331
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - DOUTORADO JORNALISMO E LUTA DE CLASSES: DESVENDANDO A IDEOLOGIA DO MODELO INFORMATIVO NA BUSCA DA CONTRA-HEGEMONIA Cátia Corrêa Guimarães RIO DE JANEIRO FEVEREIRO/2015

Jornalismo e luta de classes

  • Upload
    lytruc

  • View
    221

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO - DOUTORADO

JORNALISMO E LUTA DE CLASSES: DESVENDANDO A IDEOLOGIA DO MODELO INFORMATIVO

NA BUSCA DA CONTRA-HEGEMONIA

Cátia Corrêa Guimarães

RIO DE JANEIRO FEVEREIRO/2015

2

CÁTIA CORRÊA GUIMARÃES

JORNALISMO E LUTA DE CLASSES: DESVENDANDO A IDEOLOGIA DO MODELO INFORMATIVO

NA BUSCA DA CONTRA-HEGEMONIA

Tese apresentada à Escola de Serviço Social da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do grau

de doutora em Serviço Social.

ORIENTADOR: PROF. DR. MAURO IASI

RIO DE JANEIRO

FEVEREIRO 2015

3

CÁTIA CORRÊA GUIMARÃES

JORNALISMO E LUTA DE CLASSES: DESVENDANDO A IDEOLOGIA DO MODELO INFORMATIVO

NA BUSCA DA CONTRA-HEGEMONIA

Tese apresentada à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de doutora em

Serviço Social.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Mauro Luís Iasi (Presidente)

Escola de Serviço Social/UFRJ

Prof. Dr. Dênis Roberto Villas Boas de Moraes

Instituto de Arte e Comunicação Social/UFF

Profa. Dra. Virgínia Maria Gomes de Mattos Fontes

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/UFF e

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ

Prof. Dr. Eduardo Granja Coutinho

Escola de Comunicação/UFRJ

Prof. Dr. José Paulo Netto

Escola de Serviço Social/UFRJ

4

Para André,

por Santiago

5

AGRADECIMENTOS

Certo dia escrevi um email a Virgínia Fontes, pedindo o contato de alguém para tratar

do meu futuro projeto de doutorado. Ela respondeu tão prontamente que, na terceira ou quarta

mensagem que trocamos, tomei coragem e, sem aviso prévio, lhe enviei o rascunho do pré-

projeto que eu tinha em mente. Pessoalmente, mal tínhamos trocado algumas palavras: ela

havia acabado de se tornar pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,

da Fiocruz, instituição da qual eu era (e ainda sou) jornalista e eu me aproveitava dessa

proximidade ‘institucional’ para lhe pedir referências. Numa atitude que poderia parecer

surpreendente para quem não conhece de perto a sua generosidade, ela leu aquele texto (que

hoje posso constatar que era horrível) e, quase tão prontamente quanto antes, me respondeu

destacando dois comentários principais: faltava luta de classes no meu trabalho e eu

acreditava demais no Estado. O tempo passou, nos tornamos amigas e ela provavelmente não

se lembra desse episódio. Mas a verdade é que, sem aquelas críticas estruturais, apontadas

rigorosamente antes mesmo de existir um projeto que materializasse minhas intuições de

pesquisa, esta tese não teria sido possível. Tenho tantas coisas a agradecer a você, Virgínia,

(tudo que aprendi, o exemplo militante, e o carinho seguro em momentos difíceis), que achei

mais fácil resumir minha gratidão e, sobretudo, minha admiração contando essa breve

história. Obrigada por tudo.

Depois de receber esse ‘veredito’, li o que pude, usei meus conhecimentos de redação

para esconder o que eu não sabia, escrevi um artigo e fui aprovada. A partir dali, não tinha

ideia do que faria nos próximos quatro anos. Mas logo na primeira disciplina obrigatória, o

famoso ‘minhocão’, esbarrei com José Paulo Netto fazendo uma incrível discussão sobre

método (na ciência). Abriu-se pra mim um mar de interrogações e pistas sobre o caminho das

críticas que eu, quase intuitivamente, apontava em relação ao modo de fazer jornalismo. Suas

aulas, Zé Paulo, naquela última versão da disciplina que você deu antes de se aposentar — e

que por isso invadiram outros horários, se expandiram para dias extras e quase não

terminaram — contribuíram não apenas com o desenvolvimento ‘metodológico’ da pesquisa

como me ajudaram a conformar o argumento, o conteúdo estruturante das sugestões que este

trabalho arrisca a fazer para a construção de um jornalismo contra-hegemônico. Por tudo isso,

pelas sugestões específicas e precisas feitas nas bancas anteriores pelas quais este trabalho

passou e pelo incentivo mais do que confiante, tenho muito a lhe agradecer.

Foi nesse mesmo período, do minhocão, que tomei uma decisão. Com um artigo-projeto

na mão e essas ideias sobre o estudo do método na cabeça, precisei mais uma vez tomar

6

coragem para marcar um encontro e pedir ao disputado professor Mauro Iasi, recém-chegado

ao Rio e ao programa de pós-graduação, que se tornasse meu orientador. Meio peixe fora

d’água, com uma pesquisa sobre jornalismo numa Escola de Serviço Social, eu tinha poucas

esperanças de que ele aceitasse. Mas o fato é que, certamente movido mais pela generosidade

que lhe é característica (sem contar a dificuldade de dizer ‘não’!) do que por empolgação com

aquela proposta, ele disse sim. De pronto, reuniu os orientandos num grupo de estudos sobre

‘ideologia’, que seria o ponto de partida para minha dedicação ao conceito que atravessa e

estrutura todo este trabalho e sem o qual esta tese não faz o menor sentido. Nesses cinco anos,

eu e seus outros 800 alunos e orientandos vimos Mauro falar de Marx dando mamadeira ao

Camilo, comandar greve, engrossar o coro de passeata, ser candidato à presidência da

República e se emocionar lendo poesia. Os erros desta tese são de minha inteira

responsabilidade, mas os acertos sem dúvida têm todos os dedos de um professor e orientador

que é capaz de traduzir até mesmo as dúvidas que nós não conseguimos elaborar. Pela atenção

nos detalhes, pela generosidade no trato e pelo exemplo militante, também não cabem aqui

meus agradecimentos e minha admiração.

Essa condição de jornalista, com toda a formação na área de comunicação, buscando

encontrar espaço num programa de serviço social merece também algum comentário.

Primeiro, porque me surpreendi profundamente em encontrar, nesta Escola, um centro de

atividade militante e pensamento crítico que eu nunca teria podido imaginar. Entre graduação

e mestrado, passei anos neste campus e ainda hoje me admira o quanto, do ‘outro lado’ dessa

Praia Vermelha ninguém tem ideia do que acontece por aqui. Ao acolhimento recebido nesta

Escola devo muitas coisas que conquistei nesses anos, além da tese. Mas esse comentário é

necessário também para que se faça justiça a quem, no campo da comunicação, tem resistido

bravamente. A solidão, de projeto político e referencial teórico, que o campo hegemônico da

comunicação no Brasil tem proporcionado a quem tenta fazer dele ferramenta de uma luta

pela superação dessa sociedade se ameniza em muito com a existência de dois professores,

pesquisadores e militantes que hoje compõem a banca desta tese e servem de conforto —

acadêmico e político — a quem atua nessa área. Dênis de Moraes e Eduardo Granja Coutinho,

obrigada não só pelas contribuições dadas em outros momentos de discussão e avaliação deste

trabalho como, principalmente, pelo exemplo de coerência e coragem.

Muita gente contribuiu diretamente com alguma parte desta tese. Marcela foi de uma

presença discreta mas constante com a disposição de me enviar todos os textos críticos sobre

comunicação que chegavam ao seu conhecimento, e talvez nem saiba que, com tantas boas

7

referências, quase mudei de tema umas três vezes... Foi importante também, pelo menos para

aumentar aquele sentimento de agonia promissora, o final de noite em que, ‘alta’ como

estávamos todos nós, ela fez um discurso me cobrando que a tese não se esgotasse na

discussão teórica e trouxesse também alguma análise concreta. Obrigada, viu? Clarisse foi

igualmente fundamental para que essa tese saísse no prazo quando, aos 48 do segundo tempo,

aceitou traduzir às pressas um resumo que eu tinha escrito aos 45. Fiz tanto drama para pedir

esse favor que ela, assustada com o que de pior poderia vir, achou a tarefa até fácil. Valeu

muitíssimo, querida.

Devo também um sem número de agradecimentos aos meus colegas e companheiros

mais próximos de trabalho, um grupo de pessoas que se tornaram amigas compartilhando o

compromisso tanto com o papel que cabe a uma instituição pública como a Fiocruz quanto

com o bom humor que nos sustenta cotidianamente. Passei os meses finais do doutorado de

licença, tranquila de saber que eles estavam por lá. Volto igualmente tranquila em saber que, a

despeito da chatice que contamina todo o trabalho imposto sob o capitalismo, tenho nas

gargalhadas certas de todo dia, nos chocolates doados ou confiscados, um refúgio e um

aconchego. Aos originais e aos agregados (do ‘puxadinho’ e para além dele), aos que

continuam e aos que aproveitaram esse meu período de ausência para fugir — Marcelo, Zé

Luiz, Solange, Kelly, Talita, Valéria, Maycon, Lisa, Ana Beatriz, Anakeila, Sheila —,

obrigada por tudo. Destaco dessa lista André e Maíra, que continuam por lá, Vivi e Leila, que

nos deixam por agora, Raquel Torres e Raquel Junia, que fugiram há muito mais tempo, todos

jornalistas que embarcaram comigo no projeto de fazer da comunicação pública um caminho

para disputar o Estado pelo lado da classe trabalhadora e que, na construção coletiva dessa

experiência, tornaram-se o exemplo concreto de que eu preciso para acreditar que uma prática

contra-hegemônica é realmente possível.

Por mais que eu tente completar, essa lista de agradecimentos contém uma ausência

incontornável, ‘impreenchível’, um buraco que permanece lá no nosso ‘puxadinho’ e aqui em

mim, uma falta que se apresenta a cada vez que tenho uma grande alegria, angústia ou um

medo. Como em todas as coisas importantes da minha vida, em muitos momentos desta tese

eu quis que você, Anamaria, estivesse aqui. Trocamos muitos emails, acreditamos juntas, à

distância, que enfim estávamos entendendo Marx e nos falamos por telefone sempre que,

numa mensagem escrita, você desconfiou que alguma coisa não ia bem comigo. E a cada uma

dessas vezes foi como se você nunca tivesse ido pra longe. Estenda parte (mas só uma parte!)

dos agradecimentos ao Gabriel, por ter também ajudado a traduzir uma ou outra passagem

8

mais difícil do material em castelhano e a encontrar livros que me foram fundamentais. Mas,

pensando bem, todos esses agradecimentos estão suspensos até você decidir voltar de vez.

Sensação muito parecida, de um longe que é sempre perto, tenho quando penso no

quanto meus pais, Vera e Juarez, merecem o agradecimento por esta tese. Eles não

compraram livros, não debateram teoria e, na maioria das vezes, queriam mais era entender

que tanta coisa nova pra estudar eu arrumava de tempos em tempos. Mas carregam com eles

um orgulho que me move desde sempre. Obrigada por tudo, principalmente, por essa

intimidade que a distância (no espaço, no tempo e nas opções de vida) não abala nunca.

Mas a tarefa de terminar uma tese, no meio da confusão que é a minha vida, requer

também ajudas que só a proximidade (física) permite. Por isso, devo aqui um agradecimento à

Bia e Lelê, as duas meninas, hoje moças feitas, cuja convivência herdei no ‘pacote’ em que

encontrei o amor da minha vida. Nessa fase final da tese, como, de modo geral, ao longo dos

últimos três anos, a vida teria sido impossível sem o cuidado que vocês, generosa e

amorosamente, dedicam ao irmão Santiago, o delicioso turbilhão que invadiu meu doutorado,

a nossa casa, o nosso tempo e a vida de todos nós, pra sempre. Pelo tanto amor que dedicam a

ele, me senti sempre amada mais um pouquinho. Obrigada.

E aí tem o Santiago. Mas o que dizer do que não é dizível? Penso em você a cada novo

ponto final que coloco neste trabalho, na sua saudade, nas suas confissões de que estava triste

porque eu estava trabalhando “o tempo todo”, no seu trauma com a palavra ‘tese’, que virou

sinônimo de qualquer coisa que a gente vem fazer no computador enquanto você brinca

sozinho. Ainda hoje de manhã, quando saía para a creche antes de eu escrever as últimas

linhas desses agradecimentos, você me perguntou: “Mãe, você acabou a tese?”. Respondi que

sim e recebi aquele sorriso, tão seu, de uma felicidade leve e sentida que só as coisas mais

simples podem proporcionar. Essa é a forma como você encerra sua participação nesta tese,

mas ela começou muito antes, com uma mudança tão radical na minha vida que todo o resto

ficou parecendo fora de lugar. Fora de lugar estava eu, acreditando que me dedicaria aos

estudos durante os meses de licença maternidade, sem saber que seu choro, sua boca, sua

fome e sua carência neste mundo me exigiriam inteira, só pra você. Foi (e ainda é) difícil

porque a história da construção desse amor carrega a dureza das transformações profundas,

não tem clichê. E é exatamente por isso que não dá mais pra conceber a vida sem você. Que

dirá esta tese...

Todo esse aprendizado de entrega e reconstrução do que eu fui e sou não teria sido

possível sem você, André. O caráter materialista e dialético do amor, que Santiago escancarou

9

de um jeito que não era mais possível deixar de reconhecer, na verdade começou com você,

com o tanto de vida real que estava presente naquelas noites que passávamos em silêncio,

com os pés encostados no sofá, comentando uma ou outra passagem da leitura que cada um

fazia, e que estava igualmente presente, prenhe das contradições que nos fazem humanos, nas

madrugadas em que nos esbarrávamos insones e cuidávamos um do outro, mesmo sem saber.

Não vou listar todas as contribuições concretas que você deu a esta tese porque sua presença

nela vai muito além das ações objetivas: este trabalho, e tudo que ele representa, é, antes de

tudo, resultado do que encontrei de mim em você; das dúvidas eternas, das certezas solitárias

e da curiosidade arrebatadora que dividimos na vida.

10

Queremos criar, e criá-la-emos, uma

imprensa livre não só no sentido policial,

livre também do jugo do capital, isenta de

arrivismo; e mais ainda — livre do

individualismo anárquico burguês Lenin

11

Resumo

Adotando o conceito de ideologia como expressão das relações de dominação no nível das

ideias, no sentido original de Marx e Engels, este trabalho parte da hipótese de que o caráter

ideológico da imprensa não se encontra apenas no conteúdo por ela veiculado, mas precisa ser

buscado também (e principalmente) no conjunto de princípios, técnicas e orientações éticas

que conformaram o modo de se fazer jornalismo que se legitimou como prática social e

profissional. Esse modelo, que aqui estamos chamando de informativo, tem origens em

meados do século XIX, quando a burguesia antes revolucionária se assenta no poder e assume

como tarefa a contenção da luta de classes. Supõe-se neste estudo, então, que o modelo

informativo de jornalismo é produto do processo que Georgy Lukács nomeou como

“decadência ideológica” da burguesia, um esforço de separação entre o conhecimento e a

atuação política que, no campo da ciência, deu origem ao positivismo e todas as suas

variantes. Defende-se que, no caso do jornalismo, esse movimento resultou num modelo

estruturado sobre uma concepção de objetividade que se confunde com a busca da

neutralidade e uma ideia de atualidade como fragmentação da totalidade social. Supõe-se

ainda que, como expressão da ideologia burguesa, esse modelo se naturalizou para além da

grande imprensa empresarial, tornando-se referência também para as práticas jornalísticas que

se pretendem ‘alternativas’. Para desenvolver esse conjunto de hipóteses, além de uma

abordagem histórica, o trabalho apresenta as principais características desse modelo de

jornalismo informativo a partir de uma análise documental de manuais técnicos publicados

pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). A tese se encerra com a discussão de

caminhos possíveis para a superação desse modelo informativo na direção de uma prática

jornalística construída organicamente pela e para a classe trabalhadora. Para isso, toma como

orientador o conceito de hegemonia, de Antonio Gramsci, e reflete sobre a dialética possível

de um jornalismo voltado para a construção da consciência. Conclui, de modo geral, que mais

do que disputar versões, a batalha das ideias da classe trabalhadora passa pela desconstrução

de um modelo de jornalismo que carrega, na sua própria estrutura, as marcas da ordem social

que o promoveu.

Palavras-chave: jornalismo, ideologia, hegemonia

12

Abstract

Adopting the concept of ideology as an expression of domination relations at the level of

ideas, in the original sense of Marx and Engels, this work assumes the hypothesis that the

ideological character of the press is present not only in the content it delivers, but must be

sought also (and especially) in the set of principles, techniques and ethical guidelines that

shaped the way to do journalism that has been legitimized as a social and professional

practice. This model, which here we call informative, has its origins in the mid-nineteenth

century, when the (before revolutionary) bourgeoisie sits in power and assumes the task of

containing the class struggle. It is assumed in this study, then, that the informative model of

journalism is a product of the process that Georgy Lukacs named as bourgeoisie "ideological

decadence", an effort of separation between knowledge and political action that, in science,

led to positivism and all its variants. It is argued that, in the case of journalism, this movement

resulted in a model that structured itself upon the notion of objectivity, which is intertwined

with a search for neutrality and an idea of the present as the partition of the social totality. It

is also assumed that, as an expression of bourgeois ideology, this model became naturalized

beyond the big business press, making itself a reference to the self proclaimed “alternative”

journalistic practices as well. To develop this set of assumptions this work presents, besides

the historical approach, the main features of this informative journalism model from a review

of technical manuals published by the Inter American Press Association (IAPA). The thesis is

concluded with a discussion of possible ways to overcome this informative model towards a

journalistic practice organically built by and for the working class. To do this, We take as

guide the concept of hegemony by Antonio Gramsci, and reflect on the possible dialectic of a

journalism aimed at building awareness. We conclude, thus, that more than disputing for

different versions, the working class battle of ideas involves the deconstruction of a

journalism model that carries, in its very structure, the marks of the social order which

promoted it.

Key words: journalism, ideology, hegemony

13

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

13

1. JORNALISMO E CAPITAL 1.1. Informação, opinião, esclarecimento e lutas sociais 1.2. Dos EUA para o mundo 1.3. A forma mercadoria: jornalismo e informação no capitalismo monopolista 1.4. Jornalismo informativo: necessidade social ou preferência individual

23 27 43 51 58

2. IDEOLOGIA: DEBATE TEÓRICO 2.1. Alienação e base material da ideologia 2.2. Luta ideológica ou contraideologia?

3. JORNALISMO INFORMATIVO: A FORMA SOCIALMENTE NECESSÁRIA DA IMPRENSA BURGUESA

3.1. O ‘bom’ jornalismo burguês 3.1.1. O que é notícia 3.1.2. Publicidade como informação 3.1.3. A opinião no jornal

3.1.4. Objetividade, neutralidade e imparcialidade 3.1.5. Objetividade, conflitos de interesse e particularismos

3.2. O ‘bom’ jornalismo além da grande imprensa

4. CONTRADIÇÕES INTERNAS À FORMA SOCIALMENTE NECESSÁRIA: JORNALISMO E SUAS ‘DETERMINAÇÕES’

4.1. Objetividade sem imparcialidade 4.2. Atualidade/imediaticidade: a questão do cotidiano

5. JORNALISMO E CONTRA-HEGEMONIA: A DIALÉTICA NO CAMINHO DA CONSCIÊNCIA

5.1. Jornalismo e contra-hegemonia: negando o jornalismo informativo, indo além do jornalismo alternativo 5.1.1. Papel do jornalismo: do ‘pensar por si’ à formação da consciência 5.1.2. Superando o individualismo da forma notícia 5.1.3. A dialética possível do jornalismo 5.1.4. Objetividade e dialética: desvelando a ideologia por dentro 5.1.5. Um jornalismo unitário e coerente

69 81 89 98 109 111 134 140 153 161 169 186 188 198 217 229 232 258 273 287 303

CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

315 324

14

INTRODUÇÃO

É factível pôr conteúdos e visões de mundo favoráveis aos projetos

revolucionários em formas narrativas que foram desenhadas para

perpetuar uma ordem que está contra esses projetos? Adianta ter

jornalistas e trabalhadores culturais de esquerda nos jornais, rádios

ou canais de televisão, e produzir programas e artigos favoráveis à

esquerda para ter meios massivos que respondam às necessidades da

libertação nacional popular? Em outras palavras, adianta inverter os

signos das mensagens para destruir o caráter de classe dos aparatos

de comunicação?(Armand Mattelart, 2010, p. 96-97).

Este é um trabalho sobre jornalismo. Mas não sobre o jornalismo como uma prática

abstrata, tomado sem adjetivos que o insiram nas relações sociais concretas. Trata-se de um

trabalho sobre o jornalismo entendido como ferramenta da luta de classes que move a História

no capitalismo. Por isso, o leitor encontrará nessas páginas um conjunto de expressões e

abordagens que, num primeiro momento, podem parecer estranhas ao campo da comunicação,

tão acomodado, nos tempos recentes, a um confortável debate que se restringe ao âmbito da

cultura e dos discursos, vazio — ou esvaziado — da concretude das relações sociais das quais

os meios de comunicação são, ao mesmo tempo, resultante e ferramenta, carente das

referências teóricas e políticas que tornam possível lutar pela superação dessas relações.

Classe, burguesia, proletariado, socialismo, revolução: todas essas palavras, expulsas do

nosso cotidiano como se assim fossem expulsos também os fenômenos reais que elas

nomeiam, estão presentes neste trabalho, coerentes com a clareza do comunista italiano

Antonio Gramsci quando ele nos ensina que toda linguagem guarda uma certa concepção de

mundo (2004, p. 93).

Assim, o objetivo deste trabalho não é discutir os caminhos para um jornalismo ‘ético’,

que cumpra as promessas, sempre renovadas, de esclarecer os cidadãos e atuar em nome do

interesse geral. Ao contrário: nosso compromisso, teórico e político, é perseguir as trilhas de

uma prática que, assumindo a parcialidade inescapável de uma sociedade cindida, sirva de

instrumento para a superação da ordem vigente, entendendo a emancipação humana, nos

termos de Marx, como a única universalidade possível.

A isso estamos chamando de jornalismo contra-hegemônico, inspirados no conceito de

‘hegemonia’ desenvolvido por Gramsci para nomear uma prática que vise disputar

concepções de mundo e contribuir para um processo de construção de consciência que, para

além da dimensão do conhecimento e do discurso, só se completa como ação prática.

Falamos, então, do jornalismo como prática política militante sem, no entanto, considerar que

15

isso signifique abrir mão das determinações que o caracterizam como jornalismo — e não

como ciência, arte ou mera propaganda.

Esse é o nosso ponto de chegada. Mas o ponto de partida se encontra justamente no

vértice oposto, na investigação minuciosa sobre o jornalismo burguês que, travestido de

prática puramente profissional e portador de uma falsa universalidade conciliadora do

interesse geral, consegue esconder sua identidade de classe. Nosso esforço, no entanto, não

passa por uma análise de conteúdo que denuncie o processo de manipulação da informação

produzida pela grande imprensa. Numa primeira parte deste trabalho, nosso objeto de estudo é

o que estamos chamando de jornalismo informativo, entendido como o modo de ‘fazer jornal’

ou o conjunto de técnicas de identificação e produção da notícia, que, no processo de

profissionalização da imprensa, a partir da metade do século XIX, se consolidou como um

‘modelo’ que traz, em si, a própria definição do que é jornalismo e que, com isso, cria

obstáculos a qualquer iniciativa que se apresente como ‘alternativa’ a esse modelo. Como

problema prático, isso significa que, em geral, as iniciativas de imprensa que buscam fugir à

lógica da grande mídia se esforçam por promover uma mudança de conteúdo, de personagens

e de enfoque dos fatos — muitas vezes numa mera inversão de sinal —, mas sem enfrentar o

modelo e a estrutura sobre a qual esse posicionamento ‘crítico’ está aprisionado; sem,

portanto, questionar (e combater) a linguagem imposta internamente ao jornalismo e os

objetivos naturalizados como limites ao que se reconhece como ‘alternativo’ na comunicação.

A suposição é simples: precisamos reconhecer, a partir das contradições, as

características que, identificadas no jornalismo socialmente existente, respondam (ou possam

responder) também às necessidades dos trabalhadores, geradas historicamente a partir das

lutas que conformaram essa prática ao longo do desenvolvimento do capitalismo. Partimos,

então, do pressuposto de que a ideologia não age no vazio: embora reproduza ideias e valores

que são estruturantes da ordem burguesa, e que portanto se espraiam para todos os âmbitos da

vida social, ela só pode atuar sobre uma prática se conseguir traduzir essas ideias e valores

para a linguagem própria dessa prática, se conseguir se embrenhar nas suas especificidades.

Logo, assumimos que a funcionalidade ideológica se dá sob uma determinada hegemonia,

mas sempre num terreno contraditório, onde se encontram também os elementos que, na

constituição histórica de cada prática, atendem a necessidades sociais mais amplas, que vão

além dos interesses da classe dominante. Essa nos parece a chave que, uma vez desvendada,

pode contribuir para a construção de práticas de jornalismo contra-hegemônico.

16

Mais do que denunciar as ações conscientes da grande imprensa na defesa dos interesses

particulares que ela representa, trata-se, aqui, de buscar um acerto de contas com a esquerda

socialista, com os movimentos sociais, partidos políticos e instituições em geral que, na luta

por uma outra sociedade, identificam a imprensa (e o jornalismo, acrescentamos) como

ferramenta de disputa e terreno de importantes batalhas. Queremos, portanto, tensionar as

concepções que têm orientado o enfrentamento com a grande mídia, buscando desnaturalizar

um certo espontaneísmo militante que pouco reflete sobre os fundamentos da prática. Porque,

no que diz respeito ao jornalismo, parece que estamos diante de um desafio que, para se

expressar politicamente, precisa também ser enfrentado no campo teórico.

Nossa primeira suposição é, então, que um certo conjunto de técnicas (de apuração,

redação etc.) e concepções, tomadas, em geral, como objetivas e neutras, expressão de uma

prática profissionalizada, naturalizou-se a tal ponto que tem sido poupado com certa

facilidade mesmo das análises críticas do campo da comunicação. Apresentando-se como um

‘método’, único e universal, que estabelece a linha de corte entre o que é ou não considerado

jornalismo, o modelo informativo é, ele próprio, segundo nossa hipótese, uma ferramenta

ideológica, no sentido que Marx e Engels deram originalmente ao termo, como expressão das

relações de dominação no nível das ideias. Responde, portanto, aos interesses e objetivos

representados pelos grandes conglomerados de mídia, e não pode ser ‘exportado’ para o

jornalismo que vai além desses veículos e, menos ainda, para as experiências que pretendem

se contrapor a eles.

Dito isso, nossa segunda suposição é que, além de identidade de classe, esse modelo

tem data de nascimento. Ele é produto do processo que Marx descreveu e Lukács nomeou

como “decadência ideológica”, que se dá mais ou menos a partir de 1830, quando a burguesia

revolucionária começa a se consolidar no poder. Tratava-se, naquele momento e ainda hoje,

do esforço de excluir de toda investigação científica os elementos das contradições sociais,

tentando separar rigidamente a ciência da ação política. No campo científico, isso resultou,

principalmente, no positivismo, com todas as suas variantes. Mas nossa hipótese é de que esse

movimento atingiu outras práticas e teve como um dos seus produtos também o jornalismo

informativo. Para fundamentar essa ideia, este trabalho traz um breve apanhado histórico que

mostra como o jornalismo não foi sempre assim — informativo em contraposição ao

opinativo, por exemplo — e que sua caracterização nos moldes atuais guarda absoluta

coerência histórica com o processo de consolidação da ordem burguesa e de desenvolvimento

do capitalismo.

17

É importante, no entanto, que essa contextualização não seja tomada como uma

abordagem historicista, que apenas encaixa as práticas em momentos específicos, forçando

uma coerência progressiva e linear. Com isso queremos realçar que essa marcação temporal é,

na verdade, a identificação de um momento em que se conformava não apenas a dominação

mas principalmente a hegemonia burguesa. E, se é assim, apesar de o jornalismo informativo

se manter firme como a forma acabada do jornalismo burguês já há quase dois séculos, esse

modelo sofre abalos e se denuncia como ideológico a cada movimento da luta de classes que

signifique um ataque mais feroz a essa hegemonia construída. O melhor exemplo desse

processo nos é trazido por Armand Mattelart, pesquisador e militante da comunicação que,

durante o governo de Salvador Allende, participou das lutas no Chile com o objetivo de

construir um projeto de comunicação popular. O autor conta que, no momento em que a

classe dominante “perde o poder executivo e a maioria parlamentar, ao mesmo tempo em que

conserva seus aparatos de comunicação”, como se deu no Chile, “a burguesia transformou

seus meios massivos de comunicação em instrumentos diretos de classe” (2010, p. 89, grifos

nossos), com a função não mais disfarçada de organizar as frações que estavam insatisfeitas

com o governo da Unidade Popular. O cenário que ele descreve é o da expressão mais

concreta e em ato da noção de bloco histórico e de disputa de hegemonia de Gramsci, que

desenvolveremos adiante, só que despidos das ocultações ideológicas de que, também como

veremos, a classe dominante costuma lançar mão. Ele analisa: “É através de suas próprias

ações que a classe dominante demonstra o absurdo de uma definição abstrata de ‘liberdade de

imprensa e de expressão’, e prova que toda definição de liberdade deve ter em conta as

relações de força concretas que condicionam a aplicação desses princípios” (2010, p. 89).

Segundo o autor, o melhor exemplo desse processo foi o caso do jornal El Mercurio que, em

1969 “presumia ser, por seus conteúdos, sobriedade e seriedade, o Times da América Latina”

mas, em 1973, “tinha se transformado num autêntico panfleto político e em um cartaz de

campanha” (Mattelart, 2010, p. 90). E ele completa, indo direto ao ponto que interessa ao

conjunto deste trabalho: “Esta mutação explícita mostra precisamente como, durante períodos

de guerra social, o modelo de comunicação burguês muda e torna obsoleta a separação rígida

de gêneros, a divisão do trabalho comunicacional correspondente aos períodos de paz social”

(2010, p. 90-91).

Recentemente, em menor escala, serve também como exemplo desse movimento

próprio da mídia dominante o endurecimento, sem disfarces, da linha editorial conservadora e

nada ‘neutra’ assumida pelos grandes veículos da imprensa brasileira no período que se

18

seguiu às manifestações de junho de 2013. O exemplo que se tornou mais conhecido foi o da

capa do jornal O Globo de 17 de outubro de 2013, que, num refletido movimento de

manipulação e organização social contra as manifestações de rua, passou por cima de todas as

regras que fundamentam sua própria concepção de jornalismo. A manchete, imprecisa,

genérica e fundada sobre um adjetivo transformado em substantivo — como, em tempos

normais, só os jornais sensacionalistas fazem —, dizia ‘Lei mais dura leva 70 vândalos para

presídio’ e aparecia ancorada por um antetítulo que deixava clara a chave de leitura da notícia:

‘crime e castigo’. Logo abaixo, sob o antetítulo ‘sem máscaras’ — num pretenso trocadilho

entre a ‘verdade’ dos personagens que seria revelada pelo jornal e o perfil dos mascarados

black blocs —, eram expostas fotografias e algumas linhas ‘biográficas’ de três ativistas

presos1. Quase um ano depois, quando foi expedido mandado de prisão preventiva para outros

militantes políticos às vésperas do jogo final da Copa do Mundo do Brasil, o Globo On line,

além de muitas combinações de títulos sensacionalistas e notícias com meias verdades,

chegou a publicar na sua página inicial, referindo-se a uma das pessoas foragidas que havia

pedido asilo político ao consulado do Uruguai, a seguinte chamada: ‘Eloisa Samy ordenava

atos violentos e fazia reuniões em casa’. Em tempos de hegemonia estável, uma frase como

essa, em que o próprio jornal assume a autoria não só da informação como da acusação, na

medida em que não se preocupa em atribuí-la a qualquer fonte ou documento; uma chamada

sem testemunho nem artifícios caros ao jornalismo informativo como “segundo fulano”, “de

acordo com investigações de beltrano”, poderia muito bem ser selecionada para ilustrar o

manual de redação do Globo ou de qualquer outro grande jornal como exemplo do que um

jornalista jamais pode fazer. Em termos claros: a neutralidade, o tecnicismo e a expressão

profissional do modelo de jornalismo informativo duram o tempo exato da manutenção da

hegemonia burguesa; em momentos mais importantes de crise, econômica ou política, ele

perde os disfarces e denuncia sua origem e função de classe.

Sendo assim, o objetivo deste trabalho é chamar atenção para a necessidade de que essa

constatação — e a clareza sobre suas formas práticas de expressão — esteja permanentemente

pautando as ações que se pretendem contra-hegemônicas, mesmo (e principalmente) fora dos

momentos de crise. Até porque a história tem mostrado que, retomada a hegemonia, retoma-

1 Segundo um popular site de informações sobre os ambientes de imprensa no Brasil informou, sem revelar as

fontes, que no dia seguinte o jornal recebeu centenas de emails indignados com o teor acusatório da capa, a

ponto de, num dado momento, se impedir, tecnicamente, que os jornalistas continuassem a receber essas

mensagens, o que causou um início de revolta na redação. Além disso, nesse dia o número de cancelamento de

assinaturas do jornal teria subido “algo entre 10 e 20 vezes”. Matéria disponível em

https://coleguinhas.wordpress.com/2013/10/20/mal-estar-no-globo-as-manifestacoes-chegam-a-redacao/

19

se junto o discurso ideológico da imprensa (e de um tipo de jornalismo) a serviço da

democracia e do interesse geral.

Portanto, esses abalos pontuais, contornados pelas reações contidas no próprio

movimento da luta de classes, até hoje não alteraram a prevalência desse modelo de

jornalismo, que, como supomos, no que tem de estrutural, se mantém ainda hegemônico. Por

isso, depois dessa retomada histórica, nos dedicaremos neste trabalho a compreender e

descrever esse modelo com o objetivo principal de espelhar aquilo que o jornalismo contra-

hegemônico, exatamente por atuar em nome da classe oposta, não pode ser. E isso será feito a

partir de uma análise documental de manuais produzidos pelo Instituto de Imprensa, braço

pedagógico da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), entidade

que representa os grandes conglomerados de comunicação das Américas com o objetivo

(declarado) principal de defender a ‘liberdade de imprensa’ no continente2. A pertinência

desses materiais para a nossa investigação está no fato de que a criação desse instituto se

deveu exatamente a uma estratégia da SIP que associa a liberdade de imprensa ao modo de

fazer jornalismo, estabelecendo como uma das suas linhas de ação a promoção de um

jornalismo ‘bem feito’ — ou seja, feito nos moldes do modelo naturalizado como profissional

— com o objetivo de proteger as publicações contra interferências e controles ‘externos’. Esse

‘bom jornalismo’ seria, então, uma das formas de autorregulação, que é a base da ideia de

liberdade de imprensa defendida pela organização. A “filosofia” de criação do instituto, diz o

seu próprio site, era de que “é mais difícil eliminar uma publicação se esta possuir uma alta

qualidade técnica”. Assim, entendemos que, tratadas conjuntamente com uma pesquisa

bibliográfica sobre o tema, as publicações do Instituto fornecem uma interessante

caracterização sobre o modelo do jornalismo burguês.

Ocorre que, no jornalismo e fora dele, a hegemonia vigente é sempre resultado de lutas

que continuam latentes e que nunca são inteiramente neutralizadas, de modo que, mesmo os

derrotados acabam deixando suas marcas — ou, mais exatamente, as marcas da luta — no

produto final. Assim, apesar da sua identidade de classe, o jornalismo informativo que vence a

batalha com o jornalismo político traz também, em si, respostas às necessidades sociais que

resultam do desenvolvimento das condições concretas de vida sob o capitalismo e que foram

construídas no próprio movimento da luta de classes. Esses são, portanto, os traços que — se

assim podemos dizer — caracterizam o jornalismo para além da sua forma burguesa, e que

2 Para isso, monitora e denuncia o que considera censura ou ataques à livre ação da imprensa nessa região,

produzindo, por exemplo, relatórios anuais que tratam da situação em cada país. Nem é preciso dizer que os

critérios pelos quais essa instituição define o que é liberdade são inteiramente informados pelos interesses dos

veículos — empresas privadas, vale lembrar — que a mantêm, em sua maioria norte-americanos.

20

nos interessam como parte da identidade a ser preservada na prática de um jornalismo que

atue contra a ordem. Nesse sentido, na sequência deste trabalho fazemos um exercício de

identificar as ‘determinações’ do jornalismo como prática social, o que significa partir da

caracterização crítica do modelo informativo para reconhecer, nesse caminho, o que existe

misturado à poeira ideológica que lhe confere funcionalidade de classe. Aqui, identificamos,

como elementos estruturantes, a importância de uma efetiva valorização (não-ideológica) da

atualidade e da novidade como traços característicos da informação jornalística, mas por uma

outra perspectiva, mais associada à dimensão da vida cotidiana e do conhecimento do senso

comum do que à falsa produção do novo e inédito que marca o jornalismo informativo; da

mesma forma, nos deparamos com a necessidade concreta de se atender a uma demanda por

objetividade — que, por exemplo, marca a distinção entre a forma como o jornalismo e a arte

apreendem e apresentam a realidade —, mas por uma concepção diametralmente oposta

àquela que a toma como sinônimo de neutralidade, o que implica reconhecer a parcialidade

que de fato constitui a realidade objetiva sob o capitalismo.

Somente depois dessa trajetória, de reconhecimento e distinção do jornalismo

informativo burguês, passamos a explorar o terreno, conceitual e político, das possibilidades

de uma prática contra-hegemônica. Mas, antes de falarmos sobre ela, é preciso justificar a

opção por esse caminho, já que temos aqui o que pode ser considerada uma terceira hipótese

deste trabalho: a de que, muitas vezes, na prática política no campo da comunicação,

reproduzimos, acriticamente, princípios e concepções ‘técnicas’ rigorosamente iguais aos que

sustentam o jornalismo informativo burguês. Isso significa, por um lado, que no âmbito dos

movimentos pela democratização da comunicação em geral, muitas vezes adotamos bandeiras

de luta que, apesar de se expressarem em propostas divergentes daquelas do campo

empresarial, são sustentadas por concepções liberais e idealistas, como a supervalorização da

democracia burguesa ou a crença num ‘ideal’ iluminista do jornalismo como o tesouro a ser

recuperado. Por outro lado, significa também que, nas práticas concretas de imprensa

‘alternativa’ (comunitária, sindical, partidária, popular etc.), muitas vezes nos limitamos a

apenas ‘mudar o sinal’ de positivo e negativo, assumindo não só um conjunto de técnicas

‘profissionais’ que nada têm de neutras como também os vícios ideológicos e mesmo

manipuladores que só fazem sentido numa prática voltada para a dominação, como é a

imprensa burguesa.

Mas qual a questão que essa estrutura proposta busca alcançar? O jornalismo contra-

hegemônico é o horizonte para o qual pretende apontar este trabalho, priorizado com o

21

propósito de discutir e promover politicamente os caminhos para uma imprensa que seja

ferramenta de contestação, desconstrução e luta contra a ordem do capital. O projeto original

previa um mergulho teórico nos autores que trabalham próximos ao conceito de hegemonia e

nos que oferecem pistas mais específicas sobre o campo jornalístico, mas isso seria

complementado por uma análise de experiências práticas e contemporâneas de imprensa que

se propõem a uma ação contra-hegemônica. Essa segunda parte, no entanto, acabou não sendo

desenvolvida. E esse hiato — ou, mais precisamente, a dívida que este trabalho deixa — se

desenhou no próprio desenrolar da pesquisa, quando entendemos que a discussão teórica

sobre o jornalismo contra-hegemônico dependia inteiramente da análise prática (documental)

que desnudasse o jornalismo informativo. O compromisso com a concretude das práticas e

com a materialidade das relações impôs, antes, uma análise do existente hegemônico, da

forma socialmente necessária do jornalismo sob a ordem burguesa, já que este deve ser o

‘alvo’ de qualquer reação organizada no campo da comunicação. Não se trata, evidentemente,

de estabelecer apenas uma relação linear de oposição, como se fosse possível concluir da

negação do jornalismo informativo tudo que o jornalismo contra-hegemônico deve ser. Mas

trata-se, seguindo os passos do materialismo, de cuidar para que não se desenhem caminhos

abstratos, que não se construam novos ‘modelos’ no lugar de táticas e estratégias adequadas

às necessidades de enfrentamento da realidade concreta.

Assim, este trabalho começou como uma proposta de debate por dentro do campo da

esquerda anticapitalista, buscando identificar os obstáculos e as mediações necessárias para

avançarmos de práticas puramente ‘alternativas’ para iniciativas efetivamente contra-

hegemônicas. E esse é, de fato, o objetivo do último capítulo. Mas, embora aponte nessa

direção, o desenrolar da pesquisa nos mostrou que o caminho dessa superação — interna ao

campo da própria esquerda — só pode se desenhar e se apresentar através da confrontação

com o seu ‘oposto’ de classe, o jornalismo burguês. Foi nessas muitas curvas do método que o

investimento em um estudo detalhado sobre o modelo do jornalismo informativo, cruzando

suas ferramentas ideológicas com os interesses impressos na sua base econômico-material,

impossibilitou que a pesquisa documental avançasse também sobre as experiências concretas

do campo popular — que ficam como promessa para um próximo trabalho.

Importa aqui explicar, então, que esse capítulo final, de discussão sobre os caminhos da

contra-hegemonia no jornalismo, está organizado a partir de um estudo teórico — que, pelo

nosso referencial, nunca está descolado das práticas políticas —, que busca manter um

diálogo direto com as características práticas e os princípios destacados no capítulo 3, a partir

22

da análise dos materiais da SIP, como representativos do modelo de jornalismo informativo.

Nesse momento do trabalho também arriscamos sistematizações (teórico-conceituais) da

experiência de jornalismo de combate ou mesmo de jornalismo revolucionário de alguns

importantes pensadores-militantes da tradição marxista. Entre os clássicos, percorremos os

textos e a biografia do próprio Marx, Lenin e Gramsci; entre os contemporâneos, nos

aconselhamos com a obra de Patricio Biedma e Armand Mattelart, protagonistas de uma

iniciativa de comunicação popular no Chile que, na década de 1970, tentava construir o

socialismo pelas vias democráticas. Ao longo principalmente desse capítulo 5, utilizamos

também exemplos de abordagens e textos publicados em veículos brasileiros do campo

‘alternativo’, mas é preciso deixar claro que eles são mencionados apenas como ilustração,

sem a pretensão de representarem qualquer estudo de caso.

Todo esse caminho percorrido está sustentado sobre um conceito central, sem o qual

nenhuma revisão histórica ou análise prática nos permitiria chegar aonde chegamos. Trata-se

do conceito de ideologia, cuja apresentação e debate teórico mereceram todo o capítulo 2.

Embora situemos rapidamente as outras acepções desse conceito, nos interessa neste trabalho

especificamente a concepção desenvolvida por Marx e Engels em ‘A Ideologia Alemã’ — e,

mais tarde, confirmada pelos estudos de crítica à economia política do Marx maduro,

inclusive no ‘Capital’ — que associa ideologia à dominação. Como faremos questão de

destacar em outras oportunidades, esta não é uma opção aleatória: trata-se de uma forte

convicção sobre a utilidade e pertinência prática e política desse conceito para as lutas do

campo da comunicação, em especial para o debate que, atualizando-se com o pensamento de

Gramsci, propõe um jornalismo contra-hegemônico.

Sobre isso, para não adiantarmos aqui a discussão que está feita no corpo do trabalho,

basta constatar, como conclusão essencial deste estudo, que desenvolver um jornalismo

contra-hegemônico não significa travar uma guerra entre a ideologia burguesa e uma

‘ideologia’ proletária, que mais pode parecer uma limitada e pouco ‘objetiva’ guerra de

versões. Primeiro porque, seguindo tanto Marx quanto Gramsci, este trabalho reconhece que

as táticas e estratégias políticas da classe trabalhadora — entre as quais estamos considerando

o jornalismo — não podem ser iguais às da burguesia, já que seus objetivos são

diametralmente opostos: para esta, manter a dominação; para aquela, chegar à emancipação

humana. E segundo porque, também mantendo o rigor do conceito, consideramos que o

processo de direção política, cultural e moral que está na base da luta de hegemonia na obra

23

de Gramsci em nenhum momento se reduz a uma disputa de ideias ou de argumentos que

ignore a base material concreta.

Assim, tentando tomar esse processo em toda a sua complexidade, entendemos como a

função contra-hegemônica possível de ser exercida por uma imprensa ‘alternativa’ o esforço

de desideologização, de desvelamento, daquilo que, de outro lado, no contexto do

capitalismo, encontra-se nublado e invertido. Esse é, teórica e politicamente, o desafio-síntese

deste trabalho.

24

1. JORNALISMO E CAPITAL

As coisas mais interessantes, os grandes e pequenos artigos, tudo se

torna uma questão de colocação nas páginas entre uma hora e meia-

noite, a hora fatal dos jornais, a hora na qual as notícias políticas,

aparecidas no início da noite, exigem Notícias Breves.

A Notícia Breve se comete, como os grandes crimes, no meio da

noite (Balzac, 1999).

A imprensa — e, com ela, um certo tipo de jornalismo — nasce com a sociedade

burguesa e, como não poderia deixar de ser, tem se modificado com o desenvolvimento do

capitalismo. Os estudos sobre os processos de massificação, profissionalização e

empresariamento da imprensa em geral reconhecem essa coerência identificando a criação dos

grandes grupos de comunicação como empresas cada vez mais lucrativas, que movimentam a

importante indústria do entretenimento e da notícia. O volume de recursos dessas

corporações, os processos de fusão e concentração midiática no mundo — e particularmente

no Brasil — confirmam essa abordagem. Ocorre que, aliado à atividade econômica direta, as

empresas que se constituíram no campo da comunicação desempenham também, desde

sempre, um importante papel ideológico que se manifesta no conteúdo da realidade que se

apresenta pelas páginas de jornais e outros meios, mas também na forma como se dá a

seleção, interpretação e apresentação dessa realidade que se faz conhecer. Em outras palavras,

fora do domínio da ciência, o campo da comunicação desenvolveu, também, modelos que

orientam a forma como se mostra e interpreta a realidade, guardando alguma coerência com

os diversos momentos de desenvolvimento do capitalismo.

A hipótese que seguimos aqui é a de que o jornalismo informativo, hegemônico nos dias

atuais, responde historicamente a dois impulsos principais. Por um lado, ele se dissemina na

transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista porque é nesse

momento que se dão as bases materiais para que essa prática se consolide como a forma

particular do jornalismo burguês. É na forma acabada de mercadoria capitalista, portanto, que

se completa o ciclo de isolamento da notícia. Por outro lado, esse é também o resultado final

de um processo que começa por volta de 1830, momento a partir do qual a estabilização do

poder passa a ser o objetivo fundamental da burguesia que, a despeito da forma que o Estado

assumiu em cada país específico, saía como a grande vitoriosa da primeira fase das revoluções

liberais. Evidentemente, o que estamos tratando de forma genérica como ‘burguesia’ envolvia

um amplo espectro de frações de classe, aos quais não nos dedicaremos aqui, por não ser o

foco deste trabalho. O que importa registrar é que a partir desse momento a manutenção da

ordem implicava, por diversos meios, a necessidade de negar as contradições, tanto as que

25

permaneciam como aquelas que nasciam já como resultado das mudanças recentes — além

das camadas excluídas das acomodações resultantes da consolidação do poder burguês, como

é o caso da pequena burguesia, o proletariado aparece como classe na Europa já a partir de

1840 e, no rastro do comunismo, “abre caminho pelo continente” (Hobsbawm, 2009, p. 51). E

esse esforço conservador se expressava, entre outras coisas, na negação da moderna luta de

classes que se inaugurava.

Referindo-se à ciência econômica, Marx analisou esse fenômeno como um processo de

“decadência ideológica”, caracterizado como um desdobramento da “decadência política” das

forças burguesas. Traçando uma linha distintiva entre os economistas burgueses clássicos,

como David Ricardo (1772-1823), que prestaram um grande serviço à ciência, e os que

vieram depois, como James Mill (1773-1836) e outros, diz ele:

Com o ano de 1830, sobreveio a crise decisiva.

A burguesia conquistara o poder político, na França e na Inglaterra. Daí em

diante, a luta de classes adquiriu, prática e teoricamente, formas mais

definidas e ameaçadoras. Soou o dobre de finados da ciência econômica

burguesa. Não interessava mais saber se este ou aquele teorema era

verdadeiro ou não; mas importava saber o que, para o capital, era útil ou

prejudicial. Os pesquisadores desinteressados foram substituídos por

espadachins mercenários, a investigação científica imparcial cedeu lugar à

consciência deformada e às intenções perversas da apologética (Marx,

2008c, p. 23-24)

Trata-se, como explica Lukács, de um processo “espontâneo da decadência científica”,

que portanto responde às necessidades históricas de uma classe, operando pari passu a uma

“apologia consciente e venal da economia capitalista” (1981, p. 115). Embora 1830 seja

considerado o marco, a decadência ideológica burguesa se aprofunda, intensifica e

universaliza, ganhando inclusive a adesão de historiadores e outros pensadores críticos até

então, a partir das revoluções de 1848. Classificando nomes como Hobbes e Locke como

“representantes grandiosos e corajosos da filosofia burguesa”, em contraposição a, por

exemplo, Jeremy Bentham, que personificaria o fim dessa linhagem, Lukács explica:

A diferença reside “apenas” em que os ideólogos anteriores forneceram uma

resposta sincera e científica, mesmo se incompleta e contraditória, ao passo

que a decadência foge covardemente da expressão da realidade e mascara a

fuga mediante os recursos ao “espírito científico objetivo” ou a ornamentos

românticos. Em ambos os casos, é essencialmente acrítica, não vai além da

superfície dos fenômenos, permanece na imediaticidade e toma ao mesmo

tempo migalhas contraditórias de pensamento, unidas pelo laço do ecletismo

(1981, p. 118).

26

Na sistematização que faz sobre o conceito de decadência ideológica, Lukács distingue

dois blocos principais de comportamento científico-filosófico daquele momento histórico que

foram alvo das críticas de Marx. Um deles é a “apologética simples e direta”, que consiste

numa ‘ciência’ limitada pela necessidade de legitimar a ordem burguesa, como

caracterizamos brevemente. Outra manifestação da decadência ideológica, esta própria do

ideário capitalista pequeno-burguês, seria um pouco menos explícita, por estar, pelo menos

aparentemente, inserida no campo crítico. Trata-se, no entanto, do que o autor chama de

“anticapitalismo romântico”, que se apresenta como crítica ao progresso e não realmente ao

capitalismo, sendo marcado, ‘cientificamente’, pelo ecletismo metodológico. De acordo com

Lukács, o que caracterizava esse ecletismo era o esforço de “negar as contradições da vida ou

– o que é a mesma coisa – o contrapor entre si, de maneira superficial, rígida e carente de

mediações, determinações contraditórias” (1981, p. 119).

Não passou despercebido a Marx o quanto a ocultação do conteúdo que não se podia

mais evidenciar dependia em grande medida de mudanças criadas no método de produção do

conhecimento. Segundo Lukács, que sistematizou as críticas do autor alemão, o processo que

permitiu aos economistas “vulgares” efetuar essa transformação passou necessariamente pela

“liquidação do materialismo e da dialética espontâneos, próprios do ‘período heróico’ da

revolução burguesa” (Lukács, 1981, p. 111). O autor resume:

Metodologicamente, essa mudança de orientação manifesta-se no fato de que

(...) os teóricos evitam cada vez mais entrar em contato diretamente com a

própria realidade, colocando, ao contrário, no centro de suas considerações,

as disputas formais e verbais com as doutrinas precedentes (Lukács, 1981, p.

112)

Isso influenciou diretamente a forma como se conceberiam as ciências sociais a partir

daí, expressando-se, por exemplo, numa grande especialização que dificulta a compreensão da

totalidade – essencialmente contraditória. Particularmente ilustrativo desse processo é o

nascimento da sociologia, que Lukács considera a “nova ciência da época da decadência”

(1981, p. 123). A especialização, e o consequente surgimento de novas ‘ciências’, se

retroalimenta nos debates sobre o método de conhecimento que, nesse momento, traz à tona o

positivismo. Segundo Löwy, foi exatamente a partir desse período que o positivismo, nascido

na passagem do século XVIII para o XIX “como uma utopia crítico-revolucionária da

burguesia antiabsolutista”, se tornou “uma ideologia conservadora identificada com a ordem

(industrial/burguesa) estabelecida” (2009, p. 20). De acordo com o autor, na obra de Saint

Simon (1760-1825), por exemplo – que foi o primeiro a usar a palavra ‘positiva’ para se

27

referir a essa ciência num momento anterior à sua adesão ao socialismo utópico —, a

correspondência entre ciências naturais e sociais, que redunda numa crença ingênua na

neutralidade da análise dos fenômenos políticos, é ainda uma herança do iluminismo e do

ideal revolucionário. “O combate, para a ciência positiva do homem, está, em S. Simon,

indissoluvelmente ligado à luta dos ‘produtores’ (tanto os empresários quanto os operários)

contra os parasitas, os ‘sanguessugas’ clericais-feudais da Restauração” (Löwy, 2009, p. 25).

Ao longo do século XIX, no entanto, vai se consolidar a doutrina positivista inaugurada por

Augusto Comte que, segundo Löwy, é quem transforma esses princípios metodológicos em

ideologia, a serviço da ordem burguesa. Durkheim, que desenvolverá com sucesso a obra

iniciada por Comte, elegerá a “lei social natural” como o principal conceito das ciências

sociais, e reconhecerá como uma dessas leis “naturais”, por exemplo, a desigualdade social.

Descrevendo, em relação ao método, o exato processo de decadência ideológica de que nos

falava Marx, Löwy conclui:

É apaixonante observar como o conceito que havia servido de instrumento

revolucionário por excelência no século XVIII, que esteve no coração da

doutrina política dos insurretos de 1789, altera o seu sentido no século XIX,

para se tornar, com o positivismo, uma justificação científica da ordem

social estabelecida (2009 p. 31).

Como se sabe, a relação entre objetividade e neutralidade é uma das marcas principais

desse novo método, dessa nova ciência da sociedade que vai se impor a partir do positivismo

e que dedicará esforços em contestar a cientificidade do materialismo histórico-dialético, que,

ao contrário, pressupõe as contradições, reconhece a luta de classes como motor da história e

toma um lado nessa luta quando identifica uma das classes – o sujeito revolucionário – como

passível de se tornar universal.

A relação entre objetividade e neutralidade será discutida de forma pormenorizada

adiante, em tópico específico, mas merece ser referida aqui porque, associada à negação,

teórica e prática, das contradições, a valorização generalizada desses princípios contribui com

a hipótese deste capítulo, de que o modelo de jornalismo que se hegemonizou a partir desse

mesmo período histórico — final da primeira metade do século XIX — também é resultado

do processo de decadência ideológica de uma burguesia que se assentava no poder e já sentia

o cheiro do seu novo inimigo de classe. Trata-se de um modelo que, em linhas muito gerais,

passa a ser metodologicamente controlado, baseado no mesmo par objetividade/neutralidade,

que elimina as contradições, separa informação de opinião e afasta a dialética; um modelo

que, apesar de manter um aparente materialismo pela centralidade que dá aos fatos, abandona

28

o caráter histórico, fragmentando a realidade em células isoladas que se tornam o elemento

central do jornalismo: a notícia.

Marx faz a crítica da ciência burguesa desse período em relação à economia, mas

também em relação à história, à sociologia e à filosofia. A ideia de decadência ideológica, no

entanto, parece dar conta de um momento específico de transformação da burguesia, antes

revolucionária, que atinge outros espaços e práticas além da ciência, atuando, segundo nossa

hipótese, também diretamente sobre o jornalismo, reconhecido como uma forma específica de

conhecimento sobre a realidade. “Muitas instituições viriam a ser drasticamente alteradas

depois de 1830, mas nenhuma delas mais do que a imprensa”, diz E. Emery, referindo-se à

história norte-americana, cujo formato de jornalismo se tornará modelo para os outros países

(1965, p. 263).

Esse é o pano de fundo a partir do qual tentaremos recuperar aqui uma história orientada

do jornalismo, mais do que uma história da imprensa, que chegue aos dias atuais.

Naturalmente, é importante alertar que, tal como o próprio desenvolvimento do capitalismo,

as mudanças pelas quais a forma de se fazer jornal passou ao longo desse tempo não foram

processos lineares e sem contradição.

1.1. Informação, opinião, esclarecimento e lutas sociais

A necessidade social de disseminação e acesso mais regular e imediato a informações

— primeiro econômicas e depois de cunho político, naturalmente ligadas às mudanças

econômicas — está na base do desenvolvimento da imprensa e acontece pari passu com o

incremento do comércio, evidenciando o quanto a intensificação da troca de informações se

desenvolveu “na trilha” da troca de mercadorias (Habermas, 2003, p. 29). Não por acaso,

Veneza é considerada uma das “primeiras capitais da imprensa” (Guillamet, 2004, p. 57).

Embora se identifique já desde o século XV a existência de boletins e outros tipos de

informes, o jornal como instrumento do que se viria a reconhecer como imprensa, portanto

como atividade da cena pública, costuma ser datado do século XVII. Nos seus primórdios, o

que se pode considerar como um embrião de imprensa teve como função primeira organizar a

circulação de notícias de interesse comercial para um mercado que demandava,

crescentemente, “informações sobre eventos espacialmente distanciados” (Habermas, 2003, p.

29). Assim, junto com os correios, a imprensa desempenhou um papel fundamental no

“sistema de trocas pré-capitalistas”. O serviço prestado era organizado a partir de pequenas

29

empresas artesanais, que ‘vendiam’ informação, produzida para um público específico,

restrito e privado. Habermas descreve:

As correspondências privadas de então continham noticiários amplo e

minucioso sobre assembleias parlamentares e guerras, sobre resultados de

colheitas, impostos, transportes de metais preciosos e, acima de tudo,

naturalmente, notícias sobre o comércio internacional. Mas só um filete

dessa torrente de informações passa pelos filtros desses jornais

“manuscritos” até os referidos jornais impressos. Os beneficiários das

correspondências privadas não tinham interesse em que o conteúdo delas se

tornasse público (Habermas, 2003, p. 34)

A ampliação do público que passa a ter acesso a essas informações, organizadas agora

em jornais impressos que são, na verdade, desdobramentos das correspondências que antes

eram voltadas apenas para os comerciantes, tem relação direta com o fato de que o produto

gerado a partir dessas informações — a notícia — tornou-se, ele próprio, uma mercadoria —

embora ainda não nos moldes capitalistas (Habermas, 2003, p. 33). E, como acontece com

qualquer mercadoria nesse momento, o interesse do comércio nascente era ampliar ao

máximo seu ‘público consumidor’.

Associado a essas transformações da base material, o incremento de publicações

periódicas, principalmente na Europa ocidental, responde também ao impulso político-cultural

de uma época marcada pelo Renascimento e pela Reforma Protestante – que teve inclusive

grande importância para a difusão da técnica da imprensa (não propriamente do jornalismo)

ao defender a publicação da bíblia nas línguas nativas e não mais em latim. Referindo-se ao

período imediatamente anterior ao que destacamos – já que datam do início do século XVII as

primeiras gazetas semanais –, Guillamet resume: “O século XVI é o da eclosão da curiosidade

pública – entendida como interesse pelos acontecimentos, tal como se concebia na época – e

da demanda de informação” (2004, p. 53). Esse é o momento que Marcondes Filho (2002, p.

48) chama de “pré-história” do jornalismo, em que prevaleciam informações não só

relacionadas ao comércio, mas a novidades espetaculares, como desastres e notícias sobre a

realeza.

Como grandes ‘fiadores’ dos grupos de comerciantes e mercadores que são o germe dos

primeiros capitalistas, mas também ocupados em minimizar as mudanças políticas que as

transformações econômicas e sociais em curso causariam, os governos absolutistas adotaram

os jornais como instrumento próprio, voltados, principalmente, para a divulgação de atos

político-administrativos. Na França, por exemplo, ainda no século XVII, o rei Luis XIV criou

um verdadeiro modelo de imprensa estatal, com o controle sobre três jornais que se

completavam — um enfocando questões mais políticas, outro voltado para temas científicos e

30

um terceiro de “caráter mais literário e mundano” (Guillamet, 2004, p. 59). Não se tratava

apenas de transmitir dados oficiais, disputando num eventual mercado de informações: o

Estado, principalmente a monarquia francesa — que ilustra bem a resistência do Antigo

Regime em meio às transformações do modo de produção que anunciavam a ordem burguesa

— investiu o que pôde na centralização, homogeneização e controle das informações a partir

de uma imprensa oficial: “(...) do século XVI até a Revolução, a censura do que se declarava e

escrevia era a política oficial da França; (...) a existência de uma ‘política do pensamento’ era

o estado normal das coisas” (Roche, 1996, p. 21).

Os mecanismos de censura prévia e controle posterior à publicação, que marcam a

circulação de impressos – jornais mas também livros e folhetos — durante o Antigo Regime

anunciam, de certa forma, o potencial político subversivo que esses instrumentos efetivamente

realizariam no momento revolucionário. No que diz respeito especificamente à imprensa, essa

preocupação antecipa também as mudanças que o próprio jornal sofrerá, deslocando a sua

funcionalidade principal da relação direta com o movimento de circulação de mercadorias

para o espaço das discussões literárias e políticas que eram também produto e insumo da

sociedade burguesa nascente.

Essa primeira ‘imprensa de informação’ — que não pode ser confundida com o caráter

informativo que o jornalismo adquire nos dias atuais —, portanto, chega até os anos 1700. De

acordo com Habermas, é já no início desse século que as iniciativas jornalísticas passam a ser

movidas mais por “impulsos” pedagógico e político do que propriamente pelo lucro direto da

informação como mercadoria. Naquela que pode ser considerada sua ‘segunda fase’, a

imprensa vai, aos poucos, se transformando de imprensa comercial numa ‘imprensa de

opinião’, que se baseia não mais na publicação de pequenas notas e avisos, mas no que se

reconhece como um ‘jornalismo literário’, com vistas ao esclarecimento mais do que à

simples informação.

Esse novo jornalismo funciona como ferramenta da participação dos sujeitos no que

Habermas chama de esfera pública burguesa, que teria suas origens na Inglaterra na virada

para o século XVIII (2004, p. 75). Essa imprensa, marcada por um jornalismo literário (que

pressupõe formação cultural) que evolui e se confunde com um jornalismo político é, ao

mesmo tempo, instrumento e resultado de uma época em que se impulsionava a publicidade

(no sentido de tornar público) e transparência dos fatos e decisões. Esse contexto já sofre

influência do que Rouanet chama de “espírito da Ilustração”, configurando um momento em

que a aposta numa determinada forma de racionalidade como caminho para uma maior

31

autonomia dos sujeitos — combinada com uma maior eficácia, principalmente econômica —

resume o sentimento, o desejo e as evidências materiais de superação de uma época. Como

explica o autor, esse “espírito”

contribui para a modernidade econômica, com sua crítica às relações de

produção do feudalismo; para a modernidade política, com sua denúncia das

irracionalidades do Estado absolutista; e para a modernidade cultural,

facilitando o processo de secularização e a emergência, como esferas

diferenciadas, de uma ciência empírica, de uma ética racional e de uma arte

independente (Rouanet, 2003, p. 143).

Nesse cenário em transformação, surgia uma ‘sociedade civil’ como força que tentava

se diferenciar e se autonomizar em relação a um Estado que, embora representasse um pacto

que o adequou aos interesses da burguesia comercial, carregava uma incontornável

obsolescência e tornava-se um obstáculo ao movimento mais amplo da nova classe que ele

tentava administrar. Como explica Hobsbawm: “Havia assim um conflito latente, que logo se

tornaria aberto entre as forças da velha e da nova sociedade ‘burguesa’, que não podia ser

resolvido dentro da estrutura dos regimes políticos existentes, exceto, é claro, onde estes

regimes já incorporassem o triunfo burguês, como na Grã-Bretanha” (2009, p. 45).

A “esfera pública burguesa” de que fala Habermas é um espaço público de debates,

pretensamente transparente, equilibrado e movido pela razão onde os indivíduos privados

acumulam força para fazer valer, num Estado que ainda era de composição entre interesses de

classe particulares, os desejos e anseios da nova formação social que surgia. Essa esfera

pública burguesa – da qual a imprensa era elemento central – apresentava-se, pois, como

resultante de um processo momentâneo, no qual a sociedade pretensamente se afastava cada

vez mais do Estado, afirmando-se como espaço que, entre outras iniciativas culturais e

literárias, busca controlar e regular as ações governamentais. Habermas destaca, por exemplo,

o papel dos cafés como espaços de encontro de um público que se informa, ouve, discute e

forma opinião – principalmente através dos jornais.

Essa “opinião pública”, construída a partir do embate pretensamente ‘racional’ de

argumentos, por sua vez, ao expressar as visões e interesses da sociedade, deveria se tornar o

fiel da balança para as decisões de Estado, principalmente para a legitimação das leis,

substituindo, portanto, instrumentos de governo considerados autoritários. Nesse sentido, o

que Habermas reconhece como esfera pública, que é resultado direto do impulso iluminista

desse período, é também, no âmbito político, uma reação do conjunto maior da classe

burguesa aos evidentes particularismos que sobreviviam no Estado Absolutista. Denunciava,

assim, o quanto o pacto de conciliação que esse Estado representava atendia aos interesses de

32

apenas uma parte da sociedade, notadamente a nobreza, e a burguesia comercial. Por outro

lado, não deixava de ser também, contraditoriamente, já a expressão do germe de uma nova

particularidade, o que realça pelo menos duas críticas comuns a essa concepção de Habermas.

A primeira é o fato de ele tratar como “estrutural” uma esfera pública que seria não mais do

que “conjuntural” e que, como iniciativa de sobrevivências das “elites”, já teria, inclusive, se

manifestado em outros momentos da história (Briggs e Burke, 2004, p. 109). A segunda é que

o destaque a essa esfera pública burguesa teria como resultado o negligenciamento de “outras

formas de discurso e atividades públicas que existiram nos séculos XVII, XVIII e XIX na

Europa, formas que não fizeram parte da sociabilidade burguesa, e em alguns casos dela

foram excluídas ou a ela se opuseram” (Thompson, 1995, p. 69).

O fato é que a disseminação da palavra impressa – possível dentro dos limites do baixo

grau de escolaridade vigente – era uma ferramenta importante para a existência dessa esfera

pública tanto nesse período quanto no momento de eclosão do movimento revolucionário.

Robert Darnton chega a caracterizar a prensa tipográfica como uma “força ativa na história”,

especialmente na primeira fase da Revolução Francesa, período logo posterior ao que estamos

tratando, “quando a luta pelo poder foi uma luta pelo domínio da opinião pública” (1996, p.

15). E apesar do maior apreço dos filósofos iluministas pelo livro, entre os veículos

impressos, o jornal era o mais consumido. Referindo-se especificamente ao papel da

imprensa, Rouanet resume:

Essa opinião, constituída pelo texto, é uma opinião lúcida, porque

esclarecida pelos filósofos, e onipotente, porque sabe impor sua vontade aos

governantes tão seguramente como os cidadãos reunidos nas assembleias

antigas. Seus poderes incluem o de mandar, porque todos se dobram às suas

exigências, e também o de julgar (2003, p. 163)

Como vimos, nesse momento a ideia defendida por Habermas de uma esfera pública

neutra, harmônica e ausente de contradições correspondia, na realidade concreta, ao momento

de ascenso de uma burguesia revolucionária (ou pré-revolucionária) que de fato carregava

algum grau de universalidade quando protagonizava as lutas contra os particularismos do

Estado absolutista3. O autor não ignora que o integrante dessa esfera pública é o homem

proprietário que, portanto, gostaria de “determinar (...) o poder público em seu interesse

comum”. Reconhece, assim, como “fictícia” a identidade entre os papéis de proprietários e

“meros seres humanos” assumidos nessa esfera. Mas explica que o que gera essa

3 Referindo-se à Revolução Francesa, Marx explica: “O significado negativo-universal da nobreza e do clero

francês condicionou o significado positivo-universal da classe burguesa, que se situava imediatamente ao lado

deles e os confrontava” (2010, p. 154).

33

“identificação” é, em primeiro lugar, o fato de os atributos culturais necessários à participação

nessa esfera pública estarem restritos a algumas camadas burguesas, e, em segundo, o fato de

existir, naquele momento, uma real convergência entre os interesses proprietários e as

liberdades individuais4 (Habermas, 2004, p. 74). Referindo-se ao conjunto de influências

culturais e políticas que orientavam essa esfera pública, Hobsbawm explica:

Não é propriamente correto chamarmos o “iluminismo” de uma ideologia da

classe média, embora houvesse muitos iluministas — e foram eles os

politicamente decisivos — que assumiram com verdadeira a proposição de

que a sociedade livre seria uma sociedade capitalista. Em teoria seu objetivo

era libertar todos os seres humanos. Todas as ideologias humanistas,

racionalistas e progressistas estão implícitas nele, e de fato surgiram dele.

Embora na prática os líderes da emancipação exigida pelo iluminismo

fossem provavelmente membros dos escalões médios da sociedade, embora

os novos homens racionais o fossem por habilidade e mérito e não por

nascimento, e embora a ordem social que surgiria de suas atividades tenha

sido uma ordem capitalista e “burguesa” (2009, p. 42)

Com isso queremos destacar que a estratégia ideológica de apresentar os interesses e

valores particulares da burguesia como bandeiras universais será estruturante a partir da

segunda fase das revoluções burguesas e principalmente a partir do fim da transição que

caracterizou o Antigo Regime, com o estabelecimento de um Estado verdadeiramente

burguês. O problema da análise de Habermas, que se manifestará de forma mais evidente na

nostalgia do autor quando do futuro esvaziamento dessa esfera pública, está, então, na

absolutização desse caminho harmônico e consensual, tido como uma possibilidade real e

permanente e não como resultado de um momento específico e único da constituição da

sociedade burguesa.

Mas voltemos ao papel da imprensa. No início do século XVIII, o que se poderia

considerar uma ‘grande imprensa’ estava, em geral, nas mãos dos governos. A diversificação

das publicações, atendendo aos impulsos do século das luzes, era uma realidade, mas sempre

sob a tutela do Estado (Guillamet, 2004, p. 60). Trazendo o cenário da Inglaterra como

representativo desse momento histórico, Habermas aponta a revista Craftsman, publicada no

final de 1726, como primeiro exemplo de instrumento jornalístico mais sólido de oposição ao

governo. “Só com essa revista, à qual se segue depois o Gentleman’s Magazine é que a

4 Não é excessivo ressaltar que uma supervalorização da razão e da comunicação como critério de um consenso

possível transborda para além da análise desse momento conjuntural e se torna, de alguma forma, própria da

perspectiva habermasiana de leitura da realidade, inclusive da sua nostalgia sobre a perda dessa idealizada esfera

pública. Isso significa dizer que, apesar da pertinência histórica da sua elaboração sobre esse momento

específico, já havia, no jovem Habermas, o germe da teoria da “ação comunicativa”, que marcará sua obra da

maturidade como filósofo e que, naturalmente, se choca com o referencial que atravessa este trabalho. Para uma

crítica mais detida sobre a teoria da ação comunicativa de Habermas, ver, por exemplo: Giddens, Anthony. As

consequências da modernidade, São Paulo, Ed. Unesp, 1990; e Mészaros, 2007.

34

imprensa se estabelece propriamente como órgão crítico de um público que pensa política:

como quarto estado” (Habermas, 2004, p. 78). A imprensa é então, também, instrumento da

separação e controle da sociedade civil em relação a um Estado cujo pacto político que

sustentava a aliança entre nobreza e burguesia estava em franca decadência.

É entre a segunda metade do século XVIII e a passagem para o século XIX que os

jornais tornam-se mais claramente “porta-vozes e condutores da opinião pública, meios de

luta da política partidária” (Habermas, 2003, p. 214). Não por acaso, aproxima-se o momento

das revoluções burguesas, que representam o ponto de culminância da crise do Antigo

Regime. Gramsci data desse momento, “às vésperas da queda dos Estados absolutistas, isto é,

no período de luta da nova classe burguesa pela hegemonia política e pela conquista do

poder”, o surgimento do que hoje se entende por opinião pública5.

A opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que

poderia ser discordante: por isto, existe luta pelo monopólio dos órgãos da

opinião pública — jornais, partidos, Parlamento —, de modo que uma só

força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional,

desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e

inorgânica (Gramsci, 2007, p. 265)

Nesse contexto de mudanças trazidas principalmente pela Revolução Francesa, as

transformações econômicas que já se anunciavam eram, então, revestidas por lutas

progressistas, que instituem novos valores, defendem direitos civis e anunciam um novo que

suplantará de uma vez por todas a era feudal. A imprensa é parte desse contexto, ferramenta

dessa história e se modificou junto com ela. Essa mudança, é importante perceber, não se dá

necessariamente nos veículos, nem apenas na tecnologia de comunicação da época: para

atender a uma disputa política clara, a transformação fundamental acontece no jornalismo, ou

seja, no modo de se produzir, organizar e apresentar o conteúdo para um público sedento de

informações e debates. Dizer que passamos de uma imprensa de informação (em que a

notícia, de caráter comercial, é mercadoria) para uma imprensa de opinião significa, portanto,

nada mais do que reconhecer uma mudança no caráter do jornalismo — que ainda não era

atividade profissional, mas já continha sua especificidade na cena pública.

Todo esse movimento faz com que, segundo Habermas, o século XIX chegue já com a

consolidação de um público que exerce um pensamento político crítico — o que, naquele

contexto, denota a independência em relação ao Estado mas ‘desconsidera’ as amarras dos

interesses privados que virão. Não por acaso, nesse momento de início do século

5 Embora ele reconheça que “elementos de opinião pública sempre existiram, mesmo nas satrapias asiáticas”

(2007, p. 265)

35

prevaleceram, nos países da Europa ocidental, os jornais político-partidários, que tinham

como características principais: a defesa de posturas políticas específicas, o que se desdobrava

na ênfase às seções opinativas, de comentários e editoriais; a maior importância da

“rentabilidade” política do que econômica; e a interferência direta na vida política, inclusive

com a criação de “coalizões jornalísticas para enfrentar os governos” (Aranda, 2004, p. 87). A

prevalência desse tipo de imprensa trouxe mudanças também internas para a organização do

trabalho jornalístico, conferindo destaque à figura do redator e mais importância ao artigo de

fundo (Habermas, 2004, p. 214).

Inaugura-se assim a fase de um jornalismo francamente político, instrumento e resultado

das lutas sociais que marcaram época. Mais uma vez, Habermas nos descreve o cenário:

Uma imprensa que se desenvolvia a partir da politização do público e cuja

discussão ela apenas prolongava continuou a ser por inteiro uma instituição

deste mesmo público: ativa como uma espécie de mediador e potenciador,

não mais apenas um mero órgão de transporte de informações e ainda não

um instrumento da cultura consumista. Esse tipo de imprensa pode ser

observado de modo exemplar em épocas revolucionárias, quando os jornais

dos menores grupelhos políticos brotam por toda parte como capim: na

Paris de 1789, qualquer político meio importante funda o seu clube, um a

cada dois cria o seu jornal: só entre fevereiro e maio surgiram então 450

clubes e mais de 200 jornais (2004, p. 215-216, grifos nossos)

Essa imprensa opinativa continuou sendo, cada vez mais, ferramenta de uma esfera

pública politicamente ativa, impulsionadora da sociedade civil e, consequentemente,

perseguida e obstaculizada pelo Estado. “(...) até a legalização permanente da esfera pública

politicamente ativa, o surgimento de um jornal político e a sua afirmação eram sinônimos de

engajamento na luta em torno do espaço da opinião pública, em torno da publicidade como

princípio” (Habermas, 2004, 215).

É claro que esse cenário de efervescência não pode nos levar a ignorar que a massa que

podia fazer uso dos jornais no debate público era ainda extremamente restrita. É inegável, no

entanto, que a revolução deu “um grande impulso à imprensa, já que os acontecimentos

extraordinários do verão de 1789 suscitaram uma imensa curiosidade em todas as camadas da

população e um apaixonado debate político” (Guillamet, 2004, p. 61). Aqui, quantidade e

qualidade são duas variáveis intrinsecamente relacionadas: à medida que mudava a função do

jornal no espaço público, transformava-se o jornalismo (o modo de fazer jornal) e

multiplicavam-se os veículos — calcula-se que, só entre os anos de 1789 e 1800, durante a

Revolução Francesa, foram publicados cerca de 1350 jornais (Fayard apud Losurdo, 2004, p.

36

148). Paris, por exemplo, contava com salas específicas para leituras de jornais que chegavam

a oferecer aos clientes até 33 variedades de veículos (Popkin, 1996, p. 207).

Seria restritivo e esquemático afirmar que essa infinidade de jornais mantinha um único

e semelhante perfil. Tratando do período da Revolução Francesa, Popkin ilustra a variedade

na abordagem e na forma dos jornais dessa época a partir da cobertura que eles faziam da

Assembleia Nacional, que tinha importância central nos rumos políticos do país. E o autor

mostra, com exemplos vastos, que essa diversidade ia desde a simples transcrição literal das

sessões até o comentário analítico sobre o posicionamento dos parlamentares, passando pela

descrição informativa condensada. Como não poderia deixar de ser, entre essa infinidade de

jornais, motivados pelo debate político como ferramenta da luta de classes numa conjuntura

específica, muitos foram breves e passageiros. Vale registrar, como contribuição aos

argumentos deste capítulo, que dois deles — Journal des Débats et Décrets e Moniteur

Universel –, que se dedicavam principalmente aos informes da Assembleia Nacional, ao

contrário da maioria dos jornais políticos, tiveram vida longa. “Ambos os diários conseguiram

atravessar o agitado período revolucionário com uma posição de relativo ecletismo, de forma

que o primeiro chegará ao século XX e o segundo seria convertido por Napoleão em seu

órgão pessoal” (Guillamet, 2004, p. 62)

Esse retrato da imprensa revolucionária francesa, que não reproduziremos aqui por

ultrapassar os objetivos deste capítulo, evidencia o quanto, mesmo nos jornais que não se

propunham a ser prioritariamente opinativos, a centralidade da notícia estava naquilo que

produzia o debate político. Deduz-se ainda dessa variedade de ‘métodos’ de tratamento do

conteúdo do jornal que, diferente do que se verá depois, aqui ainda não existe uma fórmula ou

um modelo que legitime o que se reconhece como jornal ou jornalismo.

O reconhecimento dessa diversidade, no entanto, não nos impede de afirmar que a

“cobertura seletiva (...) a partir de um ponto de vista coerentemente engajado era

provavelmente o método de representação mais comum na imprensa de Paris durante a

Revolução” (Popkin, 1996, p. 220) — o Ami de peuple, “o mais célebre jornal radical da

Revolução”, editado por Jean Paul Marat, era ilustrativo dessa tendência. Além da crença na

função de esclarecimento e orientação dos jornais para a formação e exposição da opinião

pública, essa era também uma forma de se opor à “imprensa noticiosa sóbria e respeitável”

que caracterizava o Antigo Regime.

A importância de pôr na rua as suas palavras passava por cima de qualquer

outra consideração, e eles [os jornalistas] não tinham nenhum interesse em

adotar práticas editoriais que os obrigassem a trabalhar para a criação de

37

uma ordem social e política estável e conservadora. No início da década

revolucionária, a maioria dos jornais utilizavam o formato in-octavo

empregado anteriormente em panfletos. O próprio tamanho e aparência

desses jornais-panfletos já indicava a conexão deles com uma situação

política radicalmente instável (Popkin, 1996, p. 208).

Como se sabe, a Revolução Francesa resulta no processo de abolição do feudalismo e a

consequente afirmação da ordem burguesa que, a partir daí, tomará as rédeas também do

aparelho de Estado, mudando a correlação de forças que sustentava o pacto do Antigo

Regime. Mas, também como se sabe, as distintas forças que se uniam contra o Antigo Regime

não estiveram sempre em equilíbrio ou sob a tutela da burguesia, de modo que,

principalmente em resposta à contrarrevolução, as massas insurgentes, “já famintas,

desconfiadas e militantes” (Hobsbawm, 2009, p. 94) tornaram-se protagonistas de um período

em que a radicalidade da revolução ultrapassou todos os limites previstos e desejáveis para as

frações burguesas que a conduziam. Como Marx e Engels escreverão mais tarde, em meio às

revoluções de 1848, no Manifesto Comunista: “As armas com as quais a burguesia abateu o

feudalismo se voltam agora contra ela mesma. Mas a burguesia não forjou apenas as armas

que a levarão à morte; produziu também os homens que usarão essas armas: os trabalhadores

modernos, os proletários” (2005, p. 92). O resultado desse assombro, como tem sido ao longo

da história do capitalismo, foram novos pactos sustentados por um consenso conservador por

parte de frações da própria burguesia revolucionária. Na França, mas não apenas lá, venceu a

burguesia moderada6. Hobsbawm descreve o processo mais geral, apontando um padrão que a

experiência francesa evidenciaria para o conjunto das revoluções na Europa:

Repetidas vezes veremos moderados reformadores da classe média

mobilizando as massas contra a resistência obstinada ou a contrarrevolução.

Veremos as massas indo além dos objetivos dos moderados rumo a suas

próprias revoluções sociais, e os moderados, por sua vez, dividindo-se em

um grupo conservador, daí em diante fazendo causa comum com os

reacionários, e um grupo de esquerda, determinado a perseguir o resto dos

objetivos moderados, ainda não alcançados, com o auxílio das massas,

mesmo com o risco de perder o controle sobre elas. (...) Na maioria das

revoluções burguesas subsequentes, os liberais moderados viriam a

retroceder, ou transferir-se para a ala conservadora, num estágio bastante

inicial. De fato, no século XIX vemos de modo crescente (mais notadamente

na Alemanha) que eles se tornaram absolutamente relutantes em começar

uma revolução, por medo de suas incalculáveis consequências (2009, p. 95).

6 Como não é objetivo deste trabalho traçar um histórico de todas as revoluções burguesas, tomamos alguns

aspectos da Revolução Francesa como representativos e ilustrativos de fenômenos mais gerais que aqui tentamos

apresentar e discutir. Para assumirmos esse grau de generalidade, nos ancoramos, entre outros, em Hobsbawm,

que afirma que a Revolução Francesa foi um “acontecimento universal” e que “nenhum país estava imune a ela”

(2003, p. 133). Sempre que julgamos necessário, são apontadas especificidades de outros países, principalmente

Inglaterra e EUA.

38

Registrado esse revés revolucionário, chegamos a 1830, período a partir do qual, como

já dito, intensifica-se o recuo conservador de uma burguesia agora assentada no poder e

impulsionada pela revolução industrial que despontava mais fortemente a partir da Inglaterra.

No intervalo entre a década de 30 e o ano de 1848, os frutos desse desenvolvimento se

materializam no controle do aparelho de um Estado crescentemente burguês; num aumento

considerável do comércio internacional, com grande circulação de mercadorias e pessoas

entre os países; no nascimento de áreas de industrialização capitalista; mas também no

empobrecimento e insatisfação das massas; na expulsão dos camponeses da terra; e no

surgimento da classe operária como uma força política. Para completar o cenário, a partir de

1846, a Europa viveu uma crise econômica de origem principalmente agrária, cujas

consequências atingiram principalmente a população pobre campesina e os trabalhadores

assalariados.

O resultado dessa combinação complexa foi uma onda revolucionária que varreu

diversos países da Europa.

A situação dos trabalhadores pobres, e especialmente do proletariado

industrial que formava seu núcleo, era tal que a rebelião era não somente

possível mas virtualmente compulsória. Nada foi mais inevitável na primeira

metade do século XIX do que o aparecimento dos movimentos trabalhista e

socialista, assim como a intranquilidade revolucionária das massas. A

revolução de 1848 foi sua consequência direta (Hobsbawm, 2003, p. 285)

Foi nesse contexto que o proletariado que nascera como classe por volta de 1830 tomou

efetivamente a forma dos trabalhadores organizados em luta. Ou, como muito bem resume

Hobsbawm: “O movimento operário proporcionou uma resposta ao grito do homem pobre”

(2003, p. 291). Foi nas revoluções de 1848, portanto, que burguesia e proletariado finalmente

se enfrentaram diretamente na Europa, sem mais disfarces. “(...) com o progresso do

capitalismo, o ‘povo’ e os ‘trabalhadores pobres’ — isto é, os homens que construíram as

barricadas — podiam ser cada vez mais identificados com o novo proletariado industrial

como a ‘classe operária’. Portanto, um movimento revolucionário proletário-socialista passou

a existir” (Hobsbawm, 2003, p. 169). Embora as frações que se insurgissem não fossem

homogeneamente o proletariado, nascia ali um elemento que não existia ainda nos levantes de

1789: a consciência de classe7.

O verdadeiramente novo no movimento operário do princípio do século XIX

era a consciência de classe e a ambição de classe. Os “pobres” não mais se

7 Como veremos no capítulo 5, existem diferentes leituras sobre o grau de ‘desenvolvimento’ da consciência a

partir do qual ela pode ser considerada “de classe”. Aqui, Hobsbawm se refere principalmente ao processo em

que, na ação, as massas passam a se reconhecer como classe.

39

defrontavam com os “ricos”. Uma classe específica, a classe operária,

trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões ou capitalistas. A

Revolução Francesa deu confiança a esta nova classe; a revolução industrial

provocou nela uma necessidade de mobilização permanente. Uma existência

decente não podia ser obtida simplesmente por meio de um protesto

ocasional que servisse para restabelecer a estabilidade da sociedade

perturbada temporariamente. Era necessária uma eterna vigilância,

organização e atividade no “movimento” — o sindicato, a sociedade

cooperativa ou mútua, instituições trabalhistas, jornais, agitação

(Hobsbawm, 2003, p. 291).

Esse momento de nova agitação política recoloca o papel dos jornais como instrumento

de debate, esclarecimento, propaganda e disputa de ideias. Lá, o alvo era o Estado absolutista

e o mundo feudal do qual ele ainda era resquício; aqui, o alvo é a nova classe dominante, cuja

ação já oprime e submete parcelas significativas da humanidade. Antes, como expressão das

liberdades individuais que marcavam a esfera pública burguesa, a intensidade da agitação

política se media pelo vigor e pela multiplicidade de jornais que disputavam a influência

sobre a opinião pública a partir de iniciativas pessoais, de editores-militantes; agora, o papel

do jornal e do jornalismo político poderia ter efeitos muito mais estruturantes.

Foi nesse período, entre junho de 1848 e maio de 1849, que circulou, por exemplo, a

Nova Gazeta Renata, jornal alemão criado para ser um “órgão da democracia”, do qual Marx

era redator-chefe. A análise de textos publicados nesse jornal é muito ilustrativa do quanto a

luta de classes daquele momento se expressava nas páginas da imprensa. Todos os principais

acontecimentos, nacionais e, especialmente, internacionais, que marcavam a movimentação

daqueles meses são noticiados e comentados nas páginas do jornal, a partir de um

posicionamento político claramente assumido8. Isso não impede que a publicação se dedique

tanto a ‘notícias’ como a textos ‘argumentativos’, entendendo aquela como a informação mais

atual (quente, no jargão jornalístico de hoje), que traz a ‘novidade’ que o público espera, mas

aparentemente sem que disso se gere uma oposição, seja de concepção, seja de espaço no

jornal. É assim que, na edição de 27 de junho de 1848, por exemplo, o jornal avisa: “As

notícias recém-chegadas de Paris ocuparam tanto espaço que fomos obrigados a excluir todos

os artigos argumentativos” (Marx, 2010, p. 124). Apesar da clara centralidade dos

acontecimentos atuais, que marcavam a revolução nas ruas e as ações institucionais de

contrarrevolução, incluindo nesse caso muitos atos de censura à própria imprensa, os textos

8 Em 19 de maio de 1849, num texto em que anuncia a decisão do governo de fechar a Nova Gazeta Renana e

colocá-lo no exílio, Marx ironiza o diagnóstico oficial de que “as últimas edições” teriam se excedido no

“incitamento ao desprezo do governo existente”, lembrando exatamente que a “tendência” do jornal era explícita

desde o seu primeiro número. “Desde o início consideramos supérfluo ocultar nossa posição”, diz. E, em outro

trecho: “Não lestes nosso artigo sobre a Revolução de Junho, e a alma da Revolução de Junho não era a alma do

nosso jornal?” (Marx, 2010, p. 584).

40

mais analíticos trazem também, muitas vezes, temas estruturantes e, portanto, mais ‘frios’

(como, por exemplo, uma discussão crítica sobre o “Estado-modelo” que a Bélgica seria),

recheados de muitos dados objetivos, principalmente numéricos — mas que, nem por isso,

são menos analíticos ou ‘opinativos’. Por outro lado, encontram-se também textos claramente

de agitação política, curtos e escritos no imperativo, como aqueles que, em novembro de

1848, insuflam a decisão da Assembleia Nacional de suspender a cobrança de impostos,

convocando a população ao não pagamento (2010, p. 281). Chama atenção, por fim, a

constante referência, permeada por diálogos críticos e ácidos, aos textos de outros veículos de

imprensa, denotando uma clara luta de posturas e posicionamentos políticos travada também

entre os jornais, como esfera específica de manifestação da luta mais ampla.

Todo esse cenário promove, antes, durante e depois das revoluções de 1848, um

conjunto de iniciativas mais ou menos diretas e mudanças mais ou menos estruturais que

visavam conter o movimento das massas. “Evitar uma segunda Revolução Francesa, ou ainda

a catástrofe pior de uma revolução europeia generalizada, tendo como modelo a francesa, foi

o objetivo supremo de todas as potências que tinham gasto mais de 20 anos para derrotar a

primeira” (Hobsbawm, 2003, p. 159).

Tratando mais especificamente do contexto francês, Losurdo nos apresenta algumas das

estratégias utilizadas para esse fim. “Uma estabilização do poder e da ordem social existente

comporta a necessidade não só do desarmamento das classes populares mas também de um

controle mais acentuado da riqueza sobre os meios de informação e de agitação política”, diz.

E compara: “Se o Antigo Regime havia buscado controlar a imprensa mediante a censura

prévia, trata-se agora de recorrer a um instrumento diferente que deriva do entrelaçamento de

política e economia” (Losurdo, 2004, p. 148-149). Ele mostra como, na Restauração,

momento em que o poder do Estado volta à Casa Real, datado de 1814 a 1830, condicionou-

se o registro de qualquer órgão de imprensa ao depósito de uma determinada quantia, cujo

valor variava de acordo com a periodicidade e com o lugar de publicação — editar um jornal

em Paris era mais caro do que em áreas menos centrais. Se essa poderia parecer uma atitude

própria a um momento contrarrevolucionário, em que a monarquia reassume temporariamente

o poder — embora isso não significasse um retrocesso na consolidação das instituições

burguesas —, Losurdo conta que também a Revolução de Julho (1830), capitaneada pela

burguesia liberal, aboliu a censura, mas manteve a exigência de pagamento das chamadas

“garantias” para a publicação de jornais, cujas quantias tornaram-se “ainda mais pesadas”

depois do atentado a Luis Felipe, em 1835.

41

Os textos em que Marx analisa as revoluções de 1848 na França – quando, numa última

onda de insurreições, os trabalhadores e o movimento operário ganham protagonismo na cena

pública contra a burguesia liberal, principalmente a partir das jornadas de junho – são

recheados de passagens que destacam o papel dos jornais como instrumentos políticos dos

diferentes grupos em luta e as estratégias da classe no poder para conter o furor reivindicativo

que escapava tanto da atividade da imprensa como de outras conquistas democráticas que

tinham resultado da primeira fase das revoluções burguesas. Na descrição dos projetos em

disputa e das forças envolvidas, ele mapeia os jornais que representavam os interesses de cada

fração da burguesia e do proletariado – L'Assemblée Nationale, Le Constitutionnel, Le

National e Journal des débats (este último criado na leva da primeira fase da Revolução, em

1789, e ainda atuante nos movimentos de 1848), entre outros (Marx, 2008, pp. 72, 100, 187).

Como reação a essa força da imprensa, Marx destaca, por exemplo, que em 1850 uma nova lei

eleitoral – em que a burguesia no poder suprimiu o sufrágio universal, que tinha sido uma

conquista da burguesia revolucionária – foi acompanhada de uma nova lei de imprensa que,

além de elevar as taxas cobradas sobre todo material impresso e criar um imposto sobre as

publicações periódicas, determinou que todos os artigos de jornal deveriam ser assinados. Ele

conclui:

As determinações sobre finanças mataram a chamada imprensa

revolucionária (...). Enquanto a imprensa periódica foi anônima, ela aparecia

como um órgão de uma opinião pública numerosa e anônima. Era o terceiro

poder dentro do Estado. Com a assinatura dos artigos, cada jornal tornou-se

uma simples coleção de contribuições literárias de um número de indivíduos

mais ou menos conhecidos. Todos os artigos desceram ao nível de anúncios.

(Marx, 2008, p. 186).

Como se sabe, a partir desse último ciclo de revoluções sociais, a burguesia se estabiliza

no poder não só na França mas nos principais países europeus e nos Estados Unidos, e isso se

expressa diretamente num enxugamento do número de jornais que antes vocalizavam os

interesses em jogo. Tratando do contexto francês, mas com uma afirmação perfeitamente

generalizável para aquele momento da luta de classes, Losurdo explica: “(...) assiste-se à

unificação substancial das classes proprietárias, com a convergência dos respectivos

instrumentos de formação da opinião pública para um objetivo comum, isto é, a consolidação

da ordem social existente” (2004, p. 153).

42

Resistência a esse processo foi feita, segundo o autor, pelo jornal do partido de

tendência socialdemocrata9 que “coloca em discussão o monopólio burguês e proprietário dos

meios de informação” (2004, p. 154). Sustentando-se pela venda dos jornais, principalmente à

sua base operária, ele vira alvo de toda sorte de críticas, que atribuem um caráter nefasto ao

esforço de ação sobre as massas, tocado pelo partido em si e pelo jornal como seu

instrumento. Coerente com o discurso ideológico que ‘vende’ a ordem burguesa como aquela

que apresenta caminhos democráticos para fazer valer os interesses individuais e coletivos,

ganha força o processo de demonização de qualquer ação organizativa, que vai

crescentemente adquirindo uma imagem demagógica e manipuladora.

O domínio da burguesia não estará suficientemente sólido e garantido

enquanto o monopólio da força armada não estiver completado pelo

monopólio da produção espiritual, isto é, pela supressão seja dos meios de

informação, seja dos partidos que, por causa da sua organização e da sua

relação com classes sociais antagônicas em relação às dominantes, se

configuram, ou são suscetíveis de se configurar, em situações de crise, como

uma alternativa de poder (Losurdo, 2004, p. 157)

O autor conclui que o componente econômico, que dá início a esse processo de

‘censura’ dos jornais revolucionários, por meio da exigência de garantias em dinheiro, não

age sozinho. Ele explica:

E, assim, é uma precisa ação política, e não só a objetividade do processo

econômico, que determina o desaparecimento dos jornais partidários e

sindicais, que permitem às classes subalternas expressarem-se

autonomamente, pelo menos numa certa medida, e agora, ao contrário, são

suplantados por uma imprensa que se jacta de ser independente mas é

controlada pela grande propriedade (Losurdo, 2004, p. 159).

A longo prazo, o resultado é que, não apenas esvaziaram-se os jornais revolucionários,

como se retrocedeu, até quase a extinção, no vigor político explícito que então se manifestava

nas páginas dos jornais existentes. Em paralelo ao controle econômico, que inviabilizava a

multiplicação de jornais que não estivessem amparados por grupos ligados ao capital,

desenvolvia-se sobre o jornal um controle de outra ordem, metodológico e epistemológico,

diríamos. Eis aqui manifestos no jornalismo os elementos do que no início deste capítulo

tentamos caracterizar como decadência ideológica da burguesia.

Aranda nos parece preciso ao, curiosamente, caracterizar a imprensa informativa que

começa a ganhar fôlego nessa época — composta por publicações baratas e populares —

como política, realizada “para que os cidadãos assimilassem a nova política e a nova

9 Que reunia forças revolucionárias, não devendo ser confundido com a socialdemocracia que vigorou em alguns

países europeus no século XX.

43

sociedade que estava se impondo” (Aranda, 2004, p. 87). O próprio autor conclui: “Embora

seja uma metáfora um pouco enganosa, poderíamos dizer que o jornal político foi o

representante do liberalismo revolucionário, que tentava tomar o poder, enquanto o jornal de

notícias era representante do liberalismo conservador, já instalado no poder” (2004, p. 87). O

caráter informativo dessa imprensa que nascia a serviço de uma nova sociabilidade burguesa

estava, principalmente, na recusa à adesão partidária, já que, nesse momento, os fatos passam

a fazer política ‘por si’. Gramsci, no entanto, nos ajuda a reconhecer a falácia dessa

separação: tratando do fenômeno moderno de fragmentação dos partidos “orgânicos”, não

apenas entre diversos outros partidos independentes mas também entre outras instituições e

forças dirigentes, ele defende que “um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um

grupo de revistas) são também ‘partidos’, ‘frações de partidos’ ou ‘funções de determinados

partidos’”. Tomando como um dos exemplos o ‘Times’, da Inglaterra — que Aranda, por sua

vez, considera paradigmático do jornalismo inglês10

—, Gramsci ressalta que também pode

ser considerada um partido “a chamada ‘imprensa de informação’, supostamente ‘apolítica’”

(Gramsci, 2007, p. 350). Tomando emprestadas as palavras de Sodré, que se refere já ao

período de consolidação do processo que nesse momento apenas se iniciava, completaríamos

ainda: “Logo a grande imprensa capitalista compreendeu, também, que é possível orientar a

opinião através do fluxo de notícias” (Sodré, 1999, p. 4).

Merece destaque no contexto dessa época o processo de urbanização que se intensifica e

que, por sua vez, é parte constituinte daquilo que Gramsci identifica como o alargamento da

sociedade civil nas ditas sociedades ocidentais — que, nesse momento, incluem, além da

Europa, também os Estados Unidos. O autor italiano localiza essa mudança mais

propriamente a partir de 1870, com a expansão colonial europeia, quando ganha

definitivamente corpo a estratégia que ele chama de “hegemonia civil”. Nesse sentido, além

dos instrumentos legais e coercitivos de que se dispõe nos aparelhos de Estado, o espaço da

sociedade civil — externo a esses aparelhos embora componente do Estado em sentido lato

— passa a ser privilegiado nas estratégias de dominação que precisam contar, cada vez mais,

10

“O jornal por excelência, que consolidou e triunfou em fins do século XVIII e primeiras décadas do século

XIX foi o The Times de Londres. Seus proprietários foram capazes de torná-lo uma verdadeira indústria – em

menor escala, é claro -, baseada no uso da publicidade, no lançamento de uma infraestrutura de informação

adequada e na introdução de avanços tecnológicos que permitem um trabalho mais rentável” (Aranda, 2004, p.

94).

44

com a construção de um consenso que legitime o poder11

. E a imprensa, como o próprio

Gramsci reconhece em toda a sua obra, tem desde já um importante papel nessa estratégia.

1.2. Dos EUA para o mundo

Esse processo de construção de uma imprensa mais informativa se dá, ao mesmo tempo

nos EUA. Também lá se forjava naquele momento um jornalismo ‘de fatos’, que colocava a

oposição entre informação e opinião como determinante do que se consideraria, pouco tempo

depois, como prática profissional. Embora já tenha sido sinalizado, não é excessivo reafirmar

que o caráter informativo que o jornalismo ganha a partir daí é completamente diferente

daquele que estava na sua origem. Aqui, o fato, noticiável, não tem principalmente o caráter

de ‘serviço’ público ou comercial; o objetivo (declarado) continua sendo o esclarecimento da

sociedade — aquele mesmo que orientava o ideal iluminista no período revolucionário —,

mas agora, pretensamente sem partidarismos, interpretações e opiniões, já que se passa a

acreditar que os fatos falam por si. Já se reconheciam anteriormente iniciativas de

esvaziamento do debate político pelos jornais, que substituíam as vinculações partidárias pelo

destaque a “notícias relacionadas com os processos judiciais e com os crimes, indo às fontes

dos choques de interesses individuais e ao fundo das paixões humanas” (Sodré, 1999, p. 3).

Mas agora essa mudança começa a ganhar contornos mais estruturais e generalizáveis, que

caracterizariam o jornalismo informativo que sobrevive até os dias atuais, tornando as notícias

mais assépticas e o fazer jornalístico metodologicamente controlado. Vejamos, pois, as

especificidades dessa História no país que hegemonizou esse tipo de jornalismo.

Costuma-se datar o nascimento dos primeiros jornais norte-americanos do intervalo

entre o final do século XVII e o início do XVIII, quando os EUA ainda eram colônia inglesa.

Tal como na Europa, eles foram de início fundamentais para a atividade comercial,

facilitando, nesse caso específico, o intercâmbio de informações entre as colônias. Mas o

primeiro impulso ao desenvolvimento da imprensa nesse país se daria em meados do século

XVIII, na emergência do contexto político que resultaria na Guerra de Independência, travada

entre 1775 e 1783. Não por acaso, essa periodização coincide com o desenvolvimento do

sistema partidário norte-americano. Também reproduzindo o padrão europeu que já

descrevemos, os governos buscavam manter controle sobre essa imprensa que crescia, e os

principais instrumentos foram a lei do libelo sedicioso, que impunha punições a quem

11

Como explica Hobsbawm: “Em 1848 e 1849 os moderados liberais fizeram assim duas importantes

descobertas na Europa ocidental: que a revolução era perigosa e que algumas de suas substanciais exigências

(especialmente nos assuntos econômicos) poderiam ser atingidas sem ela” (2003, p.42)

45

difamasse ou criticasse autoridades governamentais, e a taxação financeira sobre o papel de

imprensa, conhecida como Lei do Selo, de 1765. Descrevendo o que seria o contexto da

revolução burguesa da América, Emery explica: “(...) a imprensa do tempo desempenhou um

importante papel. Nos jornais e nos panfletos (muitas vezes reproduzidos de revistas

semanais) aparecia a literatura dessa revolução. Era neles que se manifestavam as paixões e os

argumentos revolucionários” (1965, p. 107). O continente não tinha vivido diretamente o

processo de esclarecimento trazido pelo Iluminismo europeu, lá não se tinham construído

“grandes tratados como a Enciclopédia ou retumbantes convites à revolta como O Contrato

Social de Rousseau”. Os jornais se tornam o principal instrumento de disseminação dos

valores burgueses revolucionários, reproduzindo, em grande medida, “os manuais da

revolução” ingleses, principalmente a obra de Locke (Charles A. e Mary R. Beard apud

Emery, 1965, p. 198).

O jornalismo que se desenvolveu nos EUA no período pré-revolucionário era

claramente político, dividido em três principais frações, duas representando os liberais e

conservadores ingleses, whigs e tories, e outra representando os ideais de independência. A

defesa da independência pelos jornais ditos radicais se dá, inclusive, na cobertura, in loco, dos

confrontos. Referindo-se à cobertura que o jornalista Thomas Paine fez da primeira batalha da

Guerra de Independência, Emery descreve: “A reportagem que fez do encontro é até hoje a

mais notável reportagem de guerra durante aquele conflito. Teria sido ele o primeiro a negar

que aquela sua ‘história’ da batalha fosse objetiva. Naquela época, porém, estava

comprometido a usar de sua imprensa como instrumento de guerra” (1965, p. 124).

Num tempo de posições extremadas, Emery destaca a tentativa de um jornal12

– na

verdade de um jornalista, já que os jornais daquela época eram muito centrados em figuras

individuais – de “estudar ambos os lados das questões políticas”, defendendo, portanto, “uma

objetividade que não era o padrão da época” (1965, p. 109). O autor descreve essa exceção

para informar o quanto os jornais rivais, de tendência patriótica, “se ressentiam”, denunciando

essa objetividade como um caminho equivocado para se lutar por uma causa. Reconhecemos

nesse episódio um exemplo de embate entre o jornalismo francamente político, instrumento

da luta de grupos/classes, e o jornalismo que se coloca como instrumento de um

‘esclarecimento’ que passa pela ‘autonomia’ do indivíduo de formar, sozinho e isolado, a sua

própria opinião sobre os fatos. Trata-se, no entanto, de uma casualidade já que, naquele

12

O jornal, de caráter local, se chamava Rivington’s New York Gazeteer or the Connecticut, New Jersey,

Hudson River and Quebec Weekly Advertiser, e o jornalista era James Rivington.

46

contexto, não havia dúvida sobre qual dessas imprensas prevaleceria, ainda que

momentaneamente.

Embora muitos editores não hesitassem em publicar boatos, opiniões e até

mentiras deliberadas, a maioria dos jornalistas estava intimamente

identificada com os seus leitores. Seu verdadeiro partidarismo criava uma

amizade com o seu público que a objetividade moderna tende a enfraquecer.

Se as notícias não eram acuradas, os leitores pelo menos entendiam a opinião

do editor. Esse público de boa vontade desculpava os excessos jornalísticos,

sob a alegação de que o jornalista, no cumprimento da sua missão, tinha de

lançar mão de certo exagero para dar vigor e ênfase ao argumento, como

faziam os advogados nos tribunais (Emery, 1965, p. 137).

Também como na Europa, jornais e leitores proliferaram durante a guerra.

Os jornais revolucionários entravam em cerca de 40.000 lares, mas cada

edição tinha um número maior de leitores por exemplar do que seria possível

nos tempos modernos. Cada palavra era lida, até as pequenas linhas e

anúncios. Vários americanos tiveram pela primeira vez conhecimento da

Declaração de Independência através de seus jornais (Emery, 1965, p. 134)

Assim, também nos Estados Unidos, o século XIX chegou trazendo importantes

inovações para a imprensa e o jornalismo. De um lado, o incremento quantitativo: antes de

1830 o país já tinha o maior número de jornais e leitores do mundo e desenvolvia uma

imprensa diária, presente nos seus principais portos e centros comerciais. De outro, mudanças

qualitativas, como a substituição dos ensaios e panfletos pelo editorial como espaço principal

para se expressar opiniões sobre questões políticas e sociais. “Aqueles que visitavam os

Estados Unidos ficavam impressionados com a virilidade da opinião dos jornais. Homens de

talento começaram a se especializar nesse tipo de jornalismo” (Emery, 1965, p. 190). Reforça-

se, portanto, a presença e o papel da opinião no jornal, mas isso é feito a partir da delimitação

de um espaço, crescentemente ‘profissionalizado’. A descrição que Tocqueville faz da

imprensa norte-americana a partir da sua viagem ao país, realizada em 1831, ajuda a

compreender a relação intrínseca entre esse aspecto quantitativo e os efeitos mais amplos das

mudanças qualitativas. Comentando a ausência de controle econômico do Estado sobre os

jornais nos EUA naquela época, e comparando com o contexto da Europa, diz ele, numa

análise que ressalta uma sutileza normalmente ignorada, ainda hoje, nas expectativas postas

sobre o fim dos monopólios na imprensa como base para uma descentralização

democratizante:

Daí resulta que a criação de um jornal é empresa simples e fácil. Poucos

assinantes bastam para que o jornalista possa cobrir suas despesas. Por isso,

o número de escritos periódicos ou semiperiódicos, nos Estados Unidos, está

além do imaginável. Os americanos mais esclarecidos atribuem a essa

47

incrível disseminação das forças da imprensa seu parco poder. É um axioma

da ciência política, nos Estados Unidos, que o único meio de neutralizar os

efeitos dos jornais é multiplicar seu número. Não consigo entender por que

uma verdade tão evidente ainda não se tornou mais corriqueira entre nós.

Que os que desejam fazer revoluções com a ajuda da imprensa procurem só

lhe dar alguns órgãos poderosos, compreendo facilmente; mas que os

partidários oficiais da ordem estabelecida e os defensores naturais das leis

existentes acreditem atenuar a ação da imprensa concentrando-a, é coisa que

eu não seria capaz de conceber (Tocqueville, 2005, p. 213).

Os anos 1830 marcam o incremento da imprensa norte-americana na direção de um

público mais popular. Além do inegável desenvolvimento técnico — que, entre outras coisas,

barateava a produção do jornal, abrindo um novo nicho de mercado —, os historiadores da

imprensa costumam associar essa popularização aos impactos, na sociedade, do governo de

Andrew Jackson, o primeiro presidente democrata. Emery, por exemplo, afirma: “Por volta de

1824, o aparecimento do homem comum como uma força estava em plena marcha, embora

poucos tivessem conhecimento disso na época” (1965, p. 215). Mas esse “homem comum”,

que descobriu sua “força nas urnas” e com isso ajudou a construir uma “nova espécie de

democracia” é, também, o resultado de uma certa hegemonia calcada no desenvolvimento

econômico capitalista que já se via naquele momento. O mesmo autor destaca, como

“consequência direta da revolução industrial e da crescente necessidade de reconhecimento no

novo tipo de cidadãos”, o surgimento, em 182713

, do que ele chama de “imprensa trabalhista”

(1965, p. 219).

O fato é que a imprensa popular norte-americana é um divisor de águas nas mudanças

que o jornalismo sofrerá daí em diante, não só nos EUA. O marco desse processo foi o jornal

The New York Sun, criado em 1833 com o objetivo declarado de ser acessível a todos os

leitores – seu lema, inscrito no cabeçalho das edições, era ‘Ele [o sol] brilha para todos’. E

isso se refletiu em mudanças jornalísticas e econômicas: em relação ao conteúdo, o jornal

privilegiava informações sensacionalistas; comercialmente, ele barateou o preço de venda em

até seis vezes menos do que os jornais da época (Aranda, 2004, p. 95). O ‘Sun’, que serviu de

modelo para muitos outros jornais populares e também para os outros jornais da época, como

veremos, é reconhecido mesmo como marco de uma “nova era” do jornalismo (Emery, 1965,

p. 232).

Na descrição que Tocqueville faz de muitos aspectos da sociedade norte-americana

desse período, inclusive a imprensa, um dos destaques é exatamente a diferença no tipo de

13

O primeiro “jornal trabalhista”, criado nesse ano, foi o Journeyman Mechanic’s Advocate, da Filadélfia. Ele

durou apenas um ano. Em 1828, surgiu o Mechanic’s Free Press, que durou até 1837, com sucesso. (Emery,

1965, p. 219)

48

jornalismo que ali se fazia – ou, pela perspectiva do leitor, o tipo de conteúdo a que se tinha

acesso no jornal – em comparação com o seu país.

Na França, os anúncios ocupam um espaço restritíssimo, mesmo as notícias

são pouco numerosas; a parte vital de um jornal é aquela em que se

encontram as discussões políticas. Na América, três quartos do imenso jornal

que é posto diante de seus olhos são ocupados pelos anúncios, e o resto, na

maioria das vezes, pelas notícias políticas ou simples anedotas; somente de

longe em longe você percebe, num cantinho ignorado, uma dessas

discussões inflamadas que entre nós são o pasto cotidiano dos leitores

(Tocqueville, 2005, p. 211-212)

O jornalismo que deriva desse momento nos EUA, embora voltado originalmente para

uma fração mais popular, é parte já de um processo ao mesmo tempo de construção e resposta

a um ‘público médio’, alvo de uma imprensa de massa que se fortalece com a hegemonia

burguesa.

O Sun foi o reconhecimento do homem comum no plano das comunicações.

O trabalhador já tinha conquistado o direito do voto. Agora o jornal de um

penny poderia alcançá-lo como nenhum outro meio de comunicação. Não

levou muito tempo para que o político descobrisse esse fato. O estudioso do

jornalismo procurará em vão quaisquer manifestações de filosofia política

nas primeiras edições da imprensa popular. Mas, depois da primeira onda de

sensacionalismo, os editores dessas publicações passaram a oferecer

informações de qualidade superior. Ao mesmo tempo, os leitores começaram

a demonstrar um certo interesse pelo governo que eles tinham o poder de

controlar (Emery, 1965, p. 235).

Apesar da frase que fecha a citação acima, nada na descrição dessa imprensa comercial

de massas se assemelha, por exemplo, ao que vimos na definição de Habermas de uma esfera

pública política. Na verdade, ela se inclina no movimento oposto ao da imprensa francamente

política, de disputa de interesses e ferramenta clara da luta de classes, que se seguiu a esse

momento na Europa e que, como sinalizamos, também se deu em terras norte-americanas no

contexto da sua própria revolução burguesa – que, diferente da história europeia, não teve

uma fase de reação do proletariado contra a classe que se assentava no poder. Trata-se de um

processo em que, ao contrário, a identificação entre imprensa e grupo social se quebra,

reduzindo aquela a produto de consumo ‘personalizado’ e este à condição de público

consumidor. Positivando os resultados desse processo, com uma concepção ilustrada fora de

lugar, de um tempo e um contexto sem Iluminismo, Emery descreve:

Quando, porém, o jornal passou a não apelar para nenhuma facção política, a

imprensa e o público inclinaram-se a viver separados. Os jornais dissentiam

um do outro sobre problemas mais amplos. Mas o leitor que outrora assentia

às sutilezas doutrinárias de seu jornal partidário, passava agora a discordar

de muitas posições assumidas pela imprensa mais objetiva, pelo simples fato

49

de que nenhum jornal podia satisfazer os gostos de todos os leitores. Assim,

quanto mais objetiva se tornava a imprensa, mais os seus leitores estavam

em condições de criticá-la. O jornal não é mais o aliado íntimo como o era

nos tempos partidários. Mas o crítico saudoso dos velhos bons tempos

quando o público e a imprensa estavam integrados, talvez não constate que o

descontentamento que expressa é o preço que paga por uma imprensa mais

objetiva (1965, p. 237).

De fato, a crescente impessoalização e massificação da imprensa implica mudanças

importantes na forma de se fazer jornalismo. A historiografia da imprensa naturaliza essa

figura do homem-leitor comum (médio, diríamos nós), que muda de interesses quase como

um processo puramente subjetivo, embora afete o conjunto da sociedade, desprezando as

determinações econômico-sociais que estão na origem dessas mudanças. Assim, Emery dirá,

sobre o público da primeira leva de jornais populares: “Mesmo nas fases posteriores de sua

evolução, o homem comum mostrava pouco interesse por teorias complicadas e eruditas

contidas nos editoriais da imprensa ortodoxa. O público recém-reconhecido tinha mais

interesse pelas notícias do que por teorias” (1965, p. 236). Contribuindo para desnaturalizar a

especificidade desse tal “homem comum” – que, lembremos, na origem, era o homem das

classes mais baixas –, e consequentemente a ilusão do seu protagonismo voluntário no ‘gosto’

por esse ou aquele tipo de informação e jornal, o próprio autor reconhece que, num intervalo

aproximado de dois anos, os jornais populares influenciaram significativamente o estilo

jornalístico14

, de modo que “não tardou que os enfadonhos jornais comerciais começassem

copiando esse estilo das colunas dos jornais populares” (1965, p. 236). Como resultado do

mesmo caráter idealista-subjetivista da análise, do lado da imprensa atribuem-se as mudanças

a iniciativas individuais de jornalistas brilhantes e imagina-se, por sua vez, que essas

iniciativas sejam resultado de pura “intuição” (Emery, 1965, p. 264).

Como visto, a dita objetividade, que se expressa no reconhecimento da notícia

informativa e ‘neutra’, apartada de qualquer tipo de opinião, como matéria-prima principal do

jornalismo, será a base das mudanças que, no limite, requererão o controle metodológico de

um conjunto de técnicas mais rígidas. Eram consideradas notícias, principalmente: “uma

classe de informação que associava interessantes fatos nacionais e internacionais com a

experiência social”; “reportagens de crimes, violências e as atividades célebres ou indignas”;

“acontecimentos locais, muitas vezes apresentados em forma de campanha”; e informações

econômicas e políticas. Além disso, junto com as notícias, os jornais publicavam também

14

Reproduzimos aqui a ressalva que o autor faz em uma nota de rodapé, de que a imprensa popular ainda não

havia abandonado totalmente o partidarismo. Diz ele: “O jornal de notícias era um pouco mais impessoal que um

jornal doutrinário, mas a evolução da objetividade havia apenas começado e o seu objetivo só seria alcançado

mais de cem anos depois. Todo esse progresso deve ser computado relativamente” (Emery, 1965, p. 238).

50

histórias reconhecidas como de “interesse humano” (Emery, 1965, p. 264-265). Em relação ao

processo de trabalho, introduziu-se, de forma importante e definitiva no jornalismo, a figura

do repórter, como aquele que não só recebe mas vai à cata das notícias e fontes permanentes

(institucionais, como o Congresso). Desdobramento dessas mudanças foi a maior valorização

do ‘furo’ de reportagem que, por sua vez, já é reflexo do valor que a velocidade ganha no

jornalismo. Logo, no entanto, a concorrência da busca de notícias cada vez mais rápidas seria

solucionada na criação, pelos principais jornais de Nova York, de uma agência de notícias

principalmente para a apuração de informações vindas de outros países – era o germe da

Associated Press, que ficaria conhecida, com esse nome, a partir de 1860.

Há várias características gerais desse novo movimento no jornalismo,

inclusive a concentração sempre crescente do esforço de colher e transmitir

as notícias de modo imparcial, como função essencial da imprensa; a

crescente independência da opinião editorial das pressões políticas;

campanhas ativas e planejadas no interesse da comunidade; intensa

popularização da satisfação, pela maneira de escrever e pela escolha do

assunto; utilização dos novos progressos mecânicos e das técnicas do

formato para criar um produto mais atraente, e a redução da influência

pessoal quando o diário se tornou uma complexa sociedade anônima (Emery,

1965, p. 341).

Todas essas mudanças têm como base material evidente o desenvolvimento capitalista

dos Estados Unidos nesse momento. Para se ter uma ideia desse ambiente de prosperidade, a

riqueza nacional dobrou entre 1865, quando acabou a Guerra de Secessão, e 1880 e redobrou

em 1900. Também entre 1865 e o último ano do século XIX, a produção industrial cresceu

sete vezes. Nos últimos 30 anos do século, a população dobrou no país e triplicou nas cidades.

A cada 20 anos, a partir de 1860, o número de pessoas empregadas dobrou. Já em 1880,

metade dos trabalhadores eram urbanos, número que chegou a 62% em 1900. Nesse mesmo

intervalo, a produção de carvão e ferro, atividades importantes para o desenvolvimento

nacional naquele momento, quadruplicou. São desse período, entre o final do século XIX e o

início do XX, alguns dos mais conhecidos representantes do grande capital norte-americano,

como John Rockefeller, que tinha o “monopólio do petróleo”, e J. Piermont Morgan,

responsável pela criação da General Eletric a partir da fusão de outras duas empresas. Datam

também desse momento os primeiros trustes, que traziam a primeira sombra dos monopólios

em várias áreas, inclusive na indústria do papel. (Emery, 1965, p. 364. 365, 371). “O

capitalismo dinâmico de uma América em expansão, lançando mão de recursos naturais sem

paralelo e fazendo uso das novas máquinas da revolução industrial, tinha transformado a

economia nacional” (Emery, 1965, p. 364).

51

Em relação ao jornalismo, dá-se nesse momento, em terras norte-americanas mas com

uma influência que foi muito além das suas fronteiras, delimitando mesmo um modelo de

jornalismo considerado tecnicamente profissional e eticamente responsável, uma concepção

que recuperava a base da esfera pública burguesa habermasiana para adaptá-la a um

jornalismo de massas, que se apresenta numa versão não só empresarial como adequada aos

moldes do novo capitalismo monopolista que começava a despontar. A ideia de que “os

leitores precisavam estar certos de poderem formar sua própria opinião baseados na

apresentação objetiva e ampla das notícias”, discurso ideológico que sustenta o jornalismo

burguês até os dias de hoje, se consolida técnica e politicamente nesse momento, no final do

século XIX. Se a esfera pública burguesa, influenciada pela crença iluminista na razão e pelo

pensamento político liberal clássico, representava o interesse de homens privados reunidos no

espaço público de uma sociedade que se apartava do Estado em nome de uma nova ordem de

valores que, naquele contexto revolucionário, podiam ser considerados universais, a liberdade

de opinião própria da imprensa de massas se dará na base do isolamento do indivíduo-leitor,

promovido através da concorrência entre empresas cada vez maiores que têm na informação

também a sua fonte de lucro.

(...) o jornal acaba entrando numa situação em que ele evolui para um

empreendimento capitalista, caindo no campo de interesses estranhos à

empresa jornalística e que procuram influenciá-la. A história dos grandes

jornais na segunda metade do século XIX demonstra que a própria imprensa

se torna manipulável à medida que ela se comercializa. Desde que a venda

da parte redacional está em correlação com a venda da parte dos anúncios, a

imprensa, que até então fora instituição de pessoas privadas enquanto

público, torna-se instituição de determinados membros do público enquanto

pessoas privadas – ou seja, pórtico de entrada de privilegiados interesses

privados na esfera pública (Habermas, 2003, p. 217-218).

Destaque-se que esses jornais nunca abriram mão da sua função na formação da

chamada opinião pública. Ao contrário, é parte essencial da mitologia do jornalismo burguês

o reconhecimento do seu papel para o bom funcionamento da democracia – burguesa,

evidentemente, e isso faz toda a diferença. Trata-se crescentemente, no entanto, de adaptações

extemporâneas e anacrônicas de uma concepção de opinião pública que, em Habermas,

referindo-se ao ambiente pré-revolucionário, pressupunha o critério da racionalidade,

reconhecido a partir de um “debate consciente com questões cognoscíveis”, e a prevalência do

espaço público da argumentação (2003, p. 258). A suposição que temos mantido ao longo

deste trabalho é que, embora esse descompasso fique evidente quando a imprensa começa a se

tornar grande empresa capitalista, ele existe, de forma mais ou menos clara, com impacto

52

direto sobre o jornalismo, desde que a burguesia, antes revolucionária, se consolidou no

poder; desde, portanto, o momento em que a racionalidade burguesa foi subsumida no

empenho ideológico de conter a luta de classes e que o Estado, como na sua forma absolutista,

deixou de ser o obstáculo do desenvolvimento da nova sociedade para se tornar o “comitê

executivo” da burguesia. Não por acaso, no que diz respeito ao jornalismo, essas mudanças

definitivas têm como carro-chefe os Estados Unidos, um país em que a ausência de um Estado

feudal trouxe mais cedo a estabilidade do poder burguês.

Mas não é só. A crença na diversidade de versões, vozes e opiniões, reunidas ou

confrontadas num espaço público, nos moldes de um ‘mercado’, como caminho para uma

sociedade mais democrática, em que a multiplicação dos atores – reduzida muitas vezes ao

fim do monopólio – permitirá uma compreensão mais equilibrada da realidade por parte do

público midiático, influencia até hoje também parte da militância de esquerda, principalmente

aquela que atua nos movimentos pela democratização da comunicação. Com isso, esvazia-se

uma pauta tão importante na luta anticapitalista de conceitos como ideologia e luta de classes,

que apontam para a superação dos limites da democracia burguesa e para a desmistificação da

real liberdade de pensamento dos indivíduos nessa sociedade.

1.3. A forma mercadoria: jornalismo e informação no capitalismo monopolista

Abordaremos neste tópico de forma mais detida o momento em que a imprensa dá,

através de uma definição precisa do que é jornalismo, o salto de qualidade que lhe permite

fazer da notícia, ao mesmo tempo, mercadoria adequada aos moldes da grande empresa

capitalista e importante insumo ideológico, num processo de retroalimentação da acumulação

do capital. A descrição mais pormenorizada do modo de fazer jornal que deriva desse

processo será feita no capítulo 3. Por ora, enfoquemos as mudanças que a estrutura e

organização da imprensa sofrerão a partir da passagem do capitalismo concorrencial para o

capitalismo monopolista.

São representativos desse novo momento da imprensa e do jornalismo, nomes como o

de Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst, jornalistas e proprietários de cadeias de jornais

norte-americanos, entre os quais se destacam, respectivamente, o The New York World e The

New York Journal.

Esse tipo de imprensa se afirma no contexto do surgimento do capitalismo monopolista,

caracterizado pela supremacia de grandes empresas transformadas em Sociedades Anônimas;

e pela corrida imperialista na conquista de novos territórios, que representam novos mercados.

53

Já existem monopólios entre 1860 e 1870, mas eles “não constituem mais do que germes

quase imperceptíveis”. A crise de 1873 marcou o desenvolvimento dos cartéis, mas ainda

como um “fenômeno passageiro” (Lenin, 2008, p. 23). Essa será a forma consolidada da

economia capitalista apenas a partir da passagem do século XIX para o início do século XX.

Junto com os países centrais da Europa, os Estados Unidos não só são protagonistas dessa

nova fase do capitalismo imperialista como, segundo nos mostra Lenin, lá o processo de

concentração foi ainda mais intenso15

.

No que diz respeito diretamente à imprensa, que se torna empresa jornalística, data

aproximadamente dos anos 1880 a transformação dos jornais das grandes cidades em

sociedades anônimas. “Os diários mais importantes (...) se tinham transformado em

complexas instituições comerciais – encabeçados pelo New York World de 10 milhões de

dólares como capital e meio milhão de receita anual na década de 1890 (...)” (Emery, 1965, p.

426). Em relação ao alcance do produto das empresas jornalísticas, que era acompanhado do

sucesso publicitário, o exemplo do World é significativo: em 1887, como o jornal de maior

circulação dos EUA, tinha uma tiragem de 250 mil exemplares (Emery, 1965, p. 409).

A importância desse contexto, no entanto, vai além do processo de monopolização e

concentração da própria imprensa. Como nos lembra Lenin: “O monopólio, uma vez que foi

constituído e controla milhões e milhões, penetra de maneira absolutamente inevitável em

todos os aspectos da vida social, independentemente do regime político e de qualquer outra

particularidade” (2008, p. 65). Na coerente imbricação entre o lugar econômico que passa a

ocupar nesse momento e a função ideológica que nunca deixou de ter, a imprensa encontra a

síntese da sua existência burguesa. E isso se expressa de modo claro na consolidação de uma

forma de fazer jornalismo que também sintetiza essa dupla função.

A mesma objetividade que serve para conter paixões político-partidárias, e é anunciada

como vacina contra a dependência em relação ao Estado, está na origem – e também na

consolidação – de uma empreitada dos jornais na busca por novos públicos consumidores.

Não por acaso, essa imprensa empresarial, que traz a forma madura do jornalismo promovido

pela imprensa popular nos anos 1830, curiosamente retoma o caráter sensacionalista dessa sua

origem. Principalmente o World, nos EUA, aposta em títulos apelativos, histórias de

“interesse humano”, campanhas e promoções. A transformação do jornal em empresa,

acompanhada da consolidação das mudanças no jornalismo, se reflete também na estrutura

15 Também no caráter imperialista dessa nova fase do capitalismo a imprensa terá participação importante. A

guerra hispano-americana, que começou em 1898, entre EUA e Espanha, por exemplo, ficou conhecida como

“Guerra de Hearst”, em referência a um dos maiores barões da imprensa daquele país, que não só apoiou a

guerra como ajudou a ‘produzi-la’.

54

das equipes, que crescem – o World tinha, antes de encerrar o século XIX, 1300 empregados –

e especializam cada vez mais suas funções (Emery, 1965, p. 426). Nesse processo, o editor,

que era a estrela do jornal político do século anterior, perde importância para outros

profissionais.

Por volta de 1870, os principais diários metropolitanos tinham um editor, um

redator-chefe ou um redator de plantão encarregado das notícias, um redator

secretário que dirigia o trabalho de cerca de duas dúzias de repórteres e

selecionava as reportagens a serem publicadas, um redator telegráfico que se

ocupava das notícias vindas pelo telégrafo cada vez mais numerosas, um

gerente, um redator literário, um crítico dramático e articulistas. O redator-

secretário, convém notar, estava se tornando o homem-chave da grande

equipe jornalística (Emery, 1965, p. 419).

Crescentemente, pari passu à diminuição da concorrência pelo monopólio, esse trabalho

de apuração será substituído cada vez mais pelo conteúdo produzido pelas agências de

notícias, que se tornam o caminho também para garantir a maior velocidade da informação.

A competição pelo mercado em massa desestimulava a individualidade; o

jornal que apelasse para um determinado grupo de leitores pela natureza

específica de suas notícias ou de sua política editorial verificava muitas

vezes ter perdido a corrida para um jornal de massas cuja circulação atraía

um crescente volume de renda publicitária. A perda de individualidade

desencorajava por sua vez a leitura de mais de um jornal. As associações de

imprensa contribuíram para a padronização, suprindo de modo cada vez

melhor a cobertura noticiosa, mas também uniformizando o seu conteúdo e

padronizando o estilo. E do mesmo modo as cadeias de jornais com a sua

distribuição em massa dos produtos de colunistas e dos caricaturistas, das

histórias em quadrinhos e de artigos (Emery,1965, p. 559).

Do desenvolvimento e aperfeiçoamento desse ‘desenho’, nasceu o que seria a marca do

jornalismo massivo, transformado em clara atividade econômica e ideológica da burguesia,

que sobrevive até os dias de hoje: a pirâmide invertida. Este é o nome do modelo que, com

pequenas variações, resume o tipo de jornalismo que dá centralidade absoluta aos fatos (no

sentido de se opor à interpretação) e que depende inteiramente do investimento numa

objetividade entendida como caminho (e quase sinônimo) para a imparcialidade. Foi utilizado,

pela primeira vez, em 1861, no New York Times (Genro Filho, 1987, p. 84). Segundo esse

modelo, uma boa notícia deve responder a seis perguntas em torno do fato: o quê? quem?

como? quando? onde? por quê? — o famoso lead: um parágrafo, geralmente inicial, que deve

concentrar aquelas que são consideradas as principais informações da notícia. O nome

‘pirâmide invertida’, que segundo Genro Filho representa uma fracassada tentativa de

elaborar uma teoria da notícia, se justifica por defender uma concentração das informações

tidas como mais importantes no início da notícia — que representaria a base da pirâmide, de

55

modo que, no cume, ficariam as informações tidas como descartáveis. Uma das explicações

mais comuns para a origem da pirâmide invertida é o fato de ela permitir o corte do final da

notícia, sem grandes esforços de edição, quando esse espaço precisasse ser ocupado por

anúncios publicitários que chegassem em cima da hora.

Ciro Marcondes Filho sistematiza todas essas mudanças históricas como integrantes de

cinco fases do jornalismo, que vão do que ele denomina como “pré-história”, no século XVII,

até os dias atuais. O quadro a seguir, produzido pelo autor, sintetiza as principais diferenças,

acrescentando um quarto momento, que não abordaremos de forma particular.

56

Tipo Época Valores jornalísticos dominantes

Aspectos funcionais e tecnológicos

Agentes Economia

Pré-história Artesanal 1631 a 1789

Espetacular, singularmente novo (desastres, mortes, seres deformados, reis, etc.)

Jornal ainda semelhante ao livro, poucas páginas

Empreendedor isolado

Elementar

Primeiro Jornalismo

Político-literário

1789 a 1830

Razão (verdade, transparência); questionamento da autoridade; crítica da política; confiança no progresso

Profissionalizaçã; surge a redação; diretor separa-se do editor; artigo de fundo; autonomia da redação

Políticos; escritores; críticos; cientistas

Economia deficitária

Segundo Jornalismo

Imprensa de massa

1830 a +- 1900

O “furo”; a atualidade; a “neutralidade”; criam-se a reportagem, as enquetes, as entrevistas, as manchetes; investe-se nas capas, logo e chamadas de 1ª página

Rotativas e composição mecânica por linotipos (1890); telégrafo e telefone; cria-se a agência Havas; mais publicidade e menor o peso de editores e redatores; títulos passam a ser feitos pelo editor

Jornalistas profissionais

Economia de empresa: jornal tem que dar lucro; aumento das tiragens: 35 para 200 mil

Terceiro Jornalismo

Imprensa monopo-lista

de +- 1900 a +- 1960

Grandes rubricas políticas ou literárias; páginas magazines: esporte, cinema, rádio, teatro, turismo, infantil, feminina

Influência da indústria publicitária e das relações públicas; uso da fotografia

Jornalista, publicitários e relações públicas promovem “indústria da consciência”

Grupos monopo-listas dominam a imprensa; época de tiragens-monstro

Quarto Jornalismo

Informa-ção eletrônica e interativa

De +- 1970 até o pre-sente

Impactos visuais, velocidade, transparência

Implantações tecnológicas (barateamento da produção); alteração das funções do jornalista; toda a sociedade produz informação

Redes/sistemas informatizados; pessoas em interface; jornalistas prestadores de serviço

Financia-mentos migram para TV e internet; crise da imprensa escrita

Reproduzido de MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e Jornalismo. A saga dos cães perdidos. São Paulo:

Hacker Editores, 2002, p. 48.

57

É importante, por fim, frisar, sob risco de cairmos num historicismo sem nuances, que

todo esse processo não aconteceu da mesma forma, e com a mesma intensidade, em todos os

lugares. Tentamos aqui traçar linhas gerais do modelo que se tornou hegemônico e que,

embora tenha seus germes na Europa, se mundializa a partir dos Estados Unidos. Há, no

entanto, singularidades no tempo, que guardam marcas ainda nos dias de hoje. Identifica-se,

por exemplo, um descompasso entre os países no processo de profissionalização da imprensa,

como nos explica Neveu, referindo-se à realidade francesa: “(...) até o nascimento da

imprensa popular na Belle Époque, os jornais são feitos sem jornalistas, os artigos são

redigidos por colaboradores” (2006, p. 26). E isso tem consequências diretas sobre o perfil do

jornalismo francês, que não foge às determinações econômicas mas se diferencia em resposta

à sua própria história de consolidação dos valores burgueses16

. Destacando a veia política e

literária que sobrevive por mais tempo nos jornais franceses, Neveu define:

O jornalismo francês marca assim sua diferença do modelo anglo-americano.

(...) A excelência profissional se fixa sobre o domínio e o brio do estilo, a

capacidade de defender uma linha editorial. Os conteúdos de informação

jornalística, que valorizam críticas, pequenos artigos e crônicas, traduzem o

peso do comentário, de um metadiscurso sobre a atualidade que privilegia a

expressão de opiniões e transforma o acontecimento em pretexto para

exercícios de estilo brilhantes e desenvoltos (2006, p. 29)

Mas o autor ressalta ainda que, apesar de se reconhecer um modelo anglo-saxão que

aqui tentamos caracterizar, também o jornalismo de língua inglesa não se constitui em um

bloco fechado, sem qualquer tipo de variação.

O jornalismo que vence finalmente em Londres e Nova York não chega a

essas cidades antes de ter superado a forte concorrência de uma imprensa

politizada, ou seja, uma enorme veiculação clandestina de publicações não-

registradas ligadas ao mundo operário nascente na Grã-Bretanha ou, nos

16

Apenas a título de ilustração sobre a chegada de pelo menos algumas dessas mudanças na Itália, vale

mencionar uma correspondência de 1931 em que Gramsci, já na prisão, comenta seu desagrado com a leitura dos

jornais. Em uma carta de 19 de novembro, ele diz: “Na verdade, não acreditava que o Corriere della Sera tivesse

decaído tanto, técnica e intelectualmente; o que espanta é a ausência de continuidade nas notícias, de modo que

num dia se mencionam acontecimentos que anteriormente não haviam sido registrados, etc. A partir do início do

ano, vou tentar assinar um outro jornal, p. ex., a Tribuna, para ver se é possível encontrar uma organicidade e

coerência maiores.” (Gramsci, 2005, p. 119). E, pouco mais de um mês depois, em 28 de dezembro, ele conclui,

resignado: “De resto, me convenci de que assinar dois jornais seria perfeitamente ocioso. Pode ser que a

Gazzetta del Popolo tenha melhorado, tudo é relativo: deve ter melhorado especialmente em relação à

colaboração literária e cultural; mas, do ponto de vista da estrutura jornalística (reportagens, informações, etc.),

certamente não é superior ao Corriere, cujos defeitos devem ser uma doença orgânica de todo o jornalismo atual.

A falta de organicidade das informações, a publicação de acontecimentos com referência a antecedentes que não

foram dados, como se o leitor tivesse de conhecê-los (isto é, a suposição de que o leitor leia vários jornais ou leia

os jornais estrangeiros), a inexistência de comentários sobre fatos de importância fundamental, como a

transformação da Banca Commerciale ou a criação do Credito Mobiliare, reproduzindo-se apenas os

comentários e as informações dos jornais estrangeiros – nada disso pode ser deficiência unicamente do Corriere.

Então, para que serviria ter outro jornal, que seria apenas uma cópia piorada e imperfeita do Corriere? Só para

ler alguns artigos da parte cultural? Não valeria a pena” (Gramsci, 2005, p. 138-139).

58

Estados Unidos, uma longa tradição de jornalismo político, ligado à

construção das máquinas partidárias. Ocultar meio século em que um

jornalismo engajado teve um papel central equivale a reescrever a história do

ponto de vista dos vencedores (Neveu, 2006, p. 32).

No Brasil, os elementos principais do modelo de jornalismo informativo começaram a

se disseminar a partir da década de 1950, embora já houvesse um processo de

profissionalização em curso. A monopolização da imprensa, no entanto, tem dois grandes

marcos principais. O primeiro são os Diários Associados, que se tornaram uma grande rede

composta de diversas mídias, sob o comando de Assis Chateaubriand ao longo da primeira

metade do século XX, culminando com a inauguração da primeira emissora de televisão do

país, a TV Tupi de São Paulo, em 1950. O segundo, e mais importante para os nossos

objetivos, é o hoje denominado Grupo Globo, maior conglomerado de mídia do Brasil, cujo

destaque se deve não apenas pela atualidade da sua atuação, mas pela forma como encarna

historicamente essa adesão a um modelo norte-americano que sintetiza as características de

uma empresa monopolista com um certo padrão técnico, de jornalismo e de entretenimento. O

episódio mais significativo desse processo é a conhecida parceria firmada em 1962 pela

empresa (composta, naquela época, por jornal impresso e rádio) com o grupo Time Life, numa

negociação que driblou a legislação brasileira e fez com que, três anos depois, a TV Globo

nascesse já com um “aporte financeiro” 20 vezes maior do que a sua principal concorrente17

.

Tudo isso, como se sabe, com o apoio político da ditadura empresarial-militar. Coutinho

destaca que, além da ‘contribuição’ em dinheiro, fazia parte do acordo que a empresa de

Roberto Marinho recebesse dos EUA também “acesso a informação privilegiada sobre

métodos de gestão no setor televisivo e ‘assistência técnica’” (2014, p. 113). Ele conclui:

Importa perceber que o apoio do grupo Time-Life permitiu à TV Globo

explorar com antecedência e em condições financeiras privilegiadas a nova

estrutura de telecomunicações criada pela ditadura para o desfrute dos

monopólios. Graças a esse acordo com o grupo Time-Life, em apenas quatro

anos, entre 1965 e 1969, a Globo – e com ela o grande capital monopolista e

internacional – passou a dominar o mercado audiovisual brasileiro. É assim

que, por meio de fachadas, testas de ferro e um governo fantoche, o

imperialismo aprofundou o seu controle sobre a informação no Brasil

(Coutinho, 2014, p. 115-116).

No que diz respeito ao modo de fazer jornalismo, esse processo consolidou,

principalmente para o meio televisão, mas não apenas, um “padrão Globo de qualidade” que

se identificou com o próprio formato da informação e da notícia. Já o processo de

monopolização no campo da comunicação só faz crescer desde os primeiros insumos

17

Sobre esse episódio, ver Herz, Daniel. A História Secreta da Rede Globo. Porto Alegre: editora Tchê!, 1986.

59

fornecidos pelos militares. Para se ter uma ideia, em um texto escrito após a análise dos

balanços de 2012 das empresas de mídia no Brasil, Gustavo Gindre conclui que a Globo “é o

único grupo de comunicação de capital brasileiro capaz de sobreviver no médio prazo”. E

atesta: “(...) aquela conversa de que a comunicação no Brasil é controlada pelas tais nove

famílias simplesmente não é mais verdade. O tempo agora é outro. O mercado brasileiro de

comunicações está cada vez mais dividido entre os grandes grupos estrangeiros e a Globo. O

resto não vale uma nota de três reais” (Gindre, 2013).

1.4. Jornalismo informativo: necessidade social ou desejo consumidor

O não reconhecimento de todo esse chão histórico como determinante das mudanças do

jornalismo, que leva à naturalização do resultado que chega até os nossos dias como um

processo de aperfeiçoamento técnico e profissional, é parte da função ideológica – no sentido

negativo marxiano – que essa prática adquire ao se consolidar no capitalismo avançado. Não

faremos aqui uma revisão de autores para identificar a forma como esse processo é

comumente caracterizado, mas uma rápida olhada sobre a bibliografia que já está sendo

utilizada neste capítulo dá sinais claros da ausência de determinações materiais que

predomina na historiografia do campo da comunicação.

Aranda, por exemplo, embora reconheça que a imprensa política foi responsável por um

importante impulso na atividade jornalística, acaba simplificando o processo da sua superação

ao explicar o enfraquecimento desse modelo a partir do interesse individual, quase como um

resultado de leis de mercado. Diz ele: “(...) o que de fato ocorreu foi um cansaço, pelo

público, diante de tanta politização. Assim, uma outra fórmula jornalística foi desenvolvida,

baseada em aspectos informativos e noticiosos, o que pode ser explicado apenas na medida

em que as condições gerais melhoraram (...)” (Aranda, 2004, p. 86).

Caracterizando como “imprensa independente” os jornais que se ‘libertavam’ da

influência partidária — dando destaque, entre eles, ao New York Times —, Robert Park faz

uma análise semelhante: naturaliza, sem questionamentos nem historicidade, uma categoria de

“homem comum” e atribui a ele um interesse maior pela notícia do que por “doutrinas

políticas e ideias abstratas” (2008, p. 44). O autor define: “(...) o homem comum pensa em

imagens concretas, anedotas, desenhos e parábolas. Ele acha difícil e cansativo ler um longo

artigo a menos que seja dramatizado ou tome a forma do que os jornais chamam ‘estória’”

(2008, p. 44). Assim, retira toda a base material que age sobre esse “homem comum” – que

não tardará a se tornar público, massa e consumidor da indústria cultural capitalista. E

60

conclui, referindo-se à crise da imprensa partidária e de opinião: “Enquanto isso, um novo

poder político havia surgido e encontrado expressão na imprensa. Esse poder foi incorporado

não no editorial e no seu redator, mas na notícia e no repórter” (Park, 2008, p. 43-44).

Embora com um grau de sofisticação incompararavelmente maior, a análise de

Habermas, que redunda numa nostalgia em relação ao esvaziamento de uma esfera pública

racionalmente orientada, carece também do elemento da luta de classes18

, como categoria e

concretude histórica. Ele reconhece que o interesse comum das “pessoas privadas enquanto

proprietários privados” era o que garantia a existência, como tal, de uma esfera pública

política “suficientemente livre da concorrência de interesses privados individuais” (Habermas,

2004, p. 232). Ao denunciar a invasão da esfera pública debatedora por um processo de

acordos, negociações, pressões e contra-pressões, Habermas acaba reduzindo o complexo

mecanismo da luta de classes que eclode a partir da derrota do poder feudal a um ruído

perturbador de uma certa harmonia que, na verdade, só podia ser real num específico e curto

momento histórico, em que, como vimos, a burguesia revolucionária de fato expressava o

interesse comum. Assim, critica o processo progressivo de reaproximação entre Estado e

sociedade e a consequente particularização dos interesses representados nesse Estado, mas

não avança no sentido de perceber esse movimento como próprio da acomodação, no poder,

de uma classe que era, ela mesma, particular.

Essa mesma expectativa de ‘limpeza’ dos espaços em relação a interesses políticos ou

mercantis ele estende ao papel do jornal, ‘corrompido’, no mesmo movimento, como

instrumento primordial da esfera pública política. Referindo-se também a mudanças que

seriam marcantes na imprensa a partir desse momento, diz o autor, num lamento ingênuo e

naturalizador das relações capitalistas:

Ora, a invasão da esfera pública pela publicidade – invasão tornada

economicamente necessária – não precisaria ter enquato tal por consequência

provocar por si a modificação dela. Assim como, desde o segundo terço do

século passado, os jornais começaram a separar da parte redacional um

espaço para anúncios, assim também uma separação das funções

jornalísticas ligadas ao pensamento das pessoas privadas enquanto público

poderia ter deixado essencialmente intacta a esfera pública, criando uma

representação pública de interesses privados individuais ou, então, coletivos.

Mas não se chegou a formar uma tal esfera pública economicamente

separada da esfera pública política, uma esfera pública jornalístico-

publicitária com a sua origem própria e específica; a representação

jornalístico-publicitária de privilegiados interesses privados esteve desde o

começo plenamente amalgamada com interesses políticos. Pois à mesma

18

Segundo Mészaros, Habermas considera que categorias como “classe, consciência de classe, exploração,

forças e relações de produção, e muitas outras”, só são aplicáveis ao capitalismo na sua fase liberal (2007, p.

80).

61

época em que, através da propaganda publicitária, penetrava na esfera

pública a concorrência horizontal dos interesses dos donos de mercadorias

entre si, os fundamentos do capitalista concorrencial já haviam penetrado

enquanto tais nas lutas dos partidos, também a concorrência vertical entre

contraditórios interesses de classes havia ingressado no âmbito da esfera

pública (Habermas, 2004, p. 225)

Adelmo Genro Filho, tentando traçar uma teoria marxista do jornalismo, que resultou

num dos mais importantes trabalhos sobre esse tema no Brasil, também critica a nostalgia de

Habermas em relação a um jornalismo político, mas faz isso positivando a forma informativa

e profissionalizada que essa prática assume a partir da segunda metade do século XIX. Para o

autor, o jornalismo informativo deve ser tomado como o próprio modelo do conceito de

jornalismo ou, em outras palavras, ele acredita que é esse formato que garante a

especificidade do jornalismo como forma de conhecimento. Desdobramento político dessa

compreensão é a sua aposta de que a “batalha” dos setores socialistas e de esquerda de um

modo geral por uma outra visão de mundo “pode e deve” se dar por dentro dos jornais

burgueses.

Para Genro Filho, a notícia — que, como elemento básico do jornalismo, existiria

apenas na sua forma informativa — só pode se transformar em mercadoria no momento em

que adquiriu valor de uso social, o que, na análise direta e sem mediações que o autor

estabelece, significaria que ela passou a responder a uma necessidade social concreta que, por

sua vez, seria resultado do desenvolvimento do capitalismo e das relações que ele engendrava

naquele momento. Ao contrário, antes, na sua fase iluminista-revolucionária, a imprensa (e o

jornalismo) seria apenas um instrumento de classe (no caso, a burguesia revolucionária). Diz

o autor:

A mercadoria-notícia, ou seja, a informação jornalística comercializada,

continua tendo um valor de uso cujo conteúdo, por definição, jamais pode

ser dissolvido ou abolido, pois ele é condição para a realização do produto

como valor de troca. Mais concretamente, essa persistência do valor de uso

da notícia se manifesta do seguinte modo: o espaço ocupado pelas notícias e

reportagens, mesmo que secundários conforme a ótica puramente

econômica, deve corresponder a uma necessidade do público consumidor

para que o espaço publicitário seja valorizado (Genro Filho, 1987, p. 43)

Com isso, ele quer afirmar que o processo de mercantilização da notícia – e do

jornalismo – se dá apenas porque “os capitalistas” “percebem” o surgimento de uma nova

necessidade social – a informação com as características da notícia – e fazem dela uma fonte

de lucro. A despeito da origem burguesa e mesmo da sua apropriação como atividade

econômico lucrativa, o potencial revolucionário do jornalismo estaria, segundo essa hipótese,

62

na necessidade real que a notícia representa para a sociedade como um todo a partir de um

determinado momento do desenvolvimento do capitalismo. Vejamos mais uma vez:

Trata-se, sim, de uma nova modalidade de apreensão do real, condicionada

pelo advento do capitalismo, mas, sobretudo, pela universalização das

relações humanas que ele produziu, na qual os fatos são percebidos e

analisados subjetivamente (normalmente de maneira espontânea e

automática) e, logo após, reconstruídos no seu aspecto fenomênico (Genro

Filho, 1987, p. 19)

O detalhamento de como Genro Filho pensa que esse jornalismo informativo pode

conter um germe de emancipação para os trabalhadores será feito mais adiante, quando

adotaremos, inclusive, parte da sua teorização sobre a especificidade do jornalismo. Por ora,

importa reter que, para esse autor, a técnica que define o jornalismo informativo não pode ser

reduzida ao equívoco da objetividade pura que ela prega, já que essa ‘forma’ representaria, de

fato, a resposta adequada – ainda que mercantilizada – a uma “nova forma de conhecimento

social”. Como discutiremos pormenorizadamente adiante, a especificidade desse novo

conhecimento seria sua centralidade na dimensão singular dos fenômenos (1987, p. 56). Por

isso, o autor valoriza expressões práticas desse modelo, como, por exemplo, o uso do lead —

que, como vimos, é o elemento central da pirâmide invertida —, entendido por ele como o

artifício que permite a reconstituição do fato noticiado pelo ângulo da singularidade.

Vários problemas podem ser apontados nesse caminho, que é o cerne da tese de Genro

Filho — apesar da indiscutível contribuição do seu trabalho, que ficará mais evidente adiante.

Mas a base da crítica nos parece ser o objetivo intrínseco ao trabalho do autor, que é encontrar

a “essência” do jornalismo para, a partir daí, advogar a sua validade para além da sociedade

capitalista, como uma aposta de futuro. “A ambivalência do jornalismo decorre do fato de que

ele é um fenômeno cuja essência ultrapassa os contornos ideológicos de sua gênese burguesa,

em que pese seja uma das formas de manifestação e reprodução da hegemonia das classes

dominantes”, diz Genro Filho (1987, p. 10), tentando considerar como especificidade do

jornalismo aquilo que nos parece poder valer para um conjunto de outras práticas e

instituições que só tiveram existência histórica no capitalismo. O esforço principal do autor é

mostrar que, embora filho da ordem burguesa, o jornalismo terá lugar numa possível

sociedade sem classes, o que acaba resultando na relativização de uma necessária perspectiva

histórica. E essa é a base de todo o viés que o trabalho revela na sequência.

Esse caminho ignora, por exemplo, que, na sua fase francamente política, o jornalismo

era ferramenta de luta de uma classe principal que, no entanto, na sua guerra contra o Antigo

Regime, representava interesses universais. Concretamente, se pegarmos o caso emblemático

63

da Revolução Francesa, por exemplo, a luta política travada por folhetos, jornais e impressos

em geral acontece tanto nos momentos de supremacia da burguesia quanto durante a reação

jacobina. Da mesma forma, como vimos, consideramos que, a despeito da nostalgia de

Habermas em relação a uma esfera pública eminentemente burguesa, temporária e movida por

um ‘consenso racional’, a caracterização desse autor sobre a imprensa (e o jornalismo)

político pode e deve ser estendida ao momento das revoluções de 1830 e 1848, quando temos

já a entrada em cena do proletariado como classe que se opõe à particularidade burguesa.

A grande tacada da profissionalização do jornalismo, que sedimentou o modelo

informativo, parece ter sido exatamente o sucesso em promover os interesses particulares

como se fossem “necessidades sociais” universais. Não se trata de negar que, com a

ampliação das fronteiras e a interpenetração produzida pelo desenvolvimento do capitalismo,

a vida cotidiana, na qual todos estão inseridos, tenha passado a requerer insumos

(informações) mais rápidos e atuais, que não seriam providos por outras formas de

conhecimento até então consolidadas, como a ciência e a arte, por exemplo. Mas aqui é

preciso cautela.

Primeiro porque, ao reconhecer-se essa ‘necessidade’ concreta não se pode admitir,

automaticamente, que o jornalismo político não trouxesse informações atuais, centradas nos

acontecimentos presentes e numa velocidade coerente com o contexto histórico em que ele se

realizava. A cobertura das sessões da Assembleia Geral na França revolucionária, já citada

aqui, é apenas um exemplo do teor informativo imediato que esse jornalismo continha. O

problema – ou a face ideológica do modelo hegemônico – é naturalizar que a parcialidade se

opõe à informação. Por isso, o confronto entre o jornalismo informativo que se tornou

hegemônico e as reais necessidades concretas de informação advindas com o capitalismo

avançado requer que se reconheçam determinações mínimas da prática jornalística dentro da

historicidade, o que tentaremos fazer no capítulo 4. A distinção que veremos entre o que

compõe ontologicamente o cotidiano, que é a dimensão temporal do jornalismo, e o que Henri

Lefebvre reconhece como a “cotidianidade” própria do cotidiano regulado do capitalismo

avançado, será também de fundamental importância para a compreensão dessas aparentes

sutilezas. Mas aqui esses apontamentos já reforçam que, ao termos como preocupação

principal o jornalismo contra-hegemônico, nossa questão não é a sobrevivência ou não do

jornalismo numa possível sociedade futura, mas sim a identificação do que é próprio desse

tipo específico de apreensão e descrição da realidade que pode ser usado, aqui e agora, como

ferramenta das lutas pela emancipação humana, buscando superar não sua origem ou sua

64

existência histórica burguesa, mas sim a instrumentalidade ideológica que ele adquiriu nesse

processo de universalização abstrata.

Um segundo ponto a se destacar é que o resultado concreto do jornalismo informativo,

plenamente mercantilizado mas já anteriormente profissionalizado, de forma alguma se baseia

principalmente na informação do “novo” — que Genro Filho atribui diretamente ao caráter

singular da notícia. Se essa é, de fato, a mitologia (ideológica) da profissão, ela de forma

alguma se confirma no produto final do jornalismo nem na forma da sua mercadoria. Ao

contrário, parece-nos que o tratamento padronizado do pouco que há realmente de novo

esvazia seu potencial para além da enunciação do exótico.

Em terceiro lugar, ainda que se possa reconhecer alguma especificidade na necessidade

social geral de informações (sobre um cotidiano objetivado e crescentemente socializado) a

partir de determinada fase do capitalismo, e cuja satisfação possa manter relativa autonomia

em relação à reprodução do capital, isso não pode automaticamente limitar a função do

jornalismo a uma informação que poderíamos compreender quase como ‘de serviço’. Afinal,

algumas características ainda consideradas próprias do jornalismo — como a concisão que o

diferencia dos textos científicos, por exemplo — foram responsáveis também pela preferência

dos jornais como meio de disseminação dos princípios de esclarecimento do Iluminismo na

Europa do século XVIII tal como, nos tempos mais atuais, fazem também diversas

experiências de imprensa ‘alternativa’, sem que isso precise necessariamente se contrapor à

informação. A inconsistência dessa abordagem conduz o autor a um pensamento que não

ultrapassa a tautologia. Assim, o jornalismo informativo seria resultado da “constituição de

uma necessidade social qualitativamente nova”. E que necessidade seria essa? A “informação

de caráter jornalístico”! (Genro Filho, 1987, p. 56).

Genro Filho lança mão também do argumento de que Marx não teria tratado do

jornalismo informativo na sua obra por não ter vivido o tempo histórico de sua existência.

Como se sabe — e veremos mais detalhadamente em outra parte deste trabalho —, a

contribuição de Marx para o jornalismo se deu muito mais na sua experiência empírica, como

redator e editor de jornais e revistas, do que propriamente como teórico desse tema. Assim,

vale registrar, quase a título de curiosidade, que encontramos textos de Marx como

correspondente de jornais norte-americanos já na década de 1860 e, embora se tratasse ainda

de uma fase inicial do jornalismo informativo, os textos sobre a Guerra de Secessão, por

exemplo, trazem uma preocupação extrema com as informações objetivas — apresentando

65

inclusive muitos dados numéricos — mas sempre acompanhadas de uma impressionante

iniciativa de contextualização e análise.

O centro do nosso argumento, neste momento, no entanto, passa também pela produção

teórico-política de Marx. Como vimos, Marx não considera o positivismo, a fragmentação e a

especialização da ciência, por exemplo, como desdobramentos das ‘necessidades sociais’

geradas pela ‘universalização das relações’ trazida pelo desenvolvimento capitalista. Aqui se

dá rigorosamente o contrário: apesar de reconhecer sua origem revolucionária, de inspiração

iluminista, o autor não tem dúvidas em caracterizar a fase madura dessa inflexão sofrida pela

ciência como um recuo de caráter ideológico, ainda que obviamente determinado pelas

limitações da classe. É precisamente a desnaturalização dessas relações que buscamos quando

associamos o jornalismo informativo também ao processo de decadência ideológica da

burguesia.

Em termos concretos, a simples constatação de Genro Filho de que toda mercadoria

precisa ter valor de uso não parece contribuir em nada para a compreensão das ‘informações’,

assim definidas, como uma necessidade social. Genro Filho sabe que o capital cria

necessidades e demanda, mas, diante dessa constatação, ele submete a ‘solução’ sobre a

natureza do jornalismo a uma escolha entre duas únicas alternativas: “Ou as modernas

empresas jornalísticas criaram nos consumidores a falsa necessidade das notícias e

informações, tal como são elaboradas atualmente, ou então seguiram a tendência do mercado

que estava se criando com o surgimento de novas necessidades reais” (Genro filho, 1987, p.

43). Ao apontar a última alternativa como “mais viável”, por representar uma visão menos

manipuladora da história, o autor cai no extremo oposto, de uma visão espontaneísta que

também carece de mediações. O problema é que, ao colocar a questão de forma estanque,

baseada em possibilidades que se excluem mutuamente, o autor desconsidera todo o

mecanismo econômico e ideológico que atrela crescentemente as necessidades sociais à

reprodução do próprio sistema capitalista — sem que necessariamente elas deixem de ser

úteis — e, sobretudo, ignora que elas são sempre resultado de tensões e lutas concretas. No

mais, descolada de um valor de uso que é também produzido, a “necessidade social” toma

uma forma abstrata: afinal, olhando-se um jornal moderno, como identificar o que é ou não

‘necessário’ e para quem?

Mas se quisermos relacionar o jornalismo informativo com as necessidades sociais

geradas a partir de uma determinada fase do capitalismo, talvez a caracterização que Lukács

faz do que ele chama de “posições teleológicas secundárias” seja mais pertinente à discussão.

66

De forma bastante resumida, poderíamos dizer que o autor húngaro parte da constatação de

que, na relação de transformação que estabelece com a natureza, e que caracteriza a dimensão

ontológica do trabalho, o homem — ou o ser social — antecipa problemas e traça objetivos, o

que significa que, mesmo sem ter controle absoluto sobre os resultados, ele sempre escolhe

entre alternativas possíveis. A isso Lukács chama de posição teleológica, adjetivada ainda

como primária quando diz respeito diretamente ao trabalho, ou à reprodução econômica mais

ou menos evoluída de acordo com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Mas

como esse não é um processo fechado, com começo, meio e fim, surgem daí novas questões,

novas necessidades e novas alternativas. Vaisman resume:

(...) o homem é um ser que responde ao seu ambiente e, ao fazê-lo, ele

próprio elabora os problemas a serem respondidos e lhes dá as respostas

possíveis naquele momento. Essas respostas podem, no momento

subsequente, se transformar em novas perguntas, e assim sucessivamente, de

tal modo que, tanto o conjunto de perguntas quanto o conjunto de respostas

vão formando gradativamente os vários níveis de mediações que aprimoram

e complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e

transformam a sua existência (1989, p. 411).

Como resposta aos problemas que não são próprios da esfera econômica, embora sejam

desdobramentos dela, o homem se vê diante das posições teleológicas secundárias, que

podem existir mesmo nos momentos de pouco desenvolvimento das forças produtivas mas

são tão mais complexas quanto maior for a divisão social do trabalho (Vaisman, 1989, p.

413). “A diferença básica entre os dois tipos de posições teleológicas é, pois, que enquanto a

primeira desencadeia cadeias causais, a segunda tem por objetivo o comportamento dos outros

homens, isto é, provocar a mudança para uma nova posição teleológica” (Vaisman, 1989, p.

415-416). Essa é, segundo Lukács, a origem, por exemplo, do direito e da política19

. Embora o

campo jurídico não diga respeito à produção material e econômica diretamente, chega-se a um

determinado grau de desenvolvimento em que a produção deixa de ser possível sem a

regulação das trocas e dos contratos que passa a ser função do direito.

Em suma, o direito nasce a partir da necessidade de resolver e ordenar

conflitos derivados do processo produtivo e em apoio a este, e a gênese do

direito se dá concomitantemente à diferenciação e complexificação da

divisão social do trabalho, de tal forma que, gradativamente, ele se torna

19

Essas representam o que Lukács chama de ideologia em termos restritos, contrapondo à arte e à filosofia, que

também são posições teleológicas secundárias, mas representariam ideologias puras, porque calcadas na

generalidade (universalidade) humana e não nas expressões cotidianas particulares. Reproduzimos nessa

explicação o vocabulário utilizado por Lukács, por isso vale ressaltar que a ideia de ideologia contida nessa

caracterização se diferencia do conceito marxiano negativo de ideologia que estamos adotando neste trabalho e

que será desenvolvido no próximo capítulo.

67

uma esfera específica na qual atuam profissionais especializados que vivem

de sua atividade (Vaisman, 1989, p. 422)

Da mesma forma, como posição teleológica secundária, a política “modifica (...) o

mundo fenomênico onde se desdobra o conflito, movimentando as alternativas postas pela

essencialidade social e visando, ao mesmo tempo, a transformação da própria essência”

(Vaisman, 1989, p. 426).

Essa breve caracterização serve para supor que o argumento de Genro Filho de que o

jornalismo que se hegemoniza e profissionaliza é resultado de necessidades sociais advindas

do processo de desenvolvimento do capitalismo — que junto com a acumulação do capital

expressou também um processo de ampliação de oportunidades e socialização das lutas —

não precisa ser negado, mas pode ser lido com outras lentes. Seguindo as pistas de Lukács,

que acabamos de resumir, a formalização de uma prática jornalística, que pari passu ao

avanço do capitalismo, também cria um corpo profissional e se funda sobre uma legalidade

própria, parece responder de fato a uma necessidade intrínseca aos diferentes momentos

econômicos, embora sem uma ligação direta com a produção. Parece-nos, portanto, que a

história do jornalismo resulta na maturação da sua afirmação como posição teleológica

secundária que, no entanto, já está presente, em formas mais amenas, antes mesmo do

capitalismo monopolista que o transforma definitivamente em atividade lucrativa. Nesse

sentido, a versão informativa desse jornalismo, que preponderou, não seria, ela própria, a

resposta às necessidades sociais, mas sim a forma que a resolução dos conflitos tomou, em

benefício da ordem burguesa. Ou, na conceituação de Lukács, seria a efetivação da concepção

restrita de ideologia, que nesse sentido se aproxima do conceito negativo de Marx que temos

utilizado neste trabalho.

O modelo de jornalismo que se consolida é, assim, parte essencial do processo que

permite à burguesia, por exemplo, defender a liberdade de imprensa como bandeira própria.

Por um lado, nos contextos formalmente democráticos, elimina-se a censura política em nome

de um controle autorregulado que é muito facilitado pelo modelo de jornalismo. Por outro, a

limitação econômica, que antes derivava das taxas impostas pelo Estado, agora se dá de forma

disfarçada pela ‘livre concorrência’ num mercado altamente monopolizado. Soma-se a tudo

isso, pelo aspecto ideológico, o consenso construído em torno do que é a identidade – social e

profissional – do jornalismo20

.

20

Episódios do Brasil recente ilustram o processo de reconhecimento social dessa atividade. Quando a polícia

civil expediu dezenas de mandados de prisão de manifestantes às vésperas do jogo da final da Copa do Mundo,

em 12 de julho de 2014, midiativistas e jornalistas da chamada imprensa alternativa foram impedidos não só de

68

O processo de monopolização da imprensa, com a diminuição do número de

proprietários de jornais, o encarecimento da estrutura – tecnológica e de força de trabalho –

que passou a ser necessária para a produção e distribuição de um jornal, a profissionalização

do jornalismo e a dependência das agências de notícias, trouxe a base material para a

conformação definitiva de um modelo de jornalismo que, como tentamos demonstrar, já se

desenhava desde o final da primeira metade do século XIX. A partir desse momento, a

imprensa transita entre as dimensões da estrutura e da superestrutura21

de forma talvez mais

direta do que qualquer outro campo da vida humana. Embora a existência de mercadorias nos

moldes capitalistas seja muito anterior a esse momento, remetendo à fase concorrencial do

sistema, e embora no campo específico da imprensa já se identifique a venda de anúncios

como forma de sustento dos jornais também desde muito antes, principalmente nos EUA, é na

fase dos grandes monopólios que a notícia, unidade mínima do jornalismo, torna-se

efetivamente mercadoria capitalista. E esse formato final é, por sua vez, ideologicamente

imprescindível para a forma que o consenso adquire em momentos de maior hegemonia do

capital. Pela perspectiva econômica, a padronização do conteúdo e da forma é fundamental

para a comercialização da notícia em grande escala e com a velocidade que se torna própria

do valor de uso construído para essa nova mercadoria. Pela perspectiva política, a

objetividade e, mais do que isso, a impessoalidade padronizada da notícia, é parte essencial do

processo de naturalização da realidade e das relações sociais. O mundo que se coloca de

forma objetiva, externo e independente do jornalista como sujeito do conhecimento, coloca-

se, da mesma forma, como externo e independente do sujeito que o apreende. A velocidade,

casada a uma conveniente concepção de atualidade necessária ao jornalismo, além de

justificar ocultações de toda ordem, facilita que os fenômenos (fatos, acontecimentos,

relações) e as concepções de mundo particulares sejam apresentados, lidos e compreendidos

como universais, tanto em relação ao conjunto maior da sociedade quanto no tempo,

participar da coletiva de imprensa como de entrar nas dependências da Delegacia de Polícia de Crimes de

Informática, responsável pelo caso. Não havia, nesse e em outros casos, um critério formal de reconhecimento de

grupos como imprensa, prevalecendo o reconhecimento apenas das grandes cadeias de jornal, rádio e TV. Da

mesma forma, muitos jornalistas de grande imprensa não reconhecem midiativistas e profissionais da mídia

alternativa militante, principalmente aquela mais atuante na internet, como jornalistas, o que tem mais relação

com o tipo de atividade (militante, parcial) que desempenham e com a inexperiência em relação à grande

imprensa do que propriamente com o fato de serem jornalistas formados ou não. 21

Assim Marx define estrutura e superestrutura: “(...) na produção social da própria existência, os homens

entram em relações determinadas , necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção

correspondem a grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas

relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma

superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de

produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual” (Marx, 2008b, p. 47 grifos

nossos).

69

absolutizando um presente sem passado – e portanto sem futuro – como o marco do possível.

A especialização do trabalho jornalístico e, principalmente, do próprio jornal, dividido em

editorias que fragmentam a realidade, elimina qualquer pretensão de totalidade que o jornal já

teve – e que a primazia do artigo de fundo representava – e, com isso, promove um

mecanismo invertido de explicação da realidade, em que facilmente a relação entre causa e

consequência é desprovida de dialética e posta de ponta a cabeça. Inversão, naturalização e

ocultamento são, como veremos, elementos centrais da definição de ideologia como

ferramenta de dominação.

A partir do caminho que tentarmos percorrer nessa breve descrição, podemos concluir

que a história do jornalismo, da sua origem aos dias atuais, reflete claramente um duplo

movimento de superação dialética. No que diz respeito à ‘forma’, nasceu informativo-

comercial, se desenvolveu como opinativo-político e se sintetizou num modelo que

desempenha a função política através da absolutização da informação. No que diz respeito à

sua relação com a classe que lhe deu origem, nasceu como mercadoria fundamental para as

trocas ainda pré-capitalistas, se transformou em instrumento político de emancipação dessa

classe e se sintetizou numa forma que desempenha função político-ideológica através da sua

absolutização como mercadoria capitalista.

E essa combinação entre necessidade econômica e função política, absolutamente

complementar para a funcionalidade da imprensa burguesa, cria armadilhas importantes para

qualquer tentativa de imprensa alternativa ou de resistência. É verdade que em Marx, e na

tradição marxista de um modo geral, a determinação em última instância é econômica, mas

isso se dá em articulação intrínseca e de mão dupla com os movimentos da superestrutura.

Assim, a questão que nos resta é: como avançar para além da forma mercadoria sem se

alterarem os moldes que se tornaram, ao mesmo tempo, ferramenta ideológica e valor de uso

do que se compreende como notícia? Em outras palavras: como não repetir a fórmula

burguesa sem, por outro lado, se ignorar o consenso que o desenvolvimento capitalista

produziu sobre o que define e justifica socialmente a importância da notícia — e que não

necessariamente é falso? Eis um dos desafios que este trabalho se propõe a discutir.

70

2. IDEOLOGIA: DEBATE TEÓRICO

É muito importante compreender que a crítica da teoria

burguesa não é apenas uma crítica a “eles”. É também, e talvez

sobretudo, uma crítica a “nós”, à natureza burguesa de nossas

próprias suposições e categorias ou, mais concretamente, uma crítica

a nossa própria cumplicidade na reprodução das relações de poder

capitalistas. A crítica do pensamento burguês é a crítica à separação

entre sujeito e objeto em nosso próprio pensamento

(John Holloway, 2003, p. 85).

Notícia 1: “A bancária Rachel Gonçalves, 35 anos, foi uma das que se enquadraram na

lei: instituiu o livro de ponto e pagava em dia as horas extras da doméstica Katia de Paiva.

Um ano depois, ela conta que o livro de ponto, na prática, durou apenas um mês. Logo foi

abandonado com a rotina muito intensa do trabalho de Rachel. Em razão das muitas horas

extras — que resultavam num acréscimo de R$ 600 ao salário de R$ 1.100 mensais — ela

teve de demitir Kátia três meses depois das mudanças na lei” – O Globo, 6/04/2014 – ‘Lei

das domésticas muda hábitos em casa’.

Notícia 2: “Com os celulares em punho para iluminar o sombrio barraco na Rua

Anexa, no Jacarezinho, os quatro policiais da UPP acusados de estuprar uma menor e duas

mulheres, na madrugada de terça-feira, teriam submetido as vítimas, segundo depoimentos, a

uma verdadeira sessão de orgia. (...) O drama relatado pelas três teve início na madrugada

de terça-feira, na casa de uma amiga que mora próximo ao viaduto do Jacarezinho. Após

tentarem resgatar sem sucesso a irmã da mais velha, que permanecia há pelo menos três dias

na cracolândia da favela, elas decidiram então fazer uma visita à colega. (...) Ao contrário

do que foi publicado na edição de quarta-feira, quando testemunhas do caso e policiais da

UPP denunciaram à reportagem que as vítimas tinham envolvimento com o consumo de

drogas, nenhuma das três possui passagem por este tipo de crime. Na verdade, usuários de

drogas que vivem próximo ao local da denúncia de estupro e que prestaram depoimento

como testemunhas, contaram informalmente à equipe do DIA que todos os envolvidos seriam

consumidores. Através do depoimento, faz-se esclarecer que apenas a amiga das vítimas, que

não foi violentada, é que teria algum tipo de vício” – O Dia, 7/08/2014 – ‘Vítimas relatam

que foram submetidas a orgia por PMs na UPP do Jacarezinho’.

Notícia 3: “Na operação da DRCI, batizada de Firewall 2, foram apreendidos

máscaras de gás e explosivos, além de computadores e celulares. A Justiça expediu 26

mandados de prisão temporária e dois de busca e apreensão de menores. Os suspeitos

ficarão detidos por cinco dias. Se forem condenados, poderão ter que cumprir até três anos

71

de prisão” - O Globo on line, 12/07/2014 – ‘Presa em Porto Alegre, Sininho negociou por

telefone compra de fogos de artifício’.

Notícia 4: “As contas públicas voltaram a ficar no vermelho em setembro. Pelo quinto

mês consecutivo, o governo central (composto por Tesouro Nacional, Previdência Social e

Banco Central) registrou déficit primário. O valor, de R$ 20,4 bilhões, representa o pior

resultado mensal da série histórica iniciada em 1997. Ele significa que o governo não

conseguiu poupar nenhum centavo para o pagamento de juros da dívida pública. (...)

Diante do péssimo resultado fiscal de setembro, o secretário do Tesouro Nacional, Arno

Augustin, admitiu hoje que o governo vai encaminhar ao Congresso uma proposta de

mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014. Para evitar o descumprimento

da Lei de Responsabilidade Fiscal, será preciso reduzir a meta de superávit primário

(economia para o pagamento de juros da dívida pública) do ano.” – O Globo on line,

31/10/2014 – ‘Após rombo, governo vai enviar ao Congresso proposta para reduzir meta de

superávit’.

Os trechos destacados acima, retirados de matérias jornalísticas de veículos da grande

imprensa brasileira, trazem exemplos suficientemente evidentes dos mecanismos que

compõem o conceito e a prática da ideologia que, a partir principalmente da obra de Marx e

Engels sobre o tema, estamos adotando neste trabalho. Todas foram produzidas num ambiente

profissional e seguem o modelo que estamos chamando de jornalismo informativo, ainda que

atendam a diferentes “gêneros” da notícia. Todas são, portanto, fragmentos de um discurso

que, diariamente, ajuda as pessoas a conhecer, compreender e atuar mais imediatamente no

mundo. Vejamos caso a caso.

A notícia 1 é parte de uma enxurrada de matérias sobre a lei que, somente em 2014,

concedeu aos trabalhadores domésticos direitos semelhantes aos dos demais. Não se trata da

cobertura do fato em si — a aprovação da lei ou o debate parlamentar em torno do projeto: a

notícia objetiva aqui é desdobrada num processo que visa ampliar o debate sobre o tema. Mas,

quando o número de horas extras é destacado em função do aumento do gasto trabalhista e

não como evidência do sobretrabalho que já havia antes da aprovação da lei; quando, ainda

assim, a “rotina intensa de trabalho” a que o texto faz referência é a da ‘patroa’, que não

consegue fazer o controle necessário do trabalho da empregada; e quando, por fim, a

estruturação do texto leva o leitor a lamentar pela dona da casa, que “teve que demitir” a

empregada “três meses depois das mudanças na lei” e não pela doméstica, que perdeu o seu

meio de sobrevivência, temos claramente um processo de inversão da realidade na notícia.

72

Isso significa que a matéria põe de ponta a cabeça as diferenças concretas entre empregador e

empregado, a relação de causa e consequência e de anterioridade dos problemas descritos e

muitos outros aspectos absolutamente objetivos do fenômeno que está sendo tratado. Embora

possa ser parcialmente explicada pelo público a que se destina o jornal O Globo, composto

majoritariamente por frações da classe média, isso diz respeito a um critério mercadológico22

,

portanto ao processo interno de construção do jornal e de modo algum elimina a objetividade

da questão em si, que se apresenta, portanto, invertida.

A notícia 2 relata o episódio em que policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP)

da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, foram acusados de estuprar três mulheres. Junto

com novas descobertas e depoimentos que ajudavam a compreender o fato que era objeto da

denúncia e, consequentemente, da matéria, o jornal traz informações sobre o uso de drogas

por parte das possíveis vítimas. Na medida em que, ironicamente, podemos afirmar que no

Brasil não vige nenhuma lei que determine que a polícia deva aplicar a ‘pena’ de estupro a

usuários de drogas, jornalisticamente, essa informação tem tanta importância quanto a cor do

sutiã das mulheres violentadas. Num modelo de jornalismo ‘econômico’ como o nosso, em

que é preciso ser objetivo, conciso, ‘ir direto ao ponto’ e informar principalmente aquilo que

responde a perguntas previamente determinadas, isso não se configura como um aleatório

excesso de apuração descritiva. No jornalismo, como talvez em todas as formas mais

objetivas de leitura e apresentação da realidade, informa-se também com o que se diz a mais

ou a menos. Assim, ainda que de forma disfarçada, o uso ou não de drogas passa a ser um

critério de avaliação e julgamento produzido pela matéria — como construção de realidade

que é —, portanto, externo ao fato objetivo noticiável. Em outras palavras: implícito está que

as vítimas (de estupro) seriam menos vítimas se fossem ‘criminosas’ usuárias de drogas.

Assim, naturaliza-se, no âmbito do discurso e das ideias, algo que não pode ser objetiva e

materialmente traduzido como lei ou critério num Estado de Direito: que alguns têm menos

direitos do que outros, que a presunção de inocência tem classe social, e que, dependendo da

vítima e do algoz, um crime justifica outro. Essa naturalização está na base das incontáveis

matérias jornalísticas que, ao noticiarem a morte de moradores de favela ou das periferias

brasileiras, principalmente quando há envolvimento da polícia, apressam-se em informar se a

vítima tinha ou não antecedentes criminais.

22

Não custa destacar que a própria generalização do argumento mercadológico como critério da informação

jornalística, segmentada por públicos, já é também uma inversão da ideia de necessidade social a que o

jornalismo moderno atenderia.

73

A notícia 3 trata dos 26 mandados de prisão expedidos à véspera do jogo da final da

Copa do Mundo de 2014 contra manifestantes no Rio de Janeiro, um processo articulado entre

Polícia Civil e Judiciário que gerou o que muitas instituições e pessoas públicas ligadas aos

direitos humanos consideraram ‘prisões políticas’ da democracia brasileira. As matérias

produzidas nos dias imediatamente seguintes às prisões fornecem insumos para análises muito

detalhadas e profundas sobre o papel da imprensa e do jornalismo no momento atual da

sociedade brasileira, mas isso ultrapassaria os objetivos dessa breve introdução que tentamos

fazer ao debate sobre ideologia. No que nos interessa aqui, vale notar como as informações,

naquele momento reproduzidas de forma quase automática a partir da entrevista coletiva

concedida pela cúpula da Polícia Civil, se sustentam na ocultação de outras informações e,

principalmente, de nexos causais. Observe-se que, no imaginário e no léxico próprio ao

jornalismo, a polícia ‘apreende’ provas ou indícios objetivos do crime investigado: como se

vê todos os dias nas páginas policiais, são grandes quantidades de drogas com o acusado de

tráfico, arma com as impressões digitais do acusado de homicídio ou uma grande quantidade

de ingressos com um alto executivo de empresa ligada à Fifa investigado por participar de

uma quadrilha de cambistas durante a Copa do Mundo23

. A matéria, no entanto, informa que

foram ‘apreendidos’ computadores, celulares e máscaras de gás, o que mantém uma ligação

textual direta com a condição de “suspeitos” dos prisioneiros, que é destacada pelo texto, sem

que se preocupe com a ausência de relação entre esses objetos e a suspeita que sustenta a

matéria. O mesmo mecanismo de ocultação (de dados objetivos e relações igualmente

objetivas) faz com que, também na matéria, uma garrafa com gasolina seja oportunamente

‘traduzida’ como “explosivos”.

Por fim, a notícia 4 anuncia o Projeto de Lei que o governo federal enviou para o

Congresso Nacional propondo uma alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014 de

modo a diminuir a chamada meta fiscal. As matérias que trataram desse tema durante vários

dias, em todos os jornais de conteúdo nacional, apresentavam-se na forma de uma denúncia: a

de que o governo estaria burlando as regras do jogo da política econômica. Implícito estava,

tanto na abordagem informativa quanto nas análises dos especialistas e, ainda mais, nas

respostas do governo — que se ‘defendia’ prometendo cumprir o superávit primário —, que o

pagamento da dívida pública e o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal são dois

princípios inquestionáveis de uma política econômica genericamente bem intencionada.

23

A referência, atual no momento em que este trabalho está sendo escrito, é à prisão de Raymond Whelan,

executivo da empresa Match, responsável, em nome da Fifa, pela venda de ingressos da Copa do Mundo. Ele foi

acusado de fazer parte de um esquema fraudulento de desvio e venda de ingressos.

74

Assim, medidas que propiciam o desvio de dinheiro das políticas sociais para o pagamento ao

grande capital e incentivam a precarização do trabalho, servindo, portanto, a interesses

absolutamente particulares, são apresentadas e tratadas como se fossem princípios universais,

tomados inclusive por aqueles que são prejudicados por elas como parâmetros para se avaliar

o melhor ou pior desempenho dos governos. Diante dessa universalidade abstrata — que se

manifesta todos os dias nos jornais, em matérias como as que naturalizam como problema de

todos a necessidade de reformas para conter o ‘déficit’ da previdência ou de o governo tomar

medidas para minimizar os prejuízos da indústria —, o então ministro da Casa Civil, Aloizio

Mercadante, que era o porta-voz do governo, justificou a iniciativa apelando para o mesmo

discurso da generalidade de interesses, ou seja, explicou que ela visava “proteger a indústria,

o emprego e a renda da população”. Assim, seja no esforço de contenção de gastos públicos

que se tornou discurso pronto no senso comum midiático, seja na justificativa de uma medida

que visava acertar as contas públicas alteradas em grande medida em função da eleição

presidencial, o que importa é apresentar interesses particulares como se fossem universais, a

ponto de não poderem mais entrar no rol dos questionamentos possíveis.

Inverter, naturalizar, ocultar e apresentar o particular como se fosse universal são

características próprias do mecanismo que a partir de agora tentaremos caracterizar como

ideologia (Iasi, 2007, p. 81). Como se pode perceber pelos exemplos apresentados, se

ampliarmos o leque de análise, veremos que esses processos não são estanques nem

autônomos: quando se inverte a opressão entre ‘patroa’ e empregado doméstico, está-se

também ocultando um conjunto de fatores que determinam essa relação; quando se naturaliza

o crime contra usuários de drogas tratados como ‘criminosos’, está-se também invertendo o

lugar social ocupado pela polícia e pelo infrator (ou simplesmente entre o Estado e a

sociedade) e ocultando as condições sociais que geram o crime; quando se oculta a ausência

de provas de um crime que leva manifestantes à prisão, está-se também naturalizando a

relativização das regras do Estado de Direito em função da conjuntura imediata; quando se

apresentam como inquestionáveis medidas que prejudicam boa parte da população, ocultam-

se as alternativas econômicas (tão ‘técnicas’ quanto as que vêm sendo tomadas) existentes, e

naturalizam-se os interesses que regem as regras econômicas e políticas da sociedade e

invertem-se as prioridades entre a concretude das condições de vida dos trabalhadores e o

compromisso com um abstrato ajuste (ou meta) fiscal.

Pode-se argumentar corretamente que alguns elementos das matérias que destacamos no

início deste capítulo podem ser associados a uma intenção clara de manipulação dos dados —

75

como o caso em que a garrafa de gasolina é tratada como “explosivo”. É evidente, portanto,

que, vistos sob uma lente de aumento, os discursos ideológicos, no sentido negativo que

assumimos, podem conter traços de manipulação, mas o conceito e a prática da ideologia de

forma alguma se reduzem a isso, embora a sinonímia entre esses termos seja uma concepção

muito comum (e empobrecedora) nos estudos sobre a imprensa e os meios de comunicação de

massa. Tampouco se pode entender ideologia como sinônimo de ‘mentira’, uma vez que as

ideias que lhe dão forma só podem surtir efeito porque têm correspondência na realidade

concreta. Discutiremos mais detalhadamente adiante a importância de se distinguir ideologia

de uma concepção simplista de falsa consciência, que se reduz a essa ideia de falseamento do

real, mas vale adiantar aqui alguns comentários para que aproveitemos o potencial explicativo

dos exemplos utilizados. Assim, é preciso ter em conta que a inversão que a matéria produz

entre o drama da patroa e o da empregada é real, inclusive, na medida em que parte das

domésticas realmente perdeu o emprego como desdobramento dos direitos que a classe média

se recusa a pagar24

. Na vida real, a punição de policiais ou outros agentes do Estado que

cometem violência contra cidadãos responde de fato a uma gradação, que varia de acordo com

critérios como cor, sexo, renda, local de moradia e histórico de vida das vítimas. Por mais

deslocado que pareça, computadores, celulares e gasolina engarrafada foram oficialmente

aceitos pelo poder judiciário constituído na democracia burguesa como provas de formação de

quadrilha num processo que gerou, também de forma concreta, a prisão preventiva de

cidadãos considerados suspeitos. E, de fato, o Brasil sofrerá sanções, principalmente de

órgãos que ditam a política econômica global, como o Fundo Monetário Internacional, se

fugir da cartilha de “austeridade” que está imposta aos governos. Esses elementos, portanto,

podem se expressar na forma de ideia exatamente porque estão presentes, ao mesmo tempo

como condicionantes e como resultado, na realidade concreta vivida pelos sujeitos que

elaboram e entram em contato com essas ideias. A ideologia é composta, então, por

representações invertidas, ocultadas, naturalizadas e abstratamente universalizadas de um

mundo cujas relações concretas estão, elas próprias, postas de ponta a cabeça, veladas,

vividas sem questionamentos e retiradas da sua perspectiva histórica.

Esses mecanismos que compõem o conceito e a prática da ideologia não são categorias

arbitrárias: eles descrevem o que poderíamos chamar de processo original, estruturante, de

nascimento e organização das relações capitalistas. Se é possível identificar algum grau de

24 Essa é uma conclusão embasada em números produzidos, por exemplo, pela Pesquisa de Emprego e

Desemprego realizada na região metropolitana de Belo Horizonte, em fevereiro de 2014, como se pode ler na

matéria publicada em http://www.otempo.com.br/capa/economia/lei-dos-dom%C3%A9sticos-provoca-

apag%C3%A3o-de-m%C3%A3o-de-obra-em-bh-1.782375

76

correspondência de cada discurso ideológico com a realidade invertida que ele expressa, como

fizemos nos exemplos acima, a verdadeira materialidade da ideologia remete às características

fundantes da ordem burguesa, ou seja, às relações de produção baseadas na compra e venda

da força de trabalho e na troca de mercadorias. Conclusão necessária do conceito desvelado

por Marx e Engels é, então, que, como expressão dessas relações no mundo das ideias, a

ideologia tem uma funcionalidade clara: justificar um determinado estado de coisas e, de

forma mais estrutural, legitimar a dominação de classe. Todos esses elementos estão

claramente apresentados na conhecida frase em que os autores ‘definem’ seu conceito de

ideologia25

:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto

é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo

tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os

meios da produção material dispõe também dos meios da produção

espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo

tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção

espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal

das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes

apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem

de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação (Marx e

Engels, 2007, p. 47).

Como se sabe, essa é uma passagem do livro ‘A Ideologia Alemã’, cujo objetivo

principal é denunciar o idealismo dos neo-hegelianos de esquerda que apostavam todas as

suas forças no potencial da crítica como arma de transformação, portanto, no poder das ideias.

A base da inversão que caracterizaria a ideologia seria, então, a crença de que são as ideias26

que determinam (mudam e movem) a realidade concreta. Não se trata apenas, no entanto, de

uma divergência sobre estratégia política de futuro: Marx e Engels mostram como a

concepção desses intelectuais é não só ineficaz na crítica como funcional para a manutenção

da ordem burguesa na medida em que, ao abstrair as determinações materiais que influenciam

diretamente as ideias e ignorar que o resultado do pensamento e do conhecimento humano

25

De modo geral, na tradição marxista identificam-se quatro acepções do termo ideologia. Adotamos aqui a

primeira, tal como ela aparece pela primeira vez na obra de Marx e Engels. Mais tarde, em 1859, no prefácio à

‘Crítica da Economia Política’, Marx abre caminho para uma outra concepção de ideologia quando resume as

“formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas” no termo “formas ideológicas”. No contexto da

3ª Internacional, da qual Lenin é personagem central, prevalece a concepção de ideologia como visão de mundo,

de modo que haveria uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária. Por fim, como já mencionamos, Lukács

elabora um quarto conceito que considera como ideologia todas as expressões ideais que ajudam a dirigir a ação

dos homens. Portanto, haveria ideologia em qualquer tipo de sociedade, de modo que ela deixa de ter

funcionalidade apenas para a dominação, dependendo da direção para a qual ela orienta a ação. Ao longo de todo

este trabalho, utilizaremos o conceito negativo original de Marx e Engels. 26

Ao tratar de ideias, de forma geral, estamos nos referindo não apenas àquilo que é traduzido pela linguagem,

mas a todo um sistema de valores, regras e conhecimentos que regem as sociedades em cada momento histórico

(Iasi, 2014).

77

não é nem espontâneo nem natural, eles impõem à crítica os limites da particularidade

histórica que vivem como se fosse universal e contribuem para a naturalização dessas

relações. Ao explicitar as armadilhas que aprisionam esses intelectuais, os autores fazem uma

profunda análise dos discursos fundantes da sociedade burguesa, a partir dos quais é

produzida boa parte das ideias, signos, valores, princípios, juízos, representações, práticas e

comportamentos que se tornam ‘gerais’, apesar da sua origem e funcionalidade particular de

classe. Nesse momento, então, Marx e Engels estão, acima de tudo, firmando a importância de

uma concepção materialista da História como reação à ordem burguesa, o que significa

reivindicar a clareza de que são as relações sociais, concretas e historicamente determinadas,

que condicionam a consciência dos homens e não o contrário. Dizem os autores:

Ora, se na concepção do curso da história separarmos as ideias da classe

dominante da própria classe dominante e as tornarmos autônomas, se

permanecermos no plano da afirmação de que numa época dominaram estas

ou aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção

nem com os produtores dessas ideias, se, portanto, desconsiderarmos os

indivíduos e as condições mundiais que constituem o fundamento dessas

ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que a

aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra, fidelidade etc.,

enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de

liberdade, igualdade etc. A própria classe dominante geralmente imagina

isso (Marx e Engels, 2007, p. 48).

Como vimos no tratamento dos exemplos que abrem este capítulo, cada mecanismo da

ideologia pressupõe e se integra com outros, o que denota o quanto o sistema ideológico que

orienta o mundo das ideias é expressão de relações materiais que compõem uma totalidade

social. Assim, o fato de essa relação das ideias com as determinações materiais de dominação

permanecer nublada é condição também para a consolidação de práticas e situações

particulares como se fossem universais, situações essas que se apresentam sempre que se

ignora a historicidade dos fenômenos (no caso, das ideias, valores, juízos etc. e das relações

que elas expressam). Mas, mais do que isso, esse processo aprisiona as ideias em valores e

princípios abstratamente universais, que correspondem à subsunção dos indivíduos

particulares reais (mesmo os burgueses) à classe socialmente dominante, a despeito das suas

ações empíricas individuais. Vejamos um exemplo que ajuda a esclarecer:

O burguês corrompido transgride as leis do casamento e secretamente

comete o adultério; o comerciante transgride a instituição da propriedade

quando, pela especulação, pela falência, etc., priva outrem da propriedade; o

jovem burguês, quando o pode, torna-se independente de sua própria família

e abole praticamente a família para si; mas o casamento, a propriedade, a

família permanecem intocados na teoria porque constituem, na prática, as

bases sobre as quais a burguesia erigiu seu domínio, porque essas

78

instituições, em sua forma burguesa, são as condições que fazem do burguês

um burguês (...) (Marx e Engels, 2007, p. 181).

Essa abstrata universalidade das ideias, conhecimentos e valores burgueses se expressa

também, por exemplo, na diferença do grau de desenvolvimento do capitalismo em cada país

tomado na sua particularidade — como no exemplo da Alemanha que, segundo Marx e

Engels, teria ‘importado’ no século XIX todo um arcabouço ideológico correspondente ao da

burguesia consolidada quando o nível de desenvolvimento capitalista que o país tinha atingido

não correspondia propriamente àquela “fraseologia” (2007, p. 195). Tomando exemplos

abundantes no contexto atual, o mesmo vale para ideias cristalizadas e generalizadas como a

de que se vive uma era da comunicação digital quando menos da metade da população

brasileira tem internet em casa e somente em 2014 o número de usuários dessa tecnologia

ultrapassou os 50%, ou de que o desafio científico e político hoje é o enfrentamento das

doenças crônico-degenerativas, que de fato crescem mundialmente e são normalmente

associadas a graus maiores de desenvolvimento, mas que no Brasil ainda convivem com um

número expressivo de mortes por doenças como tuberculose e hanseníase.

O fato é que esses conceitos que dão base à ordem capitalista são estruturantes também

das instituições burguesas, sejam elas integrantes do aparelho de Estado, sejam de atuação na

sociedade civil. Assim, ainda que nenhuma das reivindicações feitas pelas manifestações de

rua no Brasil em 2013 tenha se expressado em mudanças promovidas pelos governos

legislativos ou executivos; que nenhuma das investigações de favorecimento privado sobre

serviços públicos (como o pedido de CPI dos ônibus no Rio de Janeiro) tenha chegado a

resultado satisfatório; enfim, que os instrumentos concretos da democracia tenham se

mostrado claramente insuficientes para promover aquilo que, mesmo na ordem burguesa, se

costuma entender por democracia, hegemonicamente prevalece (na forma de ideologia) a

ideia de que as mudanças precisam se dar por dentro da via institucional. É claro que, quando

se trata de instituições e não de indivíduos isolados, a possibilidade de crise gerada pelo abalo

da correspondência entre as ideias e a realidade material é maior. Essa, no entanto, é sempre

primeiro uma crise das relações sociais de produção, uma “oposição” que gera “discórdia”

entre a classe dominante e a classe dominada, nos termos dos autores alemães, que torna as

ideias “inautênticas”. “Porém, quanto mais elas são desmentidas pela vida e quanto menos

valem para a própria consciência, tanto mais resolutamente são afirmadas, tanto mais

hipócrita, moralista e santa se torna a linguagem da sociedade normal em curso” (Marx e

Engels, 2007, p. 283), explicam os autores da ‘Ideologia Alemã’. E, consequentemente,

dizemos nós, mais se torna necessário um processo explícito (e artificial) de manipulação.

79

Exemplo recente desse processo parece ser o (pelo menos aparente) abalo de credibilidade

sofrido pela grande imprensa brasileira nos momentos seguintes às manifestações de junho de

2013, na medida em que a correspondência entre a valoração produzida pelas informações

dessa imprensa e a vida real do conjunto da população sofreu um significativo

distanciamento. Assim, o processo ideológico tomou a forma de ‘simples’ ‘mentiras’

(explicitamente manipuladas), que se tornaram cada vez mais concretas quando, para fazer

frente à crescente mobilização social, esses veículos precisaram distorcer uma realidade muito

próxima do público em geral. Um exemplo foi o esforço de criar uma imagem negativa e

artificial de trabalhadores em greve que, a despeito da campanha midiática, acabaram

ganhando apoio por parte da população, já que a figura concreta de um professor ou um gari,

por exemplo, profissionais comuns, que todo mundo conhece direta ou indiretamente, não

corresponde à imagem de vândalo, vagabundo ou marionete manipulada por interesses

alheios, que foi reproduzida na TV ou no jornal.

Essas reflexões sobre a maior ou menor correspondência entre as ideias e a realidade,

que expressam a maior ou menor estabilidade das relações sociais vigentes, impõem que

pensemos em como se dão as mediações que fazem com que os homens reproduzam

idealmente a forma determinante da realidade concreta em que vivem. Afinal, a existência de

uma base material invertida é condição mas não garante, por si só, sua expressão no nível das

ideias, dos valores e dos comportamentos. No conjunto da obra marxiana e engelsiana,

reconhece-se esse papel como próprio das instâncias que compõem a superestrutura da

sociedade burguesa. Aqui nos interessa destacar que essas mediações dependem de sujeitos

(os “ideólogos”, como Marx e Engels chamaram) e de instituições específicas, entre as quais,

cada vez com mais importância no capitalismo avançado, destacam-se os meios de

comunicação de massa e, no que diz respeito ao nosso interesse específico, a imprensa. Não

nos parece que os autores alemães tenham avançado muito no estudo dessas mediações, o

que, na sequência da tradição marxista, ficaria a cargo de autores como Gramsci, Althusser e

outros. Na verdade, na ‘Ideologia Alemã’ parece haver, inclusive, pouca ênfase no papel que,

de forma diferente dos indivíduos, as instituições desempenham na questão da ideologia

quando, por exemplo, na continuação da crítica a Bruno Bauer, os autores enquadram como

uma inversão idealista a elaboração segundo a qual “faz-se política porque nossos jornais

estão repletos dela” (Marx e Engels, 2007, p. 163). Isso porque, se é fato que as ideias de um

indivíduo não produzem a sua realidade, a pauta de um jornal, nos parece, tem um potencial

mais forte de interferência concreta sobre essa realidade, não por tê-la produzido (já que a

80

base é sempre material) mas por reproduzir em escala muito maior e a partir de processos

controlados de organização, as ideias que são sua expressão. Em relação às instituições,

portanto, o conceito de aparelho privado de hegemonia, que Gramsci desenvolverá anos mais

tarde, contribui mais com a nossa discussão.

Trataremos de forma mais detida desse conceito e suas implicações táticas e estratégicas

adiante mas vale situar, em linhas gerais, que a ideia de aparelho privado de hegemonia

designa uma diversidade de “iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o

aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes” (Gramsci, 2007, p. 284).

Atuando no âmbito da sociedade civil, essas ‘instituições’ complementam as atividades

‘educativas’ que são desempenhadas diretamente por instâncias estatais, como a escola e os

tribunais. ‘Educativas’ porque, como Gramsci nos alerta, uma das principais funções do

Estado é “elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível

(ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e,

portanto, aos interesses das classes dominantes” (2007, p. 284, grifo nosso). Como se sabe,

para o comunista italiano, a sociedade civil não é uma instância apartada do Estado mas, ao

contrário, o compõe em sintonia com a dimensão que ele chama de sociedade política (ou

aparelhos de Estado). Daí a importância dos aparelhos ‘privados’, que, como os meios de

comunicação de massa, atuam fora do espaço reconhecido publicamente como do Estado.

Coutinho nos ajuda: “(...) deve-se observar que Gramsci põe o adjetivo ‘privado’ entre aspas,

querendo com isso significar que – apesar desse seu caráter voluntário ou contratual – eles

têm uma indiscutível dimensão pública, na medida em que são parte integrante das relações

de poder em dada sociedade (2008, p. 55).

A constatação sobre o pouco aprofundamento em relação às mediações institucionais na

disseminação da ideologia não joga por terra, no entanto, as contribuições que Marx e Engels

têm a nos dar também especificamente em relação ao nosso objeto de estudo. Ao identificar a

base material da ideologia e com isso perceber que, embora tenha uma origem particular de

classe, para ser funcional ela precisa ultrapassar os seus limites de nascença, Marx e Engels

nos dão uma valiosa pista para entendermos tanto o processo concreto de construção do

jornalismo burguês — que se dá em grande medida com jornalistas fiéis aos valores

democratizantes que ideologicamente estão associados a essa profissão e que portanto

acreditam na importância do seu trabalho para o conjunto da sociedade — quanto para

buscarmos os resquícios ideológicos que sobrevivem na imprensa que se pretende

81

anticapitalista. Como explica Leandro Konder, numa síntese que parece caber perfeitamente

aos diferentes perfis de “ideólogos” gerados pelo capitalismo avançado:

Para se desincumbirem eficazmente de sua tarefa, os “pensadores” ou

“teóricos” precisam acreditar no que fazem; precisam estar convencidos de

que estão construindo um conhecimento plenamente verdadeiro. Precisam

buscar — sinceramente — a universalidade. E isso confere aos produtos que

elaboram a preciosa possibilidade de chegarem a alcançar algum

conhecimento real importante (2002, p. 42)

Mas nos detenhamos agora um pouco mais na gênese material desse processo que Marx

e Engels compreendem no conceito de ideologia. Logo de início, a associação que os autores

alemães fazem entre as ideias dominantes e a classe dominante demanda uma pausa

estratégica para que possamos desembaralhar os nós que podem nos levar a futuros mal

entendidos. O primeiro ponto a esclarecer é sobre o caráter temporário ou permanente dessas

relações que configurariam a ideologia nos termos de Marx e Engels. Num esforço de

destrinchar o conceito, Terry Eagleton identifica nessa concepção de ideologia uma

contradição entre determinações históricas e ontológicas. Ele entende que, no conceito

elaborado por Marx e Engels, a anterioridade das relações materiais sobre as ideias valeria

para a humanidade em qualquer época histórica, mas isso, de acordo com o autor inglês,

entraria em contradição com a perspectiva marxiana segundo a qual em sociedades não

marcadas pela dominação de classe, a existência de uma superestrutura que sustentaria a

consciência social não seria necessária, já que hoje sua função é apenas regular as relações de

uma base material cindida (1997, p. 80). Ele resume o dilema:

O que está em questão é a aparente contradição entre essa versão histórica

da doutrina da base-superestrutura, segundo a qual a superestrutura seria

funcional para a regulação da luta de classes, e as implicações mais

universais do comentário de Marx sobre a consciência e o ser social. No

primeiro modelo, a ideologia tem um período limitado de vida histórica: uma

vez superadas as contradições da sociedade de classes, ela desapareceria com

o resto da superestrutura. Na última versão, a ideologia poderia significar,

por exemplo, o modo como nossa consciência total é condicionada por

fatores materiais. E isso presumivelmente não será alterado com o

estabelecimento do comunismo pleno, visto que é parte da nossa constituição

biológica, tanto quanto nossa necessidade de comer. (...) Uma questão

política é associada, de modo um tanto obscuro, a uma questão ontológica ou

epistemológica: será a superestrutura (e, com ela, a ideologia) um fenômeno

historicamente funcional, ou é tão natural para as sociedades humanas

quanto respirar? (Eagleton, 1997, p. 80).

Vamos nos ater rapidamente a essa questão porque ela parece fundamental para

evitarmos uma relativização do papel da ideologia que nos leve, mais adiante, a vacilar

também na compreensão do papel que as práticas, instituições e instrumentos contra-

82

hegemônicos precisam desempenhar diante desse fenômeno. Nesse sentido, o apontamento de

Eagleton é exemplar do questionamento sobre a pertinência de uma concepção puramente

negativa de ideologia. Tentemos, então, entrar brevemente no debate. A primazia da matéria

sobre a ideia e das relações concretas sobre a consciência dessas relações, que Marx e Engels

afirmam, não parece se referir a uma característica humana no sentido “biológico”, como

Eagleton aponta, mas sim a uma característica do homem como ser social, portanto, como ser

que prevê, na sua ontologia própria, uma relação de transformação com a natureza e de

interação com outros homens. É claro que está embutida nesse pensamento a certeza de que a

sensação de fome, própria do ser biológico, é também anterior à ideia de fome e que a

imagem mental de um prato de comida não é capaz de saciar o apetite de ninguém. Mas, até

pelo teor da polêmica em que estão envolvidos no livro, os autores alemães parecem estar

teorizando sobre as ideias e as condições materiais concretas que são próprias do homem

como ser social, estabelecido em relações que são sempre historicamente determinadas. De

fato, eles não deixam dúvida de que a consciência é “um produto social e continuará sendo

enquanto existirem homens” (Marx e Engels, 2007, p. 34), o que não significa que em

qualquer época ou contexto essa relação se traduza na forma de ideologia. Consciência e

ideologia, portanto, não parecem ter o mesmo sentido na obra desses autores27

. O salto

idealista — como primeira condição para a ideologia — se daria, então, com o surgimento da

divisão do trabalho ou, mais precisamente, com a separação entre trabalho manual e trabalho

intelectual (“espiritual” nas palavras dos autores) que, embora tenha origens anteriores, é

estruturante da organização capitalista centrada na propriedade privada. “A partir desse

momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da

práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real — a partir de então, a

consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria,

da teologia, da moral etc. ‘puras’” (2007, p. 35-36).

2.1. Alienação e a base material da ideologia

Não parece haver dúvida, na obra de Marx, de que esse caminho aberto para a produção

de ideologia se dá com uma inversão concreta estrutural — que estaria na origem de todas as

outras inversões ideológicas — que nasce com as relações capitalistas. Inovando em relação a

Hegel exatamente pela afirmação da particularidade da forma histórica burguesa que está

presente nesse processo, Marx explica essa ‘inversão original’ com a ideia de alienação, que,

27

Para Iasi, a ideologia é uma forma particular da consciência, que seria, portanto, mais geral (2014, p. 106).

83

desenvolvida nos seus ‘Manuscritos econômico-filosóficos’, serve de pano de fundo teórico

para o conceito de ideologia a que o autor se dedicaria imediatamente depois.

Alienação também é uma palavra reconhecível no senso comum. Uma pessoa alienada

pode ser mais ou menos definida como aquela que é indiferente às questões de interesse da

sociedade, despolitizada ou mesmo, arriscaríamos dizer, desprovida de qualquer ideologia se

esta for compreendida no sentido positivo que o senso comum às vezes também lhe atribui.

Em Marx, ainda que com diferenças importantes se comparado à simplificação do senso

comum, os termos também estão relacionados: é o processo de alienação que põe as bases

materiais primeiras da noção de ideologia.

Funciona assim: no capitalismo, ao ser expropriado dos meios de produção, o

trabalhador precisa vender sua força de trabalho, que, sendo a única ‘propriedade’ que lhe

resta, é nesse mesmo movimento, transformada em mercadoria. Nessa simples constatação

está a base da reificação, ou seja, o processo pelo qual o homem é reduzido à condição de

coisa28

. Ao produzir não mais para suas necessidades ou para as necessidades sociais, mas

para a acumulação do capital, e ao gerar uma riqueza crescente que é proporcional ao seu

empobrecimento também crescente, o ser humano deixa de se reconhecer no produto do seu

próprio trabalho ou, nas palavras de Marx, “o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se

lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor” (2004, p. 80).

Em Hegel, o processo de exteriorização e objetivação29

que o homem executa no

trabalho, ou seja, o simples fato de o produto do trabalho humano idealizado na mente se

materializar numa coisa, com existência objetiva e externa ao sujeito, é considerado uma

característica própria, inescapável ao trabalho em qualquer tempo: um mecanismo, portanto,

que estaria presente tanto na produção da flecha do caçador quanto na produção de tecido

numa fábrica. Marx não discorda que existam aí características que podem ser associadas ao

trabalho no seu sentido ontológico, mas insiste em identificar o momento a partir do qual esse

processo passa a ser definido pelas condições particulares de uma determinada época

28

Uma discussão mais pormenorizada do conceito de reificação foge aos objetivos deste trabalho. Para que a

referência não fique de todo aligeirada, no entanto, reproduzimos aqui uma definição, extraída do ‘Dicionário do

Pensamento Marxista’, editado por Tom Bottomore: “É o ato (ou resultado do ato) de transformação das

propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem,

que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e

governam sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que

não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A reificação é um caso

‘especial’ de alienação, sua forma mais radical e generalizada, característica da moderna sociedade capitalista”

(1988, p. 314). 29

Iasi nos ajuda a definir as duas fases do processo: “Formamos um pensamento na dimensão subjetiva e depois

o externamos através da criação de um objeto (Gegenstand). O processo que leva do subjetivo (interno) para o

objetivo (externo – ässern) é a externação, seu resultado é uma objetivação” (2014, p. 98).

84

histórica. Assim, diz ele, se é verdade que a exteriorização e a objetivação estão presentes em

qualquer tipo de trabalho humano, o mesmo não vale para o estranhamento, que

corresponderia a um momento próprio das relações capitalistas de produção e do trabalho

assalariado. Ao resultado desse processo completo, que será descrito na citação abaixo, Marx

dá o nome de alienação30

.

Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu

trabalho como [com] um objeto estranho estão todas essas consequências.

Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador

se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo

objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna

ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si

próprio. (...) O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não

pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta

atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele não é o que é o produto

do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo

é. A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o

significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma

existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma

existência] que existe fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a

ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que

ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha (Marx, 2004, p. 81).

Lembremos que para Marx o trabalho assalariado é apenas a forma histórica que o

trabalho assumiu no capitalismo; no seu sentido mais universal, que pode ser definido como a

ação da humanidade sobre a natureza para transformá-la em seu benefício, o trabalho é aquilo

que, ao nos diferenciar dos animais, por exemplo, nos define como seres humanos. Na medida

em que, na forma capitalista, o trabalho passa a ser um meio de satisfazer não as carências

próprias mas sim a sobrevivência do outro e de forma independente da vontade do

trabalhador, exatamente a atividade que concentra as características propriamente humanas se

30

Nessa tradução brasileira, a palavra ‘alienação’ foi suprimida. Em outras edições, no entanto, considera-se

como alienação, em Marx, o ‘resultado’ do processo descrito nesta citação, ou seja, externação, objetivação e

estranhamento, sendo este último mecanismo aquele que é próprio da sociedade burguesa. Em uma nota do livro

‘A teoria da alienação em Marx’, Mészaros explica a forma como os diferentes termos aparecem na obra mais

ampla de Marx original, em alemão. Diz ele: “Em alemão, as palavras Entäusserung e Veräusserung são usadas

para significar ‘alienação’ ou ‘estranhamento’. Entäusserung e Entfremdung são usadas com muito mais

frequência por Marx do que Veräusserung, que é, como Marx a define ‘die Praxis der Entäusserung’ (a prática

da alienação) (...) ou, em outro trecho, ‘Tar der Entäusserung (o ato da alienação) (...). Assim, Veräusserung é o

ato de traduzir na prática (na forma da venda de alguma coisa) o princípio da Entäusserung. No uso que Marx

faz do termo, ‘Veräusserung’ pode ser intercambiado com Entäusserung quando um ‘ato’ ou uma ‘prática’

específica são referidas (...). Alienação, nesse contexto, é apresentada por Marx tanto como Veräusserung quanto

como Entäusserung. Tanto Entäusserung como Entfremdung têm uma tríplice função conceitual: (1) referindo-

se a um princípio geral; (2) expressando um determinado estado de coisas; e (3) designando um processo que

engendra esse estado. Quando a ênfase recai sobre a ‘externalização’ ou ‘objetivação’, Marx usa o termo

Entäusserung (ou termos como Vergegenständlichung), ao passo que Entfremdung é usado quando a intenção do

autor é ressaltar o fato de que o homem está encontrando oposição por parte de um poder hostil, criado por ele

mesmo, de modo que ele frustra seu próprio propósito” (Mészaros, 2006, p. 20).

85

torna uma esfera da vida na qual o homem não pode mais se sentir livre. “O animal se torna

humano, e o humano, animal”, diz Marx (2004, p. 83). Eis a inversão original.

Naturalmente, não será possível estabelecer aqui todas as mediações que unem essa

reflexão sobre o trabalho no capitalismo ao conceito de ideologia, mas tentaremos seguir um

atalho. Importa reter, fundamentalmente, que essa é a base material estrutural da inversão,

ocultação, naturalização e universalização abstrata que se expressam também no nível das

ideias. E essa relação pode ser mais direta do que costumamos imaginar. Vejamos um

exemplo próximo: a despeito da discussão tática e estratégica sobre a ação dos black blocs,

chamou a atenção de alguns analistas o quanto a violência contra bancos públicos, postes e

pontos de ônibus — em resumo, contra coisas — nas manifestações de junho (de 2013) no

Brasil provocou uma comoção e uma indignação muito maior do que a violência praticada

contra pessoas, especialmente moradores das favelas e periferias, que é vista e noticiada

diariamente. Para além das ações conscientes de manipulação de informação e imagens

promovidas pela grande imprensa empresarial — que são importantes mas não podem

explicar tudo, sob o risco de atribuirmos a esses aparelhos um poder total que não nos deixaria

brechas —, a questão fundamental que nos mobiliza é entender como essa inversão (de

valores, emoções, afetos) pode se dar. E aqui, com todos os riscos da falta de mediações que o

uso de exemplos traz, Marx nos parece didático: essa inversão no mundo das ideias só pode

encontrar eco porque, como vimos no processo que acabamos de descrever, o leitor ou

telespectador do jornal que se informa sobre as manifestações é esse homem do capitalismo

que, submetido ao trabalho assalariado, alienado do produto do seu trabalho, foi, ele próprio,

transformado em coisa. “O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais

mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em

proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt)”, diz Marx (2004,

p. 80). Com diferentes graus de aproximação empírica, uma enxurrada de ideias invertidas

que nos são familiares — desde a supremacia do direito à propriedade sobre o direito à

moradia que leva à condenação moral de movimentos como o de trabalhadores sem teto e sem

terra até a prioridade do drama da patroa sobre o da empregada doméstica, no exemplo de que

tratamos — derivam dessa inversão original.

Em relação ao mundo das ideias, valores e comportamentos, faz pouca diferença que, na

separação entre classes que marca a ordem burguesa, esse sujeito confrontado com a violência

contra coisas e pessoas seja trabalhador ou proprietário dos meios de produção. Isso porque,

na medida em que a consciência dos homens se submete às formas dessa reificação e

86

alienação originais, essa se torna, em última instância, uma determinação do ser de todas as

classes sob o capitalismo (Lukács, 2003, p.198). Até porque, na medida em que estranha

aquilo que lhe caracteriza como humano (o trabalho), o homem, segundo Marx,

consequentemente estabelece um estranhamento com o seu próprio gênero. “Primeiro,

estranha a vida genérica, assim como a vida individual. Segundo, faz da última em sua

abstração um fim da primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranhada” (2004, p. 84).

Eis, já como desdobramento da absolutização (universalização abstrata) da forma socialmente

necessária do trabalho no capitalismo, o surgimento da forma ‘indivíduo’, um particular que,

ideologicamente, se apresenta como o universal humano.

Ainda que nos ‘Manuscritos Econômico-filosóficos’ Marx já desenvolva toda essa

reflexão que acabamos de apresentar, é no ‘Capital’, depois de percorridos seus estudos sobre

economia política, que ele vai desvendar o que considera o “segredo” da forma mercadoria

sob o capitalismo, iluminando ainda mais algumas características do trabalho que se encontra

na base da produção dessas mercadorias. E aqui, na descrição minuciosa das relações de

produção sob o capital, aparecem, límpidos, todos os elementos que compõem o seu conceito

de ideologia.

Como se sabe, ao tratar de mercadoria Marx não está se referindo ao sentido de

‘produto’ ou ‘objeto’ que o senso comum normalmente dá a esse termo. Para que não se

percam de vista as especificidades da produção sob o capitalismo, vale lembrar que Marx não

se refere, por exemplo, aos objetos produzidos para uso próprio: para ser mercadoria, ele tem

que ser produzido para o uso de outros, que o adquirirão por meio das trocas propriamente

capitalistas (2008c, p. 63). De forma suficientemente resumida, para que não nos detenhamos

mais do que o necessário nessa discussão, basta apontar que a mercadoria, “forma elementar”

da riqueza sob o sistema capitalista de produção, é sim um ‘objeto’ — embora não

necessariamente físico, de modo que podemos considerar tanto o jornal, que é material,

quanto a notícia, que não o é, como mercadorias —, mas que precisa combinar um valor de

uso (ou seja, ser útil, atendendo a necessidades humanas) com um valor de troca (baseado na

equivalência entre ‘produtos’ diferentes e mediado pelo dinheiro, que é o equivalente

universal). Mas, mais do que isso, a mercadoria é, necessariamente, produto do trabalho

humano que, na função de gerar valor, assume a forma do que Marx chama de “trabalho

abstrato” (2008c, p. 57-58).

87

Voltemos, então, às pistas que algumas passagens do ‘Capital’ nos trazem sobre a

gênese da ideologia, começando pelo trecho clássico em que Marx caracteriza o fetichismo da

mercadoria.

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características

sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como

características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do

trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais

dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente,

à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa

dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais,

com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. (...) a forma

mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual

caracteriza essa forma, nada têm a ver com a natureza física desses produtos

nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social

definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de

uma relação entre coisas (2008c, p. 94).

O principal mecanismo estruturante da ideologia que aparece nesse trecho é a

ocultação, referida em dois aspectos fundamentais. Se, como vimos, mercadoria não se refere

a qualquer produto em qualquer tempo, mas sim ao produto gerado a partir de relações

determinadas, a primeira ocultação está exatamente no fato de a mercadoria se esconder no

produto, ou seja, não deixar visíveis as relações que estão embutidas e mesmo condicionam a

produção mercantil que alcança o seu máximo desenvolvimento no sistema capitalista. Como

desdobramento dessa primeira, e como sua própria condição de existência, a mercadoria

oculta também as diferenças contidas no trabalho desenvolvido para gerar produtos distintos.

Isso significa que, pela primazia do valor de troca, ela elimina as diferenças qualitativas entre

a produção de um sapato e a de um automóvel, impondo entre elas uma relação de

equivalência, que se mede em função da quantidade de horas trabalhadas (e se materializa no

dinheiro como equivalente universal). Uma relação que, materialmente, se dá entre homens,

sofre um processo de inversão e é captada apenas como uma relação entre coisas (produtos)

mediados pelo valor de troca. Marx exemplifica:

Quando afirmo que casaco, botas etc. estabelecem relações com o linho,

como encarnação universal do trabalho humano abstrato, causa espanto o

absurdo da afirmação. Mas, quando os produtores de casaco, botas etc.,

estabelecem relação entre essas mercadorias e o linho (ou entre elas e o outro

ou a prata, o que nada muda na substância da coisa), como equivalente

universal, ou encarnação universal do trabalho humano abstrato, é

precisamente sob aquela forma absurda que expressam a relação entre seus

trabalhos particulares e o trabalho social total (Marx, 2008, p. 97)..

Ao se ocultarem as relações de produção que estão na origem dos produtos

mercantilizados do capitalismo, naturalizam-se tanto essas relações — que passam a ser

88

confundidas com o trabalho em si — como a forma mercadoria, ou seja, naturaliza-se o fato

de que, mais do que valor de uso, os objetos que compõem o nosso cotidiano contenham

necessariamente valor de troca. É esse processo de naturalização que faz com que aceitemos,

sem grandes questionamentos, que a ‘troca’ em torno de um tênis Nike possa se dar em

termos muito distintos da ‘troca’ que se estabelece em torno de um outro tênis ‘comum’,

mesmo que o valor de uso objetivo dos dois seja rigorosamente igual. Assim, a mercadoria,

que pressupõe o valor de troca além do valor de uso, toma a forma de simples produtos, de

modo que essa forma particular de produção (própria de determinadas relações e contexto

histórico) é tratada como única e universal. Essa característica é mais claramente explicitada

por Marx em outro trecho do mesmo texto, em que ele diz: “O que é verdadeiro apenas para

essa determinada forma de produção, a produção de mercadorias (...) parece aos produtores de

mercadorias tão natural e definitivo (...) quanto o ar, que continuou a existir tal como antes,

após a ciência tê-lo decomposto em seus elementos” (Marx, 2008c, p. 96).

Na sequência, Marx mostra como todo esse processo concreto ‘contamina’ a leitura e a

tradução da realidade que vai se expressar na forma de ideologia — embora no ‘Capital’ ele

não lance mão dessa terminologia. “Formas dessa natureza constituem as categorias da

economia burguesa. São formas de pensamento socialmente válidas, portanto objetivas,

ajustadas às relações desse modo de produção historicamente definido, a produção de

mercadorias”, diz ele (Marx, 2008c, p. 98).

Nesse trajeto, a base da concepção de ideologia de Marx deixa de ser principalmente a

crítica a uma leitura idealista da realidade para se afirmar numa crítica mais fundamentada a

essa própria realidade. Tratando da elaboração final do conceito, no ‘Capital’, Eagleton

resume o desfecho:

Para começar, essa curiosa inversão entre sujeitos humanos e suas condições

de existência é agora inerente à própria realidade social. Não é simplesmente

uma questão de percepção distorcida dos seres humanos, que invertem o

mundo real em sua consciência e, assim, imaginam que as mercadorias

controlam suas vidas. Marx não está afirmando que sob o capitalismo as

mercadorias parecem exercer um domínio tirânico sobre as relações sociais;

está argumentando que elas efetivamente o fazem. A ideologia é agora

menos uma questão de a realidade tornar-se invertida na mente do que de a

mente refletir uma inversão real (1997, p. 83).

Essa síntese é muito importante para o nosso debate na medida em que nos ajuda a fugir

da armadilha de reduzir a ideologia a uma simples manipulação por parte dos meios de

comunicação de massa, numa postura que pode até explicar o processo de produção das

ideias, mas não permite entender o processo pelo qual elas são amplamente aceitas e

89

reproduzidas. Mesmo antes de chegar a essa elaboração madura, ao retratar com detalhes

históricos o processo de lutas sociais na França no período imediatamente posterior às

revoluções de 1848, e num trecho que se aplicaria de forma bem convincente à análise do

papel dos jornalistas da grande imprensa ainda hoje, Marx descreve, sem nomear, o fenômeno

da ideologia como algo muito mais complexo do que um simples processo de manipulação ou

desonestidade consciente. Referindo-se ao papel da pequena burguesia nos rumos das

revoluções, ele afirma:

Não se deve ter a limitada ideia segundo a qual a pequena burguesia quer

impor, por princípio, um interesse egoísta de classe. Ela crê, ao contrário,

que as condições particulares da sua emancipação são as condições gerais

fora das quais a sociedade moderna não pode ser salva nem evitar a luta de

classes. (...) O que os faz representantes do pequeno burguês é que a sua

cabeça não ultrapassa os limites que aquele não ultrapassa na vida; que,

portanto, são teoricamente impulsionados para as mesmas tarefas e soluções

para as quais o interesse material e a situação social impulsionaram,

praticamente, aquele. Tal é, em geral, a relação existente entre os

representantes políticos e literários de uma classe e a classe que eles

representam” (Marx, 2008d, p. 246, grifos nossos).

É claro que, como já sinalizamos, as limitações materiais têm mediações também

subjetivas, que podem dar centralidade aos sujeitos e instituições na instrumentalização dessa

materialidade na forma de ideias a serviço de uma classe ou de frações dela. Não por acaso, é

no prefácio do ‘Capital’ que Marx descreve de forma mais objetiva o fenômeno da decadência

ideológica, de que tratamos no capítulo anterior. Mas importa aqui perceber como Marx nos

dá elementos que permitem ir além da leitura proposta, por exemplo, pela tradição teórica

mais crítica do campo da comunicação, representada pela Escola de Frankfurt, que joga

principalmente sobre o desenvolvimento da tecnologia que permite a produção cultural em

massa o peso da passividade do receptor-consumidor na reprodução de padrões de

comportamento. Assim, num discurso um tanto circular, Adorno e Horkheimer justificam, por

exemplo, que os “padrões” da indústria cultural são aceitos porque se acredita que eles

“teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores” (2006, p. 100), o que é

um bom diagnóstico mas insuficiente como explicação.

É preciso, no entanto, ressaltar que, no que existe de bom diagnóstico, os autores

identificam na cultura de massas um conjunto de determinações que, mesmo sem serem

chamadas pelo nome, correspondem precisamente aos mecanismos da ideologia a partir do

conceito marxiano que estamos seguindo. Ainda que não explique o fenômeno, a afirmação

que acabamos de comentar, por exemplo, denota um claro processo de inversão que se

manifesta com o capitalismo avançado, a partir do qual a geração de necessidades por parte da

90

produção é ideologicamente reconhecida como demanda real de consumo. Outra clara

identificação se dá quando Adorno e Horkheimer explicam que a base do modelo de cultura

que se estabelece é a “falsa identidade do universal e do particular” (2006, p. 100), o que

significa que a cultura de massas produz uma universalização quantitativa e abstrata que,

baseada no gosto médio, elimina as particularidades. “A indústria cultural realizou

maldosamente o homem como ser genérico. Cada um é tão-somente aquilo mediante o que

pode substituir todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar”, resumem brilhantemente

os autores (Adorno e Horkheimer, 2006, p. 120). Ao denunciarem o caráter essencialmente

previsível e familiar daquilo que é produzido pela cultura de massas, eles estão identificando

instrumentos concretos de naturalização das condições de vida sob o capitalismo e, mais do

que isso, fornecendo pistas importantes para a compreensão da relação contraditória entre

cotidiano e novidade que, como veremos adiante, caracteriza o jornalismo produzido pela

imprensa de massas.

Mas dizíamos, antes dessa breve digressão pelo pensamento da Escola de Frankfurt, que

a compreensão precisa do conceito de ideologia em Marx, que aparece sintetizada na citação

destacada de Eagleton, nos ajudava, neste trabalho, a fugir de algumas armadilhas. Essa

identificação entre ideologia e manipulação, como vimos, é uma delas. Outra é, a partir do

entendimento da ideologia como expressão de uma realidade que é ela mesma invertida,

deduzir que não existe escapatória, que portanto não é possível fugir da ideologia. Na

contramão do que acreditamos estar contido no conceito marxiano, essa postura, por um lado,

reduz tudo a uma questão de discurso, cuja valoração passa não mais pela sua

correspondência com a verdade (ou seja, com o compromisso com a ‘desinversão’ do mundo

real) mas sim com a conveniência em cada situação ou interesse particular e, por outro lado,

ignora as diferentes posições dos atores na sociedade, reconhecendo em todos os ‘receptores’,

individualmente, a capacidade de decifrar, contextualizar e se apropriar criticamente das

mensagens e discursos que circulam, por exemplo, pelos meios de comunicação de massa.

Parte importante da ciência dita pós-moderna e, no campo da comunicação especificamente,

os chamados estudos de recepção ou estudos culturais frequentemente se encaixam nessa

última caracterização.

2.2. Luta ideológica ou contraideologia?

O aprofundamento teórico sobre o conceito de ideologia neste trabalho não é um mero

capricho intelectual. Na medida em que esse processo se dá por meio da produção e

91

disseminação de ideias, valores e comportamentos — que, no entanto, como vimos, têm

necessariamente uma base material —, a imprensa e os meios de comunicação de massa de

modo geral desempenham na sociedade atual um importante papel ideológico que, pela

hipótese que estamos seguindo, se expressa não apenas no conteúdo produzido do jornal mas

também na forma como se dá essa produção e na própria concepção do que é ou não notícia,

do que é ou não jornalismo. Mas a importância do conceito vai muito além dessa mera

constatação. Afinal, nossa preocupação, não esqueçamos, é o jornalismo que pode

desempenhar um papel contra-hegemônico à ordem do capital; se a ideologia representa as

ideias dominantes como expressão das relações de dominação, qualquer prática que

minimamente questione essas relações terá que se deparar com esse fenômeno, real e

concreto, que ajuda a nublar essas contradições. Trata-se, portanto, de um conceito que tem

implicações práticas muito diretas na questão teórica e política que seguimos neste trabalho.

Acreditamos, assim, que enfrentar o complexo debate sobre ideologia, como conceito

que expressa um fenômeno real, evita respostas prontas, apressadas e naturalizadas, sobre

qual deve ser o foco principal de uma imprensa contra-hegemônica. Como devem se articular,

por exemplo, a batalha das ideias e a organização política para a ação concreta? Na produção

do conhecimento imediato que influencia as ideias socialmente compartilhadas, o que deve

mover o esforço jornalístico alternativo: a contra-argumentação sobre princípios e valores, a

correção das informações falsas e manipuladas ou a diversificação e democratização das

vozes e concepções em disputa? Esse embate de ideias ou de verdades se dá nos espaços

constituídos pela ordem burguesa para a convivência ‘harmônica’ entre os interesses, como

são os meios de comunicação de massa, ou em nichos voltados para grupos, classes e frações

de classe específicos? No caso do jornalismo, a contra-hegemonia se efetiva no embate entre

verdades que atendem a interesses distintos ou na desmistificação das verdades que nublam os

interesses em jogo?

Essas e muitas outras questões orientam o trajeto que estamos seguindo neste estudo. E

cada resposta possível a cada uma dessas perguntas corresponde a uma ou mais concepções

de ideologia que têm se esbarrado, complementado e confundido, dentro e fora da tradição

marxista, informando práticas também distintas de organização e ação política das esquerdas

ao longo do tempo.

A confusão teórica sobre a concepção de ideologia se reflete muito claramente na

acepção que essa palavra tem também no senso comum onde, resumidamente, podemos dizer

que ela é tratada como um conjunto de ideias pré-concebidas influenciadas pela adesão,

92

muitas vezes considerada acrítica, a alguma espécie de ‘dogma’ ou crença, em geral de caráter

político. Nesse caso, ideologia tem um sentido negativo, mas completamente diferente do que

temos adotado aqui porque sua negatividade estaria no caráter tendencioso das opiniões

ideologicamente orientadas, que inibiriam a originalidade individual e a racionalidade da

análise imparcial de cada situação específica. No uso comum, a negativização dessa

concepção, no entanto, é historicamente datada e passa por um conjunto de valores

contemporâneos que insistem em opor as ideias e a militância política ao pragmatismo da

ação. Adaptada a contextos menos hostis ao debate político, uma compreensão semelhante de

ideologia pode ser positivamente identificada com um posicionamento público baseado na

sustentação de ideais coletivos. Ter uma ideologia, nesse caso, significa acreditar em alguma

coisa que vai além dos próprios interesses mais imediatos, mas acaba por implicar também

que as ideologias sejam tão múltiplas quanto o são as visões de mundo existentes.

Muitas sutilezas podem ser apontadas e discutidas nessas simples concepções do senso

comum, mas não nos deteremos nesse debate detalhado, que ultrapassaria nossos objetivos

imediatos31

. Dando, então, um salto consciente para a forma como essa diversidade se

apresenta no debate teórico, diríamos que esse segundo sentido, positivado, tem algum

parentesco, ainda que longínquo, com a noção de ideologia desenvolvida e aplicada por

importantes representantes da tradição marxista que, no entanto, se diferem do conceito

elaborado por Marx e Engels de que tratamos até aqui. Em relação ao senso comum, a

diferença principal estaria no fato de que o embate principal de concepções de mundo se daria

entre as duas classes fundamentais de sustentação da sociedade capitalista: burgueses e

proletários. Essa é principalmente a base da concepção teórica e da estratégia política

reconhecida em Lênin, que se dedicou à formulação e disseminação de uma ideologia

proletária como forma de combater a ideologia burguesa, compreendendo claramente esse

conceito no nível da batalha das ideias e concepções de mundo ou, de modo mais preciso,

como insumo do conhecimento ou da doutrina que orienta a consciência de cada classe. Em

conhecida passagem, o revolucionário russo é taxativo: “(...) o problema põe-se unicamente

assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade

não elaborou nenhuma “terceira” ideologia; além disso, em geral, na sociedade dividida pelas

contradições de classe, não pode existir uma ideologia à margem das classes ou acima delas)”

(1970, p. 51).

31 Uma brilhante sistematização sobre as questões e polêmicas que envolvem o conceito de ideologia pode ser

encontrada no livro ‘Ideologia’, de Terry Eagleton, publicado no Brasil pelas editoras Unesp e Boitempo, e que

será referido algumas vezes neste capítulo. Outra sistematização do conceito em diversos autores está em

Konder, 2002.

93

Com nuances e especificidades, outros importantes autores marxistas como Antonio

Gramsci e Georg Lukács também conceberam conceitos mais amplos de ideologia, que

aparecem de forma positiva ou negativa de acordo com a origem ou a instrumentalização dada

às ideias e ações envolvidas. Em todos esses casos, os autores se afastam do conceito mais

restrito elaborado por Marx e Engels na ‘Ideologia Alemã’ e que, no seu caráter negativo,

reaparece no ‘Capital’, que é a grande obra de maturidade de Marx. Para que não se perca a

importância desse debate para o nosso tema, é preciso reconhecer, desde já, que essa diferença

de abordagem não se resume a uma questão de linguagem; não se trata de uma discussão

sobre a pertinência ou não da polissemia criada em torno da palavra ideologia, mas sim do

mapeamento de diferentes lentes de leitura da realidade da luta de classes que, por sua vez,

informaram diferentes táticas e estratégias de enfrentamento da ordem burguesa, com práticas

e instrumentos igualmente diferentes, entre os quais tentamos reconhecer a imprensa e o

jornalismo. Eagleton atribui essa diferença de abordagem a algumas inconsistências e

contradições que marcariam o conjunto da produção marxiana em que se pode identificar o

tema da ideologia. Independentemente da maior ou menor precisão do conceito elaborado por

Marx e Engels, preferimos adotar aqui a explicação histórica fornecida por Iasi, que nos

lembra que, excetuando-se Lukács — e ainda assim em condições precárias —, nenhum

desses grandes pensadores e militantes marxistas teve acesso ao texto da ‘Ideologia Alemã’,

que só foi publicado pela primeira vez em 1932 (Iasi, 2007, p. 83). Esse desencontro histórico

nos parece mais determinante dessa heterogeneidade em torno do conceito, não por

cultivarmos a crença num adesismo acrítico desses autores aos escritos de Marx, mas pela

constatação de que eles elaboraram e lançaram mão de sua própria concepção de ideologia

sem sequer dialogar criticamente com um conceito que já existia anteriormente, e que fora

desenvolvido pelos personagens mais centrais da tradição teórica e política que eles seguiam.

O fato é que, diante dessa polissemia do termo, assumir teoricamente o conceito

marxiano negativo de ideologia, como fizemos, pode não ser suficiente para resolver o

problema prático do ‘antídoto’ contra a ideologia ou, mais precisamente, da ação sobre a

ideologia que a construção de contra-hegemonia requer. Autores que conceberam a ideologia

como um mecanismo de dupla face, que portanto poderia servir também aos interesses dos

trabalhadores, conceberam igualmente estratégias que previam uma ação ideológica — nesse

sentido positivo — por parte das organizações políticas comprometidas com as classes

subalternas. Como já tivemos a oportunidade de destacar, não se trata apenas de uma questão

de terminologia.

94

Gramsci é um desses autores, e precisamos trazê-lo para o debate, ainda que de forma

meramente introdutória, porque é dele a noção de hegemonia que embasa a ação contrária

perseguida por este trabalho. A obra fragmentada do autor italiano não permite que se

identifique uma conceituação precisa e unitária de ideologia, que aparece, principalmente no

volume 1 dos Cadernos do Cárcere, com sentidos muito diversos, incluindo o uso mais

simples como sinônimo de ‘visão de mundo’. Sendo assim, nos ateremos principalmente aos

momentos em que ele se dedica mais detidamente à história e às distinções internas a esse

conceito. Na contramão da concepção que temos defendido neste trabalho, Gramsci identifica

como um problema a prevalência de uma percepção negativa de ideologia — embora não se

refira diretamente à obra de Marx, como já apontamos. No entanto, o que ele considera o

sentido “pejorativo” também não coincide com o conceito marxiano que apresentamos ao

longo de todo este capítulo. O duplo sentido do conceito se dá, segundo o comunista italiano,

entre “ideologias historicamente orgânicas” e “ideologias arbitrárias, racionalísticas,

‘voluntaristas’” (2004, p. 237).

A primeira concepção se refere às ideias que atendem à ‘demanda’ da realidade

histórica concreta, subsidiando visões de mundo coletivamente coerentes. Nesse sentido, elas

são a “superestrutura necessária de uma determinada estrutura” (2004, p. 237) e têm a função

de organizar e aumentar o nível de consciência das massas em relação à sua posição social.

Embora represente o que poderíamos chamar de sentido positivo (ou simplesmente não-

pejorativo) de ideologia, na obra de Gramsci esse conceito parece se referir a grupos e frações

tanto dos trabalhadores quanto da classe dominante. Em um ou em outro caso, ganha destaque

na condução e disseminação dessa ideologia positiva a figura do intelectual orgânico que,

diferente do intelectual tradicional, mais autônomo em relação à vida social, é ao mesmo

tempo produto e ‘instrumento’ a serviço da sua classe. Já o que Gramsci chama de ideologias

arbitrárias, de forma claramente pejorativa, seriam as “elucubrações” espontâneas de

indivíduos, que não expressam as relações sociais mais amplas e atuam no sentido de gerar

polêmica e não consciência (2004, p. 237-238).

Em outro trecho da mesma obra, Gramsci parece fazer uma distinção semelhante com

uma variação de nomenclatura. Aqui, ideologia nomeia a prática negativa, caracterizada como

“concepção particular dos grupos internos da classe que se propõem ajudar a resolver

problemas imediatos e restritos” (2004, p. 302, grifos nossos), aproximando-se da noção

original de “ideologia arbitrária” na medida em que trata de ideias mais individualizadas no

interior dos blocos que compõem as massas. Na outra ponta, a prática passível de ser

95

positivada é neste trecho chamada de “filosofia”, que se assemelha à noção anteriormente

apresentada de “ideologias historicamente orgânicas” porque é compreendida como

“concepção do mundo que representa a vida intelectual e moral (catarse de uma determinada

vida prática) de todo um grupo social concebido em movimento e considerado,

consequentemente, não apenas em seus interesses atuais e imediatos, mas também nos futuros

e mediatos” (Gramsci, 2004, p. 302).

É importante ainda ressaltar que, em ambos os casos, essas ideias, tenham elas força

material ou sejam puro espontaneísmo, são tratadas no limite do grupo/classe em que são

produzidas e a que elas se dirigem. E é aqui, diríamos, que o conceito se diferencia mais

diretamente do de Marx que, como vimos, atribui funcionalidade às ideias exatamente na

medida em que elas universalizam para o conjunto da sociedade os valores, princípios e

conhecimentos que servem à classe dominante. Não se trata de duas visões que se opõem ou

se excluem mutuamente, mas sim de dois conceitos utilizados pelos autores como ferramentas

para objetivos distintos. Em Marx, a ideologia ajuda a compreender o processo de dominação,

que pressupõe uma integração entre as classes promovida em nome dos interesses de uma

delas. Gramsci, por sua vez, ao reconhecer um sentido positivo de ideologia, está,

politicamente, buscando a reação possível, no interior da classe dominada, a esse papel

conservador que as ideias exercem sobre ela. Para o autor italiano, o sentido positivo da

ideologia para os trabalhadores estaria exatamente em promover a superação do que ele

chama de “senso comum”32

na direção do “bom senso”. E, segundo ele, é pela construção de

uma maior ‘coesão’ das informações, conhecimentos, valores e crenças que

fragmentariamente formam esse senso comum — o que resulta na composição de um

“sistema totalitário de ideologias” — que se pode compreender a “contradição da estrutura” e

criar “condições objetivas para a subversão da práxis” (Gramsci, 2004, p. 251).

Observe-se, no entanto, que a relação entre o conceito dos dois autores não pode ser

automática. O processo de garantir unidade e coerência interna das ideias que responderiam

ao senso comum caótico em Gramsci não dá conta de toda a dinâmica da ideologia como

dominação que, em Marx, representa, ela própria, um sistema integrado (embora nunca

fechado), cuja coesão é garantida não pelo esforço subjetivo ou individual de pessoas e

instituições, mas pela base material que a sustenta. Por isso, Marx identifica ideologia

também na ciência burguesa, a despeito de, como ciência, ela não ser caótica nem

fragmentada no sentido que caracterizaria algo como o senso comum gramsciano.

32

O conceito de senso comum, que aqui é apenas referido, será mais desenvolvido nos capítulos 4 e 5.

96

A diferença na abrangência desse sistema de ideias na obra de Marx e Gramsci talvez se

explique pelo fato de este último, de certa forma, subordinar o mecanismo da ideologia (mais

restrito às ideias) a um processo mais amplo de luta pela direção intelectual e moral da

sociedade, que ele chama de “hegemonia” e que prevê um conjunto de práticas de produção

de consenso para além das ideias, que o italiano restringe ao seu conceito de ideologia.

Disso deriva outra sutileza que não pode passar despercebida para os objetivos deste

trabalho. No processo de luta de hegemonia, Gramsci considera que uma classe — no caso da

sociedade atual, o proletariado — pode e deve se tornar dirigente (no sentido intelectual, no

nível das ideias) antes de se tornar dominante (ou seja, de controlar o aparelho de Estado). É

claro que ele está pensando num processo em movimento, em que a direção é apenas o

primeiro passo que, como meta, pressupõe necessariamente a tomada do poder de Estado, de

modo que não transparece da sua obra a ideia de uma sociedade ‘harmonicamente’ conduzida

pelas ideias de uma classe e pelos interesses econômicos de outra. Mas, ainda que seja quase

uma nuance sobre as ‘fases’ do processo revolucionário, encontra-se aqui uma sutil diferença

— ou, diríamos, nós, uma atualização histórica — em relação à concepção de Marx e Engels

segundo a qual as ideias dominantes são expressão das relações de dominação.

Seguindo essa trilha, apesar das contribuições de Gramsci e Lenin, que são pertinentes

ao desenvolvimento da nossa reflexão e serão fundamentais para o desenrolar do nosso

problema, cumpre reafirmar, agora quase como justificativa prática, a opção teórica pelo

conceito marxiano de ideologia. É que a noção de ideologia ancorada na divisão social de

classes mas concebida como luta de ideias, que pressupõe portanto uma ideologia proletária e

uma ideologia burguesa, carrega consigo uma concepção de revolução (e de contra-

hegemonia, se pensamos no processo como um todo) que pode acabar se resumindo a uma

inversão de sinal. Não nos parece possível conciliar uma concepção da ideologia dominante

como inversão, ocultação, naturalização e universalização abstrata das relações sociais com

uma proposta de ideologia proletária, que sempre vai correr o risco de repetir esses processos

de velamento, como se a revolução socialista pudesse ser pensada como a substituição de uma

dominação por outra. Reafirmando que não se trata de negar a necessidade da luta de ideias,

mas sim de ir a fundo na relação entre teoria e prática, Iasi resume a questão:

A luta contra o capital não é uma luta para dominar a burguesia, mas aponta

para que, no curso de sua liberação, os trabalhadores eliminem a própria

base da sociedade de classes. Não se trata de estabelecer um novo domínio

de classe, mas para abolir as classes a partir de sua base: as relações de

exploração e dominação. Nesse sentido, interessa aos trabalhadores inverter,

velar, obscurecer? Não interessa aos trabalhadores, no interior de sua luta

97

contra o capital, revelar o caráter das relações, sua essência, causas e

determinações reais, desnaturalizar e apresentá-las como produto histórico?

(2007, p. 81-82)

Mais uma vez, para que essa distinção não pareça um capricho discursivo, Iasi nos ajuda

a mostrar como essa preocupação tem fundamento real. Diferente do que possa parecer pela

citação acima, ele não nega a existência de uma ideologia proletária mas, ao contrário, afirma

a expressão desse conceito, com toda a carga negativa que Marx e Engels lhe atribuíram,

como experiência histórica recente da humanidade. Diz o autor: “(...) a ideologia proletária

inscreveu-se nos marcos de relações de dominação que necessitavam ser velados pelas

brumas enganosas da justificação, naturalização e inversão do que é histórico e socialmente

determinado. A forma histórica mais clara de ideologia proletária é o estalinismo33

” (Iasi,

2007, p. 84, grifos nossos).

Como vimos, embora seja uma estratégia de dominação, é da própria natureza da

ideologia se generalizar, atingindo todas as classes e frações de classe. Por isso, para o objeto

do nosso trabalho, o alerta de Iasi sinaliza um perigo duplo: por um lado, estamos sempre

premidos pelo risco de repetir, de forma acrítica, a fórmula ideológica do jornalismo burguês;

por outro, não estamos nunca livres da armadilha de, no que tange à construção da nossa

própria imprensa e do nosso modo próprio de fazer jornalismo, acabarmos por produzir

também a nossa própria ideologia.

Se é assim, trata-se de, como Gramsci, ‘inventariar’ as ideias dispersas, identificando

sua origem, de corrigir as aparentes ‘falsidades’ que se apresentam como desdobramento, e,

como Marx, vincular esse processo a uma ação prática cuja correspondência no mundo das

ideias seja o esforço de desinversão, desocultação, desnaturalização e efetiva universalização

da vida. Em Gramsci, o instrumento principal da luta ideológica (portanto contra a ideologia

dominante e a favor de uma ‘ideologia’ dos trabalhadores no sentido que ele defende) é a

filosofia (ou a ciência) que, ancorada na realidade material histórica, é o que permite dar

forma, coesão e unidade ao pensamento fragmentário expresso pelas massas. A ciência,

sempre determinada pela posição de classe, pode responder bem também como antídoto (anti-

ideologia) ao conceito que Marx e Engels iniciam na ‘Ideologia Alemã’ mas, quando este é

confrontado com o seu desenvolvimento maduro, parecem faltar elementos que lhe deem uma

perspectiva material mais concreta. Visto pelo conjunto da obra, e sem entrar em contradição

33

Tomando como exemplo o conhecido caso Lyssenko, que dividiu os geneticistas ligados aos partidos

comunistas a partir da União Soviética, Löwy desenvolve mais detalhadamente o fenômeno da ideologia

estalinista (2009, p. 194-216). Moraes (1994, principalmente pp. 96-108) também desenvolve o processo que

caracterizaria esse conceito, mas trazendo essa discussão especificamente para a cultura e a imprensa comunista,

inclusive no Brasil.

98

com as contribuições também trazidas pelo conceito gramsciano, parece que o oposto do

conceito negativo de ideologia que assumimos se expressa de forma mais precisa no processo

de consciência de classe. Não por acaso, esse será o tema do nosso último capítulo.

99

3. JORNALISMO INFORMATIVO: A FORMA SOCIALMENTE NECESSÁRIA DA IMPRENSA BURGUESA

Até hoje se pensava que o surgimento dos mitos cristãos no

Império Romano só foi possível porque a imprensa ainda não havia

sido inventada. Mas é justamente o contrário. A imprensa diária e o

telégrafo, que num instante espalha invencionices por toda a terra,

fabricam mais mitos num único dia (e as manadas burguesas

acreditam e os propagam ainda mais) do que no passado teria sido

possível produzir ao longo de um século

(Karl Marx, Carta a Kugelman, 1871)

Depois de uma contextualização histórica, que situa o lugar do jornalismo informativo

no processo de desenvolvimento do capitalismo, e do debate teórico sobre ideologia como

conceito-chave que atravessa toda a discussão deste trabalho, é hora de partirmos para algum

grau de verificação empírica do nosso argumento. Como já sinalizamos, o aprofundamento da

compreensão sobre o jornalismo que se tornou o modelo dessa atividade profissional — e que

desempenha importante função ideológica — é fundamental para firmar as bases daquilo a

que o jornalismo contra-hegemônico precisa se contrapor. Como num jogo de sombras, é

desvelando o que está naturalizado, oculto e mesmo invertido nesse modo de fazer jornalismo

— que, sob a capa de uma atividade profissionalizada, universaliza um modelo que atende a

interesses particulares — que podemos limpar o terreno para avançar em direção a uma

prática que de fato atue para abalar a hegemonia vigente.

Este capítulo, então, dedica-se à análise de documentos que apresentem o conjunto de

técnicas e mesmo princípios éticos orientadores que traduzem o que aqui estamos chamando

de modelo do jornalismo informativo. Existe larga bibliografia sobre técnica jornalística que

atenderia a esse objetivo, mas julgamos mais pertinente a este trabalho a análise de materiais

que estejam diretamente atrelados à prática jornalística, o que significa serem (ou pretenderem

ser), ao mesmo tempo, orientadores do trabalho dos jornalistas e resultado dessa prática

acumulada e sistematizada em forma de texto. Assim, optamos por analisar manuais de

redação que resumem, de forma aplicada, esse conjunto de técnicas, lançando mão da

bibliografia teórica apenas como apoio à análise. Mais uma vez, poderíamos ter escolhido

manuais dos principais jornais da grande imprensa brasileira, que certamente ofereceriam

insumos suficientes, mas decidimos seguir um caminho que melhor expressasse o caráter

estruturante (e universal dentro da sua particularidade de classe) das características que,

segundo nossa hipótese, definem o jornalismo informativo. Foi assim que decidimos analisar

as publicações voltadas para o aperfeiçoamento da técnica jornalística editadas pelo Instituto

100

de Imprensa, instituição que é o braço pedagógico da Sociedade Interamericana de Imprensa

(SIP), que representa os interesses dos maiores conglomerados de comunicação das Américas.

Como vimos na introdução deste trabalho, a ideia que sustenta a existência do Instituto

de Imprensa como instituição mantida pela SIP é a de que, produzindo um ‘bom jornalismo’,

os veículos de comunicação aumentam sua capacidade de autorregulação e criam obstáculos a

qualquer intervenção regulatória externa, que a entidade considera como agressão à liberdade

de imprensa. Assim, a SIP estabelece claramente uma associação — que, de modo geral, a

imprensa alternativa tem ignorado — entre um certo modo de se fazer jornalismo e a

manutenção dos interesses empresariais (econômicos e ideológicos) na área de comunicação.

A suposição é de que quanto mais os veículos conseguirem produzir matérias tecnicamente

perfeitas, que sigam à risca os princípios éticos que devem reger o jornalismo profissional,

mais eles sobrevivem e menos brechas são abertas para ‘interferências externas’. Assim, além

dos manuais, o Instituto de Imprensa promove prêmios de excelência no jornalismo, oferece

bolsas de estudo que levam alunos de jornalismo da América Latina e Caribe para estudarem

nos Estados Unidos ou Canadá e vice-versa, mantém um programa de avaliação das

instituições de ensino nessa área, o Conselho Latino-americano de Acreditação da Educação

em Jornalismo (Claep, na sigla em espanhol) e promove diversos cursos e eventos voltados

para esses profissionais.

Com o objetivo de fundamentar nossa opção metodológica, que dá centralidade ao papel

dos aparelhos privados de hegemonia do capital, apostando na coerência que concede unidade

às práticas particulares de cada veículo da grande imprensa, antes de entrarmos na leitura

propriamente dita dos materiais, faremos uma breve apresentação que situe o leitor sobre a

importância da Sociedade Interamericana de Imprensa, que representa um desdobramento

mais contemporâneo e local, no contexto da América Latina e Caribe, do poder crescente que

os Estados Unidos assumiram nas questões relativas à imprensa, como vimos no capítulo 1.

Assim, vale lembrar que, junto (e de forma coerente) com a difusão de um modelo de

jornalismo informativo, os EUA ganharam também protagonismo na institucionalização de

uma defesa intransigente da liberdade de imprensa. Esse princípio, que é resultado do

liberalismo progressista burguês e que, portanto, teve de fato algum caráter democrático na

Europa e nos EUA, ganhou contornos diferentes, conservadores e mesmo imperialistas, em

contextos como os dos países latino-americanos. E esse tem sido, segundo as análises críticas,

o papel desempenhado, por exemplo, pela SIP.

101

Criada em 1943, em Cuba, na época do governo de Fulgêncio Batista34

, a SIP tem como

principal objetivo anunciado defender a liberdade de expressão e de imprensa nas Américas.

Atuando como um importante aparelho privado de hegemonia do capital, sua ação tem

caminhado no sentido de proteger de forma incisiva os interesses particulares da grande mídia

empresarial, mas com uma zona de influência muito mais ampla, que tem contribuído para

fortalecer e desestabilizar governos e garantir os interesses imperialistas norte-americanos nas

Américas.

Não por coincidência, quando Salvador Allende assumiu a presidência do

Chile, assumiu o comando da SIP Agustin Edward, o chefe do clã dono do

Mercúrio, o grande jornal nacional chileno e, a partir de 1973, assumiu a

direção outro chileno, Raul Silva Espejo, diretor do também Mercúrio.

Edwards recebeu algo em torno de 100 milhões de dólares (valores

atualizados) para comandar a campanha midiática contra o governo da

Unidade Popular (Cannabrava Filho, 2012).

Atualmente com sede em Miami, a SIP é composta por empresas responsáveis por 1300

publicações — dezenas de jornais, revistas e agências brasileiras são membros dessa

instituição, entre elas todos os principais representantes da grande imprensa no país, como

Folha de S. Paulo, o Estado de São Paulo, O Globo, O Dia e Veja35

.

Mas o que a pauta da SIP, que envolve atores tão importantes, representa para o

continente americano? De acordo com Nelson Werneck Sodré, a defesa da liberdade de

imprensa — como liberdade da interferência do Estado — que era própria da concepção

liberal que marcou o capitalismo concorrencial, sofreu modificações com a chegada do

capitalismo monopolista.

(...) o capitalismo de concorrência estava interessado em que a imprensa

fosse livre, não se visse limitada pela violência ou pela censura da autoridade

pública, mas isso esgotava o seu conceito de liberdade de imprensa (...)

(...) a luta contra a censura e todas as formas de cerceamento impostas pela

autoridade passou a ser aspecto parcial da luta pela liberdade de imprensa e,

algumas vezes, aspecto menor. A transformação da imprensa em negócio de

grandes proporções, em empresas, e, paralelamente, o desenvolvimento,

34

Vale lembrar que, em 1943, ainda não vigia em Cuba a ditadura que foi derrubada pela revolução. Nesse

período, Fulgêncio Batista era presidente da república eleito democraticamente, em 1940, por uma ampla e

eclética coalizão, que incluía até o Partido Socialista Popular. 35

Atualmente, segundo o site da SIP, consultado em 26/01/2015, o Brasil tem dois representantes na junta de

diretores da entidade, referente ao período 2013-2016: Jayme Siritsky, da RBS, e Julio Cesar F. de Mesquita, do

Estadão. Este último integra também o seu comitê consultivo. Marcelo Rech, do Zero Hora, integra o comitê

executivo. André Luis Jungblut, da Gazeta do Sul, e Ascanio Seleme, do Globo, são vice-presidentes do Instituto

de Imprensa. Ao longo da sua história, dois brasileiros já ocuparam o cargo de presidentes da SIP: Manoel

Francisco do Nascimento Brito, que comandava o Jornal do Brasil, no período de 1970 a 1971, e Julio de

Mesquita Filho, do Estadão, entre 1974 e 1975. Além dos veículos empresariais da grande imprensa, chama

atenção na lista de publicações brasileiras filiadas à SIP a presença da Revista Fapesp, publicada pela Fundação

de Amparo à Pesquisa de São Paulo.

102

complexidade e encarecimento de suas técnicas, demandando grandes

investimentos e acompanhando o desenvolvimento qualitativo e quantitativo

do público, mostra como a proteção contra a censura perdeu o interesse

antigo, embora não tenha desaparecido; as grandes empresas jornalísticas,

no essencial, se autocensuram (Sodré, 1999, 408, grifos nossos).

Essa passagem nos ajuda a reconhecer, por parte da SIP, a relação entre a função de

fiscalização e denúncia direta de ações que poriam em risco a liberdade de imprensa e o papel

‘pedagógico’ de promover um jornalismo tecnicamente profissional que corresponda ao que,

na citação acima, Sodré chamou de “autocensura”. Ela, no entanto, poderia fazer com que a

criação de uma instituição volumosa como a SIP no final da primeira metade do século XX

parecesse extemporânea. A força que a pauta da liberdade de imprensa pela perspectiva do

grande capital reassume nos anos 2000, principalmente com a chegada de governos oriundos

da esquerda em países da América Latina, mostra que essa relação não é estanque,

respondendo sempre ao movimento histórico da luta de classes. Mas, no que diz respeito ao

momento de criação da SIP, em que esse contexto ainda não havia se modificado, o que

ficava evidente era a tentativa dos EUA de fortalecer sua hegemonia continental.

Nessa época, nos EUA tanto quanto nos países centrais da Europa, a questão da

liberdade de imprensa, por uma perspectiva liberal, estava, no geral, equacionada. A SIP

nasce, então, como um aparelho privado que tem precisamente a função imperialista própria

do capitalismo monopolista, que reconhece e atua sobre países de capitalismo atrasado, como

os da América Latina.

E a História comprovou (e consolidou) esses objetivos. Desde 1889, quando a 1ª

Conferência Panamericana planejou um conjunto de reuniões entre os governos das Américas

com o objetivo declarado de “incentivar a comunicação e a colaboração entre os países, em

condições de igualdade”, esses encontros já “respondiam, na realidade, à preocupação dos

EUA de delinear as manifestações de controle imperialista, em vinculação com as oligarquias

locais” (Ron, 2008, p. 9). Depois de diversas outras reuniões em vários países, organizou-se,

em 1926, em Washington, uma conferência específica para tratar sobre a imprensa. O

próximo passo, quase 20 anos depois, seria, finalmente, a criação da Sociedade

Interamericana de Imprensa.

Yaifred Ron localiza a origem da SIP, que segundo ele teve, no seu início, importantes

brechas progressistas, no momento em que EUA e União Soviética uniram esforços contra o

fascismo. “Esse clima histórico, permeado pela existência de uma frente antifascista, permite

que ao fundar-se a SIP se incluam entre seus membros algumas publicações progressistas e de

esquerda, entre elas, o órgão de imprensa do Partido Comunista Cubano, o jornal Notícias de

103

Hoje, fundado em 1938” (Ron, 2008, p. 11). Até então apresentando-se como uma arena em

que era possível alguma disputa de projetos, em 1950 a SIP se transformou naquilo que ela

representa até hoje. E isso se deu a partir de um processo que o jornalista cubano Ernesto

Vera chamou de golpe “CIA-SIP”.

O autor conta que na reunião da SIP que aconteceu em 1949, um forte lobby da

delegação norte-americana, formada por um representantes do Departamento de Estado e da

CIA, conseguiu emplacar os EUA como país-sede do encontro do ano seguinte. Questionada

sobre o clima de forte perseguição política — em plena vigência do macarthismo — e

descriminação racial que reinava no seu país, essa delegação garantiu as condições

necessárias para a realização de um congresso e a participação de todos os delegados. Isso, no

entanto, não aconteceu: a reunião daquele ano, em Nova Iorque, ocorreu sem a participação

dos jornalistas que representavam os veículos progressistas integrantes da SIP. Apesar das

promessas feitas, uma parte desses representantes não foi convidada, outra não recebeu visto

de entrada e houve ainda quem viajasse mas ficasse detido antes de entrar no país36

. “No caso

de Cuba, cujo representante era Carlos Rafael Rodríguez, não o deixaram entrar em Nova

York e o enviaram à prisão de imigração Ellis Island, até que foi devolvido a nosso país,

mesmo sendo o tesoureiro da Organização”, explica Vera (2014).

Num congresso realizado dessa forma, foram aprovadas modificações importantes no

estatuto da entidade — costuma-se considerar como de maior impacto a mudança da regra

que estabelecia o direito de um voto por país: a partir de então, cada publicação integrante da

SIP passou a ter direito a um voto, o que elevou para 424 votos o poder de influência dos

EUA. “Dessa maneira o governo dos Estados Unidos tornou-se dono exclusivo da chamada

liberdade de imprensa e manifesta isso através da SIP”, conclui Vera (2014).

O ano de 1950 é de fato destacado no próprio site da entidade como aquele que marcou

uma “mudança de direção na SIP”. Segundo a história oficial, essa mudança na

correspondência dos votos teve como objetivo garantir uma maior independência em relação

aos governos que, até então, eram os anfitriões dos congressos e, muitas vezes, financiadores

de ações da entidade. Ainda segundo o site, até aquele momento muitos dos membros da SIP

36

É digno de nota o fato de estratégias como essa, que nos soam truculentas e pouco sofisticadas, serem usadas

até hoje. Embora não tenha sido praticamente divulgado pela imprensa empresarial hegemônica, recentemente,

enquanto em diversos lugares, inclusive em terras norte-americanas, se recepcionava a blogueira Yoani Sanchez,

que é uma ferrenha crítica do governo cubano, a professora e jornalista cubana Elaine Diaz Rodrígues teve seu

visto de entrada nos EUA negado. Ela teve um trabalho acadêmico aprovado e a viagem financiada pela

Associação de Estudos Latino-Americanos para participar do XXXI Congresso Internacional de Estudos Latino-

Americanos. “Não tive problema nenhum com Cuba para sair, nunca”, declarou em entrevista ao site Jornalismo

B.

104

não eram jornalistas: “Desde então a SIP depende de fundos provenientes de seus membros e

de doações de fundações. Os sócios da SIP são as publicações ou cadeias de jornais”.

A história mostra que essa entidade se manifestou contra diversas iniciativas políticas

associadas à esquerda nas Américas. Atualmente, tem denunciado enfaticamente os governos

de Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina como inibidores da liberdade de imprensa, em

função das mudanças legais que esses países conseguiram implantar contrariando, em

diferentes níveis, os interesses da grande mídia empresarial que a SIP representa. Como

Venício de Lima resume:

Dentre outras muitas posições que tem tomado ao longo dos anos, a SIP

opõe-se obstinadamente à revolução cubana; foi contra o sandinismo na

Nicarágua; apoiou o golpe contra Salvador Allende no Chile; foi contra o

debate sobre a Nomic, Nova Ordem Mundial da Informação e da

Comunicação) na Unesco na década de 1980 e tem sido crítica implacável

do governo de Hugo Chávez na Venezuela (Lima, 2010, p. 73).

Seu braço pedagógico, o Instituto de Imprensa, foi criado em 1957, como um centro

técnico da SIP que oferecia informação e assistência técnica aos sócios. Em 1962, ampliou

suas atividades a partir de uma doação de US$ 1 milhão feita pela Fundação Ford e, em 1995,

tornou-se de fato um Instituto.

Um dos materiais analisados neste capítulo mostra de forma muito explícita a

efetividade dessa estratégia de influência norte-americana no modo de fazer jornalismo.

Trata-se do ‘Manual de Estilo’, que aborda a comparação (e mesmo tensão) entre o jornalismo

norte-americano e o europeu de forma muito clara, sem rodeios. Numa passagem, por

exemplo, em que defende a utilidade das perguntas que compõem o lead da notícia, o texto

explica que jornalistas europeus e latino-americanos teriam certa resistência a esse modelo

por entendê-lo como uma “imposição neocolonialista do jornalismo norte-americano”

(Alberto e Suárez, 1996, p. 114). Diante dessa constatação, o ‘manual’ trata de atribuir uma

outra origem para o ‘método’ — que teria então surgido nas faculdades de Direito da Alta

Idade Média, como técnica para lembrar os elementos fundamentais da reconstituição dos

fatos — e minimiza a questão. “(...) o que era bom para os advogados da Idade Média segue

sendo bom para os jornalistas do século XX” (1996, p. 114), garante. Da mesma forma, em

trechos em que trata das seções de opinião e editorial, o ‘Manual de Estilo’ critica o

jornalismo da Europa — e por consequência o da América Latina, que sofreria maior

influência deste — por não separar de forma suficientemente marcada os espaços e as rotinas

de produção de informação e opinião no jornal (1996, p. 165, 171). E conclui:

105

“Indubitavelmente, o modelo norte-americano assegura uma delimitação mais clara entre os

conteúdos jornalísticos das páginas de notícias e das páginas editoriais” (1996, p. 172).

Feito esse breve passeio histórico e ‘biográfico’ sobre a SIP, vale por fim explicar que,

metodologicamente, para nós a validade do material que será analisado não está no maior ou

menor uso que cada um desses manuais efetivamente tenha — o que, além do mais, seria

impossível de mapear —, mas sim no tanto que eles concentram um conjunto de técnicas,

orientações e princípios que estão hegemonicamente presentes nos cursos de jornalismo,

livros de técnica profissional e mesmo em outros manuais produzidos por veículos para uso

próprio.

Entre os materiais disponíveis no Centro Digital do Instituto de Imprensa estão

publicações de editoras de instituições de ensino acreditadas pela SIP, manuais e documentos

de grupos de mídia associados à entidade e publicações editadas pela própria SIP.

Selecionamos para esta análise quatro publicações: dois manuais voltados para jornalistas, um

manual de estilo e um livro sobre ‘valores jornalísticos’, todos disponíveis em espanhol.

Adotamos assim como primeiro critério analisar publicações cuja edição ou tradução fossem

iniciativa direta da SIP, o que diminui as mediações próprias dos materiais ‘recomendados’.

Em segundo lugar, optamos por publicações cujo conteúdo fosse voltado para jornalistas (já

que há materiais gerais e outros cujos temas são mais pertinentes aos executivos de mídia do

que aos profissionais da imprensa), e que, portanto, tratassem, principalmente, da técnica

jornalística. Sobre este último ponto, é preciso, no entanto, um alerta: a afirmação da

coerência entre a técnica da notícia, formatadora de um modelo que se torna hegemônico, e

uma determinada funcionalidade que o jornalismo assume na sociedade capitalista, nunca

pretendeu ser, neste trabalho, um recorte simplista que isolasse a técnica do seu contexto mais

amplo. Nesse sentido, é não só dedutível como facilmente verificável nos materiais, por

exemplo, que não se pode descolar uma análise da técnica jornalística daquilo que podemos

chamar de construção de um certo ethos da profissão, que ao mesmo tempo se ancora e se

justifica nesse modelo de neutralidade democrática.

Após essa seleção, a leitura dos materiais apontou um destaque claro para duas dessas

publicações. Uma é o ‘Manual para periodistas’ (no plural), organizado e escrito

majoritariamente pelo jornalista Malcolm F. Mallette e editado originalmente em 1990, em

língua inglesa, pelo Comitê Mundial para a Liberdade de Imprensa37

(WPFC, na sigla em

37

Esse Comitê foi criado em 1979 com o objetivo específico de combater a Nova Ordem Mundial de Informação

e Comunicação (Nomic), gestada no âmbito da Unesco e consolidada no documento conhecido como Relatório

MacBride, que propunha mudanças para garantir uma maior democratização da comunicação que incluísse os

106

inglês) como um guia para os jornalistas dos países que tinham deixado de integrar o bloco

socialista. Segundo nos informa o prólogo do livro, assinado pelo então presidente da Junta de

Diretores do WPFC, James H. Ottaway, Jr., a publicação, que nessa primeira edição se

chamava ‘Handbook for Journalists of Central and Eastern Europe’, foi uma demanda do

presidente da Associação de Jornalistas Polacos “para ajudar a nova imprensa em sua

transição do autoritarismo”. Visando aos países da América Latina, em 1998, a SIP decidiu

traduzir essa publicação para o espanhol com o título genérico de ‘Manual para periodistas’,

entendendo que o seu conteúdo era válido para jornalistas de qualquer parte do mundo.

A segunda publicação que merecerá destaque na nossa análise chama-se ‘Valores

periodisticos: ideas para la era de la información’, que é, na verdade, um livro escrito em

1996 por Jack Fuller, advogado, escritor, experiente jornalista norte-americano — ganhador,

inclusive, de um prêmio Pulitzer — e ex-presidente da SIP. No prólogo da publicação, escrito

pelo então presidente da entidade, Danilo Arbilla, o autor é apresentado também como um

“alto, altíssimo, executivo jornalístico” e presidente da Tribune Publishing Company. Jack

Fuller e a editora responsável pela primeira publicação cederam os direitos para que a SIP

publicasse a versão do livro em espanhol38

, como parte da coleção Chapultepec39

. Escrita num

formato menos didático do que aquele que normalmente caracteriza os manuais, essa

publicação expressa de forma muito clara a relação intrínseca entre orientações técnicas,

questões éticas e concepção de sociedade na prática jornalística.

Vale destacar que essas duas publicações são fortemente marcadas por dois contextos

principais. Um, interno ao campo da comunicação, é o debate sobre os riscos e desafios que a

massificação da TV, já precedida pelo rádio, e da internet, que naquele momento era ainda

uma expectativa de futuro em relação à transmissão de notícias, trazia para o jornalismo

impresso. O outro, mais geral, era o cenário da recente queda do bloco soviético e de uma

forte propaganda norte-americana que identificava os países capitalistas com a possibilidade

de sociedades “livres”, que dependiam também de uma “imprensa livre”. Assim, referências

países em desenvolvimento. Com forte resistência das empresas de mídia, a Nomic e o relatório MacBride

geraram uma crise que resultou na saída dos Estados Unidos e da Inglaterra da Unesco, sob a acusação de

atentado contra a liberdade de imprensa. Na página de apresentação do site do WPFC, ainda hoje a Nomic é

referida como uma concepção “restritiva” baseada em “propostas autoritárias”. Segundo informações do mesmo

site referentes a 2014, o WPFC é composto por 44 entidades dos seis continentes. Entre elas está a Associação

Nacional de Jornais (ANJ), do Brasil. 38

A primeira edição do livro é de 1996; na publicação não é possível identificar a data da edição em espanhol,

mas supõe-se que seja já da década seguinte, tendo em vista que nos créditos da SIP constam os nomes da

diretoria do período 2000-2001. 39

Chapultepec é o nome de uma cidade do México onde foi realizada, em março de 1994, a Conferência

Hemisférica sobre Liberdade de Expressão. Desse encontro resultou a ‘Declaração de Chapultepec’, que contém

os princípios da concepção de liberdade de imprensa defendida pela SIP. O nome passou a ser adotado em várias

iniciativas da entidade, como a coleção de publicações e os prêmios por ela promovidos.

107

explícitas à Guerra Fria e exemplos do comunismo como ameaça à liberdade de expressão são

muito frequentes nessas publicações.

Nos dois casos, os livros são baseados na experiência do jornalismo empresarial norte-

americano e estão claramente justificados pela necessidade de se produzir uma “imprensa

livre que serve aos cidadãos livres” — como explica Ottaway Jr. no já referido prólogo do

‘Manual’ — capaz de promover uma autorregulação que reforce a luta contra qualquer

regulação externa ou interferência estatal sobre os meios de comunicação. Essa ‘interferência’

é frequentemente tratada como prática autoritária própria dos países (não livres) do bloco

socialista. “O bom jornalismo faz uma grande diferença. Diferença entre uma sociedade justa

e uma injusta, entre um público informado e um que carece de informação, entre a democracia

e a ditadura”, explica Robert Cox, presidente da SIP em 1998, no prólogo do ‘Manual para

periodistas’.

Os outros dois documentos selecionados por nós são o ‘Manual del periodista’ (no

singular) escrito em 1991 pelo jornalista argentino José Luis Macaggi, por encomenda direta

da Sociedade Interamericana de Imprensa, que o publicou também em parceria com a

Comissão Mundial de Liberdade de Imprensa, e um ‘Manual de estilo’ escrito por José Luiz

Martínez Albertos e Luisa Santamaría Suárez, cuja edição aqui analisada, de 1996, é uma

atualização da primeira versão publicada em 196540

.

Não deve passar despercebido que todas essas publicações são relativamente antigas,

três delas da década de 1990 e uma do início dos anos 200041

. No entanto, será fácil observar

que, excetuando-se talvez apenas a pouca importância atribuída à internet, o modelo que elas

retratam, incluindo as sutilezas e diferenças que analisaremos em seguida, é absolutamente

atual e pode facilmente ser reconhecido tanto no discurso dos jornalistas profissionais quanto

nos manuais de redação dos grandes jornais brasileiros. Estes, aliás, datam mais ou menos do

mesmo período: em 1992, foi lançado o do Globo e o Novo Manual de Redação da Folha de

40

Vale anunciar aqui um rápido guia de leitura do material que segue. No início do texto, as publicações serão

apresentadas com o título completo mas, na continuação, elas serão referidas apenas pelas palavras iniciais. No

caso de três das quatro publicações analisadas, a referência será a mesma (‘Manual’), mas para diferenciá-las,

sempre será acrescentado o nome do autor. O livro ‘Valores periodisticos: ideas para la era de la información’

traz um problema adicional para as referências porque a versão utilizada na análise, que está disponível no

Centro Digital da SIP, está paginada por capítulos, de modo que o leitor provavelmente perceberá que a

numeração de algumas páginas se repete na indicação bibliográfica. Todas as publicações foram consultadas em

espanhol, mas são aqui reproduzidas em português, a partir da tradução livre feita por nós. 41

O Instituto de Imprensa da SIP continua promovendo cursos e eventos que tratam das questões técnicas,

visando à formação dos jornalistas. Parte desse conteúdo está disponível na forma de vídeos ou outros materiais,

que são, portanto, mais atuais, mas não foram selecionados por tratarem de questões muito específicas — como a

arte de fazer um título atraente, por exemplo —, fragmentando o modelo que se apresenta de forma bem mais

integrada e coerente nos manuais selecionados.

108

S. Paulo, que trazia mudanças importantes em relação às versões anteriores, de 1984 e 1987,

enquanto o do Estadão teve sua primeira edição em 1990.

Esperamos ter deixado claro até aqui que as publicações sobre as quais nos debruçamos

na análise documental dizem respeito a um tempo específico e expressam o contexto de locais

também específicos — principalmente da experiência dos EUA. Tentaremos não

desconsiderar essas particularidades na análise. No entanto, como já foi citado, algumas

dessas publicações afirmam claramente que, de modo geral, excetuando-se a legislação

própria de cada país — o que sempre tende o pêndulo para o ‘impressionante liberalismo’ das

leis norte-americanas —, as técnicas, regras e orientações éticas valem para qualquer lugar do

mundo em que se tenha uma imprensa “livre”, o que, sem ignorar os reais problemas de

cerceamento à liberdade em países ditatoriais, no contexto aqui analisado é sinônimo de ter

uma imprensa burguesa. Além disso, o objetivo declarado de parte do material editado por um

dos maiores aparelhos privados de hegemonia na área de comunicação do cenário

internacional é homogeneizar um modelo de jornalismo que corresponda a um modelo de

imprensa que, não por acaso, como tentamos demonstrar no capítulo sobre história, tem nos

Estados Unidos um espelho. No já mencionado prólogo do ‘Manual para periodistas’, o

presidente da Junta de diretores do Comitê Mundial para a Liberdade de Imprensa conta que,

na conferência em que o presidente do sindicato dos jornalistas da Polônia solicitou a

produção desse manual, o argumento utilizado foi o de que, para que os jornais poloneses se

tornassem “construtores da democracia”, seus jovens e corajosos jornalistas precisavam

aprender a fazer um “jornalismo normal”. E algumas passagens do material analisado

afirmam claramente que esse esforço de homogeneização rompe não só barreiras geográficas

como também econômicas ou finalísticas. Num capítulo em que elenca orientações sobre

como um jornalista pode publicar o seu próprio jornal, por exemplo, o ‘Manual’ organizado

por Mallette diz textualmente que “os princípios fundamentais do bom jornalismo e as

estruturas principais e de apoio de um jornal” são válidos para todos os jornais, “grandes e

pequenos” (1998, p. 128). E, mais adiante, num capítulo em que ensina a editar jornais locais,

apesar de apresentar orientações que parecem contraditórias entre si42

, ele recorre à famosa

42

Referimo-nos, por exemplo, a uma outra passagem do mesmo capítulo, que será comentada adiante, em que o

‘Manual’ afirma que o jornal, o rádio e o programa de televisão devem tratar, sobretudo, dos leitores: “de quem

teve filho. Quem acabou de morrer. Quem se casou e com quem. Quem na escola local teve boas notas, escreveu

um ensaio excelente e quem quebrou uma perna” (1998, p. 157).

109

metáfora do homem que mordeu o cachorro43

para defender que, também no jornalismo

‘comunitário’, a notícia está no fato inusitado (1998, p. 156).

Essa primeira leva de publicações será complementada, sempre que julgarmos

necessário, com exemplos dos manuais de redação ou documentos de princípios editoriais do

Globo e da Folha de S. Paulo, que estão entre os jornais brasileiros de cunho nacional com

maior circulação44

e reconhecimento do potencial de influência sobre a opinião pública.

Embora tratem também de questões relacionadas principalmente à TV e, em menor grau, às

publicações eletrônicas, o foco principal desses documentos é o jornalismo impresso, o que é

absolutamente coerente com a opção metodológica que também fizemos neste estudo. Não

analisaremos essas passagens, mas vale registrar que, de modo geral, a concepção de notícia

dos manuais não varia entre essas diferentes mídias, embora haja particularidades evidentes

nos procedimentos técnicos. De fato, o que temos tratado neste trabalho como modelo de

jornalismo informativo, nascido ainda na metade do século XIX, tem suas características mais

claramente definidas e sistematizadas no jornalismo escrito, que hoje, com mudanças

importantes mas que não nos parecem de forma alguma comprometer a estrutura, acabam

repetindo boa parte do conteúdo do jornal impresso na sua versão digital (on line)45

.

Estamos convencidos de que essa escolha não compromete a análise, tendo em vista

que, em relação à grande imprensa empresarial, as diferenças entre jornal, TV, rádio e mesmo

internet parecem recair muito mais sobre a expressão tecnológica (imagem, áudio,

multimídia...) da notícia e da informação do que propriamente sobre uma mudança da técnica

jornalística ou da concepção de jornalismo que os orienta.

No segundo tópico deste capítulo, apontaremos o grau de correspondência entre as

características dessa técnica jornalística — que, pela nossa hipótese, guarda marcas de classe

— e o que se tem apregoado como caminhos para um jornalismo alternativo — adjetivo que

aqui tomaremos ainda de forma genérica, buscando nomear as iniciativas que se dão fora do

registro da grande imprensa. Em relação ao nosso tema, no entanto, não identificamos uma

instituição ou movimento social que centralize as questões e ações relativas a um jornalismo

43

Trata-se da famosa definição de notícia de Amus Cummings, que foi editor do New York Sun, segundo a qual

um cão morder um homem não é notícia, mas se um homem morder um cão tem-se uma notícia sensacional. 44

De acordo com a Associação Nacional de Jornais, em 2013, o jornal com maior circulação paga foi o

Supernotícia, de Belo Horizonte, com perfil popular. Em seguida, vêm Folha de S. Paulo, O Globo e Estadão,

nessa ordem. Mais informações em: http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil. 45

Vale notar, apenas a título de exemplo, que todos os veículos citados na lista de sites, blogs e redes sociais

mais acessados no país como fonte de informação, segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia, realizada pela

Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em 2014, pertencem a grandes grupos

empresariais de mídia, que atuam em outros meios, inclusive o impresso. Estão entre os mais acessados, seja ou

não como fonte de informação: Globo.com, G1, UOL (três primeiros, atrás apenas do Facebook), R7 (da rede

Record), Terra (do grupo RBS), Globo on line, Abril.com e Globo News on line.

110

contra-hegemônico, funcionando, assim, como aparelho privado de hegemonia dos

trabalhadores, tal como a SIP, por exemplo, atua em relação aos interesses da imprensa

empresarial. É certo que existem diversas instituições e movimentos sociais que representam

as lutas pela democratização da comunicação, com destaque hoje, no Brasil, para o Fórum

Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Ocorre que nem essa nem nenhuma

outra organização que tenhamos localizado a partir da pesquisa se dedica à discussão sobre o

jornalismo como prática, atendo-se principalmente à dimensão do que tem sido chamado de

“Economia Política da Comunicação”, com foco na luta pela regulação pública dos meios

(principalmente eletrônicos) e nos canais necessários para se garantir uma maior

democratização do acesso e, principalmente, da produção da informação para além da mídia

massiva. Tampouco encontramos publicações que sejam representativas desse esforço

centralizado de influenciar a prática jornalística, como, do outro lado, nos pareceu ser o caso

dos manuais do Instituto de Imprensa.

Para os objetivos deste trabalho, a própria inexistência de um esforço concentrado de

discussão e formação para um jornalismo alternativo ao da grande mídia, que se apresenta no

Brasil de forma fragmentada, com ações em geral localizadas e de curto alcance, é por si só

um elemento importante de análise. Metodologicamente, optamos então por descrever o

conteúdo dos manuais analisados, fazendo a análise crítica, quando for o caso, a partir da

bibliografia disponível sobre o tema. Não nos dedicamos, no entanto, a registrar nesta parte do

texto uma ampla revisão bibliográfica sobre os temas — comunicação comunitária e

alternativa, por exemplo —, já que isso ultrapassaria os objetivos do tópico e adiantaria a

discussão mais precisa sobre jornalismo contra-hegemônico que será feita no último capítulo.

Adotamos, assim, para promover o diálogo crítico, autores que nos pareceram representativos

de um certo modo de pensar essas práticas que nos interessava destacar.

3.1. O ‘bom’ jornalismo burguês

Seja tratado como forma de conhecimento social que se expressa num tipo específico de

linguagem, seja compreendido apenas como prática profissional, o jornalismo é descrito em

todos os materiais analisados a partir de duas características principais: o imediatismo

(inmediatez, em espanhol) e a objetividade. Essas duas características, no entanto, se

desdobram em um conjunto de outros requisitos e questões de discussão que transitam entre o

debate filosófico e a descrição da rotina naturalizada do jornalista profissional. O imediatismo

aparece diretamente relacionado à velocidade da produção da notícia e à atualidade da

informação. Já a objetividade, que nossa análise documental confirma como o grande

111

calcanhar de Aquiles da imagem socialmente produzida do jornalismo, traz necessariamente a

discussão sobre a relação sujeito e objeto nas formas de conhecimento, sobre as possibilidades

e limites concretos à imparcialidade e à neutralidade e sobre a convivência entre

informação,opinião e análise no espaço do jornal. Essas últimas questões, que de fato

parecem ser as mais centrais, se expressam diretamente na forma de regras técnicas (de escrita

e diagramação) que sejam capazes, por exemplo, de traduzir o caráter imparcial ou neutro da

notícia e de separar, de forma convincente, os espaços informativos e editoriais no jornal.

Mas todo esse debate tem também um ponto de partida e um ponto de chegada.

Qualquer discussão sobre imediatismo e objetividade é determinada — ao mesmo tempo em

que ajuda a definir — pela concepção do que é ou não notícia ou, de forma mais ampla, do

que é a informação digna de ser produzida e divulgada por um jornal. A importância que

adquiriram as páginas editoriais, que são minuciosamente tratadas pelo material aqui

analisado, como veremos, impõe a definição também sobre o tema ou a opinião que merecem

lugar num espaço como o do jornal moderno, que tem conteúdos cada vez mais distintos. Já o

ponto de chegada, que pressupõe a caminhada sobre todas essas questões, das mais óbvias às

mais polêmicas, é uma determinada imagem coletiva sobre o que são o jornalismo e o

jornalista, e sobre a sua prática como expressão de uma ética que responde a uma espécie de

missão social.

O foco nesse conjunto de características e determinações, mesmo nos manuais sobre os

quais nos debruçamos, chama muitos outros elementos para a análise. Na sua expressão

linguística, o imediatismo reclama pela clareza do texto que, por sua vez, costuma ser

identificada, em maior ou menor grau, com a concisão e economia de palavras, todas essas

também características agregadas à prática jornalística. Mas, no que diz respeito à produção

da notícia, o imediatismo pode lançar luz também sobre o processo de trabalho do jornalista

na estrutura empresarial em que hoje ele está inserido. A questão da objetividade é, por um

lado, pano de fundo para a precisão da informação, igualmente apontada como requisito para

o fazer jornalístico; por outro, traz a reboque a discussão sobre o caráter relativo ou absoluto

da verdade, a definição sobre quais parcialidades (individuais, públicas ou privadas, de

classe...) estão em jogo na sociedade atual e a clareza sobre os meandros da relação entre o

conhecimento que se quer objetivo e os resultados (econômicos e ideológicos) que ele precisa

gerar em instituições que se tornaram empresas altamente lucrativas, o que costuma ser

traduzido de forma mais prática (e simplista) como o conflito entre a redação e os

departamentos comerciais dos jornais. E tudo isso influi diretamente na forma de organização

112

do jornal em editorias, nas opções que determinam a primeira página, entre outros aspectos

mais ou menos importantes.

É a partir desses elementos principais, então, que organizaremos a análise do material

aqui apresentado, sem nos preocuparemos em tratar de questões que, embora constem das

publicações estudadas, parecem pouco representativas do modelo que estamos tentando

caracterizar, sejam orientações muito específicas — como as técnicas de foto-legenda —,

sejam debates muito gerais, como o da relação entre jornalismo e literatura.

3.1.1. O que é notícia

“Cedo ou tarde seu jornal se defrontará com uma grande notícia: um acidente de avião,

o descarrilamento de um trem, uma grande tempestade, um incêndio, inundação, terremoto ou

explosão, ou um grande acontecimento político”. Assim começa o capítulo em que o ‘Manual

para periodistas’ da SIP (Mallette, 1998, p. 47) mostra como as redações precisam estar

preparadas para os momentos (não rotineiros) em que surge “a grande notícia”.

Organizada no formato típico de um manual, com orientações muito práticas e

detalhadas sobre o processo de trabalho do jornalista, essa publicação, diferente de outras que

constam desta análise, não se atém a qualquer discussão conceitual sobre a definição de

notícia. Mas, como se pode perceber pelo trecho que abre este tópico, isso não significa que

ela não contenha, de forma tão naturalizada que sequer precisa ser explicitada, uma concepção

sobre o que deve ou não merecer a atenção do jornal e do leitor. Essa lista é, portanto, mais do

que uma frase de efeito: despretensiosamente, ela concentra as expectativas dos estudantes

que procuram as escolas de jornalismo todos os anos, a identidade profissional socialmente

construída para aqueles que deixam a faculdade e um viés na formação do interesse e da

curiosidade daqueles que são o público do jornal46

.

Nesse sentido, a “grande notícia” parece ser o extraordinário, aquilo que rompe com a

rotina e interrompe o cotidiano, o que pressupõe tratar-se de informação sobre um fato que,

além de novo, é inusitado. A gradação que coloca os acontecimentos imprevisíveis ou

improváveis no topo do interesse jornalístico — a “grande notícia” — denuncia, por oposição,

46

Uma experiência pessoal ilustra de forma muito clara esse processo: trata-se de uma amiga jornalista,

funcionária de uma emissora brasileira de porte médio, que, recentemente, nos confessou estar em crise sobre a

sua real vocação. Descontente com a rotina desse jornalismo diário, a gota d’água para a dúvida existencial foi a

percepção de que, entre os colegas de trabalho da sua própria empresa e de outros veículos da chamada grande

imprensa, ela foi a única jornalista que, nas suas palavras, “não ficou feliz com a queda da passarela da Linha

Amarela”. O episódio foi um acidente ocorrido no dia 28 de janeiro de 2014 no Rio de Janeiro, que matou quatro

pessoas e que, segundo o seu relato, perfeitamente verossímil para quem conhece o ambiente da profissão,

causou um frisson generalizado nas redações locais.

113

o quanto a matéria-prima do jornal, principalmente na imprensa diária, são fatos

absolutamente rotineiros, que reproduzem e, ao mesmo tempo, ajudam a organizar o cotidiano

da vida social em torno de informações regulares, como o teor das votações no congresso, a

movimentação da bolsa de valores e dos mercados, os últimos crimes cometidos ou

desvendados, as estreias culturais e os principais acordos ou decisões de outros países.

Perceba-se que os exemplos da frase acima não são aleatórios: eles expressam, de alguma

forma, um esforço de classificação das notícias que o leitor já espera encontrar, diariamente,

nas editorias de política, economia, polícia ou cidade, cultura e internacional. Com isso

podemos constatar, em primeiro lugar, que a novidade que se apresenta como promessa

estrutural da informação jornalística precisa ser compreendida a partir de dois aspectos

distintos. Por um lado, o conteúdo noticioso do jornal é composto majoritariamente por

informações de acontecimentos atuais, o que significa que são novos em relação ao tempo;

por outro, essa novidade se dá, de modo geral, como exploração da particularidade de

fenômenos que integram categorias de fatos absolutamente familiares. Assim, o aumento do

desemprego no mês X é novo (e notícia) no sentido de que apresenta o resultado mais atual de

uma apuração que, no entanto, é absolutamente rotineira, o que significa que, exceto em raras

situações de recordes, ela mensalmente apenas confirma uma de três situações possíveis: o

aumento, a diminuição ou a estabilidade dos índices relativos aos empregos no país. Isso

significa que, como suporte da informação sobre o novo para além do atual, o jornal é uma

falsa promessa ou, de forma mais precisa, uma espera diária pelo grande acontecimento que,

algumas vezes, gerará a grande notícia. E isso gera uma falsidade de origem na própria

definição do jornalismo informativo.

Embora tenha importância particular como critério da notícia, a atualidade é, de alguma

forma, marca de todo tipo de conteúdo do jornal. Isso é importante de ser destacado porque,

como unanimemente apontam as publicações estudadas por nós, o jornal moderno traz um

conjunto de outras informações — como os editoriais, as páginas de opinião, as colunas de

análise, as informações de serviço e até os anúncios — que não se enquadram na definição de

notícia. Em todos esses casos — talvez se possa relativizar apenas em relação à publicidade

—, a atualidade é um norte: dificilmente se encontrará um editorial sobre um tema que não

esteja na ‘ordem do dia’ e, com raras exceções, só se verá um colunista falando sobre um feito

político de Getúlio Vargas se estivermos comemorando algum aniversário desse estadista ou

se ela servir de parâmetro de comparação para algo que esteja acontecendo naquele momento.

O jornal burguês não é dado a nostalgias.

114

Assim, o compromisso em levar ao público informações sobre o que acontece no

presente, no seu dia-a-dia, parece, de fato, caracterizar estruturalmente o jornalismo. Como

veremos em outro capítulo, um importante pesquisador brasileiro dessa área, Adelmo Genro

Filho, chegou a definir o jornalismo como uma forma de conhecimento que se diferencia de

outras, como a ciência e a arte, por enfocar a dimensão mais imediata — que ele chama de

singular — dos fenômenos. Imediato, aqui, denota, de forma complementar, tanto a dimensão

que comporta menos mediações quanto aquela que é a mais atual.

Dois aspectos, no entanto, chamam atenção na forma que essa característica assumiu ao

longo do desenvolvimento do jornalismo informativo, pari passu ao desenvolvimento do

capitalismo. O primeiro é a contradição intrínseca já apontada entre um tipo de conhecimento

que precisa ser atual e, ao mesmo tempo, se ancora na promessa do inusitado, o que significa

administrar a informação cotidiana esperando (ou produzindo) a sua quebra, embora esse

rompimento seja sempre factual, particular, segmentado e, portanto, expresse uma renovação

que se limita a atualizar o velho. Ou, nas palavras de Moretzsohn, trata-se de um “processo de

simplificação do mundo operado diariamente pelo jornalismo, que, assim, a pretexto de trazer

o novo, acaba reproduzindo o mesmo” (2007, p. 135). Ressaltando que essa familiaridade

travestida de novidade se expressa também nas fontes utilizadas para as matérias nos grandes

jornais, que são sempre buscadas entre pessoas conhecidas do próprio meio social do

jornalista — ou, acrescentaríamos nós, a partir de um banco de repetidos especialistas

midiáticos —, a autora mostra como também é fundamental para compreender esse processo a

rotina de trabalho do jornalista que é empregado de uma grande empresa — e pautado pela

urgência produtiva da concepção de novidade do jornalismo informativo. E é importante

perceber como esse imperativo econômico é ideologicamente travestido de técnica

profissional, num processo de inversão que harmoniza as necessidades produtivas dos

conglomerados empresariais de comunicação com a narrativa limitadora de sentidos sobre a

realidade cotidiana que é própria do jornalismo burguês.

Um exemplo muito significativo pode ser encontrado num texto escrito por Otavio Frias

Filho, diretor de redação da Folha de S. Paulo, em 1984, ano em que o jornal lançou o seu

Projeto Editorial e o seu primeiro Manual de Redação como parte da iniciativa conhecida

como ‘Projeto Folha’. Ele explica essa relação inseparável entre o novo e o inusitado como o

“contraste” que seria a condição própria do jornalismo. Diz ele:

O que constitui a manchete, e por diluição o texto jornalístico do qual ela é

um condensado, é o contrastamento que ali se abre entre dois termos, o

familiar e o hediondo, o rotineiro e o inesperado, o acaso e a coincidência, o

115

público e o privado, o próximo e o distante. Pouco importa o que é

contrastado, importa que haja contraste” (Frias Filho, 1984, p. 4).

Na sequência, ele mostra como isso se dá também de forma inversa à que destacamos,

como um movimento de, principalmente através dos chavões e lugares comuns, transformar o

novo em particular, embora dentro da mesma aparente contradição. “Colocado em face do

inédito, o jornalismo recorre à analogia para aprisioná-lo na ideia-feita, para fixá-lo em

clichês de linguagem que permitam seu rápido esgarçamento” (1984, p. 4). A questão é que,

depois dessa descrição, ele conclui com uma espantosa naturalização tecnicista: “Nada disso

ocorre porque os jornais ou jornalistas sejam assim, mas porque é assim a estrutura da

notícia. Ainda que o jornalismo seja uma técnica ideológica, como toda técnica ele possui

uma lógica interna que ultrapassa ideologias e se impõe a elas” (1984, p. 4, grifos nossos).

Como se pode perceber, embora nessa frase a palavra ‘ideologia’ não remeta ao conceito de

que tratamos no capítulo anterior, a ideia que ela expressa é uma naturalização estritamente

ideológica, exatamente no sentido que temos tentando apontar para o jornalismo burguês.

Esse processo de naturalização ou de inversão que coloca a técnica como um elemento

anterior e absoluto que determina todo o resto, sem que se saiba nem se pergunte por quê, se

reflete de forma muito evidente na aceitação do jornalista sobre os limites (também

naturalizados) do seu próprio trabalho. Mas esse não é o nosso foco. Nossa questão são as

consequências que essa expectativa e valorização do novo inusitado têm para a forma como,

considerando-se a abrangência da imprensa como aparelho privado de hegemonia, se lê e

sente o mundo. A comparação abaixo traz um exemplo muito cristalino.

Uma reportagem ilustrada sobre o assassinato de uma criança é suscetível de

levantar a opinião pública pequeno-burguesa num movimento de

condenação ao ato brutal, mas um estudo que demonstre, com dados

estatísticos, que no Nordeste do Brasil, morrem anualmente dezenas de

milhares de crianças em consequência da subnutrição seria incapaz de

suscitar maiores comoções. Do mesmo modo, o telespectador-padrão, que se

emociona até às lágrimas ante os sofrimentos morais de uma personagem de

novela vulgar, geralmente demonstra a mais espantosa indiferença ao ser

informado de que no Vietnã ou no Laos milhares de homens, mulheres e

crianças são queimados com bombas napalm (Costa, 1974, p. 89 apud

Marcondes Filho, 1986, p. 18).

Assim, como a grande promessa do jornalismo, que sustenta sua própria razão de ser no

modelo burguês, a novidade no sentido do fato inusitado nega, por dentro, o caráter de

conhecimento (sobre o atual) que o jornalismo pode — e deve — ter. O que significa que a

falsa quebra do cotidiano — segmentada, parcial e efêmera, como já sinalizamos —, que é

produzida ou esperada diariamente, esconde, nubla e mesmo impede que se conheça esse

116

cotidiano socialmente compartilhado tanto naquilo que ele de fato traz de novo inusitado

quanto naquilo que ele tem de estruturante. Afinal, para ficarmos no exemplo da citação

acima, se o jornalismo se limitasse a ser o conhecimento sobre o atual (no tempo), portanto

sobre o cotidiano mais imediato, a morte de crianças no Nordeste brasileiro por razões

indubitavelmente de interesse coletivo (como a falta de condições que deveriam ser sanadas

por políticas públicas) seria notícia todos os dias nos jornais e, assim, a identificação de

“tendências futuras”, que hoje se aceita como critério de importância para transformar um fato

em notícia, talvez se apresentasse também na forma do que poderíamos chamar de ‘tendências

permanentes’, ou seja, como uma lanterna que, jogando luz sobre os fatos insistentemente

atuais (e repetitivos), iluminasse também as condições estruturais do modo de produção que

rege o cotidiano social. Assim, a promessa do novo como o que foge a esse cotidiano é

ideologicamente funcional na naturalização (e portanto no processo inverso, de

desconhecimento) desse cotidiano, que, entre outros efeitos, inverte a relação entre suas

determinações e seus resultados. Como questiona Neveu: “Qual o custo, em termos de

inteligibilidade do mundo social, dos processos de triagem que privilegiam freqüentemente a

fragmentação do acontecimento em detrimento das evoluções sociais em profundidade e o

emocional em detrimento de um distanciamento analítico?” (2006, p. 92-93).

Essa funcionalidade ideológica está contida na própria promessa do novo ou da “grande

notícia”, que ajuda a conferir identidade à profissão e, principalmente, alimenta a expectativa

de quem dá audiência aos meios de comunicação de massa todos os dias. Mas essa promessa

oculta a sua própria impossibilidade de realização nos marcos do jornalismo informativo

como produto da imprensa burguesa empresarial. Em outro momento de abordagem do

processo de trabalho que é imposto à produção da notícia-mercadoria, a mesmice que

caracteriza a apuração no jornalismo informativo fica clara também no ‘Manual del

periodista’, num breve tópico dedicado a tratar das “fontes fixas de informação”, em que

Macaggi orienta os jornalistas em busca de notícia que cubram regularmente locais como as

casas de governo, legislativo, prefeitura, escritórios estatais, tribunais, departamento de

polícia, bombeiros, hospitais, câmaras de comércio e indústria, hotéis e aeroportos, além de se

inspirarem em boletins oficiais e na fala de representantes governamentais. Mas não só: tendo

em vista a maior atualidade da imprensa de rádio e TV (e agora, acrescentaríamos, de

internet), segundo o ‘manual’, esses meios também ajudariam a pautar o jornal, tornando-se

“colaboradores involuntários mas valiosos em uma redação inteligente”. Completam essa

relação de “fontes fixas” de informação para o jornal as agências de notícias e as próprias

117

reuniões de imprensa (1991, p. 23), o que nos leva facilmente a constatar o processo

absolutamente circular e autorreferente da notícia, que é a principal matéria-prima do jornal

— e que, no geral, produz os insumos também para os textos de opinião. Como questiona

Moretzsohn: “A lógica é evidentemente paradoxal: como a novidade pode ser um fator de

perturbação para quem justamente promete a novidade a cada dia?” (2001, p. 136).

Essa contradição intrínseca não passa despercebida nos materiais analisados por nós,

embora seja ela também naturalizada como parte da superação de um ‘romantismo’ ilusório e

da identificação de um efetivo ethos da profissão. Reconhecendo que, enquanto espera a

“grande notícia” chegar, o jornalista deve fazer trabalhos mais ‘mecânicos’, como reescrever

e padronizar comunicados de outros veículos, oficiais ou não, o ‘Manual’ de Macaggi

aconselha: “Se o escritor inexperiente não se vê como personagem de filme; se pode lidar com

os intervalos quase domésticos em que lhe pedirão para cozinhar boletins insípidos. Se pode

fazer tudo isso, demonstrará que tem consistência” (1991, p. 25). Como se vê, a questão é

tratada pela perspectiva do processo de trabalho do jornalista — naturalizado numa definição

quase mística, como se esse profissional fosse um enviado à espera dos grandes

acontecimentos que na devida hora o encontrarão —, mas sem discussão sobre o reflexo disso

no retrato da realidade atual que o jornalismo se propõe a fornecer cotidianamente aos

leitores.

O segundo aspecto que merece atenção é a forma como essa atualidade entendida como

novidade se expressa na linguagem e, principalmente, na estrutura da notícia. Entre muitas

afirmações sobre o imperativo da concisão e da brevidade — que se concentram

principalmente na condenação do uso de adjetivos e na orientação sobre a prioridade dos

verbos de ação e da ordem direta da frase — no material analisado se destaca, nesse aspecto, a

referência ao uso do lead e ao modelo da pirâmide invertida do qual ele é parte. Vejamos

primeiro como as publicações tratam esse tema na sua relação com a definição de notícia.

O ‘Manual del periodista’, de Macaggi, explica que a notícia — “o material mais

comum do jornal” — “consiste” em um título, o lead e o “corpo da informação”. Como

continuação e complementação do título, o lead contém “os dados mais importantes, curiosos

e chamativos”. “Nesse primeiro parágrafo devem concentrar-se os valores mais atrativos da

notícia” (1991, p. 18). Trata-se de uma estrutura que corresponde a uma definição específica,

e corriqueira, de notícia, que se expressa também na linguagem: “Apenas o relato, a breve

enumeração dos dados essenciais de um fato. O texto terá precisões e referências; mas, o

118

vocabulário prescindirá de adjetivações. A construção de frases será muito direta e impessoal”

(1991, p. 18).

No ‘Manual de Estilo’, referindo-se ao jornalismo impresso, os autores reconhecem

que, como “síntese condensada” dos fatos ocorridos, o lead pode ter se tornado supérfluo num

tempo em que o leitor já ouviu a notícia no rádio ou na televisão. Mas eles consideram que,

mesmo nos textos de caráter mais interpretativos que resultam desse contexto, o lead continua

tendo grande utilidade: “para o leitor, porque o situa exatamente nas coordenadas de pessoas,

tempo, lugar e demais circunstâncias essenciais; para o jornalista, porque o obriga a

disciplinar seu pensamento e a proceder de acordo com uma ordem lógica em função da

importância dos dados, o que torna mais fácil para o leitor a compreensão do relato” (Albertos

e Suárez, 1996, p. 113).

Já o ‘Manual’ de Macaggi considera ultrapassada a tradução dessas orientações no

modelo da pirâmide invertida e nas famosas seis perguntas que ela pressupõe responder logo

de início — o quê, quem, como, onde, quando e por quê47

—, na medida em que as limitações

técnicas que teriam determinado esse modelo já foram superadas. Assim, a tecnologia da

diagramação eletrônica teria eliminado o ‘problema’ da diagramação artesanal de ter que

cortar conteúdo das matérias de última hora, o que justificava que se deixassem as

informações menos importantes para o final. Mas também aqui isso é relativizado. É,

inclusive, curioso notar que, superado o rigor que respondia a uma limitação técnica,

prevalece, ainda assim, a concepção estabelecida pelo ‘método’ da pirâmide invertida, de uma

hierarquia baseada numa compreensão relativamente modelar do que é o mais importante a

partir de um “interesse” tomado de forma absolutamente abstrata e sem determinações, sem

qualquer discussão sobre o critério de importância e interesse e sobre o quanto o modelo é

determinado ou determina essa valoração. O ‘Manual’ de Macaggi situa os termos:

Toda notícia começa sempre com o núcleo mais importante e continua

desenvolvendo sucessivamente circunstâncias em uma ordem decrescente de

interesse. Hoje, aquela condição necessária passou a ser um princípio

fundamental para os redatores.

47

A relativização de um certo rigor da pirâmide invertida e do uso do lead como molde estará presente, como

veremos, em todos os materiais estudados, o que guarda coerência no tempo com um movimento a que

assistimos diretamente no Brasil. Foi em 1992 — portanto, no ano seguinte a esta publicação específica, que é de

1991 — que a Folha de S. Paulo publicou o seu ‘Novo Manual de Redação’, em que fazia uma autocrítica e

flexibilizava as ‘regras’ da versão original, de 1984, considerado pelo próprio jornal como “draconiano e

impositivo”. Vale destacar parte do texto da introdução do Novo Manual: “Apesar de suas insuficiências, a Folha

atingiu um patamar técnico médio a partir do qual parece possível avançar para um jornalismo mais elaborado,

mais eficaz do ponto de vista visual, melhor escrito -e mais útil para o leitor. As normas do novo manual são

flexíveis e admitem nuances antes repelidas. Apostam na iniciativa e no discernimento individuais, na

inventividade das soluções em cada caso e na disposição para manter o jornalismo em aperfeiçoamento

constante".

119

E nada mais, mas nada menos (1991, p. 22).

Outro motivo pelo qual o modelo da pirâmide invertida ou simplesmente o foco na

resposta às seis perguntas do lead teria sido abalado é o fato de, no contexto atual, o leitor do

jornal impresso já ter obtido as informações objetivas previstas para esse primeiro parágrafo

do texto pelo rádio ou pela televisão. Mas aqui, o ‘Manual’ parece tropeçar nas próprias

pernas ou, em melhores termos, evidenciar os limites circulares do modelo de jornalismo

informativo. Afinal, como conciliar a citação abaixo, que discute a solução do ‘problema’

para o jornal impresso, com a citação acima, que reafirma essa hierarquia informativa como o

“princípio fundamental” da notícia?

A notícia como estrita novidade perdeu boa parte de seu valor para os

jornais. (...) Que resposta a imprensa gráfica poderia dar a esses desafios?

(...)

(...) a fórmula aplicada foi estimular desenvolvimentos melhor explorados de

cada informação. Imaginar reportagens, conseguir avanços sobre decisões de

algum oficial, investigar questões. No que é especificamente noticioso,

ampliar e mostrar dados novos e interessantes que permitam esclarecer como

ocorreu um fato; fornecer detalhes sobre a personalidade do protagonista;

circunstâncias especiais que rodearam ou desencadearam o episódio. Por aí

aparecerão algumas pistas iniciais para completar e melhorar as crônicas

(1991, p. 58).

Em primeiro lugar, é bom que se diga que, embora relativizado para a imprensa escrita,

o modelo continua sendo considerado adequado para o jornalismo de rádio e TV. Salta aos

olhos ainda a pergunta sobre que validade teria um meio informativo (o jornal impresso) e

uma prática jornalística que não pode mais fornecer o novo (o atual e o inusitado) que, de

acordo com o modelo de que estamos tratando, como visto, é uma das características

estruturantes da notícia que, por sua vez, é o elemento principal do jornalismo. A resposta,

contraditoriamente, aponta para a negação da forma notícia do jornalismo informativo, que, a

despeito das modernizações que o jornalismo sofreu, é afirmado neste e em todos os outros

materiais como prevalente aos outros gêneros jornalísticos. Não nos interessa aqui discutir o

futuro dos veículos impressos a partir da ameaça trazida pelas novas tecnologias, mas apenas

sugerir que a sobrevivência desses princípios ‘metodológicos’ de produção da notícia, a

despeito das mudanças técnicas e históricas recentes, evidencia que, mais do que um conjunto

de regras tecnicamente determinadas, o modelo do jornalismo informativo é o que dá

contorno harmônico à inter-relação entre a função econômica e a função ideológica do

jornalismo como forma de conhecimento no capitalismo. Assim, a ‘solução’ apontada pelo

‘Manual’ é contraditória tanto com o ‘método’ cuja utilidade ela reafirma quanto com a base

120

material de produção da informação jornalística cujo processo de trabalho submetido ao

imperativo da novidade, como vimos, impede esse ‘aprofundamento’ dos fatos.

É importante ainda que se esclareça o caráter falacioso desse aparente caminho de

mudança do jornalismo impresso a partir da sua relação com os outros meios que está

expresso nas sugestões apresentadas pelo ‘Manual’. A repetição de um mesmo tema em

notícias sequenciais, que portanto vão acrescentando novos dados e ‘descobertas’ ou apenas

informações criativamente produzidas para não deixar o assunto ‘morrer’, por exemplo, está

absolutamente prevista no modelo do jornalismo informativo48

. Como explica o ‘Manual’ de

que aqui estamos tratando, “poucas vezes uma notícia se esgota em uma única publicação”

(Macaggi, 1991, p. 20). E isso vale tanto para os jornais impressos quanto para o rádio, a TV

e, mais recentemente, a internet. Portanto, em relação à notícia, os “dados novos e

interessantes que permitam esclarecer como ocorreu um fato” ou os “detalhes sobre a

personalidade do protagonista”, como aponta a citação destacada, sempre estiveram na pauta.

As “circunstâncias especiais que rodearam ou desencadearam o episódio” ou estão

redundantemente incluídas nos tais “dados novos” ou integram os ‘antecedentes’ explicativos

que são geralmente descartados na notícia. Sobre a prática de usar um fato novo atual como

gancho para produzir reportagens ‘atemporais’, que a citação também menciona, ela é

igualmente prevista na relação entre os gêneros que compõem esse modelo, embora apenas

uma pequena quantidade de notícias gerem reportagens que tragam, por exemplo, elementos

históricos e analíticos. Pensando-se na ‘disputa’ entre os diferentes meios jornalísticos, pode-

se dizer que estas são a real alternativa seguida pelas revistas ou jornais semanais (ou de outra

periodicidade não diária), o que significa dizer que essa prática delineia um segmento de

mercado das notícias e, ao mesmo tempo, um papel na ‘divisão institucional’ da função

ideológica desempenhada pelo jornalismo.

No ‘Manual para periodistas’ organizado por Mallette, o lead mereceu um capítulo

próprio, escrito por um diretor adjunto do American Press Institute. Aqui, no entanto, ele é

uma espécie de nome genérico para o texto inicial que tem o objetivo de “introduzir o leitor

na notícia de maneira simples e atrativa”. Isso porque são apresentados nessa publicação nada

menos do que 11 “tipos básicos” de lead. Mas o primeiro da lista é o “resumo”, que

corresponde ao modelo mais ‘tradicional’, que, segundo o texto, deve responder a pelo menos

três ou quatro daquelas seis perguntas, entendidas como os principais elementos da notícia. A

48

No jargão jornalístico, a matéria publicada nos dias seguintes à matéria original sobre o mesmo assunto é

chamada de suíte.

121

classificação proposta pelo ‘Manual’49

contempla diferentes gêneros de textos jornalísticos,

como o narrativo e o descritivo, incluindo licenças dramáticas pouco comuns nas orientações

jornalísticas, mas também comporta uma maior concessão às abordagens que enfocam a

‘análise’ (política, por exemplo) dos fatos como o elemento mais importante da notícia,

embora adequadamente simplificada para caber na necessária brevidade do lead.

Nesse material, o lead é a porta de entrada de um texto que deve formar um “todo

interessante e coerente”, concepção que, nesse tópico, parece se tratar apenas de uma

coerência interna ao texto, uma necessidade de planejamento relativa à disposição dos dados

apurados (Wardlow In Mallette, 1998, p. 23), o que não é de todo estranho a um manual que

também traz orientações de redação. No capítulo que abre o ‘Manual’, no entanto, que é

escrito por outro autor (o mesmo que organiza a publicação), a ideia de que diferentes fatos,

aparentemente isolados, podem formar um “grande todo” aparece também como parte da

definição de notícia. Aqui, a notícia é uma “história” confeccionada a partir da ação do

repórter de reunir “fragmentos dispersos”. O que determina que a “história” seja contada

como notícia é um critério naturalizado de que ela deve conter “informação relevante e útil

para os leitores” (Mallette, 1998, p. 1). A confrontação entre essas duas partes do mesmo

manual tem como único objetivo mostrar como se dá esse processo de mão dupla, que se

resume a um movimento quase tautológico: o texto jornalístico expressa coerência e forma

um ‘todo’ pela organização de dados que, por sua vez, são apurados a partir de uma

concepção prévia, geral e acrítica sobre o que é mais importante para o leitor em cada fato (o

que deve compor o lead) e de uma compreensão abstrata e relativista sobre o que é

“informação relevante e útil” (os fatos que ‘merecem’ virar notícia). Não se trata, portanto,

apenas de ‘dicas de redação’, na medida em que o fato gerador não é a ideia subjetiva do autor

de um romance, crônica ou coisas do tipo, mas sim a realidade concreta, cujo alinhave que a

transforma em “história” é determinado por fatores suficientemente objetivos, a despeito do

estilo individual de cada jornalista. A naturalização desse processo, que no fundo significa a

impossibilidade de se declarar de forma inteiramente objetiva e clara o critério da notícia, é

parte dos mecanismos ideológicos que nos levam, de modo geral, desconsiderando-se os

momentos de crise, a compreender o jornal como um espelho da realidade.

Nas suas orientações sobre a ‘estrutura da notícia’, o capítulo sobre o lead desse

‘Manual’ aponta outros sete caminhos para organizar a notícia depois do parágrafo inicial.

Essas alternativas, que vão do cronológico ao de suspense (em que, como o contrário da

49

São listados as seguintes variedades de lead: resumo; singular; dramático; de citação; descritivo, de ambiente,

colorido; demorado; de reação ou seguimento; de análise; de estado da situação; de pergunta; de cápsula.

122

pirâmide invertida, os “resultados” são jogados para o parágrafo final), representam estilos

diferentes de texto. Mas a hierarquia de importância pouco é alterada e isso se verifica na

ordem proposta para a disposição das informações no próprio modelo da pirâmide invertida,

que, apesar da variedade apresentada, o autor destaca como o “método tradicional de abordar

em detalhe o desenvolvimento da notícia” (Wardlow In Mallette, 1998, p. 23). Ele enumera os

passos:

1. Lead resumido, baseado em acontecimentos recentes.

2. De dois a quatro parágrafos que forneçam mais detalhes sobre esses

acontecimentos.

3. Um parágrafo de antecedente ou de ligação em que se relacionem os

novos eventos ao contexto geral ou ao que ocorreu antes. Isso não costuma

ficar abaixo do sexto parágrafo.

4. Informe adicional sobre novos eventos.

5. Antecedentes adicionais ou perspectiva (Wardlow In Mallette, 1998, p.

23).

Mas o que mais nos importa aqui é a justificativa do autor sobre por que essa forma de

dar coerência ao texto – e ao ‘todo’ – das informações noticiadas é a mais comum. “Essa

estrutura costuma ser cômoda para o leitor, que pode inteirar-se rapidamente do principal e

abandonar a notícia em qualquer ponto sem perder os elementos fundamentais” (Wardlow In

Mallette, 1998, p. 23, grifos nossos). Vê-se claramente, portanto, que a hierarquia que antes se

justificava por uma limitação da técnica de diagramação, hoje se mantém sob o argumento do

respeito ao tempo de um leitor naturalmente apressado; uma pressa que, no entanto,

dificilmente se pode saber se é causa ou consequência de uma concepção pragmática de

conhecimento que tem no modelo do jornalismo informativo uma de suas mais fiéis e

regulares expressões. Não parece ser por acaso que, como veremos, a criação de anúncios

publicitários e classificados aparece, em alguns dos materiais analisados, com orientações

muito semelhantes às que constam dos capítulos referentes à notícia.

Vale registrar o caráter no mínimo contraditório de uma técnica de hierarquização de

importância, como parece ser o lead, que precisa, ao mesmo tempo, respeitar a suposta pressa

desse leitor imaginário, e ser atrativa, servindo “de gancho para que o leitor se sinta atraído

pela leitura do resto do relato”, como propõe o ‘Manual de Estilo’ (Albertos e Suárez, 1996,

p. 115). Esse material especificamente traz outras orientações práticas que parecem dar

materialidade a essa estranha combinação quando, por exemplo, estabelece que um lead

nunca pode se interrogativo (e, “salvo exceções”, também não deve ser negativo). Afinal, se

nos atemos às técnicas de redação, uma pergunta interessante poderia ser muito atrativa e

123

cumprir aquela segunda ‘missão’ do lead, mas ela provavelmente demandaria respostas mais

analíticas, que ultrapassariam a requerida brevidade da informação.

Jack Fuller, no seu ‘Valores periodisticos’, guarda maior coerência entre a avaliação do

‘método’ e a hierarquia de importância que deve prevalecer na notícia. Situando a pirâmide

invertida como um princípio de organização da notícia próprio do jornalismo do século XIX,

ele não só considera que esse modelo ‘saiu de moda’ como defende que a brevidade que ele

prega como característica principal do texto jornalístico precisa ser relativizada.

Reconhecendo que uma repetição exagerada de informações gasta o tempo de leitor e torna-se

aborrecida, o autor, no entanto, defende também que “a redundância comunica” (1996, p. 23).

Essa publicação apresenta uma explicação diferente para a origem da pirâmide

invertida, como consequência de uma época em que muitas matérias eram enviadas à redação

pelo telégrafo, o que requeria que, como prevenção a possíveis problemas que

interrompessem a comunicação, as informações mais importantes fossem enviadas no início

dos textos (1996, p. 24). De todo modo, trata-se de uma determinação tecnológica já superada.

Há muito tempo deixamos para trás o telégrafo. No entanto, ainda persistem

alguns aspectos do estilo da pirâmide invertida. Os leitores e jornalistas se

acostumaram com esse estilo; a familiaridade ajuda a transmitir um sentido

de honestidade, de falta de preconceito. Mas, em um ambiente informativo

no qual os principais competidores dos jornais se movem à velocidade da luz

enquanto os jornais vão ronronando à velocidade dos caminhões no trânsito,

a abordagem tradicional, que coloca ênfase nos fatos e diminui a ênfase nas

conexões que existem entre eles, está passando de moda (Fuller, 1996, p. 25)

Embora o autor, de fato, conceba a notícia e o jornal de forma distinta da concepção

mais asséptica que guia os outros manuais analisados e que rege o senso comum sobre o

jornalismo, reconhecendo inclusive como necessária alguma carga de posição (opinião)

institucional mesmo na parte noticiosa, como veremos adiante, a crítica a esse modelo de

concisão e objetividade aqui se limita a uma técnica de redação, voltada para garantir a maior

atração do leitor, que pouco parece se refletir na concepção sobre o que é notícia. Isso parece

claro poucas páginas antes da citação acima, quando, a partir de um exemplo, o texto matiza

as diferentes abordagens. Vejamos:

Uma notícia breve na seção de cidade que descreva um roubo rotineiro a

uma joalheria somente tem que contar os fatos fundamentais para alcançar o

seu propósito. Mas se o proprietário da joalheria emigrou há pouco da China

e diz que neste país descobriu que a liberdade significa insegurança, então

não é suficiente somente descrever os fatos. A história deve tratar de

examinar os contrastes encontrados, dando certa perspectiva para equilibrar

as emoções compreensíveis do proprietário. Se o roubo fosse um de um

número inusitadamente alto cometido contra asiáticos durante esse ano, o

artigo teria que lidar com o assunto da animosidade racial e trataria de

124

discutir as causas desse tipo de hostilidade. Incluiria uma ampla gama de

opiniões, algumas odiosas, e seguramente mostraria o desgosto do próprio

periódico pelos delitos cometidos por ódio (Fuller, 1996, p. 21, grifos

nossos).

Essa longa citação traz muitos elementos que interessariam à análise deste capítulo mas

aqui importa ressaltar dois aspectos. O primeiro, que se refere ao caso hipotético em que o

joalheiro questiona a liberdade norte-americana, é a existência de valores e verdades

inabaláveis que estão objetivamente naturalizados como pressuposto da imprensa em geral e

de alguns veículos em particular. O proprietário da loja poderia ter dito muitas coisas, como,

por exemplo, que a polícia estadual não funciona, que a política de segurança é falha etc., e

nem todas essas afirmações individuais motivariam um esforço de convencimento (no sentido

contrário da afirmação) por parte do jornal. Veremos isso se repetir adiante no exemplo que

trata da questão da guerra, mas vale aqui já sinalizar como o critério da notícia e a

objetividade da abordagem estão sempre subordinados a supostos ‘consensos’ que criam

identidade de grupo – e, no caso dos EUA, se manifestam claramente na defesa intransigente

da tradição libertária do país. O segundo aspecto, que tem relação mais direta com a discussão

que travamos até agora neste tópico, se refere à primeira parte do texto, que apresenta a

hipótese de um roubo ‘simples’, sem conexões que ampliem o espectro da abordagem. A

pergunta óbvia é: por que um roubo (acontecimento relativamente regular), que não tem

consequências coletivas nem aponta tendências socialmente relevantes, e que portanto tem

implicações apenas para aquele joalheiro particular, e que requer da polícia apenas aquilo que

é seu trabalho rotineiro, se torna notícia? Pode tratar-se de fatos atuais – e o mundo está cheio

deles –, mas, mesmo pelos critérios até agora mapeados, não há notícia. A questão, portanto, é

compreender o sentido, os limites e o contorno do novo (o atual e o inusitado) que orientam a

definição sobre o que a sociedade precisa ou não saber sobre o seu cotidiano.

Seja nas justificativas técnicas para um método como a pirâmide invertida, seja

principalmente na identidade que o lead (ainda que relativizado) fornece ao texto e à

informação produzida pelo jornalismo, importa observar o quanto o novo (o atual e o

imediato), mais do que o foco, é também o limite do conhecimento no jornalismo burguês.

Mais do que a posição das informações objetivas, o lead (ou que nome mais moderno suas

variações possam receber) estabelece uma hierarquia de importância para a apreensão do

leitor, cristalizando a concepção de que a descrição factual (portanto do acontecimento ‘em

si’) não só pode estar separada das relações causais e explicativas como tem precedência

sobre elas.

125

Em todos os materiais analisados — e arriscamos dizer que, de modo geral, também nos

livros sobre jornalismo —, o lead é tratado apenas como uma técnica de organização e

redação da notícia. Mas parece claro que ele é muito mais do que isso. Ou melhor, parece

claro que organizar a notícia é muito mais do que uma etapa técnica (e neutra) de um trabalho

profissional. As perguntas que o lead responde são um guia ou uma primeira chave de leitura

do cotidiano social coletivo em que estamos inseridos. A partir de um olhar sobre o conjunto

das referências analisadas, não é excessivo afirmar que a demanda por concisão, brevidade e

mesmo clareza do texto jornalístico, segundo esse modelo, dificulta que a pergunta sobre o

“por que” seja efetivamente respondida no lead. Apresentando a “atemporalidade” como o

primeiro de três elementos da notícia, Jack Fuller, na publicação ‘Valores periodisticos’, não

deixa dúvidas:

Em primeiro lugar, o jornalismo dá ênfase aos acontecimentos recentes ou

fatos recém-descobertos em detrimento do que ocorreu antes ou que já se

sabia. Os jornalistas reconhecem esse viés e falam da necessidade de incluir

“antecedentes” nos seus artigos. Mas, comumente, a lógica interna das

reportagens põe os antecedentes muito no fundo e tolera muito pouco mais

do que aquilo que é absolutamente necessário para que o material novo

possa fazer algum sentido para o leitor. Periodicamente, um jornal pode

voltar e tratar de informar sobre um acontecimento ou um tema de maneira

exaustiva, mas esse é um tratamento muito especial. A regra é o preconceito

da imediaticidade. (1996, p. 6, grifos nossos).

A forma como a questão do ‘por quê’ é tratada nas notícias aparece discutida mais

detidamente no ‘Manual de Estilo’, na parte em que trata do “relato de profundidade”, que

poderíamos associar ao que no Brasil é comumente reconhecido como reportagem. Segundo o

texto, essas reportagens de profundidade se expressariam em três diferentes modalidades —

relatos interpretativos, relatos investigativos e relatos de “jornalismo de precisão” — que

devem conter, em maior ou menor grau, elementos de antecedente, interpretação e análise

dos fatos noticiados (Albertos e Suárez, 1996, p. 154). Aqui, curiosamente, a análise está

circunscrita à projeção sobre consequências futuras do fato, sendo considerada um conteúdo

distinto e que pode existir de forma independente dos antecedentes — que tratariam das suas

determinações anteriores —, sendo, inclusive, mais diretamente associada aos textos

“editorializantes”.

De todo modo, nas matérias (que não seguem esse perfil opinativo), a análise se

identifica com uma “conclusão objetiva”, que seria a finalidade da reportagem de fundo.

Segundo o ‘Manual de Estilo’, ela pode ser chamada de “objetiva” porque reflete aquilo que

qualquer leitor concluiria sozinho se tivesse diante de seus olhos todos os “ingredientes” do

126

caso em questão. Nesse sentido, essa conclusão (analisada) muito se assemelharia a uma

“sentença judicial”, a que se chega depois de analisar os “fatos comprovados e considerados

doutrinários” (Albertos e Suárez, 1996, p. 162). Como se verá, essa não é a única vez que a

metáfora jurídica aparece como forma explicativa do papel do jornalista e do jornal. Mas aqui

importa também observar algo que vai perpassar de forma implícita todos os materiais

estudados: o quanto a objetividade dos fatos é necessariamente complementada pela

naturalização de valores e princípios (a tal doutrina), além de opiniões (dos “especialistas”),

que estabelecem um limite interpretativo para a realidade noticiada nas páginas do jornal. Em

outras palavras: somados, os relatos ‘objetivos’ dos fatos ‘em si’, com o mínimo de mediação

que o jornalismo finge requerer, não compõem nenhuma análise, que, para ser formulada,

demanda alguma ‘liga’ que, por sua vez, só pode se dar a partir de valores, conceitos e

referenciais (teóricos e políticos) previamente determinados. Os casos em que essas

referências existem explicitamente são normalmente reconhecidos como os de jornais

‘políticos’ ou ‘partidários’, rechaçados pelo modelo de jornalismo informativo que, no

entanto, embora nem sempre reconheça, não pode abrir mão também de valores. Para resolver

essa armadilha, recorrem-se aos valores “doutrinários”, ‘gerais’ ou puramente democráticos,

que, naturalizados como universalmente válidos, são o a priori de toda a leitura da realidade

implementada pelos jornais burgueses. Mas esse é assunto para mais adiante.

Em diversas passagens dos materiais analisados, o imperativo da brevidade e da

concisão é justificado pela necessidade e pela pressa do leitor. Em outras, o lead parece ser o

que facilita a um jornalista submetido à dinâmica da velocidade garantir esses atributos da

notícia. Em ambos os casos, naturaliza-se a notícia como mercadoria que resulta de um

processo de trabalho assalariado submetido à rotina da produção do capitalismo avançado e

que precisa ser vendida num mercado de informações atuais. E naturaliza-se, igualmente, o

enquadramento do conhecimento social sobre o cotidiano nos mesmos moldes.

Nesse sentido, como já afirmamos, esse modelo é funcional para a imprensa que emerge

no final do século XIX, início do século XX, como monopólio empresarial. Mas, como temos

defendido ao longo deste trabalho, também aqui se faz presente a articulação entre atividade

econômica e ideológica da imprensa. Porque o molde de atualidade que rege o trabalho do

jornalista também enquadra a lente do leitor e, como reflexo (mediado) do mundo real

sensível, enquadra a compreensão na superfície da descrição factual e ajuda a organizar o

cotidiano socialmente vivido.

127

Um exemplo substantivo de como essa organização vai além do espaço do jornal são as

notícias normalmente classificadas como de ‘política’. Seja como referência direta ao tipo de

informação que deve virar notícia, seja como defesa da imprensa privada como condição para

sua independência, é quase unânime nos materiais analisados a defesa de que um jornal tem a

responsabilidade de acompanhar, fiscalizar e noticiar as ações dos governos e dos políticos.

“Em uma sociedade livre a necessidade mais imperiosa para um jornal de circulação geral é

cobrir as atividades do governo e os políticos de maneira cabal e honesta. Essa cobertura é a

razão de ser de uma imprensa livre: dar informação ao cidadão para que possa votar ou

pressionar com inteligência”, diz, por exemplo, o ‘Manual para periodistas’ (Mallette, 1998,

p. 35). Sobre isso, vale notar que, na citação que abre este tópico com uma lista de possíveis

grandes notícias apresentadas por esse mesmo ‘Manual’, todos os exemplos se referem a

eventos suficientemente específicos — ninguém precisa de maiores explicações para

reconhecer uma inundação, um terremoto ou um acidente com um meio de transporte de

massa. A única exceção, não por acaso, é exatamente o genérico “grande acontecimento

político”, que requereria critérios um pouco mais específicos para ser identificado como

notícia. Abre-se aqui um flanco para perguntarmos não apenas sobre o que seria esse “grande

acontecimento” como também sobre o que seria o ‘simples’ acontecimento rotineiro que

merece se tornar notícia política. Isso se soluciona, pelo menos parcialmente, na coerência

interna que o ‘Manual’ mantém, e que lhe permite contar com muitos ‘subentendidos’, de

modo que se torna fácil deduzir ‘intuitivamente’ o que seriam esses “grandes acontecimentos

políticos” a partir da orientação, esta sim explicitada no texto, sobre a cobertura rotineira da

política em países com uma “imprensa livre”. Vejamos alguns exemplos: “Uma maneira de

ganhar leitores para a cobertura das atividades governamentais é narrar as notícias desse setor

como atos pessoais e não de instituições impessoais”, orienta o ‘Manual’ organizado por

Mallette (1998, p. 35). No contexto norte-americano, é fácil lembrar o caso amoroso de Bill

Clinton com uma estagiária da Casa Branca como uma “grande notícia” política. No caso

brasileiro, qualquer semelhança com o fato de que, exceto em escândalos dos quais eles sejam

protagonistas — como no caso do chamado Mensalão —, hegemonicamente a imprensa

pouco aborda os partidos políticos e ignora a identidade programática como chave de

interpretação dos fatos, dando preferência sempre ao foco nos comportamentos dos sujeitos

individualmente, não é coincidência, mas sim pedagogia bem feita. Na sequência, a mesma

publicação considera a possibilidade de se aprofundarem temas nessa área, mas explica que as

notícias sobre o governo devem “esclarecer como os atos oficiais afetarão o cidadão, o leitor”.

128

E exemplifica: “Significará uma nova política que aumentará os impostos ou melhorará as

estradas ou trará preços razoáveis para a habitação? O leitor concreto se pergunta, por

exemplo, sobre quanto aumentarão os seus impostos” (1998, p. 35, grifos nossos).

Evidentemente, não há problema em se considerar como interesse do leitor aquilo que,

coletivamente, lhe afeta diretamente a vida, e que, portanto, seria também um critério da

notícia. Esse exemplo apenas chama atenção para esse campo específico das notícias já que,

reproduzindo a imediaticidade que aprisiona o “leitor concreto”, o jornal informativo acaba

definindo um certo espectro, bastante funcional, de compreensão (e valoração) da política.

Macaggi parte do que ele próprio considera uma definição “precária” de notícia, como

“relato de um fato recente, que interessa a um grupo de pessoas”, para desdobrá-la a partir de

critérios que tornam os fatos noticiáveis. A atualidade é apresentada como o primeiro

requisito, entendida em todos os sentidos comentados acima, como novidade e fato muito

recente ou pouco habitual (1991, p. 20). Na sequência, ele elenca como outros critérios a

proximidade, defendendo que os fatos locais têm mais importância que justifique seu

tratamento como notícia do que aqueles que acontecem em lugares longínquos. A

proeminência indica outra linha de corte, por exemplo, para a definição das notícias sobre

falecimentos, o que significa reconhecer que só é notícia a morte de pessoas públicas.

Subordinadas a essas três características — numa classificação que nos parece redundante e

com pouco paralelismo —, o ‘Manual del periodista’ aponta ainda outros critérios:

magnitude, raridade, conflito (“situação de tensão ou de surpresa”), progresso (“triunfo ou

façanhas de pessoas, comunidades ou equipes de pesquisas”), desastre, e interesse humano.

A questão da atualidade nos parece já suficientemente discutida. A proeminência, como

critério primário, tal como a magnitude, raridade, conflito e desastre, como critérios

secundários, aponta não só para o novo inusitado como o evento pelo qual o jornalista e o

público esperam, como para a excentricidade que é artificialmente construída pelos próprios

veículos de comunicação, seja na sua atuação jornalística, seja, principalmente, nos espaços

dedicados ao entretenimento, que diariamente produzem estrelas e famosos com poucos

critérios que se possam considerar objetivos.

Já a referência à proximidade e ao interesse humano nessa lista encaminha nosso debate

para outro material analisado — o ‘Valores periodisticos’ — que, junto com uma

temporalidade específica, como vimos, propõe que a notícia tem outros dois critérios: a

importância e o interesse (por parte do leitor). E essa classificação traz discussões

fundamentais para o tema deste trabalho. Vamos por partes.

129

Quando se olha o conjunto do material estudado, o que no ‘Manual’ que vinha sendo

analisado aparece como proximidade, na verdade, diz respeito mais ao ‘interesse imediato’ ou

à capacidade de afetar diretamente a vida do leitor, quase como uma função de ‘serviço’. O

‘Valores periodisticos’ alerta que essa segmentação de público que ajuda a orientar o jornal e

é parte da concepção de notícia não é necessariamente geográfica, mas sim definida por

“interesses compartilhados” (1996, p. 1). E ela determinaria a maior ou menor ênfase em

determinadas áreas — como exemplo, o autor cita que o Chicago Tribune fala mais sobre o

cultivo de grãos e que o Los Angeles Times aborda mais a indústria cinematográfica. Mas,

como se pode perceber até pelos exemplos escolhidos, ele não elimina o fator geográfico

como orientador da ação do jornal e, consequentemente, do critério da notícia. A afirmação,

inclusive, é no mínimo curiosa quando se pensa na realidade contemporânea de uma imprensa

altamente massificada. Diz ele: “Todos os jornais, desde o diário nacional mais cosmopolita

até o menor semanário rural, é provinciano. Para sobreviver, um jornal deve refletir um

público específico, geralmente servindo de espelho a um lugar específico. Deve compartilhar

com seus leitores uma sensibilidade e um conjunto de interesses, gostos e valores” (Fuller,

1996, p. 1).

Quando se pensa no contexto brasileiro, por exemplo, de fato pode-se dizer que os três

grandes jornais do país, apesar de serem nacionais, têm uma inserção geográfica diferenciada,

mas isso se manifesta muito precisamente na cobertura regional. Assim, em relação às pautas

locais, o Globo acaba tendo uma estrutura maior para a cobertura dos fatos ocorridos no Rio

de Janeiro, enquanto a Folha e o Estadão se voltam mais para a realidade de São Paulo. Isso,

no entanto, diz respeito a uma parte pequena do conteúdo dos jornais, que, no mais, se

organizam de fato como veículos massivos, fortemente homogeneizados em relação às pautas,

o que não significa que não haja recortes de abordagem de acordo com alguma sutileza do

perfil do público de cada um.

O que importa aqui discutir é como os materiais que estamos analisando como

representativos do modelo informativo de jornalismo abordam a questão do interesse do leitor

como critério da notícia. Em alguns casos, no material analisado esse tema é tratado por uma

perspectiva mais simples de relação com o consumidor, embora ainda assim naturalizadora

dos valores jornalísticos já estabelecidos. O ‘Manual del periodista’ de Macaggi, por

exemplo, aproveita a imagem do leitor como o “patrão” do jornalista para justificar

abstratamente todas as regras de concisão e brevidade que ele supõe necessárias.

A notícia que se publica é propriedade do leitor. Esse personagem de

identificação impraticável e no entanto com presença obsessiva e quase

130

tangível atrás do teclado onde cada jornalista digita seus comentários ou a

informação que prepara para ele. Tirânico patrão que controla e exige. Que é

o último e severo juiz de todas e de cada uma das tarefas que se

desenvolvem no jornal. O leitor. Um homem com anseios e necessidades

como todos, mas a quem desgosta a falta de uma notícia no seu jornal. Ou

que vê a informação que lhe interessa atrasada por rodeios impostos aos

textos noticiosos. Que quer os fatos relatados em prosa direta e simples.

Todo o resto, por bonito que seja, decepcionará esse leitor: o obriga a

desperdiçar sem tempo e não poucas vezes também deforma o que se quer

comunicar (1991, p. 11).

Mas a discussão sobre o interesse do leitor como critério da notícia importa a este

trabalho mais diretamente como resposta à pergunta sobre quem pauta quem. E, nesse debate,

nos debruçaremos principalmente sobre a publicação ‘Valores periodisticos’, que dedica um

grande espaço e apresenta importantes argumentos sobre o assunto.

É comum, mesmo entre aqueles que não se dedicam a estudar o campo da comunicação,

a ideia de que a imprensa — e a mídia em geral —, pelo papel proeminente que assumiu nas

sociedades modernas, influencia opiniões e ajuda a formatar comportamentos sociais. Para

fundamentar teoricamente essa afirmação, poderíamos recorrer, por exemplo, ao pensamento

da Escola de Frankfurt ou à argumentação, que de fato é pressuposto deste trabalho, de que

esses meios funcionam como aparelhos privados de hegemonia que desempenham seu papel

na formação do consenso. Tivemos e teremos ainda outras oportunidades para desenvolver

isso. Aqui, no entanto, bastaria mencionar a teoria do ‘agenda setting’, nascida no próprio

campo de estudos da comunicação, e que, como o nome diz, defende que a mídia ajuda a

estabelecer uma agenda de interesses para a sociedade. Numa definição que contribui

significativamente para a discussão específica deste tópico, sobre os critérios da notícia,

Ferreira e Teixeira resumem:

Agenda setting ou agendamento é um tipo de efeito social dos meios de

comunicação a longo prazo que envolve a seleção, incidência e disposição

de notícias sobre temas que a opinião pública falará e discutirá. Algumas

notícias ou temas serão mais pautados do que outros nos veículos de

comunicação, criando uma espécie de horizonte de eventos, ou seja, alguns

fatos, ao serem selecionados e dispostos de forma mais enfática, serão

encarados pelo público como temas ou problemas de legitimam relevância

ou pertinência (2009, p. 20).

Parece claro que a pertinência dessa ‘teoria’ nesse debate depende de uma compreensão

que não elimine as mediações e, portanto, não pense num processo de determinação dos

interesses sociais pela imprensa que seja automático e sem brechas. Mas, tomando-se esse

cuidado, ela funciona como um prático pano de fundo para discutirmos a ideia, implícita no

131

material que aqui estamos analisando, de que, ao contrário, é o interesse do público que

determina o que é ou não notícia.

Comecemos por fazer justiça a Jack Fuller, autor da publicação sobre a qual estamos

nos debruçando neste momento. Ao defender a atemporalidade, o interesse e a importância

como critérios da notícia, ele se adianta a qualquer crítica apresentando, desde o título, essas

características como um ‘viés’ (sesgo, em castelhano), ou seja, um ‘enviesamento’ que

impede a ‘pureza’ da verdade no jornalismo, mas que seria parte da sua própria ‘natureza’.

Não só por justiça mas também já como contribuição à nossa análise, é preciso dizer que essa

relação de protagonismo entre leitor e jornal é abordada em diversas passagens do livro e,

vista no conjunto, está repleta de idas e vindas, afirmações e relativizações. Vamos ao texto.

Fuller define notícia como “um informe do que uma organização noticiosa conheceu

recentemente sobre assuntos de alguma importância ou interesse para a comunidade

específica que é atendida por essa organização noticiosa” (1996, p. 5, grifos nossos). Depois

de apresentar exemplos de jornais que dão prioridade a notícias diferentes, de acordo com o

que reconhecem como interesse do seu público e também com o que consideram ‘importante’,

a publicação traz uma referência mais direta ao critério do interesse como uma via de mão

dupla. Mas isso se dá a partir de uma crítica aos jornais sensacionalistas que, no entanto, não

apresenta qualquer indicação objetiva sobre os limites do respeito a esse interesse.

Indubitavelmente existem alguns jornais que não parecem estar preocupados

com o elemento da importância. Esse tipo de jornal sempre se inclinará para

um escândalo sexual no lugar de uma intenção de golpe de estado na União

Soviética. A maioria dos jornalistas contemporâneos se esquivaria disso,

chamando de cafetinagem, mas os jornalistas honestos deveriam dizer que

eles também levam em conta o que é atrativo da curiosidade humana básica

(inclusive mórbida); a diferença é se entram ou não em jogo considerações

sobre interesses superiores (1996, p. 5).

Além do questionamento evidente à referência a uma naturalizada “curiosidade humana

básica”, que é tratada quase como uma herança genética da espécie e não como construção

social da qual a própria imprensa é protagonista, a citação acima começa a denunciar o

terreno movediço sobre o qual se assenta a relação entre interesse do leitor, importância da

notícia e função social do jornalismo (aquela autoatribuída pela imagem democrática da

imprensa empresarial). A crítica pressupõe uma linha de corte imaginária, que separaria, de

um lado, o menu de escolhas que cada jornal (sério) teria para definir a sua notícia (e a sua

manchete) de acordo com o interesse do seu público e, de outro, as opções que, uma vez

tomadas, denunciam a pouca seriedade do veículo na medida em que submetem a importância

ao interesse (quase animalizado) do público. Vale ainda lembrar que, numa escala com

132

gradações que vão da fofoca sobre a celebridade até o escândalo sexual, passando pela notícia

de curiosidade sobre um animal do zoológico, tudo isso compõe a categoria de ‘interesse

humano’ que, como vimos, é apontada pelo ‘Manual’ de Macaggi, por exemplo, como

também um dos critérios da notícia, sem que, por esse modelo, isso determine a maior ou

menor seriedade dos jornais.

Mas deixemos Fuller apenas com seus próprios problemas. Diz ele, tentando clarear

essa relação entre interesse e importância: “A definição do que é importante sempre será tema

de debate mas, em geral, a avaliação deve girar em torno das consequências previsíveis. A

importância e o interesse fornecem bases separadas para qualificar um acontecimento ou uma

informação com o nome de notícia e qualquer um dos dois pode ser suficiente” (1996, p. 5).

Na sequência, ele apresenta exemplos reveladores:

Não importa que tão poucas pessoas tenham estado interessadas em ler sobre

as discussões referentes à limitação de armas estratégicas, a enorme

importância dessas negociações para o futuro do planeta as transformaram

em um tema extremamente importante para as notícias. E sem importar a

insignificância do desempenho de Michael Jordan no beisebol das ligas

menores para a história dos Estados Unidos, o profundo interesse popular

pelo tema justificou sua extensa cobertura (1996, p. 5).

Assim, apesar da atribuída independência entre os dois critérios, parece claro que a

importância é a elevação do interesse (que sempre é de um público específico) ao caráter de

universal, ou seja, a um interesse geral calcado numa aparente abstração. E aqui, como não

poderia deixar de ser, reina absoluto o mecanismo ideológico que apresenta o particular como

se fosse universal, com a vantagem de ainda encenar, a favor do jornalismo, uma função

pedagógica de levar à sociedade aquilo que, mesmo contra a sua vontade, ela deve saber. O

exemplo utilizado pelo autor, da negociação sobre armas estratégicas, é muito significativo,

na medida em que apresenta um dos pilares da política imperialista e militarista norte-

americana como um tema fundamental para o “futuro da humanidade”. Como essa lista de

questões importantes para todos os seres humanos não tem autor conhecido nem está escrita

em lugar que se possa ler, poderíamos supor, por observação da realidade concreta, por

exemplo, que dela não consta a luta dos trabalhadores, de modo que a greve de uma categoria

que não afete diretamente a vida de uma população específica (ou seja, que não se torna

interesse do público do jornal) não precisa virar notícia. Portanto, para notícias mais

específicas, vale o critério do interesse segmentado que, apesar de atender à atualidade

própria do jornalismo, aprisiona o leitor na imediaticidade do impacto direto que os fatos têm

sobre ele, entendido como sujeito individualizado; e para notícias gerais, vale o corte de

133

importância estabelecido pelo interesse de classe dos jornais empresariais, que ganha ares de

importância na medida em que é ideologicamente travestido de interesse geral. E assim,

naturaliza-se a ausência de pautas e temas que, por não serem pragmaticamente aplicados nem

hegemonicamente valorizados, simplesmente ficam de fora da agenda criada diariamente pelo

jornal.

O autor da publicação está atento aos riscos. Segundo ele, o critério da importância não

representa necessariamente um ‘viés’, mas pode ser considerado um “cabeçalho” que abriga

todos os outros enviesamentos da notícia. Ele enumera: “Esses [os vieses] podem surgir pelas

circunstâncias sociais dos jornalistas, pelos imperativos do mercado econômico sobre as

organizações noticiosas, a cultura de onde provém o jornalista ou as correntes intelectuais

predominantes da época”. Mas, em seguida, sem que sequer tenhamos tempo de apontar a

ausência do corte de classe como outra alternativa à origem desse viés, ele joga a questão para

debaixo do tapete: “(...) são assuntos interessantes, mas não pretendo estudá-los aqui já que

não há diferença entre o viés de observação dos jornalistas e o viés de qualquer outro

observador” (Fuller, 1996, p. 9). A consequência desse viés seria, então, apenas a

relativização da expectativa da verdade no jornalismo que, por dedução, pode-se dizer que se

aplica também a outras áreas do conhecimento. “Um informe que reúna as evidências de ser

oportuno, interessante para uma comunidade e importante pode ser mais ou menos veraz.

Pode refletir a realidade ou mostrá-la distorcida” (1996, p. 9). Ou, como o autor afirmará mais

adiante, discutindo os limites da busca da verdade: “O reconhecimento da incerteza é, de fato,

essencial para a teoria da liberdade de expressão. O compromisso com a autonomia individual

contra a autoridade começa com a epistemologia” (1996, p. 8).

Mas o nó da relação entre os critérios de notícia apresentados pela publicação nos fez

saltar parte da discussão do autor sobre o interesse do público. Apesar da já comentada

insinuação de crítica aos jornais sensacionalistas, Fuller reconhece que é muito difícil um

jornalista — perceba-se que o ator aqui é o sujeito e não o jornal — conseguir atenção para

temas em relação aos quais o público é indiferente, ainda que ‘se saiba’ que são importantes

para suas vidas. Portanto, mesmo com o jornal exercendo um papel pedagógico ou

democrático, “os pontos cegos do público geralmente serão os pontos cegos das notícias”

(Fuller, 1996, p. 7). E aqui a publicação simplesmente inverte a lógica do agenda setting,

fazendo, inclusive, referência direta à obra de Walter Lippmann sobre a opinião pública, que

teria lançado as bases da teoria do agendamento. Segundo o ‘Valores periodisticos’, o

“refletor” não é a imprensa, mas a “curiosidade humana”. “Os jornalistas só vão aonde o

134

refletor aponta”, diz (1996, p. 7). Em função da notável semelhança, inclusive nos termos,

vale registrar aqui um exemplo dessa concepção no jornalismo brasileiro. Trata-se do já

referido texto de Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S. Paulo, intitulado

‘Vampiros de papel’. Citando uma multiplicidade de chamadas de jornais sobre temas

diferentes, ele se pergunta o que haveria em comum entre aqueles assuntos para que fossem

levados aos espaços de destaque do jornal. E responde: “Existe um denominador comum entre

esses disparates; tão logo ele é identificado, cada coisa vai para o seu lugar e o todo reaparece

em perfeita ordem. Esse denominador é a atribuição de uma curiosidade ao público” (1984, p.

3). E completa: “O jornal é um acelerador dessas energias que ele suga de cada canto

milimétrico, de cada solidão particular, de cada interstício nas paredes e sebes das vizinhanças

minúsculas, para organizá-las e multiplicá-las num turbilhão de curiosidade que arrasta

barreiras, arruína e faz reputações, desmancha governos” (1984, p. 4). Mas a grande revelação

parece ser a definição de “curiosidade humana”, concebida de forma idealista, pessoal e

subjetiva, absolutamente apartada de qualquer base material econômica — substituindo,

inclusive, a determinação ontológica do trabalho —, histórica e ideológica. Poeticamente

deslumbrado, ele explica:

É engraçado pensar que foi a paixão de uma curiosidade furiosa quem

arrancou árvores da terra, quem as transformou em pasta e depois em papel

de imprensa, quem arrumou as ideias na forma de frases e estas no desenho

das letras e as fez aderir à superfície clara da impressão, quem encartou as

páginas e quem as atraiu desde a rotativa pelas estradas, avenidas e ruas,

como um magneto, por cima do muro para dentro da casa (1984, p. 4)

Vale ainda registrar que foi uma surpresa encontrar não só no ‘Valores periodisticos’

mas em todas as publicações que foram analisadas a referência direta aos públicos

específicos, inclusive – ou principalmente – como segmentos de mercado, o que significa que

elas reconhecem de forma muito natural o caráter empresarial da imprensa contemporânea e

sua influência editorial. Como veremos no tópico referente à objetividade e imparcialidade,

esse ‘calcanhar de Aquiles’ é ‘solucionado’ por outros caminhos, de modo que o único

particularismo incompatível com o jornalismo nas “sociedades livres” parece ser a imprensa

governamental e partidária. No exemplo apresentado pelo autor, não é um problema que um

grande jornal de notícia geral como o Times se dedique mais a assuntos sobre negócios

internacionais e políticas públicas em função do interesse do seu público (sua “comunidade”).

Numa situação real, presenciada por nós, não é problema que a jornalista de uma revista

semanal de informação justifique o pouco interesse por uma descoberta científica sobre

135

hanseníase – doença que tem no Brasil o país com o segundo maior número de mortes – pelo

fato de o seu leitor morrer de ataque cardíaco.

Num capítulo em que destaca a importância de o conteúdo da notícia se manter “a par”

do leitor, o ‘Manual’ de Mallette elenca quatro razões, algumas no mínimo curiosas, para que

os leitores procurem os jornais e que, como manifestação do interesse do público, devem

servir de guia para o trabalho dos periódicos. A primeira razão seria uma genérica – e sem

explicação ou origem conhecida – “necessidade de manter-se informados”. Ele aconselha:

“Lembremos que o leitor típico não existe, motivo pelo qual o periódico tem que se

transformar num menu de informações. E como ávidos de informação têm pouco tempo, tem-

se que apresentar as notícias de modo eficiente, o que não significa que todas devam ser

curtas” (1998, p. 34). A segunda motivação seriam as “relações sociais”, ou seja, o uso das

informações do jornal como assunto para se iniciar uma conversa com outra pessoa. E aqui se

identifica mais uma vez a necessidade de se incluírem na pauta temas de “interesse humano”.

A terceira razão seria o “entretenimento”, entendido como o “puro prazer de ler um jornal

bem escrito e bem editado”. Por fim, segundo o texto os leitores contariam com os jornais

para ajudá-los a decidir. O autor enumera: “Ele [o leitor] quer saber em que loja estão as

melhores ofertas, razão pela qual a publicidade comercial presta um serviço ao leitor. Outro

tanto fazem as seções de notícias ao consumidor. Outro quer saber como se conserta a torneira

da lavanderia, quando recolhem o lixo ou qual será amanhã o valor da sua moeda”. E conclui:

“Em nossa vida enfrentamos muitas decisões para as quais necessitamos de informação”.

Lamentavelmente para aqueles que acreditam na função ideologicamente construída de uma

profissão indispensável para a democracia, nenhuma dessas “necessidades” parece

fundamental para a sobrevivência ou a felicidade dos povos e, o que é pior, nenhuma das

informações requeridas é produto do trabalho jornalístico.

3.1.2. Publicidade como informação

A frase que encerra o tópico anterior precisa ser melhor explicada. Na verdade, o

correto seria dizer que nenhuma daquelas informações que, de acordo com Mallette,

justificariam o interesse do leitor pelo jornal é resultado do tipo de narrativa que é produzido

pelo jornalismo. Isso porque a informação estritamente jornalística, representada pela notícia

como elemento principal — o que inclui suas variações, como reportagens mais amplas e

textos publicados na forma de entrevista —, é reconhecidamente apenas uma parte do

conteúdo do jornal, que conta com um conjunto de outros gêneros e serviços.

136

Neste ponto vale observar o descompasso entre a afirmação geral, presente nos

materiais analisados, de que a notícia é o que mais interessa ao leitor no jornal e frases como a

citação que encerra o tópico anterior e a que apresentamos abaixo, encontradas nas mesmas

publicações, que parecem minimizar a importância da informação efetivamente jornalística.

Tratando do papel do jornal para a sociedade moderna, o ‘Manual’ de Macaggi, por exemplo,

questiona:

Vocês sabem o que é viver sem jornais em uma grande cidade? Não sabemos

se devemos comprar ou vender, não há páginas financeiras, não sabemos de

que se ocupam os vizinhos, não há cartas de leitores. Não conhecemos o que

dizem os candidatos políticos uns sobre os outros, por mais feroz que seja a

disputa. Daquele que morre em Detroit só se inteira o empresário da

funerária. Muito pouca gente vai aos concertos, apresentações teatrais,

conferências e exposições de pintura.

O grande passatempo nacional de comprar nas lojas entra em colapso e o

ciclo dos negócios fica lento; não é possível encontrar trabalho e os que

precisam de pessoal podem não consegui-los. O único negócio que anda bem

é a atividade dos criminosos, porque ninguém pode dar pistas à polícia

(1991, p. 38).

Afirmando o caráter de novidade da notícia, como vimos, o mesmo ‘Manual’ a

diferencia da “informação”, que também seria matéria-prima do jornal e teria como função

“levar conhecimentos ao leitor” (1991, p. 17). Trata-se de uma classificação no mínimo

curiosa, porque associa o conhecimento não à notícia, que seria o produto do trabalho

propriamente jornalístico, mas a outros conteúdos. “Os artigos formam e informam. Um

anúncio pago também é informação: são produtos que o comerciante quer vender e que

comunica onde se pode adquirir; informam as seções de espetáculos e as colunas que

lembram os horários de transportes ou das farmácias que estão de plantão (...)” (1991, p. 17,

grifos nossos).

Observe-se que a descrição de atrativos do jornal que encerra o tópico anterior e a

relação das informações que o jornal oferece, que abre este tópico, são retiradas de duas

publicações diferentes, o que nos leva a chamar atenção para a importância que o conteúdo

publicitário e de serviço — ou, em outras palavras, o conteúdo não jornalístico —, tem

assumido no jornal contemporâneo. Não trataremos aqui dos espaços de serviços, que

parecem fugir ao tema que nos interessa. Mas, a partir desse gancho, começaremos a

discussão sobre o conteúdo não jornalístico exatamente apontando as impressionantes

semelhanças no tratamento que o material analisado traça entre a publicidade e a notícia.

O destaque dessa primeira discussão fica para o ‘Manual para periodistas’ organizado

por Mallette — aquele que foi produzido para os países recém-saídos do bloco socialista —

137

que, apesar de ser voltado para jornalistas, como o próprio nome diz, dedica quatro capítulos

aos temas da publicidade, classificados e circulação do jornal. Ao contrário do que se possa

imaginar, não se trata de promover um debate ético sobre a relação entre a parte editorial e a

parte publicitária do veículo, mas de apresentar dicas e orientações precisas sobre como

produzir anúncios, como organizar os classificados e como vender mais jornal. Para

completar, no capítulo sobre diagramação é reservado um espaço para ensinar o ‘jornalista’ a

tratar os anúncios. Comecemos por este último.

No capítulo em que o ‘Manual’ ensina a dispor os elementos gráficos do jornal de modo

que o conjunto gere “comodidade para a vista”, um dos subtítulos trata do “jornal como meio

publicitário”. Além de atribuir ao periódico a função de “educar” os anunciantes em boas

práticas publicitárias, o início do tópico define a função da inserção publicitária: “O anúncio

deve persuadir o leitor a fazer algo que, normalmente, é adquirir uma mercadoria ou serviço”

(Mallette, 1998, p. 88).

O texto explica que, para alcançar esse objetivo, a peça publicitária deve “capturar a

atenção”, “concentrar o interesse”, cristalizar o desejo” e “motivar a ação”. E, quando se

refere ao anúncio publicado num veículo impresso, isso requer algumas regras que tornem a

mensagem clara. Pois eis que, sem esperar, esbarramos aqui, nas ‘técnicas’ de redação

publicitária, com nada mais, nada menos do que o nosso velho conhecido lead: “Como se

trata de uma comunicação escrita, o texto tem que cumprir as exigências de uma notícia bem

redigida: tem que responder às cinco50

perguntas: quem, o quê, onde, quando e por quê”

(1998, p. 89, grifos nossos). Para entendermos como essas perguntas se aplicam, vale a

citação direta:

“Quem” é “quem fala?”, e a resposta é a assinatura do anunciante com o seu

logotipo em forma visível e característica. O título e a ilustração, ou ambos,

podem definir a que leitores estão dirigidos.

“O quê?” é “o que se quer que os leitores façam quando leiam isso?”. O

texto e as imagens são de grande ajuda neste ponto.

“Onde” e “quando” são partes integrantes da assinatura. A localização do

estabelecimento, seus horários de trabalho e a duração de uma venda

especial devem estar claramente definidas.

“Por que” e a pergunta mais importante. De maneira explícita e implícita, o

anúncio tem que dar suficientes razões para que os leitores comprem o

produto ou realizem a ação desejada (Mallette, 1998, p. 89).

Depois de passar por todas as rotinas de um jornal informativo e fornecer orientações

sobre apuração e redação para impresso, rádio e TV, além de diagramação, títulos, fotos e

50

Na sua forma mais completa e tradicional, o lead é composto por mais uma pergunta: o “como”.

138

legendas que chegam aos menores detalhes, o ‘Manual’ traz um capítulo intitulado ‘Publique

seu próprio jornal: com a ajuda da tecnologia’, que não será aqui analisado. A referência se

justifica porque sua posição imediatamente anterior a uma sequência de outros capítulos que

apresentam dicas de publicidade e circulação talvez possa explicar a pertinência desse

conteúdo como algo voltado para o jornalista ‘empreendedor’, que, no seu próprio jornal,

precisará dar conta tanto da parte editorial quanto da publicidade.

Mas cheguemos ao conteúdo, que é o que importa à nossa discussão. “(...) o leitor

espera informação oportuna, completa, útil e apresentada com clareza e concisão” (Mallette,

1998, p. 137). Essa descrição de expectativa, que poderia perfeitamente constar do capítulo

sobre a apuração e a redação das notícias, refere-se ao que o público do jornal espera dos

anúncios classificados. Mais adiante, também com uma semelhança notável com o papel das

editorias na organização do conteúdo jornalístico, o ‘Manual’ orienta sobre a importância de

‘classificar’ os classificados (1998, p. 139). E as (só aparentes) coincidências não param.

Vejamos os oito conselhos que a publicação apresenta para uma boa redação de anúncio:

1. Vá direto ao assunto. Não busque joias literárias.

2. Evite os superlativos e as trivialidades. Seja honesto e concreto.

3. Apegue-se à verdade, mas a diga de modo interessante. Quase ninguém se

ocupa de ler um anúncio chato.

4. O principal: escreva orações de menos de 12 palavras. Evite as orações

complicadas.

5. Não tema escrever um texto grande se for necessário para transmitir

informação pertinente.

6. Não tente ser engraçado. Poucos podem escrever textos humorísticos e

poucos produtos se prestam a isso.

7. Escreva de modo que inspire confiança. Fundamente seus argumentos. Se

o leitor não acreditar em você, não haverá mais nada a fazer.

8. Diga ao leitor como responder, como comprar, quanto lhe custará e por

que deve fazê-lo agora (Mallette, 1998, p. 142).

Quase apenas a título de curiosidade, para que as semelhanças fiquem ainda mais

evidenciadas, listamos abaixo alguns dos 23 elementos que compõem a lista que o mesmo

manual indica para uma boa redação da notícia:

1. Use a voz ativa; é mais vigorosa do que a passiva.

2. Apoie-se muito nos substantivos e verbos com significado claro. Poupe

o uso de adjetivos e advérbios. Um verbo bem usado cria uma imagem na

mente do leitor.

3. Siga principalmente o padrão da oração declarativa simples: sujeito,

verbo, predicado.

4. Evite os jargões da moda, os clichês, as fórmulas burocráticas, jurídicas

e outras por estilo.

5. Cuide para que as orações sejam curtas, mas varie seu tamanho para não

soar monótono. Coloque cada ideia em uma oração. Mantenha o tamanho

médio em torno de 18 palavras.

139

(...)

9. Use detalhes concretos, reveladores. Transporte o leitor para a cena.

10. Dê ao leitor os antecedentes. Cada notícia deve ter sentido completo.

(...)

14. Não deixe perguntas sem responder. Trate de respondê-las logo que

surjam.

15. Não crie expectativas que não possa cumprir. Assim, se fala que uma

pessoa é engenhosa, ponha um exemplo.

(...)

21. Elimine tudo que for supérfluo. A prosa vigorosa é concisa.

(...) (Mallette, 1998, p. 16-17).

Por fim, o ‘Manual’ elenca também “normas éticas” para a publicidade. Trata-se de um

conjunto de regras que, em relação à informação jornalística, serão analisadas no tópico

seguinte deste trabalho, quando discutiremos a objetividade e a neutralidade do conhecimento

produzido pelo jornal. Mas supomos que, mesmo que ainda não tenhamos abordado

diretamente esse tema, não será difícil supor mais uma vez as semelhanças51

.

Ao determinar se é aceitável ou não cada anúncio classificado, os

vendedores devem considerar essas perguntas:

1. O que diz o texto do anúncio é literalmente certo?

2. Pode-se apresentar provas disso?

3. Diz-se algo enganoso?

4. Exagera-se em busca de benefícios ou resultados?

5. Há ilustrações artísticas enganosas?

6. Omite-se do texto algo que o torne enganoso?

7. No texto se apresentam meras opiniões como verdades comprovadas?

8. Anuncia-se falsamente o produto como uma cura?

9. Apresentam-se ilustrações que não correspondam ao texto?

10. Há palavras ou frases discriminatórias no texto?

11. São violadas as regras do bom gosto? (1998, p. 141).

Não é objetivo deste trabalho analisar especificamente o processo de mercantilização do

jornal. Este é dado como pressuposto e, entendido como movimento histórico que aproxima

as dimensões da estrutura e da superestrutura no lugar ocupado pelos meios de comunicação,

faz parte da hipótese que estamos tentando desenvolver. Assim, o destaque dado a todas essas

orientações que tratam da publicidade no jornal visa, na verdade, apresentar um espelho que

nos ajude a problematizar o enquadramento da notícia e, consequentemente, a funcionalidade

do modelo de jornalismo informativo.

51

Em coerência com esse conteúdo que acabamos de analisar, vale ressaltar que, na imprensa empresarial, a

publicidade também passa por um crivo ‘editorial’, de modo que os jornais podem criar obstáculos à publicação

de anúncios a partir de uma avaliação do seu perfil. Ficou conhecido, por exemplo, um episódio ocorrido em

2010, em que a publicação de uma peça publicitária da campanha ‘Afirme-se’, que defendia ações afirmativas

em relação à população negra, no Globo foi inviabilizada porque, alegando tratar-se de “peça de opinião”, o

jornal cobrou um valor superior a dez vezes o preço de um anúncio em igual formato. Dessa forma, tal como no

jornalismo, esse conjunto de orientações técnicas e éticas ajudam também a estabelecer a linha de corte para a

publicidade que o jornal não quer veicular.

140

Se já reconhecemos, na historicização apresentada no primeiro capítulo, que a notícia se

transformou em mercadoria com a consolidação do capitalismo, ainda no século XIX, e teve

sua plena forma burguesa ‘finalizada’ quando se tornou produto de grandes conglomerados

dominados pelo capital monopolista, agora chegamos a um outro nível de análise. Como se

descascássemos uma cebola em camadas, descobrimos, primeiro, que o objeto jornal se

tornou mercadoria; depois, que a notícia (como unidade mínima que compõe o jornal)

também se mercantilizou; e agora nos deparamos com outro momento desse processo.

Vejamos por analogia: o jornalista orientado pelo modelo informativo burguês produz e

organiza informações sobre a realidade concreta cotidiana que têm impacto ou relevância

coletiva a partir do mesmo arcabouço pelo qual são produzidas as ‘informações’ que visam

apresentar ao leitor suas opções de consumo. Portanto, nossa questão não é criticar o quanto

os leitores estão submetidos a um arsenal de propaganda, mas demonstrar como o jornalismo

informativo permite (na verdade obriga) que a mercadoria notícia apresente a realidade social

‘objetiva’ como se esta (a realidade) também fosse, ela própria, uma mercadoria, tal qual

aquelas que são apresentadas pelas peças publicitárias. Reproduz-se assim um processo

equivalente ao já descrito movimento da alienação: aqui, a realidade cotidiana, que é

igualmente objetiva e histórica, portanto feita pelos homens, é apresentada diariamente como

externa e estranha aos sujeitos; como algo que tem implicação para suas vidas — já que a

notícia precisa ter ‘valor de uso’ —, mas que não lhes pertence e não lhes inclui52

. Daí, por

exemplo, a necessidade de que prevaleça (de forma natural ou construída) o novo como

inusitado, o excêntrico, o escândalo político. Daí o imperativo da objetividade como

neutralidade, que impõe ao jornalista um distanciamento que se expressa também na forma

como o leitor pode ler essa realidade a partir da notícia. Daí que a mercantilização do mundo

que se expressa no jornal — e que está na base desse processo que, por analogia, estamos

chamando de alienação — explique, por exemplo, o complexo e duplo papel do ‘interesse do

leitor’ — classificado por segmento — como critério e, ao mesmo tempo, resultado da notícia,

numa relação muito semelhante à que rege as leis de produção e consumo. E que explique

52

A anedota que abre o ‘Manual’ de Macaggi, apesar de tentar ilustrar um romântico e natural encontro entre o

homem-cronista e o homem-leitor, nos parece muito representativa desse processo. Trata-se da história de um

jornalista do New York Herald a quem o editor deu a “missão” de encontrar Livingstone, um ‘missionário’ inglês

que é considerado o primeiro homem a ter explorado regiões mais desconhecidas da África. Depois de um ano

de viagens, investigações e outras matérias elaboradas no caminho, o repórter encontrou o explorador “em plena

selva do Congo” e lhe cobriu de perguntas, ao que Livingstone, surpreso e dando “curso espontâneo à sua

própria ansiedade”, teria respondido com uma outra pergunta: “O que se passa no mundo?”. E, segundo o autor,

essa é a mesma pergunta que, “toda uma impressionante massa de população que hoje, ansiosa e com a mesma

comovedora exclamação daquele Livingstone quase esquecido numa selva remota” continua fazendo (1991, p.

10).

141

também a importância como um critério que, diretamente relacionado ao interesse, representa

um valor tão superior e abstrato quanto as ‘mãos invisíveis’ do mercado nas relações

econômicas.

Assim, é ideologicamente oportuno e funcional — para não se dizer cínico — que,

como veremos, a ética do jornalismo burguês pregue a total independência entre anunciantes e

jornalistas e a total autonomia do departamento editorial em relação ao comercial. Mesmo

que, no fundo, todo jornalista e todo leitor saiba que essa regra nem sempre é inteiramente

cumprida, e que a História esteja cheia de exemplos que a contrariam, colocado nesses termos

o problema é sempre contornável, seja pela autorregulação dos veículos, pela coragem do

jornalista de denunciar as pressões ou pela atenta vigilância do leitor. Discutiremos adiante as

limitações de se compreender os jogos de interesse envolvidos na imprensa capitalista apenas

com uma análise do varejo, como a interferência de um anunciante específico sobre um tema

tão específico quanto. Mas aqui destacamos outra questão, que nos parece ainda mais de

fundo: como essa promiscuidade está inscrita no próprio modelo de jornalismo informativo

como conhecimento socialmente valorizado sobre o mundo atual e como as implicações disso

ultrapassam em muito as determinações éticas.

3.1.3. A opinião no jornal

Como vimos no capítulo sobre História, a separação entre informação e opinião, ou

entre ‘verdade’ e propaganda, é uma das principais marcas do modelo de jornalismo

informativo que estamos analisando. Mas isso se dá, por um lado, na organização do jornal

como um todo, envolvendo o uso de elementos como títulos, chamadas e fotos e, por outro, na

concepção e forma de construção da notícia ou, mais especificamente, do texto que resulta do

trabalho propriamente jornalístico. Com isso queremos ressaltar que a opinião não é expulsa

do jornal, mas apenas separada da informação, entendida como sua dimensão mais objetiva53

.

E nada disso é um mero detalhe.

Essa separação compõe o que o ‘Manual de Estilo’ da SIP considera um “axioma da

profissão”, que poderia ser assim resumido: “Notícia é o que se vê. Interpretação (ou análise)

é o que se sabe. Opinião é aquilo em que se crê e pelo qual se toma partido subjetivamente”

(Albertos e Suárez, 1996, p. 107). Mas como identificar essas fronteiras?

53

De acordo com a publicação ‘Valores periodisticos’, inclusive, a presença da opinião nos jornais tem

aumentado nas últimas décadas.

142

A discussão sobre os limites entre a informação e a interpretação é tratada nesse livro a

partir da classificação proposta por Lester Markel em 1953, quando era presidente do Instituto

Internacional de Imprensa (IPI) e subdiretor do suplemento dominical do New York Times.

Segundo esse jornalista, a interpretação, considerada um “elemento básico das tarefas

informativas de um jornal”, seria um “juízo objetivo” baseado no conhecimento sobre os

antecedentes e na análise dos fatos. Já a opinião (ou juízo editorial) seria um juízo subjetivo

que, embora possa trazer análise, contém também elementos de “impacto emotivo” e deve se

restringir “quase religiosamente” ao espaço editorial do jornal. Reconhecendo que nem

sempre seria fácil distinguir essas duas situações, o jornalista propõe uma “regra empírica”

que é assim resumida no ‘Manual de Estilo’:

Se o leitor não pode determinar, a partir do texto publicado, qual é a postura

do jornalista sobre o tema ou a personalidade de que está tratando, a

interpretação é então correta. Se da leitura do texto jornalístico se deduz qual

é a tomada de posição do jornalista a respeito do acontecimento ou pessoa, é

muito provável que estejamos diante de um caso de opinião subjetiva e

editorializante mascarada no jornal como se se tratasse de um relato

interpretativo, provocando dessa forma a confusão dos leitores sobre a

disposição psicológica do jornalista (Albertos e Suárez, 1996 ,p. 154).

O editorial é comumente definido nos materiais analisados como o espaço em que é

apresentada a posição ‘institucional’ do jornal sobre questões e temas atuais que, por essa

razão, provavelmente estarão mencionados também em alguma parte do espaço dedicado às

notícias. Segundo o ‘Manual’ de Macaggi, embora seja uma opinião — a “cota de

subjetividade” reservada à imprensa —, o editorial tem que se basear em fatos, sem jamais

recorrer a “adivinhações”. Ele explica: “O leitor espera a opinião do seu jornal e o lugar

indicado é precisamente esta página. As colunas de informação não estão habilitadas em

inumeráveis casos para fornecer julgamentos e interpretações” (1991, p. 84).

Essa ideia de que existe um vínculo de identidade ou cumplicidade entre o leitor e o

jornal, e de que a manutenção disso depende em grande medida da página editorial, está

presente em quase todas as publicações estudadas. Para Mallette, por exemplo, “os editoriais

(...) permitem [ao jornal] se relacionar com a comunidade a que serve às vezes dizendo o que

só um vizinho amigo pode dizer” (1998, p. 71). Por isso, seu conteúdo não pode prescindir de

um posicionamento claro, evitando, portanto, qualquer caminho que pareça a busca de

equilíbrio ou vacilações. O ‘Valores periodisticos’ também é taxativo em relação ao objetivo

claro desse espaço do jornal: “O propósito de um editorial, de regra geral, é persuadir os

leitores para que aceitem a posição que propõe o editorial sobre políticas públicas. Supõe-se

que os argumentos levem a uma conclusão brilhante, não que fiquem presos em cinzas. É

143

necessário tomar decisões neste mundo e os editoriais pretendem influir nelas” (Fuller, 1996,

p. 39).

O ‘Manual’ de Mallette desdobra essa referência à ‘intimidade’ entre o jornal e o leitor,

recolocando para nós a questão já discutida sobre a relação entre interesse do leitor e o critério

da notícia, mas agora referida ao debate sobre a opinião e os valores do público. Diz o texto:

“Para ser eficaz, o editorial precisa refletir os valores que a comunidade compartilha e ao

mesmo tempo aumentá-los” (1998, p. 72). Jack Fuller, no seu ‘Valores periodisticos’, alerta,

no entanto, que essa relação ‘simbiótica’ não pode ser artificial, baseada num simples desejo

de agradar o consumidor. “Ainda que um jornal deva prestar atenção às opiniões dos seus

leitores, nada subverte mais o respeito de uma comunidade pela posição editorial do jornal do

que a sensação de que os editores baseiam a posição editorial nas pesquisas de opinião, e

dizem à comunidade apenas o que sabem que é popular” (Fuller, 1996, p. 29-30). Ele

apresenta o dilema existencial: “Esta é a tensão: um jornal que não reflita sua comunidade

profundamente não terá êxito. Mas um jornal que não ponha em xeque os valores e ideias pré-

concebidas de sua comunidade perderá o respeito dela por deixar de fornecer a honestidade e

a liderança que se espera de um jornal” (1996, p. 31).

Fuller confirma o “papel-chave” que “as opiniões francas” do jornal sobre “assuntos

definitivos de valor” (1996, p. 29) têm no fortalecimento do vínculo entre o veículo e a

comunidade para a qual ele é voltado. Mas, para esse autor, que nisso diferencia sutilmente

sua obra dos outros materiais analisados, isso não se dá apenas em relação à opinião

explicitada no espaço editorial do jornal como também a partir de um tanto de

‘direcionamento’ (institucional) que, sem comprometer a objetividade e a verdade possível,

ele reconhece como necessário constar também nas notícias. A discussão pormenorizada

sobre a concepção de objetividade e imparcialidade jornalística será analisada no tópico

seguinte, mas vale aqui adiantar a questão, para que se perceba a sutileza. Diz o livro:

Existem muitas razões para abandonar a pretensão [de neutralidade]: o

jornalismo precisa ajudar as pessoas a compreender temas cada vez mais

complexos que afetam suas decisões políticas e sociais, e isso é impossível

sem fazer juízos de fato e de valor. As pessoas geralmente não acham

interessantes as narrativas perfeitamente neutras porque a narrativa breve dos

fatos pode ser tediosa e deixar muitas coisas sem solução. As pessoas

ocupadas esperam que seus jornais façam a maior parte do trabalho analítico

para elas. A neutralidade na escrita pode enfraquecer a relação entre o jornal

e sua comunidade tornando difícil que as pessoas encontrem no periódico

uma personalidade, uma voz unida com a qual possam se relacionar (1996,

p. 33).

144

Essa é uma diferença importante desse livro em relação aos outros manuais analisados

e, arriscamos dizer, em relação à esmagadora maioria das publicações que tratam da técnica

jornalística. Vejamos.

O ‘Manual’ organizado por Mallette destaca, mais de uma vez, a necessidade de se

garantir a maior separação possível entre a página editorial e os espaços de notícia, inclusive

no aspecto visual. “É tão importante impedir que as notícias tomem o lugar da opinião

editorial como manter o editorial separado das colunas de notícias” (1998, p. 71).

Reconhecendo diferentes tipos de editoriais — polêmico, interpretativo e objetivo e

analítico —, o ‘Manual de Estilo’ defende que esse espaço não deve oferecer total liberdade

estilística e retoma a metáfora jurídica para recomendar que esse tipo de texto deve ser

estruturado nos moldes de uma sentença judicial, que contenha os fatos, os princípios gerais e,

depois, a conclusão (Albertos e Suárez, 1996, p. 178). Mas o que chama atenção mais uma

vez é que essa metáfora facilita a introdução da ideia de “princípios doutrinários”, que abre

caminho para o processo de naturalização das referências pelas quais os fatos são ‘julgados’ e

também noticiados pelo jornal.

Macaggi considera que o editorial pode também, de alguma forma, dar sequência às

informações apresentadas como notícias no jornal, por exemplo, apresentando e discutindo as

consequências de um fato noticiado. Mallette, no entanto, é taxativo ao defender que o

editorial é o espaço para se emitir a opinião do editor e não para fazer análise de notícias ou

listar antecedentes de fatos noticiados. “As notícias e a informação podem ser úteis, inclusive

essenciais, para respaldar uma opinião, mas não para serem usadas no lugar dela. Como regra

geral, trate de dar a opinião no início do editorial, preferivelmente na primeira ou segunda

oração, para que chegue ao leitor com a devida antecedência”, diz (1998, p. 72).

O editorial não é, no entanto, o único texto a constar da página de opinião. Como

lembra Mallette, ele pode e deve ser equilibrado com artigos assinados e colunas de opinião

que, inclusive, apresentem posições diferentes sobre o mesmo assunto. Expondo aos leitores

opiniões “bem fundamentadas”, a principal função da página editorial seria “explicar e

interpretar” ou “oferecer um fórum para a opinião pública e chamar à reunião os cidadãos”

(1998. p. 96). Para Fuller, promover esse ‘debate democrático’ é a forma como o jornal pode

e deve pôr em prática a “filosofia da liberdade de expressão”:

A melhor maneira de que uma sociedade livre vença o ceticismo natural a

respeito do poder é exercê-lo com sabedoria. Aqui é onde entram em jogo as

disciplinas jornalísticas. Ao segui-las, um jornal aceita a riqueza do debate

público e dessa forma se constitui num fórum para a comunidade. Reproduz

dentro de suas páginas o tipo de abertura que o sistema de livre expressão

145

pretende oferecer. As colunas de cartas aos diretores ou as páginas de

opinião e editoriais são as que mais claramente cumprem essa função.

Proporcionam uma voz para as opiniões que de outra maneira ficariam de

fora. De tal maneira que os bons jornais de hoje, no geral, aceitam a ideia de

que quando falam com força em seus editoriais, devem fazer até o

impossível para publicar opiniões contrárias (Fuller, 1996, p. 21).

E assim parece se reafirmar o protagonismo do jornal na tarefa de levar as pessoas a

interpretarem o mundo também pelas opiniões que — não esqueçamos — ele escolhe,

organiza editorialmente e apresenta ao público. Macaggi celebra:

Quando se tornou gráfico e multiplicou sua capacidade de circulação, o

jornalismo ganhou alturas e significado. Nas mãos de escritores e pensadores

permaneceu a análise dos problemas de ordem política ou metafísica. Mas

definitivamente foram os jornalistas que centraram sua missão em

proporcionar informações e opinião sobre assuntos contingentes desse

tempo (1991, p. 83, grifos nossos).

Analisando a história recente da Folha de S. Paulo, José Arbex Jr. descreve um cenário

que pode nos ajudar a compreender o papel da opinião no jornal contemporâneo tal como

proposta nos manuais que acabamos de descrever. O autor retrata as importantes e radicais

mudanças que foram implementadas pelo jornal a partir de meados da década de 1980, tendo

como marco o conhecido ‘Projeto Folha’, que se materializou na publicização de um ‘Projeto

Editorial’ e na publicação, inclusive comercial, de um rigoroso e abrangente ‘Manual de

Redação’. Tentando associar a imagem democrática que o jornal externava nesse período,

apoiando claramente as lutas contra a ditadura empresarial-militar que já agonizava, com o

processo industrial de trabalho imposto aos profissionais da redação, Arbex classifica o

comportamento da Folha naquele momento como uma “prática ambígua, que marcaria toda a

sua história posterior” (2003, p. 143). No que interessa à nossa discussão, essa ambiguidade

se manifestava em uma concepção muito rígida da técnica da notícia, que pressupunha uma

dura e controlada rotina de produção, e a abertura, nas páginas do mesmo jornal, de amplos

espaços de opinião que foram marcados inicialmente por um discurso de esquerda — que

coincidia com o apoio ao fim da ditadura — e, na sequência, por um ‘pluralismo’ que se

tornaria a imagem autopromovida pela Folha ao mesmo tempo em que marcava o seu

abandono do debate político de esquerda. “(...) a FSP apenas adotou a estratégia de

transformar a luta pela democracia em marketing” (Arbex Jr,. 2003, p. 144).

Jornalisticamente, a Folha seguia, no Brasil, o que seria uma tendência do jornal moderno a

esse ‘pluralismo’ de opiniões como propaganda de uma autoimagem democrática, embora um

dos materiais analisados por nós destoe dessa abordagem quando define as colunas de opinião

quase como sinônimo do editorial assinado, portanto como responsáveis também por

146

“oferecer aos leitores os pontos de vista do jornal como instituição coletiva” (Albertos e

Suárez, 1996, p. 180, grifos nossos). Segundo esse texto especificamente, as diferenças seriam

periféricas, como a maior liberdade de estilo e de variedade de temas de que as colunas

podem tratar se comparadas ao editorial. Aparentemente dialogando com essa tendência que

aqui identificamos, os autores são de uma clareza desconcertante:

(...) pode-se dizer que no jornalismo moderno há um deslocamento de

questões do editorial para as colunas dos comentaristas, especialmente

daqueles comentaristas que têm prestígio diante dos leitores e que gozam ao

mesmo tempo da confiança ideológica do jornal. Este deslocamento do

editorial para a coluna serve, evidentemente, como um recurso para

desdramatizar certos assuntos diante do público: sempre é preferível que um

jornalista e não um jornal se equivoque (Alberto e Suárez, 1996, p. 181,

grifos nossos).

A associação automática dos colunistas com as ideias e valores do jornal, como se se

tratasse de uma linha direta de transmissão, certamente não dá conta da complexidade do

fenômeno que estamos estudando, de modo que, se olharmos, por exemplo, os grandes jornais

brasileiros, não se pode dizer que todos os seus colunistas são representantes do pensamento

do jornal. Mas aqui entram duas questões importantes de serem consideradas. A primeira é

que uma diferença que o ‘Manual de Estilo’ reconhece entre o editorial e as colunas é

exatamente o fato de estas serem mais livres em relação aos temas abordados, enquanto o

editorial (aquele não assinado) deve sempre tratar de assuntos relacionados à política.

Seguindo essa pista, podemos lançar a hipótese — que aqui não será perseguida e portanto se

esgota no nível da suposição — de que, na maioria dos jornais, os maiores ‘riscos’ que a

‘pluralidade’ de opiniões oferece se dá em cadernos como os de cultura e arte. Ou, em outras

palavras, podemos supor que um colunista pode ser tão mais heterodoxo em relação à visão

do jornal quanto menos se espere dele um conhecimento especializado (e um público

interessado) para discutir política (e economia, naturalmente). Como nos alerta Fontes, na

grande imprensa “uma direita e uma esquerda adequadas ao capital configuram os limites

máximos do debate” (2008, p. 160). A segunda questão, que no cômputo geral é mais

importante, é perceber, por trás da tática da pluralidade, a constatação de que o todo é mais do

que a soma das partes, o que nos coloca o desafio de buscar identificar o sentido que se forma

como resultado dessa ‘pluralidade’ democrática (e fragmentada) de opiniões, taticamente

associadas num espaço de notícias.

No caso da Folha de S. Paulo, com o qual vínhamos ilustrando esse processo, o esforço

de ‘modernização’, que transformou o jornal em “uma empresa eficaz e profissionalizada”,

tinha referências explícitas na imprensa norte-americana. Essa inspiração costuma ser

147

claramente reconhecida na reforma da infraestrutura física da redação com vistas a gerar mais

agilidade, na definição e controle da rotina industrial de trabalho e também nos elementos que

envolvem a concepção de notícia, atrelada a uma objetividade tecnicamente controlada. Mas a

análise dos manuais editados pela SIP que estamos desenvolvendo neste trabalho mostra o

quanto a ‘opinião’, genericamente concebida, e o ‘posicionamento’ do jornal são elementos

absolutamente complementares à concepção de notícia e, portanto, bebem da mesma fonte.

Implementado em 1984, o Projeto Folha definiu “notícias e ideias como mercadorias a

serem tratadas com rigor técnico”. No texto ‘A Folha e alguns passos que é preciso dar’ que,

três anos antes, foi um dos subsídios à revolução pela qual o jornal passou, vemos, no entanto,

a ampliação do papel do jornal para além da objetividade dura da notícia. “O objetivo de um

jornal como a Folha”, diz o texto, “é, antes de mais nada, oferecer três coisas ao seu público

leitor: informação correta, interpretação competente sobre essa informação e pluralidade de

opiniões sobre os fatos”. A “informação correta” fica por conta da notícia. A “interpretação”

já integra o que aqui estamos tratando como espaço de opinião, referindo-se ao trabalho dos

colunistas54

e comentaristas que são selecionados e convidados pelo jornal de acordo com seu

conhecimento sobre os diversos temas. Mas o que o jornal reconhece como “opinião”, sempre

acompanhada da ideia de “pluralidade”, diz respeito a “textos, artigos, depoimentos,

entrevistas etc. que, tomadas em seu conjunto, funcionem como uma reprodução mais ou

menos fiel da forma pela qual as opiniões existem e se distribuem no interior da sociedade”.

Eis aqui refletida a ideia do jornal como espaço de debate democrático ou de prática da

“teoria da liberdade de expressão”, exatamente como vimos há pouco nas palavras de Fuller.

Tratando do contexto de implantação dessas mudanças, Arbex analisa:

A única ideologia tolerada pelo Projeto Folha era a ideologia do próprio

jornal. O Projeto Folha proclamava-se “pluralista” — por supostamente

admitir, nas páginas do jornal, a expressão de uma pluralidade de opiniões

— e “apartidário” — por não se filiar a qualquer partido. Mas não era bem

assim: a FSP era o seu próprio “partido” (no sentido não institucional do

termo), o que significava um limite muito claro à possibilidade do exercício

do “pluralismo”. A direção do jornal tinha consciência disso. Como

consequência, a implantação do projeto exigia uma “guerra contra a

esquerda” dentro da redação (2003, p. 154).

Mas, para ser eficaz, o modelo precisava ser completo. E isso, exatamente como

acabamos de identificar nos manuais estudados, pressupõe que, além de plural (em relação às

opiniões e visões de mundo), o jornal seja firme nas suas convicções e, com isso, fortaleça os

54

Segundo Macaggi, o sonho da maioria dos jornalistas é se tornar colunista. “A certa independência de opinião

que essa função concede e o orgulho não censurável de publicar seu nome e sobrenome no pé do artigo explicam

esse tipo de aspirações” (1991 ,p. 42).

148

vínculos. Como num eco do que acabamos de ler nas publicações da SIP, diz o texto: “É

necessário que o jornal, sem discriminar opiniões diversas das que adota (e, ao contrário,

estimulando polêmicas com elas), tenha as suas próprias convicções sobre os fatos e os

problemas. Elas é que transformam o jornal em um ser ativo, com uma identidade visível e

um certo papel a desempenhar”.

É bastante curiosa essa pretensa harmonização que o jornal burguês admite entre um

processo de despolitização, que seria coerente com o seu papel em sociedades democráticas, e

a construção de vínculos com o leitor que se dariam a partir da identidade de ideias e

posicionamentos que não podem ser outra coisa a não ser políticos. Assim, em momentos de

crise dessa base social estável que se pressupõe ser a democracia, um jornal como a Folha

toma partido e, nisso, de fato se diferencia em relação ao público, por exemplo, do Estadão55

.

Mas, como Arbex aponta, a “lua de mel” com os movimentos e partidos de esquerda acabou

junto com a volta do regime representativo (2003, p. 153). Isso não significa que a Folha

tenha migrado para o lado mais ‘conservador’, onde antes já estava o Estadão, mas sim que,

apesar das nuances que sempre existem, a linha que dividia os ‘lados’ — marcada, nesse caso,

pela forma ditadura ou democracia — simplesmente desapareceu. A democracia burguesa, o

Estado de direito como suporte dessa democracia e o livre mercado ancorado na propriedade

privada são os pressupostos objetivos de toda a grande imprensa burguesa. Abaixo dessa

grande camada de consenso, existem de fato interesses de grupos e frações de classe, como a

burguesia agrária ou industrial, camadas médias intelectualizadas, etc. Mas, na medida em

que essas divergências só se manifestam em momentos de crise ou situações muito

específicas, em que vem a público, na forma de debate, o confronto entre interesses

particulares de uma ou outra fração, isso não parece suficiente para conformar algo como uma

“comunidade” do jornal56

. Abaixo dessas diferenças, o que distingue um grande jornal geral

de informação e outro, desde que reportem o mesmo contexto, são as licenças poéticas e de

estilo que cada um se permite. E aqui, vale o alerta de Marcondes Filho: “O fato de certos

jornais na atualidade permitirem a alguns jornalistas renomados a liberdade de serem

55

Como já dito, tratamos aqui do posicionamento da Folha de S. Paulo no final da ditadura e, para isso,

adotamos a percepção de Arbex jr. de que esta era uma estratégia de sobrevivência e fortalecimento diante do

iminente processo de democratização, já ‘anunciado’ pelos novos pactos firmados na burguesia brasileira. Não

ignoramos, portanto, que na maior parte do tempo o jornal apoiou o regime. 56

Estamos aqui nos referindo aos jornais, revistas ou outros veículos que podemos considerar como de

informação geral. Mas é preciso reconhecer a existência de jornais dirigidos muito diretamente ao grande

empresariado da classe dominante, em que, claramente, a burguesia dialoga com ela mesma. No Brasil, essa foi a

função, por exemplo, da Gazeta Mercantil, hoje desempenhada pelo jornal Valor Econômico, que tem matérias

sobre diversos temas e editoriais que poderiam ser considerados ‘gerais’, mas não se estrutura como um jornal de

massa.

149

subjetivos, de usarem um estilo solto e pessoal, de romperem com o clichê linguístico

particular daqueles órgãos não muda em nada o caráter genérico da imprensa” (1986, p. 38).

Assim, por mais que não se possa negar a maior simpatia por um ou outro articulista, o

maior conforto com uma ou outra disposição visual e, claro, a procura pela maior cobertura de

notícias da região em que vive o leitor, essa ideia afetiva de ‘vínculo’, que apresenta o jornal

como um ‘vizinho’ amigo, é falaciosa e sob nenhuma hipótese explica a forma como se

organizam os editoriais e páginas de opinião. Num (raro) momento em que esteja em jogo

uma votação no Congresso que pode beneficiar a indústria às custas do agronegócio, pode-se

encontrar editoriais que defendam uma ou outra posição nos diferentes jornais. Mas em

situações muito mais comuns, que alimentam o dia a dia do conhecimento cotidiano

produzido pelo jornal, os jornais burgueses guardam uma semelhança assombrosa. Pegue-se

como exemplo os três grandes jornais brasileiros de informação geral: em ocupações de terra,

sintomaticamente chamadas de invasão pela imprensa, os editoriais ou qualquer outro espaço

de posição institucional vão sempre se colocar ao lado do latifundiário, contra os movimentos

de trabalhadores sem-terra; em situações de greves de trabalhadores privados, vão sempre se

colocar ao lado da indústria, e assim por diante.

Com isso queremos dizer apenas que o espectro de posição do jornal sobre os fatos de

um cotidiano regulado pelas relações capitalistas é absolutamente restrito. A identidade de

classe da grande imprensa — que é o que está oculto no debate de todos os materiais que

temos analisado aqui — já determina, a priori, um conjunto de princípios e valores

estruturantes, que orientam a maior parte das opiniões sobre quase todos os assuntos. Seja no

caso da ocupação de terra, seja na greve urbana, que são fatos distintos, muito provavelmente

apresentados no jornal como notícias diferentes, o que está em jogo, estruturalmente, é o

direito à propriedade e a relação capital-trabalho, temas sobre os quais não há – e nem pode

haver – divergência. Na unânime condenação feita pelos editoriais desses jornais às

manifestações de rua que aconteceram no Brasil a partir de junho de 2013, tendo como

argumento o repúdio à violência, está em questão a garantia dos instrumentos e instituições

(limitadas e limitantes) da democracia burguesa, ainda que apelando a um incremento da

coerção. Portanto, além das questões menores de estilo, que muito pouco impactam a opinião

de um jornal a ponto de gerar ou quebrar algum tipo de “vínculo”, sobram como linha de

corte apenas os enfrentamentos explícitos de interesses intraclasse dominante. O que, em

outras palavras, quer dizer, que, nos momentos de crise de hegemonia e ascenso de

movimentos de contestação da ordem, os jornais fazem uníssono em nome da sua classe e, em

150

momentos de hegemonia mais estável — que pressupõe um maior equilíbrio também entre as

frações internas à classe dominante — eles fazem o mesmo uníssono em nome da

naturalização dos princípios e valores que justificam a sua própria existência.

Isso vale no que diz respeito à posição institucional e ao tanto de opinião que, nas

notícias ‘objetivas’, também expressam a visão do jornal. Mas essa ‘homogeneidade’ é

também estruturalmente reforçada pelo processo de massificação que caracteriza o jornal

contemporâneo e que essa ideia romântica de construção de vínculos simplesmente ignora.

Por mais inserção geográfica que um jornal tenha — Folha e Estadão em São Paulo, O Globo

no Rio de Janeiro —, eles não apenas têm alcance nacional como são organizados para

atender a um público massivo — a partir de um processo interno de trabalho, de uma

concepção de notícia e da dependência de instrumentos como as agências de notícias —, sem

outros particularismos além do de classe. Essa imagem promovida pelos manuais aqui

comentados, portanto, ignora que o vínculo ‘comunitário’ e a identidade de visão de mundo

era filha do debate político aberto que foi soterrado pelo jornalismo informativo de massa,

filho este do capitalismo consolidado.

Por fim, vale ainda comentar a organização do espaço de opinião que vai além do

editorial. E aqui o exemplo da Folha de S. Paulo também é providencial. Citando o mesmo

documento de 1981, ‘A Folha e alguns passos que é preciso dar’, Arbex destaca como naquele

momento a orientação era “contrabalançar” a alta politização que teria marcado a redação do

jornal nos anos 70 com uma maior ênfase “na parte técnico-jornalística” (2003, p. 142-143).

Mas, numa atitude aparentemente contraditória, o jornal tomava iniciativas como a de abrir o

seu conselho editorial à participação da chamada “sociedade civil” (2003, p. 143). Ele

comenta: “Muitos jornalistas que trabalhavam na FSP e apoiavam com entusiasmo a postura

política do jornal desiludiram-se ao constatar o óbvio: a Folha jamais deixou de ser uma

empresa capitalista. Aliás, a direção do jornal não ocultava esse fato (...)” (Arbex Jr., 2003, p.

143).

O que talvez esses jornalistas e os leitores que muitos anos depois se decepcionaram

com a referência feita pelo jornal à “ditabranda”57

não saibam é que, obviamente adequada à

realidade brasileira, essa aparente metamorfose da Folha seguia um padrão perfeitamente

reconhecível das instituições ideológicas da classe dominante. Numa passagem magistral, que

cai como uma luva para clarear não só o exemplo mas todo o fenômeno de que estamos

57 Trata-se de um editorial publicado em 17 de fevereiro de 2009 em que a Folha de S. Paulo amenizou a

violência da ditadura brasileira se referindo a ela como “ditabranda”. O texto provocou muitas reações de

indignação e levou o jornal a admitir que errou no uso do termo. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm .

151

tratando, Mészaros explica que, no capitalismo, os “intervalos totalitários” — como foi a

ditadura no Brasil — servem para reassentar o consenso que precisa parecer democrático mas

não pode ultrapassar determinados limites. Diz ele:

A principal função do intervalo totalitário é reconstituir a estrutura geral do

metabolismo social capitalista e, assim, preparar o terreno para um retorno

do modo pluralista de legitimação político-ideológica. Por isso, logo após o

interlúdio totalitário, os representantes da ideologia dominante procuram se

dissociar com estardalhaço do “estado de emergência” historicamente

recém-superado, que muitos deles ajudaram a instituir ativamente. Tal

mudança de atitude não deve ser considerada uma simples acomodação

pessoal oportunista às novas circunstâncias, por mais forte que possa ter sido

essa motivação em alguns casos bastante conhecidos. Antes de tudo, o ponto

é a pressão exercida pela pluralidade dos capitais no que dizia respeito a suas

exigências objetivas de funcionamento (Mészaros, 2007, p. 244).

Portanto, para ficarmos apenas no exemplo que vínhamos acompanhando, qualquer

semelhança com o duplo movimento em que, depois de apoiar a maior parte da ditadura, a

Folha passou a apresentar-se publicamente contra o regime e, na sequência da

democratização, assentou-se numa posição tecnicamente apartidária e pluralista, não é mera

coincidência.

Mészaros aborda a questão do pluralismo como uma estratégia que vai muito além do

aspecto específico — de distribuição de opiniões, vozes e visões de mundo de segmentos

sociais no interior do jornal — de que estamos tratando aqui. Mas, nesse caso, a abrangência

da análise não compromete em nada a particularidade do fenômeno que estamos enfocando.

Assim, o autor destaca o “pluralismo” como uma estratégia da classe dominante para

sustentar um consenso democrático, que, no entanto, precisa que se exclua “radicalmente a

legitimidade de uma contestação feita do ponto de vista da classe hegemônica alternativa e

estruturalmente subordinada” (Mészaros, 2007, p. 243). No aspecto social mais amplo,

quando ultrapassa esses limites, abre-se a porta para o tal “intervalo totalitário” que acabamos

de mencionar.

Mas, no seu ‘funcionamento’ regular, seus limites estruturais estão ocultos e, em geral,

passam despercebidos. Como explica Mészaros: “É claro que, nos fundamentos materiais

capitalistas, esse pluralismo não pode ir muito longe, pois seus parâmetros absolutos são

estabelecidos pelo pressuposto das bases materiais e institucionais da vida social capitalista

como tal, para as quais não pode existir alternativa” (2007, p. 244). A ocultação aqui é o

complemento da naturalização de um determinado modo de vida que, sem que se perceba,

impõe os limites aceitáveis do pluralismo em todas as esferas da sociedade capitalista — e o

jornalismo não escapa a isso. É contando com essa naturalização ideologicamente construída

152

que, apesar de prometer um conhecimento objetivo e o mais imparcial possível sobre a

realidade cotidiana, depois de se autoatribuir um “jornalismo crítico, apartidário e pluralista”,

o Projeto Folha pôde afirmar, sem contradições, que “do ponto de vista político, sustenta a

democracia representativa, a economia de mercado, os direitos do homem e o debate dos

problemas sociais colocados pelo subdesenvolvimento”, como se esses princípios fossem de

fato universais, objetivos e neutros. Da mesma forma, as Organizações Globo podem dizer

claramente, nos seus princípios editoriais divulgados em 2011, que:

O Grupo Globo será sempre independente, apartidário, laico e praticará um

jornalismo que busque a isenção, a correção e a agilidade, como estabelecido

aqui de forma minuciosa. Não será, portanto, nem a favor nem contra

governos, igrejas, clubes, grupos econômicos, partidos. Mas defenderá

intransigentemente o respeito a valores sem os quais uma sociedade não

pode se desenvolver plenamente: a democracia, as liberdades individuais, a

livre iniciativa, os direitos humanos, a república, o avanço da ciência e a

preservação da natureza.

Para os propósitos deste documento, não cabe defender a importância de

cada um desses valores; ela é evidente por si só. O que se quer é frisar que

todas as ações que possam ameaçá-los devem merecer atenção especial,

devem ter uma cobertura capaz de jogar luz sobre elas. Não haverá, contudo,

apriorismos. Essas ações devem ser retratadas com espírito isento e

pluralista, acolhendo-se amplamente o contraditório, de acordo com os

princípios aqui descritos, de modo a que o público possa concluir se há ou

não riscos e como se posicionar diante deles (Grupo Globo, 2011, grifos

nossos).

Mészaros mais uma vez nos socorre: “(...) desde que os termos de referência deste

pluralismo sejam estabelecidos pelos pressupostos não-contestáveis e pelos imperativos

‘constitucionais’ apriorísticos da própria ordem social prevalecente, o caráter de classe do

pluralismo nunca é realmente questionado pelas forças de oposição institucionalizadas”

(2007, p. 244).

No mais, vale apenas destacar nesse impulso pluralista que virou regra o mesmo esforço

extemporâneo de tentar atualizar o vínculo quase afetivo com um leitor que se tornou massa,

de modo que essas regras do jornalismo burguês tentam ressuscitar a esfera pública

habermasiana que, como vimos, correspondeu a um momento histórico particular, e, o que é

pior, agora transferida para as páginas do jornal que, viabilizando um debate racional a partir

da confrontação de diferentes visões e versões, subsidiaria as opiniões individuais e levaria à

formação de uma opinião pública.

Mas, no modelo do jornalismo informativo expresso no material da SIP, esse pluralismo

convive com a pretensão de uma certa ‘coerência’ necessária para que se criem os vínculos

que, como já comentamos, dariam ao jornal-empresa alguma feição ‘comunitária’, ainda que

153

não no sentido geográfico do termo. Como é próprio de equações não solucionadas, a

demanda por ‘coerência editorial’ aparece de forma confusa e mesmo contraditória. Para se

ter uma ideia, no ‘Valores periodisticos’, por exemplo, ora ela aparece como um atributo do

modelo europeu de jornalismo, que não seria adequado para o público norte-americano, ora

como aquilo que os leitores (em geral) esperam do seu jornal. No primeiro caso, aponta-se um

problema prático e que parece contrariar a concepção de jornalismo expressa na publicação:

É bem difícil sob a disciplina da modéstia da opinião permitir aos escritores

flexibilidade e ao mesmo tempo produzir um jornal com certo sentido de

coerência. Isso seria praticamente impossível se os repórteres tivessem

liberdade de emitir juízos definitivos. Para que os juízos que aparecem no

jornal sejam coerentes, os diretores e editores teriam que impor um ponto de

vista político, nota por nota ou, ao contrário, teriam que escolher unicamente

aqueles repórteres cujos pontos de vista coincidissem basicamente com as

posições editoriais do jornal. O resultado seria uma publicação coerente,

segundo o modelo da imprensa europeia, mas não um jornal que reflita uma

comunidade geográfica ampla, como o público dos Estados Unidos espera

dos seus jornais (Fuller, 1996, p. 40).

Já no segundo momento, o mesmo texto que apontou a dificuldade acima e, como

vimos, advogou o imperativo da pluralidade como parte do modelo da liberdade de expressão,

cobra um grau de coerência que alinhava, inclusive, os espaços de informação e opinião. Vale

a longa citação:

Como vimos, para ter êxito, um jornal deve ter caráter, personalidade. Na

página editorial, deve apresentar um conjunto de opiniões coerentes a

respeito das políticas públicas e outros assuntos importantes. Nas páginas de

notícias, deve colocar os fatos dentro de um marco analítico que ajude os

leitores a encontrar-lhes sentido. Isso significa permitir conscientemente uma

quantidade módica de opinião nos informes noticiosos.

A análise que se faz num jornal deve formar uma visão aproximadamente

coerente do mundo. Não quero dizer uma visão partidária nem rigidamente

ideológica. Mas se um dia os leitores encontram uma análise das notícias na

primeira página do periódico onde se sugere que a intervenção militar dos

Estados Unidos na Fredonia seria fútil e no dia seguinte a encontram dizendo

que é indispensável, talvez não possam compreender no que o jornal quer

que os leitores acreditem. Um jornal não deve ser um duelo. Ainda que as

análises que os repórteres fazem nas colunas de notícias não tenham que

proceder como um uníssono, deve existir alguma direção. Os diretores

devem harmonizar o coro de vozes que da forma aos informes diários do

jornal (Fuller, 1996, p. 7, grifos nossos).

Como se pode perceber, uma vez esquadrinhadas — portanto retiradas da confortável

posição de caixa de ferramentas profissional — e pensadas a partir da referência a um

modelo, as técnicas que definem a prática do jornalismo informativo tornam-se muito menos

automáticas e expõem ambiguidades que, no detalhe, apenas denunciam um conjunto de

154

ocultações, nublamentos, naturalizações e falsas oposições que, como mecanismos

ideológicos que são, elas necessariamente contêm.

3.1.4. Objetividade, neutralidade e imparcialidade

Na medida em que carrega a objetividade como marca autopropagada do conhecimento

que produz, o jornalismo enfrenta um conjunto de questionamentos muito semelhantes aos

que mobilizam as ciências sociais desde o seu nascimento. E, como era de se esperar, essa

promessa, que é ao mesmo tempo uma tensão e um credo jornalístico, está presente em todos

os materiais que analisamos neste capítulo. No próximo tópico abordaremos a forma como os

textos traduzem essa questão em orientações práticas, técnicas e éticas, para o trabalho

jornalístico. Mas começaremos essa discussão nos concentrando na publicação ‘Valores

periodisticos’ que, diferentemente das demais, tenta vincular a análise do trabalho jornalístico

ao que poderíamos chamar de um debate pretensamente mais filosófico em torno da questão

da objetividade possível.

Objetividade aqui é pensada como a condição para se garantir ao conhecimento

jornalístico o maior compromisso possível com a verdade. Numa mistura de referências que

concede verniz intelectual ao discurso do senso comum que caracteriza o jornalismo, a

abordagem tem de tudo um pouco: declaradamente, menções desqualificadoras a Platão, Marx

e Hegel, adesão ao pensamento de Karl Popper e críticas ao ceticismo relativista de correntes

como o multiculturalismo; sem que se nomeie, é fácil identificar ainda traços da sociologia

compreensiva de Weber e a raiz de uma influência pós-moderna na forma de se conceber a

objetividade no jornalismo.

A base dessa miscelânea filosófica é a discussão de um conceito de verdade que

diferenciaria as “sociedades livres” das “sociedades fechadas” e que teria como base o

pensamento de Karl Popper. As “sociedades fechadas” seriam marcadas pela ideia de uma

“verdade absoluta” que aparece associada ao Estado e justificada ou por uma “doutrina

utópica da instabilidade”, que se manifestaria tanto no fundamentalismo religioso quanto no

pensamento de Hegel e Marx, ou pelo “mito da perfeição corrompida pela decadência

histórica”, que se expressaria, por exemplo, na ‘República’ de Platão. O que há em comum

nessas referências pouco aprofundadas é a defesa de que, nesses casos, “a verdade encontra

sua fonte de legitimidade por fora do debate político e não pode ser alterada por ele”, o que

faz com que, em uma “sociedade fechada”, o objetivo dos meios de expressão passe a ser

“persuadir as pessoas sobre uma verdade pré-determinada” (Fuller, 1996, p. 3).

155

Sobre Hegel e Marx, referidos no texto num trecho entre parênteses, não se encontra

mais nenhuma palavra em todo o material, embora a relativização da objetividade como

existência das coisas independentemente do sujeito e a negação da possibilidade de se

conhecer a realidade na sua totalidade deem os sinais da discórdia anunciada. Platão merece

um espaço maior e chega a ser referido como um exemplo dos “filósofos hostis à liberdade de

expressão” (Fuller, 1996, p. 4).

Numa comparação em que a particularidade histórica da democracia burguesa é tomada

como referencial universal assim transportada para a Grécia Antiga, o texto destaca que a

“profunda desconfiança que Platão sentia pela democracia (...) e pelo individualismo (que

iguala ao egoísmo) se deriva diretamente da sua falta de respeito pelas pessoas de quase todas

as classes e tipos” (Fuller, 1996, p. 4). E isso se manifestaria de forma muito clara no

conhecido ‘Mito da Caverna’ que, ao atribuir ao filósofo o poder de ver a luz, representaria

um “mito da arrogância intelectual”. Na sequência, o autor volta para a contemporaneidade

contando casos em que, a partir dos mesmos mecanismos ideológicos, os Estados Unidos são

tomados como o exemplo universal da liberdade e o estalinismo como a universalidade do

socialismo (1996, p. 5).

O ponto comum é que, no elitismo platônico tanto quanto no ‘autoritarismo socialista’,

estariam presentes uma ideia de verdade absoluta. Trata-se, segundo o autor, de uma

concepção que “nega o testemunho dos nossos próprios sentidos, as ambiguidades da

interação humana que desafiam a predição geral e nos deixam com o reconhecimento

inquietante de que a verdade é algo que somente podemos criar de forma provisional, um dia

de cada vez” (Fuller, 1996, p. 6). As sociedades livres, ao contrário, seriam regidas pelo que

ele chama de “sistema da livre expressão”, que aposta na “discussão” e não na “explicação da

verdade autoritária” como caminho para um futuro que é necessariamente (e positivamente)

incerto.

E assim se afirma uma concepção de verdade que não seja nem “absoluta”, como

desejam os autoritários e arrogantes, nem impossível de ser alcançada, como creem os

“céticos radicais” (Fuller, 1996, p. 8). Ancorado num suposto “método científico”, que depois

se entende tratar-se da abordagem específica de Karl Popper, o autor defende que vale

também para o jornalismo a compreensão de que qualquer hipótese (uma suposição de

verdade) é sempre apenas uma tentativa e de que, para ser reconhecido como científico (ou

verdadeiro, poderíamos substituir), um conhecimento precisa ser confrontado com evidências

disponíveis aos sentidos. Em resumo, o conhecimento seria sempre produzido a partir de

156

verdades provisórias. “A falta de certeza não inibe esse processo nem nos impede de atuar”

(1996, p. 9), garante o texto.

Uma verdade sempre incerta e provisória, derivada de um processo incessante de

construção e desconstrução por um debate que nunca pode fechar um sentido completo; uma

verdade cujo caráter mutante não é associado ao movimento histórico da realidade concreta e

dos homens, mas sim a um relativismo de base individualista: esse parece ser o fundamento

do sistema da livre expressão que deve viger nas sociedades livres e que, portanto, deve reger

também o conhecimento produzido pelo jornalismo como ferramenta de todo esse arsenal de

liberdade. “A liberdade de expressão, como parte dessa estrutura, cria uma poderosa fonte de

poder contra a coação do Estado. É um poder descentralizado, que dificulta o controle por

parte das autoridades e que pretende assegurar nada menos do que que o povo sempre possa

ter a sua voz” (1996, p. 11).

Como se vê, o foco de toda essa argumentação são os governos e a negação

intransigente de qualquer tipo de regulação ou controle estatal sobre os cavaleiros da

liberdade representados pela imprensa, mas, no que interessa ao tema que estamos discutindo

neste tópico, ela deixa transparecer uma concepção epistemológica que, apesar da miscelânea

própria de um discurso que tem muito do senso comum, denuncia algumas de suas origens.

Assim, seguindo a referência anunciada pelo próprio texto, talvez possamos reconhecer aqui a

ideia de “objetividade institucional”, desenvolvida por Popper para dar conta da questão da

objetividade possível do conhecimento sobre a sociedade, que desafia as ciências sociais

desde o seu nascimento. Apesar de não estar explicitada no trabalho que aqui analisamos, essa

concepção parece pairar também — ainda que da forma desconexa própria a uma abordagem

que mistura referências múltiplas — sobre o lugar que se busca para a imprensa burguesa e o

papel que se atribui ao jornalismo objetivo na busca da verdade sobre a realidade social

cotidiana. Vejamos como se concebe esse caminho primeiro na ciência.

Popper pode ser considerado ainda herdeiro do pensamento positivista na medida em

que tenta igualar as condições das ciências sociais e naturais, embora no sentido contrário ao

dos seus principais predecessores, já que sua alegação é de que também na natureza a

objetividade científica não é possível se for pensada no nível individual. Para o autor, esse

problema se resolve pelo caráter público institucional da ciência, que, ancorado na “liberdade

de crítica” e na “existência de uma linguagem comum”, conseguiria neutralizar as

“futilidades” e os pontos de vista “ideológicos”, impedindo, assim, que se comprometesse a

objetividade do conhecimento (Löwy, 2009, p. 61). Em suas palavras:

157

Para resumir estas considerações, poderia se dizer que o que designamos por

objetividade científica não é um produto da imparcialidade do sábio

individual, mas um produto do caráter social ou público do método

científico; e a imparcialidade do sábio individual é, na medida em que ela

existe, não a fonte, mas antes o resultado desta objetividade social ou

institucionalmente organizada (Popper, 1974, p. 227).

Pelo material analisado, parece fácil deduzir o caminho da analogia entre essa

concepção e o debate da objetividade jornalística que nos parece embutida no texto. Assim,

admite-se como objetivo o conhecimento do jornalismo informativo na medida em que ele é

produzido por instituições — privadas, portanto livres dos interesses particulares dos

governos —, e diariamente exposto ao julgamento do público, num processo em que qualquer

possível desacerto se corrigiria no próprio movimento de acesso a esse conhecimento que, por

natureza, está sempre submetido ao crivo do debate e confrontado com as versões produzidas

por outras instituições (veículos de imprensa). A garantia da objetividade se dá, portanto, não

pela comprovação da correspondência com a realidade ‘em si’ mas pela maior ou menor

harmonia das versões. E, para isso, o elemento de identidade e comparabilidade, que em

Popper aparece como referência a uma “linguagem comum”, aqui facilmente poderia ser

associado ao modelo do jornalismo informativo, que, ao hierarquizar o que é relevante e

padronizar sua forma de apresentação e leitura, reforçaria o caráter público do conhecimento

por ele produzido.

Parece claro que esse caminho tem problemas de diversas ordens e vários deles vêm

sendo comentados ao longo de todo este estudo. Por ora, a crítica que Löwy faz a Popper,

identificando no viés positivista a origem do erro do seu pensamento, parece suficiente para o

que, no nosso tema, estamos tentando realçar. Diz ele:

O gênero da “verdade objetiva” que resulta de uma instituição depende em

ampla medida das forças econômicas, sociais ou políticas que a controlam

ou financiam. Este controle pode ser exercido de forma arbitrária e brutal

(como nos países totalitários) ou “legal” e “constitucional” (como o

Berufsverbot na Alemanha Ocidental); pode ser também indireto e

mediatizado (pela pressão dos financiadores, por exemplo). Em todo caso, as

instituições de pesquisa social, da mesma forma que os pesquisadores

individuais, não escapam aos múltiplos condicionamentos sociais — mesmo

que seja possível reconhecer nelas uma certa margem de autonomia (Löwy,

2009, p. 63).

Aceitando, portanto, a provocação de Fuller que, no seu ‘Valores periodisticos’, propõe

adotar o “método científico” de Popper para o jornalismo, adotamos, igualmente, o alerta de

Löwy sobre as determinações econômicas objetivas que, talvez até mais do que sobre as

instituições de pesquisa, atuam fortemente sobre os conglomerados empresariais de mídia.

158

Assim, parodiando Löwy na crítica a Popper, diríamos que “contraditoriamente ao que pensa”

Fuller (ou ao que quer fazer pensar a SIP), “a crítica e o debate não abolem (...) o caráter

irredutível das oposições de classe” e de suas expressões nas diversas formas de

conhecimento (2009, p. 66)58

.

Embora não mencionada, há pelo menos outra referência identificável na forma como o

texto editado pela SIP concebe (teoricamente, se é que assim podemos chamar) a verdade e a

objetividade no jornalismo. É impossível não reconhecer em tamanha relativização

pragmática da concepção de verdade as marcas do pensamento pós-moderno ainda que, como

é próprio de uma argumentação com referências ecléticas, em outro ponto o texto critique

veementemente o ceticismo de algumas correntes do pensamento — entre as quais ele destaca

o multiculturalismo — que defendem o abandono da busca pela verdade e negam qualquer

objetividade na hierarquização de valores. Num texto em que apresenta o que seria a “agenda

pós-moderna”, Ellen Wood mostra as semelhanças: “(...) no mínimo, o pós-modernismo

implica uma rejeição categórica do conhecimento ‘totalizante’ e de valores ‘universalistas’ —

incluindo as concepções ocidentais de ‘racionalidade’, ideias gerais de igualdade (sejam elas

liberais ou socialistas) e a concepção marxista de emancipação humana geral. Ao invés disso,

os pós-modernistas enfatizam a ‘diferença’ (...)” (1999, p. 12). E, destacando a “ênfase na

natureza fragmentada do mundo e do conhecimento humano” que marca esse pensamento, ela

aponta as consequências práticas:

As implicações políticas de tudo isso são bem claras: o self humano é tão

fluido e fragmentado (o “sujeito descentrado”) e nossas identidades, tão

variáveis, incertas e frágeis que não pode haver base para solidariedade e

ação coletiva fundamentadas em uma “identidade” social comum (uma

classe), em uma experiência comum, em interesses comuns.

Mesmo em suas manifestações menos extremas o pós-modernismo insiste na

impossibilidade de qualquer política libertadora baseada em algum tipo de

conhecimento ou visão “totalizantes”. Até mesmo uma política

anticapitalista é por demais “totalizante” ou “universalista” (Wood, 1999, p.

13).

Dado esse primeiro panorama, entremos nas partes do texto em que se fala mais

diretamente da questão da objetividade no jornalismo. Assim, um registro importante é o

processo de classificação feito pelo ‘Valores periodisticos’ ao longo de todos os trechos em

que trata desse tema. Primeiro, ele propõe que se compreenda a própria objetividade a partir

de dois diferentes recortes — sua “essência” e seu “estilo de expressão” —, o que, depois de

58

A frase original de Löwy é: “Mas a crítica e o debate não abolem, contrariamente ao que pensa Popper, o

caráter irredutível das oposições de classe e de suas expressões axiológicas e/ou utópicas nas ciências sociais”.

159

todo o esforço de complexificar o debate intelectual, acaba reservando um espaço para a cota

pragmática de objetividade da qual, na prática, o jornalismo continua se alimentando. Assim,

como “disciplina”, a objetividade seria uma meta inalcançável; mas como “estilo de expressão

marcado por uma enunciação dos fatos sem afetações”, ela poderia ter “uma força

considerável” (Fuller, 1996, p. 17).

Depois, o texto estabelece uma outra classificação. De modo geral, objetividade é

tratada a partir da relação sujeito/objeto. E, na medida em que, numa nova concessão pós-

moderna, o autor afirma que qualquer processo de observação altera o movimento do que é

observado, essa objetividade como uma existência das coisas (e dos fatos) de forma

independente do sujeito passa a ser considerada uma ilusão. Diante disso, o texto apresenta

um segundo modelo da relação sujeito/objeto comum especificamente no jornalismo, que ele

chama de “abordagem do adversário”. Trata-se, segundo o autor descreve criticamente, de um

fenômeno mais restrito a uma posição que os jornalistas optam por ocupar em relação aos

governos, estabelecendo uma relação de confrontação com as autoridades e funcionários

públicos. No texto, nenhum desses dois caminhos é considerado um bom roteiro para que os

jornalistas cumpram o seu “dever para com a verdade” (Fuller, 1996, p. 30).

Já a neutralidade poderia ser considerada um “padrão geral” de disciplina que aponta o

comportamento desejável por parte do jornalista, que se resume ao compromisso com a

imparcialidade e com uma atuação não premida por medos nem favoritismos (1996, p. 30).

Trata-se, segundo o livro, de uma conduta importante, mas que, na sua perfeição, é tão

inalcançável quanto indesejável, já que, como vimos em outro momento deste texto, o autor

acredita que o leitor espera que o jornal faça por ele uma parte do trabalho de interpretação

dos fatos complexos da vida (1996, p. 33).

O que mais nos interessa nessa discussão é que o meio de caminho apontado para todas

essas pretensões traz indícios importantes sobre a forma como o tema é abordado. Primeiro,

porque trata o problema da imparcialidade no varejo, limitando-o à subjetividade (individual,

intencional ou não) do jornalista. E, segundo, porque estabelece uma linha de corte abstrata,

ancorada no esforço pessoal, que, curiosamente, tem como única expressão objetiva o

“partidarismo ideológico”. Usando uma analogia jurídica fiel à crença na igualdade política

burguesa, o autor defende que o limite da neutralidade como compromisso com a verdade está

em o jornalista atuar como juiz e não como advogado, o que significa emitir juízos racionais

de valor, mas sem tendências particularistas. Vejamos os termos da metáfora:

[os juízes] Utilizam sua experiência — como seres humanos e como

advogados — para tratar de emitir juízos que tenham alguma coerência

160

lógica com outras falhas que tenham emitido. Mas não deixam que o

partidarismo nem a ideologia (que se poderia considerar um extremo da

coerência) os impeça de ver a exceção que poderia pôr em xeque a estrutura

que ajudaram a criar. E quando escrevem, não temem emitir juízos sobre o

peso da evidência e da lógica (Fuller, 1996, p. 33).

Essa postura de juiz pressupõe um conjunto de “virtudes” pessoais que o livro condensa

no conceito de “honestidade intelectual”, que “vincula a disciplina da verdade no jornalismo

aos mais elevados padrões do debate científico e acadêmico” (1996, p. 34). E essa

“honestidade intelectual”59

deve vir acompanhada de uma “regra de ouro” que, como “método

subjetivo para determinar a direção moral do próprio comportamento”, orienta, simplesmente,

que se trate os outros como se gostaria de ser tratado, o que poderia perfeitamente ser

resumido na versão interpretativa do famoso ‘ouvir os dois lados’.

Essa, como muitas proposições morais, estabelece uma aspiração

extraordinariamente elevada. Se alguém crê profundamente na sua própria

posição, será muito difícil para ele expressar o ponto de vista contrário com

o mesmo entusiasmo e com a mesma força. Mas a regra de outro é um

corretivo, indica a direção correta e, com disciplina, não é demais esperar

que os repórteres (livres dos requisitos impossíveis da objetividade e do

requisito não funcional da expressão neutra) joguem limpo com os

argumentos dos demais, expressando-os honestamente e apresentando os

fatos e a lógica que os sustentam. A regra de outro é uma meta perfeccionista

até a qual devemos ir dando tropeços da nossa forma humana e imperfeita

(Fuller, 1996, p. 35).

Aqui unem-se, finalmente, todas as referências que se misturam na abordagem da

publicação sobre esse tema. Primeiro, com a relativização pós-moderna do mundo objetivo

como incapaz de existir de forma independente do sujeito, a verdade se limita a uma

contraposição de argumentos, em que se abre mão de qualquer aproximação com a dimensão

possível do ‘em si’ dos fatos imediatos em nome da soma de diferentes interpretações.

Associados, o imperativo da “honestidade intelectual” e a “regra de ouro” apontam tanto para

o equivalente a uma ‘linguagem’ ou procedimentos comuns ao jornalismo — que remetem à

objetividade institucional de Popper —, quanto para a aposta no esforço e na possibilidade de

autocontrole objetivo de um sujeito cuja busca do conhecimento se reconhece como marcada

pela interferência dos valores — o que introduz aqui uma referência nova, que ainda não

comentamos e que será desenvolvida apenas no capítulo seguinte: a sociologia compreensiva

59

A noção de “honestidade intelectual” aparece também no ‘Manual de Estilo’, de Albertos e Suárez, como

requisito do necessário rigor jornalístico, que deve se manifestar tanto no relato informativo quanto nos espaços

de opinião (aqui caracterizado como o “jogo limpo”). É curioso que, depois de darem o conceito de objetividade

como ultrapassado, porque inútil, os autores jogam sobre a ideia de “honestidade intelectual” as mesmas

expectativas: “Essa honestidade — tanto no relato quanto no comentário — é um valor limite que o jornalista

deve perseguir, com a consciência de que jamais chegará a alcançá-lo plenamente” (1996, p. 112).

161

de Weber. De todo modo, o foco na subjetividade individual como ‘o’ ruído que, na imprensa

regida pelo jornalismo informativo — portanto sem partidarismos que levem a qualquer

‘verdade absoluta’ — deve ser superado na busca da objetividade, esconde a discussão

necessária sobre os meios de comunicação como aparelhos privados de hegemonia.

A imparcialidade aparece no texto como um terceiro conceito que, diferente dos outros,

trata mais diretamente da tomada de posição do jornalista em relação às desigualdades

objetivamente reconhecíveis que se encontram na sociedade. Nesse sentido, a discussão sobre

a imparcialidade passa pela avaliação do quanto a ‘verdade’ pode ser submetida ao

mecanismo da equidade quando as diferenças ou desigualdades são objetivamente

reconhecidas. Apresentando o exemplo de um debate político em que alguns participantes

reconhecidamente mais frágeis estão menos equipados do que outros, o texto mostra como

qualquer tipo de “compensação” dessa disparidade por parte do jornalista na sua apuração

comprometeria o seu “dever primário” com a “simples franqueza”. O livro atesta: “Essa é a

razão pela qual equidade é uma palavra inadequada para descrever a disciplina de um

jornalista. O ideal da honestidade intelectual, posto à prova pela regra de outro, oferece um

guia muito mais seguro” (Fuller, 1996, p. 37-38).

É evidente que o que transparece nessas passagens são valores que ultrapassam em

muito a esfera do jornalismo, colocando em questão a concepção de igualdade burguesa. Mas,

embora aqui fique mais transparente, isso não é privilégio de passagens pouco sofisticadas

como essa, já que temos suposto que todo esse conjunto de questões técnicas e éticas que

compõem um modelo de jornalismo é, na verdade, expressão de valores ideologicamente

associados à sociabilidade burguesa. No que diz respeito diretamente aos exemplos do

jornalismo, a abordagem desconsidera exatamente que esse modelo que se apresenta como

técnico é, ele próprio, no campo da informação, fomentador dessas desigualdades objetivas.

Afinal, com uma concepção de notícia baseada num critério de novidade e importância, torna-

se natural, por exemplo, que o assassinato de um morador das áreas nobres das cidades seja

mais notícia e tenha mais destaque do que a corriqueira morte de moradores das periferias.

Com uma rotina de busca de notícia diária a partir de fontes oficiais e familiares, como vimos,

dificilmente se alcança a informação que está ‘escondida’ nos movimentos sociais e grupos

identificados como os mais ‘frágeis’ na estrutura social. Com um processo de trabalho que

tem a velocidade produtivista da informação como valor, não há como evitar que se

privilegiem as informações que já vêm prontas, apuradas e, muitas vezes, redigidas, seja pelas

agências de notícias, seja pelas assessorias de imprensa que representam os interesses de

162

grandes empresas, instituições e personalidades públicas. De modo que não é preciso muito

esforço para perceber o processo de inversão que oculta a iniquidade constitutiva do modelo

de jornalismo informativo, apontando qualquer esforço artificial para superá-la como uma

violação da concepção particular de verdade que ele carrega.

Mas não é só. O caráter relativo da obsessão pela verdade, do compromisso com o

esclarecimento e da não tomada de posição fica também evidente páginas adiante, quando o

autor justifica que, em casos de guerra, os jornais possam, a pedido do governo, omitir

informações como o número de baixas e a movimentação das tropas, não por questões éticas

humanitárias, mas porque essa informação pode “oferecer uma vantagem imediata para o

inimigo no campo de batalha” (Fuller, 1996, p. 16, grifo nosso). A questão, aqui como em

outras muitas passagens e temas, é que não se precisa objetivar o ponto de partida dessa

imparcialidade jornalística porque ele é naturalizado como um interesse comum definido a

partir de critérios ocultos e que vão desde os valores mais fundantes da sociabilidade

burguesa, que valem genericamente para toda a grande imprensa, até os princípios específicos

do capital em cada sociedade particular, como é o caso dos valores da guerra e os interesses

bélicos no contexto dos EUA. Nesse caso, a guerra é o limite mesmo da neutralidade

desejável no jornalismo informativo.

A admissão desse terreno meio nublado de valores e eventos (como a guerra) que

estariam acima da neutralidade requerida a um veículo jornalístico é o que também permite

que o jornal se coloque como ator social na defesa de causas específicas, selecionadas a partir

de “fatores ideológicos e outras fontes de valores fundamentais” (Fuller, 1996, p. 32). Assim,

as “campanhas” (contra a corrupção, contra os trustes etc., nos exemplos apresentados pela

publicação) são tratadas no ‘Valores periodisticos’ como o exemplo mais extremo da não

neutralidade do jornal, ao mesmo tempo em que expressam o seu compromisso social. O livro

admite que esses momentos representam sempre um risco de se “violar a disciplina da

verdade”, mas, mais uma vez, o antídoto passa pelo autocontrole de repórteres e editores que,

mesmo na defesa de causas, devem “evitar uma posição adversativa rígida” (1996, p. 33).

3.1.5. Objetividade, conflitos de interesse e particularismos

Se pudéssemos extrair uma ‘regra geral’ da forma como a questão da objetividade

jornalística é abordada em todo o material analisado, diríamos que, primeiro, associando esse

princípio com a neutralidade/imparcialidade, os textos reconhecem que a objetividade plena é

inalcançável para, logo na sequência, afirmar que, no entanto, ela deve ser buscada ao

163

máximo, em geral às custas principalmente do esforço pessoal do jornalista. A partir daí,

rapidamente os manuais passam a se dedicar ao tratamento ‘prático’ dessa questão, com

indicações de técnicas e recursos que podem ajudar no esforço de controlar a subjetividade.

A ausência de discussão mais aprofundada nos outros textos estudados além do

‘Valores periodisticos’ certamente pode ser explicada pela sua natureza mais explícita de

‘manual’, organizado de forma didática para fornecer orientações técnicas. Mas a forma

‘prática’ como a questão aparece já nos parece indicar um recorte de análise do problema, que

é a naturalização de que o desafio da objetividade está em superar a subjetividade, entendida

como a interferência pessoal do sujeito que produz aquele conhecimento, ou seja, o jornalista.

E aqui, tanto em Mallette (1998, p. 2) quanto em Macaggi (1991, p. 56), a honestidade

(pessoal) aparece como o substituto possível e adequado à objetividade inalcançável.

Portanto, a primeira constatação possível tanto do que é apresentado como orientação

profissional quanto do que simplesmente não é dito — porque parece dispensável — é a

individualização do problema e da solução.

A solução, portanto, é moral e técnica. Controlar os erros involuntários, intensificando a

verificação de informações e a revisão pelos editores e minimizar ao máximo o uso de fontes

anônimas (falas em off) são algumas das orientações (Mallette, 1998, p. 62-69; Macaggi,

1991, p. 57). Também não faltam referências à necessidade de se ouvirem os “dois lados”,

que é um imperativo do jornalismo informativo concebido como tribunal democrático, e de se

atribuírem as informações não óbvias às fontes, num também conhecido processo em que os

jornais ‘lavam as mãos’ sobre o conteúdo declarado mas não devidamente apurado que eles

publicam (Mallette, 1998, p. 64), “(...) como se a atribuição de uma informação a uma fonte

eximisse o jornalista (e/ou o jornal) de responsabilidade sobre essa mesma informação e, mais

ainda, como se esse procedimento fosse isento de intencionalidades” (Moretzsohn, 2007, p.

187). E todos esses procedimentos precisam ser reforçados por posturas honestas por parte

dos profissionais da imprensa — entre as quais Mallette lista, inclusive, a obrigação de ouvir

todas as partes envolvidas no assunto da notícia. Vale destacar, no entanto, que nesse manual,

essas orientações não aparecem organizadas como uma discussão sobre a objetividade da

informação jornalística e sim num capítulo intitulado ‘Credibilidade: fazer com que os leitores

creiam’. Assim, a tradução ‘prática’ do debate sobre a objetividade — talvez em função da

pragmática constatação do seu caráter inalcançável nos termos em que ela aqui é tratada —

acaba se reduzindo ainda mais, limitando-se a um conjunto de procedimentos que visam não

164

garantir a verdade dos fatos, mas convencer o leitor sobre a honestidade do jornal. Vejamos

alguns exemplos de orientações que o texto apresenta sob o subtópico ‘Honestidade’:

(...)

3. Não escreva (nem edite) uma notícia em relação a qual você possa ter

interesse financeiro ou conveniência de qualquer espécie.

4. Não permita que suas atividades pessoais criem a percepção de que tem

interesses no assunto. Por exemplo, se você põe o adesivo de um candidato

político no automóvel, não espere que os outros acreditem que você pode

cobrir temas políticos com neutralidade.

5. Revele qualquer conflito de interesses inevitável à redação. Se seu

cônjuge é ativista de uma organização que você vai cobrir, assegure-se de

que a redação o saiba, para que se possa designar outro repórter se a

organização vai ser notícia. Se o conflito é inevitável e ninguém mais pode

se encarregar disso, é seu dever para com a redação revelar sua relação com

o tema.

6. Não emita opiniões ligeiras na sala de imprensa nem em nenhuma outra

parte. As opiniões impensadas podem dar origem à percepção de que você

não pode ou não quer abordar um tema objetivamente.

7. Nunca, sob nenhuma hipótese, aceite dinheiro nem nada de valor de

pessoas ou organizações que esteja cobrindo ou possa cobrir. Acredite você

ou não que isso o compromete, aceitar presentes ou dinheiro — inclusive

por serviços prestados à parte — o coloca em uma situação de

“empregado”, com dívida de gratidão com a fonte60

.

(...)

9. A política noticiosa deve ser imparcial. Não proteja nem favoreça os que

anunciam no seu jornal nem os membros proeminentes da comunidade, nem

os grupos de pressão nem seus amigos. Evite se autopromover: as notícias

sobre você mesmo ou seu jornal devem ser tratadas como faria com as

outras.

(...)

11. Lembre que sua função é reportar os fatos com imparcialidade. A defesa

pertence à parte editorial. A opinião do repórter não cabe na notícia. (...)

(Mallette, 1998, p. 65-66, grifos nossos).

Sob orientações aparentemente simplistas como essas, se expressa aqui uma importante

compreensão invertida e naturalizada da relação entre o jornalista e o jornal. Embora presente

em vários tópicos, o auge dessa confusão altamente funcional se dá quando se atribui ao

jornalista o dever de não beneficiar os anunciantes cuja relação de compra e venda de espaço

publicitário se dá empresarialmente (inclusive com outro departamento do jornal), relação

essa que é colocada no mesmo nível que aquela que ele mantém com seus amigos pessoais.

60

Apenas a título de curiosidade ‘ética’, vale registrar que o mesmo manual, um pouco antes, fornece a seguinte

orientação ao jornalista: “Faça favores. Quando for o caso, seja útil com as fontes. O clube de natação da

secretaria do tribunal está buscando mais membros? Não faltava mais! Você pode pôr uma nota no jornal. A

filha do vereador precisa de um exemplar do jornal de um mês atrás para o projeto escolar? Por que não? Isso vai

somando” (Mallette, 1998, p. 58). E, mais adiante: “(...) não hesite em pedir a secretária da prefeitura o do

prefeito que lhe chame depois da reunião de vereadores a que você não pôde assistir. Se é demais pedir isso, diga

à secretária que você lhe telefonará em sua casa, mas não muito tarde. Lembre-lhe de que você pôs o anúncio do

seu clube de natação no jornal. Ela lhe deve uma” (Mallette, 1998, p. 59).

165

Da mesma forma, o texto simplesmente passa por cima das mediações que talvez pudessem

explicar por que a prestação de serviços profissionais “à parte”, em alguma transação que se

supõe financeira, impõe ao indivíduo jornalista uma dívida de gratidão e o mesmo não

acontece com as transações empresariais diariamente estabelecidas institucionalmente pelos

jornais. Ou, o que é ainda mais nebuloso: não explica por que a condição (metafórica) de

“empregado” de alguma fonte subordina mais o jornalista do que a condição (real) de

empregado do jornal. Naturaliza-se, por alguma razão desconhecida, que o jornalista

consegue se vacinar contra qualquer pressão do patrão real, embora não se considere o mesmo

sobre os metafóricos patrões de ocasião — o que talvez se explique simplesmente pelo fato de

tratar-se de exercícios de convencimento do leitor, mais do que de compromissos reais.

De todo modo, duas questões saltam aos olhos nessa relação de orientações principistas,

mas também na análise do conjunto do material. Uma é a concepção — desenvolvida de

forma mais ou menos sofisticada em cada manual — de que o jornal, não tem — ou tem num

nível não arriscado — interesses particulares, o que, além de minimizar as relações

econômicas do jornal-empresa, entende que, como conjunto, a instituição jornal neutraliza as

subjetividades das quais ela é composta. Um argumento semelhante, e mais fundamentado, é

apresentado por Fuller, no ‘Valores periodisticos’, quando, num exercício admirável de

inversão entre causa e consequência decorado com verniz histórico, ele positiviza o processo

de transformação das empresas jornalísticas em Sociedades Anônimas (S.A.) como um

movimento que minimizou consideravelmente os particularismos que teriam caracterizado o

jornalismo até então. Vale a longa citação:

Durante as primeiras décadas deste século [20], o ideal da Era Progressista

— um juízo desinteressado pelo bem do público — se apoderou de

importantes figuras do jornalismo. Posteriormente, a formação universitária

dos jornalistas tornou mais comum a ideia de que as notícias eram uma

profissão mais do que um ofício. O número de jornais que atendiam

comunidades individuais começou a diminuir. Os jornais passaram às mãos

de administradores profissionais e sociedades anônimas. Tudo isso levou a

sentir que o jornalismo deveria aspirar a uma norma mais alta de veracidade.

Os diretores dos jornais sempre tinham sustentado que imprimiam a verdade,

toda a verdade e nada mais do que a verdade, mas de repente os jornais

começaram a tomar isso literalmente. Foi um passo importante e saudável

para a qualidade da discussão pública. Mas, até o dia de hoje muitas de suas

implicações seguem sem ser submetidas a um exame adequado (Fuller,

1996, p. 1, grifos nossos).

Mas, embora seja a primeira e mais explícita camada, a concepção de objetividade

possível como tarefa individual não é a única forma como a questão aparece no conjunto dos

textos. Também de forma geral, eles reconhecem uma tensão latente entre interesses

166

‘distintos’, traduzidos como o departamento editorial e o departamento comercial, o que é

uma forma simplista de abordar as contradições entre uma atividade privada (e altamente

lucrativa) que, no entanto, apresenta seu produto como público e fundamental para o bem

comum. E esse talvez seja o ponto em que, em todos os materiais, fica mais evidente, sem

disfarces e sutilezas, a marca política e institucional da Sociedade Interamericana de Imprensa

e dos interesses que ela representa a partir da sua missão principal de defesa da ‘liberdade de

expressão’61

. Vejamos aos poucos.

O perigo dessa relação entre jornalismo e publicidade é reconhecido mas, mais uma vez,

um conjunto de técnicas e procedimentos são listados como ‘dicas’ importantes para não se

perder de vista essa fronteira necessária. O ‘Manual’ de Macaggi resolve rapidamente o

problema com uma pragmática “Regra mágica” que, colocando a ‘velocidade’ no centro do

trabalho jornalístico, naturaliza a regulação pelas leis do mercado. Vejamos a fórmula: “A

redação faz a circulação; a circulação faz a publicidade. A saída na hora faz tudo”, diz. E

explica: “Uma boa redação produz melhores e abundantes notícias; se o jornal oferece

excelente informação, é óbvio que terá maior tiragem; se a quantidade de exemplares que

vende é superior à dos colegas competidores, os interessados em anunciar produtos recorrerão

a esse diário e não a outro quando quiserem promovê-los” (1991, p. 34). Simples assim.

O ‘Valores periodisticos’ evita fórmulas prontas e busca atenuar essa contradição

tratando-a como uma questão de preconceito, principalmente entre os jornalistas. Para isso,

sua primeira constatação é de que o jornal é empresa lucrativa desde o tempo dos barões da

imprensa (final do século XIX), portanto muito antes da época das S.A. “(...) os jornais de

empresas não apenas produzem dinheiro mas também falam dele regularmente. Os antigos

barões da imprensa também ganhavam dinheiro, mas falavam de outras coisas”, compara

(Fuller, 1996, não paginado). O segundo artifício é negar o processo de monopolização das

sociedades anônimas, argumentando que todas as grandes empresas de jornalismo enfrentam

muita concorrência por parte da imprensa local/regional. Daí, o texto parte para um esforço de

compreender e conciliar aquilo que é apresentado como uma simples desconfiança mútua

entre profissionais que têm atribuições (e missões, no caso do jornalista) diferentes. Diz ele:

“Tradicionalmente, os jornalistas estiveram receosos dos negócios porque consideram a si

61

O tratamento dessa questão, desde os prólogos até o conteúdo mais diverso dos manuais, mereceria uma

análise a parte, que ultrapassa os objetivos deste trabalho. Mas vale destacar que são vastos e muito ricos os

argumentos que não só defendem a iniciativa privada como o lugar de expressão da sociedade civil em

contraposição aos governos, que seriam comprometidos apenas com interesses particulares e normalmente

escusos, como os que negam qualquer possibilidade de regulação pública sobre essa atividade. Fuller chega a

defender que nem a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, celebrada sempre como a maior garantia da

liberdade de expressão de que se tem notícia, impõe qualquer tipo de obrigação aos jornais.

167

mesmos como a voz dos que não têm poder. (...) Portanto, é natural que [essas pessoas] se

sintam incomodadas quando ouvem os seus editores falar abertamente e

desavergonhadamente sobre suas metas de custos e vantagens” (Fuller, 1996, não paginado).

Apresentado o problema, o texto traz sua imediata negação: “Muitos repórteres e editores

veem as coisas ao contrário. As vantagens não são a meta; a meta é o benefício social62

(1996, não paginado). E, por fim, chega-se à solução que, na verdade, é o problema lido por

uma outra ótica: “(...) se o propósito social dos jornais é oferecer a informação às pessoas que

precisam dela para tomar suas decisões soberanas, devem ser independentes do governo e dos

demais interesses sobre os quais apresentam seus informes. E para serem independentes,

devem ser financeiramente fortes” (1996, não paginado). Sobre o fato de que, direta ou

indiretamente, todos os seus informes digam respeito aos interesses privados, nem sempre

imediatamente econômicos, que são representados pelos anunciantes que sustentam e tornam

o jornal financeiramente forte, parece não haver questão. E, na sequência, afirma-se

enfaticamente o quanto, na balança da democracia, o risco trazido por qualquer possível

conflito de interesses desse tipo é infinitamente menor do que o que se apresenta como sua

alternativa, ou seja, a imprensa de governo ou mesmo de partido. E esse é o segundo ponto

que merece destaque, como mencionamos parágrafos acima.

Macaggi endossa a mesma marcação de posição: “O certo é que os meios [de

comunicação] são poderosos instrumentos sociais. Em mãos privadas, se sabe como atuam e

servem à sociedade; nas mãos do Estado, dependem dos ditames do governo” (1991, p. 107).

E numa clara defesa da validade universal do jornalismo informativo a partir da sua suposta

objetividade e isenção, ele ilustra o seu argumento com uma citação descontextualizada de um

revolucionário socialista.

A ditadura mais brutal e indisfarçável, o regime social e econômico mais

tolerado, precisam de um jornalismo que responda — ou ao menos consinta

— tipos de governo tão distintos. Isso vale para os projetos políticos de antes

e os de agora, em qualquer latitude geográfica e para além de toda tradição

de liberdade ou das propostas de mudança mais ousadas. Resiste-se

invariavelmente às transformações. Um dos líderes e teóricos mais ilustres

do marxismo chegou a dizer: “Não há nada mais conservador do que um

revolucionário no poder” (Lenin) (Mallette, 1998, p. 107).

O fato é que, estabelecido o princípio que identifica o potencial universalizador da

iniciativa privada contra o necessário particularismo dos governos, vira-se a página e passa-se

62

A meta é aqui concebida como algo maior do que o “primeiro objetivo de um jornal” que, em outra passagem,

o autor, concordando com um empresário da comunicação muito citado ao longo do texto, o coronel

McCormick, afirma ser “obter vantagens (utilidades, em espanhol)”.

168

a discutir os procedimentos técnicos e éticos que podem garantir que essa potencialidade

realmente se efetive. “(...) seja porque a independência requer força financeira ou porque o

êxito comercial é uma das formas de se medir se um jornal está transmitindo sua mensagem, a

questão não é se um jornal deve servir aos interesses do público ou aos interesses financeiros

de seus donos. A questão é como alinhar os dois da melhor forma” (Fuller, 1996, não

paginado). Não nos deteremos nos trechos que tratam desse “como” mas, também aqui, é

digna de nota a relativização da fronteira que até agora parecia separar os interesses

particularistas da missão universal do jornal, como, por exemplo, a constatação de que não se

“viola a disciplina da verdade” simplesmente aceitando sugestões de pautas feitas por

anunciantes, desde que não se prometa uma abordagem favorável. Em resumo: “(...) todos

precisam assumir a responsabilidade de reconciliar os interesses dos acionistas com o

cumprimento rigoroso dos valores noticiosos, porque estes são fundamentais para o êxito

comercial do jornal, e o êxito comercial é fundamental para a vitalidade dos valores

noticiosos” (Fuller, 1996, não paginado).

O embasamento de toda essa argumentação, desde a que promove a desconfiança contra

os governos até a que considera controlável a influência do anunciante, é uma certa concepção

propositalmente fragmentada sobre o que se pode considerar conflito de interesse ou, de modo

mais amplo, particularismo numa sociedade capitalista. Assim, os governos são

genericamente perigosos, mesmo nos países democráticos, porque podem instrumentalizar a

imprensa em nome da corrupção ou da manutenção do próprio poder. E a ausência do dono

direto, ou a separação entre a gerência e a propriedade que é resultado da imprensa

transformada em Sociedade Anônima, evita interferências diretas daquele que poderia usar o

jornal em nome de interesses próprios. Parte-se, portanto, do pressuposto de que os interesses

são sempre individuais e de que a busca da rentabilidade do negócio, que seria o objetivo dos

acionistas, não constitui uma particularidade que se oponha à universalidade representada

por uma imprensa (e um jornalismo) que naturaliza não só a sua condição de empresa

capitalista mas também o seu papel de promotora dos valores burgueses travestidos sob a

ideia de democracia. Naturalmente, mais oculta ainda está qualquer ideia de interesse

associado a uma concepção mais totalizante de uma sociedade dividida em classes.

E isso delimita também um outro aspecto, mais estrutural, do particularismo que a

imprensa e, principalmente, o jornalismo não podem se permitir: o partidarismo, entendido

como a contaminação dessa universalidade pelas ‘verdades únicas’ que caracterizariam os

posicionamentos políticos explícitos. Ou, em outros termos, o que não se pode é voltar ao

169

tempo da imprensa política, motor dos contextos revolucionários, aquela que o jornalismo

informativo e, mais tarde, a monopolização da mídia desejam ter enterrado definitivamente. O

que faz com que, em mais um singelo episódio de inversão, o ‘Manual’ de Mallette, no

capítulo sobre imprensa local, afirme que a prova de que um político não pode ser redator de

um jornal são as experiências dos jornais ‘partidários’ (as aspas são dele), que teriam cada vez

menos leitores e, assim, causariam inclusive “danos àqueles que favorecem” (1998, p. 164). É

essa concepção que permite também que as Organizações Globo, na sua mais nova declaração

de Princípios Editoriais, de 2011, possa recuperar explicitamente a concepção positivista que

separa o conhecimento das lutas sociais para definir assim o jornalismo:

Pratica jornalismo todo veículo cujo propósito central seja conhecer,

produzir conhecimento, informar. O veículo cujo objetivo central seja

convencer, atrair adeptos, defender uma causa, faz propaganda. Um está na

órbita do conhecimento; o outro, da luta político-ideológica. Um jornal de

um partido político, por exemplo, não deixa de ser um jornal, mas não

pratica jornalismo, não como aqui definido: noticia os fatos, analisa-os,

opina, mas sempre por um prisma, sempre com um viés, o viés do partido. E

sempre com um propósito: o de conquistar seguidores. Faz propaganda.

Algo bem diverso de um jornal generalista de informação: este noticia os

fatos, analisa-os, opina, mas com a intenção consciente de não ter um viés,

de tentar traduzir a realidade, no limite das possibilidades, livre de prismas.

Produz conhecimento. O Grupo Globo terá sempre e apenas veículos cujo

propósito seja conhecer, produzir conhecimento, informar (2011, grifos

nossos).

E essa parece ser uma das questões centrais que ligam a discussão da objetividade ao

argumento que, neste trabalho, pressupõe uma coerência histórica entre o modelo de

jornalismo informativo e o processo concreto de consolidação do capitalismo que tem sua

expressão na forma da decadência ideológica. Moretzsohn, por exemplo (e ela não é a única),

criticando outros autores, parece relativizar essa relação quando questiona a associação que,

segundo ela, normalmente se faz entre o critério da objetividade e a penny press, ou, mais

precisamente, aquela imprensa nascida a partir de 1830 com um foco popular e

sensacionalista. Diz ela, referindo-se a um livro de Muhlmann:

Eleger a penny press como referência para a objetividade é

surpreendente, sobretudo pela incongruência que representaria a decisão de

fornecer “informações verdadeiras”, fatos exatos, ‘objetivos’” a um público

ampliado e, por extensão, popular, que historicamente demandava relatos

recheados de mistério e suspense, como se pode verificar pelos folhetins que

floresceram por esse período, e cuja raiz são as histórias de amor e morte que

circulavam na Idade Média. Relatos que não raro eram pura ficção (...)

Tampouco haveria como ignorar as armas utilizadas na ferrenha

disputa entre Pulitzer e Hearst, o “yellow kid” dos comics do New York

170

World a batizar aquele tipo de imprensa (yellow para os americanos, marrom

para nós) (...) (Moretzsohn, 2007, p. 192).

Como vimos no capítulo que abre este trabalho, excetuando-se o que nos parece uma

certa naturalização da ‘demanda’ do público popular, não temos discordância sobre a

caracterização da penny press feita pela autora. Vale lembrar que tampouco afirmamos o

jornal e o jornalismo daquele momento como objetivo em si, mas sim como a origem, o

marco histórico — anterior, portanto, ao capitalismo monopolista, e nisso discordamos da

autora — das mudanças estruturantes que o jornalismo sofreu até consolidar-se num modelo.

Mas esse tema está sendo recuperado aqui para realçar outra diferença, coerente com a

discussão que travamos nesse tópico. Porque nos parece que, como marca do jornalismo

informativo, o “critério da objetividade”, na sua estrutura, é definido menos pela ‘seriedade’

— como contraponto ao sensacionalismo — e pelo compromisso com a ‘verdade’ — que,

apesar de propagandeada, é absolutamente relativizada, como já vimos — do que pela recusa

a uma particularidade específica que, traduzida como o lado da parcialidade que é possível

eliminar, se expressa no jornalismo político, partidário, defensor de causas que não sejam

consideradas universais a partir dos princípios da sociabilidade burguesa. Ou, em outras

palavras, o jornalismo contra-hegemônico, exatamente aquele cujas pistas estamos aqui

tentando encontrar.

3.2. O ‘bom’ jornalismo além da grande imprensa

Não localizamos, entre os materiais produzidos pela SIP, nenhum guia específico para

uma prática que pudéssemos chamar de jornalismo alternativo ou contra-hegemônico, até

porque, como vimos, a entidade defende que as técnicas contidas nas suas publicações são

válidas para o ‘bom jornalismo’ desenvolvido em qualquer veículo e circunstância. Mais do

que o simples reconhecimento de um espaço de atuação, nessa afirmação reside a estrutura do

caráter ideológico que reconhecemos no modelo do jornalismo informativo, na medida em

que ele se apresenta como universalmente ideal, a despeito de quaisquer particularidades além

das meramente jurídicas.

Entre os materiais analisados, no entanto, chama atenção o fato de o ‘Manual para

periodistas’ organizado por Mallette trazer referências e orientações específicas para a

imprensa local e regional, numa abordagem que, no registro do jornalismo informativo, tenta

se aproximar de uma certa concepção de imprensa comunitária. Ao tratar das diferenças

conceituais, históricas e práticas entre a comunicação popular, alternativa e comunitária —

171

que não desenvolveremos aqui —, Cicilia Peluzzo, uma das maiores referências dessa área no

Brasil, alerta para os riscos de instrumentalização que esta última adjetivação carrega e que

pode ajudar a explicar a presença de um conteúdo como esse num manual editado pela SIP:

Na prática, a comunicação comunitária por vezes incorpora conceitos e

reproduz práticas tipicamente da comunicação popular em sua fase original

e, portanto, confunde-se com ela, mas ao mesmo tempo constrói outros

matizes. Por exemplo, às vezes se desconecta de movimentos sociais e

assume feições diversificadas quanto às bandeiras defendidas e mensagens

transmitidas. A grande mídia também incorporou a palavra “comunitário”

para designar algumas de suas produções. Percebe-se, dessa forma, que o

termo é de uso problemático, já que pode se referir a processos diferentes

entre si (Peluzzo, 2008, p. 1, grifos nossos).

O conteúdo está organizado em dois capítulos, um voltado para a “imprensa local” e

outro com orientações para um “jornal regional”, embora não haja explicações específicas

sobre a linha que separa uma e outra. Ambos foram escritos por Stefan Bratkowski, jornalista

polonês, o mesmo que, ocupando o cargo de presidente do sindicato dos jornalistas poloneses,

segundo o prólogo da publicação de autoria de Mallette, solicitou à SIP a organização daquele

manual, voltado para países que estavam entrando na ‘democracia’63

.

Na sua versão local, o jornal seria, segundo o texto, a ferramenta que, nas sociedades

modernas, substituiria as reuniões de pais de família das tribos primitivas, as assembleias das

cidades-estados antigas e os mensageiros do feudalismo, garantindo, assim, que as pessoas de

uma localidade consigam se comunicar para além dos vizinhos mais próximos. Na citação

abaixo, fica claro o que seria o ‘diferencial’ do jornal local:

Um bom jornal local (rádio ou televisão local) (...) dispõe de uma força

misteriosa e mágica que converte as pessoas em uma sociedade. Há algo de

estranho no fato de que umas poucas pessoas se tornam de repente porta-

vozes da opinião pública e todos o aceitam votando mediante o ato de

comprar o jornal.

O segredo é simples: o bom periódico (uma boa rádio local) transmite não só

as declarações e reflexões dos editores. Também — dos leitores, os ouvintes

e os telespectadores.

Cada um primeiro lê e escuta a si mesmo (Bratkowski In: Mallette, 1998,

p. 153).

Mas como se alcança isso? No que diz respeito ao espaço de notícias, as definições e

orientações são genéricas e tão contraditórias quanto na imprensa massiva. Encontros,

reuniões e cerimônias locais aparecem como exemplos de eventos que devem ser

63

Não conseguimos mais detalhes sobre a biografia de Bratkowski, em função, principalmente, da barreira da

língua em que se encontra a maior parte do material sobre ele disponível na internet. Mas o crédito de um artigo

seu de 1982 no jornal El Pais informa que ele foi membro do Partido Comunista da Polônia até a sua expulsão,

em 1981. E que, naquele ano, ele vivia em Varsóvia, na “semiclandestinidade”.

172

acompanhados pelo jornal, mas com a ressalva de que só viram notícia se alguém disser “algo

interessante, importante, pouco comum”, adotando, portanto, o mesmo caráter do inusitado

que rege a notícia da grande imprensa. Mas, seguindo o mesmo caminho contraditório do

jornalismo massivo, que promete o novo a partir de um cardápio absolutamente rotineiro, o

texto destaca acontecimentos muito simples como temas que precisam virar notícia na

imprensa local: “O filho de quem nasceu. Quem acaba de morrer. Quem se casou com quem.

Quem na escola local teve boas notas, escreveu um texto excelente e quem quebrou uma

perna” (1998, p. 157). Na sequência, acrescenta mais uma pitada de extraordinário: “O jornal

tem que tratar de pessoas interessantes. Das pessoas com as quais tratamos em nossa vida

diária: policiais, vendedoras, enfermeiras e médicos” (Bratkowski In: Mallette, 1998, p. 157).

O importante, segundo o texto, é garantir a voz do leitor no jornal, seja no espaço das

cartas de leitores (no caso da publicação impressa), seja na condição de entrevistado, seja

como fonte da informação a ser noticiada (1998, p. 157). No capítulo sobre a imprensa

regional, há dicas práticas e muito específicas sobre como organizar o jornal para esse fim,

destacando-se, para esse tipo de mídia, a importância das escolas, das bibliotecas e da

religião. Vejamos o texto:

Três ou quatro vezes por semana tem que publicar uma coluna sobre escolas

e para escolas. Apresentar nossos professores e bibliotecários mais

interessantes, nossas escolas e bibliotecas (pesquisas entre os estudantes e

seus pais). Para que eles cheguem a sentir-se importantes e apreciados;

talvez o mais doloroso nesse meio não seja tanto os salários baixos mas a

falta de reconhecimento, de prestígio (Bratkowski In: Mallette, 1998, p.

167).

Da mesma forma, o ‘Manual’ orienta que “a cada três dias” se publique uma coluna

sobre religião. E aqui, o esforço artificial mercadológico para se aproximar do leitor atinge

níveis inimagináveis.

(...) essa seção tem que ser dirigida por um cristão nobre, convencido de que

o Concílio Vaticano Segundo tinha razão. Os curas e a grande maioria dos

fiéis não conhecem a ciência social da igreja — tanto mais tem que estar

presente nesta seção. Naturalmente em breves fragmentos. Para não entediar

com a fé. É verdadeiramente a religião mais charmosa do mundo, mais

humana e seria bom oferecer à gente perdida um pouquinho do calor de

Jesus Cristo (Bratkowski In: Mallette, 1998, p. 168).

Por fim, o ‘Manual’ orienta que o jornal regional deve ter, em cada edição, duas colunas

para a “’gazeta municipal’”, que deve ser escrita por gente do município, desde que não seja

ninguém ligado às autoridades políticas.

173

O esforço de se aproximar do leitor, na imprensa local (e provavelmente também na

regional) não pode, no entanto, significar a perda do profissionalismo do jornal. O ‘Manual’

alerta:

O jornal local não é lixeira para que publique nele gente que não conseguiu

publicar seus textos em um jornal de alcance nacional, regional ou

provincial. O diário local tem que aplicar as mesmas regras do jogo que os

grandes periódicos; como estes últimos, o diário local se publica porque tem

gente que quer comprá-lo e lê-lo (Bratkowski In: Mallette, 1998, p. 156).

As semelhanças específicas com as regras do jornalismo massivo não se esgotam na

descrição da citação acima. Algumas das orientações mais recorrentes que vimos nas técnicas

de jornalismo informativo têm igual destaque quando se trata da imprensa local, entre elas a

necessidade de se ouvirem os dois lados, de não publicar notícia de segunda mão e de não

aceitar qualquer tipo de restrição (nomeada como censura) à publicação das informações —

oficiais, por exemplo — que sejam de interesse público, além de regras de linguagem

rigorosamente iguais, como o uso de frases curtas e da voz ativa. O capítulo sobre a imprensa

regional encerra a publicação elencando “três princípios gerais”, que deixam claro o que

aproxima e o que distingue esse tipo de jornal do veículo massivo. São eles: “[ter] o máximo

de informação possível sobre os leitores e dos leitores”, “separar as informações dos

comentários”, “cuidar para não ser um porta-voz político” (Bratkowski In: Mallette, 1998, p.

169).

O apelo à responsabilidade do jornalista ganha fôlego nessa parte do texto sob o

argumento de que, como a palavra é uma arma, deve-se levar em consideração que, no caso

da imprensa local, “a distância que separa o atacante do atacado” é muito menor do que na

grande imprensa — novamente, exceção feita às pessoas que ocupam cargos públicos, que

não precisam ser especialmente ‘protegidas’. Mas também aqui o apelo ético mais se

aproxima de um cuidado com a sobrevivência do veículo do que com algum imperativo de

verdade ou ‘justiça’: “(...) na comunidade local, a responsabilidade pela palavra é às vezes

uma questão de ser ou não ser da comunidade. Os mortos de um tiro de palavra não

cooperam, e não há por quem substituí-los” (Bratkowski In Mallette, 1998, p. 158).

O que parece específico da imprensa local, diferente de qualquer referência feita à

imprensa massiva neste ou em outro manual, é a proposta de que ela tenha uma gestão mais

participativa, a partir da constituição de um conselho que delegue o trabalho técnico à redação

mas faça avaliações periódicas e tenha poderes, inclusive, para destituir pessoas de cargos e

mesmo fechar o jornal. Essa providência tem a ver com o esforço de garantir um bom

174

relacionamento entre o editor e a redação, não estando, portanto, relacionada a nenhum

trabalho de organização social, por exemplo. Ao contrário: o modelo de imprensa local

referido pelo ‘Manual’ alerta para o risco tanto de se fazer do jornal um “meio substituto para

cultivar a política” quanto do envolvimento de pessoas com cargos políticos na função de

redatores do jornal, nesse caso, numa clara condenação aos jornais “partidários”. “A

independência da imprensa pela qual lutamos, a liberdade de expressão, é a independência (da

imprensa e de outros meios) dos políticos, liberdade do controle da sua parte” (Bratkowski In:

Mallette, 1998, p. 164).

O jornal não pode ser político, está claro; mas pode intervir, como ator social, inclusive

desempenhando um papel de “liderança” na região em que atua. Na verdade, como explica o

capítulo que trata da imprensa regional, a ausência de “lideranças” (políticas?) pode,

inclusive, ser uma “oportunidade excepcional para o jornal”. “O jornal deveria se transformar

não só em promotor de distintos métodos para o progresso da civilização, o bem-estar e a

cultura, mas também iniciar métodos diferentes” (Mallette, 1998, p. 166). A partir de

estratégias como enquetes feitas junto à população, o jornal deve identificar as pessoas

importantes da região — alertando devidamente que não se trata de ativistas políticos —, criar

em torno de si um “círculo de gente de prestígio” e, assim, se possível, elaborar algum

“projeto concreto e prático de desenvolvimento da região, arredores, cidade ou província”

(Bratkowski In: Mallette, 1998, p. 166).

Merece registro, por fim, o fato de que a imprensa local ou regional a que se refere o

material organizado pela SIP é sempre parte de uma relação comercial. Ainda que a descrição

geral leve ao entendimento de que o texto não se refere a veículos de grandes cadeias

empresariais, como seriam os da grande imprensa, a referência à compra do jornal está

presente em diversas passagens, seja nas orientações sobre o público-leitor, seja como ato que

legitima o conteúdo e o papel do veículo.

Seja pela naturalização dessa relação comercial, que institui necessidades

mercadológicas de atração do leitor, seja pela estrutura profissionalizada que institui uma

hierarquia na produção e disseminação da informação, seja, por fim, pela negação do caráter

político, a imprensa local e regional que é descrita no ‘Manual’ publicado pela SIP não dá

conta do conceito e da prática comumente aceita como comunicação/jornalismo comunitário

no campo crítico da comunicação hoje. Vejamos, primeiro, na definição de Cecília Peluzzo,

as diferenças em relação aos objetivos e organização:

Em síntese, a comunicação popular, alternativa e comunitária é expressão

das lutas populares por melhores condições de vida, a partir dos movimentos

175

populares, e representam um espaço para participação democrática do

“povo”. Possui conteúdo crítico-emancipador e reivindicativo e tem o

“povo” como protagonista principal, o que a torna um processo democrático

e educativo. É um instrumento político das classes subalternas para externar

sua concepção de mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma

sociedade igualitária e socialmente justa. Estes são conceitos da

comunicação popular e alternativa das últimas décadas do século XX, assim

como do início do século XXI (Peluzzo, 2008, não paginado).

Em outro trecho, a autora é mais específica ao elencar os critérios que permitiriam

considerar como comunitária uma determinada iniciativa de comunicação.

(...) a comunicação comunitária – que por vezes é denominada popular,

alternativa ou participativa – se caracteriza por processos de comunicação

baseados em princípios públicos, como não ter fins lucrativos, propiciar a

participação ativa da população, ter – preferencialmente – propriedade

coletiva e difundir conteúdos com a finalidade de desenvolver a educação, a

cultura e ampliar a cidadania. Engloba os meios tecnológicos e outras

modalidades de canais de expressão sob controle de associações

comunitárias, movimentos e organizações sociais sem fins lucrativos. Por

meio dela, em última instância, realiza-se o direito de comunicar ao garantir

o acesso aos canais de comunicação. Trata-se não apenas do direito do

cidadão à informação, enquanto receptor – tão presente quando se fala em

grande mídia –, mas do direito ao acesso aos meios de comunicação na

condição de produtor e difusor de conteúdos (Peluzzo, 2008, não paginado)

Tentemos destrinchar a citação acima, buscando relacioná-la ao conteúdo descrito do

material da SIP. O caráter comercial da imprensa local/regional descrita no ‘Manual’ aparece

como uma barreira concreta entre as duas concepções, já que a ausência de fins lucrativos é

claramente apontada pela autora como um requisito da imprensa comunitária. Essa, no

entanto, parece a única distinção inteiramente nítida, se considerarmos a abordagem e o

referencial de todas as publicações aqui analisadas. Vejamos.

Tomados assim genericamente, os “princípios públicos” que, segundo Peluzzo, devem

reger a imprensa comunitária são propagados em todos os materiais da SIP como a mola-

mestra de toda a atividade jornalística, razão de ser do jornalismo informativo e da imprensa

numa sociedade democrática. Da mesma forma, embora seja claro que a autora, tal como os

pesquisadores e militantes da comunicação comunitária em geral, defenda um processo não

hierarquizado de produção de informação — que fica ainda mais evidente no final da citação,

quando ela fala do direito não apenas a acessar mas também a produzir conteúdo —, a noção

de “participação ativa da população” pode tornar-se retoricamente muito fluida. Como vimos,

toda a discussão sobre o ‘interesse’ como critério da notícia no jornalismo informativo de

modo geral implica uma certa concepção de “participação ativa”, mediada, nesse caso, pelas

relações de consumo e pelas leis do mercado — que pode ser resumida na ideia de que se o

176

jornal não expressar o que interessa ao leitor e o que ele acha importante, este deixará de

comprá-lo. Essa “participação” se torna mais “ativa” por meio de espaços como os das cartas

dos leitores (ou o equivalente a elas em outras mídias), considerados pelo discurso do

jornalismo informativo como fundamentais para o feedback do público. No caso específico

dos capítulos sobre imprensa local/regional do ‘Manual’ de Mallette, como acabamos de ver,

faz-se um esforço adicional para levar o leitor para dentro do jornal, de modo que ele se veja e

se reconheça. Em todos esses casos — inclusive na citação sobre os critérios da imprensa

comunitária —, a questão parece ser ora uma certa concepção genérica de “população” ou

“povo” ora uma concepção individualista de “leitor”, ambas desprovidas das particularidades

(de classe) que fariam da imprensa comunitária uma ferramenta com objetivos diferentes da

imprensa burguesa e portanto com práticas distintas do jornalismo informativo.

No caso da definição de comunicação comunitária, a referência a uma propriedade

coletiva “preferível” parece reforçar esse terreno movediço. A simples restrição aos fins

lucrativos, aliás, como critério das instituições/organizações que podem promover imprensa

comunitária, contribui pouco quando se olha o quanto essa estrutura organizativa é hoje

familiar ao grande capital nas suas iniciativas de ‘responsabilidade social’, que não apenas se

mantêm inteiramente integradas ao seu desempenho econômico como passam a funcionar

como aparelhos privados de hegemonia com importante papel ideológico64

. Assim, essa

aparente barreira parece desconsiderar que, na dinâmica social contemporânea, instituições e

ações sem fins lucrativos convivem muito bem com o esforço de manutenção das condições

de lucro e opressão. Embora a realidade (brasileira, inclusive) esteja cheia de exemplos muito

mais didáticos, para que não nos afastemos demais do nosso objeto, talvez valha registrar que

não é por acaso que o ‘Manual’ de Mallette atribui também ao jornal o papel de “liderança”,

64

No seu livro ‘O Brasil e o capital-imperialismo’, Virgínia Fontes mostra como, principalmente a partir da

década de 1990, assistiu-se no país a um importante crescimento das chamadas Fundações Privadas e

Associações Sem Fins Lucrativos (Fasfil), que são, em sua maioria, associações empresariais, que atum como

aparelhos privados de hegemonia do capital. Numa análise histórica e conceitual muito mais completa do que o

que poderemos reproduzir aqui, ela mostra como “o empresariamento se expandia na sociedade civil” (2010, p.

288), por meio do fortalecimento do chamado “terceiro setor”. Em um dos trechos conclusivos, ela diz: “A

expansão da sociedade civil no Brasil recente se imbrica com um empresariamento de novo tipo, lastreado em

forte concentração capital-imperialista que simultaneamente precisa contar com a adesão das massas populares

nacionais (apassivá-las) (...). Forja-se uma cultura cívica (ainda que cínica), democrática (que incita à

participação e à representação) para educar o consenso e disciplinar massas de trabalhadores (...)’” (2010, p.

296). Um dos maiores exemplos desse processo no Brasil hoje é o movimento ‘Todos pela Educação’ que,

formado por fundações de grandes grupos empresariais como as Organizações Globo, Bradesco, Itaú, Unibanco,

Santander e Dpaschoal, atua na produção do consenso em torno de valores burgueses-empresariais para a

educação, interferindo principalmente através de projetos desenvolvidos em escolas públicas, e ainda criam um

lucrativo nicho de mercado (de materiais pedagógicos, por exemplo) subsidiado pelo Estado. Esse grupo é

reconhecido hoje como uma das principais vozes da sociedade civil (e fontes da grande imprensa) nas questões

sobre educação.

177

com liberdade para intervir e promover ações de desenvolvimento social na região em que

atua, e que o próprio modelo de jornalismo informativo em geral que aqui descrevemos prevê

a participação dos veículos da grande imprensa em “campanhas”, que podem ultrapassar os

limites da mera produção de informação, como vimos65

.

Não se trata de dizer que Peluzzo, tomada aqui como referência para a discussão sobre

imprensa comunitária no Brasil — de modo que nos abstemos de fazer uma revisão

bibliográfica sobre o tema, que ultrapassaria nossos objetivos —, indiferencia a comunicação

comunitária da comunicação massiva. Ao contrário, ao denunciar o movimento da grande

imprensa de investir na informação local, no mesmo texto, ela, mais uma vez, alerta:

(...) nem todo meio de comunicação local é comunitário, apenas por se

dirigir a uma audiência próxima, usar a mesma linguagem ou falar das coisas

do lugar. Este pode simplesmente reproduzir os padrões da mídia comercial

privada em termos de interesses econômicos e políticos, além de se basear na

mesma lógica de gestão e programação, distanciando-se da perspectiva

comunitarista (Peluzzo, 2008, não paginado).

A questão, então, parece ser o grau de imprecisão ou de ecletismo do referencial

político-conceitual que, no amplo espectro das organizações de esquerda, se tem utilizado

para descrever (e promover) uma imprensa de fato distinta da imprensa burguesa. Esse

problema, que justifica o esforço deste trabalho de destrinchar por dentro o jornalismo

burguês para, a partir de referenciais claros, identificar as armadilhas que se têm colocado ao

jornalismo que estamos aqui chamando genericamente de alternativo, não se apresenta apenas

em relação à imprensa comunitária. Feitas todas as mediações necessárias, é possível

identificar no material analisado da SIP semelhanças também com os princípios e objetivos

‘ilustrados’ que, de modo geral, regem a crítica à imprensa monopolista e a nostalgia de um

jornalismo voltado para o ‘esclarecimento’ dos ‘cidadãos’ que, portanto, deveria ser a base de

qualquer luta por mudanças na imprensa. Vejamos.

Negação de uma verdade absoluta; valorização do debate como processo de onde brota

essa verdade; isenção acompanhada por uma coerência lógica; capacidade de construir juízos

a partir de critérios racionais: essas são algumas características, princípios ou objetivos que

podemos deduzir do material analisado no tópico anterior como também constitutivas do

jornalismo informativo. Mas que poderiam igualmente ser associadas ao ideal ‘iluminista’ do

jornalismo que boa parte dos críticos da imprensa monopolista reivindica como o princípio

perdido que deveria ser o orientador dessa profissão e prática social. Assim, tanto no trabalho

65

Campanhas como o ‘Criança Esperança’, que é desenvolvido pela Rede Globo em parceria com a Unesco, são

exemplos próximos da nossa realidade no Brasil.

178

pedagógico desenvolvido pelo maior aparelho privado de hegemonia do capital na área de

comunicação quanto no referencial crítico progressista que denuncia as consequências

negativas do empresariamento da imprensa, temos uma ideia do jornalismo como instrumento

de autonomia que, a partir do debate público de ideias, da exposição da pluralidade de visões

e da confrontação de percepções contraditórias, promoveria o esclarecimento das pessoas,

levando-as a ‘pensarem por si’. A diferença principal é que, como vimos, o material da SIP

aposta que a transformação da imprensa em grandes sociedades anônimas altamente lucrativas

não compromete ou mesmo facilita esse papel, enquanto os críticos progressistas assumem a

nostalgia de um jornalismo que teria sido corrompido pelo caráter de mercadoria que assumiu

com o capitalismo monopolista e pela falta de “concorrência” própria desse momento.

Mais do que uma suposta capacidade camaleônica da imprensa monopolista, essa

‘coincidência’ parece denunciar os limites da crítica que busca recuperar procedimentos

técnicos e éticos para melhorar o jornalismo burguês, como se bastasse (e fosse possível)

‘limpá-lo’ da condição de mercadoria para que ele voltasse a encarnar valores universais.

Como se ele fosse só jornalismo, sem o adjetivo que lhe confere identidade de classe. E isso

tem grande importância para nossa argumentação porque implica uma compreensão

específica de ação contra-hegemônica que, aquém do que neste trabalho queremos discutir,

esbarra nos limites ideológicos da democracia burguesa.

A partir das análises que fizemos nos tópicos anteriores, nos sentimos autorizados a

afirmar que, de modo geral, essa concepção sobre o papel do jornalismo atravessa todos os

materiais, seja nas orientações técnicas, seja na declaração de pressupostos e princípios.

Assim, toda a discussão sobre o esforço da objetividade, tanto quanto a descrição da função

das páginas editoriais e, ainda mais, a defesa intransigente da pluralidade de visões — aquela

que justificaria a importância de a imprensa estar em mãos privadas —, por exemplo, são

argumentos em prol dessa missão ‘democrática’ e ‘universalizante’ do jornalismo que teria

sua expressão no modelo informativo. Destacaremos aqui apenas poucos exemplos em que a

referência nos parece mais direta e explícita.

Numa passagem em que qualifica o jornalismo como um “cão de guarda”, o ‘Manual’

de Mallette limita essa concepção à atuação política de um público também reduzido à

condição de eleitor, mas o núcleo central dessa ‘missão’ do jornalismo está lá. Diz ele: “A

função do jornal em uma sociedade democrática se baseia no pressuposto de que dotará o

eleitorado do conhecimento necessário para que seu comportamento seja cívico e inteligente”,

179

fornecendo aos leitores “a informação e as notícias de que precisam para funcionar como

cidadãos responsáveis e bem informados” (1998, p. 68).

No ‘Manual’ de Macaggi, em um dos vários trechos em que apresenta o leitor do jornal

como o “dono” da notícia, o texto afirma: “Um fato convertido em informação pública

pertence ao leitor. Ele tem direito de receber uma versão honesta do acontecido. Precisa

dispor de conhecimentos nobremente elaborados para alimentar uma opinião própria e bem

fundamentada. Ele as requer para analisar os problemas da sua comunidade e o manejo dos

negócios públicos” (1991, p. 11).

No ‘Valores periodisticos’, a questão aparece claramente referida na passagem em que,

apesar de ter defendido que o leitor espera do jornal uma notícia já organizada e

medianamente interpretada, o autor estabelece limites para a opinião (sempre do jornalista).

Sua orientação, que nisso coincide com a concepção que prevalece em todos os materiais

analisados, é de que os jornalistas devem “mostrar modéstia nos seus juízos sobre os fatos e

sempre reservar-se do juízo final em assuntos de valor. Tampouco devem escrever sua

história de maneira que levem um leitor razoável a inferir sua preferência” (Fuller, 1996, p.

39). Em resumo, o conselho, sempre concebido no nível individual, é nunca se mostrar a favor

nem contra, o que, apesar das categorizações propostas pelo texto, pouco parece se diferenciar

da concepção generalizada de neutralidade. E esse princípio se justifica exatamente pela

necessidade de se levar as pessoas a ‘pensarem por si’. “A modéstia na opinião e a reserva do

juízo final sobre o valor produzem um informe que convida o público a avaliar a informação

por si mesmo e oferece ao público ajuda para entender as ambiguidades e complexidades”

(Fuller, 1996, p. 40).

Diante não apenas dessas orientações como também de suas justificativas, alguns dos

mais importantes críticos da imprensa empresarial monopolista denunciariam que, com a

mercantilização da informação, a estruturação industrial do processo de trabalho jornalístico e

a invasão de interesses particularistas, entre outros fatores, a imprensa não é capaz de cumprir

essa promessa — o que é verdade, e parece evidente se olharmos o caso brasileiro. Nossa

questão, no entanto, passa pelo alerta sobre o quanto a própria promessa traz embutidos os

mecanismos ideológicos que neutralizam a crítica, na medida em que, entre muitos outros

problemas, naturaliza uma certa concepção de democracia num princípio e num ‘método’

plural que dilui a compreensão da realidade no somatório de meras versões, ocultando as

determinações (econômicas, de classe) que trazem as diferenças realmente fundamentais.

180

Indo direto ao ponto: não é por acaso que o ideal de esclarecimento do jornalismo, a

defesa da sua responsabilidade em levar as pessoas a pensarem por si, é parte, ao mesmo

tempo, da cartilha burguesa e dos movimentos sociais contestatórios. Não basta, a nosso ver,

que se denuncie o jornalismo burguês por não cumprir o que promete; é preciso refletir

criticamente também sobre os fundamentos da promessa. E isso justifica o esforço deste

trabalho de seguir as pistas de um jornalismo contra-hegemônico, no rigor do conceito de

Gramsci. Porque a ideia de que, uma vez esclarecidas, as pessoas tornam-se capazes de

formar sua própria opinião e agir ‘conscientemente’ a partir delas traz problemas de toda

ordem. O primeiro é associar as mudanças necessárias na ordem social a um certo

‘empoderamento’ das pessoas que se daria, fundamentalmente, pelo conhecimento ou pela

informação. E, com isso, pela perspectiva crítica, reduzir a ideia de jornalismo alternativo a

um jornalismo ético, que desempenhe seu papel como contribuição à formação de opiniões a

partir de uma pluralidade de visões que se equivalem num suposto mercado das ideias, e não

de algo que se aproxime, como trataremos adiante, da formação de uma consciência que, no

transcorrer da luta concreta, possa se tornar de classe. Ainda que nos detenhamos ao aspecto

do conhecimento/informação, parece necessário problematizar os efeitos (subversivos ou

ideológicos?) de uma concepção de conhecimento baseado na pluralidade ‘democrática’ de

versões banalizadas que se cristaliza num princípio ético reduzido, por exemplo, à ideia de

que é preciso ‘ouvir todos os lados’.

Se o esclarecimento que o jornalismo deve produzir “exige uma desnaturalização dos

fatos”, como nos diz Moretzsohn (2007, p. 30), se pode ser compreendido como esforço de

desvelamento da fumaça ideológica produzida pelo mundo da mercadoria, podemos estar de

acordo com essa enunciação. Mas a crença de que se pode “oferecer informações confiáveis

para que o público tire suas próprias conclusões (isto é, para que possa pensar por si)” (2007,

p. 29), denuncia a origem liberal-burguesa desse princípio. Mais do que uma filiação abstrata

ao pensamento liberal, esse pressuposto ganha ares de idealismo ao apostar num tal poder do

‘debate’ racional, agora trazido para as páginas dos jornais, que autonomiza as ideias e

‘conclusões’ das relações materiais objetivas. Não se trata de negar que o trabalho de

comunicação e contrainformação sejam importantíssimos — o que, inclusive, justifica este

estudo —, mas de entender que, levada ao limite — embora essa não seja a intenção da autora

citada nem de parte importante dos críticos que seguem a mesma linha —, essa tese iluminista

parece ignorar que as pessoas não pensam por si não apenas por falta de informação correta,

mas porque estão inseridas numa realidade que é, ela própria, invertida e estranhada, sobre a

181

qual age um complexo mecanismo ideológico. Não fosse assim, bastaria entrar em contato

com a informação ou o conhecimento ‘certo’ e o mundo se revelaria, deixando as classes —

assim reconhecidas — prontas para a ação.

Vejamos, por exemplo, nossas concordâncias e discordâncias com a forma como

Moretzsohn aborda o problema. A autora parece ter clareza do quanto essa ideia de levar o

público a ‘pensar por si’, atrelada a uma concepção de objetividade como sinônimo de

imparcialidade, acaba eximindo a imprensa da responsabilidade que ela tem na orientação

desse modo de pensar.

De par com essa concepção segue a ideia de que, uma vez disponibilizando

as informações (ou “relatando fatos”), o público estará apto a tirar as suas

próprias conclusões (isto é, “pensar por si”). É uma afirmação

sistematicamente reiterada, que desconhece não apenas o processo de

construção da notícia, resultante de mediações discursivas inerentes ao

trabalho jornalístico, como a força do preconceito arraigado do senso comum

(Moretzsohn, 2007, p. 120).

Da mesma forma, ela reconhece que as “conclusões” do público não são autônomas

como se tenta fazer crer e que, sendo assim, “o processo de esclarecimento precisará partir da

identificação dos elementos constitutivos dessas mediações [empreendidas pelo jornalismo]”

(2007, p. 122). Além disso, a autora critica o fato de essas abordagens acabarem reduzindo o

problema a uma responsabilidade ética que recai sobre o jornalista, individualmente. Mas o

problema central permanece quando, para apostar na capacidade do jornalismo de resistir a

esse cenário — a partir da tensão constitutiva do cotidiano com o qual ele necessariamente

lida —, ela também precisa naturalizar um “ideal” (iluminista) para o jornalismo. Em uma das

diversas passagens em que essa referência é feita, diz o texto:

(...) é precisamente por estar referido ao cotidiano e por legitimar-se

socialmente através do ideal iluminista de esclarecimento que o jornalismo

se singulariza entre as demais atividades: se “esclarecer” exige a

desnaturalização dos fatos, resultante do que Lukács chamava de processo de

suspensão da cotidianidade, e se o jornalismo se desenvolve no cotidiano,

então ele terá de realizar um cotidiano exercício de suspensão, ou estará

traindo seu ideal (Moretzsohn 2007, p. 286).

Voltaremos à questão da suspensão do cotidiano a partir do pensamento de Lukács em

outra oportunidade, mas aqui importa discutir a base material concreta desse “ideal” que é

naturalizado nesse e em muitos outros trabalhos sobre jornalismo. Como vimos, a história do

jornalismo nem começa nem termina (até os dias de hoje) com esse ideal ilustrado, que

representou apenas uma fase específica dessa prática social, coerente com as particularidades

históricas daquele momento da luta de classes. Passado o furor político revolucionário, a

182

produção de informações, o debate público e o processo de esclarecimento que dele resultava

foram capturados por uma racionalidade técnica que, no caso da imprensa, congelou

ideologicamente esse objetivo na forma de um ideal, que passou a ser considerado como se

fosse ontologicamente constitutivo da atividade do jornalismo como prática social (ou de uma

ética da profissão). Na medida em que se identifica claramente que esse ‘ideal’ não se realiza

na prática de um jornalismo que se tornou atividade profissional e depois insumo de

conglomerados empresariais, ele simplesmente não se sustenta, perde referência histórica

concreta e se torna uma referência abstrata que só contribui para reafirmar uma concepção

unitária do jornalismo que é funcional ao modelo informativo burguês. Vejamos como isso se

manifesta com uma passagem em que, logo na sequência da citação acima, Moretzsohn

critica:

O discurso recorrente que apresenta o jornalismo como prisioneiro de si

mesmo acaba reiterando essa traição, na medida em que repete um

interminável mea culpa sobre as promessas não cumpridas, ao mesmo tempo

em que mantém uma prática incontornavelmente alienante, como no lamento

de quem prevê o próprio destino sem poder mudar-lhe a sorte (Moretzsohn

2007, p. 286).

Ela tem razão no caráter circular e pouco efetivo da crítica sobre as promessas não

cumpridas, mas, para deixar de ser “prisioneiro de si mesmo”, o jornalismo precisa antes

deixar de ser prisioneiro desse ‘ideal’ abstrato que, atribuindo-lhe uma tarefa universalizante

numa sociedade movida pela luta de classes, contribui com a ideia de que é possível produzir

um conhecimento sobre o cotidiano da vida social que, mesmo buscando uma compreensão

totalizante do processo, como deseja a autora, precisa pairar acima dos interesses de classe.

Embora não seja o caso da obra com que estamos dialogando, a absolutização desse ‘ideal’

abstrato coloca uma armadilha ainda pior, que é a tentação de se ignorar o caráter de

aparelhos privados de hegemonia dos meios de comunicação de massa, como se bastassem

ajustes técnicos e éticos para que eles (e seus profissionais) pudessem superar sua

particularidade constitutiva e vocalizar, de fato, interesses gerais.

Com isso queremos dizer que o reconhecimento de características próprias de uma

prática como o jornalismo, ou o lugar que ele ocupa na produção de concepções de mundo,

sempre historicamente determinado, não pode ser confundido com a solidificação de uma

suposta essência que lhe atribui objetivos éticos a despeito da sua identidade (e

instrumentalização) de classe. É claro que existem brechas para atitudes progressistas e

práticas que contribuam com o esclarecimento dos sujeitos no interior do sistema ideológico-

empresarial da grande imprensa, e que elas podem ajudar a produzir mudanças e mesmo

183

saltos importantes para os trabalhadores, tanto em relação à conquista de direitos no registro

da democracia burguesa como em relação ao acúmulo de forças de forma mais estruturante.

Mas isso são brechas: não é essência nem destino do jornalismo tomado de forma genérica.

Por isso a necessidade de se pensar uma prática que, desnaturalizando esse ‘ideal’ geral,

ocupe espaços e aparelhos próprios à construção de uma contra-hegemonia.

Nossa questão, portanto, não é salvar o jornalismo da sua captura empresarial, buscando

um caminho de mudança que justifique sua existência nesta ou em outra sociedade; nossa

questão é pensar como uma prática que existe hoje, numa sociedade concreta, marcada pelas

relações burguesas, pode contribuir para as lutas que buscam a sua superação.

De todo modo, vale registrar que essa forma de conceber o jornalismo e a imprensa em

si mesmos — como portadores de uma missão que teria sido corrompida pelo caráter

mercadológico que essa prática assumiu —, apesar das evidentes variações que tem entre os

autores e seus diferentes referenciais teóricos, produziu uma marca muito forte no modo como

se fundamentam e se organizam as bandeiras de luta dos movimentos sociais que atuam no

campo da democratização da comunicação, principalmente no Brasil. Por um lado, como já

sinalizamos, há importantes e urgentes questões envolvidas na luta pela regulação estatal

sobre as concessões públicas de rádio e TV, que afetam diretamente a propriedade e o

monopólio que temos reconhecido neste trabalho como a base material do processo de

consolidação do modelo do jornalismo informativo. Mas, por outro lado, no que diz respeito

ao resultado do trabalho da imprensa, a concentração da luta na regulação dos meios muitas

vezes carrega uma expectativa de que, uma vez controlados os grandes meios e

desconcentrado o poder de fornecer informação, será enfim possível a esse conjunto plural de

veículos e iniciativas desempenhar a missão (de ‘esclarecimento’) da mídia, que estava

obstaculizada por algo como a ganância dos empresários na defesa dos seus próprios

interesses.

Embora com uma vantagem enorme, por tocar na questão da propriedade dos meios, do

ponto de vista do papel superestrutural (ideológico) da imprensa, em alguma medida essa

perspectiva se encontra no mesmo registro daquela que aposta nas orientações éticas para

guiar o comportamento dos jornalistas, dos editores e mesmo dos donos dos veículos. Em

ambos os casos, ‘limpa-se’ o caráter de classe do jornalismo burguês, substitui-se a noção de

aparelho privado de hegemonia pela escolha entre empresas com mais ou menos

‘responsabilidade social’ e jogam-se todas as fichas em algum nível de controle, que se

diferencia apenas — e isso não é pouco — pelo lugar de onde ele se dá: para os movimentos

184

pela democratização da comunicação, como regulação por parte do Estado; para a SIP e seus

representados, na forma de autorregulação. E mesmo esses ‘dois lados’ parecem não ser

incompatíveis. Definindo o espectro do direito à comunicação pelo qual se luta hoje, Venício

de Lima, um dos maiores intelectuais do campo da democratização da comunicação no Brasil,

consegue, inclusive, fazer a síntese dessas expectativas, numa abordagem que, apesar de

francamente crítica à concepção de liberdade de imprensa da SIP, parece confirmar a validade

de iniciativas pedagógicas como a do ‘bom jornalismo’ que ela promove. Nas suas palavras:

O direito à comunicação significa hoje, além do direito à informação,

garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de ideias existentes na

sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão individual. Essa

garantia tem de ser buscada tanto “externamente” — através da regulação do

mercado (sem propriedade cruzada e sem oligopólios; priorizando a

complementaridade dos sistemas público, privado e estatal) — quanto

“internamente” à mídia — através do cumprimento dos Manuais de Redação

que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade

jornalística (Lima, 2010, p. 36).

Não é outro senão esse o registro do mesmo autor quando, em outro texto, lamenta que,

no Brasil, ainda não tenha chegado a “mudança de paradigma” instituída pela ‘teoria da

responsabilidade social’ que foi proposta pela Comissão Hutchins66

em 1947. Trata-se de um

conjunto de princípios estabelecidos para o ‘funcionamento responsável’ da mídia na

sociedade moderna que, não por acaso, como explica o próprio Venício de Lima, “se

tornariam a origem dos critérios profissionais do chamado ‘bom jornalismo’ (...) adotado nos

Estados Unidos e ‘escrito’ nos Manuais de Redação de boa parte dos jornais brasileiros”

(2010, p. 54). Segundo o autor, os tais “critérios profissionais” do “bom jornalismo” — todos

previstos nos manuais da SIP aqui analisados, como vimos — são: objetividade, exatidão,

isenção, diversidade de opiniões e interesse público. E eles derivariam de cinco “exigências”

principais feitas pela Comissão e assim resumidas por Lima:

(1) propiciar relatos fiéis e exatos, separando notícias (reportagens

objetivas) das opiniões (que deveriam ser restritas às páginas de

opinião);

(2) servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando

espaço para que pontos de vista contrários sejam publicados;

(3) retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma

imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos;

66

Comissão criada em 1942, com incentivo e financiamento do grupo Time Life e da Enciclopédia Britânica para

elaborar estudo e propostas sobre as “funções da mídia na sociedade moderna”. Coordenada por Robert M.

Hutchins, reitor da Universidade de Chicago, ela publicou, em 1947, o relatório ‘Uma imprensa livre e

responsável’, que cria a teoria da responsabilidade social da imprensa (Lima, 2010).

185

(4) apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade,

assumindo um papel educativo; e por fim,

(5) distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.

(Lima, 2010, p. 53-54).

Mais uma vez, todas as semelhanças com o modelo do jornalismo informativo,

desenhando nos seus aspectos técnicos e éticos, que descrevemos a partir dos manuais da SIP,

não são mera coincidência. Isso porque, apesar de, segundo Moretzsohn (2002, p. 58), o

relatório da Comissão Hutchins ter sido mal recebido pela maioria dos jornais norte-

americanos na época, entendido como uma tentativa de controle por parte do governo, a teoria

da responsabilidade social da imprensa é claramente uma saída por dentro da mídia burguesa

empresarial — não convém ignorar, por exemplo, que a própria comissão foi montada por

iniciativa dos empresários, com financiamento do grupo Time Life e da Enciclopédia Britânica

(Lima, 2010, p. 52). De acordo com Lima, a comissão foi uma tentativa de resposta da própria

grande imprensa às críticas crescentes que ela vinha sofrendo, num cenário de clara

oligopolização no qual “tornara-se impossível sustentar a doutrina liberal clássica de um

mercado de ideias (a marktplace of ideas) onde a liberdade de expressão era exercida em

igualdade de condições pelos cidadãos” (2010, p. 52). Embora tenhamos destacado,

especialmente na publicação ‘Valores periodisticos’, o movimento de positivar o processo de

monopolização, atribuindo às Sociedades Anônimas um risco menor de interferência dos

particularismos dos barões da imprensa, todo o controle técnico e ético que consta da cartilha

do bom jornalismo burguês, e que destacamos neste capítulo, é absolutamente coerente com

esse esforço de conciliar o caráter (altamente) lucrativo das empresas de mídia com a sua

missão social. Lima resume de forma muito clara: “A teoria da responsabilidade social (...)

aceita que a mídia deve servir ao sistema econômico e buscar a obtenção do lucro, mas

subordina essas funções à promoção do processo democrático e à informação do público (‘o

público tem o direito de saber’)” (2010, p. 53).

O conhecimento sobre as propostas da Comissão Hutchins traz uma referência histórica

que ajuda a compreender toda a descrição que fizemos nos tópicos anteriores, a partir da

análise dos manuais da SIP, mas aqui o objetivo é evidenciar o quanto, ‘idealmente’, os

princípios e valores do jornalismo informativo, anunciados pela imprensa burguesa,

coincidem em grande medida com o argumento dos críticos da imprensa monopolista e, de

forma concreta, com o propósito das lutas dos movimentos sociais pela democratização da

mídia. Sob esse ângulo, mais uma vez, não existe questão em relação à promessa (de uma

missão esclarecedora e universalista desempenhada por uma imprensa empresarial que não

186

pode deixar de defender interesses de classe): o problema é que, por motivos que variam —

falta de regulação externa, falta de concorrência, falta de ética dos profissionais ou ganância

dos empresários — ela não vem sendo cumprida. E, aqui, o trabalho de Lima é novamente

emblemático desse esforço de conciliação de interesses que, vistos por esse ângulo, nem

parecem tão opostos assim. Vejamos seu lamento pelo atraso de ‘consciência’ do

empresariado de mídia brasileiro:

O sucesso empresarial da indústria privada das comunicações — da qual

fazem parte as empresas de telecomunicações, seja através da distribuição de

conteúdo ou do provimento de tecnologia — está cada vez mais ligado ao

respeito aos direitos de comunicação do cidadão. Talvez seja tempo de

pensar menos na surrada blindagem da ameaça externa, “de fora”, à

liberdade de imprensa e pensar mais na responsabilidade social daqueles

que escolheram a mídia como atividade profissional e empresarial (Lima,

2010, p. 55, grifos nossos).

Tal como as orientações do jornalismo informativo defendidas pelo maior aparelho

privado de hegemonia da imprensa burguesa, esses princípios que hoje estão atrelados às lutas

progressistas da comunicação parecem também não contribuir com o caminho que estamos

buscando de uma imprensa contra-hegemônica no sentido de se colocar como ferramenta de

contraposição à ordem do capital. Seguindo as trilhas de um jornalismo ‘alternativo’ que vá

além desses limites, ironicamente nos parece necessário responder à pergunta que o ‘Manual’

de Macaggi faz sobre os efeitos do trabalho da imprensa, mas tendo como referência os

objetivos da luta contra-hegemônica: “(...) existem falhas e objetivos não alcançados na

comunicação? Onde começam e o que impede chegar com eficácia a todos os setores? Qual é

o obstáculo que não permite a muito do público entender, escolher e decidir por si mesmo

uma vez em posse das informações?” (1991, p. 56). Desvendar esse mistério, situando-o no

contexto particular da sociedade capitalista, é o caminho que pode orientar a construção de

uma imprensa realmente contra-hegemônica.

187

4. CONTRADIÇÕES INTERNAS À FORMA SOCIALMENTE NECESSÁRIA: JORNALISMO

E SUAS DETERMINAÇÕES

Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma

baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio

espiar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por

um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa

mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa

suja. Eis o que eu queria dizer: — a primeira página do Jornal do

Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões e das

batalhas (Nelson Rodrigues, 1968)

Recuperemos, de início, a trajetória que estamos percorrendo. O objetivo final deste

trabalho é identificar obstáculos e ajudar a traçar caminhos para a construção de uma

imprensa contra-hegemônica que, pela nossa hipótese, requer, entre outros movimentos, a

desnaturalização da forma que se consolidou como modelo profissional de jornalismo (do

modo de se fazer jornal). Para isso, no capítulo anterior, tentamos identificar na forma

contemporânea do jornalismo os principais elementos que caracterizam essa prática a partir da

funcionalidade ideológica que lhe atribuiu a ordem burguesa e que, como supomos, se coloca

como obstáculo às tentativas de se construir uma via alternativa a esse modelo.

A aposta é de que precisamos dissecar o modelo de jornalismo em voga para, à luz da

sua história e da sua forma presente, ‘distinguirmos’ o que é resposta às necessidades sociais

práticas de um tempo histórico, o que é naturalização de princípios e interesses particulares da

burguesia e o que, hoje, é potencialidade de insumo à luta cotidiana da classe trabalhadora.

Em outras palavras, como chamamos no título deste capítulo, trata-se de buscar na forma

socialmente necessária que o jornalismo assumiu no capitalismo avançado as características

que também o determinam historicamente como prática, no interior da sua instrumentalização

ideológica — ainda que, naturalmente, não se ignore que essa separação não pode ser ‘limpa’,

pura ou estática, já que todas essas dimensões compõem o mesmo fenômeno e se inter-

relacionam e interdeterminam.

Portanto, sem abandonar qualquer perspectiva histórica, a proposta deste capítulo é

extrair das suas características atuais do jornalismo o que o justifica como prática e como

forma de apreensão da realidade relativamente autônoma em relação a outras, como a ciência

e a arte. Se voltarmos ao capítulo 1, lembraremos que é com objetivos semelhantes, e a partir

desse mesmo pressuposto histórico-dialético, que Adelmo Genro Filho considera o jornalismo

informativo, na sua conformação como modelo, como resposta às necessidades sociais

advindas com o desenvolvimento do capitalismo e das relações sociais que ele produz. Nossa

188

discussão crítica com o autor passava por dois pontos principais. O primeiro é sua tentativa de

identificar uma ‘essência’ do jornalismo que, na medida em que se ancora na defesa da

pertinência dessa prática numa sociedade que tenha superado a ordem do capital, acaba se

tornando abstrata. O segundo é uma compreensão naturalizada dessa nova “necessidade

social” que o jornalismo seria, o que o leva a acolher o conjunto da obra, ignorando os

mecanismos ideológicos que atravessam e ajudam a compor a forma final dessa prática.

Buscamos, então, neste trabalho, um caminho um pouco diferente. O esforço é, a partir

do mapeamento feito no capítulo anterior, identificar os elementos que compõem a estrutura

da funcionalidade ideológica do jornalismo informativo para, daí, tentar ressignificá-los.

Assim, neste capítulo, tentaremos abordar por uma outra perspectiva as duas características

que, pela nossa análise, se destacaram como centrais na conformação do modelo informativo

de jornalismo tal como acabamos de descrever: o foco na atualidade, que é elemento principal

da concepção de notícia, e a objetividade. Esses nos parecem ser os dois carros-chefes do

modelo de jornalismo burguês, a base de todas as orientações técnicas (concisão, clareza...) e

éticas (o imperativo de ouvir os dois lados, a separação entre opinião e informação, a

“honestidade intelectual”) que sustentam a ideologia em torno dessa prática. Na

problematização desses dois princípios parece possível encontrarmos também a chave para a

desnaturalização desse modelo.

Partimos da constatação de que, na medida em que se trata de uma forma de apreensão

da realidade concreta, que existe fora e independente do sujeito que a desvenda e descreve, a

objetividade pode ser considerada uma característica determinante do jornalismo que, no

entanto, na forma socialmente necessária que assumiu no capitalismo, é ideologicamente

confundida com imparcialidade/neutralidade. Do mesmo modo, o jornalismo se configura

historicamente como resposta às demandas e questões coletivas mais imediatas que se

impõem no processo de desenvolvimento do capitalismo, o que coloca o presente como o seu

tempo por excelência, especificando um campo de interesses e um ponto de partida da

informação por ele produzida. Mas aqui essa atualidade (ou imediaticidade) será traduzida

como determinação do jornalismo na medida em que o configura como uma forma de

conhecimento que se dá sobre e no cotidiano, reconhecendo que, no capitalismo avançado,

essa relação ganha a forma da cotidianidade, uma ferramenta de controle e organização da

vida, associada, crescentemente, a um culto da velocidade.

Essas características, que emergem da análise do jornalismo informativo a partir dos

materiais da SIP e que serão agora discutidas por uma perspectiva distinta, buscam responder

189

à pergunta central deste capítulo: o que pode definir o jornalismo para além do caráter

ideológico que a forma assumida ao longo do desenvolvimento do capitalismo lhe deu?

4.1. Objetividade sem imparcialidade

Nenhum sujeito que se proponha a investigar a realidade é desprovido de valores,

opiniões e visões de mundo e, portanto, não pode ignorar a influência desses fatores na

forma como vai lidar com os fatos que a ele se apresentarão. Mas isso não significa que não

se possa alcançar um nível satisfatório de objetividade. Basta, para isso, que se tomem

alguns cuidados para controlar o efeito dessa subjetividade. Por um lado, cabe ao sujeito o

imperativo ético de distinguir, para si próprio e para os outros, o que é sua concepção

pessoal e o que é dado objetivo — essa não é tarefa fácil, mas precisa ser empreendida. Por

outro, cabe a ele lançar mão de técnicas e instrumentos metodologicamente rigorosos que,

sendo coletivamente reconhecidos e legitimados, garantem que se aproxime o máximo

possível da realidade objetiva, ou dos fatos tal como eles são.

O trecho acima poderia ter sido retirado de um dos manuais de redação que analisamos

no capítulo anterior, tratando do modelo de jornalismo informativo. Mas, se mantivermos a

tolerância necessária com o seu caráter propositadamente simplificado, ele também poderia

ser o resumo da concepção de Max Weber, um dos clássicos do pensamento sociológico

mundial, sobre a objetividade nas ciências sociais. Da mesma forma, nos parece que a

repetida ideia de que ‘os fatos falam por si’, tão familiar aos ambientes do jornalismo

profissional, expressa, em outro campo, uma linha de continuidade com o método sociológico

ancorado no positivismo e muito bem representado pela frase de Émile Durkheim segundo a

qual os fatos (ou os fenômenos) sociais “devem ser tratados como coisas” (2007, p. 28). Antes

que essas afirmações pareçam uma herética indiferenciação entre autores de escolas distintas

e campos de conhecimento específicos, deixemos claro: Weber não é Durkheim. Mas, se o

leitor nos permite uma comparação ainda muito superficial e sem mediações, arriscamos

afirmar que, na elaboração de princípios éticos que se traduzem em orientações técnicas, e

cuja miscelânea se aproxima do senso comum, o jornalismo contemporâneo aparentemente se

rendeu ao debate filosófico sobre a (im)possibilidade da isenção absoluta, abandonando o

discurso (positivista) da objetividade bruta dos fatos em nome de um (weberiano) controle

metodológico da subjetividade.

Mas recuperemos primeiro o pressuposto. Todo o esforço que temos empreendido neste

trabalho de afirmar as bases materiais da ideologia burguesa parece nos ajudar a defender que,

190

exatamente por serem concretas, as inversões, ocultações, naturalizações e universalizações

abstratas que se expressam na forma do pensamento estão presentes, e inclusive guardam

certa coerência, em diferentes tipos de conhecimento. Assim, nos parece que as questões que

atravessaram a discussão sobre a objetividade científica, seja na forma da decadência

ideológica de que já tratamos, seja na forma de um debate epistemológico marcado pela

disputa em torno da hegemonia burguesa, se apresentam, resguardadas todas as

particularidades, também em outras formas de conhecimento que, como o jornalismo, têm

como objeto o mundo real concreto. Mais uma vez, estamos atentos ao risco de um

esquematismo que promova uma simples adaptação de questões do campo da ciência para

uma prática que, como o jornalismo, tem história, tempos, objetivos, processos e personagens

próprios. O que nos parece o fio condutor da linha que estamos assumindo — e que deve

funcionar, portanto, como prevenção a esse risco sempre presente — é uma análise que, de

um lado, reconhece a determinação material das formas hegemônicas de pensamento sob o

capitalismo e, do outro, enxerga esse processo a partir do desenvolvimento histórico das

classes em luta.

Mostramos no primeiro capítulo deste trabalho como a emergência do jornalismo

informativo que se tornou hegemônico e se consolidou ideologicamente como a forma do

jornalismo no capitalismo é produto histórico do processo que, descrito por Marx, foi

nomeado por Lukács como decadência ideológica e, não por acaso, guarda com o positivismo

científico mais do que uma coincidência temporal. Também não por acaso, no cerne da

discussão sobre as ciências sociais naquele momento estava o debate — que chega ao

jornalismo pronto, na forma de um dogma com expressão ‘técnica’ — sobre a relação

sujeito/objeto que, muito mais do que a forma simplista que assumiu no jornalismo, de

aproximação entre objetividade e imparcialidade, guarda questões importantes sobre o papel

do conhecimento nos diferentes momentos da luta de classes. No decorrer da História que, em

meio a todas as contradições, confirmava a hegemonia burguesa, muitos outros autores e

escolas se dedicaram ao mesmo problema, oferecendo respostas distintas mas sempre, naquele

momento, se contrapondo ao materialismo histórico dialético que vislumbrava no

desdobramento do conhecimento científico rigoroso a possibilidade de desvelamento das

contradições estruturantes da ordem burguesa que, por sua vez, seriam instrumento da

eliminação real dessas contradições, processo que só se daria por meio de um ato concreto: a

191

revolução67

. Na esteira e ao mesmo tempo na crítica ao positivismo, portanto, muitos outros

pensadores tentaram dar respostas ao problema do conhecimento objetivo sobre a sociedade

no contexto de uma ciência burguesa, num processo que, como supomos, deixa marcas no

jornalismo como forma de conhecimento sobre a realidade social mais imediata. Não estamos

com isso supondo um processo linear e direto, que poderia ser ilustrado caricaturalmente com

a imagem de grandes intelectuais do jornalismo que tenham lido esses autores e formatado um

modelo à sua imagem e semelhança; com essa alusão, estamos apenas reconhecendo, em

primeiro lugar, a coerência histórica de processos que se dão sob bases materiais semelhantes

e, em segundo, acreditamos estar identificando os fragmentos de discursos, instituições e

concepções de mundo que ajudam a compor o senso comum característico do jornalismo

informativo. Referindo-se ao conhecimento científico, e ressaltando que esse princípio

ultrapassa os autores reconhecidos propriamente como da escola positivista, com destaque

especial para o pensamento de Weber, Löwy resume a questão: “O axioma da neutralidade

valorativa das ciências sociais conduz, logicamente, o positivismo, a negar — ou melhor, a

ignorar — o condicionamento histórico-social do conhecimento” (2009, p. 20).

Ultrapassaria os objetivos deste trabalho um mapeamento histórico de todas as teorias,

com seus respectivos autores e escolas, que tentaram dar conta desse problema. O que nos

interessa apontar é a função ideológica que uma determinada concepção de objetividade,

intrinsecamente associada à neutralidade, assumiu na legitimação da ordem burguesa para que

possamos contrapor a esta uma outra concepção que nos parece poder compor o que estamos

aqui chamando de determinações do jornalismo68

. Assim, vejamos, apenas a título de

exemplo, como um dos maiores nomes do positivismo, Auguste Comte, estabelece, ele

próprio, essa relação:

[o positivismo] tende poderosamente, por sua natureza, a consolidar a ordem

pública, através do desenvolvimento de uma sábia resignação. (...)

Evidentemente só é possível haver uma verdadeira resignação, isto é, uma

permanente disposição para suportar com constância e sem nenhuma

esperança de compensação, qualquer que seja, os males inevitáveis que

regem os diversos gêneros de fenômenos naturais, a partir de uma profunda

convicção da invariabilidade das leis. E, pois, exclusivamente com a

filosofia positiva que se relaciona tal disposição, em qualquer tema que ela

se aplique, e, por conseguinte, em relação também aos males políticos

(Comte, 1949, p. 100-101 apud Löwy, 2009, p. 29).

67

Como Marx e Engels afirmam já na ‘Ideologia Alemã’: “(...) não é a crítica, mas a revolução a força motriz da

história e também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria” (2007, p. 43). 68

Por essa razão, inclusive, não nos preocupamos em ir diretamente à fonte original de todos os autores citados,

exceções feitas a Durkheim e, principalmente, Weber, pela centralidade do seu pensamento no debate que

estamos travando.

192

Como se sabe, a base do positivismo é a identidade entre sociedade e natureza como

objetos de estudo, o que significa dizer que também a sociedade é regida por leis naturais e,

portanto, que o método das ciências sociais deve ser o mesmo aplicado às ciências da

natureza, baseado na observação e na “explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva,

neutra, livre de julgamentos de valor ou ideologia, descartando previamente todas as

prenoções e preconceitos” (Löwy, 2009, p. 20). Durkheim, por exemplo, é muito claro ao

distinguir a observação, que ele considera um processo científico, da análise, que, ao

contrário, traria sempre o elemento que ele chama de “ideológico”, e é também preciso em

estabelecer que, na sociedade, o que pode ser observado (portanto cientificamente estudado)

são apenas as situações particulares, de forma independente (2007, p. 16 e 20).

Já no pensamento deste autor a responsabilidade principal sobre o controle dos

processos subjetivos ou “ideológicos” que poderiam alterar a objetividade da realidade

estudada recai sobre o sujeito, restringindo-se, portanto, ao que Löwy chama de um “terreno

estritamente psicológico”, em que reina a boa vontade do pesquisador em abandonar os seus

valores, opiniões e preconceitos (2009, p. 35). Löwy caracteriza esse processo, que

sobreviverá a outras formas de se pensar a objetividade nas ciências sociais, com a metáfora

do Barão de Münchhausen — que dá título ao seu livro —, personagem de uma história que

consegue escapar de um pântano onde estava afundando junto com seu cavalo pelo incrível

artifício de puxar a si próprio pelos cabelos.

Apesar das diferenças consideráveis do seu pensamento, que vai combater fortemente o

positivismo, no que nos interessa destacar neste trabalho, Weber é também herdeiro dessa

concepção. Ele nega que a sociedade seja regida por leis naturais e reconhece que não existe

nos fatos sociais uma objetividade que seja independente das premissas e valores do sujeito,

mas quebra a relação entre conhecimento científico e verdade no sentido mais universal, na

medida em que considera que, orientado por premissas distintas, se pode chegar a um sem

número de resultados, todos igualmente verdadeiros. Além disso, e mais importante para o

nosso debate, ele considera que, embora os valores orientem o recorte da realidade a ser

investigada, passado esse momento, é perfeitamente possível garantir um processo objetivo,

sem interpretações ou interferências subjetivas, e que essa é a condição para a validade

científica do conhecimento produzido — o que, como já apontamos, guarda uma

impressionante semelhança com o tratamento que a questão da objetividade recebe no modelo

de jornalismo informativo. Nos termos do autor:

(...) não devemos deduzir (...) que a investigação científico-cultural apenas

conseguiria obter resultados “subjetivos”, no sentido em que são válidos

193

para uns, mas não para outros. O que varia é o grau de interesse que se

manifestar por um ou por outro. Em outras palavras: apenas as ideias de

valor que dominam o investigador e uma época podem determinar o objeto

de estudo e os limites desse estudo. No que se refere ao método de

investigação — o como — é o ponto de vista dominante que determina (...) a

formação dos conceitos auxiliares que se utiliza; e quanto ao modo de os

utilizar, o investigador encontra-se evidentemente ligado às normas do nosso

pensamento. Porque só é uma verdade científica aquilo que pretende ser

válido para todos os que querem a verdade (Weber, 2003, p. 42-43).

No que diz respeito à relação entre objetividade e neutralidade, salta aos olhos nessa

proposição a questão sobre em que medida a resposta encontrada não é sempre determinada,

de alguma forma, pela pergunta. Como resume Löwy: “Na realidade, a problemática de uma

investigação científico-social não é somente um corte do objeto: ela define um certo campo de

visibilidade (e de não visibilidade), impõe uma certa forma de conceber este objeto, e

circunscreve os limites de variação das respostas possíveis” (2009, p. 49). A despeito dos

resultados específicos, quem pergunta sobre o estado da luta de classes num determinado

momento histórico encontrará, necessariamente, o retrato de uma sociedade dividida em

classes embora, pela perspectiva weberiana, essa ‘premissa’ possa não ser compartilhada por

todos os sujeitos. Quem pergunta sobre o papel da mídia na formação da opinião pública pode

se deparar com números maiores ou menores e descrições mais ou menos alarmantes, mas

necessariamente vai encontrar o retrato de uma sociedade em que instituições centralizadas e

distantes das pessoas exercem influência sobre suas decisões e comportamentos, o que, pelo

relativismo legitimado por Weber, um pesquisador mais radical adepto dos estudos de

recepção talvez pudesse questionar. Assim, na medida em que não identifica na realidade

objetiva, fora dos sujeitos, o insumo material para as ‘premissas’ científicas, atribuindo essa

prerrogativa à subjetividade de cada um, e ao mesmo tempo busca um resultado

objetivamente válido no final, Weber fica no meio do caminho do problema que o positivismo

colocou.

Não faltariam também exemplos diários da lacuna desse pensamento se fizéssemos uma

transposição adaptada para o trabalho jornalístico, embora aqui fossem necessárias muitas

mediações que preservassem, entre outras coisas, o fato de que a pergunta central que define

uma pauta necessariamente se desdobra em muitas outras. Vale, no entanto, pensar que,

quando uma reportagem vincula as demissões promovidas pela indústria à alta dos impostos

ou à diminuição da desoneração fiscal, ela encontrará números maiores ou menores, mas que

sempre confirmam uma determinada relação estabelecida previamente pela pauta. No

jornalismo, no entanto, fica mais fácil perceber uma outra — e mais importante — fragilidade

194

dessa concepção: o fato de ela limitar o espectro da neutralidade às opções e opiniões pessoais

dos sujeitos. Afinal, parece possível afirmar com alguma segurança que apenas uma pequena

parte dos ‘recortes’ que orientam as pautas jornalísticas tem origem em ‘premissas’ ou

‘interesses’ do jornalista. Sem que sequer entremos na discussão sobre o quanto, numa

sociedade capitalista, esses valores são ideologicamente formados, parece claro que a pauta

dos jornais se dá com variações limitadas sobre uma ‘agenda’ muito mais previsível (e

socialmente determinada) do que aberta à pluralidade das ideias pessoais. Embora

evidentemente haja espaço para a criatividade individual no jornalismo informativo, isso se dá

sobretudo em áreas consideradas periféricas, como as editorias que tratam de arte, e nem de

longe representa a regra; ao contrário, a regularidade das pautas nos autoriza a sugerir, sem

pesquisa empírica mas também sem medo de errar, que a desoneração fiscal das empresas sob

o argumento da geração de empregos é pauta dos principais jornais diários pelo menos uma

vez por ano.

Mas por que isso é importante? Porque é precisamente no sujeito cuja parcialidade

compromete mais ou menos a objetividade do conhecimento que está a principal diferença

entre as correntes que promovem variações do pensamento em torno do positivismo e a

tradição marxista. Para o materialismo, que é um dos principais alvos da desqualificação

científica promovida por Weber, a realidade não é autônoma e o conhecimento não se dá de

forma independente do sujeito, mas os ‘interesses’ que estão em jogo no desvelamento do real

que a ciência pode e deve produzir não remetem a um pesquisador individual e sim à classe

ou, mais precisamente, no contexto da sociedade burguesa, ao proletariado, que é também o

sujeito revolucionário69

. Como já sinalizamos na discussão sobre ideologia, para Marx, no

capitalismo, a ciência também expressa (e é determinada por) interesses de classe. E essa, nos

parece, é a medida da objetividade como determinação do jornalismo (e não funcionalidade

ideológica), que aqui estamos buscando. Vejamos mais de perto.

Para Marx, na ciência, a objetividade tem a ver com a capacidade do sujeito de

reproduzir, da forma mais fiel possível no pensamento, o movimento real do objeto ou fato

69

Está pressuposta em todo esse raciocínio a constatação de que o proletariado é também o sujeito

revolucionário, por ser a única classe universal, aquela cuja emancipação liberta todas as outras. Tratando do

contexto da Alemanha, mas numa afirmação que depois será desenvolvida para a análise geral das classes, diz

Marx: “Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis a nossa resposta: na

formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da

sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um

caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque

contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um

título histórico, mas apenas o título humano (...), por fim, que não pode se emancipar sem se emancipar de todas

a outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas (...). Tal dissolução da sociedade,

como um estamento particular, é o proletariado” (2010, p. 156).

195

estudado. Mas aqui já é preciso enfatizar, ainda que de forma muito rápida, que como

realidade histórica, esse mundo social está de fato sempre em movimento, portanto, o

conhecimento verdadeiro — e aqui nos limitamos a tratar da ciência — precisa ir além da

aparência (do que é imediatamente visível e descritível, que não é falso, mas é apenas parte

da verdade) para alcançar a essência dos fenômenos.

Marx não tem dúvida de que a realidade existe de forma objetiva, fora do sujeito, mas

sabe igualmente que, no que diz respeito ao objeto das ciências sociais, trata-se de uma

realidade construída pelos homens. “Isso significa que a relação sujeito/objeto no processo do

conhecimento teórico não é uma relação de externalidade, tal como se dá, por exemplo, na

citologia ou na física; antes, é uma relação em que o sujeito está implicado no objeto”, explica

Netto, e conclui: “Por isso mesmo, a pesquisa — e a teoria que dela resulta — da sociedade

exclui qualquer pretensão de ‘neutralidade’, geralmente identificada com ‘objetividade’”

(Netto, 2011, p. 23). Partindo-se da indissociabilidade entre teoria e prática, que marca a

tradição marxista, essa convicção não denota apenas uma opção metodológica, no sentido que

a ciência moderna atribuiu a essa palavra, mas é já parte do próprio desvelamento da realidade

histórica. Num trecho muito esclarecedor, que parece um alerta sobre o feitio da junção de

objetividade e imparcialidade que ultrapassa os limites do campo científico, Kofler nos

explica:

(...) na sociedade capitalista (...) o caráter das contradições chega a tal ponto

que os elementos contrapostos aparecem como independentes uns dos

outros. Por isto, para a consciência desta época, subjetividade e objetividade

mostram-se excludentes, contrapõem-se uma à outra rigidamente (...)

Tornar-se consciente da contradição entre subjetividade e objetividade

representa a forma mais alta da tomada de consciência nos quadros da “falsa

consciência” da sociedade de classes (...) (2010, p. 143).

Mais uma vez, precisamos não perder o rigor dos conceitos que nos conduziram até

aqui: dizer que essa cisão entre sujeito e objeto tem caráter ideológico significa, pela

perspectiva que estamos adotando, considerá-la como expressão ideal (no pensamento) de

uma cisão real entre sujeito e objeto, trabalhador e produto, que está dada, como vimos, na

forma original da mercadoria que rege as relações da sociedade capitalista. Essa reflexão é

importante, em primeiro lugar, para que se perceba como a questão da objetividade não pode

estar limitada a um debate sobre o maior ou menor autocontrole dos sujeitos individuais do

conhecimento, como, de modo geral, fizeram o positivismo e a sociologia compreensiva de

Weber. Como alerta Lukács: “(...) a contradição não reside na incapacidade de filósofos em

analisar de maneira unívoca os fatos diante dos quais se encontram; é, antes de tudo, a

196

expressão intelectual da própria situação objetiva que eles têm como tarefa compreender”

(2003, p.271, grifos nossos).

Assim, o conhecimento não é algo independente do movimento — de conformação ou

transformação — da própria realidade; a verdade científica é chave para o desvelamento das

contradições reais, o que, no contexto de uma sociedade de classes, pressupõe interesses e

possibilidades distintas de se alcançar a compreensão da totalidade social. E aqui reside

precisamente a não neutralidade do conhecimento.

De forma clara: se fomos felizes até aqui em demonstrar que o processo concreto de

inversão, ocultação, naturalização e universalização abstrata está na base das relações sociais

fundantes da sociedade capitalista, será fácil deduzir que parte do papel do conhecimento é

desvelar esse processo que, por mecanismos ideológicos que contam com agentes e

instituições próprias, permanece nublado. Como defenderemos mais adiante, não nos parece

que o conhecimento (mesmo o científico) seja suficiente para transformar as condições reais

— o que seria cair no idealismo que aqui já combatemos —, mas ele certamente é parte

fundamental para a ação concreta.

Mas se o conhecimento (verdadeiro) é elemento central da manutenção, abalo ou

destruição das contradições sociais reais, embora tocado por indivíduos, ele diz respeito a

interesses mais gerais, ligados às classes em oposição; e, mais do que isso, ele faz da classe

oprimida a maior interessada e mais capacitada para o desvelamento do real. Não é outro

senão este o sentido da frase ‘A verdade é revolucionária’, lema do jornal ‘L’Ordine Nuovo’,

fundado por Gramsci em 191970

.

Referindo-se à forma como a questão foi elaborada por Lucien Goldmann, que parece

adequada à perspectiva que aqui estamos assumindo, Löwy resume:

Enquanto classe universal, o proletariado aspira à abolição de todas as

classes e à instauração de uma sociedade sem classes. Não há atrás dele uma

outra classe, mais radical, da qual ele teria de se defender por mecanismos de

ocultação ideológica da realidade. Ele é, portanto, a primeira classe à qual

não interessa impedir qualquer tomada de consciência da realidade (2009, p.

165).

Não nos ocuparemos aqui da discussão pormenorizada sobre a superioridade da classe

trabalhadora no alcance do conhecimento verdadeiro que envolve as relações sociais. Esse

debate requereria uma revisão bibliográfica relativamente longa e o mapeamento de

polêmicas que ultrapassariam em muito nossos objetivos. Sobre isso, então, bastam dois

70

Quando de sua fundação, em 1919, tratava-se de um semanário, e tinha como subtítulo “Resenha semanal de

cultura socialista”. Apenas em 1921 ele passou a ser diário e adotar o lema aqui destacado (Moraes, 2013).

Disponível em http://blogdaboitempo.com.br/2013/11/27/o-jornalista-antonio-gramsci/.

197

comentários. O primeiro é que, com as constatações acima, não estamos assumindo uma

posição mais ‘radicalmente ontológica’ presente, principalmente na obra de Lukács, segundo

a qual, pela sua posição de classe, à burguesia estaria impedido o conhecimento verdadeiro

sobre a sociedade. Nosso empenho é de reconhecer aqui as determinações materiais,

buscando sempre escapar do que nos parece poder desdobrar em algum determinismo. Parece-

nos, então, suficiente argumentar — e aqui já entramos no segundo comentário — que, se é

verdade que a realidade social está sempre em movimento por tratar-se de um processo

histórico, o conhecimento desenvolvido sob a perspectiva de classe da burguesia esbarra

precisamente no obstáculo de uma certa a-historicidade, na medida em que, ao conter-se nos

limites da ordem burguesa, reconhece, logo na saída, um momento particular como se fosse

universal. E, de tão oportuno, vale aqui repetir um exemplo do campo jornalístico já

destacado em outra parte deste trabalho. Trata-se de um extrato do texto de 2011 em que as

Organizações Globo atualizam seus princípios editoriais (portanto, os critérios para o

conhecimento que produzem). Na sua última seção, o texto afirma:

O Grupo Globo (...) Não será, portanto, nem a favor nem contra governos,

igrejas, clubes, grupos econômicos, partidos. Mas defenderá

intransigentemente o respeito a valores sem os quais uma sociedade não

pode se desenvolver plenamente: a democracia, as liberdades individuais, a

livre iniciativa, os direitos humanos, a república, o avanço da ciência e a

preservação da natureza (2011).

Não cabe aqui confrontar essas afirmações com a prática jornalística do grupo,

buscando identificar contradições ou inverdades, mas, ao contrário, evidenciar o que, apenas

alguns passos além da superfície, o texto assume como limite do seu horizonte histórico.

Embora não adjetivada (porque tomada como forma universal), a democracia que aparece

como valor é a democracia burguesa, com todas as instituições que a sustentam, inclusive a

imprensa; as liberdades individuais e a livre iniciativa, produtos do pensamento liberal, são

princípios que só podem prevalecer numa ordem societária baseada na liberdade das trocas

comerciais e no indivíduo como célula do ser social; só é preciso garantir direitos humanos

numa sociedade em que a genericidade humana foi abalada e submetida às instâncias de

regulação econômica; e, por fim, a preservação da natureza só pode ser bandeira de um

momento histórico em que, em vez de agir para transformá-la, o homem entrou em confronto

com ela. O nome dessa ordem, que não precisa aparecer no texto porque se pressupõe seu

caráter eterno e universal, que parece o horizonte possível da humanidade mas é apenas um

momento particular das relações humanas, é capitalismo. E é essa particularidade que impõe o

primeiro limite ao conhecimento produzido pelo interesse de classe da burguesia.

198

Parece que temos agora todas as bases sobre as quais argumentar em torno de um

critério de objetividade que nos parece válido para todo conhecimento que a ela almeja, como

é o caso do jornalismo. Imaginamos que vários aspectos ideológicos da concepção de

objetividade que rege o jornalismo burguês tenham ficado claros já no transcorrer desse

debate geral, entre eles, principalmente, a acepção desse conceito como um valor entendido

quase como sinônimo de neutralidade, e o artifício de jogar sobre os ombros do jornalista a

responsabilidade sobre a imparcialidade (e portanto sobre a própria objetividade) possível da

informação jornalística.

Parece-nos que, em grande medida, o jornalismo informativo é a própria assunção do

caráter de classe do conhecimento para o qual Marx nos alertou, embora referindo-se à

ciência. Trata-se, portanto, como já temos dito, do jornalismo burguês, numa expressão em

que o adjetivo não é um mero desqualificador, mas uma identidade de classe. Seu caráter

ideológico está em, apesar dessa particularidade, pretender passar-se como universal, em

promover um conhecimento do imediato e uma consequente leitura da realidade que, à custa

dos esforços de neutralidade, tenta parecer o equilíbrio possível do interesse geral.

Sua funcionalidade ideológica está, então, numa mistura desorganizada de referências

que aqui identificamos com a sociologia positivista e compreensiva, mas que certamente tem

muitas outras inspirações — na qual o fato fala por si mas o jornalista precisa controlar a sua

subjetividade, e as interferências têm no nível individual o seu limite e podem ser

tecnicamente controladas — identificar a objetividade com a imparcialidade. Não nos parece

haver dúvidas de que o conhecimento de que o jornalismo trata, a despeito da forma

socialmente necessária que ele assumiu no capitalismo, é objetivo no sentido de que busca

refletir um conjunto de fatos reais e concretos, que existem fora da cabeça do jornalista,

embora nunca de forma autônoma em relação à ação dos sujeitos sociais.

Mas, como vimos, também em relação ao jornalismo — se pensado ‘limpo’ da

instrumentalização burguesa, como o exercício que aqui estamos tentando —, cumpre negar

tanto a ideia de que ele produz um conhecimento i-mediato (no sentido de sem mediação), em

que os fatos falam por si, quanto a de que a única mediação existente é a figura do jornalista,

sem considerar todo o aparato que, em nome da estrutura necessária para o funcionamento

profissional dessa atividade na forma que ela assumiu contemporaneamente, constrói um

conjunto de a prioris que funciona como filtro de seleção e leitura da realidade. Assim,

pensando no sentido contrário, o que pode fazer de um veículo de imprensa ou de um modo

de fazer jornalismo um verdadeiro esforço contra-hegemônico não são os adjetivos mais ou

199

menos fortes utilizados para qualificar os processos burgueses ou a disposição ou boa vontade

do jornalista, embora isso seja sempre desejável, mas o seu real pertencimento de classe,

materializado em aparelhos privados de hegemonia dos trabalhadores e orientado pela

universalidade já desvendada por uma ciência também engajada com a tarefa da emancipação

humana.

Por fim, é preciso guardar coerência com a noção, aqui muitas vezes repetida, de que,

no capitalismo, a realidade objetiva encontra-se invertida, o que significa negar também,

como forma determinante do jornalismo, o equivalente a uma teoria do reflexo que apenas

reproduza, de forma naturalizada, uma objetividade que encontra-se ferida na base.

4.2. Atualidade/imediaticidade: a questão do cotidiano

Parece ter ficado claro, a partir da análise empreendida no capítulo anterior, que a

atualidade (ou imediaticidade) é um dos requisitos principais da prática jornalística e um dos

pilares do conhecimento com o qual ela lida. Não se trata, naturalmente, de uma afirmação

embasada num inventário de cada notícia até hoje publicada, mas sim na análise de um

conjunto de características gerais, que se mantêm ao longo da história do jornalismo, apesar

de todas as mudanças que ele sofreu. Como vimos, trata-se, ainda hoje, do que orienta essa

prática como profissional e, mais do que isso, do que legitima o produto notícia ou o produto

jornal diante dos consumidores de informações. Não por acaso, quando se pensa na versão

escrita, a forma mais característica da imprensa é o jornal diário, sem falar no jornalismo de

rádio, TV e, mais recentemente, internet, que diminuem consideravelmente o intervalo das

notícias, sustentando-se numa atualidade de informações que demanda também uma crescente

velocidade, tanto da produção quanto da sua validade.

Ocorre que um conhecimento sobre o atual, que não segue o tempo da ciência, e atende

a necessidades — reais e/ou fabricadas — também atuais, tem necessariamente como objeto o

cotidiano. Assaltos, denúncias de corrupção, cotações da bolsa, pronunciamentos políticos,

decisões de governo, balancetes econômicos, descobertas científicas, conflitos internacionais,

fofocas de celebridades: o jornal é um retrato diário do cotidiano socialmente compartilhado.

A atualidade de hoje — a nova lei aprovada ou a queda da taxa de juros — é, do ponto de

vista jornalístico, o recheio de cada dia de uma regularidade absolutamente cotidiana.

Não é o cotidiano vivido dos indivíduos particulares, no seu caráter pessoal, mas o

cotidiano socialmente compartilhado, aquele que ratifica a reprodução diária do mesmo modo

de vida. Um cotidiano que, no que tem de insuprimível, expressa uma dimensão particular da

200

vida humana, mais imediata e necessariamente pragmática; mas que, na sua forma capitalista,

torna-se parte de um mecanismo de regulação do conjunto da vida social. Tem cabido à

imprensa, e a um certo tipo de jornalismo, por exemplo, a tarefa de ‘falsificação’ do ‘novo’

produzido a partir do velho requentado em etapas circulares, e de domesticação daquilo que

tenta escapar ao regular.

A relação intrínseca com o cotidiano e seus desdobramentos no senso comum são,

então, neste trabalho, a forma determinante do jornalismo em geral pela qual traduziremos as

ideias de atualidade e imediaticidade da notícia que caracterizam o jornalismo burguês.

Tentemos, então, nos aproximar do nosso problema.

Abordando sua experiência no Chile de Salvador Allende, os pesquisadores Armand e

Michèle Mattelart relatam uma “batalha desigual”: segundo eles, no esforço de reação ao

poder popular, as “forças de direita” conseguiram mais facilmente “falar em nome dos

interesses cotidianos das pessoas porque, para as pessoas, o cotidiano é a vida num regime

capitalista” (1977, p. 6, grifos nossos). Esse, nos parece, é um dos principais desafios que se

apresenta ao esforço de encontrar, numa prática originalmente burguesa como o jornalismo,

potenciais que justifiquem sua existência como elemento de contra-hegemonia no capitalismo.

Moretzsohn resume: “(...) o jornalismo teria, no postulado iluminista que o orienta, a própria

origem do seu dilema: lidar com a imediaticidade dos fatos com um distanciamento capaz de

conferir-lhes sentido, lidar com a vida cotidiana com a perspectiva de fornecer-lhe elementos

de crítica” (2007, p. 239).

Trata-se de uma contradição que toca diretamente na relação entre determinação e

forma socialmente necessária do jornalismo, que estamos buscando identificar neste capítulo.

Em termos mais precisos, poderíamos dizer que ela se manifesta na questão sobre como um

conhecimento que dá centralidade à dimensão particular e atual dos fenômenos — numa

ligação estreita, portanto, com o cotidiano reificado do capitalismo — pode fomentar a

superação desse cotidiano e das relações que ele engendra.

Comecemos, então, por uma discussão panorâmica sobre o papel do cotidiano nas

relações formatadas pelo capitalismo avançado, e que, como supomos, conta com a imprensa

e seu jornalismo informativo para desempenhar funções específicas. Esse retrato geral

facilitará nosso trabalho de, na sequência, identificar, nas características do cotidiano

insuprimível — aquele que existe a despeito da forma que assume na sociedade atual — o que

podemos considerar também determinação do jornalismo como um modo de conhecimento

sobre esse cotidiano.

201

O pesquisador Henri Lefebvre dedicou parte importante da sua obra à discussão do

cotidiano, abordando a questão a partir da sua relação com a modernidade e, mais

especificamente, como um traço que toma todas as esferas da vida a partir de algumas fases

do desenvolvimento do capitalismo. Sua preocupação é discutir a cotidianidade que nasce

como produto inseparável da modernidade e que se torna o principal foco da estratégia de

dominação de classe a partir, principalmente, das transformações que se dão na chegada do

capitalismo concorrencial e na sua passagem para o capitalismo monopolista. “Evidentemente

sempre foi preciso alimentar-se, vestir-se, habitar, produzir objetos, reproduzir o que o

consumo devora. No entanto, até o século XIX, até o capitalismo de concorrência, até o

desdobramento desse ‘mundo da mercadoria’, não tinha chegado o reino da cotidianidade”

(Lefebvre, 1991, p. 45), diz o autor, referindo-se a uma sociedade em que o cotidiano é

progressivamente organizado, controlado e programado.

O desenvolvimento de uma sociedade marcada pela cristalização do cotidiano, embora

tenha como marco inicial a “generalização da economia mercantil” (1991, p. 36), ainda no

século XIX, aparece em Lefebvre muito associado à derrota do teor revolucionário de

movimentos que compuseram um certo momento histórico. Ele se refere muito

frequentemente às lutas de Libertação da França do domínio nazista, assinalando o quanto,

após o fim da opressão estrangeira, instala-se uma outra ordem de opressões que, no entanto,

ganham ideologicamente a aparência de liberdade (Lefebvre, 1991, p. 88). Nesse caminho, a

cotidianidade que vai progressivamente marcando o essencial da sociedade moderna se

constitui e ao mesmo tempo revela um movimento de negação, quase desistência, da

revolução.

Netto nos explica que, durante o capitalismo comercial e mesmo ainda no capitalismo

industrial-concorrencial, restavam, para os indivíduos, brechas para o exercício da autonomia.

É na quase total eliminação desse espaço de ‘manobra’ que consiste a invasão que o cotidiano

sofre na sociedade moderna.

Na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social

preenche todos os espaços e penetra todos os interstícios da existência

individual: a manipulação desborda a esfera da produção, domina a

circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que permeia

a totalidade da existência de agentes sociais particulares — é o inteiro

cotidiano dos indivíduos que se torna administrado, um difuso terrorismo

psicossocial que destila de todos os poros da vida e se instala em todas as

manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia

reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização

doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação de imaginários, a

202

gratuidade do ócio, etc.) convertem-se em limbos programáveis (Netto,

2010, p. 87)

Mais do que a imediaticidade que, como veremos mais detalhadamente, é própria da

percepção da vida cotidiana, Netto nos explica que a marca do “capitalismo tardio” é a

“faticidade pela qual o ser social se revela na cotidianidade”, que é vivida e percebida como

“um conglomerado de coisas, dados e fatos sociais” (2010, p. 89). Essa caracterização nos

parece por ora importante para pensarmos o contexto no qual emerge e se desenvolve o

modelo de jornalismo em voga.

Lefebvre descreve, ao longo da sua obra, alguns mecanismos de organização e controle

desse cotidiano, que em última instância é estratégia de sustentação e reprodução da ordem

vigente, dando ênfase, por exemplo, à burocracia. Mas, com isso, entendemos que ele fornece,

sem querer, uma possível pista para este trabalho: não seria o jornalismo burguês, ferramenta

desenvolvida empresarialmente nessa passagem histórica a que o autor se refere, uma das

principais estratégias de organização e programação desse cotidiano moderno? Mais uma vez

alertas para os riscos de um historicismo superficial, ainda assim nos parece pertinente

apontar a coerência entre contextos: Lefebvre associa o cotidiano organizado à chegada do

capitalismo concorrencial, já no século XIX — portanto quando se dão, segundo a linha deste

trabalho, as mudanças mais estruturais e estáveis no modo de se fazer jornalismo, um

verdadeiro esforço de padronização —, e localiza na segunda metade do século XX o

momento a partir do qual o cotidiano, além de recortado e organizado, passa a ser também

programado (Lefebvre, 1991, p. 72). A chave dessas mudanças, segundo o autor, é a

necessidade de se dirigir o consumo — já que a produção vai deixando de ser “aleatória”

(1991, p. 67) — e isso demanda uma ação sobre o cotidiano. Lefebvre define essa sociedade

como “burocrática de consumo dirigido” (1991, p. 68), uma nomenclatura que, apesar de

enfocar outros aspectos, ele reconhece como compatível, por exemplo, com a noção de

capitalismo monopolista de Estado.

Diríamos que o que chama a atenção de Lefebvre nas mudanças econômicas e sociais

que ele aponta coincide, pelo menos parcialmente, com muitas outras abordagens que tratam

do mesmo contexto. Ao sinalizar, por exemplo, que cada vez mais a relação entre produção e

consumo precisa de mediações, ele parece transitar pelo mesmo terreno das análises que

apontam o fortalecimento da sociedade civil como terreno privilegiado das novas estratégias

de dominação de classe; ressaltando o papel da cultura e das instituições nessa mediação,

parece se referir ao mesmo contexto em que, por abordagens e referenciais distintos,

Althusser fala de aparelho ideológico de Estado e Gramsci, que melhor dialoga com este

203

trabalho, trata dos aparelhos privados de hegemonia. Lefebvre, no entanto, destaca, nessa

dinâmica, a dimensão do cotidiano, que nos ajuda a compreender o que há de específico no

jornalismo como parte integrante dessas mudanças. O autor aponta a vida cotidiana como o

“lugar social” do que ele chama de feedback (ou equilíbrio momentâneo) entre produção e

consumo, estrutura e superestrutura, conhecimento e ideologia (Lefebvre, 1991, p. 39);

sinaliza que ela é, ao mesmo tempo, resíduo e produto dessas novas relações. “Lugar de

equilíbrio, é também o lugar em que se manifestam os desequilíbrios ameaçadores. Quando as

pessoas, numa sociedade assim analisada, não podem mais continuar a viver sua

cotidianidade, então começa uma revolução. Só então. Enquanto puderem viver o cotidiano,

as antigas relações se reconstituem” (Lefebvre, 1991, p. 39). A tarefa de administração do

cotidiano, que supomos ser uma atribuição também do conhecimento produzido pelo

jornalismo, parece, então, tarefa fundamental à manutenção da ordem do capital.

Embora o autor praticamente não dê um tratamento positivo prático a esse potencial

transformador que identifica no cotidiano, lançando mão apenas de uma ideia de revolução

cultural que nos parece vaga e pouco desenvolvida, entendemos que aqui ele contribui para

que se pense o cotidiano como manifestação sensível das condições materiais criadas por essa

sociedade da mercadoria que emerge. Ainda que sem mediação nem discussão de tática ou

estratégia na obra referida, essa parece uma primeira pista para buscarmos o cotidiano — e o

jornalismo — como potencial espaço de ação transformadora.

Dando um salto para o início da segunda metade do século XX, o autor aposta no

potencial mobilizador do mal-estar que essa sociedade burocrática de consumo dirigido impõe

a diversos grupos mas, especialmente, aos trabalhadores. Para estes, diz, “a cotidianidade se

compõe sobretudo de pressões e comporta um mínimo de apropriações” (Lefebvre, 1991, p.

101).

A classe operária não pode mais deixar de ser profundamente decepcionada.

É a primeira entre as camadas e classes sociais que sente essa frustração. Sua

“consciência de classe” se restabelece com dificuldade, e no entanto não

pode desaparecer. Ela se torna “mal-entendido” das classes, mas, por essa

razão, está presente em toda reivindicação. A reivindicação tende

obscuramente a ultrapassar as questões de salário (que não desaparecem)

para se estender à organização do cotidiano (Lefebvre, 1991, p. 101).

Recuperemos o contexto: Lefebvre escreve na França, em 1968. Não por acaso, aponta

a maior opressão da classe operária mas destaca também os efeitos da cotidianidade moderna

sobre os intelectuais, os jovens e as classes médias. A Europa, principalmente, vive, nesse

momento, os resultados do que David Harvey chama de um modelo fordista-keynesiano que

204

tem “como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de

consumo e configurações de poder político-econômico” (Harvey, 2012, p. 119), que tem

origens nos Estados Unidos. Facilitando, a nosso ver, o diálogo com o conjunto de mudanças

que Lefebvre nos mostra que incidem sobre o cotidiano, Harvey, adotando a ideia de “modos

de regulamentação”, mostra como, para se reproduzir, um modelo de acumulação precisa se

materializar em todas as esferas da vida humana. Se no capitalismo de forma geral, como

sabemos, a lógica da mercadoria precisa ir além das relações propriamente de produção,

atingindo crescentemente todas as dimensões da vida, da mesma forma os modos específicos

de acumulação que marcam as diferentes fases do capitalismo precisam se refletir nos espaços

e relações que estão além da esfera da produção e mesmo do consumo. Sobre o modelo

fordista-keynesiano, diz o autor: “A disciplinação da força de trabalho para os propósitos de

acumulação do capital (...) envolve, em primeiro lugar, alguma mistura de repressão,

familiarização, cooptação e cooperação, elementos que têm de ser organizados não somente

no local de trabalho como na sociedade como um todo” (Harvey, 2012, p. 119, grifo nosso).

Eis aí, supomos, o cotidiano organizado e planejado que Lefebvre nos aponta. “Se essa

sociedade coloca no primeiro plano de suas preocupações a racionalidade, a organização, o

planejamento mais ou menos aprofundados, pode-se ainda distinguir um nível ou uma

dimensão suscetível de se chamar cotidianidade? Nessa sociedade, ou o cotidiano se confunde

com o organizado e com o razoável e ponto final — ou então não é nada!”, atesta o autor

(Lefebvre, 1991, p. 53).

Não podemos ignorar, no entanto, que o capitalismo sofrerá novas mudanças

importantes no final do século XX. Harvey data de 197371

o colapso desse modelo, que vem

sendo não substituído, segundo sua argumentação, mas modificado, acrescido, radicalizado

nos seus objetivos, pelo regime de acumulação flexível (2012, p. 119), que, em “confronto

direto com a rigidez do fordismo”, “se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos

mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” (Harvey, 2012, p. 140). Mudam

os mecanismos de controle que, agora cada vez mais pela dispersão e pela mobilidade,

71

Essa periodização naturalmente precisa sofrer ajustes para ser reconhecida no contexto do capitalismo tardio

que se desenvolve no Brasil. Na década de 1980, em que, nos países mais desenvolvidos, o modelo de

acumulação flexível ganhava formas mais precisas que, consideradas todas as mediações necessárias,

desdobrariam num descenso das lutas sociais, num processo de enfraquecimento dos sindicatos e apassivamento

das classes trabalhadoras, no Brasil eclodia um importante ciclo de greves que evidenciavam a força da

organização sindical sobretudo na relação com os operários das fábricas, que atuavam ainda fundamentalmente

sob o regime fordista. Embora a História não seja um ciclo de repetição programada, processo semelhante de

descenso das lutas, ainda que com características próprias à realidade nacional, aconteceu por aqui na década de

1990, também aliado, em certa medida, com os processos de reestruturação produtiva do modelo de acumulação

flexível.

205

continuam garantindo a organização do cotidiano necessária ao desenvolvimento do capital

(2012, p. 150). E, segundo o autor, isso implicou, como não poderia deixar de ser, a mudança

de normas, hábitos, atitudes culturais e políticas, que terão como um dos desdobramentos

principais a valorização de um profundo individualismo.

Como o sucesso político do neoconservadorismo dificilmente pode ser

atribuído às suas realizações econômicas globais (...), vários comentadores

têm atribuído sua ascensão a uma mudança geral das normas e valores

coletivos que tinham hegemonia, ao menos nas organizações operárias e em

outros movimentos sociais dos anos 50 e 60, para um individualismo muito

mais competitivo como valor central numa cultura empreendimentista que

penetrou em muitos aspectos da vida (Harvey, 2012, p. 161).

Todas essas transformações, a que Lefebvre não poderia se referir porque não as viveu,

representam também significativas mudanças — ou aperfeiçoamentos — no papel do

cotidiano. O próprio destaque que Harvey dá à valorização de uma perspectiva individualista

e competitiva se apresenta como um primeiro elemento que incide diretamente sobre essa

cotidianidade que, entre outras coisas, é cada vez menos vivenciada, por exemplo, no

sindicato, no partido e mesmo nos locais compartilhados de trabalho. Mas algumas

características dos novos processos de trabalho que se tornam recorrentes são ainda mais

reveladoras. A ampliação do trabalho no setor de serviços e a flexibilização da jornada, assim

como a individualização crescente do processo de trabalho — que radicaliza a fragmentação

produzida pelo fordismo —, têm efeitos diretos sobre a forma como se realizam os encontros,

o modo como se administra o tempo e, consequentemente, sobre a forma como se vive o

cotidiano na sociedade contemporânea. Supomos, no entanto, que assistimos, por outros

meios, a um aprofundamento do reino da cotidianidade que Lefebvre nos denuncia, a uma

vida cotidiana que, mais do que organizada, controlada e programada, passa a ser

indiferenciada, subsumida às esferas produtivas, e não mais apenas pelo consumo, como nos

alertava o autor. A “festa reencontrada”, que Lefebvre metaforicamente defende como

objetivo a seguir, nos parece ter chegado, mas não como a superação da oposição

‘cotidianidade-festividade’, como propõe o autor, e sim como indiferenciação entre festa e

trabalho/mercadoria.

Todas essas mudanças, no entanto, não invalidam a crítica que Lefebvre desenvolve

sobre a cotidianidade moderna — muito pelo contrário. Aliás, não deve ser por acaso que ele

206

e Agnes Heller (esta com o apadrinhamento de Lukács) elegem o cotidiano como tema central

da sua discussão no mesmo período72

.

E se a crítica se mantém pertinente, os esforços de se burlar esse ‘esquema’ ainda

existem como desafio. Embora escreva no ‘olho do furacão’, Lefebvre não desenvolve uma

crítica catastrofista. Ao contrário, explica ele: “Nosso objetivo, é preciso lembrar, é mostrar

aqui que não há sistema de cotidianidade apesar dos esforços para constituí-lo e fechá-lo. Há

somente subsistemas separados por lacunas irredutíveis, e no entanto situados sobre um plano

ou ligados a esse plano” (Lefebvre, 1991, p. 96). E propõe: “Para quebrar o círculo vicioso e

infernal, para impedir que se feche, é necessária nada menos que a conquista da cotidianidade,

por uma série de ações — investimentos, assaltos, transformações — que também devem ser

conduzidas de acordo com uma estratégia” (Lefebvre, 1991, p. 82). A busca dessa estratégia

parece hoje ainda mais atual do que na segunda metade do século XX, quando Lefebvre fez

seu apelo. Embora, como já assinalamos, no desenvolvimento do capitalismo que se deu na

sequência, a cotidianidade controlada e controladora tenha se espalhado para além da

influência direta das estratégias de consumo, o que mostra a necessidade de a questão ser

tratada por um conjunto de atores e instituições da vida social, visamos aqui pensar o

jornalismo como uma das ferramentas possíveis para que se produzam novos “investimentos”

e “transformações” do cotidiano e da realidade mais ampla que ele sustenta.

Nessa cotidianidade que se instala, ganham protagonismo — sobretudo a partir de 1950,

com a recente derrota do fascismo na Europa e o consequente fortalecimento do estalinismo

na União Soviética, num contexto que Lefebvre (1991, p. 48) caracteriza como de

expropriação da consciência operária e enfraquecimento do materialismo dialético —, os

valores e a “cultura” das classes médias, o que parece ser indissociável de um certo processo

de nublamento da noção de classes, representando um obstáculo para o desenvolvimento da

consciência além da imediaticidade. Essas classes médias, definidas muito mais pelos seus

modos de vida do que pelo lugar que ocupam em relação aos meios de produção no

capitalismo, apresentam-se como um espaço aberto e conquistável do sonho de consumo, do

cotidiano invejado por aqueles que se encontram na parte de baixo da balança de consumo do

capital. É em torno dessas classes médias, cada vez mais, que se desenvolvem os hábitos

cotidianos de um consumo que, no entanto, será dirigido não apenas a elas, mas ao conjunto

mais amplo possível da sociedade. É principalmente em torno dessas mesmas classes médias

72 O que há de novidade, para além de tudo que já comentamos, é que, de tão presente, de tão intenso e

tentacular, esse “reino da cotidianidade” simplesmente deixou de ser tematizado. Sua presença nos estudos

científicos se dá crescentemente na forma de método ou abordagem, significando, portanto, não uma tematização

crítica, mas a própria representação de uma (importante) dimensão desse cotidiano programado.

207

e dos seus gostos médios (fabricados), que se organiza a indústria cultural e a imprensa de

massa. O jornalismo informativo, com sua padronização asséptica e objetividade programada,

é uma das formas ideológicas de reprodução desse caráter ‘médio’, pretensamente sem classe,

que se pretende imprimir socialmente.

Mas se o cotidiano torna-se espaço de organização e controle do capitalismo avançado e

o jornalismo é uma forma de conhecimento que se dá no e sobre o cotidiano da sociedade

capitalista, seria ainda assim possível afirmar e desenvolver essa prática como esforço de

superação da ordem burguesa?

Para responder a essa pergunta, tentemos agora nos aproximar das características

específicas, próprias do cotidiano não só do capitalismo mas do homem na sua condição de

ser social. A partir daqui, portanto, trataremos do cotidiano no e sobre o qual atua o

jornalismo como uma dimensão insuprimível da vida humana, o que pode ser facilmente

compreendido pela constatação de que, em qualquer tempo, em qualquer contexto, todos os

homens, mesmo aqueles mais socialmente destacados, vivem uma rotina de ações e demandas

práticas, que requerem respostas e intervenções imediatas. Com isso, ressaltamos que a

sociedade capitalista produziu e instrumentalizou um certo cotidiano, alienado na medida em

que é expressão das relações sociais de produção. Mas, apesar de todas as condições

estruturantes que fazem dele um espaço-tempo menos propício à reflexão ou à organização,

outros cotidianos são possíveis. Não seria esse o espaço de atuação de um jornalismo contra-

hegemônico?

(...) a vida cotidiana não é alienada necessariamente, em consequência de sua

estrutura, mas apenas em determinadas circunstâncias sociais. Em todas as

épocas, existiram personalidades representativas que viveram numa

cotidianidade não alienada; e, dado que a estruturação científica da

sociedade possibilita o final da alienação, essa possibilidade encontra-se

aberta a qualquer ser humano (Heller, 2004, p. 39).

Ressaltando que esse caráter “insuprimível” do cotidiano em nada se confunde com uma

abordagem “meta-histórica”, Netto completa: “(...) se em toda sociedade existe e se põe a

cotidianidade, em cada uma delas a estrutura da vida cotidiana é distinta quanto ao seu

âmbito, aos seus ritmos e regularidades e aos comportamentos diferenciados dos sujeitos

coletivos (grupos, classes, etc.) em face da cotidianidade” ( 2010, p. 66). Essa é, portanto, a

chave para que se busque também a distinção possível do conhecimento sobre esse cotidiano

— que tem, entre outros intérpretes, a prática jornalística.

Trataremos, então, agora de algumas características ‘ontológicas’ do cotidiano, que nos

permitem compreender melhor o funcionamento da ação e do pensamento nessa esfera da

208

vida, buscando sempre identificar em que medida elas se expressam ou não como

determinação do jornalismo. De acordo com Agnes Heller, a característica “dominante” da

vida cotidiana é a espontaneidade. Trata-se, se assim podemos dizer, da ‘disposição’ que

permite aos indivíduos entrarem em contato com as questões da vida cotidiana de forma

pouco refletida e acrítica — sem grandes questionamentos ou classificações — e com

“motivações efêmeras”. É essa pré-disposição que facilita a assimilação das regras, modismos

e regularidades de toda ordem que compõem o cotidiano. “Pois, se nos dispuséssemos a

refletir sobre o conteúdo de verdade material ou formal de cada uma de nossas formas de

atividade, não poderíamos realizar nem sequer uma fração das atividades cotidianas

imprescindíveis” (Heller, 2004, p. 30). Tal como, no jornalismo, o critério da atualidade da

notícia não elimina a regularidade do cotidiano sobre o qual ele atua, mas, ao contrário, se

apresenta como seu par dialético, no cotidiano vivido a regularidade também não exclui a

espontaneidade. Heller explica: “A assimilação do comportamento consuetudinário, das

exigências sociais e dos modismos, a qual na maioria dos casos, é uma assimilação não

tematizada, já exige para sua efetivação a espontaneidade” (2004, p. 30). Afinal, é apenas a

partir de uma certa naturalização do modo de vida que se pode garantir a repetição quase

‘automática’ das necessidades e regras de convívio que a vida cotidiana requer.

Outra característica do cotidiano que nos interessa é a heterogeneidade, que diz respeito

ao fato de o cotidiano ser o lugar de “interseção” de fenômenos e processos de naturezas

diferentes e, muitas vezes, múltiplas, o que significa a constatação de que, no cotidiano, o

homem se ocupa de uma multiplicidade de coisas, sem poder se dedicar ‘intensamente’ —

como faz o artista com a arte, o cientista com a ciência — a nenhuma delas (Netto, 2010, p.

67). A necessidade de dar conta do conhecimento atual sobre um mundo cada vez mais

complexo, em que a totalidade social envolve a relação de um número também crescente de

fenômenos e áreas que se inter-relacionam e se autodeterminam, faz da heterogeneidade um

traço reconhecível no jornalismo em geral. No tempo que lhe é peculiar, o jornalismo

dificilmente consegue reconhecer e estabelecer boa parte das relações possíveis envolvidas

nos fenômenos noticiados. Diante dessa impossibilidade estrutural, expressa sua

heterogeneidade apresentando diferentes determinações, causas e consequências indiretas de

um mesmo fenômeno na forma de outras informações, outros fatos, outras notícias. Mas aqui

temos também a heterogeneidade do jornal reforçando, em maior ou menor grau, uma outra

característica do cotidiano vivido, que Netto chama de “superficialidade extensiva”. Trata-se

da tendência dos indivíduos a, na vida cotidiana, levarem em conta “o somatório dos

209

fenômenos que comparecem em cada situação precisa, sem considerar as relações que os

vinculam” (2010, p. 67). Combinadas, uma como característica intrínseca ao seu próprio

modo de fazer e outra como desdobramento deste no cotidiano das pessoas, heterogeneidade

e superficialidade extensiva nos parecem determinações (que são sempre também limitações)

gerais do jornalismo. Na forma socialmente necessária do capitalismo avançado, elas se

intensificam na fragmentação ‘profissionalizada’, pelo ‘método’ e pela organização do jornal,

que elimina, a priori, mesmo as relações que poderiam ser estabelecidas por um processo que

tente ir além da esfera puramente particular dos fenômenos. Da mesma forma, vale registrar

que, principalmente a heterogeneidade, associada contraditoriamente a uma profunda

homogeneização padronizada, passa a ser um traço distintivo também da cultura e da

comunicação de massa em geral — nas quais o jornalismo informativo se insere, mas que vai

muito além dele.

A imediaticidade, também característica própria do trato no cotidiano, embora muitas

vezes pensada como uma questão puramente temporal, aqui diz respeito à ausência de

mediação, ou seja, ao estabelecimento de uma “relação direta entre pensamento e ação”.

Caracteriza, assim, o padrão necessário das relações cotidianas, que requerem respostas ativas

e rápidas, e tem como desdobramento uma certa indiferenciação entre o que é ‘correto’ e o

que é ‘verdadeiro’, atribuindo à vida cotidiana uma atitude marcada também pelo

pragmatismo (Heller, 2004, p. 32).

Ambos [pensamento e prática] se expressam, liminarmente, num

materialismo espontâneo e num tendencial pragmatismo. Os

constrangimentos da dinâmica cotidiana exigem que os indivíduos

respondam a eles sem pôr em causa a sua objetividade material — mesmo o

solipsista mais extremo, atravessando uma avenida, estuga o passo para

escapar de um veículo, sem questionar a natureza da sua representação

mental. A mesma dinâmica requisita dos indivíduos respostas funcionais às

situações, que não demandam o seu conhecimento interno, mas tão-somente

a manipulação de variáveis para a consecução de resultados eficazes — o

que conta não é a reprodução veraz do processo que leva a um desfecho

pretendido, porém o desfecho em si; no plano da cotidianidade, o critério da

utilidade confunde-se com o da verdade. (Netto, 2010, p. 68, grifos nossos)

Essa relativa desconexão entre pensamento e ação gera ainda outras formas de

relativização da verdade porque, na medida em que não se pode questionar tudo, e tampouco

se pode comprovar tudo que mobiliza o nosso cotidiano, nessa esfera o conhecimento deixa

de ser algo verificável para se tornar uma questão de fé ou confiança. Heller exemplifica:

“Não basta ao médico acreditar na ação terapêutica de um remédio, mas essa fé é suficiente

para o enfermo (...)” (2004, p.33).

210

Para além do sentido em que pode ser considerada sinônimo de atualidade, e que temos

por vezes assumido neste trabalho, a questão da imediaticidade requer ponderações

importantes para que não caiamos numa transposição automática de conceitos. Isso porque,

embora estejamos tentando identificar, na caracterização ontológica do cotidiano,

determinações também estruturais para o jornalismo, é preciso não ignorar que, sem mais

adjetivos, o cotidiano é uma esfera da vida vivida diretamente, enquanto o jornalismo é,

segundo nossa hipótese, uma forma de apreensão e organização do real que tem nessa esfera

(e na dimensão da particularidade que ela expressa) o ponto nevrálgico de sua atuação. E,

como sabemos, toda forma de conhecimento pressupõe alguma mediação. Em outras palavras,

a notícia não é o fato acontecido; parodiando Marx, ela pode ser, no máximo, a reprodução

ideal (no pensamento do sujeito que a produz) de uma parte, recortada e limitada, do fato real,

e, ainda assim, interrompido no seu movimento dialético73

.

Assim, se é verdade que o jornalismo lida com uma dimensão dos fenômenos que

precisa eliminar parte das mediações que levariam, por exemplo, à universalidade

cientificamente apreendida de um fenômeno, isso não pode sustentar a defesa de uma prática

sem intencionalidade, sem projeto, sem um ‘pressuposto singular’ que a oriente. O risco é

duplo: por um lado, de se aceitar que o par objetividade/imparcialidade é uma determinação

própria do jornalismo, e não ferramenta da sua instrumentalização burguesa; por outro, cair na

defesa espontaneísta de um jornalismo declaratório, testemunhal, quase confessional, que

absolutiza a experiência como critério da verdade e, com isso, se aprisiona na mais restrita

particularidade, sem a mediação da organização e dos métodos coletivos.

Da mesma forma, a necessidade de confiar ou ter fé nas verdades narradas ou

produzidas por outras pessoas, própria da inverificabilidade da vida cotidiana, não é um

problema em si na medida em que, por um lado, essa esfera manipula conhecimentos e

verdades científicas que, pela utilidade prática, são cristalizadas e repassadas pelas gerações

sem que se precise de prova, e, por outro, se sustenta sobre relações entre pessoas e grupos

que afetivamente justificam o sentimento de confiança. Chamamos a atenção para esse ponto

porque ele nos parece fundamental para compreendermos o processo de transferência que a

comunicação de massa promoveu e que, em grande medida, o modelo de jornalismo

informativo favoreceu. O jornal de grupos, movimentos sociais e, historicamente, de partidos,

justificavam essa confiança porque refletiam, em alguma medida, posições de identidade com

os seus leitores. A imprensa massiva produz uma fé distanciada, sem identidade nem afeto,

73

Aqui, brincamos com a definição de Netto, segundo a qual, para Marx, a teoria é “a reprodução ideal do

movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa” (Netto, 2011, p. 21).

211

garantida pelo mito socialmente construído de que a realidade mostrada pelo jornalismo é

cientificamente (leia-se: metodologicamente) descoberta, presenciada por um profissional

treinado para ser objetivo e imparcial. Não foi por acaso que usamos a palavra ‘confiança’

para nos referirmos ao jornalismo político e a palavra ‘fé’ para tratarmos do jornalismo

informativo: de acordo com Agnes Heller, a confiança é um sentimento mais enraizado,

ancorado em alguma forma de saber, que pressupõe que o indivíduo esteja minimamente

consciente “com sua essência humano-genérica e com sua particularidade individual”,

enquanto a fé “está em contradição com o saber”, resistindo muitas vezes mesmo às

evidências do pensamento e da experiência concreta (Heller, 2004, p. 47-48). Ao

identificarmos o critério da verdade do jornalismo informativo de massa com a fé, não

tratamos dos resultados — que são sempre mais contraditórios e cheios de brechas do que

aqueles envolvidos na fé religiosa, por exemplo —, mas nos referimos ao sistema, aos

propósitos a partir dos quais esse modelo de comunicação está organizado.

Outra característica determinante do cotidiano que nos importa discutir é a

ultrageneralização, processo pelo qual, em nome do manejo imediato e da solução rápida dos

problemas, atribuímos a questões específicas provisoriamente um caráter universal (Heller,

2004, p. 34). A frase feita segundo a qual o Brasil é o país da impunidade, ou um país de

corruptos, repetida a cada informação de um novo caso de corrupção, é um exemplo familiar

desse fenômeno na análise da vida pública. Exemplos relacionados à dimensão mais privada

da vida cotidiana, em que a experiência individual torna-se regra geral, também são

facilmente identificáveis em frases como ‘homem não presta’, que passam a compor o senso

comum, inclusive jornalístico.

Os resultados dessa ultrageneralização são o que Heller chama de juízos provisórios,

‘conceitos’ dos quais lançamos mão para dar conta das inúmeras e velozes necessidades

cotidianas, mas que podem assumir também a forma de preconceitos. A diferença é que o

juízo provisório não depende do conhecimento científico fundamentado, porque se forma a

despeito dele; já o preconceito é aquilo que, mais do que ignorar, resiste tanto às evidências

da experiência vivida quanto aos “argumentos da razão”, mantendo-se inabalado. Muito

próximos da ideia de estereótipos, os preconceitos, em geral, têm uma carga negativa, mas

podem se apresentar também na forma elogiosa. Heller, mais uma vez, exemplifica: “Se

tivéssemos perguntado aos nobres latifundiários do feudalismo clássico como avaliam as

características de seus servos, teríamos recebido como resposta, numerosas vezes, estereótipos

inteiramente positivos, características como ‘fiéis’, ‘generosos’, ‘aplicados’, ‘trabalhadores’,

212

etc.” (2004, p. 52). Mas, retomando os termos da distinção que fizemos há pouco, ela

completa: “Temos sempre uma fixação afetiva no preconceito. Por isso, era ilusória a

esperança dos iluministas de que o preconceito pudesse ser eliminado à luz da esfera da razão.

Dois diferentes afetos podem nos ligar a uma opinião, visão ou convicção: a fé e a confiança.

O afeto do preconceito é a fé” (Heller, 2004, p. 47).

Aqui, vale um exemplo. Não faltam fontes de informação, documental (numérica) e de

entrevista que comprovem que a previdência brasileira é superavitária. Mas em verdadeiras

‘campanhas’ que, de tempos em tempos, ocupam as páginas dos grandes jornais, anuncia-se

sem qualquer brecha para dúvida que as reformas são necessárias em função do déficit da

previdência. Note-se que não estamos aqui discutindo o princípio da seguridade social, de

que, independentemente de ser ou não deficitária, a previdência precisa ser sustentada pelo

Estado. Tratamos de algo mais palpável: a sustentação daquilo que pode facilmente ser

desmentido ‘cientificamente’, por um simples levantamento de dados que leve em conta todas

as fontes de financiamento da seguridade social — que, como se sabe, incluem não apenas a

parte dos contribuintes mas também os recursos recolhidos por meio de contribuições

sociais/impostos. Na base dessa desinformação que resiste à comprovação científica, está o

juízo provisório (neste caso, preconceito) de que o Estado gasta demais com benefícios que

sustentam privilégios e, principalmente, de que honrar as dívidas (nesse caso, o superávit

primário) é prioridade, a qualquer custo. Não por acaso, Heller associa esse tipo de juízo mais

diretamente à manipulação política.

A ultrageneralização é, em última instância, o processo que atribui a todos os

fenômenos de um mesmo conjunto ou espécie o mesmo juízo, sem se preocupar com as suas

particularidades ou especificidades. Deslocada do cotidiano vivido para o cotidiano mediado

do jornalismo, trata-se, em outras palavras, do exercício de encaixar a realidade concreta em

juízos previamente concebidos, e que, na sociedade burguesa, derivam, em grande medida, da

produção ideológica. Mas mais do que isso: remete precisamente ao caráter positivista que,

como já descrevemos, se expressa tecnicamente no jornalismo informativo como identidade

de classe. Num dos trechos em que critica a obra de um autor que acredita ter feito

descobertas científicas apenas repetindo a descrição de séries de fatos isolados, Gramsci

mostra essa relação: “(...) é uma típica manifestação de positivismo, que duplica o fato,

descrevendo-o e generalizando-o numa fórmula, e, após a formalização do fato, estabelece a

lei do próprio fato” (2004, p. 217).

213

Que o jornalismo burguês não apenas reproduz como produz um cardápio de

preconceitos, à escolha do freguês, não parece necessário discutir aqui — embora valha

registrar que esse é um dos recursos mais evidentes, por exemplo, na elaboração de títulos.

Mas o mais importante é observar o quanto ela se manifesta também como um risco sempre

presente – e comum – nas práticas de jornalismo ‘alternativo’ na forma como elas se

apresentam atualmente. Assim, é muito comum, como podemos observar em muitos jornais

‘alternativos’, o que poderíamos chamar de ‘ultrageneralizações de esquerda’, que

absolutizam e descontextualizam categorias e conceitos, ignorando muitas vezes a História e,

sobretudo, a dialética na interpretação dos fatos, apresentando-se, dessa forma, tão

obscurantistas quanto as práticas promovidas pelo jornalismo hegemônico. Logo, é necessário

concluir que, mesmo o juízo provisório — e a ultrageneralização, como processo que o

produz —, que é próprio da vida cotidiana vivida, a despeito das inclinações ideológicas que

ela sofrer, não se sustenta como determinação do jornalismo que possa se justificar nas

práticas que buscam uma nova hegemonia.

Ao cotidiano vivido em toda a sua espontaneidade, heterogeneidade, imediaticidade,

pragmatismo e ultrageneralização74

corresponde uma certa relação de conhecimento e prática

que Gramsci chama de senso comum. A noção de senso comum nos ajuda a associar mais

diretamente essa caracterização do cotidiano como domínio das relações imediatas com a

questão do conhecimento. Se na discussão sobre o cotidiano destacamos alguns determinantes

de uma forma de conhecimento prático-instrumental, que serve, se assim podemos dizer, para

‘levarmos a vida’, o conceito de senso comum nos permite ir além, investigando como as

relações imediatas, inseridas num conjunto maior de relações sociais, formam as concepções

de mundo. Colocando-se, a nosso ver, como um primeiro passo para a posterior discussão

sobre consciência de classe, a ideia de senso comum nos permite a aproximação que

buscamos com um tipo de conhecimento que, diferenciando-se claramente da ciência, vai

também além do conhecimento sobre e para a imediaticidade vivida, embora continue sendo

fortemente informado pela concretude da vida prática. Gramsci define: o senso comum é uma

“concepção do mundo absorvida acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nos

quais se desenvolve a individualidade moral do homem médio” (Gramsci, 2004, p. 114).

A noção de senso comum de Gramsci parte da ideia de que o homem “simples” está

submetido a um amontoado de influências diferentes — e mesmo contraditórias —, vindas de

74 Além da descrição aqui apresentada, Agnes Heller lista ainda outras características próprias do cotidiano, mas

que não destacamos por entender que se trata, na verdade, de ferramentas/mecanismos de que se lança mão para

lidar com aquilo que compõe a vida cotidiana, principalmente a ultrageneralização. São elas: a analogia, o uso de

precedentes, a imitação e a entonação (no sentido de ‘dar um tom’ de forma emocional (Heller, 2004. p. 35-37).

214

campos e temporalidades distintas, que orientam a forma como ele se comporta e também o

modo como compreende o mundo. Diz o autor: “O senso comum é um agregado caótico de

concepções disparatadas e nele se pode encontrar tudo o que se queira” (Gramsci, 2004, p.

117). Embora nomeie também de “filosofias” essas influências diversas que compõem o senso

comum, Gramsci identifica como função da filosofia crítica (em especial a filosofia da

práxis), que pressupõe o conhecimento da historicidade, a superação dessa fragmentação com

vistas a uma concepção de mundo coerente.

Somos todos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-

massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico

de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a

concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada,

pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa

própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se

encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais

moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas

estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria

do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do

mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto

atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também,

portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela

deixou estratificações consolidadas na filosofia popular (Gramsci, 2004, p.

94)

Uma boa imagem para caracterizar a ideia de senso comum é a de um cardápio em que

apresentam-se conhecimentos e insumos de visões de mundo que podem ser escolhidas de

acordo com a necessidade e a conveniência prática, imediata ou não. A complexidade desse

processo está em compreender como se forma esse menu, de onde vêm essas influências e

fontes diversas e como se seleciona o que permanece e o que é descartado — Gramsci, é bom

que se esclareça, não está preocupado com as escolhas ou atitudes de indivíduos considerados

isoladamente: está refletindo sobre as formas de ação das massas.

Exatamente por basear-se numa escolha que não pressupõe a unidade de referências, o

senso comum não só permite a convivência entre concepções divergentes, como também não

cobra uma coerência entre o pensamento e a ação — o que, como vimos, responde às

necessidades do modo de agir da vida cotidiana.

Qual será, então, a verdadeira concepção do mundo: a que é logicamente

afirmada como fato intelectual, ou a que resulta da atividade real de cada

um, que está implícita na sua ação? E, já que a ação é sempre uma ação

política, não se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um se acha

inteiramente contida na sua política? Este contraste entre o pensar e o agir,

isto é, a coexistência de duas concepções do mundo, uma afirmada por

palavras e a outra manifestando-se na ação efetiva, nem sempre se deve à

má-fé. A má-fé pode ser uma explicação satisfatória para alguns indivíduos

215

considerados isoladamente, ou até mesmo para grupos mais ou menos

numerosos, mas não é satisfatória quando o contraste se verifica nas

manifestações vitais de amplas massas: neste caso, ele não pode deixar de

ser a expressão de contrastes mais profundos de natureza histórico-social.

Isto significa que um grupo social, que tem sua própria concepção do

mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de

modo descontínuo e ocasional — isto é, quando tal grupo se movimenta

como um conjunto orgânico —, toma emprestado a outro grupo social, por

razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é a

sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la (...). É por isso,

portanto, que não se pode separar a filosofia da política; ao contrário, pode-

se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção do mundo são,

também elas, fatos políticos (Gramsci, 2004, p. 96-97)

Não faltam exemplos à nossa volta desse fenômeno que Gramsci descreve a partir da

ideia de senso comum: a frequente mistura de influências médico-científicas, místicas

(simpatias, rezas) e tradicionais, do conhecimento popular, que orientam o nosso autocuidado

em relação à saúde pode ser um exemplo. Mauro Iasi nos fornece outro: “(...) podemos juntar

um juízo aristotélico, por exemplo, a afirmação de que o ‘macho é mais perfeito e governo, a

fêmea o é menos e deve obedecer’, com a afirmação de que ‘Deus fez todos nós como iguais’,

sem a menor necessidade de resolver a contradição entre os pressupostos excludentes

(diferença natural – igualdade natural)” (Iasi, 2006, p. 205).

Em resumo, podemos dizer que todas as opiniões, visões, concepções e mesmo

intuições que temos sobre muitas coisas são organizadas a partir de conhecimentos com

origens (e legitimidades) diversas, que podem pesar mais ou menos dependendo, por

exemplo, do ‘tema’ de que se trata ou da necessidade imediata. Ainda que a ciência se oponha

ao senso comum, ela, por um lado, também faz parte desse arsenal de influências que ele

recebe e, por outro, também não isenta do senso comum os seus ‘adeptos’ (cientistas e

camadas intelectuais).

Nada do que descrevemos até agora significa que não exista verdade no senso comum:

apesar de “equívoco, contraditório e multiforme” (Gramsci, 2004, p. 118), para o pensador

italiano o senso comum tem, desde sempre, o potencial de desenvolver-se em “bom senso”.

Mais do que isso, e fundamental para a natureza do seu pensamento dialético, o autor

reconhece a existência desse bom senso em potência no senso comum, como um “núcleo

sadio” que, uma vez desenvolvido, pode dar unidade e coerência ao que antes era caos e

fragmento (2004, p. 118). Trataremos dessa superação de forma mais detida no próximo

capítulo.

Por ora, importa afirmar que é no registro do senso comum, situado e voltado para o

cotidiano, que entendemos o ‘conhecimento’ de que trata o jornalismo. Desenhado como uma

216

atividade profissional, por um lado, e como atividade da cena pública imprescindível à

democracia (burguesa), por outro, o jornalismo se conformou na junção — somatória e não

dialética — de influências diversas. A profissionalização do jornalismo, no momento em que

ele se torna claramente atividade ideológica e econômica, colaborou para que essa

fragmentação ganhasse ares de unidade, capaz de ser resumida num conjunto de regras —

técnicas, éticas — que ganham institucionalidade. Trata-se, portanto, do senso comum

institucionalizado falando e agindo sobre o senso comum não institucionalizado da sociedade

em geral e reforçando-o.

Como convergência desorganizada de referências diversas, partes sem todo, o senso

comum funciona, na sociedade capitalista, com uma forte dimensão ideológica, que tem no

jornalismo informativo uma importante ferramenta de reprodução. Por outro lado, o trato com

o cotidiano, que tentamos caracterizar neste tópico, pressupõe um tipo de apreensão e trato da

realidade que, como vimos, não se permite a coesão e coerência do pensamento científico — e

que, respondendo a estímulos e contextos diversos, precisa violar a fundamentação das suas

referências (teóricas e práticas) para lidar com o que se apresenta como imediato. Nesse

sentido, nos parece, está a dimensão do senso comum ‘puro’, não alienado e não

ideologizado, que está necessariamente presente no jornalismo como forma de objetivação. O

caminho, não inteiramente desvendado, através do qual esses fragmentos se unem formando

concepções de mundo que, no geral, reafirmam a alienação, colocando-se, portanto, a serviço

do estranhamento dos próprios sujeitos, esse, ao contrário, é historicamente datado: próprio da

sociedade burguesa e do jornalismo burguês, é o que nos parece possível de ser ‘combatido.

Em outras palavras: o jornalismo precisa necessariamente lidar com uma diversidade de

referências práticas, que vêm do conjunto das experiências sociais, políticas, institucionais;

não precisa, no entanto: 1) que isso signifique uma falsa pluralidade de olhares de

interpretação da realidade que serve ideologicamente para negar qualquer perspectiva

universalista; 2) que isso se apresente como fragmentação do real; e 3) que isso se cristalize

como concepções de mundo que tentem dar um caráter universal à defesa de grupos ou

classes específicas.

Reafirmamos, assim, que o caráter ideológico ou simplesmente conformista e

reafirmador da ordem que, de modo geral, caracteriza o jornalismo informativo burguês não

se deve ao seu necessário trato com a vida ordinária. Como veremos, ele ganha essa roupagem

a partir de um duplo movimento que, de um lado, faz com que a assepsia que isola e

descontextualiza os fatos não permita a identificação desse cotidiano com a engrenagem

217

maior que o produz — ainda que seja a mera ‘intuição’ da totalidade — e, de outro, produz

estratégias — aí sim, muitas vezes claramente manipuladoras — que buscam amenizar a

negatividade da experiência mais geral do cotidiano capitalista, como é o caso, por exemplo,

do uso de fait divers, notícias ou curiosidades ‘leves’, marcadas, em geral, pelo tom do

entretenimento. O jornalismo, em sua especificidade, não lida, de fato, com a necessária busca

da essência que caracteriza o conhecimento científico; acreditamos, no entanto, que, apesar de

lidar com o imediato, por ser ele próprio uma primeira mediação, está autorizado a apontar ou

sugerir — embora não a dar conta — a inserção dos fatos numa totalidade possível75

.

75

Essa compreensão nos ajuda a recusar alguns mitos construídos sobre a atualidade do jornalismo como, por

exemplo, o da sua independência em relação à História, um perigo que vai muito além de uma mera questão de

temporalidade. Ao afirmar a necessária atualidade da notícia, destacando que ela só se interessa pelo passado e

pelo futuro “na medida em que esses projetam luz sobre o que é real e presente”, Robert Park, por exemplo,

diferencia a história da notícia defendendo que esta “trata de eventos isolados num todo e não busca relacioná-

los uns aos outros, seja na forma de consequências causais, ou seja na forma de consequências teleológicas”

(Park, 2008, p. 58). E, com isso, cai na armadilha que cristaliza características próprias da imprensa burguesa na

sua ‘sociologia da notícia’.

218

5. JORNALISMO E CONTRA-HEGEMONIA: A DIALÉTICA NO CAMINHO DA CONSCIÊNCIA

Assim como tinha sido um individualista sem sabê-lo, eu era

agora um socialista sem sabê-lo, ou seja, um socialista nada científico.

Tinha renascido, mas não ainda rebatizado, e estava dando voltas

para descobrir que espécie de coisa eu era. (...) Eu era isso, o que

quer que isso fosse, e através dos livros descobri que isso era um

socialista (Jack London, 1997, p. 112)

Ao longo de todo este trabalho, falamos de imprensa ou jornalismo contra-hegemônico

quando tratamos da prática que estamos tentando vislumbrar e promover com essa trajetória

teórica; e, no geral, falamos de imprensa ou jornalismo alternativo, sem muita precisão em

relação a esse termo, quando nos referimos às experiências ou lutas concretas já existentes no

campo da comunicação. No entanto, além de breves referências sobre a ideia de hegemonia e

aparelho privado de hegemonia, fundamentais para o desenvolvimento do nosso argumento

até aqui, ainda não nos detivemos sobre a conceituação que sustenta e fundamenta o adjetivo

que qualifica a prática que estamos buscando.

O primeiro ponto importante a destacar, então, é precisamente que, aqui, “contra-

hegemônico” precisa ser compreendido como mais do que um adjetivo, portanto, precisa ir

além do uso comum que muitas vezes o toma apenas como sinônimo de ‘crítico’ ou mesmo

alternativo — à grande imprensa, no caso do nosso tema. Neste trabalho, a ideia de um

jornalismo contra-hegemônico pretende se remeter rigorosamente ao conceito de hegemonia

desenvolvido pelo comunista italiano Antonio Gramsci. Por isso, antes de entrarmos

propriamente no uso desse referencial específico para o jornalismo, será preciso apresentar os

elementos que aqui estamos considerando como constitutivos do conceito de hegemonia. Na

definição que nos parece mais completa, Gramsci assim apresenta o conceito:

O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime

parlamentar, caracteriza-se pela combinação de força e do consenso, que se

equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso,

mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no

consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública —

jornais e associações —, os quais, por isso, em certas situações, são

artificialmente multiplicados (Gramsci, 2007, p. 95)

Como se sabe, não existe na obra de Gramsci registro da expressão ‘contra-hegemonia’

que, no entanto, costuma ser usada pela tradição marxista para se referir à hegemonia da

classe trabalhadora ou, mais precisamente, ao processo de combate à hegemonia burguesa.

Nas diversas passagens da sua obra em que trata do conceito, Gramsci ora está teorizando

sobre a necessária combinação de tática/estratégia do proletariado na fase moderna do

capitalismo, ora está descrevendo o processo, concreto, real e já em curso, de estabilização da

219

dominação burguesa. E a diferença entre essas distintas abordagens não é um mero detalhe.

Nos dois casos, Gramsci está atualizando o debate sobre as formas que a luta de classes

precisa assumir num momento do capitalismo em que, nos países que ele caracterizou como

“ocidentais”, assiste-se a uma ampliação da chamada “sociedade civil”, principalmente a

partir do processo de socialização da política que reflete, ao mesmo tempo, as conquistas dos

trabalhadores e as concessões feitas pela burguesia em nome da dominação. Quando a

sociedade civil passa a ser o principal espaço onde essa luta é travada, impõe-se como

‘novidade’ a disputa pelo consenso, pelo ‘livre’ consentimento, em complementação ao uso

da força que foi a base da dominação e também das revoluções até mais ou menos 1870. Na

base dessa proposta conceitual está a convicção de que o estágio atual do capitalismo impõe a

superação da ideia de “revolução permanente”, que, pela perspectiva da classe trabalhadora,

ajudou a compreender a experiência concreta das revoluções sociais de 1789 até 1848, mas

que agora havia se tornado insuficiente (Gramsci, 2007, p. 24). Destacando a maior

complexidade que essa compreensão firma na relação entre Estado e sociedade, Edmundo

Dias traz um bom resumo da contextualização que se encontra dispersa na obra do autor

italiano: “O Estado não aparece mais como um simples alvo a conquistar. Tornou-se algo

complexo e se enraizou na sociedade. Não pode mais, se é que alguma vez isso foi correto, ser

visto como exterioridade. Com sua imensa burocracia, ele é capaz de vigiar e punir, mas

também de organizar e representar” (1996, p. 30).

Assim, Gramsci está, por um lado, analisando as táticas e estratégias que a burguesia

usa nessas sociedades de capitalismo avançado (que abrangiam principalmente Europa e

Estados Unidos) para manter a dominação e, por outro, tentando reconhecer como deve ser a

resposta organizativa do proletariado na luta para se emancipar da dominação nesse novo

contexto.

Com esse breve enunciado já temos pelo menos duas questões importantes para este

trabalho, e que tangenciam diferentes interpretações do conceito gramsciano. Primeiro,

assumimos a compreensão de hegemonia como um processo que envolve — e mesmo

privilegia, sempre que possível — a dimensão do convencimento, mas sem abrir mão da

coerção, materializada no uso da força previsto nos aparelhos de repressão estatais. Isso

significa, portanto, compreender a ampliação do Estado — que passa a ser entendido a partir

de Gramsci como soma da sociedade política (aparelhos estatais) com a sociedade civil —

como ampliação do espaço de luta no e pelo Estado. Não parece haver dúvida de que Gramsci

sabe da importância que o sistema de coerção continua tendo mesmo nessas sociedades

220

ocidentais. A questão que mobiliza o debate é, principalmente, se essa dimensão da força

estaria contida no conceito/processo de hegemonia. No conjunto da sua obra, profundamente

fragmentada, há passagens claras que endossam as duas posições, mas, principalmente

quando se pensa no processo de luta de hegemonia dos trabalhadores, a concepção que

elimina o elemento da força corre o risco de admitir um Gramsci que, no limite, substitui o ato

da revolução por um processo gradual e institucionalizado de tomada do poder, endossando,

assim, uma versão reformista da sua obra que não só se popularizou como tem sido muito

oportunamente reforçada. Esse não é o Gramsci, nem tampouco a ideia de contra-hegemonia

que reconhecemos e adotamos neste trabalho.

A segunda questão diz respeito mais diretamente ao caminho que temos traçado nesta

pesquisa. Trata-se da constatação de que, apesar de se identificar um núcleo teórico e

estratégico comum que justifique a hegemonia como conceito, é preciso reconhecer os

objetivos distintos que movem as classes em luta e que, por isso, demandam táticas e formas

de organização também distintas. Num trecho dos Cadernos do Cárcere em que trata da

possibilidade de cada classe lançar mão de táticas ligadas à “arte militar” e à “arte política”,

Gramsci alerta: “Outro elemento a se levar em conta é o seguinte: na luta política, não se pode

macaquear os métodos de luta das classes dominantes sem cair em emboscadas fáceis" (2007,

p. 122). Se é verdade que as mudanças históricas advindas do desenvolvimento do

capitalismo impõem novos contextos de luta, também é verdade que, tanto no momento em

que Gramsci escreve como no século XIX ou nos dias de hoje, o objetivo da burguesia é

manter (ou mesmo ampliar) a sua dominação, enquanto o objetivo final da luta da classe

trabalhadora, por uma perspectiva marxista, não é se tornar dominante, mas sim eliminar a

dominação, efetivando a sua condição de classe universal para libertar a si e a todos. Com

isso, recuperamos aqui a mesma questão que sustenta a defesa do conceito negativo de

ideologia, que fizemos principalmente no capítulo 2, ou seja, a convicção de que não basta

inverter o sinal: para os trabalhadores, a hegemonia pressupõe um conjunto de táticas e

estratégias próprias, adequadas à sua condição subalterna na luta de classes. E isso, apesar de

toda a fragmentação, é perfeitamente reconhecível na obra de Gramsci.

Parece-nos que o mecanismo da ideologia, concebido a partir do conceito negativo

marxiano com o qual estamos trabalhando, é fundamental para entender essa distinção, que se

materializa na organização tático-estratégica das práticas contra-hegemônicas entre as quais

pode ser pensado o jornalismo. Vejamos, por exemplo, uma das passagens em que Gramsci

trata especificamente da hegemonia burguesa:

221

A revolução provocada pela classe burguesa na concepção do direito e,

portanto, na função do Estado consiste especialmente na vontade de

conformismo (logo, eticidade do direito e do Estado). As classes dominantes

precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não

tendiam a assimilar organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar

“técnica” e ideologicamente sua esfera de classe: a concepção de casta

fechada. A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em

contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a a

seu nível cultural e econômico; toda a função do Estado é transformada: o

Estado torna-se “educador” (Gramsci, 2007, p. 271, grifos nossos).

Aqui, ele marca como especificidade da burguesia — não apenas em relação ao

proletariado mas também em relação às classes dominantes anteriores — precisamente a

estratégia de construir um consenso que universaliza valores e princípios que, no entanto, são

expressão de interesses particulares. Assim, parece possível afirmar que, na base da

hegemonia burguesa, está a reprodução ideológica, no nível cultural e político, dos

mecanismos de inversão, ocultamento e naturalização que, como vimos, sustentam o

processo de acumulação do capital — que, em última instância, é o que a hegemonia visa

manter.

E aqui chegamos a um terceiro aspecto que merece ser destacado no conceito de

hegemonia de Gramsci, num esforço também semelhante ao que fizemos no debate sobre

ideologia. Trata-se da convicção — não consensual entre os intérpretes desse autor — de que,

embora a discussão de hegemonia dê centralidade ao aspecto da direção cultural e política, ela

tem sempre como pressuposto a determinação econômica, o que significa negar em Gramsci

também uma abordagem culturalista, que autonomiza a superestrutura em relação à estrutura.

Numa passagem em que critica a pouca importância que um certo “economicismo” dá à

dimensão do consenso, por exemplo, ele afirma:

O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em

conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia

será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que

o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas

também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem

envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode

deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na

função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade

econômica (Gramsci, 2007, p. 48, grifos nossos).

Para os objetivos do nosso trabalho, essa é uma definição central. Primeiro porque, pela

perspectiva da hegemonia burguesa, deixa claros os limites de qualquer tentativa de separar a

ação cultural-informativa da grande imprensa dos interesses econômicos das empresas que a

sustentam e da classe que ela representa, a despeito dos esforços e boa vontade dos jornalistas

222

individualmente. E segundo porque, pela perspectiva da hegemonia dos trabalhadores (ou da

contra-hegemonia), ela evidencia igualmente os limites das estratégias que se colocam no

campo do ‘alternativo’ apenas diversificando ou promovendo ‘boas práticas’ de informação,

conhecimento ou entretenimento, de forma descolada das lutas concretas de transformação da

realidade que, mais uma vez, por uma concepção marxista, têm como base primeira a

determinação econômica que divide a sociedade em classes. Aqui, a leitura que Edmundo

Dias faz do conceito de hegemonia em Gramsci é de uma precisão admirável.

Supor a destruição de uma ideologia por outra, no plano do discurso pura e

simplesmente, é desconhecer, por um lado, a força e o peso material das

ideologias e, por outro, reduzir a luta hegemônica ao jogo iluminista do

“esclarecimento”. Em suma, é supor a eternidade do par verdade/erro.

Nenhuma “ciência” destrói ideologia alguma. Enquanto a ideologia criticada

tiver base social/material de sustentação ela permanece (Dias, 1996, p. 19,

grifos nossos).

Sendo assim, não existem na obra de Gramsci ilusões, por exemplo, de que o objetivo

da luta de ‘contra-hegemonia’ seja produzir um processo de convencimento ou adesão

voluntária da burguesia aos valores e princípios dos trabalhadores. Pensador e militante

comunista — apesar do verniz socialdemocrata que alguns tentam lhe atribuir —, o autor

italiano tinha clareza de que a luta de hegemonia é parte da luta de classes e que esta coloca

necessariamente em lados distintos as duas classes fundamentais (burguesia e proletariado). O

movimento inverso — ou seja, os trabalhadores aderirem pacificamente aos valores da

burguesia — acontece precisamente porque esta é não só a classe dominante como aquela que

quer perpetuar a dominação e, para isso, lança mão de todo um arsenal ideológico que está

ancorado no processo de alienação que é a base da sua existência particular como classe.

Nesse caso, a ‘aliança’ tem como objetivo uma falsa unificação da sociedade, que se

materializa no sistema democrático, com todos os seus instrumentos e aparelhos. “No novo

século, a classe dominante inaugurou uma nova política, de alianças de classe, de blocos

políticos de classe, ou seja, de democracia burguesa”, diz Gramsci (2004, p. 417).

Mas e do lado dos trabalhadores? Se não podem fazer prevalecer os seus valores sobre a

classe propriamente opositora, para que serve o processo de construção que estamos

chamando de contra-hegemonia? Essa resposta aparece mais claramente num texto de 1926,

que ficou conhecido com o título ‘Alguns temas da questão meridional’, e que é considerado

o primeiro registro do uso do termo hegemonia em Gramsci para nomear o conceito que ele

desenvolveria mais detidamente no cárcere — embora alguns autores defendam que a ideia já

estivesse presente em escritos anteriores. Nesse texto, ele descreve a postura do Partido

223

Comunista Italiano diante da situação de uma Itália dividida entre o Norte industrializado e o

Sul agrário. Em diversas passagens, o autor mostra como o esforço era defender uma

estratégia de alianças entre as classes e frações exploradas, recusando, ao mesmo tempo,

alianças que partissem de identidades de outra ordem que permitisse incluir a burguesia,

como, por exemplo, a simples proximidade geográfica. Fica claro, então — e isso parece se

manter na obra posterior, escrita no cárcere —, o quanto a luta de hegemonia pressupõe uma

política de alianças com corte de classe: que não inclui os dominantes e deve se dar sob a

‘orientação’ do proletariado. Nas suas palavras:

Os comunistas turinenses haviam formulado de modo concreto a questão da

“hegemonia do proletariado”, ou seja, da base social da ditadura proletária e

do Estado operário. O proletariado pode se tornar classe dirigente e

dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de

classe que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a

maioria da população trabalhadora. Na Itália, nas reais relações de classe

existentes na Itália, isso significa: na medida em que consegue obter o

consenso das amplas massas camponesas (Gramsci, 2004c, p. 408, grifos

nossos).

Trata-se, portanto, da construção de um bloco (histórico) que se torne minimamente

homogêneo em torno de uma concepção de mundo que negue e se contraponha à visão de

mundo vigente. E isso pressupõe que se coloque em curso, no interior do leque de alianças,

uma “reforma intelectual e moral” (necessariamente ligada a um “programa de reforma

econômica”) capaz de criar as bases para a construção de uma “vontade coletiva” (Gramsci,

2007, p. 18-19)76

. Essa aliança, que no caso da questão meridional trata especificamente do

campesinato, mas de forma geral pode incluir outras frações, como os intelectuais e a pequena

burguesia, deve ser, segundo essa concepção, liderada pelo proletariado que, junto com a

burguesia, são as “classes puras” da sociedade, nos termos de Lukács, porque “são as únicas

cuja existência e evolução baseiam-se exclusivamente no desenvolvimento do processo

moderno de produção” (2003, p. 156).

Esse é o processo pelo qual, mesmo na condição de classe dominada, segundo Gramsci,

a partir de um bloco histórico que se amplie ao máximo, o proletariado pode se tornar

“dirigente” — adjetivo que diz respeito à orientação político-cultural e não à “dominação”,

que tem base econômica. Mas, para isso, os trabalhadores precisam superar a sua própria

submissão ideológica aos valores, princípios e aparelhos da classe dominante. Diante da

76

Até porque, de acordo com o autor, desde o início do século XIX (por volta de 1815), todo o esforço da classe

dominante tem sido no sentido de evitar a emergência dessa “vontade coletiva”, buscando manter o equilíbrio em

torno do seu poder econômico-corporativo.

224

‘questão meridional’, que mobilizava os esforços do autor no texto de que vimos tratando,

Gramsci apresenta o desafio:

O primeiro problema a resolver, para os comunistas turinenses, era o de

modificar a orientação política e a ideologia geral do próprio proletariado,

enquanto elemento nacional que vive no conjunto da vida estatal e sofre

inconscientemente a influência da escola, do jornal, da tradição burguesa. É

conhecida a ideologia que foi difundida capilarmente pelos propagandistas

da burguesia entre as massas do Norte: o Sul é a bola de chumbo que impede

progressos mais rápidos para o desenvolvimento civil da Itália; os sulistas

são seres biologicamente inferiores, semibárbaros ou bárbaros completos,

por destino natural (...) (Gramsci, 2004c, p. 409).

Portanto, antes e como condição para a expansão de uma concepção de mundo no

âmbito das alianças conquistadas, a luta pela hegemonia pressupõe um processo de

convencimento interno à própria classe. E essa determinação parece valer tanto para a

manutenção da hegemonia dominante quanto para o esforço de contra-hegemonia, já que, de

modo geral, os indivíduos e grupos que compõem a burguesia também estão convencidos dos

valores ‘universais’ que ela difunde. E a sua capacidade de dominação é tanto maior quanto

maior são o consenso e as alianças intraclasse. A diferença é que, para a burguesia, esse

consenso se expressa na forma de ideologia, tal como analisamos o conceito, enquanto, para

os trabalhadores, depende de um árduo processo de construção de uma consciência de classe.

Apesar de longa, vale a citação direta para mostrar como isso vai muito além de qualquer

movimento de informação e contrainformação.

Isso é evidente: nenhuma ação de massa é possível sem que a própria massa

esteja convencida das finalidades que quer alcançar e dos métodos a serem

aplicados. O proletariado, para ser capaz de governar como classe, deve se

despojar de todo resíduo corporativo, de todo preconceito ou incrustação

sindicalista. O que isso significa? Que não só devem ser superadas as

distinções entre as diferentes profissões, mas que é preciso — para

conquistar a confiança e o consenso dos camponeses e de alguns segmentos

semiproletários das cidades — superar alguns preconceitos e vencer

determinados egoísmos que podem subsistir e subsistem na classe operária

enquanto tal, mesmo quando já desapareceram em seu seio os

particularismos da profissão. O metalúrgico, o marceneiro, o operário da

construção civil, etc., devem não só pensar como proletários e não mais

como metalúrgico, marceneiro, operário da construção civil, etc., mas devem

dar ainda um passo à frente: devem pensar como operários membros de uma

classe que tende a dirigir os camponeses e os intelectuais, de uma classe que

só pode vencer e construir o socialismo se for ajudada e seguida pela grande

maioria destes estratos sociais (Gramsci, 2004c, p. 416).

Por isso, uma imprensa e uma prática jornalística que, mais do que críticas, se

construam como esforço contra-hegemônico no capitalismo, devem ter como objetivo último

não apenas o esclarecimento ou a democratização das vozes mas também, e principalmente, a

225

construção da consciência que, aliada ao processo das lutas concretas, como veremos, possa

alcançar o grau da consciência de classe.

Nesse sentido, embora a construção de contra-hegemonia pressuponha necessariamente

o esforço de desconstrução da hegemonia vigente no interior do bloco histórico, que em geral

é resultado da ideologia dominante, isso não é suficiente para que, uma vez em crise a

concepção de mundo e os instrumentos políticos e culturais de dominação em curso, se tenha

algo para colocar no lugar. Exemplificando com a situação concreta do período pós 1ª Guerra

Mundial, Gramsci reconhece o mar de possibilidades, progressistas ou conservadoras, que se

abre quando a burguesia vive uma “crise de autoridade”. Ele descreve:

Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais “dirigente”, mas

unicamente “dominante”, detentora da pura força coercitiva, isso significa

exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais,

não acreditam mais no que antes acreditavam, etc. A crise consiste

justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste

interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados (Gramsci,

2007, p. 184, grifos nossos)

Embora, na obra de Gramsci, essa constatação não venha seguida de uma imediata

apresentação dos seus desdobramentos, parece possível deduzir que, no que se refere à

direção político-cultural, como na citação acima, essa ‘ausência do novo’ só pode se justificar

pelo baixo grau de desenvolvimento da consciência dos trabalhadores — que, por sua vez,

depende do grau de organização concreta da classe —, deixando aberto o caminho para que,

mediado por intervalos totalitários de uso da força, o velho seja substituído por novos pactos

ideológicos que apenas reafirmem a dominação. Embora a discussão teórico-conceitual sobre

consciência vá se dar no tópico seguinte, vale aqui adiantar apenas uma passagem de um texto

de 1918 em que Gramsci aborda o papel do conhecimento nesse processo de consciência,

marcando a diferença entre a necessidade histórica da burguesia e a dos trabalhadores.

A classe que detém o instrumento de produção já conhece necessariamente a

si mesma, tem a consciência (ainda que difusa e fragmentária) de seu poder e

de sua missão. Tem finalidades individuais e as realiza através de sua

organização, friamente, de modo objetivo, sem se preocupar com o fato de

seu caminho estar coberto por corpos extenuados pela fome ou por cadáveres

produzidos nos campos de batalha.

A sistematização da causalidade histórica real adquire valor de revelação

para a outra classe, torna-se princípio de ordem para o imenso rebanho sem

pastor (Gramsci, 2004c, p. 163).

Seja no fortalecimento da hegemonia burguesa, seja na luta pela contra-hegemonia, todo

esse processo, de construção de unidade intraclasse e de produção de consenso em torno de

uma concepção de mundo própria que vá além dela, requer mediações específicas. E o

226

primeiro personagem que aparece quando Gramsci descreve a forma como se dá esse

processo são os “intelectuais”, caracterizados pelo autor como “funcionários” da

superestrutura (2007, p. 20). Aqui ganham função os dois tipos de intelectuais que o autor

italiano reconhece. Por um lado, na constituição do bloco histórico, ele destaca que uma

parcela importante que deve ser ‘conquistada’ cultural e politicamente são exatamente os

“intelectuais tradicionais”, aqueles que, desempenhando o papel de intelectual na sociedade,

se atribuem uma postura autônoma em relação às classes em disputa. Diríamos que aqui

reside, inclusive, a disputa também pela chamada “opinião pública”. Por outro lado, como

condição para a sua capacidade dirigente, cada classe precisa lançar mão dos seus próprios

“intelectuais orgânicos”, aqueles que, como já sinalizamos, nascem no seu interior e, por

isso, na luta por hegemonia, têm a responsabilidade de trabalhar para dar a ela

“homogeneidade e consciência da própria função” (Gramsci, 2007, p. 15). O autor resume:

“Uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do

domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista ‘ideológica’ dos intelectuais tradicionais,

assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão

for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos” (2007, p. 19).

Dias nos ajuda a entender como a formação desses intelectuais orgânicos se dá de forma

diferente nas duas classes principais. “Na burguesia, esse processo é sistemático, na escola e

na produção material imediata”, explica (Dias, 1996, p. 21), mostrando que, já para as classes

subalternas, a dificuldade é maior.

Na produção e no conjunto da sociedade, elas e seus intelectuais são

elementos organizados a partir da racionalidade dominante. Para elas o

processo de formação dos seus intelectuais tende a ser errático, fragmentário.

Enquanto o intelectual da classe dominante tem seu processo de formação

taylorizado, integrado positivamente ao mundo produtivo, o intelectual das

classes subalternas se faz, se cria, apesar e contra essa corrente. Mais do que

isso. Devem ser criados para propor a transformação daquela forma de

civilização. Partidos e sindicatos são, no fundamental, as “academias” para

as classes subalternas (Dias, 1996, p. 22).

E aqui ganha centralidade outro elemento de mediação na luta pela hegemonia: o

partido, concebido como organizador coletivo, com papel intelectual e pedagógico, capaz de

construir a unidade necessária ao processo de direção política e cultural de uma classe. Para

Gramsci, os partidos podem ser considerados “escolas da vida estatal” (2007, p. 267) e,

portanto, como o Estado, devem ser também “educadores”.

Se os partidos são um espaço privilegiado de formação dos intelectuais orgânicos da

classe trabalhadora, na produção do consenso em torno das concepções de mundo comuns

227

eles dividem importância com outras ‘instituições’, como a escola, as associações de diversos

tipos e a imprensa que, no âmbito da sociedade civil, ganham maior ou menor espaço

dependendo do contexto histórico e geográfico. Ainda que tenham funções ‘técnicas’

específicas, em relação à afirmação de valores, princípios, comportamentos e ideias que

compõem a dimensão do consenso, essas e muitas outras ‘instituições’ desempenham o papel

do que Gramsci chamou de “aparelhos privados de hegemonia”. “É na sociedade civil,

compreendida como o conjunto dos aparelhos privados de hegemonia — mídia, escola, igreja,

partidos, sindicatos, instituições culturais (museus, nomes de rua etc.) —, que se legitima (ou

se contesta) a dominação”, explica Eduardo Coutinho (2014, p. 17).

A esses aparelhos, que incluem a imprensa, não cabe apenas o papel de circulação das

ideias, valores e comportamentos de grupos específicos. Pela perspectiva da classe dominante,

eles têm a função de garantir a atualização dos valores que são internalizados em diferentes

momentos da vida e da luta social, e que são sempre determinados, em última instância, pela

esfera da produção, devendo levar em conta, inclusive, as disputas entre as frações de classe.

Como afirma Fontes: “(...) Gramsci procura explicar a forma encontrada pelas classes

dominantes para se assegurar da adesão dos subalternos. O convencimento, a persuasão e a

pedagogia se tornam, doravante, tarefas permanentes e cruciais” (2010, p. 136, grifos nossos).

E se o desenvolvimento das forças produtivas implica mudanças nas condições

materiais que, por sua vez, buscam se traduzir na forma de novas ideias e valores, cabe aos

aparelhos privados de hegemonia do capital e, no caso específico do tema deste trabalho, à

imprensa burguesa, a justificativa ideológica dessas mudanças em nome da manutenção das

condições gerais do modo de produção. Como define Dênis de Moraes:

Os meios de comunicação elaboram e divulgam equivalentes simbólicos de

uma formação social já constituída e possuidora de significado relativamente

autônomo. Na essência, o discurso midiático se propõe a determinar a

interpretação dos fatos por intermédio de signos fixos e constantes que

tentam proteger de contradições aquilo que está dado e aparece como

representação do real, como verdade (Moraes, 2009, p. 45)

Assim, é importante realçar que o primeiro e estrutural processo ideológico a que somos

submetidos, como internalização de ideias e valores na forma afetiva, a partir principalmente

da família, se considerado numa perspectiva histórica, não é suficiente para garantir o

consentimento ‘eterno’ e estável. É essa constatação também que, em grande medida, define o

papel dos aparelhos privados que atuem em nome de uma contra-hegemonia, no sentido de

aproveitar essas ‘brechas materiais’ para agir sobre a desnaturalização da ideologia. “O que

exige dotar o processo de luta de resistência moral, coesão e perseverança permanentes, tanto

228

no plano da progressiva conscientização para vencer o estado de passividade moral e política

quanto no terreno da ação concatenada e sistemática pela modificação do modo social de ser

e, principalmente, das condições concretas de hegemonia” (Moraes, 2009, p. 51).

A utilização rigorosa da ideia de aparelhos privados de hegemonia depende da correta

compreensão da elaboração que Gramsci faz sobre o Estado. Já foi aqui sinalizado que, para o

autor italiano, o Estado é a soma da sociedade política com a sociedade civil. Mas agora

precisamos nos deter um pouco mais sobre essa síntese. A ampliação do conceito de Estado,

que normalmente se atribui a Gramsci, se dá sem que isso elimine ou substitua o ‘núcleo

duro’ da concepção de Estado que vem de Marx. Assim, ‘ampliar’ significa expandir, para

além dos aparelhos propriamente estatais, o terreno em que se dá a luta pela dominação (e a

resistência a ela), na medida em que, apesar de teorizar sobre a necessidade de disputá-lo,

Gramsci não deixa de reconhecer o Estado como organismo de classe. Sendo assim,

principalmente a partir da consolidação de um modelo de democracia calcado

ideologicamente na universalização dos valores burgueses, o espaço de luta pela manutenção

dos interesses particulares da classe dominante se amplia para além da burocracia e da

estrutura formal do Estado — que envolve governos e polícia, por exemplo —, passando a se

expressar também em aparelhos que, embora reconhecidos como integrantes da sociedade

civil, apenas complementam a função de dominação que Marx já atribuía ao Estado. Nesse

sentido, o adjetivo ‘privado’ denota apenas a sua exclusão do aparelho formalmente estatal,

mas sua função de hegemonia denuncia sua condição de Estado. Liguori alerta:

(...) se os organismos da sociedade civil gramscianamente entendida fossem

“privados” tour court, abrir-se-ia caminho para uma leitura “culturalista”,

“idealista”, “liberal” de Gramsci, tendente a enfatizar a importância do

“diálogo” ou da habermasiana “ação comunicativa”, vistos como desligados

das relações de força: uma visão ingênua da democracia e da hegemonia

(Liguori, 2007, p. 21)

Essa compreensão é importante não apenas para evitarmos uma leitura reformista de

Gramsci — como se ele apostasse na conquista de espaço institucional por dentro do Estado

como o caminho (e o limite) da transformação social —, mas também para abordarmos

devidamente o papel da imprensa burguesa nesse processo. Afinal, quando confrontamos a

centralidade que o Estado tem na concepção gramsciana de hegemonia com o lugar

marginalizado que o discurso das empresas de jornalismo atribui a qualquer iniciativa estatal

no campo da comunicação, como vimos no capítulo 3, pode ser difícil aceitar sem grandes

questionamentos a qualificação dos meios de comunicação como aparelhos privados de

hegemonia. Mas se entendemos adequadamente os conceitos, tudo se esclarece e fica fácil

229

perceber que é exatamente por ocupar o espaço da sociedade civil para desempenhar o papel

de dominação que é próprio do Estado que a imprensa burguesa pode não só prescindir como

negar qualquer atuação regular direta dos governos — aparelhos de Estado, integrantes da

sociedade política — no campo da informação ou da liberdade de expressão. Porque, no seu

papel de Estado fora da estrutura estatal, os aparelhos privados de hegemonia podem disputar,

negociar e constranger inclusive os governos. Na citação baixo, Virgínia Fontes reúne os

principais elementos dessa discussão que interessam a este trabalho.

Os aparelhos privados de hegemonia são a vertebração da sociedade civil, e

se constituem das instâncias associativas que, formalmente distintas da

organização das empresas e das instituições estatais, apresentam-se como

associatividade voluntária sob inúmeros formatos. Clubes, partidos, jornais,

revistas, igrejas, entidades as mais diversas se implantam ou se reconfiguram

a partir da própria complexificação da vida urbana capitalista e dos múltiplos

sofrimentos, possibilidades e embates que dela derivam. Não são

homogêneos em sua composição e se apresentam muitas vezes como

totalmente descolados da organização econômico-política da vida social.

Clubes, associações culturais ou recreativas tendem a considerar-se como

desconectados do solo social no qual emergem e como distantes da

organização política do conjunto da vida social. Certamente, os sindicatos —

patronais ou de trabalhadores — sendo também formas associativas desse

jaez enfatizam sua proximidade econômica e sua característica mais direta

de defesa de interesses de tipo corporativo. Porém muitos partidos políticos

e jornais — na maioria das vezes diretamente comprometidos com

determinados segmentos de classe — tendem a apagar tal

comprometimento, apresentando-se seja como a expressão da “unidade

nacional” ou como porta-vozes de uma neutralidade informativa inexistente.

Todos, porém, são formas organizativas que remetem às formas da produção

econômica (a infraestrutura) e política (ao Estado), embora sua atuação seja

eminentemente de cunho cultural (Fontes, 2010, p. 133-134, grifos nossos).

Para se contrapor a essa organização, mas com todas as especificidades da sua condição

de classe, como já destacamos, Gramsci reconhece a necessidade de construção de outros

aparelhos privados de hegemonia que sirvam de instrumento da luta dos trabalhadores.

Aparelhos que, ao contrário dos partidos e jornais utilizados como exemplo na citação acima,

não ignorem nem precisem disfarçar sua identidade de classe sob o véu de falsas

universalidades. Aparelhos que sejam a afirmação da particularidade da classe trabalhadora

como expressão da luta pela única universalidade possível. E mesmo Gramsci já sabia que um

deles deve ser uma imprensa construída por e para os trabalhadores.

230

5.1. Jornalismo e contra-hegemonia: negando o jornalismo informativo, indo além do jornalismo alternativo

Nossa reflexão sobre os caminhos para um modo de fazer jornalismo que se proponha a

ser ferramenta de contra-hegemonia parte, então, da defesa intransigente da construção de

veículos próprios. Mas parte igualmente da convicção de que isso não é suficiente: é preciso

que esses veículos atuem como verdadeiros aparelhos privados de hegemonia dos

trabalhadores, o que significa que esse ‘próprios’ deve ser necessariamente compreendido

como um tipo de pertencimento orgânico, baseado na identidade de classe, que se expresse

também por dentro da narrativa jornalística.

Falar em identidade de classe como parte de uma estratégia de convencimento numa

sociedade que vive uma ampla e forte hegemonia do capital, sob uma poeira ideológica que

cada vez mais encastela a humanidade em células individuais e cria barreiras para qualquer

processo de coletivização que vá além da produção de mercadorias, pode parecer um

grosseiro (e fatal) erro tático. Façamos, então, aqui, um breve esclarecimento.

Ao falarmos de pertencimento de classe, sob nenhuma hipótese estamos pensando na

construção de veículos e de uma prática jornalística que sejam voltados apenas para aqueles

que compartilham um mesmo ‘referencial teórico e político’. Não se trata, portanto, de pensar

a classe apenas como público, mas sim como fenômeno objetivo — anterior e independente

de qualquer tática ou estratégia no campo da comunicação — e como horizonte de construção

coletiva. Em outras palavras, significa, primeiro, orientar a ação prática a partir de uma

concepção teórica que reconhece que a sociedade atual, capitalista, é fundada e sobrevive sob

uma divisão estrutural entre dois ‘grupos’ fundamentais: os que detêm os meios de produção e

os que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. Esse é o ponto de partida. Já o

‘horizonte’ de chegada é o autorreconhecimento desse coletivo de trabalhadores que, embora

seja objetivamente uma classe, está na maior parte do tempo impedido de agir

conscientemente como classe. Vejamos como Marx define essa diferença, apresentando já

uma nomenclatura que nos será útil nas páginas seguintes:

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em

trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação

comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, face ao capital, uma

classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta (...) essa massa se reúne,

se constitui em classe para si mesmo. Os interesses que defendem se tornam

interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política” (Marx,

2009, p. 190, grifos nossos).

231

No caminho de construção de um jornalismo contra-hegemônico, o uso prático dessas

acepções da ‘classe’, como conceito e existência concreta, pressupõe, de início, que se

reconheçam os diferentes estágios de luta e de consciência em que se encontram os

trabalhadores. Porque nos parece que o tratamento da informação que se tornará jornalística, o

diálogo possível com o conhecimento mais teórico e mesmo o esforço de organização que

ultrapassa as páginas do jornal precisam ser adequados a cada um desses diferentes graus de

consciência, que variam tanto no tempo, respondendo ao movimento real da luta de classes

em cada lugar, como entre o conjunto de trabalhadores num mesmo momento histórico.

Partindo desses pressupostos, e com o acúmulo de discussão teórica que tivemos até

aqui, nos tópicos seguintes tentaremos fazer propostas mais concretas sobre os caminhos e

descaminhos de um modo de fazer jornalismo que possa seguir as trilhas da contra-

hegemonia, estabelecendo, para isso, um diálogo crítico (como um reflexo negativo) com as

principais características que identificamos no modelo informativo burguês e, também,

sempre que for necessário, com as práticas de jornalismo que, embora no campo ‘alternativo’,

parecem não ameaçar a hegemonia vigente.

Nos dois primeiros tópicos vamos enfocar, por diferentes perspectivas, um

deslocamento na função do jornalismo que se pretende contra-hegemônico — do

esclarecimento para a construção de consciência —, o que significa também uma mudança do

sujeito para quem essa prática deve se voltar — do indivíduo para a classe. Para isso,

travaremos um debate teórico sobre o caminho da consciência, nos referenciaremos em

algumas experiências históricas de imprensa militante e, principalmente, procuraremos,

sempre que possível, realçar as expressões técnicas que essas distinções podem assumir na

prática de um novo jornalismo. Nos três tópicos seguintes, nossa análise estará centrada

principalmente na tentativa de identificar no método dialético pistas para a construção de

ferramentas de contra-hegemonia por dentro da ‘notícia’ e da organização do jornal, de modo

a traduzir para a imediaticidade da ação do jornalismo alguns princípios do conhecimento

científico pela perspectiva marxista. Aqui, passaremos pela explicação dos conceitos, pelo

debate crítico com o autor que nos inspira a tomar a dialética como chave de interpretação de

um outro jornalismo e pela sistematização das orientações e da experiência de autores da

tradição marxista no campo específico da imprensa.

Mas vale esclarecer que o esforço que estamos empreendendo não terá como resultado

um modelo pronto, organizado ou fechado, que eventualmente pudesse substituir o modelo

informativo. Além de uma grande pretensão, isso significaria contrariar todo o referencial

232

metodológico que temos defendido até aqui. Sobre isso, a única ‘fórmula’ que nos parece

possível e efetiva é nos atermos, teórica e praticamente, ao rigor do conceito gramsciano, na

simples concepção de jornalismo contra-hegemônico que neste capítulo tentamos definir, já

que nele está presente a oposição mais radical e estrutural ao caráter ideológico do jornalismo

informativo. Porque quando entendemos que o pressuposto da contra-hegemonia é a adoção

de uma concepção de mundo que tem identidade de classe e fundamento material, não se

restringindo, portanto, a uma ‘alternativa’ crítica entre outras, a ser escolhida num mercado

das ideias, ‘automaticamente’ estamos denunciando a faceta ideológica mais estruturante do

jornalismo informativo, ou seja, o fato de ele tomar como base da sua atuação ‘profissional’

uma sociabilidade particular (a ordem burguesa) como se fosse única e universal,

condicionando a sua própria prática à naturalização de um modo de vida específico como se

ele fosse supra-histórico. Por um lado, na simples identificação da necessidade de uma ação

externa, organizada e orientada para a construção de consciência, está denunciada a nuvem

que, no jornalismo burguês, encobre a percepção ‘objetiva’ das relações sociais que regem o

cotidiano vivido no capitalismo. Por outro, ao reconhecer-se que, no limite, a busca é por uma

consciência de classe, assume-se a cisão estruturante da sociedade, desvelando assim a

particularidade do que se apresenta ideologicamente como interesse geral.

Naturalmente, com isso não queremos dizer que a simples existência de uma prática que

se anuncie contra-hegemônica seja suficiente para abalar as bases da imprensa burguesa ou as

certezas do modelo de jornalismo informativo. Queremos apenas ressaltar que, tal como não é

possível disputar hegemonia sem que se comece pela construção de algum grau de

consciência dentro da classe que será dirigente do bloco histórico, também não parece

possível que se construam as ferramentas adequadas para a disputa de concepções de mundo

sem que se compreenda e se experimente a real distinção com os princípios basilares da

imprensa burguesa.

Quando identificamos nos manuais da SIP ou nos veículos de comunicação aqui

diretamente citados um conjunto de princípios e valores — como liberdade, democracia e

nacionalismo, entre outros — que são considerados um a priori, tão óbvios e universais a

ponto de pairarem acima da neutralidade que a própria mídia apregoa, temos, na verdade, o

absoluto fechamento dos sentidos produzidos por essa imprensa a qualquer alternativa que

não seja a ordem do capital. E isso não só é muito maior como é definidor, orientador e

limitador da produção de qualquer conteúdo do jornal. Sendo assim, dá-se já uma ruptura

radical (no nível da consciência) quando, buscando efetivamente a contra-hegemonia, falamos

233

de construir um jornalismo que promova e tente expandir concepções de mundo que, na sua

unidade de classe, não sejam apenas mais uma, mas sim o contraponto direto à concepção de

mundo produzida e disseminada pela imprensa burguesa. E essa ruptura se completa quando

reconhecemos e colocamos em prática a busca pela construção de um bloco histórico que, por

definição e coerência, precisa se organizar contra a mídia burguesa.

É, portanto, no reconhecimento do caráter de classe das concepções de mundo, da

consciência gerada e do jornalismo que atua sobre elas que reside a verdadeira e estrutural

negação da imparcialidade que define o jornalismo informativo. Porque o que se manifesta

por trás das orientações técnicas que identificam a objetividade com imparcialidade, muito

mais do que uma questão sobre a opinião do jornalista ou mesmo do jornal, é a necessidade de

tomar uma leitura parcial da realidade como a própria forma objetiva do mundo real. Se a

defesa da imparcialidade é a forma acabada como se manifesta, no jornalismo informativo, a

particularidade dos interesses burgueses, o cerne do jornalismo contra-hegemônico está em

assumir (não ocultar) a parcialidade (de classe) a partir da qual é possível não só reconhecer a

particularidade dominante que rege as relações objetivas como apontar no sentido da

verdadeira universalidade possível. Se a classe trabalhadora é a particularidade que pode se

tornar universal, no que diz respeito ao jornalismo, a parcialidade (de classe, na luta de

hegemonia) é o que pode levar a se alcançar a verdadeira objetividade. Essa é o primeiro nível

de ruptura que o jornalismo pensado no rigor do conceito de contra-hegemonia estabelece

com o jornalismo informativo.

5.1.1. Papel do jornalismo: do ‘pensar por si’ à formação da consciência

Como vimos, a construção da contra-hegemonia pressupõe, em primeiro lugar, um

esforço de superação das ideias dominantes que, ao se universalizarem ideologicamente,

fazem com que o consenso em torno da dominação atinja também (e principalmente) as

classes trabalhadoras. Mas, também como já foi sinalizado, é preciso que, uma vez abaladas

as bases do consenso estabelecido, exista algo para ser colocado em seu lugar. Ou melhor,

para sermos mais precisos: é necessário que o processo de desconstrução desse consenso seja,

ele próprio, parte da construção de uma nova concepção de mundo, coerente com as

necessidades dos trabalhadores. E esta, por sua vez, para que seja orgânica e não apenas uma

expressão de fé, só se constrói como parte da experiência concreta (embora não espontânea)

— de vida, de exploração e luta — desses trabalhadores. Como explica Edmundo Dias: “A

crítica real de uma concepção de mundo (...) requer que a concepção criticada não tenha mais

condições de racionalizar as práticas sociais. Ideias não se negam como ideias; ou se

234

inviabilizam como práticas ou permanecem no imaginário e nas práticas sociais” (1996, p. 20,

grifos nossos).

Na obra de Gramsci, não há dúvida de que, pela perspectiva dos trabalhadores, a

construção de uma nova hegemonia é o caminho também da construção de uma nova

consciência, que atravessa ‘etapas’ de desenvolvimento até, quem sabe, atingir o grau de uma

consciência de classe. Ao contrário do que se possa imaginar, a ideia de consciência, seja dos

indivíduos, dos grupos ou da classe, não se configura como um outro campo de preocupações,

distinto daquele em que se inserem questões como o cotidiano e o senso comum, que

compõem as determinações da prática jornalística. Embora não se dê como um processo

linear, em que se possam estabelecer facilmente anterioridades, podemos afirmar, sem

receios, que no ‘início’ de todo desenvolvimento que pode resultar numa consciência de

classe está a consciência imediata ou empírica — que coincide com o que Gramsci chamou de

senso comum. E, para Lukács, essa consciência imediata é a matéria-prima para a consciência

de classe. Portanto, mais do que a possibilidade ou não de sua “suspensão”, como tratou o

autor húngaro, esse é o gancho que, a nosso ver, liga toda a discussão do cotidiano e do senso

comum com a possibilidade de um jornalismo contra-hegemônico. Mais do que isso: é o

caminho pelo qual reencontramos a especificidade do jornalismo, no seu vínculo intrínseco e

necessário com o cotidiano e o senso comum —, um importante potencial a ser desenvolvido

no sentido da formação de consciência. Até porque é no terreno das contradições imediatas,

vividas e sentidas, mas também traduzidas, organizadas e ressignificadas por práticas como o

jornalismo, que se dá a luta de classes.

Isso significa que mesmo nos momentos gerais da classe fragmentada e nas situações

particulares em que se percebe o máximo de ação da ideologia, é possível reconhecer, ainda

assim, algum tipo de consciência. O problema, diz Lukács, é que os seres humanos estão

submetidos a uma falsa consciência que, por sua vez, deriva do fato de eles não se

reconhecerem nas relações sociais que produzem; ou seja, trata-se de uma consciência

estranhada produzida a partir de relações também de estranhamento.

Antes de tudo, o trabalhador só pode tornar-se consciente do seu ser social se

se tornar consciente de si mesmo como mercadoria. Seu ser imediato o

insere — como foi mostrado — como objeto puro e simples no processo de

produção. Quando esse imediatismo se mostra como consequência de

diversas mediações, quando começa a ficar claro tudo o que esse

imediatismo pressupõe, as formas fetichistas da estrutura das mercadorias

começam a desintegrar-se: o trabalhador reconhece a si mesmo e suas

próprias relações com o capital na mercadoria. Enquanto ele for incapaz na

prática de se elevar acima desse papel de objeto, sua consciência constituirá

a autoconsciência da mercadoria (...) (Lukács, 2003, p. 340-341)

235

Assim, na ordem do capital, o primeiro nível de consciência se dá a partir do que

Lukács chama, não por acaso, de consciência reificada, que está presa na imediaticidade e não

tem ainda o potencial para superá-la. Esse nível de consciência vive a particularidade de uma

classe — burguesa — e de um momento histórico como se fosse universal e natural. Trata-se

da percepção imediata de uma sociabilidade que aparentemente ‘unifica’ as classes e,

portanto, não se manifesta apenas para os trabalhadores. Diz Lukács:

(...) a realidade objetiva do ser social é, em seu imediatismo, “a mesma” para

o proletariado e para a burguesia. Mas isso não impede que as categorias

específicas da mediação, pelas quais as duas classes elevam esse

imediatismo à consciência e a realidade simplesmente imediata torna-se para

ambas a verdadeira realidade objetiva, sejam fundamentalmente diferentes,

como consequência da diversidade de situação das duas classes no “mesmo”

processo econômico (Lukács, 2003, p. 310).

Já tivemos a oportunidade de descrever aqui tanto o processo ideológico de

instrumentalização dessa consciência reificada, a partir da sua base econômica material,

quanto a forma como ela se apresenta ao conjunto da sociedade a partir de um tipo de

conhecimento imediato que se fragmenta no senso comum e atende às demandas da vida

cotidiana. Essa forma resumida de apresentar o problema, no entanto, não pode sugerir que a

consciência imediata, que se manifesta como senso comum, seja exatamente sinônimo de

ideologia. Em nome da precisão dos conceitos que temos trabalhado ao longo de todo este

trabalho, é preciso não passar por cima de sutilezas que acabem por eliminar o elemento

histórico da análise que estamos implementando. Assim, como vimos, o cotidiano é uma

dimensão insuprimível da vida, na medida em que, em qualquer sociedade, as pessoas sempre

precisarão estabelecer também relações imediatas e, para responder às demandas práticas e

rápidas que essas relações impõem, precisarão lançar mão de um tipo de conhecimento

também imediato, portanto mais fragmentado e pouco fundamentado, que se identifica com o

cerne da concepção gramsciana de senso comum. Essa consciência imediata só se torna

consciência reificada e com funcionalidade ideológica a partir da sua instrumentalização

numa sociedade como a nossa, marcada por relações de dominação.

Mas o fato é que, por uma perspectiva histórica, que considera a realidade concreta do

capitalismo, a discussão sobre consciência está intrinsecamente ligada à de ideologia. Neste

trabalho, nosso esforço foi descrever, primeiro, o processo de nublamento que é próprio do

pensamento burguês e que se expande e universaliza abstratamente. Seguindo esse caminho, a

consciência, vista pela ótica dos trabalhadores, é o processo que pode responder, neutralizar e

desconstruir esse movimento, ao qual, na esteira da obra marxiana, estamos chamando de

236

ideologia. Mas com que finalidade? Como parte de uma luta concreta pela emancipação

humana que, no capitalismo moderno, passa tática e estrategicamente cada vez mais pela

disputa de concepções de mundo como parte do processo que, como vimos, Gramsci chamou

de hegemonia. Ideologia, hegemonia e consciência são, então, conceitos que se inter-

relacionam diretamente na compreensão e organização prática da luta de classes.

Dito isso, neste capítulo evitaremos, sempre que for possível, repetir as análises já feitas

sobre a ‘consciência’ burguesa, detendo-nos na discussão sobre o processo de construção de

consciência crítica na classe trabalhadora. Vejamos.

A ideia de que existem níveis diferentes de consciência sugere um caminho

‘progressivo’ no sentido da emancipação, mas de forma alguma indica um etapismo linear.

Ao contrário, como resume Mauro Iasi: “A consciência é movimento que ora se apresenta

como consciência do indivíduo isolado, ora como expressão da fusão do grupo, depois da

classe, podendo chegar a diferentes formas no processo de constituição da classe até a uma

consciência que ambiciona a universalidade” (2006, p. 25). Assim, num hipotético processo

de superação dialética dos efeitos ideológicos da alienação, o momento ‘seguinte’ ao da

consciência imediata, empírica e presa na dimensão do senso comum, é o da consciência em

si que, por sua vez, a depender de um conjunto de fatores objetivos e subjetivos de que

trataremos na sequência, pode ou não ‘evoluir’ para uma consciência para si.

A questão é, então, compreender como, no processo histórico, se dá o trânsito — de ida

e volta — entre esses estágios da consciência. E a chave para entender essa passagem está na

vivência das contradições entre a concepção de mundo e a realidade concreta. Isso porque a

consciência imediata (reificada) não é uma ideia abstrata, mas sim “uma realidade externa que

se interioriza” (Iasi, 2007, p. 14). Só que, em intervalos maiores ou menores na História, essa

realidade objetiva, que está sempre em movimento, se modifica e se descola da concepção de

mundo que lhe correspondia. Os valores que correspondem à ética do trabalho, por exemplo,

que são internalizados como critérios de valoração dos indivíduos a partir da sua capacidade

de trabalhar e sustentar a si e à sua família, podem entrar em contradição com a realidade em

épocas de grande desemprego quando massas inteiras vivem na pele a impossibilidade de se

inserir no mercado, a despeito de todos os seus esforços pessoais. Ou pensemos simplesmente

num indivíduo que tenha nascido e se criado com valores relacionados ao trabalho calcados

na realidade do fordismo e que, já adulto, assistiu ao processo de reestruturação produtiva da

acumulação flexível que, embora seja a manifestação das mesmas relações sociais de

produção, traz uma nova forma de organização e um novo conjunto de valores e requisitos.

237

Pois é a partir do enfrentamento dessas contradições, inevitáveis, que, segundo Iasi, abrem-se

brechas para a superação da consciência imediata presa no senso comum; brechas essas que

são, na verdade, a manifestação subjetiva de contradições materiais objetivas. Ele resume:

Eis aqui uma contradição insolúvel da sociedade capitalista: enquanto as

forças produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações sociais

de produção, sua manifestação e justificativa ideológica devem permanecer

estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das forças produtivas,

acaba por ocorrer uma dissonância entre as relações interiorizadas como

ideologia e a forma concreta como se efetivam na realidade em mudança. É

o germe de uma crise ideológica (Iasi, 2007, p. 27).

Embora, no capitalismo, esse movimento das forças produtivas seja permanente, pode-

se deduzir que as contradições da consciência imediata têm como terreno mais fértil os

momentos de crise do capital. Mas, ainda que faça multiplicarem-se os sentimentos de

revolta, mesmo nesses momentos, essas contradições se manifestam ainda no nível da

consciência individual e não só podem como tendem a ‘regredir’ e se acomodar numa nova

versão do senso comum a partir, por exemplo, da naturalização da ideia de que o mundo é

mesmo muito injusto (Iasi, 2007, p. 28). Essa tendência à acomodação, que de tão pragmática

se torna apassivadora, se retroalimenta na forma como está estruturada essa consciência

empírica ou, mais precisamente, no caráter fragmentado e caótico do senso comum como a

‘chave’ de compreensão e ação prática de que os indivíduos lançam mão para dar conta das

demandas imediatas da vida cotidiana que, a despeito de qualquer crise, precisa continuar

sendo ‘tocada’. Mas esse ‘cenário subjetivo’ também guarda suas próprias contradições. E

elas são descritas por Gramsci a partir do que ele reconhece como um “núcleo sadio” do senso

comum que, apesar de não modificar sua natureza caótica, faz com que ele esteja em

permanente tensão. Trata-se do núcleo do “bom senso”, contraditoriamente presente no senso

comum, e que, de acordo com o autor, desafia o seu caráter instintivo, introduzindo nas

pessoas que se defrontam com as situações cotidianas a desconfiança ‘filosófica’ de que

“aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado”. E é essa

desconfiança que, segundo ele, abre caminho para a “superação das paixões bestiais e

elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção

consciente” (Gramsci, 2004, p. 98).

E assim, Gramsci introduz a dimensão do conhecimento (entendido sempre como

unidade entre teoria e prática) e das concepções de mundo no que se pode entender como um

caminho de mediações rumo à conquista da “consciência política” (em si), que seria uma

segunda ‘etapa’ desse processo de desenvolvimento. Nesse caminho, ele aposta não na

238

substituição do senso comum mas sim na ação — política, teórica e consciente — sobre o seu

núcleo sadio, que “merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente”

(2004, p. 98). Atuar criticamente sobre e a partir do senso comum é, para o autor, por

exemplo, o principal papel da filosofia da práxis — uma avaliação que talvez possa ser

estendida a outras práticas que, mesmo fora do âmbito do conhecimento científico,

tangenciem a leitura e a apreensão da realidade como totalidade.

Mas esse movimento, que Gramsci caracteriza como de criação de uma nova concepção

de mundo, crítica, pressupõe a existência (ou formação, já que não se trata de um processo

estático) de um bloco social que se materializa em uma “atividade prática e uma vontade nas

quais ela [a concepção de mundo] esteja contida como ‘premissa’ teórica implícita” (Gramsci,

2004, p. 98). Esses parecem ser os termos em que o comunista italiano expressa a convicção,

presente também em outros autores, de que a inserção do sujeito num grupo,

independentemente da sua maior ou menor formalização, é condição para que a vivência das

contradições imediatas possa representar um salto da primeira forma de consciência (do

indivíduo em crise) para a consciência em si (ou consciência política).

Enquanto Gramsci destaca o papel do grupo como espaço em que se pode produzir uma

leitura unitária e mais totalizante das contradições que se apresentam na realidade, realçando

o lugar do conhecimento, Iasi ressalta a importância do grupo para dar identidade à crise da

consciência imediata vivenciada pelo sujeito. Duas abordagens que, de alguma forma, se

completam, na medida em que o processo de construção da consciência pressupõe a

indissociabilidade entre teoria e prática. Citando o exemplo do sindicato como grupo que

melhor representa esse processo de união — embora ele possa ser reconhecido também em

muitos outros tipos de movimento setorial — e a greve como mecanismo concreto mais

ilustrativo desse encontro de indivíduos, Iasi explica que esse é o momento em que a

“injustiça vivida como revolta é partilhada numa identidade grupal, o que possibilita a ação

coletiva” (Iasi, 2007, p. 29). O que Gramsci nos lembra é que esse é também o contexto em

que a realidade se torna mais pedagógica e que, por isso, guarda um maior potencial de

sucesso na superação (sempre dialética) do senso comum rumo a uma consciência

emancipadora.

Essa consciência em si já representa algum nível de autorreconhecimento dos sujeitos

como classe. Mas trata-se da classe em si, que é ainda um ser do capital, só que revelado

agora na forma de grupo e não mais como crise vivida isoladamente pelo indivíduo (Iasi,

2006, p. 117). Mas o que isso significa na prática? O autor resume:

239

A consciência em si representa ainda a consciência que se baseia na vivência

das relações imediatas, não mais do ponto de vista do indivíduo, agora do

grupo, da categoria, e pode evoluir até a consciência de classe. Ela é parte

fundamental da superação da primeira forma de consciência, portanto, da

alienação; no entanto, seu pleno desenvolvimento ainda evidencia traços da

antiga forma ainda não superados (Iasi, 2007, p. 30).

Todo esse movimento representa um grande avanço na inserção dos sujeitos e na

capacidade organizativa da própria classe. Mais do que isso, como analisaremos adiante, é

provavelmente aqui que podem ser mais úteis e necessárias ferramentas que conciliem

conhecimento e mobilização em torno de uma concepção de mundo, como pode ser o

jornalismo. Mas é preciso também reconhecer os seus limites e riscos. Essa é ainda uma

consciência de reivindicação que, por mais radical que seja a forma como se manifesta, atua

no limite da não negação da ordem burguesa. Mais uma vez, o exemplo da luta sindical é

didático para mostrar as contradições envolvidas:

O proletariado afirma-se como classe com interesses distintos e antagônicos

ao capital quando se organiza para buscar maiores salários ou melhores

condições de vida e trabalho.

No entanto, o proletariado, ao se assumir como classe, afirma a existência do

próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por ele

mesmo. A consciência ainda reproduz o mecanismo pelo qual a satisfação do

desejo cabe ao outro (Iasi, 2007, p. 31).

Segundo o autor, os limites não-emancipatórios desse processo ficam claros, sobretudo,

quando a luta dos trabalhadores (a greve, por exemplo) é vitoriosa. “Os trabalhadores

retornam ao trabalho com suas reivindicações atendidas. Estão novamente aptos a revalidar as

relações de exploração, o trabalho alienado, ou seja, o próprio capitalismo”, resume (Iasi,

2007, p. 31-32).

É curioso perceber que poderíamos muito bem traduzir o movimento descrito na citação

acima, de luta sucedida pela reacomodação, como o retorno dos sujeitos ao seu bom e velho

cotidiano — com tudo que ele traz de superficialidade, fragmentação, generalização e, no

contexto específico do capitalismo, reificação — depois de um período de ‘distanciamento’.

Porque a ação coletiva, que confere identidade de crítica e projetos à revolta dos indivíduos

que antes estavam isolados, aponta na direção oposta à da vida cotidiana, em que a tendência

é que “todo e cada indivíduo só se perceba como ser singular” (Netto, 2010, p. 68), fazendo

subsumir, portanto, a dimensão genérica dos homens, sua ontológica universalidade e

inserção na totalidade.

Com isso estamos reconhecendo nessa fase coletiva (grupal) de desenvolvimento da

consciência política o processo que Lukács chama de “suspensão do cotidiano”, que significa

240

um salto, sempre provisório, da dimensão da ação e do pensamento individual-particular na

direção de uma ação e um pensamento que percebam e alcancem a universalidade do humano

que somos todos nós. Na esteira da obra do autor húngaro, Agnes Heller fala também de um

processo de “elevação” do cotidiano, numa abordagem que valoriza o conhecimento como

elemento capaz de gerar algum estranhamento em relação ao cotidiano vivido. Diz ela:

(...) quando — num dado momento da vida cotidiana — o indivíduo começa

a refletir acerca de uma superstição que compartilhava, ou de uma tese que

assimilou da integração de que faz parte, passando a supor que nem uma

nem outra são aceitáveis porque contradizem a experiência, e, logo após,

começa a examinar o objeto posto em questão comparando-o com a

realidade, para terminar recusando-o, em tal momento o referido indivíduo

elevou-se acima do decurso do pensamento cotidiano, ainda que apenas em

tal momento (Heller, 2004, p. 34, grifos nossos)

Não é difícil identificar na trajetória crítica do indivíduo hipotético da citação acima os

mesmos elementos que compõem o que Gramsci chama de superação do senso comum,

inclusive com seu necessário ponto de partida material que, no caminho de construção da

consciência, são nada mais nada menos do que as contradições objetivas de que já tratamos.

Mas, na medida em que, como vimos, a esfera do cotidiano é insuprimível, e também

levando-se em consideração que ela ganha funcionalidade ideológica no capitalismo, não é

fácil fugir dessa dimensão imediata e particularista da vida. Por isso Lukács fala em

“suspensão”, como um movimento de ir e vir, que portanto reconhece uma superação dialética

da imediaticidade que aprisiona o sujeito na consciência reificada, sem, no entanto, eliminar o

cotidiano que é ineliminável. Assim, é como se disséssemos que o cotidiano do indivíduo que

volta ao trabalho depois de uma greve vitoriosa mantém a sua estrutura de funcionamento —

talvez com um salário maior e melhores condições de trabalho —, mas ele, o trabalhador, já

não é exatamente o mesmo. Como explica Netto: “(...) a vida cotidiana permanece

ineliminável e inultrapassável, mas o sujeito que a ela regressa está modificado” (2010, p. 71).

No que diz respeito às condições subjetivas, são esses movimentos de superação que

podem levar a consciência a um patamar mais desenvolvido do que o da sua dimensão

política. Assim, essa consciência em si pode, a partir da combinação de determinadas

condições objetivas e subjetivas, dadas historicamente, evoluir para uma consciência

revolucionária que se realize plenamente como consciência para si na ruptura com a ordem77

.

Mas, como não se trata de um processo progressivo linear, e partindo-se da observação

77

A esse movimento corresponde, no plano concreto, a ‘passagem’ da classe em si para a classe para si, como

Marx exemplifica: “Na história da burguesia, devemos distinguir duas fases: aquela durante a qual a burguesia se

constituiu em classe, sob o regime da feudalidade e da monarquia absoluta, e aquela em que, já constituída em

classe, derrubou a feudalidade e a monarquia para fazer da sociedade uma sociedade burguesa” (2009, p. 190).

241

empírica da atualidade da classe trabalhadora, o mais provável é que essa consciência

‘regrida’, buscando um novo amoldamento, aprisionando-se na luta corporativa, no exemplo

dos sindicatos — ou na luta democrática, se tentarmos um paralelo com os movimentos do

campo da comunicação. Eis como Lukács nos apresenta esse dilema:

(...) como o proletariado é colocado pela história diante da tarefa de uma

transformação consciente da sociedade, surge necessariamente em sua

consciência de classe a contradição dialética entre o interesse imediato e o

fim último, entre o fator individual e a totalidade. Pois o fator individual do

processo, a situação concreta com suas exigências concretas são, por sua

própria essência, imanentes à sociedade capitalista presente, encontram-se

sob suas leis, estão submetidos à estrutura econômica. Somente quando

inseridos na visão geral do processo e relacionados à meta final, esses

fatores apontam de maneira concreta e consciente para além da sociedade

capitalista e se tornam revolucionários (Lukács, 2003, p. 176, grifos nossos).

E como, no capitalismo, a forma privilegiada da humanidade (do ser social) é o

indivíduo, por mais progressista e enriquecedor que seja, o movimento de dar um passo além

da consciência política (em si) tem também como limite as contradições entre os interesses

individuais e a universalidade que a consciência revolucionária necessariamente requer. “(...)

mesmo supondo o sujeito coletivo, o motor básico da reivindicação é a satisfação de algo para

o próprio indivíduo. Quem luta por moradia, por exemplo, luta para ter onde morar, se

possível no mais curto espaço de tempo. Agora, a transformação da sociedade exige um outro

sujeito: a classe” (Iasi, 2007, p. 35). Mas também como Gramsci nos lembra, numa passagem

mais otimista, essa é uma transição já historicamente vivida:

(...) toda revolução foi precedida por um intenso e continuado trabalho de

crítica, de penetração cultural, de impregnação de ideias em agregados de

homens que eram inicialmente refratários e que só pensavam em resolver por

si mesmos, dia a dia, hora a hora, seus próprios problemas econômicos e

políticos, sem vínculos de solidariedade com os que se encontravam na

mesma situação (Gramsci, 2004b, p. 58-59).

O sociólogo e militante Patricio Biedma78

nos ajuda a refletir sobre esse processo de

desenvolvimento da consciência especificamente no campo da imprensa quando, a partir da

experiência concreta que vivia no Chile de Salvador Allende, localiza os limites do avanço da

consciência a partir das diferentes práticas que se apresentam como ‘alternativas’, e que ele

resume nas categorias de “imprensa popular” e “imprensa revolucionária”79

. Como fala de

78

Patricio Biedma foi um dos muitos desaparecidos das ditaduras empresarial-militares do continente. Sociólogo

argentino, viveu muito tempo no Chile, onde tornou-se catedrático da Universidad Católica de Chile e dirigente

do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR). Com o golpe militar que encerrou o governo de Allende,

refugiou-se em Buenos Aires, onde foi sequestrado em 1976. Até hoje não se conhece o seu destino. 79

Reproduziremos ao longo do trabalho a nomenclatura utilizada pelo autor, sem nos preocuparmos em adotá-la

como uma categorização conceitual generalizável ou adequada à realidade brasileira.

242

uma experiência concreta e localizada, apenas a partir do texto não é possível reconhecer

exatamente, no cenário brasileiro, o equivalente ao que o autor está chamando de imprensa

popular. Na maior parte do tempo, ele parece se referir a uma imprensa feita nos moldes da

imprensa burguesa — e que disputa espaço com ela, inclusive nas bancas de jornais —, mas

orientada por um pensamento de esquerda, que divergiria do discurso hegemônico dos

principais veículos da grande mídia80

. De todo modo, o que é possível apreender do texto de

Biedma, e que importa a este momento da nossa discussão, é que essa imprensa popular seria

desenvolvida por uma camada pequeno-burguesa que se colocaria como representante e porta-

voz dos trabalhadores, exercendo o que ele considera um monopólio cultural e intelectual.

A questão, para o autor, é que essa imprensa se desenvolve para e sobre as massas, mas

como uma força externa a elas que, para se identificar como crítica, precisa participar do jogo

de oposição que a coloca no mesmo terreno da imprensa burguesa. E, sendo assim, ela não

pode superar um determinado estágio de desenvolvimento das contradições e das lutas,

transforma também as classes em público, assume um perfil necessariamente reformista e, ao

contrário do que se propõe, acaba se tornando um obstáculo para a consciência dos

trabalhadores. Diz ele: “A imprensa popular é produto das lutas dos trabalhadores pela sua

emancipação. E, no entanto, numa etapa determinada, eles não se veem como classe nas

páginas dessa imprensa. A imprensa popular é popular por ela mesma, seu título foi

autoadjudicado” (Biedma, 1971, p. 258). Nesse sentido, não se trata de não reconhecer a

importância e função desses jornais: no Chile, por exemplo, segundo o autor, a imprensa

popular foi fundamental para o êxito da Unidade Popular nas eleições que levaram Allende ao

governo. Mas ele insiste na necessidade de se reconhecerem também os seus limites: “O que

critico principalmente nela [a imprensa popular] é que, como se arroga uma função que não

cumpre, a de representar os interesses das massas num nível primário da sua ação, não cumpre

nem pode cumprir com o dever de toda imprensa revolucionária: elevar esse nível a uma etapa

superior” (Biedma, 1971, p. 256-257).

Nessa passagem já fica clara a referência ao papel (e aos limites) da imprensa nos

diferentes estágios de consciência — questão que se apresentava como problema concreto

num país que experimentava um processo de construção do poder popular e ‘transição’ para o

socialismo, com um alto grau de organização dos trabalhadores. O autor explica: “Quando a

massa está em um nível primário de sua organização, ainda dominada abertamente pela

80

Mas no final do texto, ele também se refere a uma tendência sensacionalista, que talvez pudesse identificar

esses jornais com a chamada ‘imprensa marrom’ (1971, p. 283), aproximando-se do que no Brasil chamamos de

imprensa popular mas sem que isso, no geral, aponte para qualquer tipo de posicionamento crítico.

243

burguesia, ela se une com um projeto bem definido de comunicação (...): o projeto da

imprensa popular. Esta imprensa não serve quando a massa superou esta etapa, quando essa

massa ascendeu (...)”. E como se traçasse um paralelo exemplar com o caso da volta ao

trabalho depois da greve vitoriosa, que mencionamos há pouco, ele completa: “O que

caracteriza a imprensa popular, sempre, é o grau em que a burguesia recupera o conteúdo das

suas mensagens, em que a burguesia está capacitada para tal recuperação” (Biedma, 1971, p.

263).

Em outras palavras, o que ele chama de imprensa popular parece contribuir com a crise

da consciência individual e mesmo com a construção da consciência em si mas representa

também um obstáculo ao avanço desse estágio rumo a uma ruptura material e concreta. Se

quisermos lançar mão dos mesmos termos que vínhamos utilizando, trata-se de uma imprensa

crítica e reivindicatória, mas que só faz sentido como imprensa do capital (ainda que a

princípio se coloque contra ele). A verdadeira oposição à imprensa burguesa, nos termos da

luta de classes, se daria com o que ele chama de “imprensa revolucionária” que é, na verdade,

resultado e ao mesmo tempo fomentadora do avanço rumo a uma transformação concreta da

sociedade.

Entre falar de imprensa popular e falar de imprensa revolucionária há um

salto, o salto de uma sociedade que faz a revolução proletária. A diferença

deve realizar-se; através da falsa opção que a imprensa popular oferece

frente à imprensa burguesa, devemos ir descobrindo o conteúdo verdadeiro,

a forma de comunicação revolucionária que entra em contradição com a

forma de comunicação burguesa (Biedma, 1971, p. 267).

Nesses termos, no campo da comunicação, o que o autor chama de imprensa

revolucionária seria expressão do momento seguinte de desenvolvimento da consciência, se

dermos sequência ao trajeto que vínhamos seguindo neste tópico. Trata-se, aqui, da

consciência para si.

De todo modo, é preciso insistir que esse não é um caminho ou uma passagem linear:

uma vez atingida a consciência em si, tem-se o que Iasi, usando os termos de Sartre,

caracteriza como um “campo aberto da práxis”, ou seja, um “espaço em que a ação dos seres

humanos pode reproduzir as condições de sua dominação ou enfrentá-las”. Ele explica:

No interior deste processo, a classe trabalhadora pode se constituir enquanto

classe se, e somente se, os seres humanos em contradição com o processo

imediato do capital se encontrarem em certas condições coletivas para

romper o invólucro individual e se verem como seres coletivos, desde a

mediação particular do grupo até a genericidade da classe (Iasi, 2006, p. 68-

69)

244

No que diz respeito à organização social concreta, Iasi reconhece um processo

‘seguinte’ ao ‘desenvolvimento’ do momento de grupo — que, apesar da experiência coletiva,

é ainda em grande medida motivado por questões e demandas particulares. Trata-se de um

processo de “generalização” em que a associação — muito mais do que quantitativa — dos

grupos, em geral movidos por uma ameaça externa comum, reconhece-se propriamente como

a classe. Um dos exemplos trazidos pelo autor é a escalada de greves ocorridas no Brasil entre

o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 em que, principalmente em função do arrocho

salarial, a mobilização de diversos setores e categorias “transforma a crítica à política

econômica em crítica contra a ditadura”, produzindo uma unidade em torno de uma “ação

específica de classe” (Iasi, 2006, p. 319). Ele resume: “A ameaça comum e a ação comum

produzem a fusão de um ser comum: a classe” (2006, p. 318).

Reconhecendo, portanto, a centralidade desses processos de organização concreta para o

nosso tema, surge aqui a pergunta sobre em quais desses momentos reside, de fato, a

consciência de classe: no indivíduo, no grupo ou na fusão dos grupos que seria, somente aí,

expressão da classe? Para Iasi, a resposta está justamente no movimento de elevação entre

esses ‘estágios’. Diz ele:

(...) a consciência de classe (...) não se define pela consciência fragmentada

do indivíduo serializado, nem pela consciência da classe como sujeito

revolucionário; contudo, cada um destes momentos é a consciência de

classe, ou seja, é tão consciência da necessidade a alienação e o senso

comum como a consciência da necessidade de transformação revolucionária

da ordem do capital (...) (Iasi, 2006, p. 320).

Seja no grupo ou na fusão entre eles, uma vez superados os limites objetivos e

subjetivos, o “campo aberto” de que fala o autor indica o caminho da nova sociedade e da

nova consciência que é, ao mesmo tempo, condição e resultado da luta pela ruptura com a

ordem do capital. Vislumbra-se, assim, a síntese entre teoria e prática, a culminância do

processo de retroalimentação entre a batalha das ideias e as contradições materiais que lhe

fornecem sentido, a realização concreta de uma nova concepção de mundo. Nasce assim, a

consciência para si, que, numa abordagem levemente diferente da que acabamos de

descrever, Lukács nomeia como a verdadeira consciência de classe. Ele define: “(...) a

consciência de classe não é a consciência psicológica de cada proletário ou a consciência

psicológica de massa do seu conjunto, mas o sentido, que se tornou consciente, da situação

histórica da classe” (Lukács, 2003, p. 179).

245

Assim, a hegemonia (na dimensão da nova concepção de mundo) pela qual se luta é

resultado e desdobramento da consciência de classe que, por sua vez, se constrói a partir da

luta contra-hegemônica mas só se unifica no ato prático da revolução.

É nesse processo dialético, de construção de uma consciência que só se completa no

momento da ruptura com o mundo que a construiu, que se deve compreender o sentido da

conhecida frase de Gramsci, aqui já referida, segundo a qual é possível (e desejável) que um

grupo se torne dirigente antes de se tornar dominante. Muito distante da compreensão

reformista e idealista que entende a luta pelas concepções de mundo como uma conquista

gradativa que ‘levará’ ao poder de Estado, trata-se de uma sofisticada leitura materialista não

só das estratégias políticas, mas também das relações entre teoria e prática. Não cabem aqui,

portanto, tentativas fáceis de estabelecer anterioridades.

Isso não deve levar à compreensão de que a transformação revolucionária se

dá materialmente e só depois é que o universo das ideias vai se

transformando automaticamente. Essas esferas combinam-se, ainda que

preservada a determinação material, de forma que a luta das ideias e a

capacidade de uma classe revolucionária apresentar suas concepções e

valores como os valores do conjunto da sociedade antecipam-se e preparam

o terreno para transformações revolucionárias (Iasi, 2007, p. 42).

Aliás, embora Gramsci faça uma atualização das táticas e estratégias políticas

necessárias a partir do desenvolvimento do capitalismo nas sociedades que nomeou de

“ocidentais”, como vimos, a inovação se dá, em grande medida, na forma como são

estruturados e organizados os aparelhos que dão conta da batalha das ideias (e da coerção,

quando necessária), já que essa relação entre as ideias de um novo tempo e a efetiva

transformação das suas bases materiais tem antecedentes históricos. Iasi exemplifica:

Foi o que de fato ocorreu com a própria revolução burguesa. O pensamento

burguês antecipou-se à revolução burguesa, No entanto, isso não implica no

fim da determinação material. As ideias revolucionárias burguesas, entre elas

a ilustração e o liberalismo, só puderam se constituir tendo por base a

própria gestação material das bases objetivas do modo de produção

capitalista e, com elas, o desenvolvimento de novas classes sociais que

buscavam expressar (2007, p. 42).

Naquele momento ou agora, a questão é compreender como nascem e se reproduzem as

novas ideias e concepções de mundo que poderão dar suporte às transformações materiais

concretas. A primeira resposta está dada, em alguma medida, na citação acima, onde se lê

que, no caso das revoluções burguesas, essas ideias foram já resultado do próprio processo de

criação das “bases objetivas” do novo modo de produção, embora elas tenham se antecipado

em muito ao momento propriamente da sua consolidação. Assim, transposta para a leitura das

246

condições de transformação da realidade na direção da classe trabalhadora, o alerta é de que o

contexto de descenso das lutas e da capacidade de organização social, que vínhamos

acompanhando no Brasil e no mundo desde o fim do ‘socialismo real’, é pouco propício à

afirmação de novas ideias e ao nascimento de novas concepções de mundo mais duradouras

— embora, naturalmente, trate-se de um descenso que precisa ser localizado num contexto de

crise do capitalismo e que, portanto, nada tem de definitivo ou estrutural. Trata-se de um

processo de retroalimentação, em que a batalha das ideias fomenta a organização concreta da

classe e o resultado positivo desse movimento permite que se consolidem novas chaves de

leitura do mundo e das relações sociais. Ainda que pontual, o contexto brasileiro recente, a

que já fizemos referência na introdução, tem sido pedagógico para essa constatação. Embora

sem evidências científicas, tendo em vista o caráter muito recente dos acontecimentos, é

possível observar empiricamente, por exemplo, a movimentação que o campo das lutas pela

democratização da comunicação sofreu logo após as manifestações das chamadas jornadas de

junho de 2013. Com o breve processo de mobilização social que levou as pessoas para as

ruas, ainda que de modo amorfo e sem identidade, um conjunto de instituições foi posto em

xeque e, entre elas, estavam os meios de comunicação de massa, especialmente a imprensa.

Pelo menos por um intervalo de tempo, ampliou-se o espaço e a permeabilidade das críticas

ao papel da mídia e da defesa da importância de veículos alternativos e independentes — o

exemplo mais concreto foi a popularidade que o coletivo ‘Mídia Ninja’81

adquiriu durante o

auge das manifestações, furando inclusive o bloqueio da grande imprensa ao tema da

comunicação alternativa. Ao mesmo tempo, e exatamente pelo teor dessa mobilização de rua,

parte dos meios de comunicação de massa empresariais endureceu o discurso e a ação,

fechando o cerco em torno de uma leitura acusatória e conservadora do fenômeno que o Brasil

vivia, a ponto de se distanciar flagrantemente da experiência real das pessoas, num processo

que, mais do que ideológico, era claramente manipulatório, e exemplifica muito bem um

momento de quebra de correspondência entre as ideias e a realidade sensível. E isso, por sua

81

Ninja é a sigla para ‘Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação’. Trata-se de um coletivo formado por

jornalistas e outros profissionais das áreas de comunicação e cultura que pratica o chamado ‘midiativismo’, uma

cobertura jornalística engajada, principalmente em tempo real, que disputa a versão dos fatos. O grupo ganhou

visibilidade durante a onda de manifestações que tiveram início em junho de 2013 no Brasil quando suas

transmissões feitas em tempo real, de dentro das passeatas e acompanhando de perto os momentos de conflito,

ajudaram a desmentir versões produzidas pela polícia e reproduzidas de forma naturalizada na grande imprensa,

e a denunciar arbitrariedades cometida pelo Estado naqueles eventos. Sua importância como tática de

contrainformação naquele momento foi tão grande que, depois de circularem pelas redes sociais, imagens

produzidas pelo grupo chegaram a ser transmitidas no Jornal Nacional, da Rede Globo. Com uma lógica

descentralizada, e uma demanda material simples — um celular com câmera capaz de transmitir pela internet —

o midiativismo do grupo passou a ser praticado por muitos outros coletivos, que se espalharam pelas

manifestações e outros espaços de conflito social.

247

vez, ao mesmo tempo em que impulsionava a reação de condenação às manifestações em

algumas frações da sociedade, fortalecia para outras frações a imagem de uma mídia parcial e

comprometida com interesses próprios. Nesse processo de retroalimentação, uma parte das

ideias e convicções críticas sobre a mídia pôde ultrapassar os limites até então muito restritos

dos círculos de militantes da área de comunicação, ao mesmo tempo em que, internamente,

esses e outros movimentos ganharam um impulso de mobilização para intensificar discussões

e iniciativas práticas em torno dessa frente de ação. Em outras palavras: não foi o excesso de

informação ‘alternativa’ e crítica disponível que levou as pessoas às ruas, mas ao contrário, a

mobilização real em torno de questões concretas levou à produção de mais informações e à

intensificação e ampliação dos debates críticos.

Mas essa resposta sobre o nascimento de ideias e a conformação de concepções de

mundo é, no contexto que estamos discutindo, nada mais do que o reforço de um alerta

materialista que temos feito ao longo de todo o trabalho. Nosso objetivo aqui é refletir sobre o

papel de instrumentos como a imprensa e práticas como o jornalismo no processo de

desconfiança, crítica, revolta e organização coletiva que atravessa todas as ‘etapas’ da

construção de consciência para os trabalhadores. E, para isso, Lenin e Gramsci nos trazem

uma contribuição valiosa.

Em textos principalmente do início do século XX, anteriores ao Ensaio Geral de 1905,

Lenin promove uma intensa discussão sobre a importância de a socialdemocracia82

construir

um jornal que abrangesse toda a Rússia, tanto no conteúdo quanto na circulação. Nesse

momento, sua preocupação principal era a criação de um partido único, centralizado, que

pudesse ajudar a organizar os trabalhadores e, de modo mais geral, atrair todas as classes que

se opunham ao governo czarista.

Assim, o jornal aparece primeiro na obra de Lenin como um dos caminhos possíveis e

necessários para se estabelecer uma unidade do movimento revolucionário que, nas suas

palavras, sofria sobretudo pela “dispersão”, tanto de ideias quanto de organização (1975b, p.

55). Lenin estava numa batalha contra a limitação da luta aos espaços locais e a uma

dimensão econômica (corporativa, defendida pelo sindicalismo chamado de trade unionista),

que ele considerava insuficiente para a luta de classes. A organização do jornal aparece, então,

como uma das respostas ao desafio de se formar um partido único, centralizado, sem ferir a

82

Lenin se refere aqui ao Partido Operário Social-Democrata Russo, que reunia tendências revolucionárias e

mais tarde daria origem ao Partido Comunista. Como já explicamos em nota anterior, também aqui não existe

qualquer endosso à socialdemocracia reformista que se desenvolveu na esteira do Partido Social-Democrata da

Alemanha (SPD), desde as primeiras décadas do século XX e centrou seu projeto em torno do Estado de Bem-

Estar Social.

248

autonomia da atividade local. Ele defendia que essa era, portanto, a tarefa imediata dos

socialdemocratas russos.

Se um determinado jornal não for assegurado como sendo a expressão fiel de

um partido, a criação desse partido reduzir-se-á em grande parte a

palavreado e nada mais. E se a luta econômica não for unificada num órgão

central de imprensa, esta também não poderá transformar-se na luta de

classes de todo o operariado russo. A continuação da luta política só será

possível se o Partido se expressar sobre todos os problemas políticos e se

dirigir as manifestações isoladas dessa luta. A organização das forças

revolucionárias, a sua disciplina e o desenvolvimento da técnica

revolucionária só serão possíveis através da discussão de todos estes

problemas num órgão central (...) (Lenin, 1975b, p. 15-16)

Ainda que não esteja nomeado dessa forma, na base dos argumentos de Lenin para

defender essas propostas está uma análise concreta sobre os diferentes graus de

desenvolvimento da consciência dos trabalhadores. “(...) para Lenin, a classe operária não é

homogénea; é preciso distinguir o operário avançado do operário médio e este último do

operário ainda completamente estranho à consciência de classe”, explica Madeleine

Worontzoff (1977, p. 28). Diríamos que a grande batalha do revolucionário russo naquele

momento era contra uma concepção que estagnava os trabalhadores na luta econômico-

corporativa e, consequentemente, na consciência em si, sem ‘alimentar’ a consciência de

classe nem impulsionar o salto rumo à consciência para si e a uma ruptura concreta mais

radical. Em um dos muitos trechos em que aborda essa polêmica, ele diz:

Pode chamar-se luta de classes à luta dos operários de uma determinada

fábrica ou grêmio contra os patrões? Não; isso é só um débil começo. A luta

dos operários só se converte em luta de classes quando os representantes da

vanguarda de toda a classe operária de um país têm consciência da unidade

da classe trabalhadora e empreendem a luta, não contra um patrão isolado,

mas contra toda a classe capitalista e contra o governo que apoia essa classe

(Lenin, 1975b, p. 12).

E, na sequência, para defender a prioridade da organização nacional sobre o trabalho

local naquele momento da luta na Rússia, ele propõe um caminho: “O objetivo da social-

democracia consiste, precisamente, em transformar, através da propaganda, da agitação e da

organização dos operários — essa luta espontânea contra os opressores — numa luta comum

a toda a classe, na luta por um Partido político determinado, por ideais políticos e socialistas

definidos” (Lenin, 1975b, p. 12).

Perceba-se, na frase acima, que Lenin trabalha com um contexto em que já existe um

movimento “espontâneo” que, portanto, precisa ‘apenas’ superar os limites que a dimensão

local e corporativa da luta lhe impõe. Em outro texto — ‘Por onde começar?’ —, de 1901, em

249

que responde às críticas à sua proposta de um jornal nacional, ele destaca a importância do

trabalho de organização mesmo em momentos de pouca mobilização:

(...) nenhuma situação, por “monótona e pacífica” que seja, como nenhum

período de “quebra do espírito revolucionário” exclui a obrigação de

trabalhar pela criação de uma organização de combate ou de levar a cabo a

agitação política; mais ainda: é precisamente em tais circunstâncias e em

tais períodos que é necessário esse trabalho, porque nos momentos de

explosão é já tarde para criar uma organização (Lenin, 1975b, p. 51, grifos

nossos).

Aliás, vale ressaltar que o cerne do seu argumento vai além da ‘conscientização’ dos

operários, enfocando precisamente o esforço de construção de uma unidade em torno da

concepção de mundo proletária. E aqui, na discussão de tática e estratégia, Lenin já mostra as

origens do conceito de hegemonia que Gramsci, dando o devido crédito ao revolucionário

russo, desenvolverá mais tarde. Vejamos, por exemplo, o papel do jornal na constituição de

algo próximo ao que, pela nossa interpretação, o comunista italiano chamaria de bloco

histórico — e com todo o teor revolucionário que algumas leituras simplesmente apagaram da

sua obra:

(...) reconhecendo na classe operária e na social-democracia russa a

vanguarda combativa na luta pela democracia, pela liberdade política,

consideramos necessário preocuparmo-nos para que os nossos órgãos de

informação sejam os órgãos de toda a democracia; mas nem por um

momento poderemos admitir a ideia de esquecer o antagonismo de classe

entre o proletariado e as outras classes, nem a mínima tentativa de ocultar

essa mesma luta; a nossa ideia é que se exponham e examinem todos os

problemas democráticos sem os limitar aos estritamente relacionados com o

proletariado; que se exponham e examinem todos os casos e todas as

manifestações de opressão política; que se relacione o movimento operário

com a luta política, sob todas as formas; que se convidem todos os que lutam

honestamente contra a autocracia, seja qual for a sua opinião ou a classe a

que pertençam, para apoiar a classe operária, considerada como a única força

revolucionária e decididamente hostil ao absolutismo” (Lenin, 1975b, p. 45-

46, grifos nossos).

O fato é que o conjunto da obra de Lenin mostra sua clareza de que o grau de

desenvolvimento da consciência varia não apenas nos diferentes períodos, mas também entre

os trabalhadores de um mesmo momento histórico. É por isso que, pensando na situação

concreta da Rússia pré-revolucionária, ele identifica duas funções principais para o jornal

proletário: a agitação e a propaganda. Resumidamente, poderíamos dizer que o objetivo da

agitação é despertar a indignação de modo a promover a ação, enquanto a propaganda deve

explicar a natureza dos problemas. Vejamos como, a partir de um exemplo concreto, ele

distingue as duas funções:

250

(...) um propagandista, se trata por exemplo do problema do desempregado,

deve explicar a natureza capitalista das crises, assinalar a causa da

inevitabilidade das mesmas na sociedade actual, e indicar a necessidade de

transformar a sociedade capitalista em socialista, etc. Numa palavra, deve

dar “muitas ideias”, tantas ideias que todas essas ideias, no seu conjunto, só

poderão ser assimiladas, nessa altura, por um número (relativamente

pequeno) de pessoas. Pelo contrário, ao tratar do mesmo problema, o

agitador tomará por exemplo mais conhecido do seu auditório — por

exemplo, o caso de uma família de desempregados, morta por inanição, a

miséria crescente, etc., e, apoiando-se nesse facto conhecido por todos fará

todos os esforços para inculcar nas “massas” uma única ideia: a da

contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria;

procurará despertar nas massas o descontentamento, a indignação contra esta

flagrante injustiça, deixando ao propagandista o cuidado de dar uma

explicação completa desta contradição (Lenin, 1975a, p. 80-81).

Discutiremos mais detidamente adiante a forma como Lenin pensa a organização do

conteúdo do jornal, mas vale adiantar que, no conjunto dos seus textos sobre esse tema,

aparece a menção a uma ‘divisão de tarefas’ entre veículos diferentes, por vezes referidos

como uma “revista político-científica” e um “jornal operário” (1975b, p. 42). Em outros

momentos, o revolucionário russo trata apenas do “jornal do partido”, buscando esclarecer

como o seu conteúdo atingiria os trabalhadores que se encontram em estágios diferentes de

conhecimento e consciência. Worontzoff resume: “A cada fase [da crise que levaria à

revolução] corresponde uma tarefa (agitação, propaganda, organização dominante); um

interlocutor (vanguarda, classe, massas) prioritário; um tipo de imprensa (brochura, jornal,

manifesto) particularmente adequado” (1977, p. 64). Contextualizando essa teorização na

história da Rússia, a autora explica que, entre 1899 e 1902, os escritos de Lenin sobre a

imprensa condiziam com um período de “preparação da revolução pela propaganda e

organização”, o que justifica que o jornal se dirigia principalmente aos “militantes”, já que,

com a “insurreição” ainda longe no horizonte, o objetivo prioritário era “formar quadros

revolucionários” (1977, p. 64). Esse é precisamente o teor das orientações contidas no texto

‘Que fazer?’, que é um dos mais citados de Lenin sobre esse tema. A partir de 1903, o

‘público’ do jornal na concepção proposta por Lenin se ampliaria para toda a classe operária

na medida em que a revolução teria se tornado um horizonte mais concreto. “A imprensa deve

deixar de veicular grandes verdades, para ser um guia de acção que se anuncia”, diz

Worontzoff (1977, p. 66). E completa: “O período que se segue é complexo: existe um recuo,

um retorno a uma concepção essencialmente propagandista e organizadora da imprensa (...).

O jornal não se dirige, como em 1900, ao pequeno núcleo inicial de militantes” (1977, p. 67).

Será apenas entre 1910 e 1912 que, de acordo com a autora, Lenin investirá esforços num

jornal da classe operária (o Pravda), com perfil de massa. Referindo-se ao pensamento do

251

autor, ela contextualiza: “Não é concebível um jornal de massa a não ser num período em que

a classe operária esteja suficientemente madura e suficientemente combativa para impulsionar

o seu próprio jornal, sem fazer dele um florilégio de ecos fechados” (Worontzoff, 1977, p.

64).

No projeto escrito ainda em 1899, em que apresenta a proposta de construção de um

jornal na Rússia, Lenin esclarece que a “massa de leitores” seria constituída por “operários

médios” que nem sempre compreenderiam todas as questões, teóricas ou práticas,

apresentadas pelo jornal. “Mas não se deve concluir, de maneira nenhuma, que o jornal deva

necessariamente baixar ao nível da massa dos seus leitores. Pelo contrário, é precisamente um

dever do jornal elevar o nível dos leitores e ajudar a selecionar os operários de vanguarda

entre os operários médios” (Lenin, 1975b, p. 28). Essa “vanguarda”, devidamente

instrumentalizada pelo órgão de informação do partido, converte-se numa “intelectualidade

proletária” que, assumindo a causa do socialismo, se torna dirigente. Já as “camadas inferiores

do proletariado” deveriam ser submetidas também a “outros métodos de agitação e de

propaganda”, que Lenin exemplifica com “folhetos escritos na forma mais popular possível,

propaganda oral e, sobretudo, panfletos relacionados com os acontecimentos locais” (1975b,

p. 29). Ele esclarece, no entanto, que essa variação deve ser apenas “tática”, sem comprometer

a unidade da “atividade política”.

Apesar da variação “tática”, é conhecida a frase de Lenin — escrita em 1902 —

segundo a qual “sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário”

(1975a, p. 33). E, embora essa não seja a função primeira do jornal, ele é parte do processo

que leva os sujeitos ao encontro (ou à busca) da compreensão científica da realidade que

precisa ser transformada. Isso é, na concepção do autor, elemento indispensável do que

estamos reconhecendo como consciência de classe.

Para os dirigentes, em particular, o seu dever consistirá em instruir-se cada

vez mais em todas as questões teóricas, em libertar-se cada vez mais da

influência da fraseologia tradicional, própria da antiga concepção do mundo,

e a nunca perder de vista que o socialismo, desde que se tornou uma ciência,

deve ser tratado como uma ciência, isto é, ser estudado. A consciência assim

conseguida e cada vez mais lúcida deve ser difundida entre as massas

operárias com zelo cada vez maior (...) (Lenin, 1975a, p. 37).

Lenin está brigando contra a concepção, comum na época em que ele escrevia, de que a

consciência poderia ser gerada ‘espontaneamente’, como resultado quase ‘automático’ do

desenvolvimento das contradições capitalistas ou como um reflexo direto da vivência da

exploração pelos trabalhadores. E essa preocupação coincide inteiramente com a abordagem

252

aqui já apresentada de que, mesmo diante da crise gerada a partir das contradições da

realidade concreta, que causam sofrimento e revolta, a consciência pode regredir para o senso

comum — e na maioria das vezes é isso que acontece — ou mesmo dar um ‘passo adiante’

mas voltando novamente a se acomodar na consciência em si — muito bem representada pela

luta corporativa local cujos limites Lenin está denunciando. Portanto, a simples constatação

(ou informação) — cotidiana — da exploração, das injustiças e das contradições do

capitalismo não é suficiente para organizar a luta pela sua superação. Mais do que um reforço

à discussão teórica sobre os graus de consciência, isso nos interessa particularmente porque

aponta a necessidade de um trabalho — de mobilização, informação, conhecimento e

organização — direcionado para esse fim, que pressupõe instituições e instrumentos

específicos entre os quais, no momento em que escreve, Lenin destaca o partido e o jornal.

Boa parte dos escritos de Lenin sobre o jornal se dá no calor dos movimentos

revolucionários na Rússia, enquanto Gramsci, que também dedica especial atenção ao tema,

vive, nos escritos do cárcere, um momento em que o esforço principal parece ser a

compreensão de uma derrota e a consequente construção de uma nova hegemonia a partir do

espaço e dos aparelhos da sociedade civil no contexto da institucionalidade burguesa. É claro

que esses são apenas momentos diferentes de um mesmo processo, na medida em que a luta

de contra-hegemonia também pressupõe como fim a tomada do Estado, mas essa diferença de

contexto sugere objetivos imediatos distintos na obra dos dois autores quando tratam do jornal

como ferramenta. Assim, ao enfocar a superação do senso comum na direção do bom senso,

Gramsci parece mirar mais especificamente a atuação sobre a consciência imediata reificada,

apostando na dialética possível do confronto entre as ideias e a base material. Como vimos,

embora não apresente esse processo como passos em sequência, Gramsci parece propor como

momento desejável posterior (naturalmente como um caminho dialético e não linear) ao

desenvolvimento do núcleo do bom senso a formação de uma consciência política, que ele

define como “consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica” (2004, p.

103), ou seja, o abalo do isolamento na direção de uma consciência mais coletiva. Trata-se,

pelo que nos parece, do que estamos chamando de consciência em si. Esta, segundo ele, é a

“primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática

finalmente se unificam” (Gramsci, 2004, p. 103), ou seja, alcança-se a consciência para si.

Isso, no entanto, não resume o conjunto da trajetória e do pensamento do autor no campo do

jornalismo. Vejamos.

253

A questão que se coloca para nós neste momento é identificar que tipo de veículo e de

prática deve orientar a imprensa como ferramenta dessas lutas. Embora a dinâmica da

“agitação” possa e deva ser utilizada para explorar as crises de correspondência entre as ideias

e a realidade concreta, que atinge principalmente o indivíduo imerso no senso comum, em

Lenin essa ‘tática’ jornalística parece se voltar mais para o veículo inserido no contexto de

uma classe que já adquiriu a consciência em si e caminha para as lutas que visam à ruptura

material-concreta que pode significar a consciência para si. A História nos mostra, aliás, que

essa foi também a forma que o jornal ‘engajado’ assumiu no momento das revoluções

burguesas — destacando a presença numérica da imprensa comprometida com a Revolução

Francesa, Losurdo, não por acaso, se refere a esses instrumentos como de “agitação” e

“mobilização”. Assim, Lenin parece supor a agitação como a forma necessária de um jornal

que age sobre a classe já em movimento, mas que, ainda assim, não se encontra

homogeneamente ‘instrumentalizada’ para as lutas. E essa ‘instrumentalização’ é parte do

papel da “propaganda”, a tática que, pelo jornal, ajuda a fornecer fundamentação histórica e

teórica às contradições (e à indignação) que já se manifestaram. Trata-se aqui, então, de um

jornal de partido, que ajuda a organizar e a mobilizar a classe, num momento em que ela já se

encontra num estágio minimamente coletivo de atuação, ainda que, nesse coletivo, o grau de

inserção e conhecimento dos atores seja muito diferente entre si. Assim, o papel de

“propaganda” do jornal visaria exatamente desenvolver, no interior dessa massa, estágios

avançados de compreensão da totalidade social que levariam a níveis também avançados de

consciência entre aqueles que, como resultado desse processo real, se destacariam da massa

operária na condição de vanguarda do movimento, ocupando novos papéis na direção dos

trabalhos rumo à ruptura estrutural. E é nessa passagem para o ponto máximo da consciência

da classe — que cria as condições subjetivas para a realização da consciência para si — que

Lenin considera indispensável a mediação da teoria. Vale o destaque para uma passagem em

que ele recorre a Kautsky, tratando da construção do socialismo na Rússia, para mostrar o

papel da ciência na consciência e na sua relação com a dinâmica da realidade:

Como doutrina, é evidente que o socialismo tem as suas raízes nas relações

econômicas actuais tal e qual como a luta de classes do proletariado, e tal

como esta, o socialismo tem origem na luta contra a pobreza e a miséria das

massas geradas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de classes

surgem paralelamente e não são criados uma pela outra; surgem de

premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode surgir

senão com base em profundos conhecimentos científicos. Com efeito, a

ciência econômica contemporânea constitui de tal modo uma premissa da

produção socialista que, por exemplo, a técnica moderna, e o proletariado,

por mais que o deseje, não podem criar nem uma nem outra; ambas surgem

254

do desenvolvimento social contemporâneo. Mas o portador da ciência não é

o proletariado, mas a intelectualidade burguesa. (...) Deste modo, a

consciência socialista é um elemento trazido do exterior (...) da luta de classe

do proletariado e não qualquer coisa que surgiu espontaneamente (...) no seio

dela”. (Kautsky apud Lenin, 1975a, p. 50)

Dessa forma, o revolucionário russo é fundamental para o nosso debate não apenas

pelas referências diretas que faz ao jornal como também pela concepção que tem da relação

entre teoria e prática, particularidade e universalidade no processo de tomada de consciência

revolucionária pelos trabalhadores e, consequentemente, nas táticas e estratégias a serem

adotadas para esse fim. Embora não conceba a revolução consciente sem a compreensão

‘científica’ da dinâmica internacional do capitalismo e recuse terminantemente qualquer tese

determinista de geração espontânea da consciência, que negue as mediações necessárias entre

o ‘sentir’, o ‘compreender’ e o ‘agir’, Lenin, ao mesmo tempo, não perde de vista a

importância da articulação dialética entre essas esferas e, nesse movimento, parece reservar

um papel fundamental para a devida utilização de práticas e instrumentos que, como o

jornalismo, atuam sobre a realidade concreta cotidiana dos trabalhadores. Diz ele:

A consciência das massas operárias não pode ser uma verdadeira consciência

de classe se os operários não aprenderem, com base nos fatos e

acontecimentos políticos concretos e, além disso, necessariamente atuais, a

observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações da

sua vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar na prática

a análise materialista e a apreciação materialista de todos os aspectos da

actividade e da vida de todas as classes, camadas e grupos da população. (...)

Ora, não é nos livros que o operário poderá obter esta “ideia clara”: só a

podem encontrar nas situações vividas, nas denúncias de acontecimentos

ainda recentes, de tudo o que sucede num dado momento à nossa volta (...)

(Lenin, 1975a, p. 84).

Parece-nos que nesse momento do desenvolvimento da ação das classes e da sua

consciência, não se trata mais do processo gradual de conhecimento que alimenta as

contradições (internas e externas) dos indivíduos e grupos. Trata-se, cada vez mais, da adesão,

só que agora minimamente ‘consciente’ — e não mais pela fé ou confiança, como se dá no

senso comum mais ‘bruto’ — à filosofia e visão de mundo daqueles que desempenham o

papel de mediação e referência teórica e política na organização das massas.

Como veremos, também Gramsci em nenhum momento abre mão da teoria, sendo

inclusive insistente sobre a necessidade de se abordarem, com destaque, as descobertas e

correntes científicas nos jornais ou revistas da classe trabalhadora. Mas aqui nos interessa

discutir os ‘momentos’ da consciência que estão ‘previstos’ nas discussões teórico-políticas

do autor sobre o jornalismo. Então, vejamos.

255

Gramsci está interessado em pensar o jornalismo como estratégia de superação dialética

do senso comum com vistas a abalar a hegemonia burguesa. Está pensando, portanto, no

jornal como espaço de formação, que pode ser entendida como formação política desde que

não se perca a referência necessária com o cotidiano vivido e imediato. Busca, dessa forma,

não se limitar ao ambiente e ao público do partido, embora não o exclua — daí tantas

referências a camadas sociais diversas e ao leitor comum83

.

Nos ‘Cadernos do Cárcere’, o comunista italiano dá destaque à separação que já

reconhecia entre jornais de opinião (em geral ligados a partidos políticos) e jornais de

informação (que ele sabiamente define como “‘sem partido’ explícito”). E, com isso,

identifica públicos diferentes para esses dois modelos de jornal: o primeiro era voltado para

grupos restritos, principalmente ligados aos partidos, enquanto o segundo era voltado para as

“massas populares” (Gramsci, 2006, p. 199). Ao tratar de revistas — que pela descrição feita

parecem misturar elementos do que hoje reconheceríamos como periódicos jornalísticos e

‘acadêmicos’ —, o autor chega a elencar três diferentes tipos, mas sem se preocupar, aqui ou

em qualquer outro momento da sua obra, em classificar que conteúdo caberia especificamente

a que tipo de veículo nem tampouco sua correspondência com um eventual ‘estágio’ da

consciência. De qualquer forma, parece possível fazer algumas inferências sobre como o

pensamento de Gramsci nos ajuda a refletir sobre esse ‘problema’.

Num artigo em que trata de uma polêmica com Angelo Tasca, que foi, junto com ele,

um dos fundadores do L’Ordine Nuovo, Gramsci descreve a construção desse jornal como um

caminho que parte de uma “paixão pela ‘cultura proletária’” que, no entanto, se colocava de

forma abstrata em relação às reais necessidades da classe realmente existente naquele

momento. O resultado teria sido “algo desorganizado, produto de um intelectualismo

medíocre, que, tropeçando, buscava um objetivo ideal e um caminho para a ação” (2004b, p.

403). A mudança fundamental teria se dado quando o jornal encontrou, na discussão sobre as

83

Essa afirmação não pode ser compreendida como endosso à equivocada ideia, muito difundida no Brasil, de

que Gramsci entendia o jornalismo como uma prática que devesse ser realizada de forma ‘independente’, mesmo

do partido. Esperamos que isso fique claro pelo conjunto de orientações do autor que apresentaremos ao longo

deste capítulo, mas, como reforço, vale recuperar aqui um resumo biográfico que mostra o equívoco dessa

suposição. Os escritos pré-carcerários de Gramsci são, sobretudo, artigos de jornal, organizados na forma de

textos argumentativos de discussão política e que foram publicados, em sua maioria, em veículos ligados aos

partidos políticos em que o militante atuava – primeiro o Partido Socialista Italiano (PSI) e, mais tarde, o Partido

Comunista Italiano (PCI) (Coutinho, 2004b, p. 12). Na sua experiência de agitação e organização militante, é

clara a centralidade que Gramsci deu ao jornal como instrumento de construção da consciência de classe, num

trabalho de organização da “vontade coletiva” que era também tarefa do partido. Além de ter sido colaborador e

redator de vários veículos, foi o fundador, junto com três companheiros, do semanário L’Ordine Nuovo que,

logo ganharia a periodicidade diária e se tornaria o órgão oficial do PCI. Por fim, ao ampliar a concepção de

partido para outras instituições que atuam no âmbito da sociedade civil — e que aqui englobaria os movimentos

sociais organizados —, o autor em momento algum retira dessa instância sua função organizativa e educativa.

256

comissões internas das fábricas, o seu problema central, sintonizado com uma “situação

histórica real”, que era, segundo o autor, “resultado de uma elaboração da própria classe

operária” (Gramsci, 2004b, p. 403). Ele resume o papel que, na sua avaliação, o jornal assume

a partir dessa ‘reviravolta’:

E por que os operários amaram L’Ordine Nuovo? (...) Porque os artigos de

L’Ordine Nuovo não eram frias arquiteturas intelectuais, mas brotavam de

nossa discussão com os melhores operários, elaboravam sentimentos,

vontades e paixões reais da classe operária de Turim, que tinham sido

experimentados e provocados por nós. E porque os artigos de L’Ordine

Nuovo eram quase como uma “tomada de consciência” de eventos reais,

vistos como momentos de um processo de íntima libertação e auto-expressão

da classe operária (Gramsci, 2004b, p. 403).

Parece claro que, nesse momento, Gramsci está pensando o jornal como uma ferramenta

que ajudava a difundir, amadurecer e organizar as questões, conclusões e ações gestadas

pelos trabalhadores já reunidos e mobilizados em torno de problemas que os atingiam também

coletivamente. O esforço era de ‘elevar’ esse nível de organização e consciência na direção

dos interesses de classe — que, nesse caso específico, se materializaria nos conselhos de

fábrica84

.

Quando, pouco tempo depois, o jornal se torna diário, Gramsci o apresenta como uma

continuação do trabalho já feito pelo L’Ordine Nuovo semanário que, segundo ele, teria sido

um jornal de “cultura socialista”. Essa linha de continuidade se expressaria tanto pelo caráter

“comunista” do diário quanto pelos temas de que ele buscaria se ocupar, resumidos por

Gramsci como “todos os problemas concretos que interessam hoje à classe operária italiana e

mundial” (2004b, p. 431). Mas quando o autor exemplifica essa aparente amplitude de

conteúdo, fica evidente que, naquele momento, “todos os problemas concretos” referiam-se às

questões da “classe operária” já organizada em algum tipo de espaço coletivo, e que tinha no

partido político alguma forma de referência. Enumerando as pautas possíveis, ele cita:

(...) desde o problema mais imediato e próximo, o da constituição do Partido

Comunista Italiano — visto em sua capilaridade, como organização dos

grupos comunistas de fábrica e sindicato —, até o problema das relações

entre partido e sindicato, até os problemas constitutivos do atual período

histórico, caracterizado pelo surgimento dos Estados operários, por uma

imensa e formidável obra de organização e de propaganda do comunismo

internacional, que quer pôr na liderança das massas populares em luta a

vanguarda revolucionária, a classe operária (Gramsci, 2004b, p. 431).

84

Assim Gramsci resume o que parece ser mais evidentemente o caráter de classe dos conselhos de fábrica, que

eram a grande aposta concreta do jornal naquele momento: “O operário faz parte do conselho de fábrica

enquanto produtor, ou seja, em consequência de uma sua característica universal, de sua posição e de sua

função na sociedade, do mesmo modo como o cidadão faz parte do Estado democrático parlamentar” (2004, p.

406, grifos nossos).

257

Quando o PCI substituiu o L’Ordine Nuovo pelo L’Unità como seu órgão oficial, em

1924, Gramsci fundou um novo veículo com o mesmo nome, agora no formato de uma revista

teórica (Coutinho, 2004b, p. 15). No mesmo período, criou também a ‘Crítica Proletária’, uma

revista “de estudos marxistas e de cultura política”. De acordo com Denis de Moraes, o

objetivo dessas últimas iniciativas era “difundir o ideário do PCI e ‘educar e esclarecer a

vanguarda operária’ – uma vanguarda que precisaria se mostrar capaz de construir, na longa e

árdua luta anticapitalista, o Estado dos conselhos operários e camponeses, estabelecendo as

bases para a emergência e a consolidação da sociedade socialista” (Moraes, 2013). Aqui —

diríamos que guardando grande semelhança com o pensamento de Lenin —, é explícito o

recorte de um público que pode se destacar da massa organizada na condição de “vanguarda”

ou de “intelectuais orgânicos” dos trabalhadores e que, não por acaso, precisa mais do que

antes do insumo da teoria.

É na obra escrita no cárcere que Gramsci abordará mais diretamente o jornal como

veículo também de ação anterior a esse nível mínimo de organização da classe. E, como não

poderia deixar de ser, esse movimento teórico do autor e militante guarda profunda coerência

com o movimento concreto da classe real. Pessoalmente, Gramsci havia sido preso pelo

governo de Mussolini exatamente pela sua atuação como dirigente do Partido Comunista e, no

âmbito geral, assistia-se a uma reação das forças fascistas na sequência de um refluxo da

organização dos trabalhadores, que se expressou, por exemplo, na estagnação dos conselhos

de fábrica, instrumentos em relação aos quais, através do primeiro L’Ordine Nuovo, nosso

autor tinha criado fortes expectativas. Assim, as referências ao jornalismo nos Cadernos do

Cárcere se inserem no conjunto maior da reflexão do autor sobre o processo de hegemonia. E

é aqui que vamos encontrar o papel do jornalismo na ação sobre o senso comum, ou o

primeiro nível de consciência, imediata e reificada, que caracteriza especialmente um

‘público’ formado por indivíduos não organizados. Embora seja preciso atentar para o fato de

que, também aqui, as informações advindas do conhecimento científico, devidamente

traduzidas a partir do público a que se destina, continua tendo grande importância.

Numa passagem em que sugere tipos diferentes de revistas segmentadas por conteúdo,

Gramsci faz referência a um “tipo geral” (de revista) que, nas suas palavras, “pertence à esfera

do ‘senso comum’ ou ‘bom senso’, já que sua finalidade é modificar a opinião média de uma

determinada sociedade, criticando, sugerindo, ironizando, corrigindo, renovando e, em última

instância, introduzindo ‘novos lugares comuns’” (2006, p. 208). Eis, aqui, o jornalismo a

serviço da construção das primeiras bases da contra-hegemonia.

258

Nessa abordagem, Gramsci não parece se preocupar em definir claramente se esse tipo

de iniciativa deve ser ou não conduzida especificamente por um ‘partido’, na medida em que

ele já concebe inclusive que o papel de ‘partido’ pode ser desempenhado por outras

instituições, entre elas uma imprensa engajada — embora seja necessário localizar que essas

referências aparecem na obra do autor mais como uma crítica ao funcionamento dos aparelhos

privados de hegemonia da burguesia do que como um incentivo à ação do proletariado85

. Mas

não há dúvida de que ele se refere ao jornal ou revista como ferramenta que integra uma

unidade cultural e editorial com o objetivo claro de contribuir para o desenvolvimento de um

processo de consciência que continua tendo como referência — só que mais distante na

realidade concreta — a organização da classe. Abordaremos em outro tópico os termos que

mostram a obsessão de Gramsci em torno dessa ‘unidade’ como condição para a superação do

senso comum, mas vale aqui recuperar um trecho que, embora escrito em 1918, antes mesmo

da fundação do primeiro L’Ordine Nuovo, traz uma crítica que se mantém intacta na obra

madura do cárcere e que tem implicações importantes para a sua concepção de jornal como

ferramenta da construção de consciência. Trata-se de um artigo intitulado “A política do ‘se’”,

em que Gramsci refuta os movimentos que se baseariam em um tipo de visão e ação crítica

abstrata e sectária, sem relação com a realidade concreta e com as “forças sociais

organizadas”. A esse “messianismo”, que ele qualifica como “jacobino”, corresponde

também, segundo Gramsci, um “messianismo cultural”, que o autor exemplifica exatamente

com o caso de um jornal italiano chamado L’Unità — que não tem qualquer relação com o

jornal do PCI, de mesmo nome. Vale a longa citação para entendermos os termos da crítica

que, no fundo, traz para o centro do debate o quanto o jornal não pode substituir o seu papel

na luta de classes por uma função de simples ‘esclarecimento’:

Também ele [o messianismo cultural] se consagra ao culto da verdade, mas

professa esse culto (...) com grande tolerância, com infinita fé na eficácia da

discussão e da propaganda, com muita tenacidade e coragem, alimentadas

pela convicção de que a maioria dos homens é formada por indivíduos

profundamente honestos e justos, mas que são presas e vítimas da

ignorância, ou de uma confusa noção de seus reais interesses e das metas que

deveriam perseguir de modo mais útil. (...)

Com efeito, L’Unità estuda os problemas da vida pública nacional e

internacional de modo agudo, com escrúpulo científico; é uma admirável

experiência de escola livre para os cidadãos que querem ter informações

comprovadas, que desejem ter a segurança de não estar sendo enganados

pelos escritores aos quais se dirigem para obter sugestões, estímulos à

coordenação do pensamento prático, orientações para julgar corretamente os

eventos. Mas a quem se dirige L’Unità? Com quais energias sociais

85

Ver, por exemplo, 2007, p. 349-350.

259

organizadas coordena sua atividade cultural? Dirige-se a todos, de modo

genérico; a ninguém, na prática (Gramsci, 2004b, p. 196-197).

Por fim, vale comentar que a concepção de Gramsci sobre o papel do jornal na elevação

da consciência dos trabalhadores, e sobre os momentos distintos em que essa consciência se

encontra historicamente, fica ainda mais clara na caracterização que ele faz sobre o tipo de

jornalismo de que tratará nas notas dos Cadernos do Cárcere em que aborda esse tema. “O

tipo de jornalismo considerado nestas notas é o que poderia ser chamado de ‘integral’”, diz,

definindo-o como uma prática que “não somente pretende satisfazer todas as necessidades (de

uma certa categoria) de seu público, mas pretende também criar e desenvolver estas

necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar

progressivamente sua área” (Gramsci, 2006, p. 197, grifos nossos).

5.1.2. Superando o individualismo da forma notícia

O reconhecimento da parcialidade de classe na condução das práticas comunicacionais

que se pretendam contra-hegemônicas é um desafio para as instituições e movimentos sociais

que tomam para si essa responsabilidade militante. Um desafio que, como veremos mais em

detalhes, passa pela superação do caráter pequeno burguês da imprensa que se coloca como

crítica por dentro da institucionalidade e das regras da ordem do capital. Mas a tradução

prática desse enfrentamento num modo de fazer jornalismo requer também que se confrontem

os valores estruturantes e as expectativas mais imediatas que o modelo informativo em voga

criou na ‘massa’ que se tornou seu público, e que inclui, inevitavelmente, a classe

trabalhadora e todas as frações com as quais o esforço de direção cultural pretende construir

uma nova hegemonia.

Patricio Biedma nos ajuda a identificar essas expectativas quando desvenda que o que

está por trás do “mito” da imparcialidade do jornalismo é um outro “mito”: o da “soberania do

leitor” (1971, p. 246). Como vimos na análise dos manuais da SIP, a base do argumento que

defende a busca da máxima neutralidade possível como condição da objetividade jornalística

é o esforço de dar ao leitor todos os elementos para que ele pense, conclua e julgue por si

mesmo. Por isso, inclusive, todas as dificuldades que o jornalista encontra na busca da

imparcialidade podem de alguma forma ser superadas, exceto quando se trata de um

jornalismo de governo ou de partido, já que estes, por definição, teriam como objetivo

‘doutrinar’ as pessoas na direção das suas crenças, princípios e interesses políticos, violando,

assim, o respeito pela autonomia individual. O que o autor chama de mito para nós se define

melhor como ‘ideologia’, já que, com esse conceito, conseguimos recuperar também as bases

260

materiais que guardam correspondência com esses valores. Resumindo o dilema de um tipo

de jornalismo que, na contramão desse modelo ideológico, pretenda romper com o sagrado

princípio da imparcialidade burguesa, Biedma explica:

(...) quando o mito defende uma suposta “soberania do leitor” frente à

informação, defende sua “capacidade de elaboração de acordo com a sua

visão de mundo”. A aparente defesa do leitor empunhada pelo mito é o

melhor qualificativo para sua acusação de que a imprensa popular está

agredindo o leitor independente. Daí seu caráter desrespeitoso (1971, p.

246).

O “leitor autônomo” que deve pensar por si é nada mais, nada menos do que o indivíduo

a quem se promete um jornalismo que tem a função de esclarecê-lo. E, como vimos, a

despeito da avaliação que se faça sobre o seu cumprimento, a promessa está presente tanto na

imprensa burguesa quanto nos críticos que reivindicam o ideal ilustrado da prática

jornalística. Tentemos então, aqui, com uma breve contextualização, identificar o momento a

partir do qual o princípio da autonomia se separa da figura do indivíduo, criando a base

histórica que nos permite, junto com Biedma, classificar o discurso da autonomia do leitor

como um mito ideologicamente construído.

Buscando explicar em que consistia a “ideia iluminista”, Rouanet elabora um resumo,

baseado em cinco pontos principais, que, para os nossos objetivos, parecem uma descrição

perfeita das contradições postas a uma corrente cultural progressista e revolucionária que, no

entanto, não pode ser acionada de forma descolada do seu tempo e contexto histórico. Num

texto didático, ele diz:

Em suma, a ideia iluminista propõe estender a todos os indivíduos condições

concretas de autonomia, em todas as esferas. Em outras palavras, ela é (1)

universalista em sua abrangência — ela visa todos os homens, sem

limitações de sexo, raça, cultura, nação —, (2) individualizante em seu foco

— os sujeitos e os objetos do processo de civilização são indivíduos e não

entidades coletivas —, e emancipatória em sua intenção — esses seres

humanos individualizados devem aceder à plena autonomia, no tríplice

registro do (3) pensamento, da (4) política e da (5) economia (Rouanet,

2003, p. 33).

Como vimos, o iluminismo nomeia a unidade cultural que foi, ao mesmo tempo,

impulso e resultado das revoluções burguesas nos séculos XVIII e XIX, guardando, portanto,

um caráter libertário que se manifestava concretamente na emancipação do obscurantismo

religioso e do autoritarismo feudal. E, nesse contexto, as dimensões universalista e

individualizante da compreensão do mundo e das lutas podiam ser absolutamente

complementares. Tratava-se de uma universalidade que gritava contra a particularidade

261

assumida do mundo feudal e do Antigo Regime e de um individualismo que, sofrendo

influência tanto do liberalismo como do socialismo (2003, p. 36), não podia ser reduzido à

concepção vulgar de um desinteresse — pessoal — pelas questões sociais e coletivas.

Essa combinação entre universalidade e individualismo encontra um conceito próprio

de autonomia, que, segundo Rouanet, pressupõe, necessariamente, as dimensões da

“liberdade” e da “capacidade”. “Não sou autônomo se não sou livre para exercer uma

atividade e se não tenho condições materiais para fazer uso dessa liberdade”, explica (2003, p.

37). Buscando uma aproximação mais direta com o nosso tema — e supondo que as

mediações necessárias já foram feitas em outros momentos deste trabalho —, lembramos que

esse pensamento corresponde a um período marcado por um jornalismo de causas,

francamente político, como vimos no capítulo 1.

Mas se lermos com atenção o resumo de Rouanet citado acima, veremos que a

autonomia como característica da “ideia iluminista” se desdobra em três diferentes dimensões:

do pensamento, da política e da economia. E aqui encontramos, no processo de

desenvolvimento do capitalismo e consolidação de um Estado e de uma ordem social

burguesa, os obstáculos intransponíveis para essa autonomia efetiva. Isso porque, se,

especialmente nas sociedades que Gramsci chamou de “ocidentais”, o capitalismo foi capaz

de promover uma socialização da política, que foi ao mesmo tempo resposta à pressão da luta

dos trabalhadores e estratégia de produção de consenso, ele não foi e não pode ser capaz de

promover uma socialização da economia, já que o pressuposto da sua existência é a

acumulação do capital. Encontra-se, assim, irremediavelmente quebrada a relação necessária

entre liberdade e condições materiais que Rouanet nos apontava linhas acima. Nesse contexto,

a autonomia política — o direito de votar e de se organizar em partidos, a liberdade de

expressão, entre outros — não só encontra limites como se coloca a serviço da não autonomia

econômica: um processo cuja mediação se dá precisamente na funcionalidade ideológica da

crença na autonomia de pensamento, do qual a mídia burguesa e seu modelo de jornalismo

informativo são importantes protagonistas86

. Afinal, o indivíduo massificado do capital —

muito diferente do indivíduo do iluminismo original — acredita que ‘pensa por si’, decide,

julga, age e, a partir dessa atitude ‘autônoma’, se crê capaz de influir politicamente — ainda

86

Nas palavras de Adorno e Horkheimer, dois grandes expoentes da Escola de Frankfurt: “A cultura de massas

revela assim o caráter fictício que a forma do indivíduo sempre exibiu na era da burguesia (...). O princípio da

individualidade estava cheio de contradições desde o início. (...) Todo personagem burguês exprimia, apesar de

seu desvio e graças justamente a ele, a mesma coisa: a dureza da sociedade competitiva. O indivíduo, sobre o

qual a sociedade se apoiava, trazia em si mesmo a sua mácula; em sua aparente liberdade, ele era o produto da

sua aparelhagem econômica e social” (1985, p. 129).

262

que raramente o faça além do voto — e de, com esforço e empreendimento pessoal, superar as

barreiras econômicas.

É fácil perceber que a palavra indivíduo aqui nomeia uma forma específica, e histórica,

de manifestação do ‘eu’ como ser social do capitalismo. Iasi nos ajuda:

(...) por incrível que possa parecer aos nossos olhos, nem toda sociedade

constrói suas relações tendo por unidade singular “indivíduos”. As

organizações sociais estudadas por Malinowski, outras descritas por Morgan,

ou mesmo a antiguidade clássica são prova disto. A forma das relações

familiares de nossa sociedade atual caracteriza-se por uma estrutura que

isola, inicialmente, o próprio núcleo familiar, separa-o da atividade

produtiva, rompe a rede de dependência que unia antes os seres sociais (...)

(2006, p. 182).

O autor nos explica que esse “processo de individualização” ganhou “impulso” entre os

séculos XVI e XVIII, portanto, no rastro do Renascimento e do Iluminismo, mas também da

conformação do sistema capitalista. E não por acaso. Tomando como base principalmente os

escritos reunidos nos ‘Grundrisse’, Iasi nos mostra como, segundo Marx, a “produção do

indivíduo produtor de valores de troca”, como um ser “autônomo” e “independente”, que

precisa ser livre para vender sua força de trabalho, é a condição primeira das relações

capitalistas de produção (Iasi, 2006, 177). Como vimos na discussão sobre o conceito de

ideologia, a tradução disso em ideias, valores e comportamentos se dá não por um processo

abstrato ou aleatório, mas sim porque essa é a “experiência imediata de vida das pessoas

submetidas à ordem do capital” (Iasi, 2006, p. 205), e que atinge a todos, independentemente

da sua inserção mais ou menos direta no mundo do trabalho. Que essa liberdade que está na

base das trocas capitalistas se traduza na ideia de uma ordem marcada por indivíduos livres e

autônomos não passa de um exemplo claro da ideologia em ação. Marx e Engels denunciam

essa inversão: “Na época presente, o domínio das relações materiais (...) sobre os indivíduos,

o esmagamento da individualidade pela casualidade, atingiu a forma mais aguda e universal

(...)” (2007, p. 422).

Como vimos, a esse sujeito tomado e autorreferido na condição de indivíduo, ser social

fragmentado e isolado, corresponde o que definimos como senso comum, ou primeiro nível de

consciência, imediata ou reificada, uma consciência que resulta da imediaticidade cotidiana

instrumentalizada pela ideologia burguesa e que, portanto, só pode se expressar de forma

igualmente fragmentada e isolada. “A consciência imediata do ser social sob esta ordem só

pode se apresentar como uma consciência individual, naturalizada e atemporal, desagregada e

ocasional, formada bizarramente, mas revelando uma coerência irretorquível àquele que a

possui, herdada de uma sociabilidade objetiva imposta, mas que o indivíduo julga como ‘sua’

263

autêntica subjetividade” (Iasi, 2006, p. 217, grifos nossos). Por isso, ignorando as

determinações materiais que condicionam sua existência como indivíduo, o leitor pode e

precisa acreditar que pensa por si, que é autônomo para julgar e concluir sozinho e que

qualquer interferência nesse processo representa um ataque à sua liberdade de pensamento.

De fato, não é preciso que o leitor ou telespectador comum tenha assistido a aulas de

jornalismo, consultado manuais de redação ou ouvido o discurso indignado do editor de um

grande jornal para que identifique nos meios de comunicação claramente opinativos ou

parciais uma tentativa de ‘manipulá-lo’. Por consequência, a imagem que se constrói no senso

comum sobre os veículos assumidamente não imparciais é de pouca seriedade no desempenho

do papel de ‘informar’ – função que passa a ser avaliada a partir da concepção de notícia e da

ótica da objetividade naturalizada pela imprensa burguesa. Nos momentos de abalo de

hegemonia ou mesmo apenas de uma crise mais pontual, como já citamos o exemplo das

‘jornadas de junho’ de 2013 no Brasil, muitas vezes o próprio jornalismo empresarial torna-se

temporariamente vítima desse ‘feitiço’. Assim, a grande imprensa sofre críticas e abalos de

credibilidade toda vez que se percebe nela a violação grosseira desse princípio, mas, mesmo

nesses casos, o julgamento se dá a partir do referencial por ela estabelecido, de modo que, a

despeito dos pequenos desvios, sua legitimidade está assegurada. E é precisamente aqui que

reside a potência do caráter ideológico inscrito no modelo de jornalismo informativo.

Se é assim, aqui residem também algumas armadilhas que estão postas às experiências

que se pretendem contra-hegemônicas já que, como temos insistido, sendo fruto de um

processo ideológico, os valores e preferências que orientam a legitimação do que se reconhece

como ‘jornalístico’ têm bases materiais que não mudam ou desaparecem com o simples

esforço de se apresentar uma alternativa ao leitor. Biedma destrincha o dilema: “De fato, se a

imprensa popular não cai no mito [da imparcialidade], o leitor dominado por ele [o mito]

logicamente sente que perdeu sua ‘suposta capacidade’, sua ‘soberania’ e se sente um sujeito

inerte diante da informação que o molda à sua vontade” (1971, p. 246). Referenciando-se na

realidade do Chile do governo de Allende, ele reconhece esse caminho como próprio da

“imprensa popular” que, como vimos, diferente do que o autor chama de “imprensa

revolucionária”, não manteria uma relação orgânica com a classe. Sem atender aos

imperativos da imprensa de massa burguesa nem se apresentar como uma imprensa com

vínculos de classe, o risco, sempre posto, é um meio de caminho sem identidade. Ele descreve

o resultado: “Assim, a imprensa popular não só está isolada da classe, como agora se isola

264

como imprensa mesmo, se isola do canal dominante que utilizam os demais meios de

comunicação” (Biedma, 1971, p. 246).

O autor ressalta ainda que, diante da realidade concreta em que o leitor ‘atomizado’ da

sociedade e da imprensa burguesa está inserido, sua desconfiança em relação aos jornais que

fogem a esse padrão faz todo sentido. Referindo-se mais uma vez à imprensa popular, ele

explica: “Esse leitor, em sua individualidade, isolado de sua classe, recorre a uma imprensa

que o isola ainda mais: não só porque nela não pode encontrar a sua classe (...) como porque

recebe arbitrariamente uma categorização que não lhe corresponde, ‘não é um indivíduo

soberano, é um indivíduo moldado’” (1971, p. 247-248). E conclui: “Na realidade, o

isolamento é produto principal do fato de que não se pode quebrar um mito burguês a não ser

que esse rompimento se produza no seio das massas” (Biedma, 1971, p. 246).

Chama atenção na elaboração do autor a afirmação da necessária concretude das

concepções de mundo que são disputadas por uma imprensa que vise superar ou abalar a

ordem vigente. No modelo do jornalismo informativo, que como toda prática ideológica tem

como objetivo final apresentar a particularidade da ordem burguesa como universal, qualquer

identidade de classe não só não aparece como está cuidadosamente escondida. Esse é um

desafio posto à imprensa que se pretende contra-hegemônica. Mas, como destaca Biedma, o

leitor também não pode encontrar a sua classe num tipo de conhecimento, discurso ou

interpretação do mundo que, por mais coerente e honesto que seja, esteja desvinculado da sua

existência e experiência concreta. Ele não pode encontrar a classe inclusive porque, como

indivíduo, sequer sabe que ela existe — e, nesse caso, ‘saber’ designa algo muito maior e

mais concreto do que o simples entrar em contato com o conhecimento teórico que define e

apresenta o conceito. Nesse sentido, a falta de organicidade — que o autor associa a essas

iniciativas de “imprensa popular” — não contribui para que ele seja chamado a um efetivo

pertencimento de classe. Refletindo genericamente sobre as exigências de um “movimento

cultural que pretenda substituir o senso comum”, Gramsci parece resumir os problemas que

Biedma também enfrentava na prática:

É evidente que uma construção de massa desta espécie não pode ocorrer

“arbitrariamente”, em torno a uma ideologia qualquer, pela vontade

formalmente construtiva de uma personalidade ou de um grupo que se

proponha esta tarefa pelo fanatismo das suas próprias convicções filosóficas

ou religiosas. A adesão ou não adesão de massas a uma ideologia é o modo

pelo qual se verifica a crítica real da racionalidade e historicidade dos modos

de pensar. As construções arbitrárias são mais ou menos rapidamente

eliminadas pela competição histórica, ainda que por vezes, graças a uma

combinação de circunstâncias imediatas favoráveis, consigam gozar de certa

popularidade; já as construções que correspondem às exigências de um

265

período histórico complexo e orgânico terminam sempre por se impor e

prevalecer, ainda que atravessem muitas fases intermediárias nas quais a sua

afirmação ocorre apenas em combinações mais ou menos bizarras e

heteróclitas (Gramsci, 2004, p. 111).

No caso do militante argentino, como lembramos repetidas vezes, tratava-se de

responder a questões que se apresentavam de forma muito imediata na realidade chilena, num

período que as forças reunidas em torno da Unidade Popular acreditavam ser de ‘transição’

para o socialismo. Isso significa que ele trata de um momento em que o grau de consciência e

organização dos trabalhadores já permite cobrar uma identidade de classe. Daí a necessidade

de que façamos mediações. Assim, nos parece que mesmo o simples enfrentamento do

modelo informativo burguês — ainda que restrito a uma mudança de forma, que não venha

necessariamente inserida em algum grau de organização social que vá além da pura prática

jornalística — não pode ser inteiramente descartado como parte das ferramentas de contra-

hegemonia disponíveis em momentos em que o grau de consciência predominante é o do

senso comum. Mesmo que presos aos limites da pura crítica, esforços como o de análise,

contextualização e contrainformação podem desempenhar papel importante no acirramento da

crise de correspondência entre as ideias e a realidade, que é condição para o primeiro salto de

consciência e, como vimos, se dá precisamente sobre o indivíduo. A questão está em

reconhecer esse como um momento passageiro, que existe para ser superado e que, portanto,

deve conter também na forma (no jornalismo), os germes dessa superação. Assim, a

armadilha para a qual Biedma nos alerta aponta a necessidade de um duplo movimento — que

evidentemente não se dá de forma linear e tampouco pode ser confundido com etapas que se

sucedem no tempo: por um lado, um enfrentamento do modelo e, consequentemente, do mito

da imprensa burguesa, que consiste em trabalho de contrainformação, deslocamento de foco

das pautas, mudanças por dentro da linguagem, entre outros; por outro, um avanço no sentido

de romper também com os limites desse jornalismo crítico que, embora contrário à mídia

burguesa, continua atuando (e reforçando) na dimensão individual.

Esse duplo movimento, no entanto, não necessariamente pode ser feito pelos mesmos

atores e instituições. Ao contrário, seguindo os passos de Biedma, podemos supor que o

‘segundo nível de superação’ signifique, inclusive, um enfrentamento com as

instituições/aparelhos que até então promoviam uma crítica à imprensa burguesa pelo lado

dos trabalhadores. Isso porque, em parte como reflexo da desorganização da classe real, esse

lugar de embate com a grande mídia acaba sendo ocupado por iniciativas isoladas e

individuais, em geral na forma de uma imprensa caracterizada pelo autor como pequeno-

266

burguesa, que se apresenta como alternativa de esquerda, embora, como Biedma alerta, dela

não se possa esperar a orientação no sentido de um outro grau de pertencimento que

desenvolva ainda mais essa consciência na direção de uma ruptura estrutural.

Para o autor, é a partir do vínculo de organização com um movimento de massas que se

dá a possibilidade e a existência concreta do que ele chama de “imprensa revolucionária”,

construída a partir de vínculos orgânicos com a classe. Mencionando diretamente o partido

político — mas numa abordagem que nos parece compatível com a concepção gramsciana,

que amplia o espectro de instituições e agremiações que desempenham a função de partido —,

Biedma explica:

(...) o fato de que a imprensa popular não obedeça ao caráter mitológico da

imprensa burguesa só pode ser edificante quando a mensagem se instala no

meio das massas, quando se produz como manifestação de um partido que as

interprete, de um partido revolucionário. Mas a imprensa popular,

justamente, se define por não estar vinculada com a práxis do proletariado

através de um partido e, estando fora dele, a perda desse mito, o fato de não

obedecer aos ditames, produz, como é natural, a desvirtuação da sua

mensagem e o posterior isolamento de sua clientela (Biedma, 1971, p. 246).

E compara: “Ao contrário, quando essa imprensa pertence a um partido de massas,

revolucionário, o isolamento que a burguesia tenta promover é indubitavelmente muito mais

difícil. Atrás dessa imprensa, está um movimento de massas que, junto com ela, quebrou o

mito. O isolamento dessa massa já é impossível” (Biedma, 1971, p. 247).

Podemos então concluir que, diante do mito (ideologia) da imparcialidade como

respeito à autonomia do leitor, um modo de fazer jornalismo que corresponda ao caminho da

construção de consciência que vai do indivíduo à classe requer o esforço de construção de

vínculos orgânicos com essa classe, e isso se materializa nas instituições que desenvolvem

essa nova imprensa. Mas é ainda mais importante para nós identificar como essa base material

se imprime diretamente no modelo de jornalismo, tornando-se um obstáculo ao enfrentamento

da mídia e das concepções de mundo burguesas, mesmo em iniciativas mais orgânicas. E aqui

nos parece possível uma suposição: a de que a forma notícia, unidade básica da informação

que sustenta o jornalismo informativo, reflete (e responde) à forma indivíduo, que se torna a

manifestação e identidade prioritária do ser social na ordem burguesa. Portanto, superar esse

enquadramento do leitor é parte fundamental da tarefa de uma imprensa (e de um jornalismo)

que se pretenda contra-hegemônica.

Biedma (1971, p. 214-217) destaca que os meios de comunicação de massa e o próprio

modelo de informação e jornalismo burguês têm um papel fundamental tanto no isolamento

do indivíduo quanto na ocultação das classes (que seriam ideologicamente substituídas pela

267

noção de “opinião pública”). Escrevendo sobre a realidade chilena, o autor constata a

dificuldade de informação entre os “grupos revolucionários” (que já tinham atingido certo

grau de consciência) como um obstáculo em função de os meios estarem nas mãos da classe

dominante, mas ele vai além, realçando como, na ordem do capital, a própria forma notícia

(como apreensão e compreensão do mundo real) guarda correspondência com a forma

indivíduo, constituindo, assim, mais uma limitação aos objetivos revolucionários. Diz ele:

A notícia está confeccionada para o indivíduo desde o balcão pessoal e

isolado de sua classe, portanto também é uma notícia cujos protagonistas são

tão isolados como ele; o “popular” se converteu em “coisa em si” e os

acontecimentos são deixados ao acaso e às boas maneiras do povo traduzido

em individualidades (Biedma, 1971, p. 220).

Confirmando essa constatação, e resumindo de forma analítica as características que

mapeamos no estudo dos materiais que definem o jornalismo informativo, Mattelart explica:

Por um lado, coexistem e se justapõem os temas mais variados num tempo

ou num espaço muito limitados. O leitor passa sem transição de uma

ocupação de terreno à invasão do Laos, ao assassinato de um jogador de

futebol, ao último ataque dos tupamaros. Por outro lado, mesmo quando a

organização da primeira página do jornal pretende dar conta de uma

realidade totalizadora e multifacetada, o material com que trabalha — o fato

noticioso, ou a notícia — é em essência atomizador, fragmentário e parcial.

Assiste-se a um processo de isolamento do fato, cortado de suas raízes,

esvaziado das condições que determinaram sua aparição, abstraído de um

sistema social que lhe conferiu sentido e onde ele mesmo desempenhou um

papel revelador e significativo (1973, p. 53).

Esse processo de isolamento do fato e fragmentação do mundo, que se encerra na forma

notícia para responder à forma indivíduo, se sustenta, por exemplo, no já largamente

comentado critério de atualidade entendida como o destaque ao fato novo inusitado que,

como vimos, está na base do modelo do jornalismo informativo. A esse procedimento, que de

forma alguma atinge apenas a chamada ‘imprensa marrom’, Mattelart chama de

“sensacionalismo”, compreendido como aquilo que visa causar sensação momentânea — e

individualizante, acrescentaríamos. Para o autor, esse é o “elemento essencial da

idiossincrasia mercantil” da “prática comunicativa” (1973, p. 202). Ele conclui: “(...) a notícia

só é anárquica na aparência; recebe sua coerência da ordem social de valores que fundam essa

ordem” (Mattelart, 1973, p. 55).

Do mesmo modo, a pirâmide invertida e, mais especificamente, o lead, ajudam a dar

forma a essa organização falsamente anárquica da informação que é produzida para o

consumo de sujeitos isolados. Em primeiro lugar, vale lembrar que, como vimos, a defesa da

pirâmide invertida — que com todas as variações, continua sendo a base do jornalismo

268

informativo — se sustenta na defesa da autonomia que um leitor naturalmente apressado

deve ter para abandonar a notícia a qualquer momento do texto sem deixar de receber as

informações ‘essenciais’ sobre o fato ocorrido. O caminho para se definir o que é essencial,

também como vimos, está na interseção entre o critério de ‘importância’, ancorado nos

princípios doutrinários de um jornal com interesses particulares, e o critério de ‘interesse’ que,

num movimento circular, concebe (e ajuda a produzir) um leitor preocupado com as questões

que lhe atingem direta e individualmente.

O segundo ponto que ilustra bem essa relação é o caráter das perguntas que compõem o

lead como elemento orientador da informação. Porque, nesse modelo, pouco importa que o

“quem” da notícia seja um assassino solitário, um partido político ou um coletivo de gente

reunida em passeata: em todos os casos, a pergunta recorta a realidade pela perspectiva

fragmentária, individual e ‘particularista’. Ao mesmo tempo, seu caráter genérico permite

que, sempre que possível, se individualizem os personagens, escolhendo ou simplesmente

eliminando as relações que justificariam (ou não) que ele fosse o “quem” destacado na

informação. Da mesma forma, independentemente do fato ocorrido, a resposta sobre “o que”

da notícia necessariamente separa em editorias ou pelo menos em matérias distintas ações,

decisões ou simples acontecimentos que, na realidade objetiva, são absolutamente

interdependentes e compõem um ‘evento’ (o ‘que’) único. Para cada leitor — para cada

indivíduo isolado na sua célula própria —, está oferecido um pedaço da realidade, como um

cardápio em que ele decide o que consumir a partir dos seus interesses individuais. É claro

que esse comentário não pode ser compreendido como a negação da especificidade, da

particularidade concreta e atual que deve mover o jornalismo. Mas, nesse formato, o leitor é

levado não só a entrar em contato com um real fragmentado como a julgar e ‘formar opiniões’

ou ‘tomar posições’ — em resumo, a ‘pensar por si’ — sobre cada ‘que’, ‘quem’, ‘onde’ e

‘quando’ isoladamente, de modo que seus parâmetros principais não podem ser outros senão a

sua própria experiência imediata individual.

Por fim, vale ainda lembrar que, como vimos, o lead é defendido no modelo

informativo do jornalismo também em função das facilidades que, como um ‘guia’, ele traz ao

trabalho do jornalista. E essa parece uma afirmação verdadeira, mas precisa ser

contextualizada aos tempos do jornalista mecanizado, submetido ao trabalho assalariado de

empresas organizadas para serem altamente lucrativas e que, portanto, isolado como indivíduo

livre que vende sua força de trabalho, produz a notícia sob a forma da mercadoria que, na

ponta da linha de produção, será vendida a um outro indivíduo que o consome de forma

269

igualmente isolada. E aqui, é muito funcional que o necessário individualismo da ordem do

capital se expresse como valor também para o profissional que, submetido a uma intensa

rotina de trabalho e premido pela urgência de um jornalismo de novidades, precisa acreditar

no potencial que ele, individualmente, tem de contribuir para um mundo melhor, desvendando

crimes, denunciando roubos ou divulgando descobertas científicas, por meio dos pequenos

esforços cotidianos ou da ‘grande notícia’ que ele um dia encontrará. O desabafo recente

escrito por um conhecido jornalista brasileiro é bastante ilustrativo desse processo. Num texto

em que critica o posicionamento do sindicato dos jornalistas do município do Rio de Janeiro

diante de casos de agressão a profissionais da imprensa durante e após as chamadas jornadas

de junho, Fernando Molica, que no momento de publicação do texto trabalhava no jornal ‘O

Dia’, contrapõe à crítica institucional o espanto da experiência individual. Referindo-se a uma

nota em que a diretoria do sindicato condenava a cobertura da grande imprensa à ocupação

policial nas favelas da Maré (RJ), ele toma uma análise que trata dos interesses das empresas

de comunicação, e que se referia a matérias muito editorializadas sobre o tema em questão,

como se fosse um ataque ao trabalho e à missão desempenhada por cada jornalista:

A nota ainda diz que “a cobertura do oligopólio da mídia, ao invés de servir

à defesa dos direitos humanos, tem exposto a ameaças de vida e à

integridade física e psicológica dos moradores”. Na ânsia de condenar as

empresas de comunicação, a diretoria ofendeu a categoria, foi injusta com o

trabalho de todos nós. Não nego erros, omissões e, mesmo, limitações, mas

é um escândalo dizer que o trabalho dos jornalistas contribui para piorar a

vida dos moradores expostos à violência de bandidos e de policiais. Muito

pelo contrário: se não fosse o trabalho dos jornalistas – repórteres,

fotógrafos, colunistas, editores – esta violência seria incomparavelmente

pior. Claro que a cobertura da violência contra os mais pobres deveria ser

maior, mas não se pode dizer que, de alguma forma, somos cúmplices da

barbárie (Molica, 2014, grifos nossos).

Nada a estranhar: essa é a forma de existência sob o capitalismo. Tudo a subverter: essa

é a condição para uma efetiva contra-hegemonia. Mas como?

Não há dúvida, por exemplo, de que a organização das informações num jornalismo que

se construa como contra-hegemônico deve buscar coerência em outras cadeias de valores que

não aqueles que sustentam a ordem burguesa. E esse parece um obstáculo permanentemente

posto às lutas e movimentos sociais da comunicação que atuam pelo campo democrático e

progressista, no jornalismo e para além dele. Para que não nos alonguemos mais do que o

necessário nessa crítica, vale citar apenas o trecho de um texto em que, primeiro, Venício de

Lima denuncia, com razão, a falácia de se igualar a concepção de liberdade de expressão para

os grandes conglomerados empresariais e os cidadãos, como se se tratasse do mesmo processo

270

e da mesma dinâmica. O problema vem na sequência, quando não só a lista de ‘alternativas’

que ele apresenta (de forma também um tanto irônica) como sua própria pergunta original

apontam para uma concepção individualista e individualizante do emissor e do receptor,

própria da concepção liberal e do modelo de jornalismo burguês. Diz ele:

O que (o cidadão) deve fazer? Como competir com os grupos de mídia já

existentes? Como conseguir o volume de capital necessário para ser

proprietário de uma empresa de comunicações? Ou deveria ele escrever para

a seção de cartas dos jornais e revistas? Ou organizar-se, em sua

comunidade, criar uma associação ou fundação sem fins lucrativos, juntar os

recursos (?) e solicitar ao Ministério das Comunicações uma autorização

para uma rádio comunitária? Ou deveria criar um blog na internet e torcer

para que fosse acessando por milhões de internautas? Para essas questões

ainda não se tem resposta (Lima, 2010, p. 107).

O pano de fundo é a luta concreta — legítima e necessária — pela garantia de recursos

para o financiamento da ‘mídia alternativa’, mas o problema é que ela esconde a naturalização

de um modelo de sociedade, de comunicação e de jornalismo, mais especificamente, que se

sustenta sobre o isolamento da forma indivíduo e da sua falsa e abstrata ‘autonomia’. O autor

não deixa dúvidas: “O cerceamento da liberdade de expressão individual e o financiamento

da mídia alternativa são questões gêmeas. Dizem respeito à pluralidade e à diversidade de

informações e opiniões que circulam na sociedade, vale dizer, dizem respeito a princípios

básicos da democracia representativa” (Lima, 2010, p. 109, grifos nossos). Reivindica-se,

portanto, uma “mídia alternativa” que fará da organização das “informações e opiniões”

(jornalísticas, inclusive, quando for o caso) uma forma de “expressão individual”. E que,

portanto, pouco dialoga com a disputa de hegemonia no sentido político e conceitual que aqui

tentamos percorrer, na medida em que se mantém no terreno dos mesmos valores

estruturantes da ordem burguesa.

Desnaturalizar e se contrapor a esse sistema de valores, princípios, ideias e

comportamentos são, então, o pano de fundo para o enfrentamento da expressão individualista

burguesa no modelo de jornalismo e nas lutas do campo da comunicação em geral. Mas

podemos tentar ir além. Para isso, busquemos agora traçar algumas reflexões sobre caminhos

que ajudam a superar especificamente a forma individual da notícia no modo de fazer

jornalismo. Como ponto de partida, voltemos a Mattelart:

Quando a imprensa de esquerda aceita implicitamente este conceito de

notícia e de sua organização, e quando esse aval se traduz, por exemplo, para

nos concentramos no aspecto formal, em se recorrer ao mesmo esquema de

apresentação e supostamente de recepção da mensagem, aceita que a

burguesia dite as normas de transmissão da mensagem e em certo sentido

fixe a dinâmica da informação. A questão é saber se a lei de ferro da

271

informação em que se resume o princípio sensacionalista pertence à

natureza mesma do meio de informação moderno ou se corresponde

definitivamente ao conceito burguês e imperialista do uso manipulativo

deste meio (1973, p. 54).

É preciso também lembrar que, páginas atrás, o mesmo Mattelart nos falava sobre a

funcionalidade da falsa anarquia da notícia no jornalismo informativo, donde deduzimos um

alerta de que o modo de apresentação do real utilizado por uma prática jornalística que se

pretenda contra-hegemônica (e que propositadamente não estamos chamando de notícia) não

pode sequer parecer “anárquica”, já que este é claramente um ‘disfarce’ funcional para a

ideologia burguesa. Se estamos de acordo que o objetivo da luta dos trabalhadores é desvelar

a ideologia e não produzi-la às avessas, denunciar as particularidades para promover o

verdadeiro interesse geral e não prender-se a novas particularidades, suas ferramentas (entre

elas o jornalismo) não devem abrir mão de ser atrativas, palatáveis e tudo o mais que lhes

garanta efetividade, mas sem fazer concessões a disfarces ou ocultamentos de qualquer

natureza. Assim, parece-nos claro que um novo jornalismo que busque uma nova hegemonia

requer a promoção de novas unidades informacionais que devem necessariamente escapar: 1)

genericamente, da fragmentação trazida pela forma notícia do jornalismo informativo e; 2)

especificamente, do modo de organização enquadrado no lead e no modelo da pirâmide

invertida que traz essa fragmentação da realidade para dentro de cada narrativa específica. Em

outro momento deste trabalho, veremos como a experiência de alguns autores clássicos do

pensamento marxista nos ajuda nessa direção.

A questão aqui é reconhecer que o tratamento da feição ‘particular’ dos fenômenos

como uma dimensão individual é parte constitutiva da concepção de organização da notícia no

modelo informativo. E, tanto técnica quanto ideologicamente, essa referência orienta todas as

etapas da cadeia de ‘produção’, desde a pauta (centrada no critério da atualidade como o novo

inusitado) até a forma de apuração, redação, diagramação e titulação (centrada no imperativo

da objetividade). Se nos remetermos ao capítulo de análise dos manuais da SIP, lembraremos

que na discussão sobre a ‘editoria’ de política — em que provavelmente é mais fácil perder o

controle sobre esse isolamento — dá-se uma grande ênfase à importância de um duplo foco

individual. De um lado, orienta-se que, para atrair a atenção do leitor, o caminho é enfocar os

fatos como “ações pessoais” e não de “instituições impessoais”. De outro, defende-se que se

apresente a notícia mirando o interesse do “leitor concreto”, que só quer saber como cada

novo acontecimento do mundo político vai afetar a sua vida diretamente — por exemplo, se

vai haver aumento de impostos (Mallette, 1998, p. 35). Trata-se de uma lógica que não se

272

limita aos temas considerados ‘políticos’ e que, além disso, se mantém em outras

características desse modelo de jornalismo, como se pode perceber na importância adquirida

pelas informações de ‘serviço’.

Mais do que uma simples constatação, essa leitura deve ser um espelho do que não se

pode reproduzir no jornalismo que vise romper não só com os valores da ordem burguesa

como também com o isolamento real e concreto do qual ela depende. E se não perdemos de

vista as rupturas que marcam o caminho possível da construção de consciência que vimos no

tópico anterior, parece claro que uma das funções práticas do jornalismo que vise à contra-

hegemonia é contribuir para a superação do sujeito indivíduo — que está preso à consciência

imediata reificada — na direção do grupo e da classe. E esse sujeito é ninguém menos do que

o leitor, ouvinte, telespectador da imprensa que se está construindo. Por isso, esse esforço

precisa encontrar correspondência na concepção e na forma de organização das informações

que ganham espaço nesse jornal. Como já foi dito, não temos a pretensão de propor uma

fórmula pronta, que substitua o “que, quem, como, onde, quando, por que” por outra

sequência de perguntas ou respostas que deem conta das necessidades de uma nova imprensa.

Trocar um modelo por outro seria ignorar toda a riqueza própria de cada fato da realidade

concreta que deva ser traduzido em informação jornalística, e que deve ser reconhecido na sua

historicidade e inserido numa cadeia de relações mais totalizante, ao invés de ser enquadrado

ou prefigurado por modelos rígidos. Ainda assim, parece possível fazer algumas sugestões de

ordem estrutural.

Podemos então afirmar que a matéria-prima da nova unidade informacional de um novo

jornalismo deve ser aquilo que — na abordagem de cada tema, na narrativa específica por

dentro de cada fato — ajude o leitor a: 1) reconhecer a existência de outras formas concretas

de manifestação do ser social, para além do indivíduo; 2) encontrar nessas formas respostas

igualmente concretas e práticas para as suas necessidades cotidianas, percebendo a incidência

(quantitativa) e a coerência (qualitativa) dessas demandas que, fora da ilusão gerada pela

imprensa burguesa, ultrapassam em muito a dimensão individual e; 3) se inserir nos espaços

de organização que permitem o encontro e a expressão dessas outras faces que compõem a

sua própria existência.

E esse caminho sinaliza a importância de um passo ainda anterior à construção do

conteúdo dessa nova ‘unidade informacional’, que é a desconstrução do que o jornalismo

informativo compreende como critério da notícia. Assim, é preciso ‘ressignificar’, por

exemplo, a concretude que recheia os critérios de “importância” e “interesse” que, como

273

vimos no capítulo 3, a publicação ‘Valores Periodisticos’, editada pela SIP, aponta como o

que justifica que um fato se torne notícia. Ao mesmo tempo em que a “importância” deve

perder o caráter ideológico de um interesse geral que não pode existir, assumindo sua

parcialidade objetiva, o “interesse” deve se permitir ir além da implicação direta dos fatos na

vida individual de cada leitor, vislumbrando pautas que construam novos interesses, atingindo

o sujeito por meio de questões, problemas e soluções compartilhadas pelos grupos na direção

da classe. Como vimos, no modelo proposto por Fuller o caráter individual do “interesse” só é

superado quando um fato diz respeito a algum dos princípios doutrinários que a imprensa

burguesa ideologicamente considera como “valores universais” (no texto, destacamos o

exemplo das armas químicas), de modo que, nesses casos, prevalece o critério da

“importância”, justificada por um suposto “interesse geral”. Já numa prática que se pretenda

contra-hegemônica, o esforço de ir além do interesse manifesto pela ‘média’ dos indivíduos,

que está evidentemente contaminado pela massificação da ideologia burguesa, não se

apresenta como exceção: é a própria razão de ser de um jornalismo que busca a elevação do

grau de consciência dos sujeitos e, portanto, a superação do conhecimento, das preferências e

das preocupações que se encontram presas na dimensão da imediaticidade. Assim, por

exemplo, o interesse compartilhado — que nos materiais da SIP aparece referido também na

“proximidade” como critério da notícia — precisa ser vislumbrado na pauta não apenas como

o ponto de partida de um público setorizado do jornal, mas principalmente como um ponto de

chegada, ou seja, um resultado que ajude a tornar visíveis os espaços ocultamente

compartilhados pelos indivíduos atomizados da ordem (e da imprensa) burguesa.

Como princípio orientador, trata-se de assumir que, nesta sociedade, as ditas liberdades

individuais (como a escolha por participar ou não de uma manifestação, greve, associação de

moradores, partido político entre muitas outras opções) estão limitadas pelas ferramentas

ideológicas em curso e praticamente deixaram de existir para a maior parte dos sujeitos

isolados do capitalismo. Se o cotidiano, como experiência imediata, e o senso comum, como

conhecimento e visão de mundo que o sustentam, não podem ser frequentemente retirados do

isolamento que os descontextualiza e afasta da perspectiva da totalidade, isso se dá porque

essas são manifestações da realidade vivida. Ninguém pode, espontaneamente, por puro ato de

vontade, parar o seu cotidiano, editar a sua concepção de mundo e buscar referências que lhes

permitam um salto de qualidade teórica. Mas no jornalismo, como em qualquer outra

ferramenta de atividade militante, é diferente: o jornal não é a vida vivida; tampouco pode

pretender ser o ‘reflexo’ da realidade alienada que ele busca superar. Ao contrário: o

274

jornalismo só faz sentido como caminho de contestação e superação da ordem se puder

aproveitar as determinações que lhe são próprias para ‘organizar’, de outra forma, por outra

perspectiva, o cotidiano e o senso comum em que as classes estão imersas na sociedade

capitalista.

5.1.3. Do modelo ao método: a dialética possível do jornalismo

Na tentativa de conceber uma ‘teoria socialista’ do jornalismo, Adelmo Genro Filho

concebe o jornalismo como uma forma específica de produção de conhecimento que, como

vimos no capítulo 1, teria nascido para atender às necessidades sociais surgidas a partir de um

determinado momento histórico. A despeito da discussão crítica que já promovemos sobre

parte dessa elaboração, seu núcleo central parece nos ajudar a pensar caminhos para a

subversão da forma notícia por dentro de uma estrutura informacional própria a um novo tipo

de jornalismo. Comecemos, então, por entender melhor a proposta do autor.

A definição de Genro Filho do jornalismo como forma de conhecimento sofre

influência direta do trabalho do jornalista e sociólogo norte-americano Robert Park, que

adaptou a classificação feita por seu professor, William James, segundo a qual existem dois

tipos de conhecimento: o formal, denominado como knowlledge about (conhecimento sobre),

e o intuitivo ou do “senso comum”, chamado de acquaintance with (familiaridade com). É a

partir desse esquema que Park reconhece a notícia como uma forma de conhecimento. Ele

explica:

O que aqui descrevemos como acquaintance with e knowledge about são

consideradas formas distintas de conhecimento — formas com funções

diferentes nas vidas dos indivíduos e da sociedade — um conhecimento do

mesmo tipo, porém com diferentes graus de precisão e validade. Não são,

entretanto, tão diferentes em caráter e função — pois afinal são termos

relativos — que não podem ser concebidos constituindo juntos um

continuum — um continuum dentro do qual todos os tipos e espécies de

conhecimento encontram um lugar. Em tal continuum a notícia tem

localização própria. É óbvio que a notícia não é conhecimento sistemático

como aquele das ciências físicas. Trata-se de eventos. Eventos são púnicos e,

portanto, não podem ser classificados como acontece com as coisas, porque

eles são invariavelmente fixos no tempo e localizados no espaço (Park, 2008,

p. 58).

Com esse ponto de partida, a questão de Genro Filho passa a ser, então, identificar e

demonstrar a especificidade que torna essa forma de conhecimento diferente de todas as

outras existentes — e necessária. O autor vai buscar no livro ‘Introdução a uma estética

marxista’, no qual Lukács tenta identificar a ‘natureza’ da arte, a teoria que ajudaria a

compreender também a especificidade do jornalismo.

275

Nessa obra, para chegar à natureza da arte, Lukács se debruça sobre as categorias de

singular, particular e universal, propostas por Hegel — e depois por Marx, com uma

abordagem materialista — para explicar as diferentes dimensões que se articulam

dialeticamente em todos os fenômenos da realidade e que, portanto, precisam se refletir no

método quando se quer conhecer esse real. Adaptando o caminho ao seu objeto, Genro Filho

defende o jornalismo como um tipo de conhecimento cuja especificidade é estar centrado na

singularidade. Diz ele:

Somente o aparecimento histórico do jornalismo implica uma modalidade de

conhecimento social que, a partir de um movimento lógico oposto ao

movimento que anima a ciência, constrói-se deliberada e conscientemente na

direção do singular. Como ponto de cristalização que recolhe os

movimentos, para si convergentes, da particularidade e da universalidade

(Genro Filho, 1987, p. 70).

Segundo o autor, uma informação, para ser jornalística, precisa ser reproduzida “pelo

ângulo de sua singularidade”. A diferença é que o jornalismo burguês hegemônico se limitaria

a essa singularidade, enquanto a característica ‘própria’ do jornalismo sugeriria que o

conteúdo dessa informação deveria estar “associado (contraditoriamente) à particularidade e

universalidade que nele se propõem”.

O singular, então, é a forma do jornalismo, a estrutura interna através da qual

se cristaliza a significação trazida pelo particular e o universal que foram

superados. O particular e o universal são negados em sua preponderância ou

autonomia e mantidos como o horizonte do conteúdo (Genro Filho, 1987, p.

72).

Falar nas categorias de singular, particular e universal significa entrar no terreno da

dialética, entendida como um componente do método que nos permite compreender a

realidade. Evidentemente, como já fica claro nesse breve enunciado, trata-se de uma discussão

sobre o conhecimento produzido pela ciência, com todas as suas especificidades, e que não

pode ser automaticamente adaptada para o funcionamento de práticas que, como o jornalismo,

têm sua legalidade própria. Mas como essas diferentes dimensões, sempre relacionais entre si,

estão presentes no mundo real, elas necessariamente se manifestam em outras formas de

apreensão da realidade que não a científica, ainda que de forma bastante distinta. Exatamente

por isso Lukács pode utilizar esse esquema para compreender a arte, na sua diferenciação com

a ciência, e Genro Filho pode propor o mesmo caminho para reconhecer a especificidade do

jornalismo.

Mas antes de discutirmos a potencialidade da dialética para um jornalismo contra-

hegemônico, tentemos nos aproximar da discussão teórica. Dois exemplos, bem distintos,

276

ambos de alguma forma tratados por Marx, podem facilitar nossa empreitada. Suponhamos

alguém que queira conhecer a propriedade das frutas no conjunto da alimentação humana.

Embora a frase que acabamos de escrever seja perfeitamente inteligível, nessa operação,

‘fruta’ é nada mais do que uma ideia, uma abstração, que só existe em função das partes

concretas que a compõem, ou seja, laranjas, bananas e uvas reais. “A abstrata representação ‘a

fruta’ nasce do justificado processo mental que consiste em resumir as características comuns

das maçãs, peras, etc., em um conceito”, explica Lukács (1968, p. 86). Bananas, maçãs e

melancias representam, portanto, as particularidades que compõem a ideia singular de fruta.

No mundo real, na realidade histórica, os tipos particulares existem necessariamente antes do

conceito (o singular), mas, uma vez estabelecida essa relação, não conseguimos mais pensar

em mangas descoladas da ideia de fruta. A diferença entre a concepção materialista e idealista

(ou especulativa) da realidade passa, inclusive, pela clareza sobre esse processo de

anterioridade. Marx e Engels explicam: “E tudo que há de fácil no ato de chegar, partindo das

frutas reais para chegar à representação abstrata ‘a fruta’, há de difícil no ato de engendrar,

partindo da representação abstrata ‘a fruta’, as frutas reais.” (2003, p. 73).

Traduzindo o exemplo, podemos dizer que o particular é o objeto, fato ou fenômeno

concreto mais imediato, enquanto o singular é o conceito, a ideia que, embora se origine

desse concreto, o antecede no caminho da investigação. O universal é, recuperando um

vocabulário que se popularizou na discussão sobre dialética, a síntese desses dois momentos,

ou seja, é o novo conceito que nasce da investigação, agora ‘recheado’ pelos particulares

concretos — o que é o mesmo que dizer que o singular é o universal ‘vazio’ de particulares.

Como superação dialética, o universal conserva algo do singular e do particular, mas vai além.

Retomando nosso exemplo: a ideia de fruta é diferente para quem conhece, a fundo, as

características das suas diversas variedades particulares e para aquele cujo único contato com

uma fruta se deu no lanche da tarde.

Embora bastante didático, o exemplo das frutas pode nos levar ao erro de tomar essa

representação do movimento dialético do real como um simples processo de classificação ou

organização quantitativa. Como veremos, essa é uma das armadilhas em que nos parece que

Genro Filho cai no seu trabalho sobre jornalismo. Por isso, recorramos a outro exemplo,

menos palpável e que começa a nos aproximar dos fatos que são o foco do jornalismo.

‘Revolução’ é um conceito que, tal como a ideia de ‘fruta’, é o pontapé inicial para uma

investigação sobre o tema, mas, na vida real, só existe a partir das situações e fatos concretos

que representam essa ideia. Coloquemos isso na História. As revoluções burguesas do final do

277

século XVIII e século XIX, além da Revolução Russa, para ficarmos apenas nesses exemplos,

foram, todas, a realização concreta e particular desse conceito. O estudo apurado de todo esse

período histórico nos leva a um retrato (um novo conceito, não mais vazio) de revolução, que

nos permite entender, por exemplo, as diferenças entre revoluções burguesas e socialistas, o

espectro de concepções de liberdade e emancipação humana que podem informar esses

movimentos, a diferença entre revolução política e revolução econômica, a sutileza da

diferença entre revolução, contrarrevolução e golpe, entre muitos outros aspectos. Chegamos,

portanto, ao universal.

Mas claro que esse é o universal a partir do recorte que, arbitrariamente, fazemos da

realidade histórica no processo de produção de conhecimento. Ele não é estático, no entanto:

seja no movimento da história, seja no contexto de outra pesquisa, esse universal é sempre

provisório e pode virar o ponto de partida (singular) de outra cadeia de relações. Esse alerta

não é por acaso. Ao repensar de forma materialista a dialética hegeliana, Marx detém sua

crítica principalmente sobre a dimensão da universalidade, denunciando que, tratada de forma

abstrata, ela muitas vezes serviu como mecanismo de naturalização das relações capitalistas.

Vejamos um caso concreto.

Ao analisar a Revolução Francesa, Hegel denuncia que, embora se apresente como

representante dos interesses universais, de toda a sociedade, o Estado do Antigo Regime, na

prática, exerce as suas funções em prol dos interesses particulares de uma camada social,

ligada ainda à ordem feudal. Nesse sentido, a burguesia revolucionária, embora fosse uma

classe particular, lutava pela libertação do conjunto da sociedade das amarras do Estado

absolutista, o que fazia dela, naquele momento, representante dos interesses universais. Hegel,

no entanto, estende e cristaliza essa análise para além do contexto revolucionário. Para ele,

como explica Lukács:

A sociedade burguesa que surge da revolução não deve aparecer apenas

como uma forma simplesmente superior ao feudalismo do ponto de vista

histórico, mas também como a forma mais alta possível da sociedade em

geral, como sua forma mais universal, pelo que a forma posterior é colocar

como gênero, como universalidade, e a forma anterior como espécie, como

particularidade (1968, p. 44).

Marx não discorda da primeira parte da análise. Ele apenas a insere no contexto mais

amplo, compreendendo esse processo como um momento do movimento dialético da História.

Assim, é verdade que, por um período específico, a burguesia, revolucionária, expressou os

desejos universais de emancipação mas, ao contrário de Hegel, que passa a considerar o

Estado burguês como síntese efetiva dos interesses gerais, portanto o universal final, Marx

278

sabe que, ao se consolidar no poder, a burguesia volta a manifestar a sua particularidade como

classe. “(...) a definição errônea da categoria da universalidade tem uma função

importantíssima na apologia do capitalismo”, explica Lukács (1968, p. 84). Parte da

importância dessa discussão para este trabalho vem da nossa convicção de que, por um lado, o

particular absolutizado que é próprio do jornalismo informativo, isolado na sua

pseudoconcretude, exerce o mesmo papel apologético de naturalização da ordem burguesa.

Mas, por outro, esse universal abstrato que contamina a ciência burguesa está presente muitas

vezes também em práticas jornalísticas que se pretendem ‘alternativas’, desempenhando uma

função ideológica que burla o processo de conhecimento e apreensão da realidade e,

consequentemente, qualquer possibilidade de desenvolvimento da consciência. Voltaremos a

isso em outro momento.

Antes de nos determos nesses exemplos, nos referimos ao particular como a mais

concreta entre essas três dimensões. Supondo que tenhamos tido sucesso na breve explicação

dessas categorias, é hora de relativizar aquela afirmação. O particular é, sem dúvida, a

dimensão mais determinada de qualquer fenômeno, objeto ou acontecimento histórico. Mas

como não falamos apenas de objetos palpáveis, Marx, ao tratar do que ele compreendia como

o método cientificamente correto, nos propõe uma compreensão mais complexa de

concretude. Em trecho bastante conhecido da sua obra, diz ele:

O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é,

unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o

processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que

seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da

intuição e da representação (Marx, 1974, p. 122).

Isso significa que a ideia de ‘fruta’ que encontramos depois de percorrido o caminho

que passa pelas frutas reais, ou a revolução que concebemos depois de analisadas as suas

formas particulares, é a dimensão mais concreta desses fenômenos, exatamente porque

representa o concreto pensado, ou seja, recheado das múltiplas determinações. E isso não

pode se manifestar antes, nem na ideia vazia (singular) nem no fato específico (particular)

visto de forma isolada, sem mediações. Como resume José Paulo Netto: “O conhecimento

teórico é, nesta medida, para Marx, o conhecimento do concreto, que constitui a realidade,

mas que não se oferece imediatamente ao pensamento: deve ser reproduzido por este e só a

‘viagem de modo inverso’ permite esta produção” (2011, p. 44). É, pois, no caminho de volta,

depois de ‘preenchido’ o singular que se torna o universal e que supera a aparência imediata

dos fenômenos, que se dá o conhecimento verdadeiro. O exemplo de Netto é conclusivo:

279

O conhecimento começa com a experiência, tem nela seu ponto de partida.

Mas apenas o ponto de partida. Permita-me um exemplo bem simples. Você

nasce aqui, no lugar x, onde está sua casa, e tem a experiência cotidiana, ao

longo de toda a sua vida, de ver que a sua casa está no mesmo lugar. Você

observa e constata que o sol nasce num ponto específico pela manhã, naquilo

que você chama de meio-dia ele está ali em cima e de tarde ele se esconde. O

que a sua experiência cotidiana lhe mostra? Que a Terra, onde está sua casa,

está paradinha e o sol se movimenta em torno dela. Essa é a experiência

imediata de todos os homens. Mas o que essa experiência mostra é

verdadeiro? O conhecimento e a própria prática social demonstram que não.

Sabemos, comprovadamente, que a Terra não está parada, é ela que gira em

torno do sol. Isso significa que o conhecimento rigoroso, profundo, da

essência, da estrutura íntima dos fenômenos, não pode se limitar a essa

experiência cotidiana. A aparência dos fenômenos é absolutamente

importante porque começamos a conhecê-los a partir dela. O que não tem

qualquer aparência não pode ser conhecido. Mas o conhecimento veraz,

verdadeiro, parte da aparência dos fenômenos para encontrar a sua essência,

a sua estrutura íntima e o seu movimento (Netto, 2011, p. 335).

A relação entre o singular, o particular e o universal como dimensões dos fenômenos é

parte de uma compreensão de método que traz também outros pressupostos. O primeiro deles

— fundamental também para um primeiro nível de crítica ao modelo fechado de jornalismo

que se hegemoniza — é que o método não se reduz a um conjunto de técnicas nem tampouco

pode ser concebido independentemente do objeto que ele visa conhecer e da teoria que o

informa.

O segundo é a afirmação da própria noção de dialética, que pressupõe que o mundo e o

ser estão em movimento e em permanente contradição. Afinal, o que os particulares informam

para produzir o resultado — sempre temporário — do conhecimento científico, de caráter

universal, é, precisamente, a expressão do movimento da História. Já a contradição se

expressa não no caos aleatório, mas na tensão que se estabelece entre contrários que compõem

entre si uma unidade. Lefebvre e Guterman explicam:

Não se pode dizer, ao mesmo tempo, que um objeto é redondo e que é

quadrado. Mas é preciso dizer que o mais só se define pelo menos, a dívida

pelo crédito, que a estrada para o leste é também a estrada para o oeste, que

o homem é um ser da natureza em luta com ela, que a superprodução provém

do subconsumo, que o proletariado e a burguesia se engendram mutuamente

no curso de uma longa luta etc. (2011, p. 27)

Nos casos ilustrativos que utilizamos, a contradição fica muito bem explicitada, por

exemplo, na concepção de liberdade e emancipação que, no curso que levou das revoluções

burguesas à consolidação do capital, se torna o seu exato contrário.

O terceiro ponto relativo ao método, que também está implícito e subjacente à relação

entre singularidade, particularidade e universalidade, é a concepção do mundo como uma

280

totalidade, ou um todo articulado, que é sempre diferente da simples soma das partes. Mas,

inclusive como fundamento da crítica a uma concepção estática e conclusiva do universal,

totalidade é, em Marx, sempre processo aberto, de totalização. Kofler resume:

(...) o conceito de todo não pode representar, na dialética, algo rígido nem

unívoco no sentido da lógica formal. O que decide acerca dos limites do todo

que se investiga em cada caso é a realidade efetiva, assim como o problema

que se aborda. Então se descobrirá que qualquer totalidade, por amplos que

sejam seus limites, pode subordinar-se a outra, ainda mais inclusiva.

Igualmente, no curso da investigação, impor-se-á a necessidade de decompor

em totalidades subordinadas o recorte do todo que inicialmente constituiu o

objeto (...) (2010, p. 56)

Conceber a totalidade não significa, evidentemente, deixar de estabelecer recortes

específicos na parte da realidade que se quer investigar e dar a conhecer. Kofler lembra, a

título de exemplo, que ‘O Capital’, de Marx, se dedica quase exclusivamente a estudar os

aspectos econômicos do capitalismo, mas que tanto o processo quanto o resultado são

inteiramente dependentes da compreensão do autor de que estrutura e superestrutura formam

uma unidade dialética que ajudam a compreender o capitalismo como totalidade (Kofler,

2010, p. 57).

Todo esse arrazoado sobre o método dialético visa aqui produzir um pano de fundo que,

inspirado no debate sobre a ciência, possa nos iluminar a reflexão crítica sobre o jornalismo

como um tipo de apreensão e organização do real que, apesar de trazer um conjunto de

especificidades, trata da mesma realidade material e objetiva que se apresenta para a ciência e,

além disso, está também inserido no mesmo contexto histórico que impõe um conjunto de

limitações à produção e disseminação de qualquer conhecimento que desnude a realidade

nublada pela ideologia burguesa. Evidentemente, a apreensão mais geral dos fenômenos

estudados pela ciência na sua totalidade, universalidade e contradição intrínseca é dificultada

pelas características próprias, ‘ontológicas’, da vida cotidiana, que é aquela na qual nos

movemos e que o conhecimento científico tenta momentaneamente superar. Como ilustra

Netto:

A nossa vida cotidiana e os seus quadros sociais contribuem para que o

pensamento dialético seja pouco favorecido. Recorro a outra ilustração

simples: imagine se você acorda e reflete: o mundo está numa mudança

constante, cheio de contradições, tudo se move e tenho que conhecer o

conjunto desta dinâmica para... Se pensar assim, você não se levanta da

cama. É preciso manipular o mundo, intervir no mundo. E você precisa das

oposições imediatas para poder se mover: precisa saber que o alto se opõe ao

baixo, que o quente se opõe ao frio, que o sólido se opõe ao líquido ou ao

gasoso etc. E essas discriminações que você faz não são falsas, são apenas

unilaterais. Mas sem elas você não vive. Ora, o pensamento dialético implica

281

que você, reconhecendo essas determinações alto/baixo, perto/longe,

branco/preto, saiba que o branco é diferente do preto, mas que ele pode

tornar-se preto e assim por diante... (Netto, 2011, p. 336).

É fato, portanto, que a relação entre o jornalismo e o cotidiano, como já discutimos,

aumenta exponencialmente essa dificuldade. Mas, até para que se meça com mais rigor o que

são limites próprios à forma jornalismo e o que são imposições mais gerais, é preciso

compreender que esse não é o único obstáculo. Questionando a ideia de Hegel segundo a qual

a dificuldade de apreensão da dialética seria inerente ao pensamento humano porque este, por

natureza, precisa fragmentar a realidade para compreendê-la, Kofler pondera:

Mas que este fato tenha se convertido, em nossa época, num problema

filosófico particular e que, ao mesmo tempo, o reconhecimento e a

compreensão da dialética encontrem dificuldades especiais – eis aqui dois

fenômenos para os quais contribui significativamente a individualização e a

atomização da sociedade burguesa, que retira o foco da totalidade do

processo (2010, p. 100).

Essa dificuldade, tal como os fenômenos que em parte a determinam, estão presentes

também em outras formas de apreensão e descrição da realidade que não a científica.

Reconhecê-los, identificá-los e enfrentá-los dentro dos limites que, por uma perspectiva

materialista, sabe-se que todo conhecimento tem, é passo fundamental para qualquer proposta

mais estruturante de jornalismo contra-hegemônico. Portanto, feito esse passeio teórico,

voltemos ao jornalismo e ao debate com Genro Filho.

Tomar a dialética expressa no movimento que vai do singular ao universal, por meio

dos particulares, como chave para a compreensão do jornalismo, entendido, por sua vez,

como forma de promover um tipo específico de conhecimento sobre a realidade objetiva, nos

parece uma importante contribuição de Genro Filho aos estudos sobre esse tema. Essa

percepção fornece parte significativa das pistas que, a partir daqui, discutiremos como

possibilidades de construção de um jornalismo contra-hegemônico. Neste tópico, vamos nos

dedicar a discutir teoricamente a apropriação que o autor faz dessas categorias e que se reflete

diretamente nas conclusões e propostas que ele deriva para a prática do jornalismo. Esse

debate crítico é necessário para que não restem dúvidas sobre o sentido que essas categorias

assumem neste trabalho.

Como vimos, Adelmo Genro Filho define o jornalismo como uma forma de

conhecimento que tem como especificidade a centralidade da dimensão singular dos

fenômenos. Ocorre que, como singular, o autor está se referindo à dimensão mais ‘específica’

dos acontecimentos. Essa “especificidade” — por ele traduzida como “singularidade” — do

282

jornalismo moderno se expressaria nos principais mandamentos que fundamentam ainda hoje

os manuais de redação e livros de técnica jornalística, como a defesa da descrição

maximamente objetiva, centrada nos fatos, a condenação ao uso de adjetivos e, de forma mais

geral, a utilização do lead e a adesão ao modelo da pirâmide invertida. Genro Filho, portanto,

identifica em todas (ou quase todas) essas regras respostas a uma “nova possibilidade

epistemológica” inaugurada pelo jornalismo. O problema, segundo ele, é que essas

manifestações de um tipo de conhecimento centrado no fato mais específico são tratadas de

modo “vulgar”, “não-filosófico”, aprisionando o singular à imediaticidade e, portanto,

ignorando que ele é apenas a dimensão mais concreta de um fenômeno que contém também

particularidade e universalidade (Genro Filho, 1987, p. 67). Essa seria a armadilha que

acabaria por aproximar o jornalismo informativo da ideologia burguesa.

Assim, a busca da “especificidade” na atividade jornalística limita-se a uma

receita técnica de fundo meramente empírico, uma regra operativa que os

jornalistas devem seguir sem saber o motivo, tornando-se presa fácil da

ideologia burguesa e da fragmentação que ela proporciona. A realidade

transforma-se num agregado de fenômenos destituídos de nexos históricos e

dialéticos. A totalidade torna-se mera soma das partes; e as relações sociais,

uma relação arbitrária entre atitudes individuais. O mundo é concebido como

algo essencialmente imutável e a sociedade burguesa como algo natural e

eterno, cujas disfunções devem ser detectadas pela imprensa e corrigidas

pelas autoridades (Genro Filho, 1987, p. 67).

Parece-nos, em primeiro lugar, por essa e outras descrições encontradas ao longo da sua

obra, que o autor chama de singularidade aquilo que Lukács, explicando Hegel e Marx,

define, na verdade, como o particular. Como vimos, a dimensão da particularidade é a mais

específica dos fenômenos ou fatos, enquanto o singular corresponderia ao conceito, à ideia

carente ainda, exatamente, da especificidade. Ao contrário do que possa parecer, não se trata

de uma mera troca de palavras. No desdobramento da sua análise, Genro Filho deixa escapar,

principalmente através dos exemplos, uma concepção classificatória ou mesmo quantitativa

dessas categorias, o que explica perfeitamente que o singular, ‘localizado’ na ponta dessa

sequência lógica, seja considerado o mais específico. Vejamos primeiro como ele descreve o

processo em geral:

(...) em cada homem singularmente considerado estão presentes aspectos

universais do gênero humano que dão conta da sua identidade com todos os

demais; na ideia universal de gênero humano, por outro lado, estão presentes

— como se “dissolvidos” — todos os indivíduos singulares que o

constituem; o particular, então, pode ser a família, um grupo, uma classe

social ou a nação à qual o indivíduo pertença. O particular é mais amplo que

o singular, mas não chega ao universal. Podemos dizer que ele mantém algo

283

dos dois extremos, mas fica situado logicamente a meio caminho entre eles

(Genro Filho, 1987, p. 71).

Na sequência, o autor exemplifica a existência dessas três dimensões nos fatos

jornalísticos:

Tomemos o caso de uma greve na região do ABC, em São Paulo. Ao ser

transformada em notícia, em primeiro plano e explicitamente, serão

considerados aqueles fatos mais específicos e determinados do movimento,

ou seja, os aspectos mais singulares. Quem, exatamente, está em greve, quais

são as reivindicações, como está sendo organizada a paralisação, quem são

os líderes, qual a relação dos empresários e do governo, etc.; são algumas

das perguntas imediatas que terão de ser respondidas. Mas a notícia da greve

terá de ser elaborada como pertinente a um contexto político particular,

levando em conta a identidade de significado com outras greves ou

fenômenos sociais relevantes. Será um acontecimento que, de modo mais ou

menos preciso, terá de ser situado numa ou mais “classes” de eventos,

segundo uma análise conjuntural que pode ser consciente ou não (Genro

Filho, 1987, p. 71).

A primeira citação deixa claro, principalmente a partir da caracterização do particular, a

percepção cumulativa, quase quantitativa, da definição adotada pelo autor. A particularidade

aparece não como o fato/fenômeno que se antecipa abstratamente no singular e se desvenda

concretamente no universal, mas como um “meio de caminho” entre outros fatos/fenômenos

que, também entre si, são mais autônomos do que interdependentes. Se é verdade que as três

dimensões presentes no exemplo do autor têm o homem (ser social?) como núcleo comum,

expresso em formas mais particulares (como o indivíduo ou a família nos moldes burgueses)

ou mais gerais (o gênero humano), essa relação não está dada no simples encadeamento

dessas formas. Em vez de negação e superação, temos uma operação de agrupamento e

pertencimento, quase matemática.

Pela perspectiva dialética, o particular é, de fato, mediação entre o singular e o

universal. Mas esse ente intermediário não é o mesmo que um ‘meio de caminho’ pensado de

forma linear. Se a relação é dialética, não se trata, como nos alerta Lukács, de uma “amorfa e

inarticulada faixa de ligação entre o universal e o singular”. Ao contrário: “(...) o particular

não é simplesmente o membro pontual da mediação em uma tríade, mas sim uma espécie de

campo de mediação para o universal (e, em casos particulares, para o singular)” (Lukács,

1968, p. 116).

Em alguma medida, essa concepção transparece também na segunda citação, quando,

mesmo reconhecendo que os elementos que permitem ampliar o contexto da notícia

dependem de uma análise conjuntural, os exemplos que ele utiliza representam apenas, em

geral, a inserção do evento noticiado em “classes de eventos” mais amplas. Como se sabe, as

284

greves do ABC paulista ocorridas na época em que Genro Filho escreve — década de 1980 —

representaram muito mais do que eventos em série. Claro que a análise retroativa do impacto

desses eventos é de responsabilidade da historiografia futura, mas, mesmo naquele presente,

cada greve específica poderia se relacionar com um leque de outras questões, trabalhistas ou

não. Essa perspectiva teórica ‘quantitativa’ das categorias é absolutamente coerente com o

esforço do autor de ‘medir à régua’ os limites exatos do conhecimento que o jornalismo pode

produzir ou fornecer, criando uma camisa de força a-histórica e descolada exatamente do

campo de alternativas que cada evento particular pode trazer. Na base desses problemas, está

o que nos parece ser a busca não por um jornalismo que se coloque contra a ordem, mas por

uma “essência” do jornalismo que comprove sua utilidade para além dos interesses burgueses.

Em um trecho exemplar dessa crença numa essência ‘pura’, ele afirma:

O discurso analítico sobre os acontecimentos que são objeto do jornalismo

diário, que tomamos como referência típica, se ultrapassar certos limites

estreitos é impertinente à atividade jornalística sob vários aspectos. O

principal problema é que, se a análise se pretender exaustiva e sistemática,

desembocará, no caso limite, nas diversas ciências sociais e naturais, o que já

é outra coisa bem diferente do jornalismo. Da mesma forma, uma abordagem

moralista ou grosseiramente propagandística sob o aspecto ideológico acaba

desarmando o jornalismo de sua eficácia específica e, quase sempre,

tornando-o intolerável para os leitores, sejam quais forem (Genro Filho,

1987, p. 19-20).

Apesar do que nos parece uma imprecisão no tratamento da relação entre essas três

dimensões, Genro Filho afirma claramente que a universalidade, como critério da notícia, não

se define pelo aspecto numérico, seja pela quantidade ou pela probabilidade. “Em se tratando

da sociedade, não importa unicamente o aspecto quantitativo da informação para que seja

eficaz e significativa. Interessa, antes, que ela esteja vinculada aos processos fundamentais e

suas contradições” (1987, p. 29). Nesse sentido, ele critica a concepção de notícia adotada

profissionalmente pelo jornalismo burguês, que pode ser ilustrada com a clássica definição

desenvolvida por Amus Cummings, então editor do New York Times, segundo a qual um cão

morder um homem não é notícia, mas se um homem morder um cão tem-se uma notícia

sensacional. O autor pondera:

(...) se um homem qualquer morde um cão qualquer, isso não terá maior

significado por ser um fato singular que não contém a necessária

universalidade. Não indica uma tendência na evolução ou na transformação

da sociedade. É evidente que, se muitos homens começarem a morder os

cães, a qualidade de tais notícias será alterada pela quantidade. O mesmo

acontecerá, por exemplo, se o presidente dos Estados Unidos tomar essa

atitude, embora fosse um caso isolado (Genro Filho, 1987, p. 29).

285

Embora certeiro na crítica, nos parece que mais uma vez existe aqui uma certa confusão

no tratamento das categorias, além do já mencionado uso da singularidade no lugar do que

entendemos ser a particularidade. E aqui avançamos um pouco mais na compreensão de um

aspecto desse processo que é fundamental para o debate sobre o critério da notícia numa

prática que fuja das determinações ideológicas do jornalismo informativo. Lukács nos ajuda a

entender que a nem todo fato ou acontecimento pode ser atribuída uma singularidade porque o

singular precisa conter em si os elementos da universalidade. Citando Lenin, o autor resume:

“(...) o singular não existe senão em sua relação com o universal. O universal só existe no

singular, através do singular” (Lenin apud Lukács, 1968, p. 109). O fato isolado, desassociado

de uma cadeia de implicações e desdobramentos é, nessa perspectiva, apenas uma

casualidade. E esse provavelmente é o caso do homem que mordeu um cão, no exemplo de

Amus Cummings. Como a História é um dos principais critérios dessa diferenciação, mesmo

o protagonismo de figuras importantes, como o presidente dos EUA na elaboração de Genro

Filho, se isolado e sem desdobramentos coletivos, não é suficiente para fazer de uma mordida

às avessas um fato singular. Estaríamos, portanto, diante apenas de uma situação excêntrica

ou, se quisermos ainda assim utilizar a nomenclatura das categorias de que estamos tratando,

uma particularidade pura. Nesse caso, o aspecto quantitativo — ou, mais precisamente, a

recorrência na história — é o que faz os fenômenos deixarem de ser mera casualidade para se

tornarem uma singularidade — embora, no contexto de que estamos tratando, isso não

signifique uma legitimação automática do seu valor como notícia ou conhecimento

jornalisticamente válido por uma perspectiva crítica alternativa. Tratando do processo em

geral, Marx explica o critério do singular: “(...) Tampouco se produzem as abstrações mais

gerais senão onde existe o desenvolvimento concreto mais rico, onde uma coisa aparece como

comum a muitos indivíduos, comum a todos. Então já não pode ser imaginada somente sob

uma forma particular” (Marx, 2008b, p. 263).

Eis, portanto, mais uma pista a seguirmos no curso deste trabalho: como particularidade

pura, a informação jornalística apenas reitera o sensacionalismo que é próprio da imprensa

burguesa. É apenas numa relação que pressuponha um conceito singular como lente para

apreensão dos fenômenos e que vislumbre uma compreensão mais totalizante (universal)

desses mesmos fenômenos – considerando-se os limites da imediaticidade do jornalismo –

que se encontra o caráter social e coletivo que justifica um fato se tornar ‘notícia’87

.

87

Vale apenas ressaltar que a casualidade de hoje pode se tornar, no movimento da História, na recorrência

futura, uma nova singularidade que oriente a apreensão das particularidades de uma época.

286

Recuperando a abordagem que fizemos sobre essas categorias, diríamos que a dimensão

do singular não é o centro nem o ponto de partida do conhecimento apresentado pelo

jornalismo, mas sim o conceito que vai, por exemplo, informar/orientar a classificação das

matérias em editorias ou blocos temáticos, o que é o mesmo que dizer que ele vai informar o

ângulo de apuração/abordagem da notícia ainda no momento em que ela é apenas uma pauta.

No jornalismo informativo, é a ideia pré-concebida que se tem (socialmente produzida e

naturalizada) de um acontecimento concreto que define, por exemplo, que cada novo

massacre de palestinos promovido por Israel seja noticiado na seção de ‘Mundo’ ou

‘Internacional’ e não na de ‘Economia’88

. E, com isso, que se abordem os movimentos dos

países e organismos internacionais e se apresente a questão religiosa como origem dos

‘conflitos’, sem nunca precisar tocar nos interesses econômicos que estão em jogo. Nesse

exemplo, as editorias (mas não só elas), na funcionalidade que prestam à imprensa burguesa,

são formas de articular o singular com o particular sem facilitar o avanço ou a superação para

o universal, ainda que temporário, da notícia. Subverter esse modelo significa dizer que, num

jornalismo contra-hegemônico, um ponto de partida (singular) mais amplo pode produzir

relações que indiquem o caminho de alguma mínima totalização (universal) de sentido sobre o

fato. Numa nota dos Cadernos do Cárcere em que faz uma “objeção ao empirismo”, Gramsci

traz um questionamento que nos parece contribuir com esse momento do debate e que é

determinante para a discussão sobre o critério da notícia:

(...) a investigação de uma série de fatos para encontrar as relações entre eles

pressupõe um “conceito” que permita distinguir aquela série de fatos de

outras séries possíveis. Como ocorrerá a escolha dos fatos a aduzir como

prova da verdade da própria tese, se não preexiste o critério de escolha? Mas

o que é este critério de escolha, se não algo superior a qualquer fato singular

investigado? Uma intuição, uma concepção, cuja história deve ser

88

Esse exemplo talvez sugira que estamos reivindicando que as matérias e a organização do jornal expressem

todas as relações que compõem a totalidade em que o fato noticiado está inserida, o que seria impossível. Mas os

jornais diários estão repletos de exemplos mais corriqueiros sobre o conceito anterior que ordena a apuração e a

classificação da notícia, como estamos tentando demonstrar. Num texto publicado no Observatório da Imprensa

em julho de 2013, em meio ao auge das manifestações recentes que tomaram as ruas do Brasil, comentamos um

episódio mais específico, do jornalismo diário, que talvez contribua para esse debate. Em 18 de julho, o Globo

publicou, em uma mesma edição, duas matérias sobre manifestações no Rio de Janeiro. Uma estava na editoria

‘país’ e se dedicava a descrever o ato, realizado em frente à casa do então governador Sérgio Cabral. A outra,

localizada oito páginas depois na editoria ‘Rio’, descrevia uma manifestação ocorrida na mesma cidade, na

mesma hora, mas promovida por moradores da favela da Rocinha que, pela primeira vez, traziam a público o

desaparecimento do pedreiro Amarildo. O lead dessa matéria era: “Uma manifestação realizada ontem na

autoestrada Lagoa-Barra por moradores da Rocinha parou o trânsito de bairros como Lagoa, Gávea e São

Conrado, dificultando a volta para casa de quem mora na Barra da Tijuca e arredores”. Disponível em:

https://www.google.com/url?q=http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-

questao/_ed756_na_favela_e_no_asfalto__qual_o_lead_da_noticia/&sa=U&ei=puBYVZjdI420sATmtYC4Cg&

ved=0CAwQFjAEOAo&client=internal-uds-cse&usg=AFQjCNGQJQtAamjbsatygXVomjwRytIaNA.

287

considerada como complexa, um processo a relacionar com todo o processo

de desenvolvimento da cultura, etc. (Gramsci, 2004, p. 271)

Genro Filho aposta que, num jornalismo feito a partir da compreensão correta,

“filosófica”, da sua especificidade e da sua articulação dos fatos particulares com as outras

dimensões dos fenômenos — mesmo nos espaços da imprensa burguesa —, a universalidade

passa a integrar o conteúdo da notícia, ainda que não esteja explicitada. “Ou seja, como

pressuposto que organizou a apreensão do fenômeno e como significado mais geral da notícia,

teremos uma determinada concepção sobre a sociedade, sobre a luta de classes e a história”

(1987, p. 71).

Essa ideia do universal como critério da notícia é uma pista fundamental para

pensarmos uma outra forma de fazer jornalismo. Mas, aqui, parece haver um certo

descompasso. Promover o universal como a lente pela qual o fenômeno será “apreendido”

significa supor um processo de conhecimento que começa já pela universalidade, ou seja,

começa pelo concreto pensado antes de se aproximar do concreto e de poder ‘pensar’ sobre

ele. Vista com um pouco mais de cuidado, portanto, essa compreensão não corresponde nem à

especificidade do conhecimento jornalístico, proposta pelo próprio autor, nem ao esquema

clássico da dialética na ciência. Arriscaríamos dizer que não pode corresponder a nenhuma

forma de conhecimento. A “concepção sobre a sociedade, sobre a luta de classes e a história”,

que orientariam a apuração da notícia, pode ser o resultado apreendido de outras investigações

que antecedem a produção jornalística e, mais precisamente, de investigações científicas

(nunca descoladas do político) que componham o repertório pessoal do jornalista ou a linha

editorial do jornal89

. Supondo que os conceitos singulares que orientam a leitura dos fatos

particulares sejam definidos a partir de uma linha editorial, tratando-se portanto da construção

de uma imprensa própria da classe trabalhadora, temos aí pistas importantes, mas que

dependem de um alerta: como já dito, a universalidade não pode ser compreendida como algo

dado, cristalizado, que não sofra nuances quando inserida em uma nova cadeia dialética de

fatos concretos. Assim, para pegarmos os termos do autor, o conceito ‘acabado’ de luta de

classes, que encontramos em Marx e na tradição marxista, é perfeitamente válido e precisa ser

89

Em relação à imprensa empresarial, esse ‘ou’, naturalmente, é apenas uma forma de expressão tendo em vista

a evidente limitação que a maioria dos jornalistas da grande imprensa burguesa encontraria em orientar seu

trabalho por um repertório científico crítico próprio — caso o complexo mecanismo ideológico que também

forma esses profissionais permitisse que, em geral, eles tivessem um. Essa constatação nos coloca diante de um

conflito com o fato de Genro Filho supor que é possível fazer essas ‘correções’ a partir de brechas no jornalismo

desenvolvido pela grande imprensa, ignorando tanto as naturalizações ideológicas das quais o jornalista também

é vítima quanto as limitações impostas pelas empresas de comunicação, que funcionam como aparelhos privados

de hegemonia do capital.

288

cientificamente conhecido e aplicado, mas ele ganha contornos diferentes quando se expressa

nas greves do ABC paulista na década de 1980 e nas manifestações de junho de 2013 no

Brasil. E mais: sem nos atermos a preciosismos, mas buscando manter uma coerência com a

forma como compreendemos e explicamos cada uma dessas categorias, a luta de classes é o

universal de investigações que desvendaram o movimento da sociedade ou, mais

precisamente, o motor da história no capitalismo, por isso perfeitamente atual, na medida em

que essa ordem não foi superada; quando trazido para iluminar a leitura de uma greve, de uma

manifestação ou de uma eleição, ele passa a ser o ponto de partida singular da leitura dos

fenômenos reais objetivos a partir do qual se produzirão novas universalidades. A forma de

apreensão do fato a ser noticiado, nesse caso, segue a mesma sequência — dialética e não

linear — do conhecimento científico, apesar de todas as outras diferenças. Já a forma de

exposição/apresentação da notícia pode ser invertida: e, nesse caso, não seria apenas uma

mudança de forma, mas uma nova compreensão sobre o ‘essencial’ da notícia, sobre o

‘essencial’ do conhecimento produzido pelo jornalismo e sobre o ‘essencial’ de informações

atuais e imediatas que se precisa ter acesso para uma vida que faça mais do que naturalizar a

reprodução da ordem burguesa.

5.1.4. Objetividade e dialética: desvelando a ideologia por dentro

Todo esse debate sobre a dialética possível do jornalismo deriva da constatação de que

as dificuldades de burlar o modelo informativo vão além da questão da organicidade ou

capacidade de organização social concreta, como vínhamos discutindo até então, atingindo

também diretamente a forma e o discurso como, jornalisticamente, se traduz essa mudança.

Assim, não podemos perder de vista que nossa questão principal é mapear as

possibilidades e a efetividade de se confrontar o modelo informativo com um outro modo de

fazer jornalismo que tenha expressão, inclusive, técnica. E se parece verdade que, como temos

tentado demonstrar, a radicalidade desse contraponto encontra limites concretos a partir do

lugar social de cada veículo — é impensável na grande imprensa empresarial, apenas

parcialmente possível na imprensa pequeno-burguesa e assim por diante —, sabemos também

que esse simples pertencimento de classe não é suficiente para dar conta das correspondências

necessárias com a realidade do leitor, como num clube em que basta apresentar a carteirinha

de sócio. Afinal, o que em parte justifica e motiva este trabalho é a constatação de que mesmo

as iniciativas com maior organicidade entre os trabalhadores organizados e movimentos

sociais em geral muitas vezes não conseguem atingir os objetivos de uma imprensa que, nos

limites da sua atuação, visa à produção de consciência. Mais do que isso: embora muito

289

coerente com a ideologia do indivíduo capaz de ‘pensar por si’, como vimos, o sentimento de

estar sendo manipulado pode também estar presente no leitor de veículos orgânicos de grupos,

partidos e movimentos sociais, causando, no mínimo, um desconforto (e uma ineficácia)

semelhante ao do indivíduo isolado diante da imprensa que Biedma classificou como

pequeno-burguesa.

Naturalmente, esse problema se torna mais presente e importante diante do grau de

organicidade dessa esquerda concretamente existente, que enfrenta o desafio de manter vivo

um projeto revolucionário num período de intenso refluxo da classe trabalhadora, acachapada

pela hegemonia burguesa, principalmente desde o fim do dito ‘socialismo real’. Mas, além de

qualquer descolamento em relação à classe que deveria ser dirigente da nova hegemonia da

qual o jornal é ferramenta, a atuação do jornalismo ‘alternativo’, quando se desvia e se torna

ideológica, quase sempre se expressa, técnica e discursivamente, também na forma de uma

clara e explícita manipulação, que, fugindo da particularidade pura da imprensa burguesa, se

aproxima de uma universalidade pura, que se mantém no mesmo terreno de negação da

dialética. E, como vimos, diferente do jornalismo burguês, suas ideias, valores e juízos não

encontram correspondência imediata na realidade material concreta que sustenta a ideologia

burguesa; se também não está ancorado num processo concreto de mudança que acontece

junto com a base social que justifica sua existência, torna-se, na melhor das hipóteses, uma

prática abstrata. Na pior, funciona como um novo instrumento de ideologia.

Referindo-se à ciência, mas numa abordagem que contribui para pensarmos

criticamente o jornalismo, Kofler resume os riscos:

De nenhum modo basta, por exemplo, interpretar a revolução de 1848

simplesmente ‘ao contrário’, isto é, a partir do ponto de vista do interesse

revolucionário de classe; nem adianta nada submeter a uma revisão ‘crítica’,

por causa de uma justificada desconfiança, o material empírico já oferecido

pela ciência burguesa. (...) um tal modo de consideração, que omite a

complexa dinâmica da totalidade, permanece definitivamente, apesar da sua

forma revolucionária, na superfície dos fenômenos — e, a um exame atento,

só se distingue da consideração burguesa na medida em que interpreta

diferentemente os ‘fatos’ que, no fundo, são os mesmos, sem que seja

superada a sua forma de manifestação ilusória que necessariamente se

impõe à consciência metafísica.

(...)

Os resultados assim obtidos só convencem aqueles que já compartilham do

mesmo ponto de vista; são, por isto, mera apologética, simples opinião

subjetiva órfã de provas autênticas, semelhante nisso ao ponto de vista

burguês — apoiado em interesses reacionários — ao qual se opõem (2010,

p. 180, grifos nossos)

290

Na mesma linha, Marx é muito preciso ao apontar o caminho numa correspondência

escrita a Arnold Ruge ainda em 1843, que tinha exatamente o objetivo de alinhavar o projeto

editorial de uma nova publicação, os Anais Franco-Alemães.

(...) nada nos impede de vincular nossa crítica à crítica da política, à tomada

de posição na política, e, desse modo, às lutas reais, com as quais a crítica

deve se identificar. Então, não enfrentaremos o mundo de modo doutrinário,

com um novo princípio: aqui está a verdade, ajoelha-te! Desenvolveremos

para o mundo princípios novos que extrairemos da própria realidade. Não

lhe diremos: abandona tuas lutas, elas não passam de tolices; cabe a nós te

fazer entender a verdadeira divisa do combate. Nós lhe mostraremos apenas

por que efetivamente ele luta, já que a consciência é uma coisa da qual ele

deve ser apropriar, mesmo a contragosto. A reforma da consciência consiste

unicamente em tornar o mundo consciente de si mesmo, em despertá-lo do

sono no qual sonha consigo mesmo e sem explicar-lhe suas próprias ações

(Marx apud Lukács, 2007, p. 163)

Este é um ponto delicado da nossa argumentação porque, como diz Marx na citação

acima, o problema não está em ter referenciais (teóricos e políticos) claros e um lado explícito

nas lutas pontuais e estruturais que se travam também através da imprensa. Ao contrário: é

exatamente nessa ‘parcialidade’ que reside a concepção de objetividade pela perspectiva do

materialismo histórico-dialético, como discutimos no capítulo 4. Parece claro então que,

independentemente da efetividade da sua ação comunicativa, um jornal de sindicato, por

exemplo, deve defender os direitos da classe trabalhadora, especialmente nas situações que

dizem respeito mais diretamente à relação capital-trabalho. Da mesma forma, espera-se que

uma revista editada por um movimento ligado à Reforma Sanitária não seja indiferente em

relação ao caráter público ou privado da política de saúde. E é exatamente o reconhecimento

desses pontos de partida que permite que o modelo informativo burguês jogue todas essas

iniciativas num mesmo saco, como ‘jornais que não fazem jornalismo’ — caracterização que,

como vimos, está claramente colocada no documento dos mais recentes Princípios Editoriais

das Organizações Globo. Todo o nosso esforço de afirmar a necessária organicidade e

coerência de projeto contra-hegemônico vai exatamente no sentido contrário, de negar esse

discurso ideológico e defender não só que a imprensa dos trabalhadores precisa ter lado como

que o seu modo de fazer jornalismo precisa partir de referenciais teóricos e políticos

igualmente claros. Mas a armadilha oposta à naturalização do jornalismo burguês é traduzir

esse referencial num jornalismo abstrato, sem apuração, que apresenta o mesmo conjunto de

respostas prontas para qualquer situação particular e, assim, ignora o que existe de mais

específico na prática jornalística, que é o seu foco na particularidade dos fenômenos, seu

vínculo indissociável com o cotidiano e a realidade concreta mais imediata dos sujeitos.

291

Para nos afastarmos das polêmicas mais candentes, que se aproximam dos debates

partidários e eleitorais, tomemos um exemplo mais geral, retirado de um veículo que nos

parece se encaixar na categoria de imprensa pequeno-burguesa que, com um posicionamento

declaradamente de esquerda, tenta ocupar um espaço na imprensa ‘alternativa’ no contexto

brasileiro atual.

Na edição 191, de fevereiro de 2013, a revista ‘Caros Amigos’ publicou uma

reportagem de capa sobre a Fundação Ford90

. Lançando mão principalmente de um livro

sobre o financiamento da CIA durante a Guerra Fria e de análises feitas por Roberto Leher,

professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a matéria, na

verdade, disserta sobre uma tese: a de que a Fundação Ford é um dos braços financeiros do

imperialismo norte-americano nas diferentes formas que ele assumiu historicamente. Essa

conclusão, no entanto, parte de um movimento preciso que, no capítulo em que tratamos sobre

as características do cotidiano, chamamos de ultrageneralização: toma a parte (a Fundação

Ford, com sua história, atuação e especificidades) pelo todo que habita o discurso crítico de

esquerda, ou seja, naturaliza a situação dessa fundação a partir de um a priori sobre o papel

ideológico que instituições privadas norte-americanas em geral desempenham. Não há erro

em pautar essa ou qualquer outra matéria pelo referencial (singular) de que as ações de

responsabilidade social, materializadas em grandes fundações ou ONGs, associadas ao papel

de convencimento que se dá no âmbito da sociedade civil, são cada vez mais parte essencial

da estratégia de reprodução do grande capital. Afinal, essa é uma conclusão a que chegaram

muitos estudos científicos que precisam mesmo servir de apoio às organizações de esquerda,

inclusive à sua imprensa. O problema é que a matéria não se ocupa de apurar e apresentar as

informações que demonstrem o quanto essa tese é verdadeira no caso particular da Fundação

Ford. Como se trata de um tema complexo, a reportagem cai nessa mesma armadilha diversas

vezes, ultrageneralizando inclusive teses secundárias, que dariam sentido à tese original.

Apresenta-se, por exemplo, uma precisa análise de Leher sobre a funcionalidade ideológica

das novas relações entre Estado e sociedade civil que se materializam no chamado Terceiro

Setor, mas, também aqui, a perspectiva universalizante de leitura do real fica carente da

dimensão particular que dá concretude a essa realidade e, consequentemente, justificaria seu

tratamento jornalístico.

É interessante perceber que essa ultrageneralização significa um salto da singularidade

para a universalidade, deixando de lado exatamente a dimensão que, pela nossa hipótese,

90

Disponível em http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/218-revista/edicao-191/3040-

fundacao-ford-a-face-sedutora-do-imperio .

292

caracteriza o fazer jornalístico. E, sem essa particularidade — que são os fatos e temas

jornalísticos —, o discurso se descola da realidade cotidiana de quem ele deveria envolver.

Não por acaso, na edição seguinte da revista, João Brant, que era colaborador da ‘Caros

Amigos’, escreveu à seção de carta dos leitores apontando alguns desses aspectos.

A matéria requenta as questões históricas da fundação — fundamentais para

uma avaliação em perspectiva histórica, mas que não dizem nada sobre a

atuação da Fundação Ford hoje —, ouve duas ou três fontes, todas

convidadas apenas a legitimar o ponto de vista do autor. Não ouve a própria

fundação (...) a não ser por meio de uma entrevista publicada há dois anos,

não ouve nenhuma das entidades que recebem recursos no Brasil (...) e ainda

destila uma dezena de preconceitos surrados que pareciam superados no

debate sobre a atuação da sociedade civil (Brant, Caros Amigos).

Não entraremos aqui no mérito da defesa que o leitor-colaborador faz da Fundação

Ford, invocando uma exitosa experiência de oito anos de financiamento dessa entidade ao

Coletivo Intervozes de Comunicação, do qual ele era integrante, nem sobre sua opinião —

também não fundamentada — sobre tratar-se de uma abordagem “preconceituosa” que já

deveria ter sido superada. Mas as críticas que se atêm aos aspectos jornalísticos nos parecem

contribuir com o debate em pauta, ilustrando de forma clara o quanto esse processo de

abstração que se descola da realidade do leitor é comum em experiências jornalísticas que

tentam se distanciar da imprensa hegemônica.

Contribui ainda para esse perfil de jornalismo a noção de que o papel da imprensa

‘alternativa’ é dar voz a quem não encontra espaço na imprensa empresarial, sem considerar

que, se essa voz não estiver em ‘diálogo’ com as outras, dificilmente será possível explicitar

as contradições. Não se trata, portanto, de defender o princípio liberal e superficial de ‘ouvir

os dois lados’, mas, ao contrário, de reconhecer que, mais do que do somatório de

informações, a consciência só pode surgir como resultado das contradições — que,

obviamente, não podem ser confundidas ou traduzidas como a polêmica que ocupa a imprensa

burguesa. Se é verdade, por exemplo, que o jornalismo informativo se acomodou na busca

pelas fontes oficiais que ajudam a reverberar versões únicas e sempre institucionalizadas da

realidade, isso não significa que, ao dar voz aos outros atores — sempre coletivos e não

individualizados como faz a imprensa burguesa —, o jornalismo que se pretende contra-

hegemônico possa abrir mão dessas fontes. Afinal, o que isso significa se não fragmentar a

realidade, exatamente como faz o jornalismo informativo, apenas apontando na direção

contrária?

Como pano de fundo do processo de construção do método materialista histórico-

dialético que aqui estamos perseguindo, nos parece que a experiência jornalística de Marx

293

pode apontar reflexões importantes para o enfrentamento dessas encruzilhadas. Na citação

abaixo, em que resume como o conceito de ideologia “transparece no jornalismo de Marx”,

Géraldine Muhlmann reúne os termos do argumento que vamos perseguir:

(...) o combate contra a ideologia não implica de modo algum que nunca se

deva ter contato com ela; muito pelo contrário, luta-se contra a ideologia

colocando-se no mesmo terreno que ela, discutindo com ela, e, pela força da

análise crítica, consegue-se fazer aflorar suas contradições, seus pontos

cegos; em suma, ela é destruída por dentro (Muhlmann, 2006, p. 119).

Com isso a autora francesa traz para o nosso debate a contribuição do princípio

metodológico do materialismo dialético que, segundo ela, tem origem no trabalho jornalístico

desenvolvido por Marx como atividade política ainda na juventude. E que pode oferecer

orientações práticas importantes sobre a tarefa contra-hegemônica do jornalismo de ‘desvelar’

a ideologia.

O desenvolvimento do conceito de ideologia é muito significativo da trajetória teórica e

política de Marx e encontra no jornalismo uma expressão (e uma solução) muito particular.

Num caminho que vai da crítica sobre a efetividade do espaço público de debate até uma

forma de ação concreta sobre as ideias, Marx nos ajuda a pensar como, a partir das suas

especificidades, o jornalismo pode promover uma outra forma de apreensão e intervenção na

realidade. Trata-se de uma concepção (de ação política) que, ao centrar-se no desvelamento da

ideologia, reconhece as determinações materiais que agem sobre as ideias mas nega também o

mecanismo da manipulação na sua dimensão lógica, interna ao discurso, e, com isso, abre

espaço para o exercício da dialética na descrição da realidade mais atual. Muhlmann resume o

princípio:

A liberdade teórica tem esse preço: o confronto permanente com os pontos

de vista que se trocam no espaço público, por mais “ideológicos” que sejam.

Não é o corte nítido, demasiado seguro de si, que oferece a segurança de sair

da ideologia; é preciso visar à superação dialética desta, uma superação que

se opera não apenas pelo enraizamento na práxis, mas também pelo

confronto com as produções ideológicas, por um trabalho de análise crítica

exigente e nunca definitivamente terminado (2006, p. 130).

A partir da análise de textos jornalísticos de Marx, a autora mostra como, no seu

trabalho informativo, o pensador alemão se dedicou a entender, destrinchar e desconstruir, por

exemplo, o “discurso das elites” entendido como forma de expressão da ideologia em

situações específicas (2006, p. 131). Ela destaca como, ao tratar da Guerra de Secessão nos

artigos que escrevia como correspondente internacional para o jornal norte-americano New

294

York Daily Tribune91

, por exemplo, Marx amplia a ‘pauta’ original, agregando à ‘cobertura’

do ‘fato em si’ as informações sobre como as diversas instituições — principalmente a

imprensa inglesa — liam, traduziam e ressignificavam o ocorrido.

Dissecando cuidadosamente os argumentos com os quais as elites britânicas estavam

assumindo a defesa dos estados do Sul contra os do Norte, Marx desnuda os ‘não-ditos’ dos

discursos oficiais, fazendo emergir uma conclusão ‘racional’ que se torna evidente — nesse

caso específico, as verdadeiras razões econômicas que orientavam os posicionamentos da

classe dominante do país sobre a Guerra. “Mas, em vez de afirmar isso como uma certeza, um

dogma, colocando-se de saída no exterior desses discursos, Marx irá mostrá-lo; vai entrar em

todos esses discursos, analisá-los, até o momento em que se mostre claramente que eles

remetem a outra coisa, um suporte latente, ‘razões ocultas’, como ele diz” (Muhlmann, 2006,

p. 131).

Nesse exemplo, a jornalista francesa chama atenção para uma questão de forma, que

parece fundamental para a lógica de pensamento que Marx quer imprimir ao tratamento das

coisas concretas: o fato de essa ‘conclusão’ só aparecer no final do texto, depois de

percorridos todos os seus aparentes ‘contrários’. “(...) é a própria ideologia, tomada a sério e

levada até o fim, que desmorona, sinalizando para outra coisa”, diz (Muhlmann, 2006, p.

133). E assim como os documentos que orientam o jornalismo informativo não são simples

manuais de redação, a importância dessa observação não é meramente formal ou estilística.

Não se trata de definir, como regra, o lugar da informação que será mais ou menos atrativo

para o leitor. Trata-se, ao contrário, de levar o leitor, através do texto, a uma experiência que o

aproxime do movimento de inversão e ocultação que é próprio da realidade retratada e que se

expressa de forma específica em cada novo tema ou acontecimento.

Assim, é como se Marx exercitasse, no nível do discurso e numa dimensão mais

imediata — portanto diferente do conhecimento científico —, os passos do seu método

dialético, um caminho que só depois de passar pelas particularidades (nesse caso, de cada

argumento das elites) permite alcançar o maior nível possível de concretude, ou seja, o

concreto pensado. Observe-se que é precisamente esta a inversão que justifica o adjetivo do

modelo da pirâmide ‘invertida’: a priorização do fato último, decisivo, concluído e acabado,

em detrimento do processo que permite chegar até ele — e que, em última análise, o explica.

91

Perceba-se que estamos utilizando exemplos de textos de Marx para jornais da grande imprensa burguesa, de

modo que não estamos atribuindo a esses artigos nenhum potencial contra-hegemônico. Trata-se, aqui, de

discutir apenas os aspectos internos ao texto, sem desconsiderar todos os outros elementos (como a necessidade

de criação de uma imprensa própria e de uma relação orgânica com a classe) que já discutimos como pertinentes

à construção de contra-hegemonia.

295

Ou, em outros termos, a absolutização (e o isolamento) da dimensão particular da realidade.

Observe-se, por fim, a sutileza que faz com que esse movimento da dialética possível não

confunda o caminho seguido por Marx com o modelo proposto por um dos manuais da SIP

analisados em que a reportagem de fundo se baseia na exposição de argumentos que resulta

numa conclusão semelhante a uma “sentença judicial”. Aqui, a análise tem contradição e o

trajeto de exposição supõe uma concepção de mundo singular, objetiva e explícita. Mas a

experiência de Marx se afasta também das iniciativas pretensamente contra-hegemônicas que,

como já comentamos, também podem se enquadrar na negação dessa dialética possível do

jornalismo quando, movidas pelo extremo oposto, saltam a dimensão do particular, e

contentam-se em oferecer apenas conclusões e juízos universais. Formalmente, não superam a

inversão da pirâmide: apenas trocam seu conteúdo, do particular abstrato para um geral

igualmente abstrato. Compromete-se o caminho de construção do conhecimento; interdita-se

o da construção de consciência.

Um jornalista bem treinado pelo modelo informativo poderia nos advertir, com razão,

de que, no exemplo tratado, Marx faz um exercício dialético sobre os argumentos em torno da

Guerra de Secessão e não sobre a guerra em si. ‘Qual é a pauta, afinal?’, perguntaria. E assim

esse jornalista imaginário estaria, talvez sem querer, identificando a mais estrutural subversão

que a dialética pode promover em relação ao jornalismo informativo. De fato, no texto em

questão, tanto como em outros artigos de Marx da mesma época — quando já se conheciam

os primeiros passos do modelo de jornalismo que se tornaria hegemônico —, o leitor não vai

conseguir identificar, de forma esquemática, quem fez o que, quando, onde e por quê. Cada ‘o

que’ está intrinsecamente relacionado com muitos outros, que por sua vez se articulam com

diferentes ‘quens’, em lugares (onde) e épocas (quando) que circulam entre o local e o geral, a

atualidade e a história. Assim, não existe o fato Guerra de Secessão sem as determinações

econômicas que a motivam, sem as razões que explicam o posicionamento de governos e

outros atores sociais no conflito, sem um conjunto de outros fatos que são, em última

instância, o mesmo. Enfrenta-se, assim, a “superficialidade extensiva” que, como vimos,

marca ontologicamente a vida cotidiana, mas que não precisa se expressar de forma plena e

naturalizada no discurso que organiza a compreensão e a vivência desse cotidiano.

Nada disso, no entanto, significa menos informação. Ao contrário. Para não nos

afastarmos do exemplo tratado, basta citar um outro texto de Marx sobre o mesmo tema,

publicado no jornal alemão Die Presse e intitulado ‘A Guerra Civil nos Estados Unidos’.

Como parte da sua análise, Marx pretende mostrar que o que se está considerando como

296

território a ser “mantido” pela ‘Confederação do Sul’ envolve muito menos estados

escravagistas do que se naturalizou acreditar. E para provar isso, ele apresenta, por exemplo,

dados numéricos precisos sobre a relação entre o total de habitantes e escravos de cada estado,

sempre acompanhados por um conjunto de outras informações quantitativas e qualitativas que

vão trazendo o cenário das relações de força em cada unidade federativa e no país como um

todo. E que, em última análise, ajudam a explicar o fenômeno da guerra. Vejamos um

exemplo, apenas a título de ilustração:

Delaware, o estado fronteiriço mais a nordeste, está verdadeira e moralmente

nas mãos da União. Todas as tentativas dos secessionistas de formar uma

facção que lhes fosse favorável falharam desde o início da guerra por

unanimidade da população. O elemento escravo deste estado está há muito

em processo de extinção. Só de 1850 a 1860 o número de escravos diminuiu

pela metade, de modo que, com um total de 112.218 habitantes, Delaware

tem agora apenas 1.700 escravos. Ainda assim, Delaware é reivindicado pela

Confederação Sulista e de fato seria insustentável para o Norte logo que o

Sul tomasse posse de Maryland.

Na própria Maryland ocorre o conflito acima mencionado entre terras altas e

planícies. Com um total de 687.034 habitantes existem lá 87.188 escravos.

As recentes eleições gerais para o Congresso em Washington novamente

provaram de maneira notável que a grande maioria da população está do

lado da União. O exército de 30 mil soldados da União que ocupa Maryland

neste momento não está lá apenas para servir de reserva ao exército no

Potomac, mas, particularmente, está lá para manter os donos de escravos

rebeldes sob controle (Marx, 2007, p. 134-135).

Mas tampouco se pode classificar esses textos como de caráter opinativo. Em alguns

artigos da mesma época, Marx constrói inclusive frases na primeira pessoa do singular —

uma ousadia estilística que precisaria ser muito bem justificada hoje —, mas isso não se

traduz numa parcialidade subjetiva — pelo menos não além daquela que está presente em

todo processo de apreensão da realidade, quer pela apuração jornalística, quer pelo

conhecimento científico. Essa alternativa, portanto, denuncia o caráter ideológico da falsa

oposição entre informação e opinião que sustenta o princípio da imparcialidade burguesa, mas

cujo enfrentamento traz consequências também para o jornalismo ‘alternativo’. Isso porque,

se nas experiências que se propõem a ser contra-hegemônicas o contraponto à informação

imparcial se limitar à parcialidade na forma individualista da opinião — seja do jornalista, do

veículo ou da instituição que o promove —, parece improvável qualquer avanço concreto da

consciência.

Mais do que naturalizar as armadilhas dicotômicas da ideologia burguesa, interessa a

um jornalismo que dispute hegemonia exercitar a dialética possível de uma forma de

apreensão do real que, na sua especificidade, lida com a dimensão imediata e cotidiana dos

297

fenômenos. Em primeiro lugar, isso significa considerar que, ainda que sejam atuais e estejam

se manifestando no exato presente em que se produz o jornal, os fatos — uma guerra ou uma

decisão político-parlamentar — estão sempre em movimento. E o esforço de recuperar ou

reproduzir o possível desse movimento, apurando suas determinações (passadas) e

implicações (presentes e futuras) mais gerais representa já uma ação no sentido de explicitar e

aguçar as contradições concretas.

Em Marx, o jornalismo é um exercício que parte da dimensão particular — mais

concreta, palpável e imediata — dos acontecimentos mas inserindo-a numa totalidade

objetiva que aponta uma cadeia de outros acontecimentos (presentes e passados), que por sua

vez abrem perspectivas políticas e teóricas de interpretação que, por sua vez, estavam contidas

no pressuposto político que fez daquele fato notícia... Um movimento que, no limite da

imediaticidade jornalística, percorre o acontecimento até o máximo da sua universalidade.

Tentemos reconhecer o método e, com isso, confirmar o acerto da chave teórica fornecida por

Adelmo Genro Filho ao supor que a superação do isolamento produzido pela imprensa

burguesa passava pela concepção de uma dialética própria do jornalismo.

Marx foi convidado a escrever os artigos em questão a partir de um fato real, concreto,

que invadia a atualidade da sociedade do seu tempo, com desdobramentos que poderiam ter

alcance mundial. Como fenômeno particular, a Guerra de Secessão é a matéria-prima da

informação jornalística. Mas só é possível compreendê-la como ‘notícia’ na medida em que,

mesmo antes das primeiras batalhas ou das consequências ‘práticas’ desse evento específico,

temos alguma noção, ainda que abstrata, do que está envolvido na simples ideia de ‘guerra’.

Esse imaginário sobre o que é a guerra — que é histórica e teoricamente construído — é uma

singularidade daquele evento particular, um ponto de partida da sua definição como pauta e

da abordagem que ele terá na apuração e tratamento das informações. É porque se trata de

uma guerra — e não uma discussão entre vizinhos — que o fato é notícia. Como vimos,

portanto, essa dimensão singular, que é a ‘ideia’, condiciona a notícia, mas existe antes

mesmo do fato concreto.

Parece possível, então, supor que, se retratamos o dia-a-dia do conflito apenas

descrevendo o fenômeno particular ou atualizando os números e as formas como se

manifestam os eventos que, a partir da simples ideia singular do que se entende por guerra, já

se imagina que qualquer guerra terá, nos prendemos ao nível mais superficial da sensação,

que é própria do jornalismo informativo burguês. Assim, não avançamos no conhecimento, na

compreensão da realidade e nem tampouco na consciência sobre as suas contradições.

298

Cientificamente, o ‘conceito universal’ sobre a Guerra de Secessão se constrói no

movimento dialético de superação da ideia singular inicial de guerra, que passa a ser

‘recheada’ com a particularidade específica daquele conflito, evidenciando um novo conjunto

de determinações que passam a definir tanto um novo conceito de guerra como uma nova

compreensão sobre o funcionamento da sociedade norte-americana e suas relações

internacionais, por exemplo. Mas isso, em geral, se dá a posteriori. No caso dos textos de

Marx, a Guerra de Secessão não era a história que pudesse ser percorrida para trás, mas sim a

realidade atual e imediata que acontecia diante dos olhos do mundo e dos leitores. Essa é,

afinal, a distinção do jornalismo.

O esforço empreendido pelo modelo de jornalismo burguês foi transformar essa

determinação do jornalismo (como forma de apreensão da realidade que é) em um limite que

deveria ser contornado pela velocidade e pela atualidade da informação, que prende os

acontecimentos na sua dimensão puramente particular. Por outro lado, o risco da imprensa

‘alternativa’ está em, ao tentar burlar esse bloqueio, na pressa de um juízo universal que o

jornalismo não pode produzir a não ser temporariamente — porque isso seria parar o

movimento da realidade presente com a qual ele lida —, transformar cada acontecimento

particular em um mero exemplar das ideias singulares cristalizadas.

Embora o esforço de ‘desvelar’ a ideologia por dentro guarde uma inescapável ligação

com a trajetória teórica e política de Marx, como orientação ‘metodológica’ de uma prática

política contra-hegemônica esse princípio está claramente presente também na obra de

Gramsci sobre o jornalismo. Voltemos, então, a ela.

Quando falávamos sobre as práticas específicas correspondentes a cada ‘nível’ de

consciência, fizemos uma breve referência a um “tipo geral” de revista que Gramsci cita como

uma possibilidade de ação de comunicação voltada para o senso comum. Voltaremos a essa

citação agora para analisar o modo como o autor sugere o tratamento interno aos conteúdos de

um veículo com essa finalidade. Diz ele:

O tipo geral, pode-se dizer, pertence à esfera do “senso comum” ou “bom

senso”, já que sua finalidade é modificar a opinião média de uma

determinada sociedade, criticando, sugerindo, ironizando, corrigindo,

renovando e, em última instância, introduzindo “novos lugares comuns”. Se

bem escritas, com vivacidade, com um certo sentido de distanciamento (de

modo a não assumir tons de pregador), mas com cordial interesse pela

opinião média, as revistas deste tipo podem ter grande difusão e exercer uma

profunda influência. Não devem ter nenhuma “carranca”, nem científica nem

moralizante; não ser “filistéias” e acadêmicas, nem revelar-se fanáticas ou

predominantemente partidárias: devem colocar-se no próprio campo do

“senso comum”, distanciando-se dele o suficiente para permitir o sorriso de

299

burla, mas não de desprezo ou de altiva superioridade (Gramsci, 2006, p.

209, grifo nosso).

Observemos que os próprios verbos que o autor utiliza — criticar, ironizar, corrigir...—

pressupõem a ação sobre algo dado, que lhe é anterior, reafirmando o compromisso do

jornalismo como ação/conhecimento calcado no fato, acontecimento ou evento concreto. Ao

mesmo tempo, dando um salto de qualidade em relação ao jornalismo burguês, não se atém a

esse concreto de forma naturalizada — aí reside o sentido de criticar, corrigir... Ao aconselhar

uma boa escrita e um “certo sentido de distanciamento”, o comunista italiano parece

reconhecer alguma especificidade na linguagem do jornal, em nome, no mínimo, da clareza

dos propósitos, e, mais do que isso, parece abordar por uma outra perspectiva a questão da

objetividade. Fala de um distanciamento (apenas o possível) na forma de apresentação e

organização dos fatos e questões, de modo a facilitar o reconhecimento do objeto, sem, no

entanto, isso significar a extinção do sujeito — ou seja, trata de uma objetividade que não é

sinônimo de imparcialidade ou neutralidade, e que não nega a implicação política. O controle

da forma, que anuncia o risco do caminho da pregação, se dá, portanto, pela relação concreta

e interessada (e não pela mera reprodução) com a “opinião média” — que, como sabemos,

tem bases materiais concretas.

Como vimos, Gramsci está interessado em pensar o jornalismo como estratégia de

superação dialética do senso comum com vistas a abalar a hegemonia burguesa. E, para isso,

o autor propõe algumas ações práticas que dizem respeito diretamente ao fazer jornalístico.

Ele defende, por exemplo, que a repetição, não como um processo mecânico, mas como

“apresentação e reapresentação” adaptada dos conceitos aos diversos contextos e

particularidades, é um “princípio metodológico fundamental” (2006, p. 206). Essa adaptação,

diz, significa o esforço de situar “cada aspecto parcial na totalidade” (2006, p. 206) — uma

definição perfeita para o exercício que, parágrafos acima, tentávamos exemplificar com os

textos jornalísticos de Marx. É importante ainda perceber como esse caminho se coloca na

contramão do modelo de jornalismo informativo, que, como vimos, prega a brevidade, a

concisão e a novidade, que se manifesta tanto na orientação de se evitar a repetição de

palavras num mesmo texto quanto na concepção de atualidade (e efemeridade) que determina

o que vai se teornar notícia.

O esforço de agir por dentro do discurso ideológico, que também destacamos nos textos

de Marx, aparece em Gramsci com foco na forma hegemônica que esse discurso assume, até

chegar à classe trabalhadora. Assim, ele destaca que o mecanismo da ‘repetição’ deve se dar

300

no jornalismo a partir de um ‘diagnóstico’ possível dos “erros mais difundidos e enraizados”

no senso comum. O autor explica:

O trabalho educativo-formativo desenvolvido por um centro homogêneo de

cultura, a elaboração de uma consciência crítica (por ele promovida e

favorecida) sobre uma base histórica que contenha as premissas concretas

para tal elaboração, este trabalho não pode limitar-se à simples enunciação

teórica de princípios “claros” de método (...). (...) deve haver dedução e

indução combinadas, a lógica formal e dialética, identificação e distinção,

demonstração positiva e destruição do velho. Mas não de modo abstrato, e

sim concreto, com base no real e na experiência efetiva (Gramsci, 2006, p.

206).

Como um organizador de táticas políticas, Gramsci não deixa escapar também a

necessária identificação das formas ou métodos distintos pelos quais as diferentes camadas

sociais apreendem e se apropriam dos conteúdos. O reconhecimento dos obstáculos que se

interpõem na relação das camadas não intelectualizadas da população com a ciência, por

exemplo, não leva o autor a eliminar essa dimensão do conhecimento — fundamental para o

desvelamento e compreensão da realidade — do espectro de ação do jornal. E aqui, sem

simplificações, parece presente a mesma compreensão da totalidade como um horizonte

possível do jornalismo que transparece dos textos de Marx:

O leitor comum não tem, e não pode ter, um hábito “científico”, que só se

adquire com o trabalho especializado: por isso, deve ser ajudado a assimilar

pelo menos o “sentido” deste hábito, através de uma atividade crítica

oportuna. Não basta fornecer-lhe conceitos já elaborados e fixados em sua

expressão “definitiva”; a concreticidade de tais conceitos, que reside no

processo que levou àquela afirmação, escapa ao leitor comum: deve-se, por

isso, oferecer-lhe toda a série dos raciocínios e das conexões

intermediárias, de modo bastante detalhado e não apenas por indicações

(Gramsci, 2006, p. 202, grifos nossos).

Em outra passagem, defendendo que as revistas tenham uma “rubrica permanente sobre

as correntes científicas”, Gramsci propõe como parte da função jornalística a discussão sobre

a ciência que influencia sua época: “[criar a seção] Mas não para divulgar noções científicas.

Para expor, criticar e enquadrar as ‘ideias científicas’ e suas repercussões sobre as ideologias

e sobre as concepções de mundo, e para promover o princípio pedagógico-didático da

‘história da ciência e da técnica como base da educação formativo-histórica na nova escola’”

(Gramsci, 2006, p. 226).

Como se pode perceber, tanto Gramsci quanto Marx vão às últimas consequências na

concepção dialética da história, aplicando-a também ao seu tempo presente, às relações mais

imediatas e às ferramentas políticas de intervenção mais prática. E com isso chegam ao

jornalismo. Mas, além de dialético, o método que aproxima os dois autores, na ciência e na

301

política, é também materialista. E, por isso, se começamos este tópico do trabalho

‘relativizando’ o foco na determinação material das ideias envolvidas na prática do

jornalismo, já é hora de voltar a esse debate, para que não se corra o risco de ler, na

experiência marxiana ou nas orientações gramscianas, uma abordagem puramente linguística

ou presa à dimensão do discurso. Afinal, textos com informações que desmentem versões

amplamente divulgadas dos fatos existem aos montes como ‘alternativa’ ao que é publicado

na grande imprensa, principalmente no ambiente das redes sociais, mas, de forma isolada, não

são capazes de gerar muito mais do que uma crítica momentânea. Compreender a importância

da forma de modo separado da sua inserção material seria trazer à tona uma concepção

iluminista-idealista do conhecimento e do discurso que não existe em Gramsci nem no Marx

da maturidade.

Assim, todas as estratégias propostas por Gramsci na concepção de veículos

jornalísticos resultam do seu esforço de identificar formas críticas de se atuar sobre o núcleo

sadio do senso comum com vistas à sua superação dialética — o que, como vimos,

consideradas todas as mediações necessárias, poderia resultar numa “consciência política”.

Mas para chegar a essas definições, Gramsci primeiro procura entender como se dá a adesão a

novas concepções de mundo a partir da fragmentação que caracteriza o senso comum. Como

exercício de resposta, ele enumera três fatores que, num primeiro momento, poderiam parecer

decisivos: a forma racional de apresentação e argumentação dessas concepções; a autoridade

de quem expõe esses argumentos ou de quem os ‘desvenda’ (cientistas); e a identidade de

grupo, ou seja, o fato de se participar “da mesma organização daquele que sustenta a nova

concepção” (Gramsci, 2004, p. 108). Ele analisa:

A forma racional, logicamente coerente, a perfeição do raciocínio que não

esquece nenhum argumento positivo ou negativo de certo peso, têm a sua

importância, mas está bem longe de ser decisiva; ela pode ser decisiva

apenas secundariamente, quando determinada pessoa já se encontra em crise

intelectual, oscila entre o velho e o novo, perdeu a confiança no velho e

ainda não se decidiu pelo novo, etc. O mesmo pode ser dito com relação à

autoridade dos pensadores e cientistas. Ela é muito grande no povo. Mas, de

fato, toda concepção tem pensadores e cientistas a seu favor e a autoridade é

dividida; (...) Pode-se concluir que o processo de difusão das novas

concepções ocorre por razões políticas, isto é, em última instância, sociais,

mas que o elemento formal (a coerência lógica), o elemento de autoridade e

o elemento organizativo têm uma função muito grande neste processo tão

logo tenha tido lugar a orientação geral, tanto em indivíduos singulares como

em grupos numerosos (Gramsci, 2004, p. 108-109).

Na sequência, Gramsci dá novo destaque à inserção material dessas ideias, concluindo

que, para as massas — que ainda não estão no caminho de agrupamento ou organização mais

302

elevado no processo de consciência —, a “filosofia” se dá não pela dimensão racional, mas

como uma experiência de fé. Com isso — numa conclusão que a um leitor apressado poderia

parecer contraditória com a cuidadosa elaboração do conteúdo jornalístico que acabamos de

ver na sua obra —, o autor nos mostra que o senso comum não é convencível apenas pela

força da argumentação: ele concorda com diferentes (e mesmo contrastantes) argumentos,

oscila entre opiniões distintas, mas nada disso é suficiente para mudar uma concepção de

mundo. Vale a longa citação:

Que se pense, ademais, na posição intelectual de um homem do povo; ele

elaborou para si opiniões, convicções, critérios de discriminação e normas de

conduta. Todo aquele que sustenta um ponto de vista contrário ao seu,

enquanto é intelectualmente superior, sabe argumentar as suas razões melhor

do que ele e, logicamente, o derrota na discussão. Deveria, por isso, o

homem do povo mudar de convicções? E apenas porque, na discussão

imediata, não sabe se impor? Se fosse assim, poderia acontecer que ele

devesse mudar uma vez por dia, isto é, todas as vezes que encontrasse um

adversário ideológico intelectualmente superior. Em que elementos baseia-

se, então, a sua filosofia? E, especialmente, a sua filosofia na forma que tem

para ele maior importância, isto é, como norma de conduta? O elemento

mais importante, indubitavelmente, é de caráter não racional: é um elemento

de fé. Mas de fé em quem e em quê? Sobretudo no grupo social ao qual

pertence, na medida em que este pensa as coisas também difusamente, como

ele: o homem do povo pensa que tantos não podem se equivocar tão

radicalmente, como o adversário argumentador queria fazer crer; que ele

próprio, é verdade, não é capaz de sustentar e desenvolver as suas razões

como o adversário faz com as dele, mas que, em seu grupo, existe quem

poderia fazer isto (...)” (Gramsci, 2004, p. 109, grifos nossos).

Também em Marx a construção de uma lógica argumentativo-explicativa interna ao

discurso jornalístico responde a uma concepção materialista-dialética da realidade. Lukács

inclusive considera que os trabalhos jornalísticos de Marx forneciam, desde sempre, sinais do

método que ele construiria ao longo da sua maturidade intelectual, embora as experiências da

juventude — especialmente a atuação na Gazeta Renana, entre 1842 e 1843 —, ainda

guardassem fortes marcas do idealismo hegeliano92

. “A metodologia empregada nos artigos

da Gazeta Renana continua a ser, essencialmente, uma dialética idealista desenvolvida numa

perspectiva democrático-revolucionária”, diz Lukács (2007, p. 142), reconhecendo, no

entanto, que alguns primeiros elementos (“geniais”) de “um tratamento materialista dos

problemas sociais” já estavam esporadicamente presentes nesse jornal (Lukács, 2007, p. 137).

92

São desse período os conhecidos (e muito citados) textos de Marx sobre a liberdade de imprensa, uma série de

seis artigos publicados na Gazeta Renana em maio de 1842. É preciso atentar, no entanto, que o conteúdo da

discussão feita naquele momento não reflete o pensamento de Marx na maturidade, quando, entre outros

avanços, ele terá já desenvolvido o conceito de ideologia e uma teoria do Estado, que estão claramente ausentes

do debate naquele momento.

303

Não por acaso, Lukács data desse período em que se encerra a primeira experiência

jornalística de Marx o início da sua crítica ao idealismo que, até então, o havia aproximado

dos neo-hegelianos de esquerda. E, de acordo com Geraldine Muhlmann, na base dessa crítica

(crescentemente materialista) parece estar exatamente o jornalismo e, através dele, a

‘descoberta’ do conceito de ideologia. Vejamos como isso se dá a partir de uma breve

referência biográfica, que nos parece contribuir para entender o sentido do jornalismo político

em Marx.

Após sucessivas ações de censura à Gazeta Renana por parte do governo prussiano,

Marx se demitiu em março de 1843, cerca de uma semana antes de o jornal fechar as portas

definitivamente, também por uma intervenção governamental (Buey, 2009, p. 69). Junto com

o cargo de editor, no entanto, Marx teria abandonado também o entusiasmo com a prática

jornalística como estratégia política, alimentando uma desilusão sobre a eficácia do espaço

público e sobre o papel do intelectual (Muhlmann, 2006, p. 118). Esse questionamento seria,

segundo a autora francesa, o germe do conceito de ideologia que, em parceria com Engels,

Marx desenvolveria pouco tempo mais tarde, entre 1844 e 1845, no livro ‘A Ideologia

Alemã’.

Na base da crítica, e do conceito criado para dar conta dela, estava a desconfiança sobre

a real liberdade de pensamento possível, inclusive para os intelectuais que, como ele,

tentavam colocar-se fora do discurso dominante. Nesse movimento, Marx se voltou

fortemente contra o entusiasmo neo-hegeliano com o jornalismo como estratégia que pudesse

levar à formação de uma “inteligência política” (Muhlmann, 2006, p. 127). Traduzindo o

questionamento que Marx fazia naquele momento, a autora explica:

Assim, o espaço público, e no seu interior o espaço público do debate de

opiniões, não importa o que se passe nele, é um lugar que exclui uma grande

parte da população, ignorando-a e, na verdade, exercendo dominação sobre

ela. Os movimentos de opinião, as indignações, os apelos à mudança que os

agitam, são apenas conflitos de certo modo “eufemísticos”, civilizados,

superficiais em relação aos conflitos mais profundos que ocorrem na

sociedade e que nunca encontram, enquanto tais, “formulação” política no

debate público. O mundo dos jornais é, evidentemente, o primeiro a ser

visado por essa crítica (Muhlmann, 2006, p. 126).

Muhlmann identifica nesse momento um investimento concentrado de Marx na busca

de uma prática de luta como espaço autônomo em relação à esfera discursiva que marcava a

política. Netto considera que foi exatamente a experiência na Gazeta Renana que permitiu a

Marx a “descoberta da política, não como atividade institucional, mas como dimensão

necessária da vida social numa sociedade saturada de conflitos” (2012, p. 10). Reforçando a

304

importância dessa passagem, Lukács identifica esse período como o de uma “crise teórica”

que, como o próprio Marx reconhece no prefácio de 1859 à ‘Contribuição à crítica da

economia política’, representou “seu primeiro passo no sentido do socialismo” (2007, p. 140-

141).

Percorrido esse passeio teórico-biográfico, voltamos melhor instrumentalizados à

questão que move todo o nosso argumento neste tópico: a importância de se agir por dentro

do discurso dominante sem que isso signifique privilegiar a ação por dentro dos canais e dos

códigos dominantes, o que é o mesmo que apontar a necessidade de articulação entre novas

formas, novas práticas e novos aparelhos, que ajudem a conformar uma nova linguagem para

a leitura (e transformação) da realidade.

5.1.5. Um jornalismo unitário e coerente

Como vimos, na obra de Gramsci, a temática da imprensa e do jornalismo não pode ser

pensada de forma dissociada da organização tática e estratégica de disputa de hegemonia.

Portanto, as orientações aqui destacadas sobre conteúdos e formas de disposição das

informações e debates nos jornais e revistas são expressão concreta e localizada de uma das

ferramentas que o comunista italiano identifica como possível de ser utilizada para promover

as concepções de mundo condizentes com a realidade e os interesses da classe trabalhadora.

Como vimos, no nível das ideias a ‘tarefa’ da hegemonia pressupõe a extensão da zona de

influência dessas concepções de mundo para outras frações de classe, mas, diante de uma

sociabilidade mediada pela ideologia burguesa, que nubla a realidade mesmo para amplas

camadas dos trabalhadores, o primeiro e maior desafio da hegemonia é o ‘convencimento’

interno à própria classe. O jornalismo é, assim, instrumento de uma ação que, em última

instância, visa à superação (dialética) dessa consciência imediata que Gramsci chamou de

senso comum — e que, como vimos, além de estar presa na dimensão individual, carrega

também um tipo de conhecimento fragmentário e caótico. “Quando na história se elabora um

grupo social homogêneo, elabora-se também, contra o senso comum, uma filosofia

homogênea, isto é, coerente e sistemática”, diz (Gramsci, 2004, p. 114).

Na interseção entre as características do senso comum e os objetivos embutidos na

disputa de hegemonia encontra-se, então, uma das mais importantes chaves de leitura do

jornalismo e da imprensa propostos por Gramsci nas suas variadas referências: a necessidade

de ‘inventariar’ esse senso comum, concedendo unidade e coerência ao que se apresenta

disforme e disperso. Por isso, Gramsci pensa o jornal (e a revista) não como uma ação isolada

ou voluntarista, mas como parte de um “organismo unitário de cultura”, que envolva a

305

produção de outros materiais e práticas e cujo objetivo deve ser gerar um “processo de

desenvolvimento orgânico que conduza do simples senso comum ao pensamento coerente e

sistemático” (2006, p. 201).

Embora dê grande importância à elevação do nível de conhecimento geral e teórico dos

grupos subalternos como parte do processo de elevação de consciência, quando fala em

“organismo cultural” Gramsci não está pensando na produção de um “saber enciclopédico”,

que também se restringiria a uma forma centrada no indivíduo. “A cultura é algo bem

diverso”, diz ele, e completa:

É organização, disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria

personalidade, conquista de consciência superior: e é graças a isso que

alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua própria

função na vida, seus próprios direitos e seus próprios deveres. (...) E essa

consciência se forma não sob a pressão brutal das necessidades fisiológicas,

mas através da reflexão inteligente (primeiro de alguns e depois de toda uma

classe) sobre as razões de certos fatos e sobre os meios para convertê-los, de

ocasião de vassalagem, em bandeira de rebelião e de reconstrução social

(Gramsci, 2004, p. 58).

Unidade e coerência são, então, dois substantivos que apontam os sentidos do fazer

contra-hegemônico vinculados ao jornalismo e à cultura de modo geral em toda a obra de

Gramsci. Uma concepção que se distancia, assim, daquela que coloca como tarefa — seja do

jornalismo informativo seja do jornalismo ‘alternativo’ — a construção de um cardápio de

informações e escolhas voltadas a um indivíduo tão fragmentado quanto as mensagens a que

ele está exposto. Como vimos nas orientações específicas sobre o tipo de conteúdo do jornal,

não se trata de ocultar informações ou versões dos fatos em benefício de outras, mas de inseri-

los (os fatos) numa abordagem mais universal, reconhecendo a unidade que, na realidade

concreta, serve de cimento à aparente pluralidade democrática do pensamento burguês.

Gramsci nos ensina: “É através da crítica à civilização capitalista que se forma ou se está

formando a consciência unitária do proletariado: e crítica quer dizer cultura, e não evolução

espontânea e natural” (2004, p. 60, grifos nossos).

Essa busca, que está na base do jornalismo como luta de hegemonia, se expressa em

duas diferentes dimensões: primeiro, coloca essa prática como tarefa de instituições culturais

unitárias, que atuam para além da imprensa mas sempre em torno de um pensamento coerente

e sistemático; e, segundo, como esforço de construção de uma unidade interna ao próprio

discurso jornalístico, o que pode ser traduzido como uma homogeneidade editorial que

conceda sentido (coletivo) à realidade objetivamente retratada.

306

A primeira dimensão diz respeito aos aparelhos que vão encarnar a disputa de

hegemonia no âmbito do jornalismo. E aqui não vamos voltar à discussão sobre o papel

(educador) do partido ou de movimentos sociais que desempenhem hoje função semelhante.

Importa ressaltar apenas a abrangência e o escopo dessas ‘instituições’ e movimentos que, por

definição, em Gramsci, são muito diferentes dos empreendimentos espontâneos individuais e

demandam muito mais do que o simples caráter de ‘não lucrativo’ para que se diferenciem da

mídia burguesa. “A Associação de Cultura, tal como deve ser promovida pelos socialistas,

tem de ter finalidades de classe e limites de classe”, avisa (Gramsci, 2004, p. 123).

A citação acima é de um texto de 1917, quando Gramsci ainda não tinha desenvolvido

seu conceito de aparelhos privados de hegemonia, mas, envolvido na sua militância, propunha

a criação de uma Associação de Cultura em Turim. Naquele momento, ele pensava na ação

sobre trabalhadores cuja consciência já tinha atingido um certo nível de “desenvolvimento”,

integrando um movimento operário “sólido”, mas a referência ao organismo cultural se

mantém nos momentos em que, já na obra da maturidade, o autor trata mais especificamente

do senso comum e das iniciativas voltadas para as massas em geral. O objetivo dessa

“associação cultural” seria atuar no longo prazo, portanto também fora dos momentos de

urgência, para criar as bases da “convicção” dos trabalhadores em relação às suas ações e

organizações políticas. Diz ele:

(...) nem todos os que participam do movimento assimilaram as questões em

seus termos exatos e, portanto, mesmo que venham a seguir a diretriz

estabelecida, o farão mais por espírito de disciplina e pela confiança que

depositam nos dirigentes do que por convicção íntima, por espontaneidade

racional. Ocorre assim que, em todos os momentos históricos decisivos, têm

lugar deserções, vacilações, rixas internas, questões pessoais. É desse modo

que se explicam os fenômenos de idolatria, que são um contra-senso em

nosso movimento e que fazem com que volte pela janela o autoritarismo

expulso pela porta (Gramsci, 2004, p. 124).

É curioso perceber como salta da proposta de Gramsci exatamente a preocupação com a

autonomia dos sujeitos, mas uma autonomia concebida num registro diametralmente oposto

ao da célula individual defendida pela imprensa e pela ideologia burguesas, materializadas no

modelo do jornalismo informativo. A autonomia aqui é parte do pleno pertencimento coletivo,

do progressivo pertencimento de classe. Condena-se, portanto, qualquer esforço de

manipulação, mas supera-se igualmente a falsidade espontaneísta de um ‘pensar por si’

individualizado. Nega-se, assim, a associação ideológica que a imprensa burguesa faz de

qualquer pensamento unitário com o autoritarismo ou totalitarismo, o que parece ser um

passo muito importante já que, como vimos, essa relação está na base das concepções de

307

liberdade de expressão, verdade e objetividade adotada pelo modelo do jornalismo

informativo.

Discutiremos na sequência como a segunda dimensão em que Gramsci trata a ‘unidade’

e a ‘coerência’ como atributos de uma prática de disputa contra-hegemônica aponta para um

outro modo de fazer jornalismo, que entra em confronto direto com a modelo informativo.

Mas, para não que nos escape a complexidade desse debate, é importante ressaltar o quanto

essa primeira dimensão, que diz respeito à unidade do organismo cultural, ao contrário, é

inteiramente espelhada na forma de organização da hegemonia burguesa. Nos ‘Cadernos’,

Gramsci destaca a urgência de se empreender um estudo sobre a “organização material” da

“estrutura ideológica” da burguesia naquele momento, mas seu olhar acurado sobre as

estratégias de dominação que brotam do capitalismo avançado já o permitem perceber, de

imediato, que se trata de uma verdadeira “‘frente’ teórica ou ideológica”. “A parte mais

considerável e mais dinâmica dessa frente é o setor editorial em geral: editoras (que têm um

programa implícito e explícito e se apoiam numa determinada corrente), jornais políticos,

revistas de todo tipo, científicas, literárias, filológicas, de divulgação, etc., periódicos diversos

até os boletins paroquiais”, exemplifica, acrescentando, em seguida, que essa “estrutura

material da ideologia” é composta ainda de ‘instituições’ como bibliotecas, escolas, clubes e

até nomes de ruas (Gramsci, 2006, p. 78, grifos nossos).

Para o comunista italiano, não há dúvidas de que a burguesia se organiza a partir de uma

multiplicidade de aparelhos que, no entanto, guardam uma profunda unidade e coerência com

as concepções de mundo que sustentam e fortalecem a sua hegemonia. De alguma forma, o

processo de monopolização da mídia tornou mais visível a base material93

dessa unidade, na

medida em que um mesmo grupo empresarial passa a comandar uma cadeia de veículos

informativos e de entretenimento, além de, mais recentemente, iniciativas pedagógicas de

‘responsabilidade social’ (inclusive diretamente nas escolas) e serviços culturais, como teatros

e cinemas94

. Embora o que Gramsci esteja chamando de concepções de mundo seja muito

93

Embora Gramsci identifique, já no seu tempo, a existência de empresas que publicavam diferentes jornais,

para diferentes públicos, mantendo a unidade editorial. Isso aparece, por exemplo, quando ele descreve os jornais

alemães (2006, p. 225). 94

Tomemos, apenas a título de exemplo, o Grupo Globo, que se apresenta como um “conjunto de empresas que

tem como missão informar, entreter e contribuir para a educação do país através de conteúdos de qualidade”.

Apenas sobre a rede de televisão, o projeto ‘Donos da Mídia’ traz os seguintes dados: “(...) a Rede Globo

encabeça o Sistema Central de Mídia nacional (...). São 35 grupos que controlam, ao todo, 340 veículos. (...) A

relação com empresas em todos os estados permite que o conteúdo gerado pelos 69 veículos próprios do grupo

carioca seja distribuído por um sistema que inclui outros 33 jornais, 52 rádios AM, 76 FMs, 11 OCs [ondas

curtas], 105 emissoras de TV, 27 revistas, 17 canais e 9 operadoras de TV paga. Além disso, a penetração de sua

rede de televisão é reforçada por um sistema de retransmissão que inclui 3305 RTVs [retransmissoras de TV]”.

O Grupo é integrado também pelo Sistema Globo de Rádio, que também tem emissoras próprias e afiliadas por

308

mais do que a simples repetição da opinião sobre um fato isolado, englobando valores mais

genéricos e comportamentos que se expressam de formas muito distintas nas diferentes

situações, sempre endossando a mesma visão do todo, alguns exemplos destacados por

Giannotti ajudam a perceber momentos em que essa unidade dos organismos culturais da

burguesia se apresenta de forma mais explícita. Um dos casos citados por ele, e que se tornou

clássico, foi a referência a trabalhadores sem-terra — que ocupam o noticiário da grande

imprensa sempre sob a ótica criminalizadora da defesa intransigente da propriedade — em

duas novelas da TV Globo. Em uma (‘O Rei do Gado’), a personagem principal do

movimento organizado sem-terra se casa com o latifundiário; em outra (‘Senhora do

Destino’), a vilã que sequestra uma criança, filha da protagonista que faz o papel de mocinha,

vai se esconder num acampamento do MST. “Este, para a Globo, é o lugar natural de

sequestradores e assassinos”, resume Giannotti (2014, p. 74). O segundo caso emblemático é

o da morte, em 2007, de um menino chamado João Helio, que, depois de um assalto, ficou

preso no carro roubado e foi arrastado até morrer. O caso teve grande repercussão na

imprensa e causou comoção nacional. Giannotti conta como, numa cena do capítulo da novela

daquela noite, um grupo de freiras apareceu ajoelhadas, rezando pelo menino morto, depois

de lerem a notícia no jornal. No dia seguinte, a manchete do jornal ‘O Globo’ era ‘Martírio de

criança reabre discussão sobre leis mais duras’, numa clara referência à redução da

maioridade penal. “Um ano antes da morte, sem dúvida bárbara, do João Helio, houve uma

chacina, no Rio, conhecida como a ‘Chacina de Queimados’. Foram 29 pessoas assassinadas

por programas policiais (...) Por acaso a Globo mudou o capítulo da novela da noite? Por

acaso colocou umas 80 freirinhas para rezar e chorar pela morte dos 29?”, questiona

(Giannotti, 2014, p. 44).

Se é verdade que, com a era dos monopólios, essa unidade e coerência da ideologia

dominante se tornaram mais facilmente identificáveis na sua estrutura material, também é fato

que a produção de ideias, valores, juízos e comportamentos se espraiou por um conjunto

maior e mais complexo de aparelhos, tornando esse processo muito mais sofisticado do que a

todo o país. Na área de impressos, o Grupo atua por meio da Editora Globo, responsável por 16 revistas e

publicação de livros voltados para os mais variados públicos, e do Infoglobo, responsável pelos jornais O Globo,

Extra e Expresso e com participação no jornal Valor Econômico. Além disso, compõem o grupo a Globo

Filmes, que atua no campo cinematográfico; a GloboSat, que é uma programadora de canais de TV por

assinatura; a Globo.com, de conteúdo digital; e a gravadora som livre, uma das maiores do mundo musical

brasileiro. Como instituição privada sem fins lucrativos associada ao Grupo, existe a Fundação Roberto Marinho,

responsável por projetos educativos, culturais e ligados ao patrimônio histórico, com presença crescente

inclusive nas escolas públicas. O Grupo saiu do comando mas continua tendo participação na Net Serviços de

Comunicação, empresa de TV por assinatura e telecomunicações que vem ocupando cada vez mais espaço na

gestão de cinemas, teatros e casas de espetáculo. Informações disponíveis em http://grupoglobo.globo.com/,

http://www.donosdamidia.com.br/ e http://gindre.com.br/conheca-as-organizacoes-globo/

309

simples associação entre noticiário e novela que vimos nos exemplos acima. Mantém-se,

assim, ainda mais atual, a pergunta e a resposta que Gramsci apresentou no momento em que

diagnosticou esse movimento da hegemonia burguesa: “O que se pode contrapor, por parte de

uma classe inovadora, a este complexo formidável de trincheiras e fortificações da classe

dominante?”, questionou. E respondeu: “O espírito de cisão, isto é, a conquista progressiva da

consciência da própria personalidade histórica, espírito de cisão que deve tender a se ampliar

da classe protagonista às classes aliadas potenciais: tudo isto requer um complexo trabalho

ideológico, cuja primeira condição é o exato conhecimento do campo a ser esvaziado de seu

elemento de massa humana” (Gramsci, 2006, p. 79). Em uma palavra: contra-hegemonia.

Assim, ao reunir suas ferramentas de disputa de hegemonia em organismos culturais

que atuem como uma “frente” — nesse caso, anti-ideológica —, os trabalhadores estão apenas

se colocando na mesma trincheira ocupada pela classe dominante. Mas como os objetivos são

diferentes — nunca é demais repetir que o fim é a emancipação humana e não uma nova

dominação —, o modo de adesão a esses organismos e as táticas e estratégias de

convencimento assumem formas distintas. E isso parece ter rebatimento direto no modo de

fazer jornalismo.

Assim chegamos à segunda dimensão do caráter unitário e coerente que Gramsci atribui

ao jornalismo, que diz respeito à própria construção da ‘notícia’ e organização das

informações. Logo no início das notas sobre jornalismo reunidas nos ‘Cadernos do Cárcere’,

ao anunciar que vai tratar de um tipo de jornalismo que, como vimos, ele chama de “integral”,

Gramsci pressupõe um ponto de partida “ideal” para a discussão crítica sobre o tema: a

existência de um “agrupamento cultural (...) mais ou menos homogêneo (...) com uma certa

orientação geral; e que se pretenda tomar tal agrupamento como base para construir um

edifício cultural, completo, autárquico, começando precisamente pela... língua, isso é, pelo

meio de expressão e contato recíproco” (Gramsci, 2006, p. 197). Na sequência, numa

passagem já citada aqui outras vezes em que enumera as categorias de revistas que poderiam

ser criadas, o autor deixa claro que “cada um destes tipos deveria ser caracterizado por uma

orientação intelectual muito unitária e não antológica”, que se traduz numa “redação

homogênea e disciplinada” (Gramsci, 2006, p. 201). Ele completa: “A orientação redacional

deve ser fortemente organizada, de modo a produzir um trabalho intelectualmente

homogêneo, apesar da necessária variedade de estilo e das personalidades literárias; a redação

deve ter um estatuto escrito, o qual, quando coubesse, impediria as improvisações, os

conflitos, as contradições (...)” (Gramsci, 2006, p. 201). Os termos da definição não poderiam

310

ser mais precisos: aponta-se, aqui, a necessidade de se enfrentar a “heterogeneidade” que,

como vimos, é própria do cotidiano vivido como expressão de uma realidade naturalmente

fragmentada no discurso jornalístico.

Naturalmente, não se trata apenas de aconselhar a criação de um manual de redação,

embora nem mesmo esse elemento tão específico passe despercebido na concepção tática do

comunista italiano. Com orientações práticas, Gramsci vai ao centro do debate: afinal, ele

sabe que na fragmentação do conhecimento e na individualização da vida residem os

principais insumos da ideologia sob o capitalismo. E, como ideológica que é, a negação

prática e conceitual (valorativa) de qualquer tentativa de unidade e homogeneidade por parte

do jornalismo burguês curiosamente se traduz em desinteresse e desimportância no jornalismo

‘alternativo’. Exemplos dessa fragmentação aparentemente anárquica que define o jornalismo

informativo não faltam. Mas como supomos, neste trabalho, que esse modelo tem se

espraiado de forma acrítica também para a imprensa ‘alternativa’, citaremos aqui,

propositalmente, o exemplo de um pequeno desconcerto interno ao discurso e à abordagem da

notícia produzida pelo jornal Brasil de Fato — um veículo criado com o objetivo de atuar no

Brasil como aparelho de contra-hegemonia — e que denuncia a carência da unidade editorial

(e política) de que nos fala Gramsci.

Em 2009, uma matéria sobre a greve nos correios95

trazia o depoimento de um

trabalhador que explicava a urgência de um reajuste salarial afirmando, entre outras coisas,

que precisava ter recursos para pagar uma escola particular para um dos filhos, já que a escola

pública não tinha qualidade. Vejamos a transcrição desse trecho da matéria:

Um carteiro grevista, identificado com o nome de Sandro, conta que, durante

o governo FHC, os trabalhadores tiveram apenas 1% de aumento salarial. Os

41% de reajuste reivindicados correspondem às perdas desse período. Ele

não acredita ser possível a conquista desse índice, mas diz que, caso seu

salário fosse reajustado, pagaria uma escola particular para um dos seus três

filhos. “Olha, a rede pública é uma negação, entendeu? Com os meus 16

anos de casa, o aumento [pedido pela categoria] equivaleria a R$ 640. Com

R$ 640, eu pagaria uma escola para o meu filho. Não daquelas ‘nossa, que

boa’, mas uma muito melhor do que uma pública, revela Sandro, que ganha

R$ 1.600 (Scarso, 2009, p. 8).

A manifestação do entrevistado apenas mostra como, mesmo no caso de trabalhadores

organizados, como se dá numa situação de greve, o senso comum (movido também por

95 Disponível em http://www.brasildefato.com.br/capas?page=19.

311

anseios e necessidades concretas) se manifesta na forma da luta corporativa, não exigindo,

portanto, coerência entre as dimensões mais amplas de uma luta política. Mas queremos aqui

chamar atenção para o papel que tem, nesse processo, o modo de se fazer ‘notícia’,

destacando que, embora se diferencie da mídia burguesa quando dá voz aos trabalhadores e

apresenta uma abordagem positiva da greve, o jornal acaba reproduzindo, como seu, sem

estranhamento ou tentativa de superação, esse mesmo senso comum fragmentador que

caracteriza o jornalismo dos meios de comunicação de massa. Vejamos. O pressuposto do

desejo declarado pelo entrevistado não é falso: de fato, na realidade concreta brasileira, existe

uma crise da educação pública que faz com que se valorize socialmente mais a educação

privada. Tampouco se pode fazer um julgamento moral que condene o seu legítimo desejo de

escolher o que considera a melhor educação para os seus filhos. A questão está no processo

que: 1) oculta as razões do problema, que levariam a outros caminhos de luta concreta e

inclusive outras pautas para o jornal; 2) naturaliza as soluções no marco da fragmentação

burguesa; e 3) inverte a relação de causa e consequência dos desejos/aspirações pessoais que

se hegemonizam na sociedade. Perceba-se também que o sujeito entrevistado está na

militância e, em relação às discussões trabalhistas, provavelmente não reproduziria elementos

do senso comum, como a ideia de que trabalhador em greve é vagabundo ou de que se a

empresa privada paga melhor, a solução é privatizar tudo. Mas, num breve e curto passo para

o lado, que o distancia levemente da sua área de militância política e de conhecimento no

sentido da consciência, ele traz à tona a imediaticidade do cotidiano e a tradução disso em

senso comum.

A questão é que esse não é um discurso direto ou uma conversa pessoal, e sim uma

entrevista para um jornal da classe trabalhadora. Evidentemente, a solução não está em

esconder as motivações reais e verdadeiras dos trabalhadores apenas porque elas não parecem

‘nobres’ ou não correspondem à universalidade que se esperava — embora valha a pena se

perguntar em que medida motivações como essa são de caráter individual ou de fato

ajudavam a explicar o conjunto do movimento, o que, por sua vez, coloca a necessidade de

não se repetir no jornalismo contra-hegemônico o papel atomizado e pouco representativo que

os ‘depoimentos’ têm na imprensa burguesa. De qualquer forma, o que importa é refletir

sobre o papel do jornal diante das contradições reais da classe trabalhadora que ele precisa

retratar para superar. Seguindo as trilhas que temos acompanhado até aqui, nos parece que o

caminho está em assumir o lugar de mediador das contradições concretas e organizador de

uma concepção de mundo unitária, o que pressupõe o empenho de religar os ‘departamentos’

312

da classe trabalhadora que a ideologia burguesa insiste em apartar, ou seja, o esforço de

retomar o caminho possível da leitura da realidade como totalidade social. E isso passa por

não ignorar, mas tampouco naturalizar no nível da coerência do discurso, as contradições que

são, inclusive, necessárias de serem explicitadas no caminho da construção de uma

consciência de classe.

Em termos práticos, isso coloca para o jornalismo que se quer contra-hegemônico uma

responsabilidade muito maior sobre o trabalho de edição, que precisa buscar unidade e

coerência não só interna a cada texto como para o conjunto do jornal. Isso significa que cada

informação, cada entrevista, cada depoimento, cada documento citado numa matéria precisa

atender a uma intencionalidade, dirigindo o leitor não a uma conclusão previamente dada e

independente do fato, mas a uma chave de leitura e compreensão referenciada pela posição

social e política que o jornal representa e que encontra expressão nos grupos e na classe que

ele ajuda a organizar. Isso precisa se traduzir, em primeiro lugar, numa unidade e coerência

discursiva, que permita que cada ‘matéria’, por factual ou temática (atemporal) que seja, feche

um sentido em si mesma. Mas também deve corresponder a uma unidade e coerência

concreta, que diz respeito à expressão orgânica do que une, pelo menos conceitualmente, os

coletivos (movimentos sociais, partidos e instituições em geral) que dão base ao jornal — o

que, na matéria que acabamos de comentar, significaria não esquecer a luta pela educação

pública, e seus devidos representantes, como parte da luta dos trabalhadores por direitos. Mas

a importância do trabalho de edição se apresenta também em relação ao conjunto do jornal

que, pela perspectiva de um discurso e de uma luta de base unitária e coerente, precisa ser um

todo minimamente articulado e integrado, onde os desencontros e incoerências presentes em

cada fenômeno particular ganhem a forma — trabalhada e não espontaneísta — de

contradições. E isso traz, pelo menos, dois desdobramentos práticos.

O primeiro é o esforço de desnaturalizar a categorização das ‘notícias’ e dos temas

tratados, entendendo que a inserção em editorias, por exemplo, muito mais do que uma

classificação técnica, é já uma primeira chave de organização e direção do conteúdo do jornal.

Que na imprensa burguesa essa ‘direção’ aponte no sentido da fragmentação (que é uma

aparente não direção), é inteiramente coerente com o projeto (de classe, como vimos) do

jornalismo informativo. No caso do jornalismo que se pretende contra-hegemônico, é preciso

que essa classificação ‘formal’ não se coloque como obstáculo ao que já tratamos aqui como a

dialética possível que permite compreender os fatos para além da sua manifestação puramente

particular. No momento em que este trabalho está sendo escrito, México e Estados Unidos

313

vivem situações de explosão social como resposta da população à violência de Estado. No

México, parte da sociedade se levantou contra o desparecimento de 43 estudantes depois de

uma ação policial na cidade de Iguala. Nos Estados Unidos, uma onda de protestos tomou as

ruas de Ferguson (Missouri) para denunciar a decisão da justiça de não indiciar um policial

que havia matado um jovem negro meses antes. No Brasil, as manifestações de rua

arrefeceram desde a explosão de junho de 2013, mas a rebarba desse movimento continua

ocupando a mídia, as redes sociais e as ruas, embora de forma muito menos expressiva: neste

exato momento, três jovens indiciados em um processo que foi denunciado como de

perseguição política tiveram sua prisão novamente decretada por terem participado de um ato

realizado em praça pública que, juridicamente, significaria o descumprimento dos termos do

habeas corpus concedido. Três fatos distintos, em lugares diferentes, com personagens

específicos; cada um recheado de particularidades próprias — a questão racial nos EUA, a

criminalização dos movimentos sociais no Brasil, os cartéis do tráfico no México —, mas que

encontram unidade quando, como situações atuais e concretas, lançam luz sobre o poder do

aparelho de Estado, sobre os mecanismos e limites da democracia, sobre a relação entre os

poderes executivo e judiciário, entre muitas outras questões que estão contidas como

singularidade em cada um desses eventos particulares. Nosso ponto aqui é ressaltar que essas

dimensões de coerência da realidade concreta não cabem em classificações abstratas, tomadas

de forma independente dos fatos, como são, por exemplo, as editorias de ‘nacional’ e

‘internacional’. Sempre considerando as mediações necessárias entre a busca da totalidade na

ciência e no jornalismo, vale atentar para a definição de Kofler :

(...) o conceito de todo não pode representar, na dialética, algo rígido nem

unívoco no sentido da lógica formal. O que decide acerca dos limites do

todo que se investiga em cada caso é a realidade efetiva, assim como o

problema que se aborda. Então se descobrirá que qualquer totalidade, por

amplos que sejam seus limites, pode subordinar-se a outra, ainda mais

inclusiva. Igualmente, no curso da investigação, impor-se-á a necessidade de

decompor em totalidades subordinadas o recorte do todo que inicialmente

constituiu o objeto (...) (2010, p. 56)

A segunda questão de ordem prática que a necessidade de unidade e coerência interna

ao jornal suscita é sobre o que se compreende como expressão das lutas sociais concretas nas

páginas de cada veículo. De forma clara, um jornal que se coloque na luta de hegemonia, no

sentido gramsciano, tem papel ativo de mediador e organizador, de modo que não pode se

conformar como uma simples reunião de matérias produzidas pelos diversos movimentos e

instituições que o apoiam, sem que isso componha um desenho editorial unitário, selecionado,

314

organizado e editado por um órgão centralizador96

. Assim, a orientação de Gramsci que aqui

estamos discutindo parece ser, inclusive, a principal diferença entre um veículo que se

proponha a ser um projeto contra-hegemônico e o espaço de crítica, por exemplo, das redes

sociais — que é múltiplo, informativo, rico e democrático, mas ‘passivo’ em relação ao

caráter fragmentário tanto do cotidiano reificado quanto das lutas que se travam na realidade

concreta. De volta a Gramsci:

Disto se deduz a importância que tem o “momento cultural” também na

atividade prática (coletiva): todo ato histórico não pode deixar de ser

realizado pelo “homem coletivo”, isto é, pressupõe a conquista de uma

unidade “cultural-social” pela qual uma multiplicidade de vontades

desagregadas, com fins heterogêneos, solda-se conjuntamente na busca de

um mesmo fim, com base numa idêntica e comum concepção do mundo

(geral e particular, transitoriamente operante — por meio da emoção — ou

permanente, de modo que a base intelectual esteja tão enraizada, assimilada

e vivida que possa se transformar em paixão) (Gramsci, 2004, p. 399).

Na expressão jornalística da luta de hegemonia, o comunista italiano está visando a uma

“homogeneidade cultural” da qual a existência de um “corpo de redatores”, tal como ele se

referiu acima, é não só um desejável ponto de partida mas, principalmente, também um ponto

de chegada (2006, p. 209). Trata-se de pensar e organizar a prática jornalística a partir da

dialética entre teoria e prática, conhecimento e ação, que, em Gramsci, molda todo o conceito

de hegemonia quando ele se refere à luta dos trabalhadores. Por isso ele pode falar das

redações de revista funcionando como verdadeiros “círculos de cultura”.

O círculo critica de modo colegiado e contribui assim para elaborar os

trabalhos dos redatores individuais, cuja operosidade é organizada segundo

um plano e uma divisão do trabalho racionalmente preestabelecidos. (...)

cada um funciona como especialista em sua matéria a fim de complementar

a qualificação coletiva, consegue-se efetivamente elevar o nível médio dos

redatores individuais, alcançar o nível ou a capacidade do mais preparado,

assegurando à revista uma colaboração cada vez mais selecionada e

orgânica; e não apenas isso, mas criam-se também as condições para o

surgimento de um grupo homogêneo de intelectuais, preparados para a

produção de uma atividade “editorial” regular e metódica (não apenas de

publicações de ocasião e de ensaios parciais, mas de trabalhos orgânicos de

conjunto) (Gramsci, 2006, p. 35, grifos nossos).

96

Não ignoramos que o esforço colaborativo de movimentos sociais e instituições de esquerda na manutenção do

conteúdo dos jornais muitas vezes se deve a dificuldades materiais e financeiras, que impedem, por exemplo, a

existência de um corpo próprio de jornalistas. É imperativo, portanto, que todo esse debate tenha como pano de

fundo também o reconhecimento das dificuldades materiais para criação e manutenção de veículos de

comunicação ‘independentes’. Como estamos tentando demonstrar neste trabalho, a superação dessas

dificuldades não parece suficiente para que se possa construir uma imprensa com função contra-hegemônica,

mas é preciso igualmente reconhecer que, sem se construírem alternativas para o problema concreto da

sustentabilidade de uma imprensa ‘alternativa’, pouco se poderá avançar. Como não estamos desenvolvendo

estudos de caso, não entraremos aqui no debate sobre a sustentabilidade de veículos específicos.

315

O que, em última instância, parece que Gramsci está propondo é que assumamos para o

jornalismo todas as consequências da sua concepção segundo a qual “toda relação de

‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica” (2006, p. 399, grifos nossos). E

com isso passamos a confrontar conscientemente o “sistema da livre expressão” que,

nomeado ou não, impera no modelo defendido pela SIP e que, como vimos no material de um

dos seus maiores vocalizadores, se expressa num jornalismo que segue o caminho contrário,

rejeitando seu papel de “explicação” da realidade — sempre associada a uma “verdade

autoritária” — em nome de uma aposta na simples “discussão” como caminho para o

conhecimento e instrumentalização dos indivíduos (Fuller, 1996, p. 6).

Assim, a forma como o comunista italiano pensa o jornalismo ganha radicalidade no seu

sentido contra-hegemônico também porque denuncia o quanto o jornalismo burguês precisa

dispersar/fragmentar na forma interna ao discurso e às mensagens para nublar o caráter

profundamente concentrador e centralizador da sua estrutura material e ideológica. E essa

radicalidade se completa quando ele aponta como caminho inverso o reconhecimento da

parcialidade do projeto de classe que o orienta. Afinal, um jornalismo contra-hegemônico tem

como razão de existência a luta pela superação da ordem do capital e, como Gramsci não nos

deixa esquecer, “o socialismo é uma visão integral da vida (...)” (2004, p. 124).

316

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se quisermos disputar a hegemonia, do ponto de vista da

comunicação, há duas coisas a fazer: primeiro, perder as ilusões

com a mídia da outra classe. Segundo, parar de choramingar e

fortalecer a nossa mídia. A mídia da nossa classe

(Vito Giannotti, 2014)

Tentamos, ao longo de todo este trabalho, promover um deslocamento de foco nas

análises críticas sobre o jornalismo da grande imprensa empresarial: do conteúdo para o

‘método’, da denúncia da manipulação para o reconhecimento da ideologia em ação.

Necessariamente, esse desvio nos leva também a ampliar o olhar que está voltado à imprensa

e aos meios de comunicação de massa para uma análise mais específica sobre o jornalismo,

reconhecido como ferramenta indispensável ao funcionamento desses aparelhos, prática que

dá forma às concepções de mundo estruturais por eles disputadas.

Esse foi o caminho percorrido até que, finalmente, chegássemos ao ponto que, desde

sempre, era nossa preocupação principal: a discussão sobre as ferramentas e práticas que

podem conformar e dar sentido à disputa de concepções de mundo próprias da classe

trabalhadora e, com isso, pari passu aos movimentos reais da classe, atuar no sentido da

superação não só das ideias, mas da própria ordem do capital. Esse, nos parece, é o verdadeiro

sentido do ‘alternativo’ que deve adjetivar as iniciativas jornalísticas que tentam se contrapor

ao regime da grande imprensa empresarial.

Cumprida essa trajetória, esperamos ter conseguido evidenciar o caráter de classe que

orienta o jornalismo como prática concretamente existente e que, portanto, precisa também

guiar as concepções e iniciativas que, nesse campo, se colocam como ‘alternativas’ à

hegemonia do capital. Assim, nosso primeiro grande esforço neste trabalho foi mapear as

origens históricas e identificar as bases materiais que sustentam o jornalismo hegemônico-

profissional, concebido aqui como um modelo, um conjunto coerente de princípios

tecnicamente traduzidos e enquadrados que, a despeito do que diz a ideologia burguesa,

representa muito mais do que a sistematização de ferramentas de apuração e linguagem

pautadas pelo simples desenvolvimento tecnológico.

Se localizamos em meados do século XIX os primeiros sinais do que se tornaria esse

modelo, e identificamos na passagem para o século XX — com a monopolização da imprensa

— a base econômica por meio da qual se chega à forma final do jornalismo informativo, é

possível também dizer que a concepção de notícia (e de outros gêneros jornalísticos) como

síntese dos princípios que orientam a ordem burguesa é sustentada ainda hoje não apenas pela

317

prática diária da mídia de massas como pela ação organizativa dos aparelhos que se dedicam à

disputa ideológica dentro do campo específico da comunicação. Contemporaneamente, esse

parece ser o papel, por exemplo, da Sociedade Interamericana de Imprensa, uma entidade que,

mais do que mapear e condenar governos e políticas que desrespeitam a sua concepção de

‘liberdade de imprensa’, também promove, afirmativamente, um conjunto de saberes e

práticas jornalísticas que ajudam a sustentar ideologicamente tanto a imagem da imprensa

burguesa como atividade de interesse social quanto a crença num determinado ethos da

profissão.

Como representante dos interesses particulares da imprensa empresarial, a SIP se torna

central neste trabalho na medida em que é também fiadora de um modelo igualmente

particular de jornalismo, que tem como marcas principais a absolutização da atualidade,

expressa no caráter fragmentário da notícia, e a separação entre informação e análise (esta

ideologicamente reduzida à condição de opinião), manifesta numa concepção de objetividade

que pressupõe a imparcialidade e nega qualquer apreensão mais totalizante dos fenômenos

sociais que compõem o cotidiano coletivo. Na base desse modelo, como vimos, está um

esforço, mais ou menos explícito, de esvaziar todos os tipos de conhecimento de qualquer

perspectiva assumidamente política, de separar o saber (ou o estar informado) sobre o mundo

de qualquer ação transformadora da realidade. Num estágio do capitalismo em que, nos

países ditos ‘ocidentais’, a sociedade civil se tornou um espaço privilegiado de exercício do

poder (e da luta contra ele), a conformação de modelos e linguagens pretensamente técnicas e

universais, como se dá com o jornalismo informativo, e sua legitimação por instituições

caracterizadas nos moldes do que Gramsci chamou de aparelhos privados de hegemonia

substituem, com muita eficácia, a censura estatal que, em outros tempos, foi ferramenta de

controle da agitação e da formação que podem se dar a partir da imprensa.

Assim, o ponto de partida deste trabalho foi a compreensão do jornalismo como uma

prática que carrega, na forma como foi social e historicamente reconhecida, um conjunto de

princípios e valores que se objetivam em códigos próprios e se materializam em instituições.

Esse foi o espelho a partir do qual tentamos vislumbrar caminhos que apontassem a direção

do jornalismo como instrumento de contra-hegemonia — o que em alguma medida requer que

se destrua, nas práticas, também a identidade desse jornalismo que se constituiu, ele próprio,

como hegemônico.

Tentamos aqui mostrar como os princípios e valores que orientam o jornalismo burguês,

como expressão da base ideológica da ordem burguesa como um todo, concentram-se,

318

exemplarmente, na função atribuída a essa prática, servindo também para justificar suas

orientações técnicas e enquadramentos éticos. Assim, a uma imprensa voltada para o

esclarecimento de indivíduos que escolhem, a partir dos fragmentos oferecidos pelos jornais,

os insumos para construírem suas próprias opiniões sobre cada fato ou fenômeno social —

opiniões essas que, somadas, conformarão uma ‘vontade geral’ atribuída a uma abstrata

‘sociedade civil’ —, correspondem valores como a primazia das liberdades individuais, a

compreensão da dinâmica social pelos moldes de um ‘contrato’ e, principalmente, a redução

da vida humana à particularidade do modo capitalista. Esses princípios e valores, por sua

vez, se traduzem como códigos e linguagens que dissecam e organizam essa realidade de

modo a garantir o melhor consumo e a mais eficiente instrumentalização dos indivíduos na

sua tarefa diária de administrar o cotidiano da própria vida, desde as decisões sobre a

economia doméstica até as opções ‘políticas’, mas sempre limitados pela naturalização do

existente. E esse modelo é, por fim, sustentado e legitimado por instituições que, no nível

organizativo, expressam a mesma autonomia e reivindicam a mesma liberdade de atuação

atribuída ao indivíduo, instituições, portanto, que representam o livre mercado — de ações e

de ideias. Eis aqui completo o ciclo ideológico do jornalismo burguês.

Subjacente a esse modelo de jornalismo identificamos, então, uma concepção de

objetividade que se constrói não a partir de uma análise da realidade objetiva (que, cindida em

classes, seria necessariamente parcial), mas sim da confrontação entre diferentes versões,

diversas opiniões, ‘subjetividades’ distintas. É sobre esse terreno movediço que, como

tentamos demonstrar, se assenta o imperativo da imparcialidade, como a busca do

distanciamento necessário à exposição dessa diversidade que geraria o consenso, o

pensamento médio ou, simplesmente, a tão reverenciada ‘opinião pública’. Como célula-base

dos seus códigos e como marca determinante da sua linguagem, impera complementarmente

nesse jornalismo uma concepção específica de atualidade que, muito mais do que o foco na

dimensão particular dos fatos cotidianos, expressa uma supressão da história, um

aprisionamento num eterno presente que é o tempo do capital. Assim, junto com a realidade

objetiva, oportunamente substituída pelo insumo ao debate de versões individuais dos fatos,

oculta-se uma sociedade cindida, estruturalmente incompatível com qualquer espécie de

vontade ou interesse ‘geral’; junto com a perda da dimensão histórica dos acontecimentos e

do cotidiano vivido, esconde-se o caráter particular de uma ordem social que não foi (e nem

precisa ser) o único modo de existência sobre a Terra. E aqui temos a síntese de um dos

principais argumentos que desenvolvemos ao longo deste trabalho: o caráter ideológico do

319

modelo de jornalismo informativo e sua consequente funcionalidade para a dominação de

classe.

Assim, vale registrar nessas considerações finais que, concebido genericamente como

profissão e prática social, o jornalismo carrega consigo um mito fundador da ordem burguesa,

que encontra no pensamento de Hegel sua elaboração filosófica mais completa. Com esse

simples resumo que acabamos de apresentar, mas que foi largamente desenvolvido ao longo

de todo o trabalho, é fácil reconhecer nas regras do fazer jornalístico profissional um amparo

à autoimagem promovida pelos grandes veículos da imprensa empresarial como instituições

que, embora privadas, desempenham uma tarefa pública, o que é o mesmo que dizer que elas

se reconhecem como instâncias particulares que, no entanto, atuam em nome do interesse

geral. E apesar da clareza com que se apresenta na experiência concreta da imprensa

burguesa, esse conjunto de articulações ultrapassa em muito o campo da comunicação e do

jornalismo.

De acordo com Carlos Nelson Coutinho, foi Hegel quem, promovendo uma síntese

entre a concepção liberal e o pensamento de Rousseau, caracterizou o mundo moderno como

aquele em que a universalidade (o interesse e o bem geral) se desenvolveria exatamente “a

partir do livre jogo da ação dos particulares, ou seja, a partir da liberdade dos indivíduos”

(Coutinho, 2011, p. 43). Dessa forma, ele se diferenciava dos Antigos, que privilegiavam o

interesse comum colocando-o como incompatível com os interesses particulares, e de toda a

tradição liberal que, até então, tendo seus expoentes em Hobbes e Locke, ocupou-se de

positivar apenas a dimensão dos interesses particulares trazidos pela ordem burguesa. O autor

resume:

Hegel se capacitava a cumprir a tarefa central que propusera para sua

filosofia política: a conciliação entre, por um lado, a liberdade individual (ou

a autonomia do sujeito), surgida na modernidade e transformada no principal

valor do liberalismo, e, por outro, a reconstrução de uma ordem social

fundada na prioridade do público (do universal) sobre o privado (ou

particular), prioridade que existira nas repúblicas antigas e que voltava agora

a se apresentar, como tarefa para a modernidade, na proposta democrática de

Rousseau (Coutinho, 2011, p. 43).

Assim, Hegel viu na modernidade burguesa um importante diferencial: agora, a

particularidade, que se expressava na sociedade civil, não precisava ser eliminada ou

subsumida porque ela era capaz de construir a vontade e o interesse geral/universal. O

resultado desse processo, a materialização do interesse e da vontade universal, se daria no

Estado — não por acaso, o Estado burguês moderno —, que Hegel considera o último grau de

desenvolvimento do Espírito (a história). “Há uma mediação do indivíduo pelo universal, um

320

movimento dialético pelo qual cada um, ao ganhar, produzir e fruir para si, precisamente por

isso produz e ganha para a fruição de todos” (Hegel apud Coutinho, 1998, p. 64). Assim, a

sociedade burguesa representava o fim da história (no seu sentido estrutural) exatamente

porque permitia o máximo de liberdade possível, por meio de uma universalidade que resulta

do desenvolvimento de interesses particulares. Na base da sua crítica a Hegel, Marx terá

clareza de que a universalidade conquistada pela burguesia no seu processo revolucionário é

limitada e abstrata — precisamente porque não elimina a dominação — e que a

universalização só será concreta com o fim da divisão de classes. Como vimos, para Marx e

Engels, com a consolidação do capitalismo, o sujeito político deixa de ser o indivíduo ou a

sociedade no seu conjunto e passam a ser as classes sociais. Eis as bases políticas e filosóficas

que tentamos afirmar para a construção de um jornalismo contra-hegemônico.

Essa simples percepção de que a imprensa e o jornalismo, concebidos genericamente,

não podem atender a um suposto ‘interesse geral’ — que é o que justifica o empenho na

construção de uma prática ‘alternativa’ — demarca o corte de classe que procuramos

estabelecer como pressuposto de toda a nossa análise. Por isso nos dedicamos também a

discutir que valores podem orientar uma imprensa contra-hegemônica, a forma como eles se

traduzem jornalisticamente (em processos, códigos, linguagem...) e a partir de quais

instituições isso pode se dar. Pois é da articulação entre todas essas dimensões, e não do foco

em qualquer uma delas isoladamente, que parece ser possível nascer uma imprensa

verdadeiramente contra-hegemônica.

Daí nos permitimos concluir que, se é na função do jornalismo informativo que se

apresentam mais concretamente os princípios e valores que ele expressa em nome da ordem

burguesa, o jornalismo que busca a contra-hegemonia traz, no seu próprio qualificativo, uma

função diametralmente oposta. No rigor do conceito de Gramsci, como vimos, disputar

hegemonia pressupõe colocar-se no campo da construção de consciência, um processo que,

entre outras coisas, significa o esforço de transformação do sujeito a partir do qual se constroi

a hegemonia e sobre o qual age o jornalismo, um deslocamento que leva do indivíduo à

classe. O desafio está em partir de um mesmo cotidiano socialmente compartilhado, alienado

e em funcionamento a partir das regras naturalizadas da ordem capitalista para se dirigir aos

sujeitos numa forma distinta daquela pela qual eles se reconhecem e atuam nesse mesmo

cotidiano, incluindo-os numa coletividade e atribuindo-lhes uma identidade que, na prática,

está muito afastada da sua existência concreta.

321

Mesmo diante desses obstáculos, arriscamos dizer que a uma imprensa que tenha a

função de formar e fortalecer a consciência da classe correspondem outros princípios e

valores, como uma concepção de liberdade e de autonomia que vai além do nível individual, a

negação do esforço de harmonização de interesses a partir da clareza da cisão estrutural que

marca a sociedade sob o capitalismo e, sobretudo, a desnaturalização das ideias, certezas,

procedimentos, enfim, das relações que sustentam e refletem a ordem burguesa. Vimos

claramente como a tradução desse esforço num modo de fazer jornalismo não pode se dar a

partir dos mesmos fundamentos do modelo informativo, ou seja, de uma mesma concepção

ideológica de objetividade e atualidade nos termos que já descrevemos. Mas tampouco pode

se reduzir à construção de um novo conjunto de técnicas ou regras discursivas. Foi no

caminho dessas contradições que esbarramos no método científico como uma importante pista

para uma outra forma de apreensão e compreensão da realidade dada por uma prática como o

jornalismo. Não qualquer método ou, menos ainda, o método tomado na mesma acepção

positivista e fragmentária que a ideologia burguesa atribuiu tanto à ciência quanto ao próprio

jornalismo. Encontramos na dialética materialista, na concepção da realidade como uma

totalidade — que, por ser histórica, está sempre em movimento e submete o caminho do

conhecimento ao processo de desenvolvimento de cada fenômeno particular —, uma das

chaves de leitura também da realidade tratada pelo jornalismo. Porque apesar de atual,

cotidiana e imediata, a realidade do tempo presente — o mundo concreto nosso de cada dia

que o jornal retrata — não deixa de ser histórica, não perde a curva do movimento, não está

fora do todo social.

Na busca por esse caminho alternativo que se traça por dentro do existente, enfrentamos

ao longo de todo o trabalho o risco de cairmos numa abstração sem volta. Imersos também na

ideologia burguesa que ocupa todos os espaços da vida social, o esforço de desvelar as

justificações ideológicas que sustentam a ordem vigente, posicionando-se contra ela no seu

mesmo terreno de atuação, encontra barreiras de todo tipo, a começar pela própria linguagem.

O leitor atento deve ter percebido a quantidade de expressões que, ao longo dessas muitas

páginas, precisaram ser tratadas entre aspas, num esforço de abstrair, para subverter, os

sentidos que nelas estão cristalizados. Assim, como pensar numa nova concepção de notícia

se a própria ideia de notícia traz, em si, as características que a inserem num modelo

adequado à classe dominante? Como propor a superação do modelo de jornalismo por um

verdadeiro método num contexto em que essa palavra denota exatamente a fragmentação e a

especialização que está na base do modelo que aqui tentamos denunciar? Como pensar numa

322

relação orgânica e dialética entre o jornal e a classe, tendo que se referir a essa classe como

um público que, na era da comunicação de massas, nomeia um ente passivo e distante? “(...) a

linguagem é a consciência real, prática (...)”, já sabiam Marx e Engels (2007, p. 34), numa

afirmação que nos sinaliza como o projeto que visa construir uma nova consciência precisa

atuar também na subversão dos códigos, que é parte indissociável do modelo hegemônico de

jornalismo.

Mas dizíamos, parágrafos acima, que o ciclo da imprensa burguesa pressupõe também

que suas práticas se desenvolvam, se promovam e se legitimem em instituições que

respondem aos interesses que ela vocaliza. Portanto, no vértice oposto, nos deparamos

também com a discussão sobre quais instituições podem e devem encarnar as ferramentas de

construção da consciência e da hegemonia da classe trabalhadora. Não empreendemos neste

estudo nenhum esforço de mapear ou nomear entidades e agremiações que pudessem

desempenhar essa função no Brasil. Apenas destacamos a necessidade de que elas se

construam como aparelhos privados de hegemonia, no sentido que o comunista italiano

concebeu o termo, o que significa, por um lado, assumir o trabalho jornalístico como parte de

um empenho de direção política e cultural mas, por outro, reconhecer que a classe

trabalhadora não pode se construir como público, artificial e discursivamente, e sim como

organização social concreta, da qual o jornal é instrumento, nunca um fim em si mesmo.

Assim, o debate teórico e político empreendido nesta pesquisa precisa se complementar

com uma discussão aprofundada sobre as razões pelas quais, passada a atuação do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) entre os anos 1920 e 1960, e apesar da proliferação de veículos

‘independentes’ durante a ditadura empresarial-militar, não se consolidaram no país

experiências de jornais de massa que, mais do que ‘alternativas’, se efetivassem como

instrumentos de disputa de hegemonia, com perfil e atuação anticapitalista e organicidade

social, nos termos que discutimos ao longo deste trabalho. Esse debate, naturalmente, nos

levaria à análise das experiências de imprensa ‘alternativa’ existentes no Brasil hoje, um

cenário em que é possível reconhecer diversas iniciativas autodenominadas “de esquerda” —

considerado o amplo espectro que essa denominação tem adquirido nas particularidades do

contexto nacional —, que se colocam fora do campo de interesses mais específicos da grande

imprensa e desempenham papéis mais ou menos importantes de contrainformação, mas que,

pela discussão que fizemos ao longo de todas estas páginas, requereriam alguns cuidados para

que pudessem ser chamadas de contra-hegemônicas no sentido que aqui tentamos buscar.

Mais do que isso: este trabalho pretende oferecer o pano de fundo para que se possa analisar

323

essas experiências à luz da sua diferenciação em relação ao jornalismo informativo (próprio

da imprensa burguesa), enfocando, inclusive, em que medida elas realmente buscam superar o

caráter ideológico de uma narrativa reificadora das relações sociais existentes, a despeito do

seu discurso mais ou menos crítico.

De forma muito ensaística, nestas considerações finais arriscamos sugerir que o cenário

brasileiro pós-ditadura empresarial-militar é em alguma medida exemplar da diferença que

este trabalho tentou estabelecer entre iniciativas meramente ‘alternativas’ e uma prática

efetivamente contra-hegemônica. Para isso, insistimos na importância de se distinguirem —

nas práticas e nas instituições, no discurso e na organicidade — os projetos e iniciativas que

se arvoram na disputa de hegemonia daqueles que se encerram nos limites críticos da

imprensa pequeno-burguesa, que apesar de ‘alternativa’ ao discurso único produzido pelos

grandes meios massivos, e a despeito do importante trabalho de contrainformação que pode

promover em alguns momentos, está presa no seu próprio horizonte de classe. Aqui, o que

parece estar em questão, como sinalizamos ao longo deste trabalho, é a opção (nem sempre

consciente) entre a flexibilização crítica de um modelo (de jornalismo e de sociedade, com

todas as mediações que essa passagem requer) e a construção das bases de outro, distinto e

antagônico como o são as classes em luta. Afinal, como nos alerta Mattelart, situando no

campo da comunicação o que Marx havia descoberto muito antes97

: “Em última instância, o

projeto pequeno-burguês representa, em si, o projeto burguês de recuperação e diluição da

mudança revolucionária” (1973, p. 178). E completa: “De vanguarda ilustrada do reformismo,

o projeto revolucionário de emancipação da pequena burguesia como tal se transforma um dia

ou outro na retaguarda da revolução proletária e no seu inimigo não intencional” (1973, p.

171).

Recuperando, portanto, a tese central deste trabalho, agora devidamente inserida na

concretude da história, convém ressaltar que, no campo específico da comunicação, as opções

que afastaram da esquerda socialista o projeto de construção de um jornal de massas como

instrumento de disputa de hegemonia, afastaram, no mesmo movimento, o caminho para um

debate que ultrapassasse a crítica simplista ao conteúdo ‘manipulatório’ veiculado pela grande

imprensa. Assim, impuseram barreiras táticas e estruturais às experimentações que poderiam

dar vida à disputa de hegemonia, com toda a precisão teórica e materialidade histórica que o

conceito de Gramsci contém. E, com isso, contribuíram para aprisionar o jornalismo nos

limites críticos de um modelo que carrega, em si, uma intransponível identidade de classe.

97

Ver, por exemplo, ‘O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte’, 2008d.

324

Entre as opções pela ocupação de brechas na imprensa burguesa e a aposta numa guerra de

versões apartada da base social e descolada da realidade concreta, ambos caminhos

claramente presentes na trajetória da ‘esquerda’ democrática, nada nos parece mais

pedagógico para esse alerta do que a história brasileira recente, na comunicação e para além

dela.

325

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1985.

ARANDA, José Javier Sanchez. Evolución de la prensa em los principales países

occidentales. In: BARRERA, Carlos. Historia del periodismo universal. Barcelona, Ariel,

2004.

ARBEX JR., José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela, 2003.

BIEDMA, Patricio. Prensa burguesa, prensa popular y prensa revolucionaria. In:

MATTELART, Armando; BIEDMA, Patricio; FUNES, Santiago. Comunicación masiva y

revolución socialista. Santiago: Ediciones Prensa Latinoamericana S.A., 1971.

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1988.

BUEY, Francisco Fernández. Marx (sem ismos). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO

SOCIAL. Pesquisa brasileira de mídia 2014: hábitos de consumo de mídia pela população

brasileira. Brasília: Secom, 2014.

BRIGGS, Asa e BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutemberg à Internet. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

CANNABRAVA FILHO, Paulo. SIP: Sociedade da Informação Privada. In: Hora do Povo.

Disponível em: http://www.horadopovo.com.br/2012/10Out/3103-26-10-2012/P8/pag8a.htm .

Acesso em 28 de janeiro de 2015.

COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

___________. Introdução. In: GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos vol. 1. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2004b.

____________. Marxismo e política – a dualidade de poderes e outros ensaios. SP: Cortez,

2008.

COUTINHO, Eduardo Granja. A comunicação do oprimido e outros ensaios. Rio de Janeiro,

Mórula, 2014.

_______________. Ecos do golpe no mundo da cultura. In: IASI, Mauro Luis e COUTINHO,

Eduardo Granja (orgs.). Ecos do golpe: a resistência da ditadura 50 anos depois. Rio de

Janeiro: Mórula, 2014b.

DARNTON, Robert. Introdução. In: Revolução impressa: a imprensa na França 1775-1800.

São Paulo: EdUSP, 1996.

DIAS, Edmundo. O outro Gramsci. São Paulo: Xamã, 1996.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

326

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial e Editora Unesp, 1997.

EMERY. E. História da imprensa nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Lidador, 1965.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação

sociológica. São Paulo, Globo, 2005.

FERREIRA, Wilson Roberto Vieira e TEIXEIRA, Ana Paula de Moraes. Agenda Setting. In:

MARCONDES FILHO, Ciro. Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009.

FOLHA DE SÃO PAULO. Projeto Folha. São Paulo: 1984.

FONTES, Virgínia. “Intelectuais e mídia – quem dita a pauta?”, In: COUTINHO, Eduardo

Granja (Org.). Comunicação e contra-hegemonia. RJ: Ed. UFRJ, 2008. p. 145-162.

_______________. O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e História. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, 2010.

FRIAS FILHO, Otavio. Vampiros de papel. In: Folha de São Paulo, Folhetim, 5 de agosto de

1984.

FULLER, Jack. Valores periodisticos: ideas para la era de la información. Miami: Sociedade

Interamericana de Prensa, 2000.

GENRO FILHO. Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo.

Porto Alegre: Tchê!, 1987.

GIANNOTTI, Vito. Comunicação dos trabalhadores e hegemonia. São Paulo: Fundação

Perseu Abramo e Núcleo Piratininga de Comunicação, 2014.

GINDRE, Gustavo. Ranking dos maiores grupos de comunicação do Brasil. In: Observatório

da Imprensa, edição 761, 27/08/2013. Disponível em

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed761_ranking_dos_maiores_grupos

_de_comunicacao_do_brasil. Acesso em 28 de janeiro de 2015.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2004.

________________. Cadernos do Cárcere vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2006.

________________. Cadernos do Cárcere vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2007.

________________. Cartas do Cárcere vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

________________. Escritos Políticos vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004b.

________________. Escritos Políticos vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004c.

327

________________. Os jornais e os operários. Disponível em

http://www.marxists.org/portugues/gramsci/1916/mes/jornais.htm. Acesso em 28 de janeiro

de 2015.

GRUPO GLOBO. Princípios editoriais do Grupo Globo. Rio de Janeiro, 2011. Disponível

em http://g1.globo.com/principios-editoriais-do-grupo-globo.html#principios-editoriais.

GUILLAMET, Jaume. De las gacetas Del siglo XVII a La libertad de imprenta Del XIX. In:

BARRERA, Carlos. Historia del periodismo universal. Barcelona, Ariel, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro, Tempo

Brasileiro, 2003.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

IASI, Mauro. Alienação e ideologia: a carne real das abstrações ideais. In: Del Roio, Marcos

(org.). Marx e a dialética as sociedade civil. Marília: Cultura Acadêmica, 2014..

___________. As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o

consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

___________. Estado, ditadura e permanências: sobre a forma política. In: IASI, Mauro Luis

e COUTINHO, Eduardo Granja (orgs.). Ecos do golpe: a resistência da ditadura 50 anos

depois. Rio de Janeiro: Mórula, 2014b.

___________. Reflexão sobre o processo de consciência. In: Ensaios sobre consciência e

emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

KOFLER, Leo. História e dialética: Estudos sobre a metodologia da dialética marxista. Rio

de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.

KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

___________. Os intelectuais. In: MELO, José Marques de. Comunicação e transição

democrática. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.

__________ e GUTERMAN, Norbert. Introdução. In: LENIN, V. I. Cadernos sobre a

dialética de Hegel. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

LENIN, V. I. O imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Centauro Editora,

2008.

__________. Que fazer? São Paulo: Editorial Stampa, 1975a.

__________. Sobre a imprensa e a literatura. São Paulo: Editorial Stampa, 1975 b.

328

LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

LIMA, Venício de. Liberdade de expressão x liberdade de imprensa: direito à comunicação e

democracia. São Paulo, Publisher, 2010.

______________. Nada de novo na SIP. In: Teoria e Debate, edição 106, novembro de 2012.

LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e

positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2009.

LUKÁCS, Georg. A decadência ideológica e as condições gerais da pesquisa científica. In:

NETTO, J.P. Lukács: sociologia. São Paulo: Ática, 1981.

_____________. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

_____________. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1968.

_____________. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,

2007.

_____________. Prefácio. In: Heller, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. Barcelona:

Biblioteca Agnes Heller, 1970.

MACAGGI, José Luis. Manual del periodista. Argentina: Centro Técnico de la Sociedade

Interamericana de Prensa e Comisión Mundial de Libertad de Prensa, 1991.

MAKLOUF, Luís. Já vi esse filme: reportagens (e polêmicas) sobre Lula e o PT (1984-2005).

São Paulo: Geração Editorial, 2005.

MALLETTE, Malcolm F. Manual para periodistas. Miami: Comité Mundial para la libertad

de prensa, 1998.

MARCONDES FILHO, Ciro. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2002.

_______________________. O capital da notícia: jornalismo como produção social da

segunda natureza. São Paulo: Editora Ática, 1986.

MARX, Karl. A miséria da filosofia. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

___________. As lutas de classe na França de 1848 a 1850. In: A revolução antes da

revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

___________. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular,

2008b.

___________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo editorial, 2010.

329

___________. Introdução à crítica da economia política. Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Abril Cultural, 1974.

___________. Liberdade de imprensa. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999.

___________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.

___________. Nova Gazeta Renana. [Apresentação e tradução: Lívia Cotrim]. São

Paulo: Educ, 2010.

___________. O capital. Livro 1. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008c.

___________. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: A revolução antes da revolução. São

Paulo: Expressão Popular, 2008d.

___________ e Engels, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

___________. A sagrada família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

___________. Manifesto do partido comunista. In: BOGO, A. Teoria da organização

política. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

MATTELART, Armand. La comunicación masiva en el proceso de liberación. Cerro del

Aguia: Siglo XXI editores S.A., 1973.

___________. La prensa de izquierda y el poder popular. In: Punto final, n. 128. Santiago:

1971.

___________. Para uma análisis de clase de la comunicación. Introducción à Comunicación

y lucha de classes/1. Buenos Aires: Cooperativa El Río Suena, 2010.

___________ e MATTELART, Michèle. Frentes culturales y movilizacion de masas.

Barcelona: Editorial Anagrama, 1977.

MÉSZAROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

___________. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

___________. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

MORAES, Dênis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na

América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009.

_______________. O imaginário vigiado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

_______________. O jornalista Antonio Gramsci. In: Blog da Boitempo, 27/11/2013.

Disponível em http://blogdaboitempo.com.br/2013/11/27/o-jornalista-antonio-gramsci/.

Acesso em 28 de janeiro de 2015.

MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: o fetiche da velocidade. Rio de

Janeiro: Renan, 2002.

330

_______________. Pensando contra os fatos – Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao

senso crítico. Rio de Janeiro, Revan, 2007.

MUHLMANN, Géraldine. Marx, o jornalismo, o espaço público. In: NOVAES, Adauto

(org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

NETTO, José Paulo (org.). Introdução ao estudo do método em Marx. São Paulo: Expressão

Popular, 2011.

_______________. O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

_______________. Para a crítica da vida cotidiana. In: NETTO, José Paulo; CARVALHO,

Maria do Carmo Brant. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo, Cortez, 2010.

_______________. Entrevista. In: Trabalho, Educação e Saúde, vol. 9, n. 2. Rio de Janeiro:

jul/out 2011.

NEVEU, Érik. Sociologia do jornalismo. São Paulo, Edições Loyola, 2006.

PARK, Robert. A notícia como forma de conhecimento: um capítulo dentro da sociologia do

conhecimento. In: A era glacial do jornalismo: teorias sociais da imprensa. Porto Alegre:

Sulina, 2008.

PERUZZO, Cicilia M. R. Conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária

revisitados. Reelaborações no setor. In: Palabra Clave vol.11 no.2 Chia July/Dec. 2008

POPPER, KARL. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São

Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

POPKIN, Jeremy. D. Jornais: a nova face das notícias. In: Revolução impressa: a imprensa

na França 1775-1800. São Paulo: EdUSP, 1996.

ROCHE, Daniel. A censura e a indústria editorial. In: Revolução impressa: a imprensa na

França 1775-1800. São Paulo: EdUSP, 1996.

RON, Yaifred. Los amos de la SIP. Caracas: Ministerio Del Poder Popular para La

Comunicación y La información, 2008.

ROUANET, Sergio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras,

2003.

SALES, Jean Rodrigues. Partido Comunista do Brasil: definições ideológicas e trajetória

política, In: REIS, Daniel Aarão & RIDENTI, Marcelo (orgs.). História do marxismo no

Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2007. pp. 63-104. (vol. 6).

SCARSO, Aline. Greve nos Correios: trabalhadores lutam por ganhos reais nos salários. In:

Brasil de Fato, ed. 343, de 24 a 30 de setembro de 2009. Disponível em

http://www.brasildefato.com.br/capas?page=19.

SILVA, Carla e CALIL, Gilberto. Apontamentos para uma política de comunicação contra-

hegemônica. In: Revista Espaço Acadêmico, nº 37, junho de 2004.

331

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, Mauad, 1999.

THOMPSON, John. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis:

Vozes, 1995.

TOLEDO, C. N. de. A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução? Crítica

Marxista, Campinas, n. 1, p. 27-38, 1994. Disponível em:

<http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/CM_1.3.pdf>. Acesso em:

10 jul. 2010.

VAISMAN, Ester. A ideologia e sua determinação ontológica. Ensaio n. 17/18. São Paulo:

Editora Ensaio, 1989.

VERA, Ernesto. La perversa historia de la SIP. 2014. Disponível em

http://www.contrainjerencia.com/?p=85616. Acesso em: 9 de fevereiro de 2015.

WEBER, Max. Ensaios sobre a teoria das Ciências Sociais. São Paulo: Centauro Editora,

2008.

WOOD, Ellen Meiksins. O que é a agenda “pós-moderna”? In: WOOD, Ellen Meiksins e

FOSTER, John Bellamy. Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

ZINET, Caio. A face sedutora do império. In: Caros Amigos, Ed. 191, fev. 2013. Disponível

em http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/218-revista/edicao-191/3040-

fundacao-ford-a-face-sedutora-do-imperio.