no Nada, sendo, como são, expressão estética

de um niilismo filosófico que, já na segunda metade do sé­

culo XIX, abre essas duas grandes crateras que foram o vazio ético e o cepticismo em relação ao sujeito (cuja "dis­sociação" se acentua) e à linguagem (que toma consciência

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1

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

dos seus limites). Estas serão as marcas inconfundíveis de

quase tudo o que, daí para cá, se chamou "moderno". . 8. O pós-modernismo e as pós-modernidades, entendi­

dos como reacções, dispersas e diversas, à ditadura da razão,

à ambição totalitária e impossível das "grandes narra~vas" filosóficas e literárias e ao purismo asséptico, formalista e moralista, do tardo-modernismo, com o seu exacerbado "câ­none de proibições" e tabus (Adorno), característico, tanto de toda uma vertente filosófica e sociológica da crítica da cul­

tura enquanto crítica da modernidade (que, desde Nietzsche e Kierkegaard, se continua pelo século XX, com Max Weber e Georg Simmel, Walter Benjamin e a "Teoria Crítica" da Es­cola de Frankfurt), como também da arquitectura do cubo e

da função, da pintura abstracta e conceptual, do nouveau

roman e da poesia neo-herrnética, de Ungaretti a Paul C~la~.

O pós-moderno, com as suas estéticas do ~~~acro, da 1m}­tação, do kitsch e do virtual, com o seu h1bn~sm~ geno!o­gico, os jogos com o leitor, a ideia do Eu como ilusao da lin­guagem e a da realidade como mera possibili~,ade, fez ª,,sua grande aposta, descomplexada e lúdica, no Como se (o que é fosse o que é e este mundo fosse o melhor d.os mun-

d ) Com isto mais não faz do que requentar Nietzsche, os . ' f' que levou bem mais a sério a sua crítica do mundo como a-

bula, da linguagem como mentira vital, ~a .verdade como metáfora, do sujeito como construção penclitante e do co­

nhecimento como ilusão perspectivista - e enlouquece~.

Muitos "modernos" serão também levados à loucur~ e a~ s~1-cídio por uma pulsão trágica, enquanto q.ue. a pulsao lud1ca

d , . , oderno o leva a jogar cnauvamente com o o espmto pos-m desconcerto do mundo.

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

A A VENTURA MODERNA DO MODERNO

A história do moderno nos últimos 250 anos_ 0 pro.

cesso daquilo a que frequentemente chamamos ainda

"a nossa" modernidade - é a história de uma dialéctica, de

uma tensão criativa e de uma afirmação irreversível. A dia­

léctica é a daquela rede de contradições que leva a razão

crítica a degenerar em razão instrumental e mesmo totali­

tária, e que ficou conhecida por "dialéctica da Aufklarung"

(ou do Iluminismo), o título do importante livro de Theo­

dor Adorno e Max Horkheimer (de 1944); a tensão criati­

va é a que resulta do choque, extremamente produtivo,

entre a arte e o social, que se instala o mais tardar com o

Romantismo (no Norte da Europa, em França e na Alema­

nha, essa tensão surge já antes); e a afirmação irreversível é

a do postulado kantiano da autonomia estética (também

ele já prenunciado na publicação da primeira Estética, a de

Baumgarten, em 1750, que dá o golpe de misericórdia nas

poéticas normativas dominantes). Este postulado da Ter­

ceira Crítica de Kant assinala a rotura definitiva com as tu­

telas da arte: apesar das repetidas tentativas de tutelagem,

que continuam a fazer-se hoje por meios bem mais subtis

do que a teologia, o poder absoluto ou as ideologias totali­

tárias, a nossa consciência do estético tornou-se desde

então inseparável da ideia de um domínio com autonomia,

se não absoluta, pelo menos relativa.

Da convergência destes três movimentos, que se inici­am todos, embora não em simultâneo, na segunda metade do século XVIII, nasce o dinamismo de uma ideia que é ainda em larga medida a nossa ideia do "moderno" (alguns marcos mais tardios, muitas vezes referidos como balizas

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F

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

d modernidade sociológica e estética - em particu-a nossa . - -0 do

d M de Baudelaire - mais nao sa lar os casos e arx e d

e desenvolvimentos deste processo, que vem e que etapas d Kant e do primeiro Romantismo alemã~). Rousseau, e 1. d er a produçao

'd . do moderno tem a imenta o, qu Esta 1 eia l b, teorias e po-

, . reflexão sobre e a, e tam em arusuca, quer ª d h . dermos falar parado-, . fim a ponto e oJe po '

lem1cas sem ' . _ d d ,, que parece ter d uma "tradíçao o mo erno ,

xalmente, e d mente no que se

chega~o a u~ cert~ e:0::::::~ ::::ª a :odernidade.

refere a proliferaçao 1 em Les cinq paradoxes Antoine Compagnon exp orou, . - d uma mo-

de la modernité (1990), estda. t_radaliçã(~;~;çioº es:a que hoje 'd d se torna tra 1c10n

derm a e que d ro r - se faz passar . , , moderno em esta o pu . d

- e isto e o pos- 'd d ) de uma superstição o 1 r da moderni a e , ou . . ,

pe o c imax M Enzensberger viu lª em como Hans agnus

novo que - . da vanguarda -, na sua 1962 ao escrever sobre as aporias 'damente en-

, ais novo se esgota rap1 , ânsia de ser sempre m , d um mesmo que se

. 1 do eterno retorno e trando num c1c o M . to tem mais a ver com a

or outro as is quer fazer passar P · b _ (edipiana) da morte

f . com a o sessao d idolatria uturista ou d . m para se afirmar, o

guar as precisa , da arte, de que as van ' I' do novo - e este e

1 culto melanco ico , que com aque e . B delaire aquela que tera

d que trai em au ,, outro para oxo - d' - dos "modernos

. dutiva contra içao ( sido talvez a mais pro - vontade do novo a

. . tensao entre a desde o Romanusmo. a Ih hama Compagnon, na es-

fu " como e c "religião do turo , . d . ens - quer estas 1 . ) e a nostalgia as orzg

reira de Baude aire . 1· d regresso à natureza, d d Média 1dea iza a, ,

se chamem I a e f h' world" (nos Poemes en . . . " here out o t is ,

prim1ttv1smo, anyw . de vária ordem, ou ate prose de Baudelaire), atavismos

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

mesmo aquela mítica adoração futurista da máquina m . , ais

como dinamismo puro, manifestação de força e energia (a

par da guerra), do que como produto da técnica modern a. Só neste contexto se entende o "spleen" baudelairiano (o

"j' ai plus de souvenirs que si j' avais mille ans "), a atracção

do "poete actif" pelas multidões, ou a referência de Bau­

delaire ao progresso como "ce fanal obscur" ("esse facho

obscuro"), que ilumina o caminho para diante mas ao

preço, elevadíssimo, do mergulho no obscurantismo da ali­enação. A melhor alegoria desta visão dúplice do progres­

so será porventura a conhecida Tese IX de Walter Benja­

min "Sobre o conceito da História", em que o Anjo do

novo, de costas para o futuro, é empurrado por um venda­

val que sopra do paraíso, tendo à sua frente um montão de

ruínas ( um dos poetas mais emblemáticos do modernismo

do século XX, Paul Valéry, repete a imagem no seu Mon Faust, quando escreve: "nous entrons dans l'avenir à recu­

lons"). E a mesma contradição sustenta, ainda em Baude­

laire, a escrita, já não simbólica, mas modernamente alegó­

rica, de poemas como "O cisne" ("Paris change!, mais rien

dans ma mélancolie / N'a bougé! ( ... ) tout pour moí devi­

em allégorie") e, em última análise, a própria ideia da mo­

dernidade como o lugar de encontro do fugidio e do eterno,

tal como surge no sempre citado soneto "À une passante",

ou, melhor definida, em "O pintor da vida moderna", "este

solitário dotado de uma imaginação activa, sempre viajando

pelo grande deserto do homem ( ... ) [e que] procura qualquer

coisa a que nos permitiremos chamar a modernidade (...). Trata-se, para ele, de retirar da moda aquilo que ela pode

conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transi­tório ( ... ). A modernidade é o transitório, o fugidio, o con-

24

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

tingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável" (Baudelaire 1993: 21).

Estamos no centro (até cronologicamente falando) de um processo de modernidade como crise, intuída, mas ainda não plenamente assumida, pelos românticos (e já por Rous­seau, no plano do pensamento), vivida por Baudelaire em meados do século XIX (vivida ainda como um inesgotável e excitante manancial para a criação), e interiorizada, cerebra­lizada e extremada por Pessoa, que da consciência da crise fez quartel-general da sua inquietude. Nele, essa crise é já só consciência crítica, hiperlúcida e trágica, sem o júbilo so­nhador ou a elevação transcendental dos românticos, o ine­briamento melancólico de Baudelaire, ou o visionarismo de Rilke. O que se deu, neste processo crítico, nesta viagem da modernidade pela crise, foi a passagem da idade clássica a uma aventura romântico-moderna em que a possibilidade de experiência (Er/ahrung, no diagnóstico de Walter Benjam~),

objectivada em tradições e convenções da lín~ua e d~s _s~­bolos da vida colecúva, dá lugar à solidão r~dzcal da vive:~ª (Erlebnis em Benjamin), ou da vivência radical, fruto da m-

venção do indivíduo" pelos Romantismos. , . Esta dicotomia podia transpor-se, numa análise das

duas modernidades aqui implícitas - a iluminist~ e ~ "mo­dernista"' ou a filosófica e a estética - para. a ~r?pna rel_a­ção entre estas duas vertentes do processo h1stonco e arus-. d d , lo XVIII A relação entre as duas, uma uco es e o secu · . ,

convivência tensa desde o início, é definida por um s;10-logo como Alain Touraine em função do que cons~ era

d f. d modernidade: a Razao e o serem as duas gran es iguras a d.

f . , E é bom não esquecer que o !-

Sujeito. De acto, assim e. , . mo-. d . 'd de teórica e estettca da nossa

nam1smo e a pro uttvt ª

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

demidade se devem essencialmente ao facto de a segund

destas figuras - o Sujeito - se ter transformado desd:

logo na consciência crítica da primeira: ao longo do século

XIX, torna-se evidente como a afirmação da liberdade in­dividual entra em conflito com as pretensões universalistas de uma Razão que a princípio se apresenta triunfante e ab­

soluta, para progressivamente se ir remetendo a um lugar já só instrumental, nas sociedades do consumo e da comuni­

cação. Touraine vê nesta razão instrumental a sua versão mais modesta e suave, e advoga - na linha do consenso ra­cional de um Jürgen Habermas - a necessidade de uma redefinição da modernidade por via de um consenso novo entre Razão e Sujeito, em sociedades (como a nossa -quem diria?) onde se perdeu a noção do espaço público -que, ironicamente, é o berço da primeira modernidade, a iluminista - e onde houve uma regressão para um estado de coisas em que se acentuou o fosso entre "os poderosos e o povo" (os "guerreiros conquistadores" - hoje comba­tendo nas Bolsas de todo o mundo! - e as "pessoas vulga­res") (Touraine 1993:16).

Há alguma ingenuidade nesta utopia de recorte idea­lista, que lembra em muito Habermas e o seu esforço para manter vivo, por respiração artificial, o cadáver - adiado talvez para um século pós-pós-moderno - do grande pro­jecto das Luzes7

• Também Marshall Berman, autor de um conhecido livro sobre "a aventura da modernidade", o já citado Tudo o Que É Sólido se Dissolve no Ar (um título to-

7 J. Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: D. Qui­xote, 1990; e Die neue Unübersichtlichkeit [A Nova Opacidade). Frankfurt: Suhrkamp, 198,.

26

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

mado de empréstimo ao Manifesto Comunista), parece so­frer da nostalgia de um núcleo da modernidade que é o de um século XIX algo heróico, mas hoje manifestamente ar­redado dos nossos horizontes. Essa modernidade terá sido a de uma espécie de primeira "globalização", conduzida pelo espírito de uma modernização febril, de "um tipo de experiência vital e ambiental que une a espécie humana" (Berman 1989: 15), mas é ao mesmo tempo combatida por uma plêiade notável de figuras a que Berman, ambigua­mente, chama "os grandes modernistas do século XIX", e na qual inclui nomes tão díspares como Marx e Kierke­gaard, Nietzsche e o anarquista Max Stirner, Whitman e Ibsen, Baudelaire e Rimbaud, Carlyle e Melville, Strind­berg e Dostoievski. Estes e outros "modernistas" formam, para o autor americano, a galeria olímpica daqueles que gostam de viver em perigo e de abarcar o incomensurável. Será neles, e no seu espírito, que Nietzsche pensa quando fala de "nós, os modernos, nós, os semibárbaros". O sécu-lo XX, inventando uma arte a que também chama moder­na, ter-se-á, com isso "esquecido" desta sua tradição de "vida moderna", emancipando-se, pela arte, da moderni­dade do século XIX. Outros afirmarão, pelo contrário, que o século XX se liga, precisamente pela sua arte, ao século anterior: penso que a tese faz sentido, para um período mui-tas vezes vagamente referido como "o século XIX", mas al­tamente complexo e diferenciado, e que foi, mais do que qualquer outro, a um tempo epigonal e seminal. Berman contrapõe, no entanto, os dois momentos históricos como se cada um deles constituísse uma unidade coesa, para con cluir que o século XX estagna e regride, cristaliza num " 1· e h do" (a arte autónoma para a qual Adorno mono 1to 1ec a ,

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

já encontrara uma metáfora semelhante, a da "mónada sem

janelas"). No século XIX, visto como "fase autêntica" de uma modernidade dinâmica, totalizante e dialéctica, sabia. -se que a tecnologia e a organização social condicionam

0

destino do homem, e combatia-se isso; no século XX (es­

tranhamente visto por Berman como uma época de elites

sem poder crítico), desde os movimentos modernos e as

"vanguardas da pura revolta" até à nova esquerda dos anos

sessenta e ao pós-modernismo, apenas se sabe!

É uma visão duvidosa e saudosista, que pretende res­

suscitar para o século XX o que considera ser o "moder­

nismo" dinâmico e dialéctico do século XIX, não parecen­

do entender como no século XX é precisamente a arte - e

sobretudo a arte dos movimentos ditos modernos ou de

vanguarda, naturalmente elitista, como sempre - que ab­

sorve essa dialéctica produtiva da contradição entre o soci­

al e o humano (ou o estético), para denunciar, embora si­

lenciosa e indirectamente, a dialéctica negativa de um

progresso enredado nas suas próprias contradições, a que

Adorno deu expressão filosófica. São precisamente autores

como Adorno ou, na sua esteira, Peter Bürger e Hans Ro­

bert Jauss, o Henri Lefebvre de Introduction à la moderni­té e Antoine Compagnon, ou, entre nós, José Bragança de

Miranda (com a sua reflexão agudíssima em Analítica da Actualidade), que farão as leituras mais amplas e mais críti­cas do processo histórico e estético da "nossa" modernida­

de, que não é una, mas múltipla, que é certamente ainda a das Luzes, ~as também, no plano da arte, a de um século que, :sse sim, é verdadeiramente ainda o nosso: o século XX Modem ,, ~ d

·., os nao po em continuar a ser, neste século que 1ª começa no anterior, os seguidores do modelo realis-

28

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

ta-naturalista, mas apenas aqueles que, já desde Baudelaire

e nisso é nosso contemporâneo - proclamam e pra· - qu, ' !" . uma estética antinaturalista, a do "surnature , que

ucam . d

1. ida o ideal clássico, supera o simbolismo transcen en-iqu · tam-al

~ tico e ao virar do avesso a natureza, atinge t roman , . , , d 1 b , mortalmente a moral (que, nessa altura, lª e a ~p a

em 1 b esa que Freud e Simmel viriam a escalpelizar mora urgu d l ·

f. do século). Veja-se, por exemplo, o que Bau e ai_re

no 1m ilh " d O p n-e no capítulo "O elogio da maqu agem , e z

escrev - · da ou 'd M d . "A natureza nao ensma na ' tor da Vt a o erna. lh

~ d ~ao aconse ar o d ( ) a natureza nao po e sen

quase na a ... ' :,: · f bre natu-. ,, . "A virtude pelo contrário, é artt,tcta ' so .

crime , ' d' · mpre ao ,, . "A mulher tem, de facto, o ireito, e cu

ral , o uma espécie de dever, ao aplicar-se a parecer mesmo temp D ortanto recorrer a

ágica e sobre-natural ( ... ). eve, P ' . d m · d se elevar acima a na­todas as artes para obter os meios e t ldade podendo

"· "O artifício não embeleza a ea ' tureza , . . 49 53)

. b leza" (Baudelaire 1993 • · · apen;~ s::~/m:dernos de pleno direito, os p~~~aturos da

ao d alismo e do posmvismo, que modernidad~ no a~~:be~i:: do Belo contra o Bom da so· levam por diante a b . Adorno em Minima Mo-

d b " como em vm · cieda e urguesa , . . s "alegoricamente"' asst· ralia. Não de forma idealista'. md~ t i·a e o mundo urbano,

. · ez a m us r milando pela primeira v f' ção de um novo

, desconcertante a uma . ,, d para chegarem a . d "nova mitologia os

,, ~ · generts como O ª , "realismo , tao sut f' r "Tout bon poete

, . lemães. Ao a irma . . d Primeiros romanucos a . . . de na sua ideia e

, 1· ,, Baudelaire remei fut toujours rea iste , . , t cada por um sopro

, 0 (porque lª 0 d' uma modernite sem temp l definido e inconfun t·

m um ugar d de eternidade), masco _ da haussmanização e das gran es vel, neste caso o da Paris

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

exposições universais (lugar simbólico, aliás, já que a partir

daí nunca mais a arte verdadeiramente moderna se liberta­

rá dessa presença referencial e tutelar da técnica e do soci­

al _ embora às vezes pareça fazê-lo, e no fundo aspire

sempre a fazê-lo) . É por isso que Hans RobertJauss, ao tra­

çar a génese da nossa modernidade em quatro etapas,

desde os dois Discours de Rousseau (Discurso sobre as Ciências e as Artes, de 1750, e Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, de 1754) , defende a ideia

de que o modernismo (esteticista) de Baudelaire releva de

urna tendência dominante na época, que, contra algumas in­

terpretações já clássicas (mesmo a de Walter Benjamin em

Charles Baudelaire, um Poeta na Fase do Capitalismo Tardio), é urna estética da não-autonomia da arte, que assimila - na

poesia como na fotografia - a art social, a art utile e a art in­dustriel (J auss 1989: 93-94). Jauss "salva", assim, este esteti­

cismo inicial, no qual reconhece uma "tendência progressis­

ta", do mesmo modo que Adorno atribui a toda a arte

moderna o duplo estatuto de autonomia e /ait social. Este duplo estatuto perder-se-á, porém, na evolução

posterior a Baudelaire, com a insistência, em Mallarmé e no

Esteticismo - francês, inglês, português, alemão - do

Fin-de-siecle, nos princípios da arte pela arte. É isso que ex­

p~ca a reacção violenta dos modernismos propriamente

~ltos e das vanguardas históricas (que, no fundo, mais não

e ~~ que a manifestação de uma edipiana "morte dos pais ) ' quer se pense na absorção frenética do dinamismo da vida urbana no " · ul , ,, d . . d . Slffi tane1smo os Express1omstas e Berlim em 1910 ( d · d . . . ou a pintura os Delaunay e dos Futu-ristas italianos) no p , . . . 19

. ' . oeme-conversatton de Apollmaire em 12, nos prlffie1ros po d il emas e est o chocantemente colo-

30

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

quial de T. S. Eliot em 1917, nas colagens da arte "Merz" de Kurt Schwitters a partir de 1918, ou na rotura dadaísta, entre 1916 e 1922, e, naturalmente, na revolução surrealis­ta, de 1924 ao fim da década.

É da reflexão sobre esta fase da história do moderno a que nos habituámos a chamar Modernismo - e qu~ constitui provavelmente o único lapso de tempo (1910 a 1930) que, no contexto estético da história desta categoria, merece o nome de época - que nascem algumas das sínte­ses mais importantes e das definições mais pregnantes do "moderno", da "arte moderna" e, em íntima ligação com ela, da "Modernidade": as de Henri Lefebvre e Gilbert Durand, as de Adorno e Peter Bürger. Na impossibilidade de comentar aqui cada uma destas leituras em particular, destaco aquilo que me parece aproximá-las, para lá das di­ferenças - nalguns casos abismais - dos pressupostos te­óricos e ideológicos que as orientam (por exemplo, o mar­xismo de Lefebvre versus a mito-análise de Durand). E o que as aproxima será o reconhecimento, comum a todas, da indissociável relação entre o estético e o social, que leva

a que todos estes autores, partindo da afirmação da prima­zia e da autonomia (relativa) do estético, se interessem por uma via que é a de uma "sociologia do imaginário" moder­

no (a expressão é de Gilbert Durand) , e não apenas por uma fenomenologia imanentista da "obra" moderna (Peter

Bürger acentuará o facto de a própria noção de obra ser posta em causa pelas vanguardas, sobretudo por Dada), ou por uma mera tipologia dos Ismos (as grandes obras mo­dernas não cabem em nenhum Ismo). O "moderno" refe­

re-se, então, a um processo amplo e não compartimentável,

processo de transformação social, de instabilização das cons-

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

ciências e de renovação, nunca vista antes, das linguagens ar.

tísticas (digamos, entre 1850 e !930). Começando Por ser

uma reflexão incipiente, espartilhada entre um Romantis.

mo agonizante e um Realismo nascente, entre a metafísica

idealista e O positivismo científico, entre restos de absolu.

tismo e a afirmação, minada de contradições, do liberalis­

mo e do socialismo, essa "modernidade" tacteante irá gerar

um Modernismo estético definido por Lefebvre como "a

consciência exaltante-exaltada do Novo", introduzindo

certezas programáticas onde antes existia interrogação e re­

flexão crítica (Lefebvre 1962: 10). Lefebvre definirá a mo­

dernidade, nos alvores deste processo, através das relações,

opostas, de Marx e Baudelaire com o mundo burguês (su­

prema abstracção na teoria marxiana da alienação e matéria concreta da nova poesia, na poética de Baudelaire), para

concluir que "a modernidade, na sociedade burguesa, será

a sombra da revolução possível e falhada, a sua paródia"

(Ibid., 174). A grande revolução moderna não será, de

facto, a revolução política (a não ser que se pense na gran­

de Revolução de 1789). De uma forma ou de outra, nos sé­

culos XIX e XX todas as revoluções fracassaram, das mo­

vimentações liberais à Comuna, da revolução bolchevique

ao nazismo e ao fascismo. Ela será, sim, a revolução da lin­

guagem poética (para ecoar um célebre título deJulia Kris­

teva sobre os modernos franceses) ou, talvez melhor, das

linguagens artísticas. Na fase heróica da Modernidade e

~~s Modernismos, essa revolução ganharia foros de rebe-liao contra o d' · · 1scurs1v1smo realista-naturalista (mas tam-bém político-parlam ) f' . d . entar , e a 1rmar-se-1a através de uas vias que abarcam O qu d • . 'f' . . . d . e e mais s1gm 1cat1vo e dec1s1vo nos

e1xaram os Moder • . msmos euro-americanos: a do silêncto

32

QUE SIGNlflCA ºMODERNO"?

(na literatura experimental e hermética) e a do grito (do de­sespero niilista à espectacularidade futurista) . Estes dois gestos, que a certa altura degeneram em pose, convergem nesse emblemático testemunho de uma modernidade que oscila entre o simbolismo e o expressionismo, e que é

"O Grito", de Edvard Munch (1909) - um grito silencio­so, reprimido, angustiado e universalmente humano.

Para Gilbert Durand, silêncio e grito corresponderiam às figuras, em que se apoia para desenvolver a sua "mito­análise" da modernidade à luz de uma "sociologia das pro­fundezas" , de Hermes (ou Orfeu) e Prometeu, figuras tam­bém traduzíveis por: mito e racionalidade. Segundo esta sua leitura de "implicação mítica", moderno será, para Du­rand, o discurso predominantemente "dilemático", e não afirmativo (Durand 1983: 8-10). Por seu lado, Theodor

Adorno (na Teoria Estética, publicada em 1970, tradução

portuguesa 1982), vê na arte moderna múltiplos aspectos

daquilo a que chama o seu "duplo carácter": a abstracção (a recusa do empírico) que radica no sensível, a autonomia

que é também /ait social (porque transporta consigo a re­

cusa da alienação do real e porque se recusa à "chantagem"

da reconciliação com a negatividade desse real, como fez a arte realista) , ou a historicidade que lhe vem da sua mais in­

transigente afirmação de imanência trans-histórica, sinal da

sua universalidade. Só assim se compreende que Beckett

possa ser o "grande realista" de meados do século XX, o

melhor "espelho" de um estado de coisas, social e existen­

cial, do mundo: esta é uma afirmação que hoje entendemos

muito melhor, e daí talvez o regresso de Godot e de Oh, les beauxjours aos palcos. A "anti-arte" abstracta de Beckett e

de tantos outros "modernos" e "modernistas", precipita-

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

damente estigmatizada como "desumana" por Ortega em

1925, é de facto o Outro da sociedade totalitária e alienada

e de relações humanas, elas, sim, cada vez mais abstractas

(Adorno 1970: 53). No mesmo sentido se poderia dizer, com Peter Bürger

(cf. Bürger 1974), que modernos são aquele espírito e aque­

la prática artística que levam os movimentos de vanguarda

- O Dadaísmo e o Surrealismo, aqui opostos, não tanto aos

Modernismos, mas ao Esteticismo do Fim-de-Século, que

terá esvaziado a arte de qualquer função - a reconduzir a

arte à praxis e à vida, paradoxalmente através de processos

de construção-desconstrução radicalmente opostos a quais­

quer princípios organicistas ou vitalistas, que tinham estru­

turado a categoria estética da "obra" desde o período clássi­

co-romântico até ao próprio Expressionismo modernista, do

qual Dada violentamente se distancia. A aventura moderna

do moderno, que começara com Baudelaire e a sua transfi­

guração alegórica do mundo urbano e dos começos da dis­

sociação do sujeito nele, alcança aqui um clímax com as pro­

clamações da morte da obra e da morte da arte, e do seu

renascer nas práticas transsubjectivas, de inspiração constru­

tivista ou onírica, de Dada e do Surrealismo.

UM TEMPO PORTUGUÊS

Em Portugal, esta aventura moderna do moderno teve

também os seus pensadores, cronistas e analistas, mas

q~ase sempre - com a excepção recente de Bragança de

Miranda .- com referência apenas à nossa própria literatu­ra (e munas vezes só à nossa poesia), e de um modo dis-

34

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

perso e ambíguo. Eduardo Lourenço faz geralmente re­montar o primeiro momento importante da nossa "moder­nidade" literária às Odes Modernas de Antero (como a1·, , ias, já Fernando Pessoa havia feito), enquanto que Fernando

Guimarães se tem preocupado em traçar a genealogia dos "movimentos modernos" até às suas raízes no século XIX

para fundamentar as suas teses, hoje já pouco contestadas: de uma continuidade entre Simbolismo e Modernismo. Outros, como sabemos, propuseram antes teses afins, indo mesmo mais atrás, até ao Romantismo - o caso de Octa­

vio Paz -, não deixando, porém, de ser contestados por aqueles que viram nos modernismos do século XX uma ro­

tura, mais do que uma sutura, em relação ao Romantismo (é o caso, por exemplo, do brasileiro José Guilherme Mer­quior) . Entre nós, a discussão não tem, porém, sido, nem

intensa nem muito sistemática. É sintomático o facto de o Dicionário de Jacinto do Prado Coelho não incluir um arti­go sobre "Modernidade", um conceito hoje inflaccionado,

vago e demasiado abrangente. Os modernistas portugueses

das duas "gerações" sabiam melhor do que falavam quan­do usavam o termo "moderno" (embora também o não te­

nham propriamente pensado). Pessoa usa-o já em 1910, no

artigo sobre "A nova poesia portuguesa", com referência à

poesia desde Nobre e Antero (este é também considerado

o "ponto de partida" das transformações literárias portu­

guesas modernas no artigo "On Modem Portuguese Lite­

rature" (1912?]), embora noutros textos "moderno" seja

praticamente equivalente de simbolista ("A arte moderna é a arte do sonho" (1913?]) ou referido como uma "transi­

ção" entre Romantismo e Modernismo. Na fase sensacio-" · " derno nista é este Ismo que representa o movimento mo

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

por excelência, já que terá superado, tanto o simbolisin . ali d . ( f 01

/paulismo como o nac1on smo sau os1sta c . Páginas 1 . ntz. mas e de Auto-interpretação), enquanto que noutras ocasiões

(no Livro do Desassossego e em textos incluídos nas Páginas de Estética, de Teoria e Crítica Literária [PEJ) as menções ao

moderno se alargam à arte do seu tempo, vista como "aris­tocrática" ("A arte moderna é aristocrática":PE, 158). Mais tarde, no Prefácio à Antologia de Poemas Portugueses Mo­dernos, organizado com António Botto em 1929, recusa-se 0

uso do termo "moderno" em sentido genérico ("O tenno

'moderno' nada significa em si mesmo"), mas volta-se a de­fini-lo, agora para o caso português, com referência a Ante­

ro: "No caso presente, entendemos por poemas portugueses modernos os dos poetas portugueses que têm data literária desde a Escola de Coimbra, e incluindo essa escola" . Por­que, acrescenta-se, "esta escola foi o renascimento da poesia portuguesa" (Páginas de Doutrina Estética, 135-36). Uma coisa, porém, parece certa: para Pessoa, a arte moderna não é o Futurismo, porque este "é uma fotografia abstracta das coisas" e a arte é "antifotográfica e concreta" (PE, 161). Mo­

derno parece ser então para Pessoa, não o abstraccionismo nem o realismo, mas "qualquer coisa de intermédio", que não cabe nas batalhas dos Ismos, mas é comum a muitos deles e tem a ver com uma "atitude" em que entram tanto o snobismo c · · alid d ' b

A orno a ongm a e, o comportamento anti- ur-g~es e ~ : 0ntade de negação, o cosmopolitismo e a autono­mia esteuca. É O que parece estar contido na fórmula lapidar do Livro do Desassosseg ·, · · d " o, que Ja c1te1 e on e se diz que ser moderno é escapar , di ' as regras e zer cousas inúteis".

Para Almada Ne · . d d d

. . . greiros, que tem por vezes o cuida o e istmgu1r entre M d

os o ernos (os Modernistas) e os

36

QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

"Novos" (grupo mais consciente da oposição radical entre novo e velho, no qual se inclui), ser moderno é, num registo diferente do de Pessoa, estar à la page, ser anti-académico e anti-passadista, mas sem vinculação a um movimento espe­cífico (cf. "Modernismo", 1926) - é ser "futurista e tudo", mas não necessariamente modernista: esses são os de 0r­pheu, enquanto os "Novos" que se juntam num Comício no Chiado Terrasse em 1921 são apenas "um grupo de rapazes que quer entrar para a SNBA!" A ideia - e a distinção novo-velho, e também novo-moderno - é retomada em 1934 (em "'Os Pioneiros' - Para a história do movimento moderno em Portugal") e 1936 (em "Fundadores da Idade Nova"), sem que, no entanto, se chegue a definir, literaria e esteticamente, os conceitos, como tinha feito, por exemplo,

0 manifesto de Apollinaire "I.:esprit nouveau et les poetes", de 1917. A confusão é grande: José Augusto França consta­ta que só em 1914 apareceu o termo "mod~rnis~o", usado por um crítico de jornal, mas aplicado aos sunbolistas-~eca­dentes do Porto (os de Lisboa prefeririam chamar-se, mais ou menos meteoricamente, Sensacionistas ou Futuristas).? ter­mo (Modernismo) será fixado mais tarde pela geraçao da presença, mas apenas para referir o grupo de Orpheu, e pa~a ser a dado passo, mais ou menos "tabuizado", :r~sforma o

' , • d e Regio e Gaspar em etiqueta desse passado proxuno e qu .

. - di . J, m 1928 o Notícias Ilustrado, ao h1s-S1moes se stanc1am. a e d d · 0 .

. ia que os ver a etros m toriar o nosso Modernismo, escrev M d . )

,, (do segundo o erntsmo . dernistas eram "os precursores . . d f" . -o

Ra d na amda uma e m1ça O arquitecto Carlos mos a . - a Nacionalismo,

. (d z por oposiçao de Modernismo esta ve d ) que me interes-

1 ar on e se nasce que teria a ver com O ug l"t e a importância do sa por destacar a dimensão cosmopo t a

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

tempo no moderno. Escreve Carlos Ramos no número 3 da

revista Sudoeste, em 19.35: "Modernismo é o estado de

consciência proveniente do conhecimento exacto da hora

em que uma pessoa viu a luz do dia" . Curiosa definição.

Ser moderno é então uma questão de tempo, não de lugar.

Há, realmente, uma "topofobia" nos modernos, já assinala­

da (em O Sentimento Trágico da Vida) por Unamuno, que

não gostava de modernismos nem de "maluquices futuris­

tas", que vê os modernistas como gente que anda à deriva,

sem identidade nem lugar próprio (esquece-se de que a iden­

tidade dos modernistas por toda a Europa era um estado de

espírito, e que o seu lugar próprio era a arte, de Paris a Ber­

lim e de Lisboa a S. Petersburgo). É um facto que a pers­

pectiva temporal sempre foi determinante para a compreen­

são daquilo a que se vem chamando "moderno" desde a

Querelle ... : Baudelaire define a modernidade com recurso às noções de instante e eternidade, os modernos do início do

século e o tardo-modernismo de meados de novecentos sem­

pre fizeram do tempo e da temporalidade, dos mistérios da

durée e da memória, os seus grandes temas. A obra moderna

é, assim, aquela que, no seu universalismo cosmopolita, ab­

sorve ou anula o espaço, com vista à fixação do sentido da

sua modernidade na figura de uma eternidade desvinculada

das contingências espaciais e da "cor local". A arte moderna apostou na " ·d d " d etern1 a e e categorias como a forma, a es-trutura ou O " " d ponto que tu o absorve e transforma em puro subjectivísmo É · d · mais um os paradoxos do moderno esta pretensão de r · · d t· ' - ' eJettan ° a txação espacial dar expres-

sao ao tempo através d f . ' berro H 1d d . e tguras da Intemporalidade. Her-

e er e1xou a m 'd . quase genial esma 1 eia, fonnulada de modo

' numa passagem de Cobra (p. 60): "A única me-

38

-QUE SIGNIFICA "MOOER,\'0 "?

dilação moderna é sobre o nó / absorvendo a madeira toda:· Nesta expressiva imagem podem estar todos os sentidos J o

processo recente da modernidade que remos vindo a seguir:

a concentração (simbolista) do mundo no pormenor ou (mo­

dernista) no Eu; a dialéctica do moderno em Baudelaire entre o pontual e o ilimitado; a expressão da crise da língua~ gem discursiva na viragem do século, particularmente num

documento-chave como a célebre Carta de Lord Chandos, de

Hofmannsthal; a processualidade iminentemente metoními­

ca da poesia de Pessoa (cf. J. Barrento, O Espinho de Sócra­tes, pp. 91 segs.), ou já o pós-moderno e a sua proclamação do fim das grandes narrativas.

MODERNOS E PÓS-MODERNOS

O destino do conceito de "moderno" na nossa actua­

lidade, que,/aute de mieux, dele se serve para a si mesma se

definir, é curioso e paradoxal. A contemporaneidade há

muito que sentiu necessidade de o sacudir, incomodada

que andava, desde os anos sessenta, com o que considera

ser ainda a dureza, a inflexibilidade, um sentido absoluto e

programático dos modernos (leia-se: modernistas), incom­

patível com a era da contingência e da disseminação, da

"dispersão sem princípio tutor" (Eduardo Prado Coelho,

"O homem de areia", Público ["Mil Folhas"] , 24 de Feve­

reiro de 2001) . A incompatibilidade é real, apesar de ser

igualmente possível traçar genealogias, sobretudo a nível

de processos estéticos (menos de estados de consciência),

entre o moderno e o pós-moderno. Mas um sistema que

pretendesse abarcar e relacionar esses dois momentos que

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

absorvem o último século, teria de ser um sistema d

sições. Um quadro sintético que quisesse enumera; ºPo-d l l fil , f· , . algu. mas e as, no p ano oso 1co e no esteuco pode •

' ria ter seguinte configuração, ou outra semelhante: ª

Modernidade/

Modernismo

- Racionalidade

- Pensamento "duro"

- Pensamento da unidade

- Totalidades sistemáticas

- Pensamento dialéctico

(Estrutura)

- Sentido do trágico

- Sentido ético

- Eticização da estética

- Programas (vinculativos,

unilaterais)

- Um pensamento adentro

de uma filosofia da história

- Crítica das ideologias

- Vivência crítica da crise

- Superstição do 'novo'

- Arte do profundo e

do elementar

- Purismo estético

- Culto da originalidade - Ironia séria

- Subjectivismo sem sujeito - "Desumanização"?

(abstracção)

Pós-modernidade/

Pós-modernismo

- Crítica da razão/irracionalismo

- Pensamento "debole"

- Pensamento da "diferença"

- Fragmentação assistemática

- Pensamento "aberto"

(Desconstrução)

- Sentido do lúdico

- Vazio ético

- Estetização da ética e da política

- "Valores" (flexíveis,

referenciais)

- Fim da história,

"pós-história"

- Fim das ideologias

- Convivência acrítica com as crises

- Reciclagem e revivalismos

- Arte do superficial e

do acidental

- Eclectismo

- Culto da intertextualidade

- Paródia e humor

- Sujeitos (sem subjectivismo)

- Re-humanização? ('reality-shows', 'realismo urbano')

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QUE SIGNIFICA "MODERNO"!

Que aconteceu entretanto ao "moderno" e à sua assi­

milação pelos movimentos designados de Modernismos? O modernismo teve o destino diagnosticado (por Enzensber­

ger, Sanguinetti, Peter Bürger) a todas as vanguardas: des­gastaram-se e esgotaram-se. O que um dia foi contra-cultu­

ra, prática simbólica de rotura iconoclasta e radical, trans­formou-se num objecto de quase suspeição por parte de uma cultura hoje dominante, incaracterística e sem per­

fil claro: 0 chamado pós-modernismo. O modernismo é

hoje visto (também pela crítica literária) como cultura ~b­soleta, ou pelo menos como matéria já só histórica, mu1t~s

vezes objecto de rejeição ou ironia - quer a cultura ~~us-. dos modernismos, quer a das grandes causas políucas

uca f , . . , . quer ainda a de uma cultura filosó ica crmca em-ou eucas, . , • d

f da pelo niilismo. Tudo isso se tornou patnmomo e orma . _ dinossáurios que fizeram as últimas apançoes por

uns d U 'd ., esmo 1 d 1968 para depois (nos Esta os m os, lª m vota e , , . ,

alt ra) darem lugar a outro bicho mmco, o pos-por essa u . · d , -modernismo, a que um dia chamei o "umcór~10 o secu-

. ' m O vm de corpo 1 ,, (todos falam dele, mas nunca mngue ;teiro - pela simples razão de que ele nunca teve um

corpo inteiro). d em pro/undi-0 modernismo foi uma cultura a rotura_ a1· -

radigmas rac1on istas, po dade, que virou do aves~o os pda , uma cultura do radi-

. 1. . pos-mo erno e sitiv1stas e rea istas, o A • lexos. O que

- convivenc1a sem comp cal em extensao, numa 1. 't s bem definidos,

• · radical com imi e antes era rigorismo ' d d. al pelo radical. O que

h . um culto o ra ic . . . transformou-se oJe n . . . mas não a sub1ecuv1-

d Eu O su1e1to. . antes foi rasura O -

0 '. • m subi·ectividade nos

h . limites e se dade - expõe-se oJe sem

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A ESPIRAL VERTIGINOSA

'ralkshows' e nos 'reality shows', na literatura do "reali

al" E . . smo urbano tot : o u exterior, o corpo sem mterioridad ,

alm. h r . d .r, . d . e, so com uma m a 1e1ta e ;atts ivers, emoções mesquinh

afi L ' di ' din as, biogr as rasas. u cas e puramente ano · as. A cul . tura

pós-moderna, diferentemente da moderna, não é crítica nern

rigorista, é performativa e transgénica, híbrida e permeável

quase já só tem corpo e sexo. O resultado: um enorme téd' ' 10,

porque não se pode ir mais longe do que o corpo, e porque

a banalização do gesto pretensamente extremo nos deixa

cada vez mais indiferentes. Radicais, dir-se-á, foram os mo­

dernos, Nietzsche e Sá-Carneiro, Bataille e Cioran. Mas tam­

bém eles sofreram o destino, hoje claramente diante dos nos­

sos olhos, de todos os modernos: tornaram-se "antigos",

envelheceram. Os modernos estão hoje - no que diz res­

peito a uma eventual presença actuante na cultura contem­

porânea - mortos e enterrados. Mas o sentido do "moder­

no", esse continua aí, mais vivo do que nunca - se por

moderno entendermos, não o que nos vem dos discursos his­

tóricos, esgotados, sobre a modernidade, mas o presente vivo

e a sua urgência, a experiência de uma actualtdade que é fun­damento de liberdade, acto e criação ou, como escreve Bra­

gança de Miranda a propósito da noção de actualidade em

Foucault, "o agir livre que se efectiva no combate que se joga

entre O existente e o possível, o presente e o actual" (Bragan-

ça de Miranda 1998: 74). Para Foucault, que privilegiava a

acepção do moderno em Baudelaire "a modernidade é um

m~do de ser da actualidade, cujo sen~ido está em aberto, que se Joga dia a dia, acto a acto" (Ibzd., 78). É o que quer dizer a p~r~unta, colocada já em 1829 pelo dramaturgo alemão Christian o· · h G ietnc rabbe na boca de Fausto, na peça

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QUE SIGNIFICA "MODERNO"?

Dom João e Faustd: "Valerá menos o que a 1 · con ece no mundo

do que a história do mundo?" (I, ü).

Eu diria que não.

(.30 de Maio J e 200 f J

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- d · Cornucópia cm Maio cJunho Jc s A peça esteve cm cena no Teatro a

2001.

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