Jornal Investigativo

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    Jornalismo investigativo: eis a questo!

    Nos Cadernos de Jornalismo, da Federao Nacional dos Jornalistas (FENAJ),profissionais como Carlos Castello Branco, Carlos Chagas, Hamilton Almeida Filho,

    Ronaldo Junqueira, Joel da Silveira, entre outros, discutiram o tema jornalismo

    investigativo. Para Chagas, (1990, p. 20) desde Gutenberg, todo jornalismo , ou

    deveria ser investigativo. (...). Mas, investigao no quer dizer apenas polcia, cadeia.

    Ronaldo Junqueira (1990, p. 26) entende que o jornalismo investigativo da tradio

    americana foi traduzido no Brasil como jornalismo de escndalo.

    Outra a verso de Joel da Silveira (1990, p. 28), pois para ele no Brasil,precisamos muito do jornalismo investigativo, que o que vai trazer tona as

    verdadeiras verses dos episdios de nossa histria que s foram contados pela elite,

    pelas classes dominantes.

    Para o jornalista Hamilton Almeida Filho:

    O jornalismo saiu do investigativo para o servio ou para a pseudo-anlise. Porque oreprter investigativo faz tudo: investiga, d o servio e faz a anlise. De 70 para c, as

    universidades formaram um monte de jornalistas que, por falta de espao, foram para asassessorias de imprensa. Ento aumentou muito a oferta de notcia pronta na mesa doeditor. Na verdade, hoje os jornais precisam muito mais de copidesques, de caras parafechar, do que de reprteres (ALMEIDA FILHO, 1990, p. 23).

    Num enfoque poltico, Carlos Castello Branco vincula a investigao jornalstica

    com o Estado democrtico de Direito.

    No regime capitalista quem no competir perde espao. Mas o jornalismo investigativos possvel em uma sociedade democrtica. Em uma ditadura, seja socialista oufascista, o jornalismo investigativo rigorosamente impossvel. O pressuposto dojornalismo investigativo a liberdade de informao, de publicao e divulgao.Agora, no se pode confundir jornalismo investigativo com jornalismo denunciativo.Este jornalismo denunciativo coloca notcias com leviandade (CASTELLO BRANCO,1990, p.15).

    O jornalista Alberto Dines, em O Papel do Jornal: uma releitura, aponta que o

    jornalismo investigativo no sensacionalismo ou jornalismo de escndalo. O

    jornalismo investigativo relaciona-se com o jornalismo interpretativo ou analtico,

    pois, ao inquirir sobre as causas e origem dos fatos, busca tambm a ligao entre eles e

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    oferece a explicao da sua ocorrncia (DINES, 1986, p. 92). A prtica do jornalismo

    investigativo, entretanto, no obriga o jornalista a realizar uma denncia. O reprter

    pode sim ter uma postura grave, estudiosa e, sobretudo, responsvel (Idem, 1986, p.

    92).

    O leitor de hoje, segundo Alberto Dines, no quer apenas saber o que se passa,

    mas deseja estar dentro dos acontecimentos. Para isso, necessrio fazer o

    enquadramento da informao, que ocorre a partir dos seguintes elementos: a dimenso

    comparada, a remisso ao passado, a interligao com outros fatos, a incorporao do

    fato a uma tendncia e a projeo para o futuro (DINES, 1986, p. 90). Essas

    caractersticas aproximam a reportagem investigativa de uma matria interpretativa. A

    boa reportagem, para o jornalista, a que apresenta duas perspectivas: uma pr e

    outra contra, com eqidistncia. Para ele, alm desses imperativos, deve ter sido

    realizada com objetividade jornalstica e tica profissional.

    Segundo Nilson Lage, a base do melhor jornalismo est na pesquisa. Para o

    jornalista, toda reportagem pressupe investigao e interpretao (LAGE, 2005, p.

    134). Em A reportagem: teoria e tcnica de entrevista e pesquisa jornalstica, o autor

    expe o que compreende por jornalismo interpretativo e investigativo.

    O jornalismo interpretativo consiste, grosso modo, para o autor, em um tipo de

    informao em que se evidenciam conseqncias ou implicaes dos dados (LAGE,

    2005, p. 136). Imprescindvel em coberturas cientficas e econmicas, tambm podendo

    ser utilizado em cobertura de temas polticos.

    No entanto, Lage (2005, p. 138) compreende o jornalismo investigativo como

    uma forma extremada de reportagem. Nesse caso, necessrio tempo para a

    realizao da investigao e tambm esforo por parte do reprter para o levantamento

    do tema. Geralmente, o reprter escolhe um assunto que o tenha deslumbrado. O

    jornalismo investigativo tambm pode ser compreendido como um esforo paraevidenciar misrias presentes ou passadas da sociedade, injustias cometidas; contar

    como as coisas so ou foram ou como deveriam ser ou ter sido (LAGE, 2005, p. 139).

    A concepo de uma reportagem investigativa pode ser iniciada, segundo Nilson

    Lage, por fatos curiosos ou inexplicveis, por pistas dadas por informantes ou fontes

    regulares, a partir de leituras, notcias novas, ou mesmo pela observao direta da

    realidade. O segundo passo a realizao de um estudo de viabilidade, que inclui os

    documentos disponveis, as fontes acessveis, os recursos, a disposio de tempo e ospossveis resultados. O terceiro passo a familiarizao do tema, com a realizao da

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    pesquisa e a consulta das fontes secundrias. O quarto passo o plano de ao, com os

    custos, o mtodo de arquivamento e o cruzamento de informaes. O quinto passo a

    realizao do plano, com a escuta das fontes e a consulta aos documentos. O sexto passo

    a reavaliao do material apurado e o preenchimento dos vazios de informao. As

    etapas seguintes so a avaliao final, a redao, a reviso, a publicao e o seguimento

    ou sute da matria.

    Para nos ajudar a esclarecer a tenso que existe na expresso jornalismo

    investigativo, seguem as apreciaes de experientes reprteres brasileiros a respeito do

    assunto. Segundo Dirceu Fernandes Lopes, trs so os elementos que precisam existir

    em uma reportagem para ser considerada investigativa. Em primeiro lugar, o jornalista

    deve ter feito a investigao. A informao no pode ter sido elaborada por outras reas,

    como a polcia ou as assessorias de imprensa. Em segundo, a investigao deve versar

    sobre assunto de interesse pblico, ao invs de se restringir aos interesses de

    determinados setores. Por fim, deve existir um interesse de pessoas e/ou instituies em

    manter a informao oculta. Desse modo, o jornalismo investigativo pode ser definido

    como a busca da verdade oculta ou mesmo como uma reportagem em profundidade

    (LOPES, 2003, p. 12).

    Para Raimundo Pereira (Cf. LOPES & PROENA, Jornalismo investigativo, p,

    28), todo jornalismo pressupe investigao. Segundo ele, a prtica jornalstica, em sua

    funo de informar o pblico, obriga o jornalista a transitar em todas as reas do

    conhecimento, levando-o a pesquisar e investigar. Mas considera um erro conceitual

    grave aproximar ou associar o jornalismo investigativo polcia, como se o jornalismo

    de investigao se resumisse a saber se os suspeitos esto ou no a falar a verdade. O

    reprter necessita sim de condies para ir a campo, como tempo suficiente para

    conhecer e investigar o assunto e recursos para a realizao do trabalho. O jornalismo,

    assim, aproxima-se da cincia, segundo Raimundo Pereira.Com o intuito de alcanar a verdade dos fatos, Percival de Souza diz que a

    partir dos fragmentos, das pistas, que o jornalismo investigativo vai fazer o seu papel de

    construir, tecer, encontrar conexes, interpretar para poder produzir o enredo. Em suas

    palavras, Investigao usar a cabea para descobrir. Voc precisa saber conversar.

    Descobrir as pessoas e os lugares certos (Ibid, p, 44).

    O ponto de partida da investigao pode ser algo inslito, que no pode ser

    perdido de vista ao longo do trabalho. Ocorre de o jornalista investigativo desenvolveruma matria, que passou, a muitos, despercebida. Segundo Percival de Souza, o

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    jornalismo investigativo a reunio de sorte, pacincia e persistncia. O jornalista

    tambm tem de saber convencer as pessoas a falar, pois, muitas vezes, a partir do

    pronunciamento delas que se encontram documentos histricos de grande importncia,

    que no estavam, no esto e jamais estaro em qualquer arquivo do Estado (Ibid, p,

    44).

    Outro ponto de vista o do jornalista Jos Arbex Jr., para quem no deveria

    existir o jornalismo investigativo, pois todo jornalismo deveria ser investigativo.

    Segundo ele, a ciso cria um problema na concepo do jornalismo. Jornalismo

    investigativo, para Jos Arbex Jr., uma deturpao produzida pela indstria cultural,

    pois um jornalismo destitudo de pesquisa, crtica e profundidade no deveria ser

    chamado de jornalismo. O que chamado por muitos de investigativo, por pressupor

    jornalismo apurado, revelador do lado oculto da notcia, nada mais , para Arbex Jr.

    (Ibid, p, 62), que o bom jornalismo ou jornalismo como deveria ser.

    O jornalista Bob Fernandes tambm no aceita a expresso jornalismo

    investigativo, por consider-la um instrumento de marketing. Segundo Fernandes (Ibid,

    p, 74), a expresso utilizada para distinguir um veculo de outros, para o destaque de

    profissionais; funcionando tambm como um verniz de seriedade s reportagens

    (CHRISTOFOLETTI, 2003, p. 74). Bob Fernandes defende que preciso conhecer o

    universo em que se atua, sendo funo do jornalismo investigar e apurar. Para mim,

    jornalismo jornalismo. Tem que investigar, comparar verses, pesquisar. Se no tiver

    isso, outra coisa, passatempo, entretenimento. Acho pernstico dizer Jornalismo

    Investigativo (Ibid, p, 74).

    Segundo o jornalista Antonio Carlos Fon, muitos textos na imprensa,

    identificados como reportagens investigativas, so, na verdade, textos oriundos de

    outros modos de se fazer jornalismo, de reportar a realidade. O jornalismo investigativo

    muito raro. Presenciamos sim o jornalismo de denncia, de dossi, de leitura derelatrio de CPI (Ibid, p, 86). O jornalismo investigativo surge do interesse do

    jornalista de ir em busca de uma viso holstica a partir de um fato ou fragmento de

    informao.

    A reportagem investigativa inicia-se com a produo da pauta. O jornalista deve

    buscar outras fontes e no as de sempre. preciso sorte para apurar, para encontrar as

    fontes certas. O que diferencia o jornalismo investigativo de outras formas de se fazer

    jornalismo como, por exemplo, o jornalismo de denncia e o jornalismo de CPI (Ibid,p, 86) o processo de busca, de novas fontes e informaes.

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    Fernando Rodrigues (Ibid, p, 104) diz que o profissional que exerce o ofcio do

    jornalismo investigativo deve reunir pacincia, persistncia, obstinao e organizao.

    No entanto, o termo jornalismo investigativo soa para Rodrigues pleonstico, apesar de

    perceber que em nossos dias o jornalismo investigativo vem adquirindo um significado

    distinto. Reportagens investigativas so aquelas que demandam um esforo alm do

    comumente realizado pelos reprteres, exigem tempo de apurao, a realizao de

    muitas entrevistas, viagens, pesquisa e muita leitura. Exigem tambm disposio por

    parte dos proprietrios dos meios de comunicao para que o Jornalismo Investigativo

    tenha vez e voz (MOREIRA, 2003, p. 106).

    O jornalismo investigativo, segundo Mario Srgio Conti (Ibid, p, 112), tem papel

    primordial em uma democracia, mas no pode se reduzir a algo que se aproxime da

    polcia. No que diz respeito aos mtodos de investigao, Conti no v nenhuma

    aproximao entre os mtodos jornalsticos e os policiais. A investigao pode chegar

    ou no a uma coisa criminosa ou irregular.

    O jornalista investigativo, para Mario Srgio Conti, deve ser isento, desconfiado

    e trabalhador. A reportagem investigativa comea com a curiosidade do jornalista. A

    pauta surge da concordncia do editor com o reprter em realizar a matria, em como

    produzi-la. Aps isso, inicia-se o processo de apurao, checagem; apurao e

    rechecagem (Ibid, p, 113). O jornalismo investigativo tece-se pela detalhada coleta de

    informaes, demandando muita pesquisa, entrevistas, coleta de dirios, cartas, fitas de

    udio etc. A boa reportagem investigativa, segundo Conti, rene curiosidade, boa coleta

    e fronteiras ticas. A receita jamais ficaria completa sem um tempero indispensvel:

    conferir, checar exausto a confiabilidade das fontes e das informaes (HASWANI,

    2003, p. 114).

    Para o jornalista Audlio Dantas, o jornalismo investigativo tem relao ntima

    com o desenvolvimento das sociedades, pois, medida que as relaes polticas,econmicas e sociais se intensificam surge a necessidade de se discutir novos temas.

    Essa discusso vai ocorrer na mdia, atravs do jornalismo investigativo, que realiza o

    processo de construo da realidade social e leva opinio pblica o conhecimento do

    inexplicado.

    O jornalismo investigativo, todavia, confundido com o jornalismo de denncia,

    que aquele em que o sujeito faz uma acusao e vai provar (Ibid, p, 118). s vezes

    prova, mas, uma vez comprovada a denncia, a investigao se encerra. O jornalismoinvestigativo, ao contrrio, necessita transpor a denncia, devido ao seu compromisso

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    com a investigao exaustiva do assunto tratado. O resultado deve trazer opinio

    pblica informaes confiveis, que foram checadas e confirmadas.

    Para Audlio Dantas, apesar de haver semelhanas entre a investigao policial e

    o jornalismo investigativo, este no pode ser confundido com aquele, mesmo que o

    jornalismo de investigao esteja tratando de assunto policial.

    Ouvir os acusados tambm muito importante no Jornalismo Investigativo. Mas umamatria investigativa que comea ouvindo um acusado, logo no incio da apurao,corre o risco de morrer no vertedouro, uma vez que fontes acusadas podem se articularpara dar respostas a tudo, ou mesmo cercar outras fontes paralelas (HERACLITO, 2003,p. 128).

    Dantas aponta que uma reportagem, para ser realizada com rigor profissional,

    requer tempo. Se a necessidade no for respeitada, no jornalismo investigativo, ou

    mesmo jornalismo realizado com seriedade tica.

    A prtica do Jornalismo Investigativo no para qualquer profissional e nem qualquermeio de comunicao. O profissional tem que ter alguns anos de experincia e muitoflego. J o meio tem que ter amparo de seus dirigentes em todos os nveis,principalmente para saber driblar possveis sanes econmicas, como reflexo dematrias investigativas (HERACLITO, 2003, p. 122).

    A reportagem investigativa pode surgir de uma informao simples, corriqueira.

    Cabe ao reprter saber olhar o fato, desejar aprofund-lo. O reprter, todavia, ao receber

    a informao, especialmente se tratando de uma denncia, deve primeiro verificar se a

    fonte legtima. Mas, necessrio abrir o leque, reunir o maior nmero possvel de

    fontes, e, claro, ir fazendo a checagem da apurao. O reprter tambm deve trabalhar

    com fontes bem localizadas em relao ao objeto da investigao.

    A essncia da atividade jornalstica, para Jamildo Melo (Ibid, p, 132), traduz-se

    no jornalismo investigativo. Para o jornalista, a atividade jornalstica exige pacincia,

    preparo e persistncia, alm de muita leitura e muito cuidado com o trato da informao.

    O processo de apurao e levantamento dos dados revela a preocupao do jornalista

    em levar ao leitor matrias que, atravs do processo de checagem, no dem nenhuma

    margem a contestao (ALVES & QUEIROZ, 2003, p. 133).

    Segundo Jamildo Melo, a base da reportagem investigativa a pauta, que pode

    surgir de uma boa leitura, pesquisa, observaes quotidianas ou a partir de conversas

    casuais. A reportagem investigativa no pode, para Melo, surgir de uma denncia

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    annima, porque para montar uma matria preciso buscar comprovaes, indcios,

    fatos e, para isso, necessrio um interlocutor (Ibid, p, 133). As fontes so de extrema

    importncia no processo de construo da matria investigativa.

    muito difcil conciliar o interesse jornalstico com os interesses comerciais dos

    meios de comunicao no jornalismo investigativo. Sem a aprovao da empresa

    jornalstica, nada pode ser realizado. No se faz jornalismo investigativo sem apoio

    editorial. Voc s vezes punido por fazer um bom jornalismo (Ibid, p, 135).

    O jornalismo investigativo, segundo Willian Waack, se expressa pela capacidade

    do jornalista em revelar fatos cujos envolvidos desejam manter ocultos. Assim, o

    jornalismo investigativo surge do olhar do jornalista, de sua capacidade de anlise.

    A matria investigativa surge de fatos do quotidiano, de uma conversa ou de

    uma nota de jornal. Pode surgir de uma denncia, desde que o jornalista saiba quem a

    fez e quais so os seus interesses. Pois, as informaes devem ser muito bem checadas

    com as fontes. Toda boa matria investigativa vai at um ponto em que um fato ou

    uma fonte estaro protegidos e o reprter precisa ter credibilidade suficiente para

    garantir a seriedade e a existncia da fonte (Ibid, p, 143).

    De acordo com Waack, o jornalismo investigativo pode ser de dois tipos:

    calcada na Histria, em arquivos, ou em fatos vivos, que acontecem no momento da

    investigao. A reportagem investigativa no necessariamente deve trazer fatos novos

    ou revelar uma informao oculta. A matria investigativa pode realizar o papel de

    aumentar o conhecimento dos cidados, de ser capaz de retratar um microcosmo,

    revelando a partir do microcosmo uma realidade social muito mais ampla que contribui

    para aumentar a contextualizao e o conhecimento a respeito de determinados fatos

    (Ibid, p, 152). Mas, o jornalismo investigativo no investigao policial, apesar de

    aproximar-se da prtica, em alguns momentos.

    O grande empecilho para a produo de matrias investigativas no Brasil dizrespeito aos custos. No conhecida a existncia de matrias investigativas em

    departamentos de jornalismo das TVs estatais educativas e de rdios MEC estatais.

    Paradoxalmente, esse tipo de matria realizado por empresas privadas, que visam o

    lucro.

    A inquietao o que move o jornalista investigativo, diz Roberto Cabrini. Para

    o jornalista, o reprter deve fugir das primeiras aparncias para se tornar um jornalista

    investigativo.

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    Em se tratando da expresso jornalismo investigativo, Cabrini questiona: no

    seria todo jornalismo investigativo? No seria redundante a expresso? No seria dever

    do jornalista desconfiar, checar as informaes, ir alm das fontes oficiais? O que vem

    sendo praticado no Brasil, todavia, o jornalismo chapa-branca (Ibid, p, 154), cujos

    profissionais podem ser divididos em trs tipos: os preguiosos, os ingnuos e os mal-

    intencionados.

    Roberto Cabrini aponta que o jornalista deve checar todas as informaes

    recebidas, pessoalmente ou por telefone, verificar a sua veracidade. Caso sejam de

    interesse pblico, pode ter incio um bom trabalho.

    Ao comparar a investigao policial jornalstica, Cabrini diz que o jornalista

    sai em vantagem em relao polcia porque o jornalismo est inserido nos meios de

    comunicao de massa. Isso faz com que as pessoas se sintam motivadas a falar. Com o

    intuito de esclarecer os fatos, s vezes, revelam informaes que deveriam estar em

    segredo. J a polcia, que se presta a prender e a punir, encontra maior resistncia por

    parte das pessoas, apesar de possuir muito mais estrutura em sua rotina de trabalho.

    No h como fazer jornalismo sem construir a notcia a partir do acontecimento.

    A reportagem ainda est no cerne da produo jornalstica e, sem investigao, no se

    faz uma reportagem, diz Mnica Teixeira.

    Investigar um dos fundamentos do jornalismo, um inerente ao outro, no se separamnunca. A gente bota muitos nomes e sobrenomes em jornalismo, mas jornalismo sjornalismo. Na minha opinio Jornalismo Investigativo a grande reportagem (Cf.PERIAGO, Investigao fundamento do jornalismo, p, 170).

    Para a jornalista a reportagem repleta de investigao tem pouco espao e

    tempo na mdia (PERIAGO, 2003, p, 170), devido demanda por notcias a serem

    publicadas, segundos aps o acontecimento do fato. A rapidez acaba fazendo com que

    escapem das mos do jornalista certos fundamentos bsicos e tradicionais no exerccio

    da atividade (Id, p, 170).

    Para se produzir uma boa matria investigativa, de acordo com a jornalista

    Mnica Teixeira, no existe um ponto de partida. Mas o jornalista precisa ter

    sensibilidade para perceber a discrepncia no fato. Precisa inquietar-se com o

    acontecimento. A pauta deve ser tcnica, objetiva e direcionada para o que

    impertinente no fato. Deve servir como um elemento orientador, e no limitador, para o

    reprter.

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    Segundo a jornalista Mnica Teixeira, a denncia mata a novidade do fato, alm

    de ser imbuda de segundas intenes de quem a fez. Devido a isso, Teixeira no se

    interessa por denncias.

    A jornalista aponta que o reprter deve buscar o novo, ter a capacidade de se

    espantar com a histria (Ibid, p, 174). O profissional precisa de experincia,

    conhecimento acumulado, para ser capaz de discernir o relevante do trivial.

    O Jornalismo Investigativo tem que ser preciso, no pode haver lacunas que

    possam levar ao erro na informao (PERIAGO, 2003, p. 176). No pode ser

    confundido com o sensacionalismo, que incorre em impreciso devido ao exagero. No

    pode ser confundido com a investigao policial. Segundo a jornalista Mnica Teixeira,

    a reportagem investigativa deveria mostrar opinio pblica os caminhos percorridos

    pela investigao e no, simplesmente, os seus resultados.

    Atualmente, de acordo com Agostinho Teixeira (Cf. RGIS & OROSCO,Rdio

    tambm tem reprter investigativo, p, 180), existe uma tendncia homogeneidade no

    que produzido e veiculado pela imprensa. O jornalismo investigativo nesse contexto

    aparece como um diferencial na prtica do jornalismo comum (RGIS & OROSCO,

    2003, p. 180).

    O jornalismo investigativo, segundo Teixeira, requer observao, comprovao

    in loco, comprovao documental, pacincia e postura tica. Todavia, no pode ser

    confundido com o jornalismo de denncia. Este veicula informaes vazias, sem

    fundamento, exatamente o contrrio do jornalismo investigativo, que fundamentado

    em fatos concretos.

    J para o jornalista Caco Barcellos, o reprter investigativo deve reunir

    perseverana, garra e insistncia. O reprter, ao contrrio, no deve usar de sua

    credibilidade para persuadir a opinio pblica. Barcellos destaca que o jornalismo

    investigativo confundido com o jornalismo de dossi. Neste, o jornalista recebe asinformaes, checa e publica. Esse processo no pode ser compreendido como

    jornalismo investigativo. Pode, sim, ocorrer de uma investigao se iniciar a partir de

    uma informao recebida. Mas preciso saber quem enviou as informaes e quais so

    os seus interesses com a denncia. Em se tratando de jornalismo investigativo e grande

    reportagem, Caco Barcellos aponta que as diferenas so irrelevantes.

    A grande reportagem rene curiosidade e investigao, independentemente da

    editoria. Quanto maior a curiosidade do reprter, maior a possibilidade de encontraralgo interessante.

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    Segundo Caco Barcellos, os mtodos utilizados pela investigao jornalstica

    no se assemelham aos utilizados pela polcia. Os mtodos deveriam ser parecidos, eu

    queria que fossem. Mas o que acontece que no Brasil, a polcia no investiga. Ela

    muito mais adepta da brutalidade do que da investigao cientfica (Cf.

    KONOPCZYK,Jornalismo ativo, p, 162).

    A pauta pode surgir de denncias feitas pela populao, da observao pessoal

    ou do noticirio. Feita a pauta, a chefia de reportagem deve analis-la decidindo ou no

    pela construo da notcia. Somente aps esse processo tem incio o trabalho do

    reprter.

    Ainda segundo Caco Barcellos, no h regras no jornalismo investigativo, mas o

    reprter no deve interferir para gerar o acontecimento de um fato. Considera, sim,

    legtimo que o reprter interfira no caso de um no acontecimento, de uma morte, por

    exemplo. Exatamente, por acreditar que o cidado deva vir sempre antes do

    profissional.

    A expresso jornalismo investigativo, para Caco Barcellos, no tem sentido,

    pois, para ele, o mote do jornalismo investigativo est na ao do reprter. Assim,

    Barcellos (Ibid, p, 162) prefere denominar esse modo de se fazer jornalismo de

    Jornalismo Ativo.

    Aps termos percorrido grande nmero de apreciaes a respeito do tema

    jornalismo investigativo, podemos perceber que a questo da busca da verdade est no

    cerne da discusso jornalstica. Lopes, por exemplo, nos fala de uma busca pela verdade

    oculta, mas como podemos compreender a verdade oculta? Martin Heidegger, ao refletir

    sobre a obra de arte, nos diz sobre o acontecer da verdade na obra, que significa dizer

    que a arte faz emergir a verdade a partir de um processo de des/velamento, clareira/

    ocultao do ente, que acontece na obra de arte. Esse tema vai ser discutido em

    profundidade mais adiante, o que queremos ressaltar aqui, nesse momento, o carterdesvelamento/velamento que emerge no discurso dos jornalistas quando pensam o

    jornalismo versus investigativo. A busca pela verdade parece coincidir com a busca pelo

    des/velamento do acontecimento, logo pela constituio do fato jornalstico.

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    2.1.

    O acontecimento e o fato jornalstico

    A importncia de refletirmos sobre o acontecimento e o fato jornalstico no

    mbito de nosso objeto de pesquisa est na possibilidade de comearmos a compreender

    como se gestam os discursos. Pois, comear a entender o que significa o acontecimento

    e o fato jornalstico comear a entender a emergncia da construo discursiva;

    comear a entender de onde partem, surgem os discursos, a partir de qual, de que tipo de

    interpelao os discursos iniciam o seu processo de gestao.

    Segundo Hannah Arendt (1993), o acontecimento pode ser percebido a partir de

    dois pontos de vista: o do entendimento e o da ao, o que significa dizer que,

    dependendo da perspectiva em que o acontecimento observado, ele pode vir a

    significar o fim ou o comeo de uma poca. Pela perspectiva do entendimento, o

    acontecimento da ordem da contemplao, isso significa que o fato ocorrido no mundo

    pode ser explicado a partir de seus encadeamentos, como o desenlace daquilo que o

    precedeu inscrito em determinado contexto causal. Do ponto de vista da ao, o

    acontecimento surge como que um poder de revelao, podendo mostrar situaes

    problemticas que requerem uma soluo ou podendo significar tambm a descoberta

    de novas possibilidades, antes no imaginadas, fazendo surgir uma nova perspectiva de

    ao. Nesse caso, o acontecimento emerge desvinculado de relaes causais, rompendo

    com o sentido do esperado pelo seu poder de mxima surpresa; o prprio acontecer,

    que reconfigura os sentidos do possvel. Assim, h no acontecimento um carter

    inaugural, que marca o incio ou o fim de uma poca.

    Louis Qur pensa o poder de abertura e de fecho do acontecimento pela

    perspectiva de quem o sofre. Prope-se a compreender como esse poder se liga s

    modalidades de experincia remetidas pelo acontecimento. Pois, para ele, o poder doacontecimento no se liga ao ante a dialtica da experincia. Nesse caso, entraria em

    jogo um processo diferenciado de explorao, a estreita articulao entre o suportar e o

    agir. Sendo assim, compreender o acontecimento e o que ele tem a revelar no se d,

    simplesmente, por contemplao, mas por sua explicao causal. Pois, para Qur

    (2005, p. 61), o verdadeiro acontecimento no unicamente da ordem do que ocorre,

    do que se passa ou se produz, mas tambm do que acontece a algum. Compreender o

    acontecimento pela perspectiva da experincia, de quem o sofre, abrir os sentidospossveis do acontecer, pois se o acontecimento percebido a partir de quem o sofre, os

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    sentidos do possvel e o sentido do acontecimento vo se subdividir ao limite da

    experincia do nmero mltiplo de pessoas que o sofrem. Mas o acontecimento no

    existe, simplesmente, enquanto experincia, o acontecimento existe em si. Por isso,

    Qur diz sobre o acontecimento e o acontecimento a.

    J para G.H Mead, o acontecimento nunca pode ser apreendido, percebido, por

    aquilo que o precede, a partir de uma reconstruo do passado, pois descontnuo e

    pressupe ruptura. Mas, o acontecimento pode ser percebido a partir de um fundo de

    continuidade. Perceber, no entanto, o acontecimento pela concepo da continuidade

    um pensamento paradoxal, pois

    se o novo emerge, no pode haver a uma histria da continuidade da qual ele seja parteintegrante, mesmo se, quando ele surge, as continuidades que manifesta nos permitem

    descrever uma sucesso de acontecimentos no mbito do qual ele apareceu (Cf.QUR, Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento, p, 353).

    Assim, o acontecimento tem um carter esclarecedor de dizer o seu passado e

    futuro, ou, como diz Qur (2005, p. 62), que o passado e o futuro so relativos a um

    presente evenemencial. Se o acontecimento surge desvinculado de relaes causais, se

    no pode ser percebido a partir da reconstruo do passado pelo seu carter de ruptura,

    de novidade, compreend-lo a partir do presente evenemencial, apontado por Qur,

    dizer que, ao contrrio de ser percebido a partir de seu passado, o acontecer do

    acontecimento que vai fazer o papel de construir, reconstruir, passado/futuro.

    A reconstruo cognitiva essencial para a organizao da ao, pois ela quem

    vai fazer o papel de reconstruir o passado, o presente e o futuro. Nesse processo de

    reconfigurao do mundo, o acontecimento surge como realidade at ento impensada,

    seja para o indivduo ou toda uma comunidade, rompendo com os sentidos de possvel.

    Quando h a ocorrncia do acontecimento, o mundo no mais o mesmo, a

    realidade se modificou. Mas, claro, h acontecimentos esperados, que emergem comoo resultado de uma complexa rede de acontecimentos entrelaados, que os precedem.

    Mesmo esses fazem emergir o novo. O inesperado do acontecimento produz no homem

    o olhar para o passado. Louis Qur (2005) tambm aponta um outro olhar para se

    compreender o acontecimento que a passibilidade de quem o sofre. Passibilidade

    nesse contexto significa o sujeito ou toda uma comunidade sentir-se confrontada por um

    acontecimento. Confrontao que ganha fora de provao, travessia, pondo a

    identidade em causa, seja de um sujeito ou de uma comunidade. Nesse sentido, Qur

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    vem interpretar o acontecimento a partir da dialtica da experincia. Assim, o autor

    passa da anlise do acontecimento em si para pensar o acontecimento a.

    O acontecimento a diz sobre os efeitos do acontecimento em uma pluralidade

    de seres animados e inanimados, e tambm a capacidade de o acontecimento produzir

    mudana, transformao, no substrato material ou imaterial. A catstrofe natural o

    exemplo apontado pelo autor para ilustrar o seu pensamento. Mas, experincia s existe

    entre dois seres em relao. No h experincia entre o acontecimento e um ser

    inanimado. A experincia ocorre quando ambos os seres, mutuamente, se modificam,

    quando h afetao conjunta. O sujeito ou a comunidade sofre o acontecimento, se

    desconstri, e, nesse processo de desconstruo, o homem ou a comunidade constri

    novos sentidos para o acontecer, o que implica, simultaneamente, um processo de

    construo/desconstruo. Pelo existir desse processo, Qur diz que o acontecimento

    se torna um fenmeno de ordem hermenutica (QUR, p. 68).

    Diz Qur (2005, p. 67): o acontecimento continua, de facto, a ocorrer e a

    singularizar-se enquanto produzir efeitos sobre aqueles que afecta. No efeitos causais,

    mas efeitos na ordem do sentido. O acontecimento, no entanto, se transforma pelo

    modo de o homem se apropriar dele. Os acontecimentos, assim, vm se assemelhar a

    quem os recebe, a partir de seus sentidos de possvel, de sua recepo, afetao e

    resposta. Mas h uma ressalva, o limite do poder de ao sobre o acontecimento se d

    no que ele foi, d-se no acontecido. Significa que no se pode modificar o ocorrido, a

    ao de transform-lo est na ordem do sentido.

    Para Louis Qur, fato e acontecimento so fenmenos distintos. O

    acontecimento, diferente do fato que pode carregar sentido ou valor para algum, o

    prprio sentido, o acontecimento ele prprio criador de realidade. Este instaura o

    novo, sendo descontnuo constitui-se como abertura de novas possibilidades

    interpretativas (QUR, p. 69), nas dimenses passado, presente e futuro. interessante a abordagem que o autor faz sobre o fato e o acontecimento em

    sua perspectiva espao/temporal. Enquanto o fato situa-se, enclausurado, em um

    determinado tempo/espao, o acontecimento transborda em ambos os sentidos, espao e

    tempo. Espacialmente porque o acontecimento estende-se a lugares muito distantes ao

    ocorrido e temporalmente porque o acontecimento expande-se na reconstituio do

    passado e futuro.

    O acontecimento d vida ao passado, devido ao seu ineditismo. Aps oacontecido, o passado precisa ser reconstitudo como uma tentativa de compreenso do

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    acontecimento. No entanto, para Qur, o acontecimento s pode ser compreendido no

    futuro. Ele requer defasagem no tempo do ocorrido, no possvel, para o autor,

    compreender e, ao mesmo tempo, ser contemporneo ao acontecimento. No entanto,

    Qur faz uma ressalva:

    O sujeito no a medida do acontecimento. De contrrio, no haveria acontecimentopossvel, dotado de um poder de revelao e de um potencial de inteligibilidade: haveriaapenas factos revestidos a posteriori de um sentido que antes no possuam. No assim que os acontecimentos se inscrevem na ordem dos sentidos (QUR, 2005, p.70).

    Pois, o acontecimento se liga dialtica da experincia, que significa dizer que produz

    sentido e reconfigura os sentidos de possvel. Nessa produo e reconfigurao em

    transao com o sujeito ou a comunidade acontece a experincia. A experincia surgeda constituio do sujeito e do acontecimento, acontece na tessitura imbricada de

    acontecimento e comunidade receptora do acontecido.

    Gilles Deleuze (2006, p. 01) pensa os acontecimentos, os acontecimentos puros,

    segundo suas palavras, a partir de Lewis Carroll, emAlicee tambm emDo outro lado

    do espelho. O filsofo, ao se apropriar da obra de Carroll, apresenta-nos a constituio

    paradoxal da teoria do sentido, pois, para ele, o sentido uma entidade no existente,

    ele tem mesmo com o no-senso relaes muito particulares. Para ilustrar o seupensamento, Gilles Deleuze expe-nos a seguinte frase: Alice cresce. Com isso,

    Deleuze desenvolve a constituio do pensamento paradoxal, pois dizer Alice cresce

    significa dizer que ela se torna maior do que antes e menor que agora; que um

    movimento simultneo para ambos os lados, no uma coisa ou outra. Tal a

    simultaneidade de um devir cuja propriedade furtar-se ao presente. Na medida em que

    se furta ao presente, o devir no suporta a separao nem a distino do antes e do

    depois, do passado e do futuro (DELEUZE, 2006, p. 01). Similar o pensamento do

    poeta mineiro Murilo Mendes que, ao se apropriar de Shakespeare, escreve: No se

    trata de ser ou no ser, / Trata-se de ser e no ser (MENDES, 2001, p. 129).

    Como pensar o paradoxo do puro devir? Como compreender este furto do

    presente a no ser a partir da identidade infinita. Identidade que se distende nos dois

    sentidos, simultaneamente, passado/futuro, mais quente/mais frio etc. Para Deleuze,

    quem vem fixar os limites a linguagem, como, do mesmo modo, permite a distenso

    ao infinito, pelo devir ilimitado, que se torna, para o filsofo, o prprio acontecimento,

    pois o acontecimento, sendo impassvel, troca-os tanto melhor quanto no nem um

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    nem outro, mas seu resultado comum (cortar-ser cortado) (DELEUZE, 2006, p. 09). A

    essncia do devir vem a ser o oposto do bom senso, que concebe um sentido

    determinvel para as coisas do mundo; o sentido do devir, o pensamento paradoxal, no

    entanto, vem a ser esta distenso simultnea para ambos os lados. Assim, Deleuze

    (2006, p. 09) escreve: O paradoxo aparece como destituio da profundidade, exibio

    dos acontecimentos na superfcie, desdobramento da linguagem ao longo deste limite.

    Os esticos, amantes do paradoxo, rompem com os pr-socrticos, com o

    socratismo e o platonismo. Enquanto para Plato existiam duas dimenses - uma, das

    coisas limitadas e medidas, de qualidades fixas (permanentes ou temporrias); outra, do

    puro devir, que um devir louco, desmedido, que se furta ao presente coincidindo

    passado e futuro -, para os esticos, s existe, no tempo, o presente, que abarca o

    passado e o futuro. Mas, o passado e o futuro que insistem no tempo dividindo ao

    infinito cada presente, segundo as palavras de Gilles Deleuze. H nesse pensamento,

    duas leituras simultneas do tempo, ao contrrio de trs dimenses sucessivas.

    H em todo acontecimento uma dupla estrutura. Uma o momento presente,

    instante em que o acontecimento se efetua, nas palavras de Deleuze, aquele em que o

    acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivduo, uma pessoa; nesse

    caso, o passado e o futuro sero revistos, percebidos, constitudos a partir do presente

    evenemencial, de Qur (2005), pelo ponto de vista de quem o encarna. A outra o

    passado e o futuro em si mesmos, destitudos do presente. Essa dimenso temporal

    livre no sentido de no se ligar a um tempo presente fixo para se constituir. Por isso,

    Deleuze diz que essa estrutura impessoal e pr-individual, neutra, nem geral, nem

    particular, eventum tantum... (DELEUZE, 2006, p. 154). O passado e o futuro fazem-

    se, constituem-se, em movimento, o presente mvel que se produz a cada instante,

    desdobrando-se em passado/ futuro.

    Deleuze, para ilustrar a dupla estrutura do acontecimento, apropria-se deMaurice Blanchot, quando escreve sobre a morte:

    Ela o abismo do presente, o tempo sem presente com o qual eu no tenho relao,aquilo em direo ao qual no posso me lanar, pois nela euno morro, sou destitudodo poder de morrer, nela a gentemorre, no se cessa e no se acaba mais de morrer (Cf.DELEUZE,Lgica do sentido, p, 160).

    A destituio do eupara a gentetira do acontecimento o seu carter privado ou coletivo,

    individual ou universal. O acontecimento morrer,aqui descrito por Blanchot, torna-se

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    para Deleuze similar a chove, o acontecimento puro, que , ao mesmo tempo, singular,

    privado e coletivo.

    Actualmente do que precisamos so de factos; nunca ensineis a estas moas e a estes

    rapazes seno factos. Na vida, s temos necessidade de factos. No implanteis outracoisa no seu esprito: arrancai dele tudo quanto no se parecer com factos; s por meiode factos podeis formar a inteligncia do animal racional (Cf. PAIVA & SODR, Sobreo facto e o acontecimento,p, 96).

    Raquel Paiva e Muniz Sodr concordam com a posio de Louis Qur sobre a

    dificuldade de as cincias sociais lidarem com a estruturao da experincia coletiva e

    individual a partir da ocorrncia do acontecimento, mas apontam que esse

    posicionamento no suficiente para fazer desvanecer na antropologia e sociologia o

    esquema da causalidade a partir do fato, o que ocorre tambm no jornalismo. Na

    notcia, estratgia ou gnero discursivo essencialmente jornalstico, o real da notcia a

    sua factualidade, a sua condio de representar um facto por meio do acontecimento

    (PAIVA & SODR, 2005, p. 95).

    Assim, o jornalismo incorpora a compreenso que o senso comum tem sobre o

    que vem a ser o fato, especialmente, a partir do positivismo de Augusto Comte. Para a

    doutrina, o fato compreendido como uma experincia sensvel da realidade (PAIVA

    & SODR, 2005, p. 96). Para cada fato a sua respectiva correspondncia com um dado

    sensvel, uma sensao, fazendo com que a fonte de todo o saber se torne a intuio

    emprica. A partir dessa lgica de pensamento, tem validade o que pode ser observado

    empiricamente.

    O professor francs Maurice Mouillaud,1 em o ensaio A crtica do

    acontecimento ou o fato em questo, discute o tema levantando a hiptese de os termos

    acontecimento e fato constiturem-se sinnimos.

    O ensaio de Mouillaud inicia-se com o atentado ocorrido no metr parisiense nodia 3 de dezembro de 1996, em narrativa ficcionalizada. Aps a apresentao do

    ocorrido, Mouillaud nos diz:

    Estar no mago de uma batalha nada compreender. (...). Os acontecimentos explodemna superfcie da mdia sobre a qual se inscrevem como sobre uma membrana sensvel.

    1

    Segundo Marco Antnio Rodrigues Dias, o professor francs Maurice Mouillaud , hoje, algum que,em matria de anlise dos meios de comunicao, de dissecao do texto, est prximo das preocupaesde autores como Habermas em sua Teoria da ao comunicativa.

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    Mas pem em ressonncia os sentidos que nela so inscritos (MOUILLAUD, 2002, p.50).

    E conclui:

    os termos acontecimento e fato so utilizados como sinnimos. A hiptese quesustentamos a de que o acontecimento a sombra projetada de um conceito construdopelo sistema da informao, o conceito do fato (MOUILLAUD, 2002, p. 51).

    Mouillaud cria uma dualidade entre o acontecimento e a informao. A

    informao, ao contrrio do acontecimento, pertence ao regime aberto. A informao

    surge como um apelo, como um fluxo de emisso e recepo entre sociedades que se

    inter-relacionam. Transformando as sociedades, criando crises.

    Desse modo, a experincia jamais vai ser mvel, pois a experincia existe nica

    e exclusivamente em si. J a informao, a partir do padro do fato transpe

    territrios, transpe o prprio tempo.

    Este intercurso entre a experincia e o fato, segundo Maurice Mouillaud, ocorre

    de vrios modos como: o acontecimento pr-construdo; o acontecimento polissmico; o

    acontecimento orientado e o acontecimento e programao. Sem nos esquecermos,

    claro, que o acontecimento aqui compreendido como a sombra projetada de um

    conceito construdo pelo sistema da informao, o conceito do fato (MOUILLAUD,

    2002, p. 51).

    No acontecimento pr-construdo, os acontecimentos da mdia se encaixam em

    formas que j so construes do espao e do tempo. A mdia constri a cena do

    acontecimento (Idem, 64). O acontecimento por existir vinculado s relaes de

    espao e tempo, por ser uma cena temporal, uma vez captado pela mdia, sofre a

    emoldurao do olhar que o reconstri. Ocorre um processo de emoldurao do real.

    No acontecimento polissmico,

    O acontecimento e a mdia confundem-se em um ponto em que a fala da mdia torna-seperformativa, e no mais, apenas descritiva. (...): acontecimento aquilo que definidocomo acontecimento. O acontecimento no mais descritivo e, sim, reflexivo(MOUILLAUD, 2002, p. 66).

    Nesse caso, a mdia envolvida no acontecimento cria os seus limites a partir de

    seus discursos proferidos. Desse modo, no ocorre uma emoldurao do real, mas sim a

    construo deste pelo discurso. Esse apontamento de Mouillaud dialoga com a posio

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    da pesquisadora Mayra Rodrigues Gomes (2000, p. 79) que diz que um acontecimento

    se elege como tal devido a uma escolha feita pelas mdias.

    No acontecimento orientado,

    O fato e o acontecimento no tm o mesmo status. O fato o paradigma universalque permite descrever os acontecimentos, uma regra da descrio dos mesmos (acodificao de toda experincia, seja qual for a natureza e a origem). O acontecimento(quando falamos de acontecimento orientado) designa uma exigncia darepresentao. A escolha de uma narrativa entre as diferentes narrativas possveisdepende dos posicionamentos da tela, mas ela no afeta o cdigo (o modelo do fazer)que serve para descrev-la (MOUILLAUD, 2002, p. 67).

    O acontecimento orientado nada mais do que a escolha de uma narrativa entre

    tantas outras que podem ser construdas a partir do acontecimento. Maurice Mouillaud

    nos d o exemplo de uma greve no metr, a qual, a representao desta significar,

    simplesmente, a narrativa daquilo que a cidade lhe reflete.

    Quanto ao acontecimento e programao, cada jornal e cada tipo de jornal

    pode ser considerado como uma expectativa de acontecimentos (Id, 75). Diz sobre o

    reprter ter expectativas em relao ao acontecimento, isso , a mdia constri

    narrativas, antes de chegar ao local do acontecimento. O exemplo dado nesse caso por

    Mouillaud foi o da partida de futebol cujas cmeras estavam voltadas para o campo,

    devido construo da narrativa do jogo. Mas, como o acontecimento tinha sido pr-

    construdo, a mdia no pode relat-lo, pois ao invs da partida, ocorreram brigas e

    agresses no estdio, chegando ao somatrio de 38 mortos. O acontecimento ocorreu no

    dia 29 de maio de 1985, em Bruxelas.

    Mouillaud conclui que os grandes acontecimentos da mdia deveriam ser aqueles

    que permitissem um ver e um no ver. O acontecimento seria um recurso cujo valor

    residiria menos no que ele do que no que no (MOUILLAUD, 2002, p. 81). A

    concluso de Mouillaud funda-se na reflexo de que para o acontecimento no existe a

    compreenso do todo. At por que, em suas prprias palavras, estar no mago de uma

    batalha nada compreender (Id, 50).

    O fato jornalstico integra um gnero discursivo que toma o acontecimento como

    o seu objeto, mas antes de tudo constri (e se apresenta como) a informao do

    acontecido. Portanto, embora o fato ordene a experincia, no esgota o acontecimento

    em sua polissemia, o primeiro estado de uma realidade sensacional (SOARES, 1952).

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    Fato, em latim: factum, particpio passado, desse modo, o fato o acontecido. O

    acontecimento permanece no agora.

    O fato reduzido experincia de quem o produz transformar-se- em fato

    cientfico, para o discurso sociolgico; fato histrico, para o discurso da histria e fato

    jornalstico, para o discurso jornalstico.

    A dificuldade em perceber o fato como discurso existe por haver a dissimetria

    entre o real e o simblico. O fato, uma vez transposto em discurso, comportar-se- a

    partir da lgica do signo, que a construo de discurso sobre discurso. E essa lgica

    cria um abismo intransponvel entre o real e o construdo. Para Roland Barthes (2003, p.

    95), qualquer sistema de significao comporta um plano de expresso (E) e um plano

    de contedo (C) e que a significao coincide com a relao (R) entre os dois planos: E

    R C. Sendo assim, o sistema de conotao aquele cujo plano de expresso ele

    prprio constitudo por um plano de significao, tornando-se um sistema complexo,

    como o caso da Literatura. J o sistema de denotao, ao invs do plano de expresso

    constituir-se como agente no plano de significao, o plano de contedo toma para si a

    funo, surge da os casos de metalinguagens.

    2.1.1.Elucubraes sobre o entendimento da verdade

    Questionar e pr em questo a nica tarefa do pensamento.Martin Heidegger

    A travessia atravs do acontecimento nos mostra que ele emerge como questo,

    mas o que isso quer dizer? Para compreendermos o que queremos dizer com questo,

    vejamos o que diz o catedrtico de potica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,Manuel Antnio de Castro. A emergncia do homem e o mbito de sua atuao e de

    seu lugar dentro do real e o enigma do seu destino so as questes que perpassam

    todas as culturas em todos os tempos e suas obras de arte (CASTRO, 2005, p. 12). Por

    a arte se constituir como enigma no pode ser abordada por meio de conceitos, mas sim

    como questo, argumenta Castro.

    Seja como mito, seja como pensamento, o ser humano sempre se questiona sobre tudoisso. Questo vem do verbo latim quaerere, atravs do particpio: quaestum. Significafundamentalmente: procurar, desejar, indagar, pensar, examinar, perguntar. O verbo

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    como tal traz em si o aspecto desiderativo, portanto ligado ao cuidado, Cura, comose faz presente no mito de Cura2(CASTRO, 2005, p. 12).

    Castro segue refletindo sobre o que vem a ser a questo a partir da interpretao

    do mito de Cura pelo filsofo Heidegger. O filsofo alemo em Ser e Tempofaz umainterpretao inovadora do mito de Cura, segundo Manuel Antnio de Castro, pela

    compreenso do Dasein. Heidegger interpreta o mito a partir de duas dimenses: uma

    que se d pela concepo do ser humano como Da-sein, que significa Entre-ser e a outra

    que o Da-sein ligado ontopoeticamente ao mito de Cura (CASTRO, 2005, p. 12).

    Valiosas as palavras de Castro:

    As questes no dependem do pensador. No ele que tem ou no tem as questes. As

    questes que nos tm. Ns, cada um de ns uma doao das questes. Elasconstituem o que nos prprio. Porm, para serem apropriadas exigem uma dura eassdua experienciao. A sua frequentao cotidiana se torna uma verdadeira ascese derenncia, onde a renncia no tira, d. D o qu? O que nos prprio, o que somos. Adoao da renncia surge como um anunciar novamente (renncia) de modo originrio,ou seja, nos envia ao destino, ao que nos prprio (CASTRO, 2005, p. 14).

    Conceber o acontecimento como questo compreend-lo em seu carter aberto;

    ao contrrio de respostas, a pergunta, o constituir-se em novas questes. O ser humano

    concebido como Da-sein - Entre-ser - move-se, experiencia o acontecimento, o real,como desdobramento de novas anunciaes, como devir.

    J os conceitos surgem, segundo Castro, quando a resposta se torna mais

    importante que as questes. O conhecimento advindo dos conceitos exato, definido e

    preciso. A verdade lgica, em oposio ao erro, tornou-se o fundamento, a espinha

    dorsal dos sistemas filosficos, constituindo-se em teorias. Essas se sobrepuseram ao

    real e as questes foram banidas da cena cientfica e da filosofia transfigurada em

    sistema.

    Os conceitos so determinados pela verdade lgica e matemtica. Eles se servem deuma metodologia presa a teorias, determinadas pelas metodologias em que predominama induo, a deduo e o experimental. So objetivos na medida em que adequam o reals teorias e suas metodologias. Estas originam as anlises descritivas e explicativas.Os conceitos geram um conhecer passvel de aprendizado. As questes, quandoexperienciadas por cada um, produzem um sabercomoaprendizagem(o que no podeser ensinado) (CASTRO, 2005, p. 15).

    2As palavras em negrito so do autor Manuel Antnio de Castro.

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    As questes no se apresentam nem na concepo de Louis Qur, com os seus

    acontecimentos em si ou acontecimentos a, nem atravs do jornalismo, que

    interpreta o acontecimento a partir da doutrina positivista de Comte. Pois as grandes

    questes no cabem em conceitos, menos ainda em respostas. A concepo positivista e

    moderna de compreenso do mundo e do real, especialmente, a partir de Descartes, por

    ter se negado a pensar o velamento, encobrimento, da physis, aniquilou a aletheia,

    verdade, na concepo grega, deixando-nos apenas a adaequatiolatina, correo. Mas

    essa discusso vai ser desenvolvida mais frente. Assim, a resposta, no caso do

    jornalismo e da percepo moderna em relao ao real, se torna mais importante que a

    questo. Se o fato uma experincia sensvel da realidade, se para cada fato existe uma

    determinada correspondncia no real, desaparece o Da-sein, aqui no h espao para o

    Entre-ser, mas, simplesmente, para o que . Resta saber: o que ?

    Segundo Manuel Antnio de Castro, todos aqueles que se prestam a realizar a

    travessia do saber e do conhecer precisam ter em mente que alm de conhecer e saber

    serem questes correlatas, esto ligadas s questes da verdade e da linguagem. Assim,

    Castro nos diz sobre a existncia de trs categorias de saberes: o saber da arte, o saber

    que nos vem da escuta do Logos e o saber da cincia e da conscincia.

    O melhor meio de conhecer o saber da arte ler a prpria obra de arte. Assim,

    Manuel Antnio de Castro nos traz Sfocles e a imagem-questo3dipo, que ilustra

    muito bem o significado do saber da arte. Na tragdia dipo Rei,ele o que sabe mais,

    o mais inteligente, por ter conseguido decifrar o enigma da esfinge (real), mas como o

    saber de dipo um saber baseado na razo, na lgica, constitui-se como um saber

    aparente. Ao final da tragdia, no momento em que dipo arranca os olhos, ele renega

    esse tipo de saber. Em dipo em Colono,Sfocles d segmento tragdia, no entanto,

    nesse momento, aps dipo ter renegado o saber da razo/lgica ele se transfigura

    abrindo-se para o saber verdadeiro da arte, do homem. a sabedoria que surge doacontecer, da experienciao levando aprendizagem. Esta, que o saber da arte,

    nenhuma epistemologia, filosofia, cincia ou conscincia pode dizer o que ou ensinar

    (CASTRO, 2005, p. 49).

    3A imagem-questo a imagem potica nos con-vocando para a escutadas grandes questes, onde essaescuta a condio fundamental de todo dilogo e de todas as interpretaes. Na imagem-poticacomparece sempre a poiesis como vigor de todo agir essencial e, ao mesmo tempo, o ethos, comolinguagem e sentido do ser. (...). O mito, origem da poesia, s trabalha com imagens, no retricas,

    porm, questes: so as imagens-questes.Mnemsine a memria, a me de todas as Musas. Verdade a deusaAletheia. Sabedoria Mtis. E assim por diante. So imagens-questes (CASTRO, 2005, p. 19).(grifos do autor).

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    Quanto ao saber que surge da escuta do Logos, Manuel Antnio de Castro diz

    que o saber das questes do pensamento, que aparece nas obras dos grandes

    pensadores. Heidegger um grande exemplo, como tambm Herclito, Plato,

    Parmnides, Aristteles e tantos outros.

    Em se tratando do saber da cincia, Castro (2005, p. 49) escreve: epistmico,

    conceitual, lgico, cientfico, tcnico.

    Cabe expor a reflexo de Manuel Antnio de Castro no que diz respeito ao

    saber, linguagem e verdade:

    O saber, a linguagem e a verdade so uma e nica questo. que esta, numa certadimenso, que distingue o ser humano dos outros entes. Mas o que o saber? Comoo conhecer se diferenciou do saber? Tudo isso muito complexo (nas mesmas trilhasda verdade e da linguagem). Nos pensadores originrios ainda constituem umaunidade. Mas com Plato, diante da ao dos sofistas(os que sabem), procura fundar osaber para alm dos sofismas. Para tanto, desenvolve uma filos-sofia (um convite reflexo para experienciao (philos) do saber (sophia)). Suas reflexes se centralizamno verbo grego noein. Isso se d numa atitude prvia, numa episteme. Daqui surgiu adi-noia (a percepo enquanto entre ambguo). Ele quer chegar ao ser. E surgiu afilosofia, aparentemente oposta ao saberda arte e dos mitos. Da filosofia se origina acincia (racional) e a filosofia da conscincia (racional). O conhecimento racionalpassa a preceder e a determinar tudo. E l o passado e seu saber a partir de umaconscincia crtica. E ento o real (racional) segmentado em campos do saberou sefaz uma sociologia do conhecimento. Tudo conceitual. Por isso necessrio partir de

    uma atitude prvia, a atitude de Plato: 1) Fazer uma crtica da conscincia, senonem pode haver conscincia realmente crtica; 2) O que o saber, para que o real, noracional somente, possa ser dividido em campos? O que o saber da sociologia, paraque ele possa estabelecer a verdade do real e, mesmo assim, questionvel, poisdepender da teoria da razo e do real. Numa palavra: necessrio questionar essesaber(CASTRO, 2005, p. 50).

    Michel Foucault no apenas questiona o saber atravs de sua arqueologia do

    saber/genealogia do poder, mas realiza o percurso da gestao das formas discursivas,

    das disciplinas, da constituio dos diversos campos de saber/poder. Bastante

    interessante a observao que faz Foucault sobre o caso de Mendel. Muito foi

    questionado sobre o fato de os contemporneos a Mendel no terem percebido que o

    pesquisador dizia a verdade, no que diz respeito constituio do trao hereditrio

    como objeto biolgico absolutamente novo, graas a uma filtragem que jamais havia

    sido utilizada at ento (FOUCAULT, 2002, p. 34). Michel Foucault, sobre o caso,

    aponta a possibilidade da verdade poder ser dita em um espao de exterioridade

    selvagem (Id, p, 35), mas que somente nos encontraremos no discurso do verdadeiro se

    nos submetermos s suas regras. importante ressaltarmos que o filsofo Michel

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    Foucault est tratando sobre a verdade metafsica, que o sentido de verdade a partir da

    tradio de pensamento romano/ ocidental, que compreende verdade como correo,

    adaequatio. O vigor do pensamento grego, no que diz respeito verdade, a sua

    compreenso sobre a aletheia, como o des-encoberto, no vai ser pensada,

    especialmente, a partir de Descartes, com a supremacia da ratio e a instituio da

    cincia moderna. Foucault, assim, escreve sobre a produo discursiva, A disciplina

    um princpio de controle da produo do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de

    uma identidade que tem a forma de uma reatualizao permanente das regras

    (FOUCAULT, 2002, p. 36). Um bom exemplo disciplinador no discurso jornalstico so

    os valores-notcias, que nada mais so que regras que fixam os limites do que possa vir

    a ser considerado notcia ou no.

    No apelo verdade efectiva, deve j saber-se, ento, imediatamente, o que quesignifica a verdade em geral. Ou saber-se- isso, apenas, imprecisamente e em geral?Mas, este saber aproximado e a indiferena em relao a ele no ser ainda maismiservel do que o mero no conhecer a essncia da verdade? (HEIDEGGER, 1995, p.15).

    A compreenso tradicional sobre a essncia da verdade nos aponta que veritas

    est adaequatio rei et intellectus, que significa que a verdade o assemelhar-se da coisa

    ao conhecimento. No entanto, veritas est adaequatio rei et intellectus tambm pode ser

    compreendido como verdade o assemelhar-se do conhecimento coisa, o que significa

    dizer que a compreenso do que venha a ser a verdade est em uma relao de

    conformidade entre o conhecimento e a coisa a ser conhecida, significa que a verdade

    compreendida como correo. Por isso, Heidegger nos fala de um duplo carter de

    concordncia, que a relao entre o assemelhar-se da coisa com o que se pensa sobre

    ela e o assemelhar-se da coisa com o enunciado, com a proposio. A discusso do

    problema da convencionalidade do significado dos signos lingsticos, que se pergunta

    sobre o tipo de relao existente entre o signo e aquilo de que ele signo, marcou a

    tradio da filosofia da linguagem.

    Heidegger escreveu emA origem da obra de arte: A arte, enquanto o pr-em-

    obra-da-verdade, Poesia (HEIDEGGER, 2005, p, 60). Para Manuel Antnio de

    Castro, a frase, que aparentemente surge como definio conceitual, com um olhar mais

    atento, desdobra-se em novas questes, mais complexas e fundamentais. Assim, Castro

    escreve:

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    O sentido e vigor fundamental da obra de arte no vem dela, mas da verdade. E aquesto se reinstala: O que a verdade, para que acontea como obra de arte? Se bemrecordarmos, essa, ao lado do enigma do homem, a grande questo que dipo solicitado a decifrar pela Esfinge (real). Essa uma questo central para o mito, a arte eo pensamento. a contra-face do prprio real. Heidegger vai procurar mostrar que, napassagem do pensamento para os sistemas filosficos, houve uma transformaoprofunda na essncia da verdade. No mito e no pensamento, o nome para verdade Aletheia. Mas, a esta, no se ope o falso nem o erro. H uma tenso ambgua deverdade e no-verdade (aletheiae lethes), onde uma no se ope outra, mas vigoramna ambigidade do entre. A filosofia, transformada em sistema, conceitua verdadelogicamente como homoiosis, traduzida como adequatio, pelo latim medieval, e comoorthotes (correto), havendo verdade quando se d uma correta adequao erepresentao (CASTRO4, 2005, p. 44).

    Ao contrrio da tradio que pensa a regulao dos objetos pelo conhecimento,

    Immanuel Kant, com sua concepo transcendental, pe em lugar do conhecimento,

    possvel somente atravs da subjetividade humana, a f da teologia crist. Kant foi o

    primeiro filsofo a se afastar do atomismo semntico, com a apresentao do juzo, que

    possui uma estrutura prpria, um carter sinttico. Os conceitos so definidos pelo seu

    lugar no juzo. O objeto, assim, no mais a coisa em si, mas aquilo que dada a

    estrutura da mente esta possa determinar. Kant, com sua estrutura sinttica do juzo, d

    linguagem um tratamento lgico. Heidegger escreve sobre a concepo transcendental

    de Kant:

    as coisas, naquilo que so e se so, somente so na medida em que, como criadas (enscreatum), correspondem idia previamente concebida no intelectus divinus, quer dizer,no esprito de Deus, e, por isso, esto de acordo com uma idia reitora (so correctas) e,nesse sentido, so verdadeiras (HEIDEGGER, 1995, p. 19).

    O conhecimento humano, compreendido como uma faculdade concedida por Deus,

    realizar o ato de assemelhar-se idia de seu criador. Desse modo, a correo da

    proposio com a coisa rege-se pela idia de serem ajustadas ao intelecto divino do

    criador. A veritas, como adaequatio rei(creandae) ad intellectum(divinum), garante a

    veritas como adaequatio intellectum (humani) ad rem (creatam) (HEIDEGGER, 1995,

    p. 21). Essa mesma lgica de pensamento pode ser compreendida sem a existncia de

    um intelecto divino criador, em seu lugar, a razo universal, o juzo como ordenamento

    do mundo. O juzo planifica todos os objetos, exigindo inteligibilidade imediata do seu

    procedimento (aquilo que tido por lgico) (HEIDEGGER, 1995, p. 21). A essncia

    da verdade da proposio dada por definitivo no que diz respeito correo do

    4As palavras em negrito so de Manuel Antnio de Castro.

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    enunciado, devido ao fato de a razo universal criar as suas prprias leis. Assim, Kant

    admitiu a existncia de Deus para negar a arbitrariedade entre o homem e seu objeto de

    conhecimento. Deus, o intelecto divino criador, o juzo, garante a correo entre a idia

    e o objeto, logo as suas proposies so a imagem da semelhana entre o juzo e o

    objeto sendo corretas, verdadeiras. Veritas significa, na essncia, em geral, a

    convenientia, a convenincia dos entes uns com os outros, como criados, com o criador,

    um acordo segundo a determinao da ordem da criao (HEIDEGGER, 1995, p. 21).

    Heidegger pensa a frmula (veritas est adaequatio intellectus et rei) da essncia

    da verdade da seguinte maneira: a determinao da essncia da verdade surge de modo

    independente determinao da essncia dos entes. Entretanto, a essncia de todos os

    entes comporta uma interpretao que corresponde essncia do homem, possuidor do

    intelecto. A validade geral da essncia da verdade torna-se, assim, intuitiva para todos.

    Logo, se a verdade a relao de conformidade entre o enunciado e a coisa, h a no-

    verdade que , exatamente, o seu contrrio, a no-conformidade. Assim, Heidegger nos

    lana a questo: Que que permanece ainda questionvel num enunciado, admitindo

    que sabemos o que significa a conformidade de um enunciado com a coisa? Mas

    sabemo-lo? (HEIDEGGER, 1995, p. 23).

    Se nos propomos a pensar a construo dos efeitos de verdade nos discursos

    jornalstico e literrio precisamos pensar a relao do homem com o seu objeto, o

    mundo a conhecer. O que significa o homem e o seu objeto? Como se constri o

    conhecimento a partir dessa relao homem/objeto? Para isso, nos remeteremos a

    Nietzsche, pois ele nos oferece um modelo, atravs do qual poderemos abordar o objeto

    de nossa pesquisa. Em Nietzsche, apesar de haver textos contraditrios no que diz

    respeito ao conhecimento, h um modelo para podermos pensar o que Foucault

    denominou de poltica da verdade. O prprio sujeito de conhecimento tem uma

    histria, a relao do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a prpria verdade temuma histria (FOUCAULT, 2005, p. 08).

    Nietzsche, ao contrrio de Kant, que pensava que as condies de experincia

    eram similares s condies do objeto da experincia, pensa que entre o homem e o

    mundo, entre o sujeito do conhecimento e o objeto a conhecer h um abismo inexorvel.

    No h nada, para Nietzsche, na natureza humana como que um germe, um germinar do

    conhecimento. O conhecimento no est no homem, nem em seu objeto a conhecer. O

    conhecimento surge do embate, da luta de foras entre o desejo de conhecer e um objeto

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    que no se revela, imiscuindo-se a todo e qualquer controle. H o homem, a sua nsia,

    h o mundo, o objeto, que no se revela.

    O filsofo dialoga com Spinoza, emA Gaia Cincia, opondo-se a ele. Enquanto

    Spinoza escreve: Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere!, que

    significa no rir, no lamentar nem detestar, mas compreender, Nietzsche questiona:

    que intelligere, em ltima instncia, seno a forma na qual justamente aquelas trs

    coisas tornam-se de uma vez sensveis para ns? Um resultado dos diferentes e

    contraditrios impulsos de querer zombar, lamentar, maldizer? (NIETZSCHE, 2005, p.

    220). Pois, para Nietzsche, o ato de rir, lamentar, detestar, que causa um

    distanciamento necessrio entre o homem e o objeto, que faz com que se construa, em

    um primeiro momento, uma viso unilateral sobre o objeto. Essa viso unilateral

    construda importante para a produo do conhecimento, que se d a partir do conflito

    de foras, da confluncia do embate entre vrias imagens unilaterais sobre um

    determinado objeto. Por isso, o conhecimento no pode estar no homem, nem em seu

    objeto, mas sim no nterim entre um e outro. Nietzsche nos oferece uma bela imagem

    para expor o seu pensamento, conforme Foucault em A verdade e as formas jurdicas,

    quando diz que o conhecimento uma centelha entre duas espadas. O conhecimento

    surge a partir e atravs do embate de foras, de luta, de poder, pois, at ento, era tido

    como um lugar de apaziguamento, de equilbrio; o pensamento de Spinoza expressa

    bastante bem a tradio filosfica ocidental. Nietzsche, assim, rompe com a relao

    sujeito/objeto e tambm com a primazia do sujeito do conhecimento, pois o que garantia

    o conhecimento ser um lugar de equilbrio, apaziguamento, e no um lugar de luta,

    fora e poder a no ser Deus? Descartes e Kant tiveram de admitir a existncia de Deus

    para negar a arbitrariedade entre o homem e seu objeto de conhecimento. Do mesmo

    modo, quando Nietzsche nega a existncia de Deus e expe a arbitrariedade, a relao

    de foras e poder que existe entre o homem e seu objeto finda com a existncia dosujeito em sua unidade. Foucault escreve, ao analisar o pensamento de Nietzsche: o

    conhecimento , cada vez, o resultado histrico e pontual de condies que no so da

    ordem do conhecimento. (...). O conhecimento no uma faculdade, nem uma estrutura

    universal (FOUCAULT, 2005, p. 24).

    Outro ponto importante abordado por Nietzsche o carter perspectivo do

    conhecimento. No entanto, interessante perceber que quando Nietzsche diz que o

    conhecimento sempre fragmentrio, aos bocados, no est querendo dizer da naturezahumana, de suas limitaes em perceber o mundo, o real, de modo sempre fragmentrio,

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    mas sim que o conhecimento perspectivo, justamente, porque para ele ocorrer,

    acontecer, so necessrias determinadas relaes estratgicas que impem aquela

    configurao especfica de luta, fora, relaes de poder, que fazem com que o

    conhecimento surja. Foucault escreve a respeito:

    o conhecimento sempre uma certa relao estratgica em que o homem se encontrasituado. essa relao estratgica que vai definir o efeito de conhecimento e por issoseria totalmente contraditrio imaginar um conhecimento que no fosse em sua naturezaobrigatoriamente parcial, oblquo, perspectivo. O carter perspectivo do conhecimentono deriva da natureza humana, mas sempre do carter polmico e estratgico doconhecimento (FOUCAULT, 2005, p. 25).

    Se o conhecimento vem a ser sempre uma relao estratgica em que o homem

    encontra-se situado, interpretar a construo dos efeitos de verdade nos discursos

    jornalstico e literrio significa interpretar as relaes estratgicas em que se constituem

    os discursos, em ambas as obras,Abusado: o dono do morro Dona Martae Os sertes.

    A mesma interpretao, com o intuito de um estudo comparativo, desenvolveremos com

    as notcias e reportagens publicadas nos jornais O Estado de S. Paulo, a respeito da

    Guerra de Canudos, escritas por Euclides da Cunha, e tambm com as publicaes em o

    Jornal do Brasile O Globo, no que concerne a algumas passagens apontadas por Caco

    Barcellos, no livroAbusado.

    2.2.

    A verdade no discurso jornalstico

    Hiplito Jos da Costa, com a publicao do mensrio Correio Braziliense,

    considerado o fundador do jornalismo brasileiro. A sua primeira edio data de 1 de

    junho de 1808. Produzido em Londres, o jornal era enviado ao Brasil clandestinamente.

    Costa defendia que:

    Ningum mais util pos do que aquelle que se destina a mostrar, com evidencia, osacontecimentos do presente, e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido otrabalho dos redactores das folhas publicas, quando estes, munidos de uma critica sa, ede uma censura adequada, representam os factos do momento, as reflexes sobre opassado, e as solidas conjecturas sobre o futuro (Cf. MARIANI, 1993, p. 31-42).

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    Segundo Ciro Marcondes (2000, p. 09), o Jornalismo a sntese do esprito

    moderno: a razo (a verdade, a transparncia) impondo-se diante da tradio

    obscurantista, o questionamento de todas as autoridades, a crtica da poltica e a

    confiana irrestrita no progresso, no aperfeioamento contnuo da espcie. Semelhante

    pensamento o do pesquisador Marco Antonio Bonetti, para quem o jornalismo se

    insere em um dos projetos Iluministas de desencantamento do mundo, que associa razo

    verdade, com a inteno de trazer sociedade a luz da razo, o conhecimento. O

    jornalismo surge, assim, em oposio a outros modos de explicao do mundo, como o

    animismo ou mgico, o religioso, o monrquico-absolutista. Em suas palavras,

    a dessacralizao do discurso aliada facilidade de reprodutibilidade das idias que ojornalismo tem por se utilizar de tcnicas e mquinas apropriadas para isso fez o

    jornalismo se colocar como forte candidato ao posto de principal fonte da prpria luzque elucida o mundo, o lugar para onde se deve dirigir o olhar para conhecer aatualidade. Uma espcie de mquina de espelhamento da verdade racionalista(BONETTI, 2001, p. 17).

    Sob a tica iluminista, a cincia quem mais se aproxima do ideal de verdade,

    embora o jornalismo sobressaia-se quando comparado a outros modos de apreenso do

    mundo como o religioso e o ficcional.

    H outras formas de se relacionar com o real que no s o raciocnio lgico-abstrato. Hpensamento tambm no mito, na mstica, no ocultismo, no esoterismo, no sagrado, nasreligies, na arte muito embora a cincia queira, via de regra, negar a validade destasoutras abordagens do real. E, como fonte primordial de todo pensamento, as potnciasda Vida e da Morte, de ros e Thnatos, que regem todas as coisas em sua constantedevenincia (FERRAZ, 2006, p. 07-08).

    Embora a cincia traga para si o lugar de verdade, o jornalismo consegue driblar

    a sua deficincia metodolgica com o seu discurso de prestador de servios sociedade,

    esse o argumento de Marco Antonio Bonetti. O jornalismo dialoga com um pblico,

    incomparavelmente maior que a cincia, que dialoga com os seus pares. O jornalismo se

    insere, assim, muito bem na configurao do mundo contemporneo, capitalista e de

    mercado. Nas palavras de Antonio Bonetti, est muito mais presente no jornalismo a

    herana do precursor do Iluminismo, o projeto de ampla popularizao da viso

    desencantada do mundo promovido na Reforma Protestante qual deu suporte a prensa

    de Gutenberg (BONETTI, 2001, p. 18).

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    Cabe ressaltar que ambos, cincia e jornalismo, configuram os seus discursos do

    verdadeiro pela associao da razo com a verdade, constituindo-se em verdade lgica,

    conceitual, que se ope duramente compreenso da verdade enquanto questo.

    No fcil definir o conceito de verdade. Para Marco Antonio Bonetti, a

    dificuldade existe por haver a associao da palavra com os pares opositivos: mentira,

    erro e falsidade, cujos significados possuem idias muito diferentes. Mentira significa

    uma no-conformidade intencional entre o que se diz e o que se cr como verdade. H,

    assim, na relao entre as palavras mentira/verdade um carter psicolgico. J o

    entendimento do falso se d pela coincidncia ou no do sujeito com o predicado.

    Assim, a frase Scrates imortal uma proposio falsa pelo simples fato de Scrates

    ser humano, logo no poder ser imortal porque os homens so mortais. Mas, quando

    falamos em erro e verdade temos um par opositivo possuidor de um conceito muito

    mais sutil, por ser esse par o nico a comportar o fato de verdade e erro constiturem-se

    sinnimos. Assim, Bonetti escreve:

    No nvel psicolgico, o que verdade verdade e o que mentira mentira. No hmodo de transio, somente oposio. No nvel lgico ocorre o mesmo, o que verdade verdade, o que falso falso. somente no nvel do conhecimento que existe umaespcie de continuum que possibilita verdade e erro serem uma coisa s (BONETTI,2001, p. 191).

    O pensamento de Bonetti dialoga com Michel Foucault quando diz sobre a

    possibilidade de existncia de vrias histrias da verdade. Uma dentre elas constituda

    pela prpria histria das cincias, que se constituiria a partir da relao verdade/erro,

    indefinidamente. Uma verdade que estaria em constante processo de correo a partir da

    regulao dos prprios mtodos cientficos.

    Bill Kovach e Tom Rosenstiel apresentam a dificuldade em responder questo

    que trata da obrigao dos jornalistas com relao verdade. De acordo com os autoresamericanos, a dificuldade existe pelo fato de a discusso sobre a verdade situar-se nos

    campos filosfico e semntico, ao contrrio de basear-se no ordinrio da vida. Um outro

    aspecto o desconhecimento dos jornalistas em relao ao significado da palavra

    veracidade.

    Por sua prpria natureza, o jornalismo reativo e prtico, no filosfico ouintrospectivo. No existe muita reflexo escrita dos jornalistas sobre esses assuntos, e opouco que existe no lido pela maioria dos profissionais do ramo. As teorias do

    jornalismo ficam nas cabeas dos acadmicos, e grande parte dos jornalistas sempre

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    desvalorizou o ensino profissional, argumentando que a nica forma de aprender oofcio por osmose nas tarefas do dia-a-dia (KOVACH & ROSENSTIEL, 2004, p. 66).

    Acadmicos e jornalistas habitam mundos diversos. Enquanto aqueles analisam

    o fazer jornalstico, estes o executam. No obstante a distncia, sobrevive a crena deque os jornalistas buscam o discurso que mais se aproxime da verdade, apesar de os

    profissionais, muitas vezes, no saberem interpretar o seu prprio processo de produo

    da notcia. Rosenstiel e Kovach percebem a verdade jornalstica como um processo de

    seleo complexo que rene tanto a matria inicial como a interao, ao longo do

    tempo, entre o pblico e os jornalistas.

    O processo de seleo jornalstico envolve, por um lado, a sociedade, os

    cidados que necessitam e dependem de relatos crveis sobre os fatos ocorridos no

    mundo e, por outro, os jornalistas, que esto envolvidos em determinado contexto

    social. De acordo com Kovach e Rosenstiel, o que o jornalismo procura uma forma

    prtica e funcional de verdade. No a verdade no sentido absoluto ou filosfico

    (KOVACH & ROSENSTIEL, 2004, p. 68), mas a verdade que seja til para o bom

    funcionamento do dia-a-dia. Marco Antonio Bonetti pensa de modo similar a Kovach e

    Rosenstiel quando expressa que o jornalismo apresenta fatos importantes do ponto de

    vista pragmtico da sociedade, do curto prazo, um bom servio, mas fatos irrelevantes

    do ponto de vista da construo do conhecimento cientfico, do longo prazo

    (BONETTI, 2001, p. 19). O que no quer dizer que o jornalismo se descuide de sua

    incessante busca pela verdade. A prpria definio do jornalismo constitui-se,

    geralmente, sobre a problemtica do discurso do verdadeiro. Assim Bonetti escreve: A

    busca e propagao da verdade uma espcie de bandeira e identidade muito particular

    do jornalismo, justamente por ele se propor a ser um substituto do prprio aparato

    perceptivo do homem (BONETTI, 2001, p. 20).

    Dizer verdade funcional, no entanto, no significa dizer simplria. O processo

    seletivo de produo do discurso do verdadeiro se d a partir de um complexo processo

    que se desenvolve ao longo do tempo, com o desenrolar das notcias, reportagens, mas

    essas no surgem do nada, como meras imagens constitudas no imaginrio, elas se

    constituem a partir do acontecimento. Esta uma das grandes questes do jornalismo: o

    que faz de um acontecimento, notcia? O que h nele que o distingue dentre tantos

    outros inmeros acontecimentos da vida? Bourdieu (1997) j dizia sobre o fato de os

    jornalistas possurem culos especiais. Mas, o que significa dizer que uma

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    comunidade profissional possui um determinado tipo de culos para olhar o mundo,

    principalmente quando se trata de uma comunidade interpretativa, no dizer de Nelson

    Traquina (2005)? Significa dizer que os jornalistas decodificam, interpretam, o

    acontecimento a partir de um filtro especial que nada mais so que os valores-notcia,

    que so pressupostos implcitos, segundo Mauro Wolf (2003). No que concerne aos

    valores-notcia, exporemos a reflexo do pesquisador Leonel Aguiar sobre o assunto:

    Conforme Wolf (2003), os valores-notcia derivam de pressupostos implcitos e que sorelativos a cinco critrios. Para este autor, a noticiabilidade um conjunto de critrios,operaes e instrumentos que controla a quantidade e qualidade dos acontecimentos para selecionar os que sero produzidos como informao jornalstica e a suaaplicao est baseada nos valores-notcia. Essa noo news values(Tuchman, 1983) constitui a resposta a esta questo central no jornalismo: quais so os acontecimentos

    considerados suficientemente interessantes e significativos para serem formalizados naordem do discurso denominada notcia? A metodologia adotada prev mostrar que asdiferentes estratgias que se desenrolam no discurso jornalstico derivam de um mesmojogo de relaes: ordenar, disciplinar, discorrer e controlar (Gomes, 2003) (AGUIAR,2007, p. 05).

    O que faz de um acontecimento, notcia, pela perspectiva dos culos especiais,

    o que o acontecimento contm no sentido de importncia e interesse; processo de

    seleo jornalstico que envolve a comunidade dos jornalistas e a sociedade. Segundo

    Mauro Wolf (2003), o critrio de importncia pode ser dividido em quatro variveis:notoriedade, proximidade, relevncia e significabilidade. Aguiar escreve sobre o

    critrio de interesse: o interesse da notcia est vinculado s representaes que os

    jornalistas tm do pblico e ainda ao valor-notcia definido como capacidade de

    entretenimento (AGUIAR, 2007, p. 06).

    O que significa esse processo de seleo, interpretao e decodificao, a partir

    do acontecimento, inserindo o jornalista em um contexto institucional, se no a vontade

    de verdade, apontada por Foucault? Apoiado em um suporte institucional, o jornalista, apartir de suas prticas, de seus valores-notcia, constri o discurso do verdadeiro. Aqui

    vale o questionamento do filsofo francs quando diz:

    qual constantemente, atravs de nossos discursos, essa vontade de verdade queatravessou tantos sculos de nossa histria, ou qual , em sua forma muito geral, o tipode separao que rege nossa vontade de saber, ento talvez algo como um sistema deexcluso (sistema histrico, institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se.(FOUCAULT, 2002, p. 14).

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    Transferindo a questo para o discurso jornalstico: qual a separao regida pelo

    discurso jornalstico no que diz respeito ao discurso do verdadeiro? Ou melhor, quando,

    em que momento, o discurso jornalstico instaura-se como um sistema de excluso de

    outras vozes? Ser que podemos dizer que no momento em que o discurso jornalstico

    se coloca como o pronunciador do verdadeiro, a partir da verdade factual, significa que

    todos os discursos provenientes de outros lugares de fala constituir-se-o de discursos

    da no-verdade? Talvez possamos compreender mais profundamente como acontece o

    sistema de excluso se conseguirmos entender, como aponta Foucault (2002), como o

    saber se insere na sociedade.

    2.2.1.

    A verdade no discurso literrio

    Martin Heidegger (2005), emA origem da obra de arte,nos diz que a discusso

    tradicional sobre a arte aponta o belo como o objeto da Esttica, o bom como o da tica,

    e a verdade como o objeto da Lgica. Mas a oposio entre arte e verdade no apenas

    identificada no pensamento da tradio, como o platnico, pois surge

    contemporaneamente a partir do senso comum.O processo de compreenso da sociedade grega passa pela compreenso do

    fenmeno artstico naquela sociedade. Compreender o papel da arte, especialmente o da

    poesia, compreender a constituio do homem grego. Mas, quando falamos em poesia,

    falamos em grande parte em Homero, considerado o educador de toda a Grcia. Porm,

    o entendimento grego sobre a arte e a poesia no o mesmo que possui o homem

    moderno. A Arte no era mera esttica, possua, sim, um fundamento tico. A poesia de

    Homero era formadora, constituinte do homem e da sociedade grega. A palavra de

    Homero ordenava a vida naquela comunidade. Assim, havia na arte como que um

    sentido poderoso, fundamental, para a constituio da sociedade e do prprio homem

    grego. A postura de Plato em relao arte significativa do imbricamento profundo

    entre a arte e a sociedade.

    Para o filsofo, era uma necessidade a recusa da poesia, por ser ela de carter

    mimtico. As obras poticas se afiguravam ao filsofo como a destruio da

    inteligncia dos ouvintes (PLATO, 1949, p. 451) que no possuam o conhecimento,

    (que serviria como antdoto contra os seus malefcios), sobre a sua verdadeira natureza.

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    A arte, assim, por tocar as paixes humanas, constituir-se-ia em uma segunda natureza,

    que seria sempre incompleta em sua tarefa de reproduzir a realidade. Atravs da poesia,

    da pintura, por seu carter de mimesis o homem jamais teria acesso verdade, pelo

    contrrio. A poesia, nesse momento, encarada como um perigo moral e intelectual.

    Mas a arte que no perodo da Antiguidade estava voltada para o exterior, para

    toda a sociedade, no homem moderno, com Descartes, volta-se para dentro, para o

    interior; volta-se para o homem. O termo esttica, que vem do grego aisthesis,

    significa percepo, sensao. Percepes, sensaes, que o homem capaz de sentir,

    pela manifestao do juzo no sensvel. A concepo do belo para a esttica racional,

    assim, passa pela compreenso do sentido lgico no sensvel. A subjetividade torna-se

    reguladora do homem e do mundo. (SAMPAIO, 1997, p. 35).

    EmA origem da obra de arte,Martin Heidegger (2005, p. 58) nos diz que a arte

    quando acontece revela a verdade do ente. O que isto quer dizer? Significa que

    Heidegger rompe com a tradio do pensamento ocidental que defende que arte e

    verdade so inconciliveis. Mas no apenas isso. O interessante de ser abordado aqui

    sobre o pensamento de Heidegger o que ele aponta sobre a arte instaurar o processo de

    desvelamento/ocultamento do ente. Para Heidegger, a obra de arte no a mimesis, a

    imitao do mundo. A obra de arte instaura o mundo, em seu processo de revelao da

    verdade do ente, do inabitual. A verdade da obra o equilbrio entre a clareira e o

    obscurecimento do ente. aquilo que, ao mesmo tempo, o ente revela e reserva. Ao

    contrrio de Plato, que defendia que a arte por ser mimesis constitua-se em uma

    segunda natureza que induzia o homem ao erro.

    A essncia da arte a Poesia. Mas a essncia da Poesia a instaurao da

    verdade (HEIDEGGER, 2005, p. 60). Instaurao compreendida em trs sentidos:

    oferecer, fundar e comear. J a palavra poesia utilizada por Heidegger em seu sentido

    lato, para ele a verdade brota na poeticidade da obra. Assim, a Poesia compreendidaem seu sentido vasto e em unio essencial com a linguagem e a palavra. Mas essa unio

    necessita permanecer em aberto para no esgotar a