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sta edição do Grito Mulher pretende E suscitar o debate sobre a situação das mulheres que exercem a prostituição, o estigma e as violações de direitos humanos que lhes afetam particularmente (como violência, falta de condições mínimas de higiene, insalubridade dos locais de prostituição, exploração econômica e a falta de proteção frente a determinados clientes e donos desses locais). Para além da velha e ultrapassada discus- são entre abolicionistas e regulamentaristas, pretendemos promover a reflexão a partir de novas perspectivas, surgidas dos relatos e demandas apresentadas pelas próprias mulhe- res que estão nesse meio. Buscamos também motivar a discussão sobre quais são as medidas mais eficazes para seu empoderamento e para sua proteção social e jurídica. A experiências destes anos no acompa- nhamento de mulheres em situação de prostitui- ção nos ensinou que não serve qualquer medida abolicionista nem qualquer tipo de regulamenta- ção. O enfrentamento da vulnerabilidade e a discriminação que sofrem nos exige “sair da caixinha”, pensar diferente, determinar cami- nhos alternativos, em colaboração com outras entidades e movimentos sociais e com as própri- as associações de prostitutas que lutam para melhorar suas condições de vida. REDE OBLATA REDE OBLATA Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor ELAS TÊM DIREITOS Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127 Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127 Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127

Jornal Grito Mulher - Maio 2015

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sta edição do Grito Mulher pretende

Esuscitar o debate sobre a situação das mulheres que exercem a

prostituição, o estigma e as violações de direitos humanos que lhes afetam particularmente (como violência, falta de condições mínimas de higiene, insalubridade dos locais de prostituição, exploração econômica e a falta de proteção frente a determinados clientes e donos desses locais).

Para além da velha e ultrapassada discus-são entre abolicionistas e regulamentaristas, pretendemos promover a reflexão a partir de novas perspectivas, surgidas dos relatos e demandas apresentadas pelas próprias mulhe-

res que estão nesse meio. Buscamos também motivar a discussão sobre quais são as medidas mais eficazes para seu empoderamento e para sua proteção social e jurídica.

A experiências destes anos no acompa-nhamento de mulheres em situação de prostitui-ção nos ensinou que não serve qualquer medida abolicionista nem qualquer tipo de regulamenta-ção. O enfrentamento da vulnerabilidade e a discriminação que sofrem nos exige “sair da caixinha”, pensar diferente, determinar cami-nhos alternativos, em colaboração com outras entidades e movimentos sociais e com as própri-as associações de prostitutas que lutam para melhorar suas condições de vida.

REDE OBLATAREDE OBLATA Instituto das Irmãs Oblatasdo Santíssimo Redentor

ELAS TÊM

DIREITOSDIREITOS

Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127Jornal da Pastoral da Mulher de Belo Horizonte - MG - Junho de 2015 - Ano XXIII - Edição nº 127

A sociedade brasileira sempre teve uma ati-tude dupla e ambígua

com relação à prostituição: por uma parte aceita sua existência e até usufrui, por outra parte rejeita o seu reconhecimento. Por isso, apesar de ser um fenômeno amplamente consumido em nosso país, a legislação pratica-mente guarda silêncio, especial-mente no relativo à garantia de direitos das profissionais do sexo. E quando aborda o tema, o faz unicamente para criminalizar algu-mas condutas relacionadas à pros-tituição (artigos 227 a 230 do Códi-go Penal), relegando esta ativida-de a uma posição de marginalida-de.

Um pequena mudança no modo como as políticas públicas brasileiras têm abordado a prosti-tuição se deu com o reconheci-mento da ocupação “profissional do sexo” pelo Ministério do Traba-lho e Emprego em 2002, quando foi incluída na Classificação Brasi-le i ra de Ocupação (CBO). Segundo a CBO estes profissio-nais são pessoas que buscam programas sexuais, atendem e acompanham clientes, além de participar em ações educativas no campo da sexualidade.

Porém, surpreendentemente, esta profissão, reconhecida como lícita, não possui qualquer amparo institucional para seu adequado exercício. O jurista Renato de Almeida Oliveira Muçouçah, cuja tese de doutorado é “Trabalhado-res do sexo e seu exercício profis-sional: um enfoque pelo prisma da ciência jurídica trabalhista”, abor-da esta questão com muita preci-são:

“...por não haver balizamen-tos legais em relação à maneira de atuar de rufiões ou casas de prostituição, estes podem ser con-siderados os “gatos” do comércio sexual – pessoas que, sem idonei-dade financeira, exploram o traba-lho alheio e não o remuneram condignamente, deixando de ofe-recer condições mínimas de higi-dez física e psíquica aos trabalha-dores, ambiente do trabalho com o mínimo de salubridade, prote-ção contra riscos oriundos do tra-balho, etc. Estes aviltam, e de maneira gritante, a própria digni-dade da pessoa do trabalhador do sexo. Este é um motivo a mais para que as relações comerciais de sexo sejam consideradas como de emprego, tendo-se em vista a proteção da pessoa do trabalhador em seus mais ele-

1mentares direitos ” . Precisamente por essa clan-

destinidade, por essa falta de nor-matividade, as transgressões, e as vulnerações de direitos podem acontecer com maior facilidade. Ao deixar de prever garantias e direitos básicos às pessoas que escolhem esta atividade como forma de ganhar a vida, se lhe impede o reconhecimento da sua identidade de trabalhadoras e que possam receber a proteção do Estado. Este fator, que nega sua plena cidadania, vem a refor-çar ainda mais a estigmatização daquelas que estão na prostitui-ção.

Nas palavras de Gabriela 2Leite : O que acaba com uma prosti-

tuta, o que tira sua dignidade e sua saúde, não é transar, não é fazer sexo profissionalmente. O que acaba com ela é a falta de condi-ções de trabalho: não tem água para se lavar, o quarto não tem condições de higiene, tem perce-vejo andando pelas paredes; se ela não trabalha um dia ou mais, vem a cafetina dizer que ela tem que trabalhar para pagar pelo dia de trabalho e pelas faltas, e a pros-tituta fica devendo um monte de dinheiro. Vira escrava da cafetina. Não há regra para nada, nenhuma legislação que a ampare.

Evidentemente a exploração econômica incide no mercado do sexo, igual que em muitos outros trabalhos ofertados no mercado, onde existe uma grande dispari-dade entre o salário pago e o valor do trabalho produzido. Permitir que, em ausência de normativa, as partes regulem livremente as

02

(Gabriela Leite)

Direitos trabalhistaspara as mulheres que exercem a prostituição?

condições em que deve ser exerci-do o trabalho sexual (como acon-tece hoje) é abrir a porta aos abu-sos e à violação de direitos, máxi-me quando existe um enorme desequilíbrio de poder econômico entre quem contrata e quem é contratada. Neste caso é preciso invocar o papel do Estado na garantia de direitos.

É verdade também a prostitui-ção como instituição não pode compreender-se fora da estrutura patriarcal, sistema social, político e econômico, no qual os homens controlam, individual e coletiva-mente, o trabalho, o corpo e a sexu-alidade das mulheres. A prostitui-ção não é um problema exclusiva-mente individual de quem exerce e quem paga, é uma questão tam-bém social, porque estamos falan-do de desigualdade econômica e de gênero e de ideologia patriar-cal. Por isso, a instituição prostitu-cional, base sustentadora dessa

ordem (ou desordem?) deve ser combatida no plano cultural e polí-tico. É preciso politizar a sexuali-dade e questionar a construção ideológica das necessidades sexu-ais masculinas. Esta batalha, longa e difícil, não nos deve fazer esquecer o que as trabalhadoras sexuais nos estão dizendo. Por isso, é importante diferenciar entre tática e estratégia: melhorar aqui e agora suas condições de vida e trabalho no curto prazo, sem per-der o horizonte de trabalhar por mudanças culturais e sociais no longo prazo.

As mulheres que livremente exercem a prostituição merecem desde já o respeito e o amparo dos seus direitos como cidadãs e tra-balhadoras. Trabalhar hoje por empoderá-las e garantir seus dire-itos civis e trabalhistas não se opõe a promover, desde uma pers-pectiva feminista , uma sociedade com plena igualdade nas relações

entre gêneros.Da mesma maneira que lutar

para que as empregadas domésti-cas (uma profissão, herança escravista, que só se mantém atra-vés da exploração de uma classe social por outra) tenham mais direitos trabalhistas reconhecidos não significa concordar com esta instituição e com a divisão sexual do trabalho que ela manifesta.

Não oferecer direitos laborais às profissionais do sexo vulnera os fundamentos da dignidade huma-na e o principio da não-discrimi-nação. A regulamentação em si mesma, formalmente, não é deci-siva. Uma determinada regula-mentação da prostituição pode agravar a exploração e reforçar o patriarcado ou pode fornecer às mulheres proteção de seus direi-tos, tudo depende do conteúdo dessa normativa e a quais inte-resses serve.

1 - MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira, O trabalho dos profissionais do sexo e sua tutela pelo Direito. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a7b4862f2e69483. Acesso em 10 de março de 2015.2 - LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 1703 - Teóricas feministas, como Heleieth Saffioti mostraram como o emprego doméstico associa modos capitalistas de exploração do trabalho com antigas estruturas de dominação no âmbito familiar. Baseada na organização patriarcal da família, a instituição do serviço doméstico é um sintoma da desigualdade de gênero e desigualdade social existente. O desejo de poder superar, no futuro, esta “instituição” não impede que seja importante lutar aqui e agora por melhores condições de trabalho das empregadas domésticas.4 - Coordenador da Pastoral da Mulher de Belo Horiznote

O que acabacom uma prostituta,o que tira sua dignidade e sua saúde, não é transar, não é fazer sexo profissionalmente.O que acaba com ela é a falta de condições de trabalho...

As mulheres que livremente exer-cem a prostituição merecem desde já o respeito e o amparo dos seus direitos como cidadãs e trabalhadoras.

4Por José Manuel Lázaro Uriol

JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

A sociedade brasileira sempre teve uma ati-tude dupla e ambígua

com relação à prostituição: por uma parte aceita sua existência e até usufrui, por outra parte rejeita o seu reconhecimento. Por isso, apesar de ser um fenômeno amplamente consumido em nosso país, a legislação pratica-mente guarda silêncio, especial-mente no relativo à garantia de direitos das profissionais do sexo. E quando aborda o tema, o faz unicamente para criminalizar algu-mas condutas relacionadas à pros-tituição (artigos 227 a 230 do Códi-go Penal), relegando esta ativida-de a uma posição de marginalida-de.

Um pequena mudança no modo como as políticas públicas brasileiras têm abordado a prosti-tuição se deu com o reconheci-mento da ocupação “profissional do sexo” pelo Ministério do Traba-lho e Emprego em 2002, quando foi incluída na Classificação Brasi-le i ra de Ocupação (CBO). Segundo a CBO estes profissio-nais são pessoas que buscam programas sexuais, atendem e acompanham clientes, além de participar em ações educativas no campo da sexualidade.

Porém, surpreendentemente, esta profissão, reconhecida como lícita, não possui qualquer amparo institucional para seu adequado exercício. O jurista Renato de Almeida Oliveira Muçouçah, cuja tese de doutorado é “Trabalhado-res do sexo e seu exercício profis-sional: um enfoque pelo prisma da ciência jurídica trabalhista”, abor-da esta questão com muita preci-são:

“...por não haver balizamen-tos legais em relação à maneira de atuar de rufiões ou casas de prostituição, estes podem ser con-siderados os “gatos” do comércio sexual – pessoas que, sem idonei-dade financeira, exploram o traba-lho alheio e não o remuneram condignamente, deixando de ofe-recer condições mínimas de higi-dez física e psíquica aos trabalha-dores, ambiente do trabalho com o mínimo de salubridade, prote-ção contra riscos oriundos do tra-balho, etc. Estes aviltam, e de maneira gritante, a própria digni-dade da pessoa do trabalhador do sexo. Este é um motivo a mais para que as relações comerciais de sexo sejam consideradas como de emprego, tendo-se em vista a proteção da pessoa do trabalhador em seus mais ele-

1mentares direitos ” . Precisamente por essa clan-

destinidade, por essa falta de nor-matividade, as transgressões, e as vulnerações de direitos podem acontecer com maior facilidade. Ao deixar de prever garantias e direitos básicos às pessoas que escolhem esta atividade como forma de ganhar a vida, se lhe impede o reconhecimento da sua identidade de trabalhadoras e que possam receber a proteção do Estado. Este fator, que nega sua plena cidadania, vem a refor-çar ainda mais a estigmatização daquelas que estão na prostitui-ção.

Nas palavras de Gabriela 2Leite : O que acaba com uma prosti-

tuta, o que tira sua dignidade e sua saúde, não é transar, não é fazer sexo profissionalmente. O que acaba com ela é a falta de condi-ções de trabalho: não tem água para se lavar, o quarto não tem condições de higiene, tem perce-vejo andando pelas paredes; se ela não trabalha um dia ou mais, vem a cafetina dizer que ela tem que trabalhar para pagar pelo dia de trabalho e pelas faltas, e a pros-tituta fica devendo um monte de dinheiro. Vira escrava da cafetina. Não há regra para nada, nenhuma legislação que a ampare.

Evidentemente a exploração econômica incide no mercado do sexo, igual que em muitos outros trabalhos ofertados no mercado, onde existe uma grande dispari-dade entre o salário pago e o valor do trabalho produzido. Permitir que, em ausência de normativa, as partes regulem livremente as

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(Gabriela Leite)

Direitos trabalhistaspara as mulheres que exercem a prostituição?

condições em que deve ser exerci-do o trabalho sexual (como acon-tece hoje) é abrir a porta aos abu-sos e à violação de direitos, máxi-me quando existe um enorme desequilíbrio de poder econômico entre quem contrata e quem é contratada. Neste caso é preciso invocar o papel do Estado na garantia de direitos.

É verdade também a prostitui-ção como instituição não pode compreender-se fora da estrutura patriarcal, sistema social, político e econômico, no qual os homens controlam, individual e coletiva-mente, o trabalho, o corpo e a sexu-alidade das mulheres. A prostitui-ção não é um problema exclusiva-mente individual de quem exerce e quem paga, é uma questão tam-bém social, porque estamos falan-do de desigualdade econômica e de gênero e de ideologia patriar-cal. Por isso, a instituição prostitu-cional, base sustentadora dessa

ordem (ou desordem?) deve ser combatida no plano cultural e polí-tico. É preciso politizar a sexuali-dade e questionar a construção ideológica das necessidades sexu-ais masculinas. Esta batalha, longa e difícil, não nos deve fazer esquecer o que as trabalhadoras sexuais nos estão dizendo. Por isso, é importante diferenciar entre tática e estratégia: melhorar aqui e agora suas condições de vida e trabalho no curto prazo, sem per-der o horizonte de trabalhar por mudanças culturais e sociais no longo prazo.

As mulheres que livremente exercem a prostituição merecem desde já o respeito e o amparo dos seus direitos como cidadãs e tra-balhadoras. Trabalhar hoje por empoderá-las e garantir seus dire-itos civis e trabalhistas não se opõe a promover, desde uma pers-pectiva feminista , uma sociedade com plena igualdade nas relações

entre gêneros.Da mesma maneira que lutar

para que as empregadas domésti-cas (uma profissão, herança escravista, que só se mantém atra-vés da exploração de uma classe social por outra) tenham mais direitos trabalhistas reconhecidos não significa concordar com esta instituição e com a divisão sexual do trabalho que ela manifesta.

Não oferecer direitos laborais às profissionais do sexo vulnera os fundamentos da dignidade huma-na e o principio da não-discrimi-nação. A regulamentação em si mesma, formalmente, não é deci-siva. Uma determinada regula-mentação da prostituição pode agravar a exploração e reforçar o patriarcado ou pode fornecer às mulheres proteção de seus direi-tos, tudo depende do conteúdo dessa normativa e a quais inte-resses serve.

1 - MUÇOUÇAH, Renato de Almeida Oliveira, O trabalho dos profissionais do sexo e sua tutela pelo Direito. Disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=7a7b4862f2e69483. Acesso em 10 de março de 2015.2 - LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 1703 - Teóricas feministas, como Heleieth Saffioti mostraram como o emprego doméstico associa modos capitalistas de exploração do trabalho com antigas estruturas de dominação no âmbito familiar. Baseada na organização patriarcal da família, a instituição do serviço doméstico é um sintoma da desigualdade de gênero e desigualdade social existente. O desejo de poder superar, no futuro, esta “instituição” não impede que seja importante lutar aqui e agora por melhores condições de trabalho das empregadas domésticas.4 - Coordenador da Pastoral da Mulher de Belo Horiznote

O que acabacom uma prostituta,o que tira sua dignidade e sua saúde, não é transar, não é fazer sexo profissionalmente.O que acaba com ela é a falta de condições de trabalho...

As mulheres que livremente exer-cem a prostituição merecem desde já o respeito e o amparo dos seus direitos como cidadãs e trabalhadoras.

4Por José Manuel Lázaro Uriol

JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

entendêssemos que esta profis-são é comum e todas fossem para a rua lutar por direitos, hoje não haveria assassinatos, violências gravíssimas, violações de direitos. A sociedade iria nos respeitar.

JO- Eu, como prostituta, me senti discriminada quando tive um problema em um hotel onde esta-va hospedada. Quando eu chamei a polícia e falei que era prostituta me senti discriminada. E também quando o policial ameaçou cha-mar o conselho tutelar para tirar minha filha, armei a maior confu-são. Mas tudo isto porque sou prostituta; senti o peso bem na fala do policial.

Eu passei uma semana em Brasília e fiquei chocada com o tratamento da Ministra, do Con-gresso, dos deputados, com tudo. Quando por exemplo, se fala que o marido matou a mulher todo mundo fa la “coi tadinha da mulher”, mas se você fala que um homem agrediu uma prostituta “ela que se dane, é prostituta ela está lá porque ela quer”. Ninguém se espanta com uma agressão a uma prostituta. Mas se torna uma agressão a mulher.

PM - Existe possibilidades de um dia as mulheres saírem para as ruas para reclamar seus direi-tos?

CV- Devido ao preconceito as mulheres têm medo de serem reconhecidas e isto dificulta que se associem para reivindicar direi-tos. Se as pessoas se conscienti-zassem que esta atividade é um trabalho e elas mesmas se movi-mentassem, conscientizassem que nós somos um movimento social reconhecido a violência diminuiria.

JO- Poucas mulheres têm cora-gem de lutar por seus direitos como prostituta. Eu desde que comecei a trabalhar como prosti-tuta sempre fui assumida. Só que muitas mulheres têm vergonha e medo de assumir o que são. Como se alguém tivesse alguma coisa a ver com a vida delas. Então, eu acho assim, desde que algumas mulheres começam a se

encorajar, empoderar e tomar conta de si e entender que aquilo é um direito delas, que não estão fazendo nada de errado, acho que mais associações serão criadas. Porque as mulheres vão estar mais empoderadas para lutar por seus direitos e vão fortalecer outros vínculos. Aqui em BH tem muitas prostitutas e é uma capital que precisa de uma associação empoderada, não pode ser uma associação só de nome. Por exemplo, com relação às diárias altas a melhor solução seria cobrar entrada nos hotéis, mas para diminuir as diárias. Não adi-anta cobrar entrada e não diminuir as diárias. Hoje o hotel mais bara-to aqui é R$150,00. Então é caro.

Sobre a regulamentação

JO- O Projeto de Lei está para-do em Brasília há dois anos, espe-rando uma posição e nada é feito. Do meu ponto de vista, como pros-tituta não sou a favor do PL. Acho que o PL tinha que ser revista, até porque quando foi constituída não foi só por prostitutas. Tinha mais acadêmicos. A gente quer fazer alterações, mesmo tendo em vista que isso não vai mudar, porque as chances do PL ser aprovado são mínimas. Hoje a Rede Brasileira de Prostitutas está articulando uma carta para chegar até o Con-gresso. Vamos ter um encontro nacional em novembro em que vamos refazer o Projeto de Lei,

escolhendo um parlamentar para apresentar em Brasília. O atual projeto propõe que os donos de espaços de exercício da prostitui-ção possam f icar com até 50% do que a mulher fatura. Vamos entrar num acordo de 35%. A Rede, principalmente a articulação Norte - Nordeste está bem organizada e acreditamos que será possível fazer este acor-do.

O PL não fala em assinar car-teira, mas pode ter a possibilida-de. Eu senti em Brasília, na pró-pria Secretaria dos Direitos Huma-nos, no Congresso a discrimina-ção com esta pauta de prostitutas. Então, quando a gente conseguir articular uma pauta certa e con-creta, vou pedir uma audiência com a Ministra para que a prosti-tuição entre na pauta da Secreta-ria dos Direitos Humanos e eles têm que destinar verbas para tra-balhar com prostituição. Porque a SDH fala que trabalhar com prosti-tuta é trabalhar saúde, HIV, mas quando é para trabalhar direitos eles não querem. Se a gente pede uma verba para fazer mapeamen-to de violação de direitos humanos eles não querem. É uma forma de preconceito. Eles têm que saber que nós temos direitos e deveres, que a gente tem que entrar na pauta deles como mulher com nossos direitos. Tem que ter outras políticas públicas e argu-mentos para trabalhar com isto.

O Projeto Diálogos pela Liberdade dá voz às mulheres que exercem

a prostituição e abre espaço para ouvirmos delas quais são seus maiores desafios e de que forma eles podem ser enfrentados. Cons-tatamos que a discriminação e o preconceito são os maiores empe-cilhos ao diálogo, ao respeito e a liberdade destas mulheres. A prostituição ainda é vista como "vadiagem" o que associa o exer-cício de uma atividade à uma imagem que desqualifica as mulheres e abre portas para bana-lizar a violência, lhes negar direi-tos humanos e restringir a cidada-nia.

Com o objetivo de ampliar o debate e refletir sobre o estigma e idéias preconcebidas que pesam sobre a prostituição conversamos com duas mulheres, que há anos lutam para promover os direitos destas pessoas.

Joice Oliveira começou sua luta por direitos no Rio de Janeiro quando “achando que lá meus direitos estavam sendo violados resolvi denunciar. Foi aí que conheci a ONG DAVIDA. Eu, desde que comecei a trabalhar como prostituta, sempre fui assu-mida”.

Cida Vieira, presidente da Aprosmig (Associação das Prosti-tutas de Minas Gerais), acredita que “ o fato das mulheres escon-derem a própria identidade gera mais violência. Porque quando você grita e vai para a rua, seus direitos são revistos. Muitas vezes as mulheres prostitutas abaixam a cabeça. A Associação veio para isto: pra dizer, olha, eu tenho pro-fissão, nós somos autônomas, nós somos reconhecidas.”

PM- Quais são os principais problemas enfrentados pelas mulheres que exercem a prostitui-ção nos hotéis da Guaicurus?

CV- Duas questões são fun-damentais: direitos humanos, cidadania e a violência contra a prostituta no local de trabalho. Por ser mulher deveria ter seus direitos humanos e de cidadã res-peitados e paralelamente o reco-nhecimento de leis específicas para mulheres que exercem a prostituição. Mas, por preconcei-to e estigma ela não está na condi-ção de mulher. Para a sociedade ela vive a margem. Não por ser mulher, mas por exercer uma pro-fissão que inclusive, já é reconhe-cida pela CBO (Classificação Bra-sileira de Ocupações)

O que adianta você ter uma profissão que não tem espaço e fica clandestina? Então, a dis-cussão é esta: regulamenta, pois já é ocupação e aí poderemos abranger as políticas públicas. Olha, rua tem que ter banheiro e mais policiamento. Boate, mulhe-res trabalhando? É proibido e é crime beber em lugar de trabalho. Então as mulheres não têm que beber enquanto trabalham. Nos

hotéis, adaptar as formas. Vem a vigilância sanitária e outros órgãos responsáveis pela higiene e segurança. Muitas mulheres não seriam espancadas, violenta-das como estão sendo agora. Mas infelizmente a sociedade é machista.

JO- Os principais problemas são: valor das diárias; muito caras. A higiene é precária. Trabalhamos com nosso corpo. Pelo valor que a gente paga queremos um hotel limpo e tem hotel que é muito sujo. Outra questão é a segurança. Nos problemas com homens nos quar-tos os seguranças tem que ser melhor orientados em como con-duzir a situação; tinham que ser mais qualificados para nos aten-der, nos proteger. Os gerentes tinham que ter um curso, saber como tratar a mulher, porque eles têm que entender que é da gente que eles ganham. Tem gerente de hotel que humilha muito a mulher. Já houve época que falavam para a gente chegar aqui 5:30 da manhã. A gente ficava sentada no corredor com homens andado e às vezes não nos davam chave. São questões muitos sérias que tem que ser pensadas, que são pouco vistas

Como se dá o preconceito?

CV- O medo é tanto! Medo da família e suas repressões. Tanto a igreja quanto quem contrata os serviços da prostituta acaba na rua discriminando as meninas. A pessoa tem aquele medo de se revelar, escondem a identidade profissional devido ao preconceito da sociedade. Ela é uma mulher, mas não pode aparecer como uma prostituta e aí se coloca à margem o que gera mais violên-cia. Ela vira uma pessoa submis-sa. Quando você grita seu direito ninguém te faz submissa. Se

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E N T R E V I S T A

VOZ NA PROSTITUIÇÃO

O que adianta você teruma profissão que não

tem espaço e fica clandestina?

” (Cida Vieira)

” (Joice Oliveira)

Quando se fala que o marido matou a mulher todo mundo fala “coitadinha”, mas se você fala que umhomem agrediu uma prostituta“ela que se dane...

JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

entendêssemos que esta profis-são é comum e todas fossem para a rua lutar por direitos, hoje não haveria assassinatos, violências gravíssimas, violações de direitos. A sociedade iria nos respeitar.

JO- Eu, como prostituta, me senti discriminada quando tive um problema em um hotel onde esta-va hospedada. Quando eu chamei a polícia e falei que era prostituta me senti discriminada. E também quando o policial ameaçou cha-mar o conselho tutelar para tirar minha filha, armei a maior confu-são. Mas tudo isto porque sou prostituta; senti o peso bem na fala do policial.

Eu passei uma semana em Brasília e fiquei chocada com o tratamento da Ministra, do Con-gresso, dos deputados, com tudo. Quando por exemplo, se fala que o marido matou a mulher todo mundo fa la “coi tadinha da mulher”, mas se você fala que um homem agrediu uma prostituta “ela que se dane, é prostituta ela está lá porque ela quer”. Ninguém se espanta com uma agressão a uma prostituta. Mas se torna uma agressão a mulher.

PM - Existe possibilidades de um dia as mulheres saírem para as ruas para reclamar seus direi-tos?

CV- Devido ao preconceito as mulheres têm medo de serem reconhecidas e isto dificulta que se associem para reivindicar direi-tos. Se as pessoas se conscienti-zassem que esta atividade é um trabalho e elas mesmas se movi-mentassem, conscientizassem que nós somos um movimento social reconhecido a violência diminuiria.

JO- Poucas mulheres têm cora-gem de lutar por seus direitos como prostituta. Eu desde que comecei a trabalhar como prosti-tuta sempre fui assumida. Só que muitas mulheres têm vergonha e medo de assumir o que são. Como se alguém tivesse alguma coisa a ver com a vida delas. Então, eu acho assim, desde que algumas mulheres começam a se

encorajar, empoderar e tomar conta de si e entender que aquilo é um direito delas, que não estão fazendo nada de errado, acho que mais associações serão criadas. Porque as mulheres vão estar mais empoderadas para lutar por seus direitos e vão fortalecer outros vínculos. Aqui em BH tem muitas prostitutas e é uma capital que precisa de uma associação empoderada, não pode ser uma associação só de nome. Por exemplo, com relação às diárias altas a melhor solução seria cobrar entrada nos hotéis, mas para diminuir as diárias. Não adi-anta cobrar entrada e não diminuir as diárias. Hoje o hotel mais bara-to aqui é R$150,00. Então é caro.

Sobre a regulamentação

JO- O Projeto de Lei está para-do em Brasília há dois anos, espe-rando uma posição e nada é feito. Do meu ponto de vista, como pros-tituta não sou a favor do PL. Acho que o PL tinha que ser revista, até porque quando foi constituída não foi só por prostitutas. Tinha mais acadêmicos. A gente quer fazer alterações, mesmo tendo em vista que isso não vai mudar, porque as chances do PL ser aprovado são mínimas. Hoje a Rede Brasileira de Prostitutas está articulando uma carta para chegar até o Con-gresso. Vamos ter um encontro nacional em novembro em que vamos refazer o Projeto de Lei,

escolhendo um parlamentar para apresentar em Brasília. O atual projeto propõe que os donos de espaços de exercício da prostitui-ção possam f icar com até 50% do que a mulher fatura. Vamos entrar num acordo de 35%. A Rede, principalmente a articulação Norte - Nordeste está bem organizada e acreditamos que será possível fazer este acor-do.

O PL não fala em assinar car-teira, mas pode ter a possibilida-de. Eu senti em Brasília, na pró-pria Secretaria dos Direitos Huma-nos, no Congresso a discrimina-ção com esta pauta de prostitutas. Então, quando a gente conseguir articular uma pauta certa e con-creta, vou pedir uma audiência com a Ministra para que a prosti-tuição entre na pauta da Secreta-ria dos Direitos Humanos e eles têm que destinar verbas para tra-balhar com prostituição. Porque a SDH fala que trabalhar com prosti-tuta é trabalhar saúde, HIV, mas quando é para trabalhar direitos eles não querem. Se a gente pede uma verba para fazer mapeamen-to de violação de direitos humanos eles não querem. É uma forma de preconceito. Eles têm que saber que nós temos direitos e deveres, que a gente tem que entrar na pauta deles como mulher com nossos direitos. Tem que ter outras políticas públicas e argu-mentos para trabalhar com isto.

O Projeto Diálogos pela Liberdade dá voz às mulheres que exercem

a prostituição e abre espaço para ouvirmos delas quais são seus maiores desafios e de que forma eles podem ser enfrentados. Cons-tatamos que a discriminação e o preconceito são os maiores empe-cilhos ao diálogo, ao respeito e a liberdade destas mulheres. A prostituição ainda é vista como "vadiagem" o que associa o exer-cício de uma atividade à uma imagem que desqualifica as mulheres e abre portas para bana-lizar a violência, lhes negar direi-tos humanos e restringir a cidada-nia.

Com o objetivo de ampliar o debate e refletir sobre o estigma e idéias preconcebidas que pesam sobre a prostituição conversamos com duas mulheres, que há anos lutam para promover os direitos destas pessoas.

Joice Oliveira começou sua luta por direitos no Rio de Janeiro quando “achando que lá meus direitos estavam sendo violados resolvi denunciar. Foi aí que conheci a ONG DAVIDA. Eu, desde que comecei a trabalhar como prostituta, sempre fui assu-mida”.

Cida Vieira, presidente da Aprosmig (Associação das Prosti-tutas de Minas Gerais), acredita que “ o fato das mulheres escon-derem a própria identidade gera mais violência. Porque quando você grita e vai para a rua, seus direitos são revistos. Muitas vezes as mulheres prostitutas abaixam a cabeça. A Associação veio para isto: pra dizer, olha, eu tenho pro-fissão, nós somos autônomas, nós somos reconhecidas.”

PM- Quais são os principais problemas enfrentados pelas mulheres que exercem a prostitui-ção nos hotéis da Guaicurus?

CV- Duas questões são fun-damentais: direitos humanos, cidadania e a violência contra a prostituta no local de trabalho. Por ser mulher deveria ter seus direitos humanos e de cidadã res-peitados e paralelamente o reco-nhecimento de leis específicas para mulheres que exercem a prostituição. Mas, por preconcei-to e estigma ela não está na condi-ção de mulher. Para a sociedade ela vive a margem. Não por ser mulher, mas por exercer uma pro-fissão que inclusive, já é reconhe-cida pela CBO (Classificação Bra-sileira de Ocupações)

O que adianta você ter uma profissão que não tem espaço e fica clandestina? Então, a dis-cussão é esta: regulamenta, pois já é ocupação e aí poderemos abranger as políticas públicas. Olha, rua tem que ter banheiro e mais policiamento. Boate, mulhe-res trabalhando? É proibido e é crime beber em lugar de trabalho. Então as mulheres não têm que beber enquanto trabalham. Nos

hotéis, adaptar as formas. Vem a vigilância sanitária e outros órgãos responsáveis pela higiene e segurança. Muitas mulheres não seriam espancadas, violenta-das como estão sendo agora. Mas infelizmente a sociedade é machista.

JO- Os principais problemas são: valor das diárias; muito caras. A higiene é precária. Trabalhamos com nosso corpo. Pelo valor que a gente paga queremos um hotel limpo e tem hotel que é muito sujo. Outra questão é a segurança. Nos problemas com homens nos quar-tos os seguranças tem que ser melhor orientados em como con-duzir a situação; tinham que ser mais qualificados para nos aten-der, nos proteger. Os gerentes tinham que ter um curso, saber como tratar a mulher, porque eles têm que entender que é da gente que eles ganham. Tem gerente de hotel que humilha muito a mulher. Já houve época que falavam para a gente chegar aqui 5:30 da manhã. A gente ficava sentada no corredor com homens andado e às vezes não nos davam chave. São questões muitos sérias que tem que ser pensadas, que são pouco vistas

Como se dá o preconceito?

CV- O medo é tanto! Medo da família e suas repressões. Tanto a igreja quanto quem contrata os serviços da prostituta acaba na rua discriminando as meninas. A pessoa tem aquele medo de se revelar, escondem a identidade profissional devido ao preconceito da sociedade. Ela é uma mulher, mas não pode aparecer como uma prostituta e aí se coloca à margem o que gera mais violên-cia. Ela vira uma pessoa submis-sa. Quando você grita seu direito ninguém te faz submissa. Se

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E N T R E V I S T A

VOZ NA PROSTITUIÇÃO

O que adianta você teruma profissão que não

tem espaço e fica clandestina?

” (Cida Vieira)

” (Joice Oliveira)

Quando se fala que o marido matou a mulher todo mundo fala “coitadinha”, mas se você fala que umhomem agrediu uma prostituta“ela que se dane...

JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

trabalho diário com

Oas mulheres que exer-cem a prostituição

tem nos provocado a fazer refle-xões constantes. A zona boêmia de Belo Horizonte, historicamente localizada no centro da cidade, sempre foi território masculino onde as “moças de família” não deveriam sequer passar. Lem-brando que, o termo “moça de família”, já traz implícito o contra-ponto preconceituoso que está latente na palavra mulher. Pois, há territórios e comportamentos que, por si só, colocam sob suspeita o status sexual da mulher. Dito de outra forma, todas as mulheres são controladas por um sistema informal e malicioso, no qual “pu-ta” é uma ofensa a qualquer mulher que transgride o que se considera “boa reputação femini-na”.

Para a mulher, o uso correto da sexualidade se restringe ao casamento, reservando-lhe o lugar de “rainha do lar” – aquela que está a serviço de todos - desempenhando tarefas que tem reconhecimento social, mas não econômico. Estando restrita ao âmbito doméstico, tem poucas oportunidades de desenvolver suas potencialidades e dificulda-des de acessar recursos econô-micos que tornem viáveis sua independência e autonomia. Este fato naturaliza e perpetua a discri-minação, facilitando o controle ideológico sobre a mulher. O con-trole da sexualidade feminina,

constituído em bases patriarcais, responde a uma ordem econômi-ca que visa a garantir a certeza da paternidade e a transmissão da herança a herdeiros legítimos.

A legitimação deste controle é possível a partir da incorporação dos valores machistas pela pró-pria mulher. Simone de Beauvoir nos lembra que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, referin-do-se as relações desiguais de poder que coloca o feminino subordinado ao masculino. Assim sendo, “mulher de má fama”, opos-to de “rainha do lar” é um arranjo ideológico com motivação peda-gógica, e está ali para nos ensinar o que acontece se nos afastamos do que é “conveniente”. Enten-dendo como conveniente o matri-mônio, que é o que dá legitimida-de social e autovalorização à mulher. O medo de sermos identi-ficadas como “desviadas, deson-radas” nos faz assumir o discurso sexista que cria padrões hegemô-nicos e heterogênicos de condu-tas sexuais, impondo direitos desi-guais para homens e mulheres. Logo, protótipos de comporta-mentos considerados desviantes para as mulheres e, portanto, pas-síveis de punição, são distintivos e valorativos do que é ser macho.

“Eu falo que a prostituta tem que existir, a sociedade seria pior sem ela. Quando um homem ou uma mulher casada me questiona sobre prostituição eu falo, ô minha

filha, homem não vive sem sexo. Porque se o homem não pegar a prostituta, não tiver ela, ele vai pegar a mulher casada, ele vai pegar a menina adolescente. Seria mais estupro; assim eu pen-so. O homem tem instinto animal, esse é o instinto dele.” (M.A.)

Diante dessa conjuntura, mesmo com toda a opressão e controle, o que faz com que algu-mas mulheres optem pela prosti-tuição?

Embora seja comum que as mulheres que exercem a prostitui-ção tenham uma história marcada por vulnerações sócio-afetivas e desrespeito a direitos elementa-res e básicos, tais como acesso à moradia, saúde, educação, isto não será determinante para a entrada na atividade. Vários fato-res devem ser considerados. Além das histórias individuais, as conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais interferem na construção da subjetividade de cada pessoa influenciando em suas escolhas.

Escutando as mulheres, observamos que elas tiveram oportunidades de trabalho, mas diante dos baixos salários que receberiam, optam pela prostitui-ção como possibilidade de traba-lho por ser mais rentável, oferecer maior flexibilidade de horários, dar maior liberdade e autonomia.

“Na minha vida, a prostituição não foi problema; foi solução" (M.P.)

“Com o dinheiro que ganhei ajudei minha mãe a cuidar de meus irmãos.” (M.P.)

“Eu não conseguia emprego, mas conseguia cantada.” (L. W.)

“Com quinze anos conheci a prostituição. Foi uma porta que se abriu.” (C. L.)

“Sabe o vício da garota de programa? Ter dinheiro para fazer o que quer.” (L.W.)

“Eu não vivo com salário míni-mo.” (D. S.)

De fato, o acesso desigual aos recursos econômicos entre homens e mulheres faz com que, historicamente, a prostituição seja uma estratégia laboral para as mulheres ditas “desviadas”, ape-sar do alto custo social e psicológi-co que a prostituição impõe.

“A mulher se veste muito bem, então ela cobre aquele estigma que ela carrega. Ela entra no shopping parecendo uma madame e ela senta em uma mesa tomando um café, fumando um cigarro, tomando uma cerveja ou uísque, com outra madame do lado, que pensa que ela é dama. E pergunta pra ela: o que você faz?

Ah! eu tenho um salão de beleza no Rio, tenho uma lanchonete, mas sempre como dona. Ela pode mascarar. Ha... faz de conta que está tudo bem, está com sapato caro,está bem vestida, está acom-panhando executivo que é o políti-co do Brasil, ninguém fala nada”. (V.M.)

“Você aguentar um homem dentro de quatro paredes e conse-guir sair bem não é pra qualquer um não. Ali, está garantido seu aluguel, sua comida, então tem que ter jogo de cintura, não é pra qualquer um não”. (M.A.)

Desde a ótica da mulher, a prostituição é menos escravizante que outras atividades que ofere-cem baixa remuneração e são estigmatizadas por serem consi-deradas de baixa qualificação profissional. É comum que ela utilize a renda obtida nesta ativi-dade para a melhoria da qualida-de de vida própria e de seus famili-ares, construindo casa, auxiliando com recursos financeiros em caso de doenças, pagando estudos para irmãos, sobrinhos e filhos. E, ainda assim, será rotulada de “va-dia” e “vagabunda”.

“Rotulam nós como sujas, acham que nós somos um bando de aidéticas, com gonorréia. Acham que a gente é lixo do lixo, que serve só para os homens des-carregar”. (A. K)

Por que as mulheres que exercem a prostituição estão em situação desfavorável frente a outras/os trabalhadoras/os? Qual é a real situação de vulnerabilida-de?

O estigma. Entendido como tratar o “diferente como inferior".

O olhar preconceituoso da sociedade não vê a prostituição como uma atividade, mas como uma identidade que desqualifica a mulher. Prostituta equivale à má mãe, “mulher de vida fácil”, dege-nerada, manipulada entre outros. Como ressalta Minayo, “a trans-gressão como busca de identida-de para ser reconhecido como sujeito esbarra na violência estru-tural: existência e reprodução das desigualdades, exclusão social e moral e dominação de classe e gênero”.

“O preconceito é assim: a mulher de programa, para a socie-

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ESTIGMA NA PROSTITUIÇÃOE LUTA POR DIREITOS Por Isabel Brandão e Lucinete Santos

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Oas mulheres que exer-cem a prostituição

tem nos provocado a fazer refle-xões constantes. A zona boêmia de Belo Horizonte, historicamente localizada no centro da cidade, sempre foi território masculino onde as “moças de família” não deveriam sequer passar. Lem-brando que, o termo “moça de família”, já traz implícito o contra-ponto preconceituoso que está latente na palavra mulher. Pois, há territórios e comportamentos que, por si só, colocam sob suspeita o status sexual da mulher. Dito de outra forma, todas as mulheres são controladas por um sistema informal e malicioso, no qual “pu-ta” é uma ofensa a qualquer mulher que transgride o que se considera “boa reputação femini-na”.

Para a mulher, o uso correto da sexualidade se restringe ao casamento, reservando-lhe o lugar de “rainha do lar” – aquela que está a serviço de todos - desempenhando tarefas que tem reconhecimento social, mas não econômico. Estando restrita ao âmbito doméstico, tem poucas oportunidades de desenvolver suas potencialidades e dificulda-des de acessar recursos econô-micos que tornem viáveis sua independência e autonomia. Este fato naturaliza e perpetua a discri-minação, facilitando o controle ideológico sobre a mulher. O con-trole da sexualidade feminina,

constituído em bases patriarcais, responde a uma ordem econômi-ca que visa a garantir a certeza da paternidade e a transmissão da herança a herdeiros legítimos.

A legitimação deste controle é possível a partir da incorporação dos valores machistas pela pró-pria mulher. Simone de Beauvoir nos lembra que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, referin-do-se as relações desiguais de poder que coloca o feminino subordinado ao masculino. Assim sendo, “mulher de má fama”, opos-to de “rainha do lar” é um arranjo ideológico com motivação peda-gógica, e está ali para nos ensinar o que acontece se nos afastamos do que é “conveniente”. Enten-dendo como conveniente o matri-mônio, que é o que dá legitimida-de social e autovalorização à mulher. O medo de sermos identi-ficadas como “desviadas, deson-radas” nos faz assumir o discurso sexista que cria padrões hegemô-nicos e heterogênicos de condu-tas sexuais, impondo direitos desi-guais para homens e mulheres. Logo, protótipos de comporta-mentos considerados desviantes para as mulheres e, portanto, pas-síveis de punição, são distintivos e valorativos do que é ser macho.

“Eu falo que a prostituta tem que existir, a sociedade seria pior sem ela. Quando um homem ou uma mulher casada me questiona sobre prostituição eu falo, ô minha

filha, homem não vive sem sexo. Porque se o homem não pegar a prostituta, não tiver ela, ele vai pegar a mulher casada, ele vai pegar a menina adolescente. Seria mais estupro; assim eu pen-so. O homem tem instinto animal, esse é o instinto dele.” (M.A.)

Diante dessa conjuntura, mesmo com toda a opressão e controle, o que faz com que algu-mas mulheres optem pela prosti-tuição?

Embora seja comum que as mulheres que exercem a prostitui-ção tenham uma história marcada por vulnerações sócio-afetivas e desrespeito a direitos elementa-res e básicos, tais como acesso à moradia, saúde, educação, isto não será determinante para a entrada na atividade. Vários fato-res devem ser considerados. Além das histórias individuais, as conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais interferem na construção da subjetividade de cada pessoa influenciando em suas escolhas.

Escutando as mulheres, observamos que elas tiveram oportunidades de trabalho, mas diante dos baixos salários que receberiam, optam pela prostitui-ção como possibilidade de traba-lho por ser mais rentável, oferecer maior flexibilidade de horários, dar maior liberdade e autonomia.

“Na minha vida, a prostituição não foi problema; foi solução" (M.P.)

“Com o dinheiro que ganhei ajudei minha mãe a cuidar de meus irmãos.” (M.P.)

“Eu não conseguia emprego, mas conseguia cantada.” (L. W.)

“Com quinze anos conheci a prostituição. Foi uma porta que se abriu.” (C. L.)

“Sabe o vício da garota de programa? Ter dinheiro para fazer o que quer.” (L.W.)

“Eu não vivo com salário míni-mo.” (D. S.)

De fato, o acesso desigual aos recursos econômicos entre homens e mulheres faz com que, historicamente, a prostituição seja uma estratégia laboral para as mulheres ditas “desviadas”, ape-sar do alto custo social e psicológi-co que a prostituição impõe.

“A mulher se veste muito bem, então ela cobre aquele estigma que ela carrega. Ela entra no shopping parecendo uma madame e ela senta em uma mesa tomando um café, fumando um cigarro, tomando uma cerveja ou uísque, com outra madame do lado, que pensa que ela é dama. E pergunta pra ela: o que você faz?

Ah! eu tenho um salão de beleza no Rio, tenho uma lanchonete, mas sempre como dona. Ela pode mascarar. Ha... faz de conta que está tudo bem, está com sapato caro,está bem vestida, está acom-panhando executivo que é o políti-co do Brasil, ninguém fala nada”. (V.M.)

“Você aguentar um homem dentro de quatro paredes e conse-guir sair bem não é pra qualquer um não. Ali, está garantido seu aluguel, sua comida, então tem que ter jogo de cintura, não é pra qualquer um não”. (M.A.)

Desde a ótica da mulher, a prostituição é menos escravizante que outras atividades que ofere-cem baixa remuneração e são estigmatizadas por serem consi-deradas de baixa qualificação profissional. É comum que ela utilize a renda obtida nesta ativi-dade para a melhoria da qualida-de de vida própria e de seus famili-ares, construindo casa, auxiliando com recursos financeiros em caso de doenças, pagando estudos para irmãos, sobrinhos e filhos. E, ainda assim, será rotulada de “va-dia” e “vagabunda”.

“Rotulam nós como sujas, acham que nós somos um bando de aidéticas, com gonorréia. Acham que a gente é lixo do lixo, que serve só para os homens des-carregar”. (A. K)

Por que as mulheres que exercem a prostituição estão em situação desfavorável frente a outras/os trabalhadoras/os? Qual é a real situação de vulnerabilida-de?

O estigma. Entendido como tratar o “diferente como inferior".

O olhar preconceituoso da sociedade não vê a prostituição como uma atividade, mas como uma identidade que desqualifica a mulher. Prostituta equivale à má mãe, “mulher de vida fácil”, dege-nerada, manipulada entre outros. Como ressalta Minayo, “a trans-gressão como busca de identida-de para ser reconhecido como sujeito esbarra na violência estru-tural: existência e reprodução das desigualdades, exclusão social e moral e dominação de classe e gênero”.

“O preconceito é assim: a mulher de programa, para a socie-

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ste ano a Pastoral da

EMulher de BH tem com foco de seu trabalho a

defesa e garantia de direitos e a luta contra a discriminação e pre-conceito contra as mulheres que exercem a prostituição. Ao refletir sobre estas questões uma per-gunta se impõe: por que elas estão em situação desfavorável frente a outros/as trabalhado-res/as?

A discriminação abre portas para o não cumprimento e viola-ção de direitos mínimos assim como à exploração econômica.

Sabemos que as origens da discriminação contra as mulheres são históricas e que a conquista de direitos somente é possível quando o próprio cidadão se reco-nhece como sujeito de direitos. Assim, com o objetivo de dar voz às mulheres para que expressem os desafios cotidianos de seu tra-balho abrimos espaço para o diá-logo e conversamos com V., que trabalha há muitos anos nos hotéis da Rua Guaicurus, além de ter trabalhado em outras cidades

do Brasil, nos apresenta uma pers-pectiva muito realista da vida de prostituta.

Como você percebe as con-dições de trabalho das mulhe-res nos hotéis da Guaicurus? O que poderia ser feito para melhorar?

Quando se fala em exploração nos hotéis de prostituição de Belo Horizonte, são as duas diárias cobradas por 16 horas de aluguel do quarto. Porque o quarto que eu trabalho não vale R$150,00. Eu não tenho conforto nenhum para pagar R$150,00. Como eu traba-lho meio horário eu pago R$80,00, sem direito a nada. Material de limpeza é meu, lençol é meu. Se você quiser pano de chão você tem que comprar, então sua des-pesa não é só a diária. Tem diária, tem material de limpeza, alimenta-ção. Se você não tiver uns R$110,00 não tem como ficar ali. Para eu abrir a porta tenho que ter todos os dias R$110,00.

Limpeza é um problema sério. Você chega você tem que ser faxi-neira porque o faxineiro não limpa,

mal tira o lixo, às vezes varre, às vezes não varre. Sem contar que no hotel que eu trabalho é compli-cado porque é bidê. São 70 mulheres para 2 banheiros. Falta dedetização, pessoas qualifica-das, alarme, segurança.

Colocaram detector de metal na entrada mas infelizmente não resolve nada. Por quê? Apitou o porteiro não tem autoridade para falar: abre sua bolsa. Porque quem tem esta autoridade é polí-cia ou vigilante treinado, qualifica-do no curso de vigilância. Aquilo é inútil, porque não resolve. Há menos de uma semana, embaixo do meu quarto uma mulher estava sendo espancada. Eu ouvi ela berrando. Quem gritou para o segurança fui eu. Quer dizer, não existe segurança.

No seu entendimento, o que ocasiona o descaso e a explora-ção econômica na prostitui-ção?

Primeiro, a maioria dos hotéis, embora dependa de nosso traba-

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Garantia de Direitos e a

luta contra a discriminação

dade hipócrita é indigna, embora ela não seja. Até o homem que usa a garota de programa vê este trabalho como um trabalho sujo”. (L.W.).

“Vocês acham que pela minha profissão eu não sei criar meus filhos? Tem muita gente que tem diploma e não sabe criar os filhos” (L.P.).

Neste sentido, o estigma é o extremo da violência por ser “um atributo que implica desvaloriza-ção e situa a pessoa em uma posi-ção de desvantagem.”

Quando se associa a prostitu-ição à marginalidade e delinquên-cia, abrem-se espaços para restri-ções de direitos civis e sociais destas pessoas, naturalizando a violência e exploração econômi-ca. Além do mais, “conceitos nega-tivos dessa espécie, designam um comportamento que não repre-senta uma injustiça só porque ele estorva os sujeitos em sua liber-dade de ação ou lhes inflige danos, pelo contrário, visa-se aquele aspecto de um comporta-mento lesivo pelo qual as pessoas são feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram de maneira intersubje-tiva.” (Axel Honneth).

Tais conceitos potencializam a discriminação e humilhação “atuando de dentro para fora, atra-vés do medo, da fraqueza de cará-ter e da sensação de impotência criada e mantida pelo permanente processo de auto-julgamento, a u t o - c o n d e n a ç ã o e a u t o -flagelação, o que confirma e ante-cipa o fracasso pessoal, reafir-mando o estigma social” (Letícia Lans)

Discursos antagônicos e pre-conceituosos sobre a sexualidade podem ser usados como elemen-tos para fortalecer e manter a obje-tificação da mulher: vítima - se a mulher está na prostituição por adversidade do destino; delin-qüente - se ela encara a prostitui-ção como possibilidade de exer-

cer liberdade, autonomia e resis-tência; aquela que precisa ser “salva”; mulher passiva, objeto sexual, escrava sexual... Em todos os casos o que está mal visto é a “troca de sexo por dinhei-ro”, que em uma leitura latente diz respeito à autonomia, protagonis-mo e liberdade da mulher.

O estigma é um mecanismo de controle tão efetivo que as tra-balhadoras sexuais passam a “se ver” com o olhar daqueles/as que as discriminam. Assim, são lesa-das em sua autoestima e são mar-cadas pela ambiguidade: sentem vergonha do que fazem e introje-tam a imagem que a sociedade tem delas: “não presto”. Estigmati-zadas, envergonhadas e com medo de serem identificadas pelo trabalho que exercem acabam não se associando para reivindi-car direitos:

“O que vou reivindicar se tenho vergonha do que faço?”

“Tem muito tempo que eu nem cumprimentava ninguém por causa disso. Ninguém, ninguém. A gente fica com medo de ser reco-nhecida”

Cabe perguntar-nos: será que também contribuímos para propagar idéias preconcebidas e de cunho moralista que reforçam a discriminação a que as mulhe-res estão submetidas?

Estamos cientes de que há várias situações de vulnerações

de direitos no exercício da prosti-tuição, por isso, não abrimos mão de lutar contra estruturas perver-sas que promovem injustiças e desigualdades.

Contemplando a vida destas pessoas a partir do seu olhar e de suas dores, lutaremos para que as mulheres que exer-cem a prostituição sejam reconhe-cidas como sujeitos de direitos. Que possam exercer sua ocupa-ção livres de marginalização, humi-lhação, violência e exploração econômica. Poderemos rever conceitos e preconceitos, abando-nar construtos morais e criar novos paradigmas que promovam a resistência e autonomia das mulheres.

Quem sabe, um dia, toda a sociedade poderá olhar para uma prostituta como relata C., filha de uma das mulheres que frequenta a Pastoral: “tenho orgulho da minha mãe porque ela nunca dei-xou faltar nada para nós, nem um chinelo. Ela nunca colocou a gente para pedir nem deixou a gente tirar nada de ninguém.”

* * *

Isabel Cristina Brandão Furtado – Psicóloga e Lucinete Santos – Educadora Social – For-mada em Serviço Social (Inte-grantes da Equipe Pastoral da Mulher de Belo Horizonte).

REFERÊNCIAS

- El trabajo sexual em la mira. Polémicas e estereótipos - Dolores Juliano;

- Amor, um real por minuto - ThaddeusB-lanchetie e Ana Paula da Silva;

- Luta por reconhecimento; A Gramática Moral dos Conflitos Sociais - Axel Honneth;

- A vueltas com La prostituicón - Holgado Fernández, Isabel;

- Profissionais do sexo – uma perspecti-va antropológica do estigma da prostituição – Vanessa Petró;

- Estigma, Auto-estigma e Invisibilidade Social dos Crossdressers – Letícia Lanz

http://www.leticialanz.org/estigma-auto-es t i gma-e - inv i s ib i l i dade-soc ia l -dos -crossdressers-13-10-2011/;

“Quando se associa a prostituição àmarginalidade e

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ste ano a Pastoral da

EMulher de BH tem com foco de seu trabalho a

defesa e garantia de direitos e a luta contra a discriminação e pre-conceito contra as mulheres que exercem a prostituição. Ao refletir sobre estas questões uma per-gunta se impõe: por que elas estão em situação desfavorável frente a outros/as trabalhado-res/as?

A discriminação abre portas para o não cumprimento e viola-ção de direitos mínimos assim como à exploração econômica.

Sabemos que as origens da discriminação contra as mulheres são históricas e que a conquista de direitos somente é possível quando o próprio cidadão se reco-nhece como sujeito de direitos. Assim, com o objetivo de dar voz às mulheres para que expressem os desafios cotidianos de seu tra-balho abrimos espaço para o diá-logo e conversamos com V., que trabalha há muitos anos nos hotéis da Rua Guaicurus, além de ter trabalhado em outras cidades

do Brasil, nos apresenta uma pers-pectiva muito realista da vida de prostituta.

Como você percebe as con-dições de trabalho das mulhe-res nos hotéis da Guaicurus? O que poderia ser feito para melhorar?

Quando se fala em exploração nos hotéis de prostituição de Belo Horizonte, são as duas diárias cobradas por 16 horas de aluguel do quarto. Porque o quarto que eu trabalho não vale R$150,00. Eu não tenho conforto nenhum para pagar R$150,00. Como eu traba-lho meio horário eu pago R$80,00, sem direito a nada. Material de limpeza é meu, lençol é meu. Se você quiser pano de chão você tem que comprar, então sua des-pesa não é só a diária. Tem diária, tem material de limpeza, alimenta-ção. Se você não tiver uns R$110,00 não tem como ficar ali. Para eu abrir a porta tenho que ter todos os dias R$110,00.

Limpeza é um problema sério. Você chega você tem que ser faxi-neira porque o faxineiro não limpa,

mal tira o lixo, às vezes varre, às vezes não varre. Sem contar que no hotel que eu trabalho é compli-cado porque é bidê. São 70 mulheres para 2 banheiros. Falta dedetização, pessoas qualifica-das, alarme, segurança.

Colocaram detector de metal na entrada mas infelizmente não resolve nada. Por quê? Apitou o porteiro não tem autoridade para falar: abre sua bolsa. Porque quem tem esta autoridade é polí-cia ou vigilante treinado, qualifica-do no curso de vigilância. Aquilo é inútil, porque não resolve. Há menos de uma semana, embaixo do meu quarto uma mulher estava sendo espancada. Eu ouvi ela berrando. Quem gritou para o segurança fui eu. Quer dizer, não existe segurança.

No seu entendimento, o que ocasiona o descaso e a explora-ção econômica na prostitui-ção?

Primeiro, a maioria dos hotéis, embora dependa de nosso traba-

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Garantia de Direitos e a

luta contra a discriminação

dade hipócrita é indigna, embora ela não seja. Até o homem que usa a garota de programa vê este trabalho como um trabalho sujo”. (L.W.).

“Vocês acham que pela minha profissão eu não sei criar meus filhos? Tem muita gente que tem diploma e não sabe criar os filhos” (L.P.).

Neste sentido, o estigma é o extremo da violência por ser “um atributo que implica desvaloriza-ção e situa a pessoa em uma posi-ção de desvantagem.”

Quando se associa a prostitu-ição à marginalidade e delinquên-cia, abrem-se espaços para restri-ções de direitos civis e sociais destas pessoas, naturalizando a violência e exploração econômi-ca. Além do mais, “conceitos nega-tivos dessa espécie, designam um comportamento que não repre-senta uma injustiça só porque ele estorva os sujeitos em sua liber-dade de ação ou lhes inflige danos, pelo contrário, visa-se aquele aspecto de um comporta-mento lesivo pelo qual as pessoas são feridas numa compreensão positiva de si mesmas, que elas adquiriram de maneira intersubje-tiva.” (Axel Honneth).

Tais conceitos potencializam a discriminação e humilhação “atuando de dentro para fora, atra-vés do medo, da fraqueza de cará-ter e da sensação de impotência criada e mantida pelo permanente processo de auto-julgamento, a u t o - c o n d e n a ç ã o e a u t o -flagelação, o que confirma e ante-cipa o fracasso pessoal, reafir-mando o estigma social” (Letícia Lans)

Discursos antagônicos e pre-conceituosos sobre a sexualidade podem ser usados como elemen-tos para fortalecer e manter a obje-tificação da mulher: vítima - se a mulher está na prostituição por adversidade do destino; delin-qüente - se ela encara a prostitui-ção como possibilidade de exer-

cer liberdade, autonomia e resis-tência; aquela que precisa ser “salva”; mulher passiva, objeto sexual, escrava sexual... Em todos os casos o que está mal visto é a “troca de sexo por dinhei-ro”, que em uma leitura latente diz respeito à autonomia, protagonis-mo e liberdade da mulher.

O estigma é um mecanismo de controle tão efetivo que as tra-balhadoras sexuais passam a “se ver” com o olhar daqueles/as que as discriminam. Assim, são lesa-das em sua autoestima e são mar-cadas pela ambiguidade: sentem vergonha do que fazem e introje-tam a imagem que a sociedade tem delas: “não presto”. Estigmati-zadas, envergonhadas e com medo de serem identificadas pelo trabalho que exercem acabam não se associando para reivindi-car direitos:

“O que vou reivindicar se tenho vergonha do que faço?”

“Tem muito tempo que eu nem cumprimentava ninguém por causa disso. Ninguém, ninguém. A gente fica com medo de ser reco-nhecida”

Cabe perguntar-nos: será que também contribuímos para propagar idéias preconcebidas e de cunho moralista que reforçam a discriminação a que as mulhe-res estão submetidas?

Estamos cientes de que há várias situações de vulnerações

de direitos no exercício da prosti-tuição, por isso, não abrimos mão de lutar contra estruturas perver-sas que promovem injustiças e desigualdades.

Contemplando a vida destas pessoas a partir do seu olhar e de suas dores, lutaremos para que as mulheres que exer-cem a prostituição sejam reconhe-cidas como sujeitos de direitos. Que possam exercer sua ocupa-ção livres de marginalização, humi-lhação, violência e exploração econômica. Poderemos rever conceitos e preconceitos, abando-nar construtos morais e criar novos paradigmas que promovam a resistência e autonomia das mulheres.

Quem sabe, um dia, toda a sociedade poderá olhar para uma prostituta como relata C., filha de uma das mulheres que frequenta a Pastoral: “tenho orgulho da minha mãe porque ela nunca dei-xou faltar nada para nós, nem um chinelo. Ela nunca colocou a gente para pedir nem deixou a gente tirar nada de ninguém.”

* * *

Isabel Cristina Brandão Furtado – Psicóloga e Lucinete Santos – Educadora Social – For-mada em Serviço Social (Inte-grantes da Equipe Pastoral da Mulher de Belo Horizonte).

REFERÊNCIAS

- El trabajo sexual em la mira. Polémicas e estereótipos - Dolores Juliano;

- Amor, um real por minuto - ThaddeusB-lanchetie e Ana Paula da Silva;

- Luta por reconhecimento; A Gramática Moral dos Conflitos Sociais - Axel Honneth;

- A vueltas com La prostituicón - Holgado Fernández, Isabel;

- Profissionais do sexo – uma perspecti-va antropológica do estigma da prostituição – Vanessa Petró;

- Estigma, Auto-estigma e Invisibilidade Social dos Crossdressers – Letícia Lanz

http://www.leticialanz.org/estigma-auto-es t i gma-e - inv i s ib i l i dade-soc ia l -dos -crossdressers-13-10-2011/;

“Quando se associa a prostituição àmarginalidade e

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JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

De tanto ouvir que ela tem um trabalho que não é normal ela começa a se sentir anormal. Ela começa a se sentir diferente. E isto, vai fazendo ela ter seguelas psicológicas. O fato de ela ter que esconder de vizinho, de família, isto demonstra claramente que não é uma questão muito bem resolvida. Porque se ela fosse bem resolvida com isto ela não teria que esconder. Não haveria motivo para esconder. Mas por-que ela esconde? Por causa do medo do preconceito; o medo de não ser aceita, o medo de perder o amor dos filhos; tudo isto come-ça a deixar ela frustrada. Aí vêm os problemas psicológicos porque ela se encontra fazendo algo que precisa pelo dinheiro, mas que ela sente vergonha. E que talvez afas-te as pessoas que ela ama. Então ela começa a viver uma turbulên-cia de emoções, de conflitos e, geralmente, em conseqüência disto vem a depressão.

Ao contrário do que as pesso-as pensam a garota de programa é muito mais carente que as outras. Porque gente, o homem fica com a gente só por causa de sexo. Aí, quando aparece alguém que dá o outro lado, aquilo que a gente não tem que é carinho, aten-ção, a gente acaba se apegando muito rápido. Mas isto é questão do que eu não tenho, que é uma vida sentimental, uma vida social que eu não tenho. Chego lá 8:00 e saio 22:30, de segunda a segun-da. Que vida que eu tenho?

A maioria das meninas, acham que a família não sabe. Ou acham que os vizinhos, as pessoas não sabem o que elas fazem. Acham! Acho que sabem, porque não tem como você esconder se o lugar é público. Seu parente passa, sua vizinha passa, você está saindo, alguém te vê. Então, como você vai esconder? Você viver uma mentira é muito louco.

Eu abri para minha família, há pouco tempo, o que eu fazia e eu senti o peso do preconceito. Por-que, simplesmente, a minha irmã

ficou muda no telefone e depois disto, se ela não me ligava, agora que não liga mesmo. Eu acho que no fundo eles sempre souberam, porque eu tinha um noivo e ele jogou isto para a minha mãe. Então, eles sabiam de onde o meu dinheiro vinha, mas como era necessário se fazia silêncio. É assim, a maioria das pessoas sabem, mas preferem fazer de conta que não sabe.

Ontem, no posto de saúde estava se falando da Elisa Samú-dio e alguém falou, 'mais você viu o que ela fazia, né?' Me admirou que quem falou isto era uma garo-ta de programa, entendeu? Aí eu falei: ' o fato dela ser prostituta não significa que ela era menos mulher que qualquer a outra ou que tem menos direitos que as outras.

Você entende que o preconce-ito começa na própria garota de programa?

A sociedade só vai mudar o dia que você tiver coragem de dizer eu sou e quero que você me res-peite.

O que você pensa sobre a regulamentação da prostitui-ção?

Quando se fala em legalizar a prostituição não é só botar no papel para a gente ter direito cons-titucional.

Na verdade, tinha que ser feita uma reforma política. Porque a previdência social tinha que entender quando uma prostituta pudesse ser encostada. A gente precisa de saúde também. Olha, existe menina soropositivo onde eu trabalho. A gente não tem noção de quantos homens vem que são soropositivos. Hoje mesmo eu fiz um programa com um cliente antigo e ele propôs, porque ele é cliente de sete anos, que a gente abrisse mão do pre-servativo. Eu olhei para ele e falei: você está louco, você bebeu? Que aconteceu com você, meu filho?

Teríamos que entender o que seria um acidente de trabalho dentro da prostituição. Por exem-plo, me machucar fisicamente, o rompimento de uma camisinha e ter alguma consequência por isso. O próprio ciclo menstrual. Então, peguei uma chave, coloquei meu material de trabalho, arrumei o quarto, fiz o primeiro programa e menstruei. Eu tenho direito de não quer trabalhar deste jeito, querer ir para a casa. Eu tenho que ter este direito. É o meu corpo. Se eu estou trabalhando numa empre-sa, e tiver uma indisposição de estômago, eu não tenho o direito de ir para casa? Então, se eu tra-balho com meu órgão sexual eu tenho o direito de cuidar de mim. Então, tudo isto teria que ser estu-dado.

Outra coisa, mesmo que se tente legalizar, a sociedade ainda não está preparada para isto. A sociedade é hipócrita. Se hoje muitas pessoas não veem a pros-tituição como realidade, que é uma atividade profissional, discri-minam, você acha que só o fato de legalizar vai tirar este precon-ceito todo?

10 11

lho, ainda vê a prostituição como vadiagem. Esta é uma triste reali-dade, porque se eles vissem nosso trabalho como profissão existiria respeito.

Você não vai ao supermerca-do, consome o que está no merca-do, sai do mercado, passa pelo gerente, ainda dá tchau, sai sem pagar. Você faz isso? Então, por que lá você vai, tem relaciona-mento com a menina, diz que não vai pagar e o gerente não faz nada, o segurança não faz nada?

Isto acontece por dois motivos: o gerente tem medo pela vida dele. Ele não tem respaldo de ninguém se acontecer alguma coisa, se ele tomar peito para defender alguém ali. Segundo, a sociedade ainda vê a prostituição como vadiagem, não como profis-são. Enquanto isto não mudar não vai acontecer nada. Vai continuar meninas apanhando, vai continu-ar gente dando calote. Você não vai numa loja, pega uma roupa, veste no provador, sai com a roupa e não paga. Por que não paga? A prostituição é uma pres-tação de serviço. Então por que é diferente? Não existe um trabalho eficaz que mostre para a socieda-de que a gente não está ali por vadiagem. É um trabalho que merece respeito.

Acho também que as meninas não lutam por direitos porque acham que nunca vai mudar. Que mesmo que dê a cara a tapa isto nunca vai resolver. Eu já ouvi, por exemplo, frases de algumas meni-nas que apanharam nos hotéis “ah! Eu não vou correr atrás, por-que não vai dar nada mesmo.” Talvez, porque o preconceito é muito dentro delas próprias. Enquanto elas se acharem dimi-nuídas diante da sociedade, enquanto não se empoderarem dos direitos que tem, acreditar que merecem respeito e que não tem que esconder o fato, a sociedade não vai mudar.

É possível uma mudança de atitude por parte das garotas de programa?

Não é um trabalho fácil. Já trabalhei em outras ONG's, por exemplo, em Salvador. Nós tínha-mos dificuldades de trazer as meninas para reuniões dentro da associação. Mas já que Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Então nós passa-mos a ir para a rua fazer trabalhos. Tinha dias que a gente ia para as praças. A gente ia para as casas de massagem a gente ia para os bordéis. Porque se elas não queri-am ir até a gente, a gente tinha que ir até elas. O importante é que o trabalho tinha que ser feito. Nós fazíamos um café da manhã na praça pública para as meninas. Nós tínhamos parceiros, eles doa-vam as coisas. E aquilo era novi-dade.

E a gente, com este trabalho, acabava atingindo a população também. Porque se é um espaço aberto não ia ser só as garotas que iam assistir. As pessoas iam passando e paravam para assistir também. O que acontece, num primeiro momento: garotas de programa, sem máscara com a população. Porque elas não iam vestir máscaras para tomar café da manhã. Então era uma manei-ra delas serem vistas.

Eu sei que lidar com o abuso não é fácil. Em Feira de Santana

foi um pouco diferente. Lá a gente fazia o encontro intermunicipal de prostituta. Nós começamos com sete meninas. Aí teve o segundo, o terceiro. Eu participei do quarto e do quinto. No quarto nós conse-guimos colocar 42 meninas. No quinto encontro éramos 127 meni-nas.

Lá em Feira, as meninas já iam para as ruas sem máscaras, sem nada, brigando por seus direitos de mulher. Porque elas têm direito à saúde, respeito pelo trabalho delas, pelo direito de não violên-cia. Só que é um trabalho de 20 anos, não é uma coisa que come-ça hoje.

Como o preconceito e o estigma interferem na vida das garotas de programa? Como enfrentá-los?

O preconceito é assim, a mulher de programa, para a socie-dade hipócrita, que usa a garota de programa, o homem que faz programa, ele vê este trabalho como um trabalho sujo. A socieda-de pensa assim, ela é indigna, embora ela não seja. Mas para a sociedade, até aquele homem que vai lá e fica com a gente, eles pensam é isto. Eu falo para os meus clientes, na cabeça deles a gente é uma máquina de sexo. A gente não tem sentimento.

Eu falo para os meus clientes, na cabeça deles a gente é uma máquina de sexo. A gente não tem sentimento.

Ao contrário do que as pessoas pensam a garota de programa é muito mais carente que as outras.

Ima

ge

m Ilu

stra

tiva

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Ilu

stra

tiva

JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

De tanto ouvir que ela tem um trabalho que não é normal ela começa a se sentir anormal. Ela começa a se sentir diferente. E isto, vai fazendo ela ter seguelas psicológicas. O fato de ela ter que esconder de vizinho, de família, isto demonstra claramente que não é uma questão muito bem resolvida. Porque se ela fosse bem resolvida com isto ela não teria que esconder. Não haveria motivo para esconder. Mas por-que ela esconde? Por causa do medo do preconceito; o medo de não ser aceita, o medo de perder o amor dos filhos; tudo isto come-ça a deixar ela frustrada. Aí vêm os problemas psicológicos porque ela se encontra fazendo algo que precisa pelo dinheiro, mas que ela sente vergonha. E que talvez afas-te as pessoas que ela ama. Então ela começa a viver uma turbulên-cia de emoções, de conflitos e, geralmente, em conseqüência disto vem a depressão.

Ao contrário do que as pesso-as pensam a garota de programa é muito mais carente que as outras. Porque gente, o homem fica com a gente só por causa de sexo. Aí, quando aparece alguém que dá o outro lado, aquilo que a gente não tem que é carinho, aten-ção, a gente acaba se apegando muito rápido. Mas isto é questão do que eu não tenho, que é uma vida sentimental, uma vida social que eu não tenho. Chego lá 8:00 e saio 22:30, de segunda a segun-da. Que vida que eu tenho?

A maioria das meninas, acham que a família não sabe. Ou acham que os vizinhos, as pessoas não sabem o que elas fazem. Acham! Acho que sabem, porque não tem como você esconder se o lugar é público. Seu parente passa, sua vizinha passa, você está saindo, alguém te vê. Então, como você vai esconder? Você viver uma mentira é muito louco.

Eu abri para minha família, há pouco tempo, o que eu fazia e eu senti o peso do preconceito. Por-que, simplesmente, a minha irmã

ficou muda no telefone e depois disto, se ela não me ligava, agora que não liga mesmo. Eu acho que no fundo eles sempre souberam, porque eu tinha um noivo e ele jogou isto para a minha mãe. Então, eles sabiam de onde o meu dinheiro vinha, mas como era necessário se fazia silêncio. É assim, a maioria das pessoas sabem, mas preferem fazer de conta que não sabe.

Ontem, no posto de saúde estava se falando da Elisa Samú-dio e alguém falou, 'mais você viu o que ela fazia, né?' Me admirou que quem falou isto era uma garo-ta de programa, entendeu? Aí eu falei: ' o fato dela ser prostituta não significa que ela era menos mulher que qualquer a outra ou que tem menos direitos que as outras.

Você entende que o preconce-ito começa na própria garota de programa?

A sociedade só vai mudar o dia que você tiver coragem de dizer eu sou e quero que você me res-peite.

O que você pensa sobre a regulamentação da prostitui-ção?

Quando se fala em legalizar a prostituição não é só botar no papel para a gente ter direito cons-titucional.

Na verdade, tinha que ser feita uma reforma política. Porque a previdência social tinha que entender quando uma prostituta pudesse ser encostada. A gente precisa de saúde também. Olha, existe menina soropositivo onde eu trabalho. A gente não tem noção de quantos homens vem que são soropositivos. Hoje mesmo eu fiz um programa com um cliente antigo e ele propôs, porque ele é cliente de sete anos, que a gente abrisse mão do pre-servativo. Eu olhei para ele e falei: você está louco, você bebeu? Que aconteceu com você, meu filho?

Teríamos que entender o que seria um acidente de trabalho dentro da prostituição. Por exem-plo, me machucar fisicamente, o rompimento de uma camisinha e ter alguma consequência por isso. O próprio ciclo menstrual. Então, peguei uma chave, coloquei meu material de trabalho, arrumei o quarto, fiz o primeiro programa e menstruei. Eu tenho direito de não quer trabalhar deste jeito, querer ir para a casa. Eu tenho que ter este direito. É o meu corpo. Se eu estou trabalhando numa empre-sa, e tiver uma indisposição de estômago, eu não tenho o direito de ir para casa? Então, se eu tra-balho com meu órgão sexual eu tenho o direito de cuidar de mim. Então, tudo isto teria que ser estu-dado.

Outra coisa, mesmo que se tente legalizar, a sociedade ainda não está preparada para isto. A sociedade é hipócrita. Se hoje muitas pessoas não veem a pros-tituição como realidade, que é uma atividade profissional, discri-minam, você acha que só o fato de legalizar vai tirar este precon-ceito todo?

10 11

lho, ainda vê a prostituição como vadiagem. Esta é uma triste reali-dade, porque se eles vissem nosso trabalho como profissão existiria respeito.

Você não vai ao supermerca-do, consome o que está no merca-do, sai do mercado, passa pelo gerente, ainda dá tchau, sai sem pagar. Você faz isso? Então, por que lá você vai, tem relaciona-mento com a menina, diz que não vai pagar e o gerente não faz nada, o segurança não faz nada?

Isto acontece por dois motivos: o gerente tem medo pela vida dele. Ele não tem respaldo de ninguém se acontecer alguma coisa, se ele tomar peito para defender alguém ali. Segundo, a sociedade ainda vê a prostituição como vadiagem, não como profis-são. Enquanto isto não mudar não vai acontecer nada. Vai continuar meninas apanhando, vai continu-ar gente dando calote. Você não vai numa loja, pega uma roupa, veste no provador, sai com a roupa e não paga. Por que não paga? A prostituição é uma pres-tação de serviço. Então por que é diferente? Não existe um trabalho eficaz que mostre para a socieda-de que a gente não está ali por vadiagem. É um trabalho que merece respeito.

Acho também que as meninas não lutam por direitos porque acham que nunca vai mudar. Que mesmo que dê a cara a tapa isto nunca vai resolver. Eu já ouvi, por exemplo, frases de algumas meni-nas que apanharam nos hotéis “ah! Eu não vou correr atrás, por-que não vai dar nada mesmo.” Talvez, porque o preconceito é muito dentro delas próprias. Enquanto elas se acharem dimi-nuídas diante da sociedade, enquanto não se empoderarem dos direitos que tem, acreditar que merecem respeito e que não tem que esconder o fato, a sociedade não vai mudar.

É possível uma mudança de atitude por parte das garotas de programa?

Não é um trabalho fácil. Já trabalhei em outras ONG's, por exemplo, em Salvador. Nós tínha-mos dificuldades de trazer as meninas para reuniões dentro da associação. Mas já que Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Então nós passa-mos a ir para a rua fazer trabalhos. Tinha dias que a gente ia para as praças. A gente ia para as casas de massagem a gente ia para os bordéis. Porque se elas não queri-am ir até a gente, a gente tinha que ir até elas. O importante é que o trabalho tinha que ser feito. Nós fazíamos um café da manhã na praça pública para as meninas. Nós tínhamos parceiros, eles doa-vam as coisas. E aquilo era novi-dade.

E a gente, com este trabalho, acabava atingindo a população também. Porque se é um espaço aberto não ia ser só as garotas que iam assistir. As pessoas iam passando e paravam para assistir também. O que acontece, num primeiro momento: garotas de programa, sem máscara com a população. Porque elas não iam vestir máscaras para tomar café da manhã. Então era uma manei-ra delas serem vistas.

Eu sei que lidar com o abuso não é fácil. Em Feira de Santana

foi um pouco diferente. Lá a gente fazia o encontro intermunicipal de prostituta. Nós começamos com sete meninas. Aí teve o segundo, o terceiro. Eu participei do quarto e do quinto. No quarto nós conse-guimos colocar 42 meninas. No quinto encontro éramos 127 meni-nas.

Lá em Feira, as meninas já iam para as ruas sem máscaras, sem nada, brigando por seus direitos de mulher. Porque elas têm direito à saúde, respeito pelo trabalho delas, pelo direito de não violên-cia. Só que é um trabalho de 20 anos, não é uma coisa que come-ça hoje.

Como o preconceito e o estigma interferem na vida das garotas de programa? Como enfrentá-los?

O preconceito é assim, a mulher de programa, para a socie-dade hipócrita, que usa a garota de programa, o homem que faz programa, ele vê este trabalho como um trabalho sujo. A socieda-de pensa assim, ela é indigna, embora ela não seja. Mas para a sociedade, até aquele homem que vai lá e fica com a gente, eles pensam é isto. Eu falo para os meus clientes, na cabeça deles a gente é uma máquina de sexo. A gente não tem sentimento.

Eu falo para os meus clientes, na cabeça deles a gente é uma máquina de sexo. A gente não tem sentimento.

Ao contrário do que as pessoas pensam a garota de programa é muito mais carente que as outras.

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JUNHO | 2015 JUNHO | 2015

GAROTA DE PROGRAMA

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CiDaDÃ

CONCEITO: CONECTIDEA.COM.BR | FOTO: KUES/SHUTTERSTOCK/ARQUIVO

pENsE... EnFRenTE sEU PRECONCEITO!

Instituto das Irmãs Oblatasdo Santíssimo Redentor

Coordenação:

Apoio:

A Pastoral da Mulher de Belo Horizonte, existente desde 1982, é uma entidade sem fins lucrativos, que tem por finalidade promover ações determinantes para a emancipação e humanização das mulheres que se encontram em situação de prostitui-ção. É uma ação orgânica, sistemática e planejada em processos com os pequenos grupos, desde uma perspectiva de gênero e espiritualidade às atitudes sociais.

Revisão e Redação:Equipe Pastoral da Mulher de BHProjeto Visual e Diagramação: Mário Pires Marketing ComunicativoAssessor de Comunicação da Rede OblataTiragem: 2.000 Exemplares

A reprodução total ou parcial de conteúdos desta publicação será permitida desde que a finalidade não seja comercial, bem como, seja citada a fonte. Os créditos deverão ser atribuídos aos seus respectivos(as) autores(as).

E X P E D I E N T E

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CEP: 30.111-040 - Centro - Belo Horizonte/MG - Funcionamento: de 2ª a 6ª, das 8h30 às 17h30.Telefone: 3272.7349 | e-mail: [email protected]