Jornalismo e Literatura Nas Crônicas de Gabo

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  • 7/21/2019 Jornalismo e Literatura Nas Crnicas de Gabo

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    Joana de Ftima Rodrigues

    LITERATURA E JORNALISMO EM

    GABRIEL GARCA MRQUEZ : UMA LEITURA DE CRNICAS

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO

    2005

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    Joana de Ftima Rodrigues

    LITERATURA E JORNALISMO EM GABRIEL GARCA MRQUEZ :

    UMA LEITURA DE CRNICAS

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Lngua Espanhola e Literaturas

    Espanhola e Hispano-Americana do Departamento deLetras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    Orientadora: Professora Dr. Ana Ceclia Arias Olmos

    So Paulo

    2005

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    R E S U M O

    O objetivo principal deste trabalho mostrar como as relaes entreLiteratura e Jornalismo se mantm nas crnicas de Gabriel Garca Mrquez

    produzidas no perodo entre 1980 e 1984 e publicadas no jornal colombiano El

    Espectador, de Bogot. A partir de um recorte temtico sobre o conjunto de 167

    crnicas reunidas no volume Notas de Prensa 1980-1984constituiu-se um corpus

    reduzido para a anlise de tais relaes, o que resultou no reconhecimento de

    traos literrios no discurso jornalstico desses textos, assim como a outra via

    desse imbricamento, constatou as projees de estratgias jornalsticas no campo

    da produo narrativa do escritor colombiano.

    P A L A V R A S - C H A V E

    Crnica imbricamento narrativa hispano-americana estratgia literria

    discurso jornalstico

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    A B S T R A C T

    The main purpose of this thesis is to show how the relationships between

    Literature and Journalism are maintained in Gabriel Garcia Mrquez's

    chronicles produced between 1980 and 1984, and published in the Colombian

    journal El Espectador, from Bogot. Starting from a thematic segment over a

    whole unity of 167 chronicles reunited in the book Notas de Prensa 1980-1984

    a reduced corpus was established for the analysis of those relationships,

    which resulted in the recognition of literary traces in the journalistic

    discourse of those texts, as well as the opposite way of this imbrication

    detected the projection of journalistic strategies in the Colombian writers narrative

    production.

    K e y-w o r d s

    Chronicle imbrication spanish-american narrative literary strategy

    journalistic discourse

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    S U M R I O

    INTRODUO i

    I A PRTICA JORNALSTICA NA PRODUO LITERRIA DE GABRIEL GARCA MRQUEZ 1

    1.1. Barranquilla: um extraordinrio mundo novo 71.2. Uma Crnica vista 101.3. Cartagena: um retorno inteligente 121.4. Valorizao do estilo 151.5. Valledupar: viagem ao centro da histria 181.6. Bogot: a hora e a vez da reportagem e da crtica cinematogrfica 371.7. Europa: provas de fogo sob o frio 311.8. O passo-a-passo de uma guerra que no explodiu 361.9. Caracas: experincias mpares de jornalismo e poltica 401.10. Cuba e Mxico: mudanas significativamente marcantes 431.11. Colmbia: laos ternos mas ideolgicos 48

    II UM INTELECTUAL DE SEU TEMPO 542.1. Conexes delicadas 61

    2.2. Militncia zero 632.3. Perspectiva independente 652.4. Anos 80: dcada marcada pela violncia 672.5. Nas crnicas, um olhar pontual 702.6. Narrador com identidade 792.7. Autocrtica 812.8. Alternativa metafrica 832.9. Crtico voraz em favor da Amrica Central 852.10. Envolvimento total 922.11. Alerta para uma nao tomada por armas 942.12. De gerao para gerao 962.13. Apelo fico 1012.14. Um contexto cido 103

    III GABRIEL GARCA MRQUEZ E A TRADIO DA CRNICA NA AMRICA HISPNICA 108

    3.1. Modernismo e jornalismo 1163.1.1. Parcerias preciosas 1183.1.2. Verve marcante 122

    3.2. Herana enviesada 1233.3. Leitura com descontrao 1253.4. O ofcio de escrever 1283.5. Dilogo literrio 134

    3.5.1 A imaginao uma das loucas da casa 1403.6. Um profissional como outro qualquer 1443.7. Peculiaridades de um processo 1523.8. De bem com o tempo 157

    IV. Concluso - Algumas palavras iniciais para uma concluso i

    V. BIBLIOGRAFIA

    5.1. DO AUTOR 1605.2. GERAL 164

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    i

    Introduo

    Na obra de Gabriel Garca Mrquez o jornalismo ocupa um espao de

    fundamental importncia na medida em que funcionou como um laboratrio da

    escrita. Embora tenha produzido um nmero expressivo de trabalhos jornalsticos,

    o objetivo principal desta dissertao est centrado na produo de suas crnicas.

    A atividade de Garca Mrquez como cronista inicia concomitantemente sua

    trajetria jornalstica, no entanto, a consagrao dessa vertente literria do escritor

    acontece a partir de 1980. Data que marca seu retorno s pginas do jornal El

    Espectador, de Bogot o mesmo peridico que ele havia deixado h 20 anos,

    quando publicou o ltimo texto da srie Jirafas, coluna diria mantida por mais de

    um ano sob o pseudnimo de Septimus, nome inspirado no personagem de

    Virginia Woolf.

    Levado pela necessidade de retomar o ritmo da escrita jornalstica, uma

    vez que estava afastado das redaes e dividia suas atividades entrecompromissos polticos, reportagens de campo e a produo de seus romances,

    Garca Mrquez assume a tarefa e volta, em outubro de 1980, a escrever uma

    crnica por semana. Como ele prprio afirma com a mesma alegria, a mesma

    vontade, a mesma conscincia, a mesma alegria e muitas vezes com a mesma

    inspirao que teria para escrever uma obra maior.1

    Durante os quatro primeiros anos da dcada de 80 o escritor produziu 167

    crnicas, que foram publicadas tambm em outros importantes veculos da

    imprensa internacional como os jornais The New York Times, La Nacin, El Pas

    e El Tiempo e, as revistas Cambio, Time e Vogue. Desse conjunto de crnicas

    1In: Se necesita un escritor. GARCA MRQUEZ, Gabriel.Notas de Prensa 1980-1984. Santaf deBogot: Norma. 1991. p.408. (Traduo minha).

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    reunido e publicado posteriormente em Notas de Prensa 1980-1984 2 optei por

    uma seleo mais reduzida para compor o corpus deste trabalho, recorte que

    obedeceu ao critrio temtico centrado em duas frentes, a poltica e a literatura. A

    razo para tal escolha mostrar como se comporta o cronista Garca Mrquez

    desde o ponto de vista de suas posies ideolgicas de esquerda. O mesmo vale

    para conhecer suas reaes quando o tema diz respeito ao universo dos

    escritores.

    A partir desse recorte foi possvel chegar s relaes que o Jornalismo

    mantm com a Literatura. Relaes bastante estreitadas e que a partir do incio

    dos anos 80, com o advento do novo jornalismo, passaram a se ajustar ainda

    mais pois foi Literatura que a imprensa recorreu para imprimir s crnicas e

    reportagens um novo olhar sobre a notcia. De l para c, depois de Truman

    Capote, Gay Talese, Tom Wolfe, entre outros, os limites entre o fazer literrio e o

    fazer jornalstico deixaram as fronteiras e se aportaram nas crnicas.

    De gnero hbrido, esses textos ficam a meio caminho entre a fico e o

    jornalismo renem caractersticas marcantes como a ambigidade, a

    fragmentao e subjetividade, permitindo que o escritor colombiano recuperasse

    sua boa forma de escrita e o pulso firme ao eleger temas pontuais no complexo

    momento poltico e social que o mundo enfrentava nesses primeiros quatro anos

    da dcada de 80. Mas da mesma maneira permitiu que Garca Mrquez

    passeasse entre a fico e o cotidiano, usando de seu humor requintado e

    perspicaz para tratar de assuntos prosaicos que tambm rodeiam os escritores

    consagrados. Tudo isso acondicionado nas vrias camadas que a tessitura do

    texto permite. O que revela um cronista maduro, arraigado sua dedicao

    artesanal com as palavras e carpintaria da narrativa, sem contudo desviar de

    seu compromisso com o jornalismo, o de levar informao.

    2GARCA MRQUEZ, Gabriel. Op. cit.

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    I. A prtica jornalstica como laboratrio da escri ta

    Em comum com os escritores Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Miguel

    ngel Asturias, Julio Cortzar, Octavio Paz, Juan Carlos Onetti e Toms Eloy

    Martnez, que transitaram e transitam no universo da fico e do jornalismo, Gabriel

    Garca Mrquez, escritor representativo da narrativa latino-americana dos anos 60,

    vem destinando um espao significativo para a prtica jornalstica em sua produo

    literria. Legado de seus antecessores hispano-americanos que, no sculo XIX,

    aproveitaram a extenso da imprensa para promover mudanas estticas e

    lingsticas em suas escrituras, aguando suas armas literrias, para ir explorando

    e definindo a natureza do discurso literrio em contraste com o discurso

    jornalstico,1

    o jornalismo contagiou o escritor em sua juventude universitria. Em1948, obrigado a deixar a capital colombiana, que amargava os efeitos do

    Bogotazo,2 saiu em busca de uma substituta para a Universidade Nacional, onde

    cursava o 2 ano de Direito, e de uma atividade que garantisse sua sobrevivncia

    financeira, mas que lhe permitisse, ao mesmo tempo, dar continuidade ao exerccio

    da escritura de fico, j iniciada nos contos publicados no jornal El Espectador,3um

    ano antes.

    Foi em Cartagena de Indias, a colonial cidade litornea colombiana, que o

    futuro advogado encontrou, em maro daquele mesmo ano de 1948, a soluo para

    a necessidade dupla, matriculando-se na Escola de Direito da Universidade de

    Cartagena e aventurando-se em um cargo de aprendiz na redao do recm-criado

    El Universal, cuja tiragem diria chegava prxima aos 1.500 exemplares. Sob o aval

    1GONZLEZ, Anbal.La crnica moderna hispanoamericana. Madrid: Editorial. Jos Porra Turanzas, 1983

    p. 63.2

    Bogotazofoi uma srie de reaes espontneas e violentas por parte da populao aps a morte do lder polticopopulista Jorge Elicer Gaitn, de 34 anos, futuro candidato presidncia da Repblica da Colmbia, no dia 9 deabril de 1948, o que resultou em saques, depredaes, incndios, um saldo de cerca de 300 mil mortos (no

    perodo de 1948 a 1962) e o estopim para a chamada onda de violncia colombiana.3 Nessa poca Garca Mrquez havia publicado trs contos no dirio bogotano El Espectador, todos nosuplemento Fim de semana, sendo os dois primeiros no ano de 1947:A terceira resignao,em 13 de setembro,eEva est dentro de seu gato, em25 de outubro; e o terceiro, Tubal-Can forja una estrella, no dia 17 de janeirode 1948. Segundo Vargas Llosa, esse conto foi o primeiro de dez que apareceram publicados no El Espectadorentre 1947 e 1952. Os cinco primeiros,La tercera resignacin,Eva est dentro de su gato, Tubal-Can forja unaestrella, La otra costilla,Dilogo del espejo e Amargura para tres sonmbulos, foram escritos em Bogot. Osdemais, em Cartagena e Barranquilla: Ojos de perro azul, La noche de los alcaravanes, Nabo, Alguien

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    do romancista e amigo Manuel Zapata Olivella,4 Garca Mrquez dirigiu-se a

    Clemente Zabala, ento chefe de redao do peridico de linha progressista, munido

    de alguns contos e da deciso quase definitiva de trocar a carreira de advogado pelo

    ofcio de jornalista. Desse primeiro encontro, em que a literatura foi praticamente o

    tema principal, j resultaram os prximos passos do futuro jornalista, como detalhou

    Arango: al final de la charla, sin tener muy claro cmo, Gabriel Garca Mrquez se

    haba comprometido a escribir una columna diaria.5O teste propriamente dito ficou

    para o dia seguinte, quando Zabala pediu-lhe que trouxesse algo pronto com tema

    livre. Horas depois, o entusiasmo do chefe de redao, que publicou uma nota na

    primeira pgina saudando o novo colaborador, no o impediu de assinalar com lpis

    vermelho os tantos problemas detectados no primeiro texto jornalstico de Garca

    Mrquez, publicado na edio de 21 de maio de 1948,6 e que registrou uma

    importante passagem na histria da censura imprensa colombiana, justamenteeste canto de liberdade, reiterou Arango.7

    A interveno de Zabala no tocante a comentrios, revises e correes

    desse texto de estria em El Universal, tem sido reiteradamente lembrada pelo autor

    e reproduzida em suas falas e entrevistas.

    Zabala la ley y lo tach todo, y fueescribindola l entre las lneas tachadas. En lasegunda noticia volvi a repetir la mismaoperacin. Las dos se publicaron sin firma, y yopas das estudiando por qu cambi cada cosapor otra, y cmo las escribi l. Despus ya mefue tachando menos frases, hasta que un da yano tach ms, y se supone que desde aquel

    desordena estas rosas, cuentos que nunca recogera en libro, como afirma Vargas Llosa. In: LLOSA, Vargas.Garca Mrquez:historia de un deicidio. Barcelona-Caracas: Monte vila,1971. p. 218.4Olivella, alm de mdico atuante junto s comunidades carentes do interior colombiano, foi escritor e ativista

    poltico. Realizou estudos sobre a cultura afro-colombiana e a msica caribenha. Entre suas obras destacam-seTierra mojada(1947),En Chim nace un santo(1964), Chambac, corral de negros(1963) e Chang el granputas(1983).5 ARANGO, Gustavo. Un ramo de nomeolvides: Gabriel Garca Mrquez en El Universal. Cartagena: ElUniversal, 1995. p. 91.6 O texto de Punto y aparte, que foi publicado na pgina 4 do jornal, fazia aluso suspenso do toque derecolher imposto pelo presidente Mariano Ospina Prez (1946-1950). Ganhou de Garca Mrquez comentrioscomo: ... Desde ayer, afortunadamente, no omos el toque de queda. Ha sido suspendido precisamente cuandose haba incorporado a las costumbres de la ciudad. Muchos sentirn nostalgia por esta destemplada y obliganteserenata. Otros volvern volveremos? a las visitas, recuperaremos nuestra agradable disciplina para esperar lamadrugada olorosa a bosque, a tierra humedecida, que vendr como una nueva Bella-Durmiente deportiva ymoderna. In: ARANGO, Gustavo. Un ramo de nomeolvides. Op.cit. p. 139-40.7ARANGO, Gustavo. Op. cit. p.140.

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    momento yo ya era periodista.8

    Independentemente dos comentrios crticos, Zabala efetivou a promessa

    nomeando o estudante de 21 anos como o responsvel pela coluna diria Punto y

    aparte,da qual ele se ocupou por um ano e oito meses, abordando os mais variados

    assuntos, inclusive literatura, como mostram as notas de 27 de junho de 1948, sobre

    o escritor Bernard Shaw,9 e outra, datada de 7 de outubro de 1949, dedicada a

    Edgard Allan Poe.10

    No entanto, a redao de textos de Garca Mrquez nessa primeira

    empreitada jornalstica no se limitou coluna, como lembrou Olivella: Fue

    columnista, comentarista annimo, reportero y titulador de cables internacionales.11

    Por isso redigiu tambm para a seo de Comentrios e para a pgina dos

    editoriais, alm de editar a pgina de notcias internacionais, reservando-lhe a tarefade revisar los rollos inmensos de cables internacionales, seleccionar algunas

    noticias y titularlas. Foi, portanto, um perodo de farta produo de textos de

    diferentes estilos jornalsticos. A maioria deles destinou-se pgina editorial, alm

    das colunas, e somente alguns receberam sua assinatura, como observou Arango.12

    8GRIJELMO, Alex. Gabriel Garca Mrquez regresa al calor del reportaje. Madrid. El Pas, 13 de dezembrode 1998.9La nota sobre Bernard Shaw nos ofrece una reveladora afirmacin sobre la idea que tena Garca Mrquez desu oficio en este momento de su vida: lo interesante de la nueva determinacin de Shaw es que nos est dando unejemplo a los que estamos empeados en no escribir por comercio y, sin embargo, lo hacemos por vanidad. In:ARANGO, Gustavo. Op. cit. p. 144.10 nota Vida y obra de Poe, escrita por ocasio dos cem anos da morte do escritor americano, que segundoARANGO (p. 158) uma das poucas que leva assinatura com seu nome completo, Garca Mrquez atribuiu umaavaliao bastante crtica: fue una nota engolada, cuyo nico mrito fue el de ser la peor, como consta em suasmemrias. In: GARCA MRQUEZ, G. Vivir para contarla. Buenos Aires: Sudamericana, 2002. p.410.SALDVAR, Dasso. Uma viagem semente: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 189 (traduo deEric Nepomuceno).11ARANGO, Gustavo. Op. cit. p.92.12Al comienzo, tal vez por el entusiasmo y la novedad de ver su nombre impreso, la columna Punto yaparte,firmada con su nombre completo, sali publicada casi todo los das ... Despus, por la imposibilitad de manteneruna columna de excelente calidad, por un sentido crtico que slo le permita firmar las notas de las que se senta

    particularmente orgulloso o aquellas en las que le interesaba dejar clara su autora, su firma slo aparece enforma espordica, Arango (Op.citp.138-9). Essa observao de Arango acompanhada dos seguintes dados:dos 43 textos assinados por Garca Mrquez nessa poca, 29 foram publicados durante os dois primeiros mesesem que trabalhou no El Universal. J Jacques Gilard, em Textos Costeos. Obra periodstica I (1948-1952),afirma que so 38 os textos com assinatura. A diferena, segundo Arango (p. 138), confirmou-se aps umareviso nos arquivos do jornal, quando foram encontrados outros cinco textos. Sobre tal deciso, de assinar ouno, Garca Mrquez assim se reportou em Vivir para contarla (p. 410): Me refugi en la impunidad de loscomentarios de la pgina editorial, sin firma, salvo cuando deban tener un toque personal.

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    A necessidade de conseguir suprir com temas interessantes as colunas

    dirias obrigava Garca Mrquez a manter-se bem informado no s em relao ao

    universo colombiano, mas especialmente no mbito dos acontecimentos

    internacionais, prtica que, somada boa dose de curiosidade herdada do av,

    traduzida no ritual de procurar palavras em vrios dicionrios e enciclopdias,

    norteou o interesse de Garcia Mrquez pela notcia. Esse comportamento auxiliava o

    jovem jornalista a manter seu banco de dados pessoal em timas condies de

    armazenamento e atualizao, condio fundamental para uma produo to

    diversificada de textos. Assim, quando a sorte ou a emergncia trazia-lhe a tarefa de

    redigir o editorial, texto de carter opinativo que reflete o ponto de vista do jornal em

    relao a assuntos de interesse local ou nacional, geralmente redigido em terceira

    pessoa, o ex-estudante de Direito no se apertava. Lanava mo de elementos

    bsicos da matria-prima do jornalismo: fatos e fontes (crveis e oficiais), citaes(depoimentos), alm do senso crtico, o que Rosa Nvea Pedroso chama de matria-

    prima subjetiva. Isto aquilo que ir se constituir em opinio, verso, ideologia,

    verdade, realidade. Enfim, o que ir dar contedo no sentido de tomada de

    posio notcia, reportagem, entrevista, ao artigo.13 Situao idntica

    acontecia quando a Garca Mrquez cabiam as notas da seo Comentrios, textos

    curtos, no mais que 15 linhas, em que mesclava opinio e informao, com a

    peculiaridade de um arremate de ordem pessoal s vezes irnico, s vezes bem-

    humorado.

    Mais que um emprego ou um refgio, o aspirante a jornalista encontrou em

    El Universal a escola de jornalismo que andava procurando,14 o que, segundo

    Gilard, resultou em uma aprendizagem de retrica original e principalmente numa

    escola de estilo,15afirmaes com as quais concorda Arango ao declarar que tais

    princpios os de desenvolver um estilo prprio, redigir dentro dos padres

    jornalsticos e atender s questes de clareza da informao, brevidade, coeso,coerncia, simplicidade, impedindo assim que o texto se transformasse em algo

    excessivamente literrio ou potico foram transmitidos a Garca Mrquez graas

    13PEDROSO, Rosa Nvea.Elementos para compreender o jornalismo informativo. In: Sala de prensa. Web para

    profesionales de la comunicacin iberoamericanos. V.51, Ano IV, 2003.14SALDVAR, Dasso. Uma viagem semente:uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.172.15GILARD, Jacques, Prlogo In: Gabriel Garca Mrquez. Textos Costeos. Obra Periodstica I 1948-1952 .Barcelona: Mondadori, 1991. p.38.

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    ao particular empenho de Zabala, que lea y correga la totalidad de los textos del

    peridico y promova un periodismo nutrido con los mejores recursos estilsticos.16

    No entanto, ao referir-se ao aprendizado jornalstico de Garca Mrquez durante sua

    passagem por El Universal,17 Gilard no fez meno a uma das habilidades do

    jornalista ali desenvolvidas, a de fazer bons ttulos, resultado da capacidade de

    Garca Mrquez e do incentivo recebido do chefe Zabala, dedicao que obteve de

    Garca Usta o seguinte comentrio:

    El trabajo con Zabala le permitir al joven GarcaMrquez acercarse a una forma de titulacineficiente y novedosa, que permite ensayar formasmuy variadas: los ttulos de intencin literaria,plstica o artstica, los de arbitrariedad ingeniosa,los de una frase sugerente (aparentementeincompleta). El estilo de titular es coherente con la

    nocin de periodismo, la literatura y el mundo que setena por entonces; formas cautivantes,sorprendentes y humorsticas, combate a lasimplicidad denotativa, a la grandilocuencia y lamonotona.18

    Seguindo as exigncias que levariam um jornalista ao sucesso profissional,

    Zabala acreditava que a criao de bons ttulos era uma delas. Na frmula para

    alcan-los, o chefe de redao inclua inteligncia e criatividade. Em sua

    concepo, el ttulo es una sntesis personal del sentido del texto, con definidaambicin literaria.19 Por ser um jornal dirio, com uma linha de produo que

    atendia a um rigor de horrios, a rapidez e, conseqentemente, o poder de sintetizar

    o assunto passaram a ser, juntamente com a capacidade de improvisao e as

    tiradas bem-humoradas, aspectos de relevncia para o bom desempenho de Garca

    Mrquez na funo da titulagem. Pois, como lembra Erbolato, o ttulo deve ser

    sugestivo, a ponto de deixar o leitor interessado em ler o texto; assim o que

    aconteceu tem menos importncia, o que est acontecendo tem mais e o que vai

    acontecer quando, de fato, vem a acontecer tem muitssima.20Boa parte desses

    quesitos Garca Mrquez acabou absorvendo das intervenes do chefe de redao

    16ARANGO, Gustavo. Op. cit. p. 130.17Segundo Arango, a ltima nota assinada por Garca Mrquez no dirio de Cartagena data de 9 de novembro de1949 e teve o ttulo deDos nuevos abogados. In:Idem,p. 158.18USTA, Jorge G. Cmo aprendi a escribir Garca Mrquez. Medelln: Lealon, 1995. p. 357.19USTA, Jorge G. Op. cit. p. 357.20ERBOLATO, Mrio L. Tcnicas de codificao em Jornalismo. 3. ed. Petrpolis: Vozes, 1984. p. 113.

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    Zabala, que conferia ao texto uma espcie de tenso dramtica ao comentrio,

    fazendo uso da ironia, do humor, das comparaes e das associaes, de acordo

    com Usta.21Esses elementos imprimiam ao texto um acabamento especial, muitas

    vezes com requintes literrios, nutrido com as gregueras ou comentrios

    humorados e gozadores de autoria de Ramn Gmez de la Serna.22

    Foi na figura do espanhol Gmez de la Serna que Garca Mrquez ancorou-

    se nessa poca, com o intuito de levar o aspecto humorstico para seus textos

    jornalsticos. A prova dessa iniciativa configurou-se em frases e pargrafos que j

    ocupavam as colunas Punto y Aparte, no peridico de Cartagena, e que levou

    Garcia Usta a estudar o assunto com detalhes, o que se reverteu em farto registro

    de frases e pargrafos escritos sob o calor do efeito das gregueras, que reproduzo

    em alguns exemplos:1) La muerte puede ser apenas un cambio deestado civil.23

    2) La cordura es un estado simple, adocenado,completamente vulgar, bajo cuyo imperio lo nicoextravagante que podemos permitirnos, de vez encuando, es la muy normal e inofensiva costumbre devestir colores ms o menos encendidos que los delvecino de asiento.24

    3) Los inconvenientes ortogrficos estimulan el

    sistema nervioso.

    4) (Sin errores de ortografa) Las caras de lasmujeres no tendran nada de particular.

    5) La hache es la nica letra de personalidad.

    6) Cuando se rompan las reglas actuales y se pongaa disposicin de los escritores una ortografaa basede puros presagios, estoy seguro de que la hache ...aparecer en cualquier parte.25

    21USTA, Jorge G. Op. cit. p. 357.22 Las gregueras son breves composiciones en prosa, con interpretaciones o comentarios ingeniosos yhumorsticos sobre aspectos de la vida corriente, que fueron creadas y as denominadas por el escritor espaolRamn Gmez de la Serna (Espaa, 1888-1963), autor prolfico de ms de cien libros de todos los gneros comola novela, el ensayo, el cuento, el teatro o el artculo periodstico del que fue maestro y de la greguera, que lmismo defini como metfora ms humor. In: http://www.epdlp.com/literatura.php23Na nota intituladaDefensa de los atades, publicada em 9 de maro de 1950 noEl Univeral. In: USTA, JorgeG. Op. cit. p. 167.24El derecho a volverse loco, 21 de janeiro de 1950. In: USTA, Jorge G. Op. cit. p. 166.25As citaes 3, 4, 5 e 6 aparecem na mesma coluna,Hay que tener mala ortografa, de 9 de setembro de 1952.USTA, Jorge G. Op. cit. p. 169.

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    7) ... Lo musical del helicptero, es lo poco que tienede mquina y lo mucho que tiene de colibr.26

    Juntamente com a verve humorstica de Garca Mrquez, outros fatores

    foram povoando o novo universo jornalstico e cultural do jovem homem de

    imprensa, como a rotina de leitura e seleo de telegramas internacionais, queposteriormente recebiam um tratamento editorial do redator colombiano. Tambm a

    convivncia bomia, mas de carter intelectual, com Zabala e demais fiis

    companheiros de redao, os integrantes do chamado Grupo de Cartagena,27

    colaborarou com esse laboratrio de escritura garciamarquiana, na medida em que

    sugeriam leituras de clssicos da literatura universal. No contentes, dedicavam

    muitas horas das madrugadas e finais de semana aos comentrios crticos de tais

    obras, prtica que se estendeu das pginas de livros s revistas, das telas dos

    cinemas aos bares e cafs e aos espaos de exposio de artes plsticas.

    1.1. Barranquilla: um extraordinrio mundo novo

    A experincia como colunista em Cartagena avalizou a transferncia de

    Garca Mrquez para o jornal El Heraldo na cidade porturia de Barranquilla. A

    convite do jornalista Alfonso Fuenmayor, passou a encarregar-se novamente de uma

    coluna diria entitulada La Jirafaa partir de 5 de janeiro de 1950 e, em cumprimento

    ao acordo firmado com a direo do peridico, no utilizou seu nome para assin-

    la.28 Optou por um pseudnimo, Septimus, inspirado no alucinado personagem

    homnimo do romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf.29 At a metade do ano

    26Coluna publicada no dia 26 de maio de 1948 emEl Universal. In: USTA, Jorge G. Op. cit. p. 170.27Ao lado do experiente jornalista Manuel Zabala, fundou a revista Mundial e o suplemento literrio do jornalLa Nacin. Os outros intelectuais que compunham o grupo eram: Rojas Herazo, tambm jornalista do ElUniversal, Zapata Olivella, Gustavo Ibarra Merlano, os irmos Ramiro e scar de la Espriella. A esse grupo,estudiosos da obra de Garca Mrquez como Arango e Juan Gustavo Cobo Borda atribuem papel to expressivoquanto o Grupo de Barranquilla no que diz respeito s contribuies profissionais e culturais na trajetria doescritor, idia no compartilhada por Jacques Gilard, que creditou aos companheiros de Garca Mrquez deCartagena relevncia zero quanto a conhecimentos, descobertas profissionais e poltico-literrias.28 Opo para a qual Garca Mrquez concedeu a seguinte explicao muito tempo depois em Vivir paracontarla: No quise firmala con mi nombre para curarme en salud por si no lograba encontrable el paso comohaba ocurrido enEl Universal. In: GARCIA MRQUEZ, G. Op. cit. p. 433.29Garca Mrquez j havia lanado mo deste mesmo pseudnimo por uma vez emEl Universal. El 24 de juniode 1949, en medio al furor y el entusiasmo que se haba desatado por un reinado estudantil, pareci la pginaeditorial una columna titulada Viernes, firmada por Septimus... La utilizacin se explica por el hecho que GarcaMrquez formaba parte del comit de una de las candidatas, Elvira Vergara, y poda prestarse a suspicacias el

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    seguinte Garca Mrquez havia publicado cerca de 400 colunas, tipo de texto

    jornalstico que, segundo Santamara Surez, tem as seguintes caractersticas:

    La columna personal como un gnero que secaracteriza por ser un gueto privilegiado delperiodismo impreso, concedido como cheque enblanco a un escritor de indudable prestigio para queescriba de lo que quiera y como quiera, con lacondicin de que no se extralimite del nmero depalabras previamente acordado, y de que respaldecon su firma las genialidades o las tonteras quedecida exponer en cada uno de sus textos. Sontrabajos que en muchas ocasiones resultan msliteratura que periodismo, y que estn en el lmiteentre los textos de opinin y la creacin literaria.30

    A manuteno de uma coluna de opinio em um peridico que, naquele

    momento, era o segundo maior jornal do pas, alcanando a tiragem de 65 milexemplares dirios,31 representou uma atividade de fundamental importncia na

    trajetria jornalstica de Garca Mrquez, em particular no que se refere a sua

    condio de cronista. Manter o ritmo nessa rotina de conceber, realizar e redigir um

    texto que, ao mesmo tempo precisava estabelecer uma cronologia e tambm se

    reportar a algum assunto em voga, tudo alinhavado por uma linguagem nada

    informativa, ao contrrio, mais sedutora e cativante requeria de Garca Mrquez

    um congraamento de fatores que envolviam alm de talento, perspiccia e fluidez

    de pensamento e de escrita. Levando-se em conta que ele dispunha de pouco

    tempo para faz-lo, pois tinha que responder por outras funes no jornal, como a

    de titulador e editor de determinadas pginas ou sees (editorias), que s poderiam

    ser realizadas em uma faixa horria limitada, no chamado fechamento da edio, a

    redao de suas Jirafasveio, acima de tudo, adequar o ritmo escritura.

    Nessa nova e intensa rotina de trabalho, outros fatores somaram-se de

    forma positiva ao processo de sua evoluo jornalstica. O fato de Garca Mrquezintegrar uma redao em que a maioria de redatores e colaboradores era composta

    hecho que gozara del beneficio especial de poder publicar en El Universal sus notas sobre el reinado In:ARANGO, Gustavo. Op. cit. p. 160-1.Sobre o motivo da escolha de Garca Mrquez por este pseudnimo complementa Arango: poderia nos levar aintuir alguma faceta de sua personalidade. Septimus um complexo personagem, um ser que sabia o significadodo mundo.Idem. p. 162.30SANTAMARA SUREZ, Luisa. El comentario periodstico. Los gneros persuasivos. Madrid: Paraninfo,1990. p. 122.

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    por intelectuais e escritores liberais progressistas acabou transformando-se em um

    duplo convvio, dentro e fora da redao, experincia similar quela vivida junto ao

    grupo de Cartagena, que o aproximou de outro grupo, o de Barranquilla,32 ao se

    identificar perfeitamente com os interesses comuns dos componentes: a amizade, a

    paixo pela cidade, a literatura e o jornalismo.

    Permeando esse conjunto de fatores, uma qualidade essencial ao jornalista

    fazia-se presente: manter-se bem informado, o que no significava, no caso de

    Garca Mrquez, somente a leitura de teletipos, telegramas, publicaes da

    Colmbia e estrangeiras, mas tambm a inteirao dos acontecimentos nos diversos

    setores da sociedade local e nacional. Em outras palavras, estar continuamente em

    contato com as fontes da notcia, item que Garca Mrquez pde aprimorar junto aos

    companheiros do jornal, pois boa parte da redao de El Heraldo era de pessoasligadas poltica e s manifestaes artsticas e culturais da cidade e do pas.33A

    inteirao dessas atividades contribuiu de maneira decisiva para o perodo, que

    haba de ser de intensa actividad periodstica y de gran fervor intelectual y literario,

    segundo Gilard.34

    Boa parte dessa efervescncia, a qual faz referncia Gilard, deveu-se

    compreenso de Garca Mrquez, que mesmo sendo um jovem redator, segundo

    Cobo Borda, j tinha conseguido afinar seus instrumentos de captao, no sentido

    de entender que no somente la parranda en los burdeles, la charla en el caf, el

    31SALDVAR, Dasso.Op. cit. p. 261.32 Barranquilla e Cartagena tiveram, cada uma a seu estilo, uma vida cultural intensa nesse perodo. Asdiferenas existiram e permanecem, desde a conformidade geogrfica de cada uma Cartagena, cidade colonial, beira do mar do Caribe, voltada mais para o turismo; Barranquilla, cidade porturia, localizada margemocidental do rio Magdalena, continua sendo uma das mais povoadas da regio do Caribe um grande centrocomercial e industrial , passando pela linha de atuao intelectual e chegando at a produo literria. No casode Garca Mrquez, estudiosos de sua obra como o professor Jacques Gilard defendem a idia da superioridadedo ambiente cultural de Barranquilla em relao ao de Cartagena quanto influncia na obra jornalstica do

    escritor. Tal hierarquia negada por Garcia Usta, autor do ensaio Garca Mrquez.El Perodo de Cartagena:Desmistificacin de una gnesis periodstica y literaria (Universidad de Cartagena, 1993), no qual afirma: Seofreca, por el contrario, la idea que ambos grupos y ambos perodos, estrechamente vinculados, hacen parte deuna tradicin valiosa reconquistable. Usta no concorda com a afirmao de Gilard de que tenha havido acontraposio de una Barranquilla comercial, dinmica, abierta y vanguardista, liderada por intelectualesrenovadores y progresistas, a una Cartagena feudalista, aristocrtica, encerrada y esttica, dominada, sin fisuras,

    por intelectuales retrgrados y coloniales. In: USTA, Jorge G. Cmoaprendi a escribir Garca Mrquez. Op.cit. p. 204-5.33Os integrantes do Grupo de Barranquilla e colegas de redao de Garca Mrquez: lvaro Cepeda Samudio,Germn Vargas, Alfonso Fuenmayor e Alejandro Obregn, Jos Flix Fuenmayor e Ramn Vinyes, o sbiocatalo de Cem anos de solido. In: SALDVAR. Dasso. Op. cit. p. 198.34GILARD, Jacques. Op.cit. p. 27.

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    trabajo en las redacciones de peridicos, las historias familiares",35 mas

    principalmente o trabalho de escrever e reescrever, acompanhado de horas sem fim

    de leitura dos clssicos de literatura em prosa e poesia, o levariam a um lugar muito

    definido em uma redao de jornal ou s pginas de um livro. O cronista j tinha

    vindo luz. O que permite afirmar que as Jirafas, sob o mbito da prtica jornalstica

    e do universo literrio, configuravam-se em textos que fogem aos limites de gnero,

    porque j entrecruzavam os elementos do jornalismo e da literatura.

    1.2. Uma Crnica vista

    No mesmo ano de 1950, o Grupo de Barranquilla criou o semanrio Crnica,

    cuja edio de nmero 1 foi publicada em 29 de abril e manteve-se por 14 meses,

    at 28 de junho de 1951, sob a direo de Alfonso Fuenmayor. Garca Mrquezocupava o cargo de redator-chefe sem, contudo, desvencilhar-se de outras

    responsabilidades, como descreveu Gilard:

    Se dedicaba a traducir (del francs) o a condensarcuentos policiales extranjeros, hacia algunosdibujos para ilustrar artculos de tipo magazine(generalmente pirateados en revistasnorteamericanas, y algunas veces en publicacioneseuropeas), y se encargaba del armado del

    semanario.36

    Crnica era uma publicao de carter hbrido, o que justificava a

    possibilidade de o leitor encontrar um variado conjunto de assuntos sob diferentes

    estilos de textos, como observou Saldvar:

    El hecho de ser un semanario deportivo y literario ala vez, delata la coherente filosofa del grupo dequitarle la seriedad a la vida ... Creada en un

    momento de gran auge del ftbol en Colombia, larevista, de presentacin modesta y esforzada,pretendi utilizar el deporte como anzuelo comercialpara hacer y difundir lo que realmente lesinteresaba: el periodismo y la literatura. De talmanera que los lectores podran toparse, al final deun reportaje sobre los alcantarillados de la ciudad o

    35COBO BORDA, Juan Gustavo. Silva, Arciniegas,Mutis y Garca Mrquez y otros escritores colombianos.Bogot: Biblioteca Familiar Presidencia de la Repblica, Temas de Hoy, 1997. p. 368.36GILARD, Jacques.Op. cit. p. 29.

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    de una entrevista a uno de sus dolos deportivos,con una cosa tan seria como un cuento de Kafka,Saroyan, Borges, Hemingway, Cortzar, FelisbertoHernndez o el propio Garca Mrquez.37

    Foi o carter hbrido do semanrio que aproximou o colunista Garca

    Mrquez da reportagem, um de seus anseios explcitos desde o comeo da carreira:Mi sueo era ser reportero desde los primeros pasos en la costa;38 inteno que

    tem sido freqentemente citada pelo escritor: Es lo nico que querra volver a ser.

    Mi gran nostalgia es no ser reportero.39 O resultado de uma dessas incurses

    iniciais na reportagem de Crnica foi o longo perfil de um jogador de futebol,

    Berascoechea, de origem basca, publicado com o ttulo El deportista mejor

    vestido.40

    Tambm as funes de editor puderam ser aprimoradas nessa temporada

    de Garca Mrquez em Crnica, tarefa que reforou sua habilidade em dar um

    acabamento final ao texto e uma unidade editorial publicao, o que inclua um

    tratamento grfico. A edio dos textos atendia a dois elementos fundamentais ao

    texto jornalstico, como confirma Luisa Santamara:

    La claridad, como condicin necesaria para lograr lacomprensibilidad del texto por parte de la mayora delos lectores, tanto desde el punto de vista de lasideas expuestas, como la forma en que se plasman yla esttica, como virtud de la belleza de expresin,que no debe afectar negativamente a la claridad.41

    37SALDVAR, Dasso. Garca Mrquez. El viaje a la semilla. Madrid: Alfaguara, 1997. p. 246.38GARCA MRQUEZ, G. Op. citp. 519.39LLOSA, Vargas. Op. cit. p. 30.40 Os temas esportivos no eram os prediletos de Garca Mrquez, porm estiveram em vrios artigos dos

    primeiros nmeros de Crnicacomo forma de atrair os leitores, segundo confirma Saldvar (p. 218). Estratgiacomercial que no se manteve nas 58 edies do semanrio que oferecia, sobretudo, espao aos assuntosliterrios, dando oportunidade a escritores conhecidos ou no, o que no garantia material suficiente para todasas edies, submetendo o diretor de redao a um constante exerccio de improvisao na hora do fechamento,necessidade que obrigou Garca Mrquez a escrever a toque de caixa contos como De cmo Natanael hace unavisitae Ojos de perro azul. In: GARCA MRQUEZ, G. Vivir para contarla,Op. cit. p. 444.Sobre Crnica, o escritor distanciado do esprito de modstia(grifo meu) afirmou que a publicao representouum avano no s para a escalada jornalstica do grupo, mas para o jornalismo colombiano: Sin embargo,medio siglo despus, tengo la impresin de que la revista fue un acontecimiento importante del periodismonacional. In: GARCA MRQUEZ, G. Op. cit. p. 444.41 SANTAMARA SUREZ, Luisa. Op. Cit. p. 97. In: Revista Latina de Comunicacin Social. La Laguna(Tenerife), ao 7, n 58. julio-diciembre de 2004. http://www.ull.es/publicaciones/latina/20041858yanes.htm

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    Logo aps o fechamento de Crnica, o mesmo grupo envolveu-se com outro

    projeto, um tablide dirio de oito pginas que circulou de 18 a 23 de setembro de

    1951. A publicao alternativa tinha tiragem de 500 exemplares, distribudos

    gratuitamente por algumas das principais ruas de Cartagena pela reduzida equipe

    responsvel por seu contedo editorial, da qual Garca Mrquez era o diretor de

    redao. O grupo batizou a publicao de o menor jornal do mundo, pois no eram

    necessrios mais de 60 minutos para concluir cada edio,42y que, como muestra

    evidente de su voluntad de ser parco, se llamaba Comprimido.43A proposta editorial

    do pequeno jornal era produzir um novo tipo de jornalismo, em que a brevidade das

    notcias se vinculava atualidade moderna.44

    1.3. Cartagena: um retorno inteligente

    Frente aos resultados editoriais e comerciais nada satisfatrios de Crnica,

    Garca Mrquez decidiu retornar a Cartagena e retomar as atividades em El

    Universal. Seguiu, porm, colaborando com o jornal de Barranquilla, El Heraldo,

    durante os primeiros seis meses de 1951. Em ambos permaneceu no anonimato, o

    que novamente deixou muitas de suas produes sem assinatura. No final desse

    ano, uma parada, resultante do cansao e da insatisfao com a rotina profissional,

    afastou-o da redao e aproximou-o do interior colombiano, mais precisamente das

    regies de Valledupar e La Guajira, na aventurosa experincia de vendedor

    ambulante de livros, talvez um pretexto para colocar em prtica o antigo plano de

    realizar uma espcie de pesquisa antropolgica naquela parte do pas, onde sua

    famlia j havia morado.45

    42Idem. p. 479.43CEBRIN, Jose L.Retrato de Gabriel Garca Mrquez. Barcelona: Crculo de Lectores, 1989. p. 37.44Jacques Gilard encontrou em suas pesquisas duas notas annimas, uma provavelmente de autoria de ClementeManuel Zabala, publicada no dia 19 de setembro de 1951 na seo Comentrios: Se trata de Comprimido, que

    circular todas las tardes y cuyos redactores se han propuesto hacer con l un novedoso tipo de periodismo, en elcual las noticias tendrn la brevedad y la elocuencia de una pldora cargada de la ms interesante actualidad. E,outra talvez atribuda a Garca Mrquez: Comprimidono es el peridico ms pequeo del mundo, pero aspiraserlo con la misma laboriosa tenacidad con que os otros aspiran a ser los ms grandes. In: GILARD, Jacques.Prlogo. Op. cit. p. 33. Entre as sees de Comprimido figuravam Hospital amoroso, uma espcie de caixa

    postal sentimental,Hemos ledo, comentrios sobre poltica,RAINde El Sigloe Confites internacionales, notascurtas a partir de telegramas internacionais, os comprimidos. In: USTA, Jorge G. Op. cit. p. 63-4.45Um dos primeiros pontos de parada em dezembro daquele ano foi o municpio de Santa Marta, a capital dodepartamento de Magdalena, onde esto localizados os municpios de Aracataca (local de nascimento de GarcaMrquez) e Cinaga, na regio da chamada Zona Bananeira, local one ocorreu o massacre dos trabalhadores em1928, fato retomado pelo escritor em Cem anos de solido, ou seja, trata-se de uma regio colombianadiretamente ligada ao passado da famlia do escritor como detalhou Saldvar. In: SALDVAR, Dasso. Op. cit. p.

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    O retorno do circuito interiorano em 8 de fevereiro de 1952 levou-o outra vez

    para as pginas de El Heraldo, sob a persistncia de Septimus. Esta segunda fase

    de Garca Mrquez no peridico de Barranquilla foi notadamente menos fecunda

    que a primeira, como apontou Gilard. Assim, de fevereiro a dezembro desse ano, o

    colunista, que chegava a enviar de 20 a 25 colunas por ms, baixou o nmero de

    suas colaboraes para dez.46 Em contrapartida, trazia na bagagem o desejo

    sempre adiado de escrever reportagens, como recordou Saldvar,47referindo-se s

    informaes e vivncias obtidas nessa excurso pelo interior, e notcia do

    assassinato do amigo Cayetano Gentile Chimento, ocorrido em 22 de janeiro de

    1951 na cidade colombiana de Sucre.48

    A pedido especial da me de Garca Mrquez, Lusa Santiaga MrquezIguarn, a morte de Cayetano ficou arquivada por quase 30 anos. At que, no final

    de 1978, o escritor retomou o fato a partir de notcias do paradeiro daquela que seria

    a viva de Gentile, personagem que no livro ganhou o nome de Angela Vicario. Essa

    investida ao tema requisitou de Garca Mrquez uma incurso jornalstica, o que

    juntamente com sua capacidade extraordinria de narrador, que no incio dos anos

    80 j havia se configurado como definitiva deu origem ao romance, a respeito do

    qual o escritor colombiano assim se refere: Por primera vez consegu una

    confluencia perfecta entre el periodismo y la literatura, por eso se llama Crnica de

    una muerte anunciada.49

    O afastamento temporrio da redao nesse momento no evidenciou

    prejuzos para o desenvolvimento do fazer jornalstico de Garca Mrquez, muito

    embora tenha provocado no escritor algumas reflexes que, trinta anos depois,

    252. Rafael Escalona, o compositor de vallenatose o romancista e mdico Manuel Zapata Olivella foram osguias de Garca Mrquez nesse trajeto que incluiu Valledupar, Villanueva, La Paz, San Juan del Cesar,Barrancas, Fonseca e Manaure.46A afirmao de Saldvar (p. 251) confirmada por Gilard (p. 34): Es relativamente bajo el promedio mensualde Jirafas que aparecen a partir de febrero de 1952. Essa participao se encerra, como prosseguiu Gilard (p.35), com o texto entitulado El invierno, publicado no nmero especial de Natal do jornal. Mais tarde essemesmo texto seria publicado com o ttulo de Monlogo de Isabel viendo llover en Macondo, na revistaMito, deBogot, acrescentou Gilard. In: GILARD, Jacques. Prlogo. In Op. cit. p. 35.47SALDVAR, Dasso. Op. cit. p. 245.48 O fato foi matria-prima para que Garca Mrquez publicasse, trinta anos depois, Crnica de una muerteanunciada, obra que tem na essncia jornalstica, especialmente na reportagem, seu eixo principal.

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    apareceram em suas memrias: La Jirafaen realidad haba cumplido su misin de

    imponerme una carpintera diaria para aprender a escribir desde cero, con la

    tenacidad y la pretensin encarnizada de ser un escritor distinto.50Havia evidncias

    de que sua produo em textos para jornal seguia privilegiada, como enfatizou

    Gilard. Um dos motivos era sua extrema dedicao no s na condio de colunista

    o que lhe permitia usar e abusar da ironia e do humor por exemplo , mas tambm

    pelo contato dirio com um variado leque de assuntos, graas leitura e edio de

    telegramas vindos das agncias noticiosas internacionais. Essa ltima foi uma

    prtica que recebeu de Maryluz Vallejo Meja o seguinte comentrio:

    Ha sido frecuente entre los cronistas de todas laspocas buscar tema en los cables y los teletipos de

    agencia para combatir el sndrome de la mente enblanco. Desde principios de siglo los cronistastomaban en prstamo las noticias ms inslitas parasalir del apuro, y este termin por convertirse en unrecurso nada despreciable, incluso para escritoresde imaginacin desbordante como el joven GarcaMrquez, que resolva muchas de sus Jirafas conlas noticias ms inslitas de las agenciasinternacionales.51

    Somaram-se a esses fatores as imerses literrias de Garca Mrquez, que

    ganharam assiduidade nesse perodo especialmente por conta da convivncia com

    o Grupo de Barranquilla. Tais avanos so confirmados por Usta, ao declarar que

    Garca Mrquez j era nesse momento un escritor en ascenso que ha encontrado

    en el taller de Zabala soluciones verbales eficaces: construcciones giles y

    contrastantes, adjetivacin novedosa, humor relativo, bsqueda de lo inslito y

    paradojal, gratuidades ingeniosas,52 o que confirma a idia de que o jornalismo

    passou a se efetivar como laboratrio de sua escritura.

    49Depoimento que aparece na resenha de Adelaida Lpez de Martnez sobre o livro, publicada em Chasqu, vol.X, nmeros 2 e 3 (febrero-mayo, 1981). p. 72.50GARCA MRQUEZ, G. Op. cit. p. 485.51MEJA, Maryluz Vallejo.La Crnica en Colombia: medio siglo de oro. Santaf de Bogot: Presidencia de laRepblica, 1997. p. 22.52idemp. 485.

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    1.4. Valor izao do esti lo

    Nesse laboratrio, as experincias diversificadas em peridicos colombianos

    at aquele momento colaboravam de maneira significativa para que a produoliterria evolusse,53 o que o prprio escritor reiteraria em um futuro no muito

    distante dos anos 50, ao afirmar que o jornalismo foi o trampolim para a literatura,54

    opinio compartilhada por Gilard, ao ressaltar que nessa poca de tantas Jirafas, em

    que se aperfeiou na tarefa diria de tecer comentrios, com a preferncia nos

    traos fortes mas no grosseiros do humorismo, Garca Mrquez, como jornalista,

    apresentava um fator essencial para o reconhecimento de seus textos, o estilo.

    Garca Mrquez, como periodista y como escritor,es y ha sido siempre un estilista. Pero ello es mssensible que nunca cuando se considera su labor decomentarista de prensa y humorista, en la quemuchas veces se trataba de llenar un espacio, dedecir cosas a veces muchas cosas a propsitode poco o de nada. Entonces, todo vena a ser unacuestin de estilo: de manera de decir las cosas, ytambin de manera de plantearlas, con lo cual seampla bastante la estrecha nocin de estilo. Y conagravante en el caso de Garca Mrquez; su

    ambicin de ser escritor lo llevaba algonarcsicamente a privilegiar ms an la bsquedade planteamientos y expresiones originales.55

    Em concordncia com Gilard quanto ao risco de colocar no conceito de estilo

    uma srie de caractersticas, pois, como afirma Compagnon,56o estilo est longe de

    ser um conceito puro; uma noo complexa, rica, ambgua, mltipla. No sentido

    53Nesse mesmo ano de 1950, Garca Mrquez j havia escritoLa Hojarasca, seu primeiro romance,

    posteriormente publicado em 1955, o que foi confirmado pelo escritor colombiano no seguinte depoimento a

    Daniel Samper Pizano: En 1950, cuando yo estaba em Barranquilla (para ser franco, fue em Cartagena, pero alos cartageneros no los cito porque son cachacos) escribLa Hojarascaen el reverso de unos boletines de aduanaaburridssimos. In: SAMPER PIZANO, Daniel.El novelista Garca Mrquez no volver a escribir.LetrasDominicalesde El Tiempo, Bogot, 22 de diciembre de 1968. Vale destacar que o primeiro captulo deLaHojarasca, sob o ttulo de El invierno, foi publicado no jornalEl Heraldoem 1952.54MARTINEZ, Lopes Adelaida. Op. cit.p. 72.55GILARD, Jacques, Prlogo.In Op. cit. p. 39.56Em vez de ser despojada de suas concepes anteriores, medida que adquiria outras, a palavra acumulou-ase hoje pode comport-las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, tudo isso que queremosdizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos de um estilo. In: COMPAGNON, Antoine. ODemnio da teoria Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 173. (traduo de CleonicePaes Barreto Mouro e Consuelo Fortes Santiago).

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    mais amplo, a esse conjunto de traos que abarcam no somente o conhecimento

    mas a habilidade, a competncia, a experincia de se escrever para um veculo de

    comunicao impresso e dirio como o jornal, entendo que ao conceito de estilo

    preciso agregar o trabalho sobre a linguagem: o lxico, a sintaxe, o processo

    seletivo das notcias e o teor dado a cada uma delas, operaes que atendem s

    especificidades jornalsticas, a saber, o tipo de texto, a seo (editoria) em que ser

    inserido, bem como o seu tamanho e a linha editorial do peridico.

    Mesmo diante da complexidade que comporta o conceito de estilo, pode-se

    dizer que nessa poca de El Heraldoo jovem jornalista j privilegiava a busca por

    questionamentos e expresses originais em suas colunas, ttica que acabou

    encaminhando Garca Mrquez a uma certa obsesso pela manuteno de traos

    marcadamente literrios e poticos, o que, na opinio de Gilard,57

    era fruto dainfluncia propriamente formal del piedracielismo e gerou resultados negativos.

    Diante das evidncias literrias que alcanavam as Jirafas de Garca

    Mrquez entre os anos de 1951 e 1952, como bem observou Gilard, um sintoma j

    estava sinalizado, o de que a notcia passaria a ceder espao para a fico,

    evidncia apontada por Vargas Llosa, que viu nessa possibilidade de valorizao da

    fico o real motivo do abandono de Garca Mrquez pela carreira do Direito. Qu

    lo sedujo en el periodismo: no la pgina editorial sino la labor del reportero que se

    moviliza tras la noticia y, si no la encuentra, la inventa la visin de la realidad

    como una suma de ancdotas.58Essa situao, confirmada nos estudos de Gilard,

    mereceu do professor da Universidade de Toulouse-Le Mirail a seguinte observao:

    Es particularmente llamativa la abundancia de esas notas, tanto en Cartagena como

    en Barranquilla, en las que cuenta detalles y peripecias de sus viajes, aun cuando se

    trate a veces de viajes imaginarios.59

    57Idem. p. 41.Piedracielismoaqui referido uma aluso ao grupo Piedra y Cielo criado nos 30 na Colmbiaetinha como referncias Juan Ramn Jimnez, Rubn Daro e Pablo Neruda. Reunia poetas como Dario Samper,Jorge Rojas, entre outros, que mantinham a proposta literria de revolucionar as formas poticas da poca,enfatizando principalmente o uso das metforas. In: SALDVAR, Dasso. Op. cit. p.137.58LLOSA,Vargas. Op.cit. p. 41.59GILARD, Jacques. Gabriel Garca Mrquez. Textos Costeos. Obra periodstica 1. Op. cit. p. 43.

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    Poderia-se perguntar de que forma essa seduo pelo ficcional efetivou-se

    em Garca Mrquez se at esse perodo o jornalista vinha dedicando sua escritura

    mais intensivamente s colunas, s notas informativas e de opinio e aos editoriais

    do que s reportagens propriamente ditas. Uma das possibilidades para tal

    indagao pode ser creditada ao ato de comunicao que produz o jornalismo,

    fazendo com que o responsvel pela produo do texto transforme o acontecimento

    do mundo natural ou do mundo simblico em acontecimento jornalstico, como

    afirma Rosa Nvea Pedroso.60

    Uma vez seduzido pela fico, o que remonta aos tempos dos primeiros

    contos publicados em El Espectador, a Garca Mrquez restava alimentar a energia

    motriz que movia sua produo jornalstica, a busca de uma narrativa prpria. Para

    tanto, era preciso assumir o posto de narrador, papel que sobretudo avaliza omanejo do ficcional, segundo a viso de Cobo Borda:

    Que un buen narrador es aquel que no nos permitevacilar ni por un instante, arrollados por el podercompacto de su imaginacin. Slo gracias a ella sevuelve persuasiva su capacidad de mentir, deexagerar o fabular.61

    E o porto de ancoragem dessa busca era o redigir de Jirafas, que se

    transformou no laboratrio da pesquisa e, portanto, de aperfeioamento de um estilo

    narrativo, na medida em que testava diariamente o escritor frente a um leque

    totalmente variado de temas, partindo do mais corriqueiro e singular at o complexo,

    o polmico, o censurvel, o intratvel. Tais experimentos acabavam trazendo para

    as pginas de El Heraldotextos com diferentes tons de humor, conceitos, pontos de

    vista, opinies e verses.

    O caminho que essas experincias foram tomando diante de tal panorama

    s fez reforar que os passos iniciais das crnicas j haviam sedimentado e que,

    naquele momento, pouco havia de duvidoso em afirmar que as Jirafasassinadas por

    Septimus eram primas-irms das crnicas. Pois, como se constata na coluna de

    60PEDROSO, Rosa Nvea. Op. cit.

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    opinio, tambm a crnica tem a capacidade polimrfica de incorporar em sua

    estrutura interna diversas vozes, portadoras de sentidos de mundos diferentes,

    segundo afirma Elena Palacios.62

    1.5. Valledupar: viagem ao centro da histria

    Como tem sido reiterado at aqui, o jornalismo para Garca Mrquez nestes

    nos ltimos cinqenta anos tem-se mostrado como um espao experimental de sua

    escritura, concedendo portanto abertura a outras formas de exercit-lo. Uma

    alternativa dessa prtica foi a reportagem, que serviu de subsdio, bastante

    promissor como enfatizou Gilard, para a Jirafado dia 15 de maro de 1952. Tentarei

    demonstrar essas relaes a partir do texto Algo que se parece a un milagro,63em

    que a contribuio do gnero reportagem teve reflexos imediatos no aspecto

    narrativo, a ponto de deixar o texto dinmico, menos reflexivo e imvel, como

    apontou Saldvar.64

    Nesta Jirafa, Garca Mrquez evidencia a capacidade de contar bem uma

    histria, ou narr-la, como prefere Lancelotti ao advertir que narrar, do latim refero,

    remete a voltar para trs,65 admitindo portanto a participao do passado. Tal

    qualidade, que o escritor colombiano j trazia desde cedo, ficou registrada empublicaes escolares como a revista Juventud.66Acrescenta-se ento a importncia

    da reportagem para a construo do texto, prtica jornalstica que proporcionou ao

    cronista no somente a coleta de informaes, mas tambm impresses, sensaes

    61COBO BORDA, Juan Gustavo. Op. cit.p. 373.62 PALACIOS, Elena. Mario Vargas Llosa, escritor: Nunca he escrito un artculo buscando polmicas. In:Revista Mexicana de Comunicacin. www.geocities.com/Paris/2102/vista28.html, 200163 A passagem de Garca Mrquez por La Paz em companhia do msico e compositor de vallenatos RafaelEscalona e do mdico e escritor Manuel Zapata Olivella est minuciosamente registrada em suas memrias,

    Vivir para contarla (pp. 492-3). Grande parte deste relato manteve-se idntica ao que foi publicado en ElHeraldo, que por sua vez consta do primeiro volume de Obras periodsticas de Gabriel Garca Mrquez. TextosCosteos(pp. 572-3). Este trecho a que fao referncia no aparece na edio de 1952.64SALDVAR, Dasso. Op. cit. p. 247.65 LANCELOTTI, Mario, A. De Poe a Kafka para una teoria del cuento. 3. ed. Buenos Aires: EditorialUniversitaria de Buenos Aires, 1965. p. 7.66A referncia se remete produo literria de Garca Mrquez, poemas e crnicas publicados durante osdois primeiros anos do curso ginasial no colgio San Jose, na cidade de Zipaquir sob os sugestivos ttulos deCrnicas de la Segunda Divisin, Instantneas de la Segunda Divisin, Desde un rincn de la Segunda eBobadas mas, com as diferentes assinaturas de Capito Aranha, Gabito e Gabriel Garca. Al calor de la revistadel colegio y del ambiente intelectual y literario propiciado por los jesutas, escribi sus primeras prosas y

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    e emoes, matria-prima suficiente para nutrir o texto de elementos informativos e,

    igualmente, enriquec-lo no tocante estrutura narrativa.

    Movido pela curiosidade, que a energia motriz do jornalismo, Garca

    Mrquez foi conferir de perto o que tinha acontecido naquela zona rural, em que as

    aes das foras militares do governo interino de Roberto Urdaneta Arbelez (1951-

    53) faziam vtimas entre os camponeses.Embora no hajapreciso cronolgica, a

    referncia pode ser ao incio do que mais tarde se consagrou como os conflitos de

    Llano e El Davis.67O cronista nos esclarece:

    Hace alguns das, hubiera encontrado consecuenciade ciertos episodios amargos ocurridos hace ms deun mes, y de los cuales dio cuenta la prensa de todoel pas en su oportunidad.

    Tambmuma necessidade afetiva de reconhecer a regio em que a famlia

    tinha vivido no comeo dos anos 20 fez com que Garca Mrquez trocasse a

    redao do jornal El Heraldoe se dedicasse a recorrer povoados entre a regio do

    rio Magdalena e Valledupar, em pleno Caribe colombiano, necessidade que se

    somou a uma terceira, mais emergente, a de conseguir melhores ganhos. A

    expectativa estava nos lucros com a venda de livros e enciclopdias.68 A esse

    conjunto de possibilidades, acrescenta-se uma quarta inteno: melhor conhecer asdiversidades culturais de seu pas. Isso pode ser comprovado pelos aspectos

    descritivos que essa crnica apresenta:

    La Paz, como su nombre lo indica es un pueblode gente humilde y pacfica, un centro deagricultores al cual es preciso ir si se deseaescuchar al pie de la vaca, como quien dice lamsica vallenata en su estado original.

    versos: slo pretendan ser humoradas, con sus condiscpulos y criticaba el ambiente monacal del colegio,afirma Saldvar. In: SALDVAR Op. cit. p. 118-20.67En la historia militar de Colombia contempornea se ha presentado como forma de lucha armadarevolucionaria, a guerra de guerrillas, en donde se logr el establecimiento de rganos de poder como en el

    periodo comprendido entre 1948 a 1953 con las guerrillas del Llano y el Davis (Tolima, 1952) que implantarongobiernos o juntas provisionales que duraron corto tiempo. In:Los pueblos son las vctimas del Terrorismo deEstado de los Gobiernos Capitalistas. Comisin Internacional de las FARC. In:http://www.farcep.org/documentos/docs/victimas1803.htm68Segundo Saldvar, a tarefa de Garca Mrquez era convencer os habitantes desses povoados a adquirir losdiez tomos del Diccionario Enciclopdico UTEHA, como uma gran panacea a sus lagunas culturales. In:SALDVAR, Op. cit. p. 287.

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    A citao da msica vallenata j delineava as pistas de uma das bandeiras

    que Garca Mrquez sustentaria em sua obra, a questo de agregar um valor

    literrio a letras desse tipo de cancioneiro popular, cujo ritmo marcado pelo

    acordeom. A disposio de trazer elementos do folclore para sua produo literria

    ou jornalstica, em particular esse gnero musical que tem em Rafael Escalona um

    nome de destaque, recebeu do crtico ngel Rama as seguintes observaes:

    Y la importancia literaria de la poesa (usemos lapalabra) de Rafael Escalona es consecuencia de unproceso valorativo. Garca Mrquez opera elesfuerzo de determinar que este material es unmaterial literario. Es la historia del contar popular,del contar folclrico, del contar incesante que hacenlos hombres para construir literatura dentro de lacual vivir. Porque es exactamente como decir quealguien es capaz de vivir fuera del aire. No hayposibilidad. Se vive dentro de la literatura. Y estaliteratura no tiene por qu ser fatalmente la de lostextos, pero es muy frecuentemente la queacompaa nuestra existencia y la que determinanuestros valores.69

    No texto, a msica o elemento capaz de traduzir a reao dos moradores

    de La Paz frente ao estado de choque em que se encontravam, conseqncia da

    catstrofe que deixou 25 casas incendiadas e duas pessoas mortas. O retorno

    prtica dessa manifestao artstica popular pelos habitantes do lugar trouxe-lhes de

    volta a voz e, em sentido metafrico, a vontade de viver. Afinal, cantar e tocar um

    instrumento no caso, o acordeom eram habilidades naturais daquela gente

    humilde e pacfica, habilidades presentes em sua gnese.

    Pero mucho menos podra decir cuntas sabencantar los aires folklricos, que all nacen y crecencon la fecundidad tan prodigiosa como la velocidadcon que se olvidan para abrirle espacio a los nuevos

    69RAMA, ngel.La narrativa de Gabriel Garca Mrquez. Edificacin de un arte nacional y popular. Bogot:Cuadernos de Colcultura, nmero 1, 1991. verso on-line disponvel em:http://www.javeriana.edu.co/Facultades/C_Sociales/Facultad/sociales_virtual/publicaciones/novelacol/contenido/bibliograf/rama.htm

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    cantos, porque en La Paz todo el mundo canta, denacimiento, en cualquier parte y a cualquier hora.70

    Paradoxalmente, La Paz amargava uma outra gnese, a da violncia. Mas,

    para essa, os moradores do vilarejo no tinham conseguido outra sada que no o

    silncio ensimesmado, fruto de uma mistura de revolta e tristeza. Tanto que o pice

    do relato se apresenta quando o irmo de Juan Lpez, o acordeonista mais

    conhecido do lugar, Pablo Lpez, voltou a tocar depois do pedido insistente do

    cronista, o que custou ao msico algum tempo de hesitao. O resultado veio horas

    depois, quando Pablo Lpez, acompanhado apenas de seu acordeom, dirigiu-se

    pequena praa do lugar e comeou a dedilhar os primeiros hits. Pouco a pouco, o

    msico foi ganhando acompanhantes, que se juntaram ao coro de vozes e aos

    passos animados de um baile que acabou se estendendo at a madrugada.

    Y pas lo que tena que pasar. Pas que PabloLpez toc como nunca en su vida Y luegocantaron todos los que fueron llegando. Y cantaronlas mujeres. Y ya a la medianoche, cuando dejamosa Pablo Lpez, inclinado an sobre su acorden,nos encontramos de repente en un pueblocompletamente distinto.

    A relevncia do efeito da msica sobre os moradores desse povoado

    colombiano recebeu de Sims uma anlise detalhada, sob o ngulo da relaotempo-espao baseada nos conceitos tericos de Mikhail Bakhtin. Sims afirma que

    para Garca Mrquez La Paz si es un lugarejo remoto y desconocido, pero para

    Gabriel Mrquez se destaca porque las fuerzas del mundo oficial, en este caso la ley

    marcial, no han podido silenciar un elemento esencial del espacio carnavalesco, la

    msica.71 A atitude-resposta responsvel pelo rompimento do estado melanclico

    em que se encontrava o povoado obteve de Gilard as seguintes ponderaes:

    Algo que se parece a un milagropone en escena lamanifestacin de una inconformidad colectiva, larebelda de un pueblo que no se desalienta ante laViolencia ... Si un pueblo puede pasar de laresignacin al optimismo, es que una redencin es

    70Algo que se parece a un milagro in GARCA MRQUEZ, G. Textos costeos. Obra periodstica I 1948-1952.Barcelona: Mondadori, 1991. p. 572-3.71SIMS, Robert L. El laboratorio periodstico de Garca Mrquez: Lo carnavalesco y la creacin del espacionovelistico. In: Revista Iberoamericana. Octubre-Diciembre, n 137. Vol. LII. p. 988.

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    posible gracias a la misma voluntad de los hombresy tiene que existir la historia. No es ms que untexto, breve adems, pero al par que nos recuerdaque la actitud personal de Garca Mrquez es derechazo a la realidad dominante de Colombia,tambin nos demuestra que otro momento de laobra de ficcin haba empezado a germinar.72

    A observao de Gilard confirma a presena no texto de outra das marcas

    literrias e polticas de Garca Mrquez, o seu posicionamento ideolgico. Quatro

    anos depois de seu incio de carreira jornalstica, o enfoque de seus textos

    jornalstico-literrios j estava ajustado para esse vis poltico, que como tratar o

    segundo captulo deste trabalho o que melhor permeia a sua relao com o

    pblico. Sob esse mesmo vis, Garca Mrquez trouxe para essa Jirafa informaes

    sobre a situao de regies no interior da Colmbia que sofriam com os embatesentre as guerrilhas e o governo, dados que no aparecem explicitadamente nesta

    crnica, mas so retomados por Garca Mrquez em Vivir para contarla:

    Llegamos al atardecer, y algo haba en el aire queimpeda respirar. Zapata y Escalona me recordaronque apenas veinte das antes el pueblo haba sidovctima de un asalto de la polica que sembraba elterror en la regin para imponer la voluntad oficial.Fue una noche de horror. Mataron sin

    discriminacin, y les prendieron fuego a quincecasas. Por la censura frrea no habamos conocidola verdad. Sin embargo, tampoco entonces tuve laoportunidad de imaginarlo.73

    Neste caso, a literatura foi a responsvel por tais revelaes. Lanando mo

    de recursos e mecanismos literrios como a metfora, Garca Mrquez traa para o

    leitor um retrato em alto-relevo das condies fsicas e psicolgicas em que viviam

    os moradores de La Paz, que an se respiraba all un ambiente de ley marcial,referncia explcita guerra que havia se travado ali, cujas causas e conseqncias

    o jornalista reservou s entrelinhas, muito provavelmente devido a mais uma onda

    de censura que afetava o pas. Esse vis poltico, no entanto, de modo algum

    desviou o texto de sua via principal, a narrativa. A reao dos habitantes do povoado

    72GILARD, Jacques. Gabriel Garca Mrquez. Textos Costeos. Obra periodstica 1. Op. cit. p. 59.

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    tranqilo e acanhando ganhou, na interpretao de Garca Mrquez, forte marca

    literria, o que me leva a entender que j havia uma ao contnua de imbricao

    dos elementos jornalsticos com os literrios, ao que, na opinio de Gilard, pode

    ter ocorrido de forma no-consciente. Garca Mrquez manifest una tendencia a

    cruzar la frontera de los gneros, y quizs de manera cada vez ms inconsciente ...

    Tal vez pela tentacin normal en un narrador de vocacin.74

    As razes que justificam tal proposio so os traos literrios evidentes no

    texto, que se assemelha a um conto, pois apresenta elementos condizentes com

    esse gnero literrio. Trata-se de um relato curto, que se desenvolve em um espao

    fsico, o vilarejo de La Paz, delineado entre a entrada da vila, as ruas, a praa

    principal e o palco, e que mantm uma relao prpria de tempo a partir de um fato

    acontecido. o que Lancelotti chama de temporalidade prpria do conto, ou seja, o

    relato se nutre do que ocorreu no passado,75expresso no primeiro verbo do texto:

    No s si fue una fortuna desde mi punto de vista de simple turista o una

    circunstancia lamentable, desde otro ngulo. Essa marca temporal especfica do

    conto permite ao narrador uma independncia em relao ao tempo de contar a

    histria. Em outras palavras, Garca Mrquez se manteve em um tempo diferente

    daquele em que se desenvolveram as aes entre os personagens. Seguindo o

    conceito de Lancelotti, Garca Mrquez s pde narrar essa histria depois de ela ter

    acontecido, o que explica a ao temporal compreendida entre a situao inicial achegada do cronista ao povoado, provavelmente no comeo do anoitecer e o final

    da ao, nas primeiras horas da madrugada.76H uma ao de personagens que

    circulam em um lugar geogrfico que sempre de mbito restrito, como condiz

    estrutura do conto: Pablo Lpez; vrias mulheres annimas, como aquela que chega

    com o filho na cadeira e a dona do hotel; os annimos moradores; o que toca a

    dulzaina, espcie de clarinete; o que questiona a Pablo o que cantar (Al cabo del

    rato lleg un hombre en un burro y se le dijo: Canta, Sabas. Y el del burro dijo:

    73GARCA MRQUEZ, G. Vivir para contarla. Op.cit.p. 492-3.74GILARD, Jacques. Gabriel Garca Mrquez. Textos Costeos. Obra periodstica 1. Op. cit. p. 43.75LANCELLOTI, Mario. A . Op. cit. p. 7.76 O conto constitui uma frao dramtica, a mais importante e a decisiva, de uma continuidade em que o

    passado e o futuro possuem significado menor ou nulo. In: MOISS, Massaud. A Criao Literria. Prosa. SoPaulo : Melhoramentos, 1979. p. 20-1.

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    Qu canto. Pero lo que Sabas tena era deseos de cantar; y cant77)e aquele que,

    motivado pela alegria, acaba deixando-se embalar por umas doses etlicas extras.

    Por se tratar de uma histria curta, vai direto ao ponto, sem deter-se em

    pormenores secundrios, em que os personagens esto reunidos sob um s

    conflito, constituindo uma unidade dramtica, como afirma Moiss.78H uma tenso

    interna da trama narrativa, o que pode ser compreendido como o tom, a intensidade

    que cada frase ou palavra passa a ocupar na arquitetura do texto at o final, que

    nesse caso foi positivo. Resultado cujo mrito coube aos personagens

    protagonistas, que abandonaram o anonimato e investiram no momento

    privilegiado, como observa Moiss.79

    Da mesma forma, o texto mantm traos jornalsticos, dados que informam o

    leitor como a pequena cidade, onde se encontra localizada, quantas foram vtimas

    da catstrofe, quem so os tocadores de acordeom mais conhecidos, em que

    condies psicolgicas se encontra a populao diante do desastre, de que forma se

    comportam as mulheres do povoado, informaes que uma vez organizadas

    mediante critrios subjetivos do cronista passaro a pr em prtica as funes

    primordiais da atividade jornalstica: informar (opinar e interpretar), educar e entreter,

    como destaca Rosa Nvea Pedroso.80

    Se por um lado, no mbito literrio, Garca Mrquez pode ser classificado

    como o narrador participante desse relato, como confirma Gabriela Mora, deixando

    sua presena visvel81 no mbito do jornalismo, sob a condio de reprter-

    testemunha, ele tambm o faz, assumindo a primeira pessoa. O detalhe dessa

    narrativa que Garca Mrquez aparece como um narrador singular, na primeira

    pessoa, mas com projees coletivas que dizem respeito solidariedade do cronista

    com o acontecido:

    77A referncia ao nome do personagem Sabas, que aparece nessa coluna de 1952, pode ter sido um esboo deum futuro personagem de Garca Mrquez, Don Sabas, o padrinho do filho do coronel protagonista do romanceEl coronel no tiene quien le escriba, publicado em 1961.78MOISS, Massaud Op. cit. p. 21.79

    Idem80PEDROSO, Rosa N. Op. cit.81MORA, Gabriela.En torno al cuento: de la teora general y de su prctica en Hispanoamrica. Madrid: JosPorra Turranzas, 1985. p. 117.

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    No s si fue una fortuna desde mi punto de vistade simple turista o una circunstancia lamentable,desde otro ngulo.

    Por ltimo, un poco antes de las ocho, cuando elsilencio haca suponer que estbamos en el filo dela medianoche, nos decidimos a convencer, porcualquier medio el acordeonista Pablo Lpez.

    Outro trao literrio expressivo e notadamente reconhecvel nesse relato a

    inferncia potica na linguagem de Garca Mrquez, trao, alis, que se constitui em

    uma das marcas mais fortes de sua produo e que aparece em vrios momentos

    do texto:

    Aquel era un pueblo extrao, desconocido, sin una

    sombra humana por sus calles desiertas y unascasas cerradas y oscuras, dentro de las cualesapenas poda orse el profundo latido de los malosrecuerdos.

    Nesse caso, possvel confirmar mais uma vez a ocorrncia do

    entrecruzamento do literrio e do jornalstico, ao se constatar que a linguagem

    jornalstica desempenhou sua funo potica no momento em que recriou a notcia

    captando o seu misterioso encanto, como admite Jorge de S.82

    O uso de um lxico comum, que remete s letras das canes vallenatas,

    portanto populares, concedeu ao texto um forte teor de sentido, aproximando-se

    daquela geografia humana at ento desconhecida para Garca Mrquez. Nesse

    mundo do simples, do rural, do sincero, ou seja, um mundo mais conivente com o

    sentimento, a resposta aos pedidos insistentes de que a msica retornasse cena,

    produziu o efeito do inesperado e, ao mesmo tempo, do miraculoso. Aos olhos do

    cronista, o rompimento do universo corriqueiro e, nesse caso, doloroso pela

    reao dos moradores de La Paz resultou em algo extraordinrio, fora da ordem, e

    que, por isso, pertence a outro universo distinto, o mgico. E foi esse elemento

    surpresa, segundo a denominao de Mora,83 que pontuou o tom do relato,

    sintetizado no ttulo Algo que se parece a un milagro e retomado no encerramento

    82S, Jorge de.A crnica. 5. ed. So Paulo: tica, 1997. p .32.83MORA, Gabriela. Op. cit. p. 118.

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    do texto com outra inesperada manifestao dos habitantes de La Paz,

    representados por uma voz feminina, a proprietria do hotel local, que declarou: Es

    el primer borracho que se ve desde hace un mes.

    O encerramento do texto com uma frase peculiar, carregada por uma pitada

    de humor, obedeceu tambm a um propsito literrio. Embora tenha a marca mpar

    do estilo lingstico de Garca Mrquez, funcionou como fecho desse relato, recurso

    comum estrutura do conto, que segundo Lancelotti es un orbe cerrado y finito.84

    A frase, intencionalmente criada para produzir tal efeito, o do grande desfecho,

    trouxe tambm a sintetizao do ritmo que a narrativa vinha mantendo, ou, como diz

    Mora, ese eje que es la pulsacin del autor al narrar y que transmite al lector.85

    A proximidade com a reportagem, prtica tida por Garca Mrquez como elhada madrina de la cual se nutren todos, gnero que me parece el ms natural y til

    del periodismo,86 que vinha trazendo registros notveis em sua produo

    jornalstica at ento como colunista de El Heraldo, no o impediu de viver mais uma

    experimentao dentro do mundo da imprensa. Uma rpida passagem pelo mais

    novo peridico da Colmbia, El Nacional, fez com que Garca Mrquezassumisse o

    desafio de responder pela edio vespertina do jornal, exercendo o cargo de chefe

    de redao. Em sua nova funo, teve como companheiro o jornalista lvaro

    Cepeda Samudio, encarregado da edio matutina do peridico. Embora bastante

    experiente no comando de uma redao, que se resumia aos trabalhos editorais e

    administrativos, Samudio no conseguiu xito em relao aos problemas de ajustes

    da implantao de um novo maquinrio americano. O resultado, desastroso, veio em

    menos de trs meses, quando ambos deixaram, no final daquele ano de 1953, o

    jornal El Nacional e a cidade de Barranquilla.87 O fato foi recuperado por Garca

    Mrquez anos depois sob a seguinte explicao: Fue una aventura mortal. Los

    pocos nmeros que lograron salir fueron el resultado de un acto heroico, pero nunca

    84LANCELOTTI, Mario A. Op. cit.p. 49.85Idem86GARCA MRQUEZ, G. Sofisma de distraccin. Agosto, 2000. http.///www.revistacambio.com/gabo/87A distribuio da edio vespertina doEl Nacionalrestringia-se cidade de Barranquilla, ao passo que aedio matinal, a cargo do jornalista e amigo de Garca Mrquez, Cepeda Samudio, circulava em toda a costaatlntica colombiana.

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    se supo de quin. A la hora de entrar en prensa las planchas estaban empasteladas.

    Desapareca el material urgente, y los buenos enloquecamos de rabia.88

    1.6. Bogot: a hora e a vez da reportagem

    A reao experincia to contraproducente aconteceu no ms de janeiro

    do ano seguinte, quando o dirio bogotano El Espectador recebeu Garca Mrquez

    novamente, agora como um de seus redatores de primeiro time, diferentemente da

    situao de cinco anos antes, quando o jornal colocou uma de suas pginas

    disposio dos primeiros escritos de um ento annimo e principiante escritor

    colombiano.89

    Era o mesmo peridico que 26 anos mais tarde publicaria, por quatroanos ininterruptos, suas crnicas semanais reunidas em Notas de Prensa 1980-

    1984.

    Integrar a equipe de jornalistas do peridico de Bogot como um redator de

    destaque conferia a Garca Mrquez o privilgio e, ao mesmo tempo, a

    responsabilidade de dividir suas notas annimas da seo Da a dacom os outros

    companheiros de redao: Guillermo Cano, o diretor do jornal; Eduardo Zalamea

    Borda, o subdiretor;90 Jos Salgar, chefe de redao, e Gonzalo Gonzlez,

    duplamente encarregado por notas e Preguntas y respuestas, que, segundo o

    escritor, era a seo mais inteligente e popular do jornal.91No tardou muito para

    que Garca Mrquez voltasse a assinar seus textos, o que aconteceu logo aps a

    publicao de La reina sola,em 18 de fevereiro de 1954, artigo sobre o estado de

    88GARCA MRQUEZ, G. Vivir para contarla,Op. cit. p. 504.89O que recebeu por parte de Garca Mrquez o seguinte comentrio: Entenda que publicaran mis cuentos, porla escasez y la pobreza del gnero en Colombia In: GARCA MRQUEZ, G. Op. cit.p.513.90Eduardo Zalamea Borda, autor do romance Quatro anos a bordo de mim mesmo, respondia pela coluna Laciudad y el mundo, destinada literatura e autores novos, na qual assinava com o pseudnimo de Ulises. Eleacabou provocando, sem saber, no tmido e estreante Garca Mrquez, a deciso de enviar seu trabalho literrio

    para o jornal, passagem assim reproduzida por Garca Mrquez: En el 47 le en El Espectador una notita muycorta que deca El seor fulano de tal nos escribe diciendo que hay unos valores de la literatura colombiana queno aparecen en nuestras pginas. Ele recebeu de Zalamea Borda a seguinte resposta: Yo en realidad noconozco esos valores. De todas las maneras este suplemento est abierto y, si realmente hay alguno, est a lasrdenes de esos jvenes escritores. E o escritor complementou: Le esa publicacin, y como tena La TerceraResignacin, el primer cuento que escrb. Entonces lo met en un sobre con un papelito que deca: Le su notade hoy y ah le mando este cuento, si le parece publquelo, si no, rmpalo. In: GARCA MRQUEZ, G. Notasde Prensa 1980-1984.Op. cit.p. 595.91GARCA MRQUEZ, G. Op. cit. p. 512.

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    extrema solido em que vivia a rainha-me da Inglaterra, Isabel, sobre o qual

    Saldvar fez as seguintes observaes:

    La nota demostraba tambin que el periodismode comentario seguira siendo, como en ElUniversal y El Heraldo, un laboratorio de

    decantacin y de delimitacin de sus temasliterarios: el amor y la muerte, la soledad delpoder, el tiempo primigenio de la circularidad einmovilidad del tiempo, el mundo como aldeaglobal y los largos viajes, y, en medio, latrascendencia definitiva de las minuciascotidianas.92

    A recompensa por tal performance, entretanto, foi mais alm, deu-lhe a

    chance de ser o primeiro crtico de cinema do jornal a seo chamava-se El cineen Bogot. Estrenos de la semana e de assumir em paralelo a condio de

    reprter especial. Mais uma vez a tripla funo de crtico de cinema, reprter e

    redator no comprometeu o seu desempenho. Ao contrrio, os sinais de maturidade

    profissional possibilitaram sua incurso por aquele gnero que o prprio Garca

    Mrquez considerou a estrela do melhor ofcio do mundo, a reportagem.93 Tais

    sinais foram assim interpretados por Gilard:

    De todos modos, y sin que lo viera l conclaridad, en 1952 estaba listo para inaugurar otroaspecto de la inmovilidad del comentario a lavida del reportaje, de la interpretacin de larealidad a su reelaboracin. Se estabaanunciando una evolucin de la actitudperiodstica, literaria y poltica.94

    Tal atitude jornalstica reuniu naquele ano a produo de 75 crticas de

    cinema, cerca de seiscentas notas editoriais, colaboraes para o suplemento

    Magazine Dominical95e oitenta reportagens, entre as quais destacaram-se: Balance

    y reconstruccin de la catstrofe de Antioquia (que retratava as conseqncias de

    92SALDVAR, Dasso. Gabriel Garca Mrquez. El viaje a la semilla. La Biografia. Op . cit. p. 306. O artigoest reproduzido no volume 3 de Gabriel Garca Mrquez.Obra Periodstica Entre cachacos II, com prlogo deJacques Gilard, pp. 851-2.93GARCA MRQUEZ, G. Op. cit. p. 532.94GILARD, Jacques, Prlogo. Op. cit. p. 44.

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    um desmoronamento de terras no povoado de La Media Luna, na regio de

    Medelln), El Choc que Colombia desconoce, De Corea a la realidad (sobre os

    veteranos da guerra da Coria)e El triple campen revela sus secretos (a respeito

    dociclista colombiano Ramn Hoyos Vallejo, publicada em 14 captulos).

    O conjunto de reportagens, que foi se avolumando para esse peridico,

    trouxe para Garca Mrquez a consolidao de dois aspectos em particular: a

    realizao pessoal de efetivar-se como reprter, o que significaria conviver com o

    esprito aventureiro e fora da rotina, e destinar todo o tempo de trabalho realizao

    de grandes reportagens, o que, para Garca Mrquez foi um passo importantssimo

    nessa trajetria de experimentaes da escritura, contribuio assinalada por

    Vargas Llosa, que assim a expressou:

    Que el periodismo fue para Garca Mrquez algoms que una actividad alimenticia, que lo ejerci conalegra e incluso pasin. Es el aspecto aventurerodel periodismo lo que lo entusiasm, pues cuadrabaperfectamente con un rasgo de su personalidad: lafascinacin con los hechos y personajes inusitados,la visin de la realidad como una suma deancdotas.96

    Entre as reportagens, a presena comum do carter de denncia, assim

    como a quantidade e a qualidade das informaes, resultaram em textos construdos

    com uma linguagem mais literria do que propriamente jornalstica, pois misturava

    de forma magistral os dados de toda ordem com palavras de cunho mais potico,

    imprimindo a tais matrias jornalsticas um estilo diferenciado de contar uma histria

    baseada em fatos reais. Esse esmero esttico de que Garca Mrquez lanou mo

    foi igualmente uma sada para que seus textos conseguissem chegar aos leitores

    colombianos em meio ditadura e, conseqentemente, a uma censura implacvel.

    Usando de uma linguagem menos objetiva, em que a escolha de vocabulrio e detempos verbais adequados eram alternativas fundamentais para no ter o texto

    proibido, Garca Mrquez construiu frases e perodos sob um ritmo distinto daquele

    puramente informativo. Tais caractersticas foram imprimindo a esta nova forma de

    95O que incluiu vrios contos e a srie completa deLa Sierpe. In: GARCA MRQUEZ, G.Vivir para contarla.Op cit.p. 525.96LLOSA, Mario Vargas. Garca Mrquez: Historia de um deicidio. Monte vila: Barcelona-Caracas, 1971.

    p.41.

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    produo de textos jornalsticos um trao que viria a ser uma de suas mais

    expressivas marcas, o carter de relato, como observou Saldvar:

    Y es que, en el fondo, los reportajes de GarcaMrquez implicaban un trabajo mucho ms poltico yrevolucionario que el de la mayora de sus

    contemporneos de izquierda, y si sus textoslograban franquear de la censura del rgimen eraporque el escritor, a diferencia de sus camaradas,no haca poltica demaggica y mitinera, ni entrabaen entelequias ideolgicas propias del marxismoesclerotizado de Mosc, sino que se dedicaba ainvestigar, a pensar y a narrar la realidadcolombiana en cada lnea, en cada pgina(utilizando muchas veces los mismos datos que lesuministraban sus amigos del partido).Esencialmente, es lo mismo que hara en suscuentos y novelas, pero de forma traspuesta.97

    Esse carter poltico das reportagens de Garca Mrquez a que se refere

    Saldvar teve um peso determinante para definir, a partir daquele momento, o

    enfoque que daria aos textos. A idia revolucionria de que essas reportagens

    poderiam provocar algum tipo de reflexo entre os leitores, uma aspirao comum

    aos jornalistas, pontuou quase a maioria dessas matrias. Era o intelectual que

    estava vindo tona, no sentido de usar o espao que ocupava perante o pblico

    para perturbar o status quo, como admite Edward Said,98ou seja, levar a pblico as

    questes arquivadas nos armrios oficiais, aspecto que ser abordado no segundo

    captulo. Porm, o foco voltado ao poltica no imunizou Garcia Mrquez quanto

    aos percalos de um reprter em comeo de profisso. Um desses escorreges

    profissionais de investir em temas mais simples e humanos ocorreu quando

    pretendeu encontrar destinatrios extraviados para centenas de cartas abandonadas

    em uma seo do correio de Bogot, ao avistar da janela do nibus a placa

    Refgios do correio. A reportagem foi publicada com o ttulo de El cartero llama mil

    veces El cementerio de las cartas perdidas, a contragosto do chefe de redaoJos Salgar, situao que no alterou sua avaliao quela que considera a

    reportagem mais singela de sua vida.99

    97SALDVAR, Dasso.El viaje a la semi