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m grupo anima- do, dando garg a- lhadas, ao lado de 37 covas abertas no Caju. A cena pode parecer, no mínimo, bizarra, mas a diversão diante da morte alheia é uma das formas encon- tradas por jornalistas que enfrentam diariamente a violên- cia do Rio. Situações como o enterro de um menino de sete anos, vítima de uma bala perdi- da da guerra entre traficantes e policiais, ou a rebelião na Casa de Custódia de Benfica, que resul- tou na morte de trinta detentos, passam a ser banalizadas por esses profissionais. Bruno Menezes, repórter poli- cial do jornal O Dia desde fe- vereiro de 2003, é um dos jorna- listas que foram ao Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, para noticiar o enterro dos presos mor- tos na rebelião de Benfica. Coin- cidentemente, os profissionais das equipes de rádio, TV e jornal somavam 37, o mesmo número de covas abertas. Como os corpos não chegavam ao local, eles não hesitaram em brincar com a situ- ação. – Lembro-me de ter gargalhado várias vezes dentro do cemitério. Fazer o quê? A pessoa morreu e não é da sua família. Ainda mais no Caju, que tinha 37 covas, nós éramos 37 e nenhum morto apa- receu naquele dia. Ficamos dizen- do que íamos deitar nós mesmos para tirar uma foto só com os pés para fora da sepultura. Acabamos fazendo uma fotografia, mas de pé – conta Bruno, 22. Segundo ele, a banalização da morte é inevitável para que os jornalistas da editoria de polícia continuem a trabalhar normal- mente: – Se o repórter se preocupar com esse tipo de situação, não consegue fazer mais nada – explica o jovem repórter, forma- do há um ano e meio pela Uni- versidade Estácio de Sá. Com apenas um mês de jornal, Bruno cobriu seu primeiro enter- ro: o da aposentada Aury Maria do Canto, 70, que morreu no incêndio de um ônibus em Bo- tafogo, depois de um ataque a mando do traficante Fernan- dinho Beira-Mar. – O fotógrafo que estava comi- go falou gracinhas para a neta dela! A menina respondeu que sua avó era a morta. Ele se justi- ficou dizendo que fotografava en- terros todos os dias. Nessa hora, já estava com vontade de botar a JOANA DALE, MARIA LINDENBERG E RODRIGO COSTA PEREIRA Jornalistas da morte A indesejada das gentes 29 Repórteres de jornais cariocas vivem a banalização da morte no dia a dia da cidade “Presunto era a forma como todos no O Povo se referiam aos mortos e acabei adquirindo a gíria que, no fundo, acho de mau gosto” Florença Mazza Jornalistas no Caju à espera de cadáveres

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m grupo anima-do, dando garg a-lhadas, ao lado de37 covas abertas no

Caju. A cena podeparecer, no mínimo, bizarra, masa diversão diante da mort ealheia é uma das formas encon-tradas por jornalistas queenfrentam diariamente a violên-cia do Rio. Situações como oenterro de um menino de seteanos, vítima de uma bala perdi-da da guerra entre traficantes epoliciais, ou a rebelião na Casade Custódia de Benfica, que resul-tou na morte de trinta detentos,passam a ser banalizadas poresses profissionais.

Bruno Menezes, repórter poli-cial do jornal O Dia desde fe-vereiro de 2003, é um dos jorna-listas que foram ao Cemitério SãoFrancisco Xavier, no Caju, paranoticiar o enterro dos presos mor-tos na rebelião de Benfica. Coin-cidentemente, os pro f i s s i o n a i sdas equipes de rádio, TV e jornalsomavam 37, o mesmo númerode covas abertas. Como os corposnão chegavam ao local, eles nãohesitaram em brincar com a situ-ação.

– Lembro-me de ter garg a l h a d ovárias vezes dentro do cemitério.Fazer o quê? A pessoa morreu enão é da sua família. Ainda mais

no Caju, que tinha 37 covas, nóséramos 37 e nenhum morto apa-receu naquele dia. Ficamos dizen-do que íamos deitar nós mesmospara tirar uma foto só com os péspara fora da sepultura. Acabamosfazendo uma fotografia, mas depé – conta Bruno, 22.

Segundo ele, a banalização damorte é inevitável para que os

jornalistas da editoria de políciacontinuem a trabalhar normal-mente:

– Se o repórter se preocuparcom esse tipo de situação, nãoconsegue fazer mais nada –explica o jovem repórter, forma-do há um ano e meio pela Uni-versidade Estácio de Sá.

Com apenas um mês de jornal,Bruno cobriu seu primeiro enter-ro: o da aposentada Aury Mariado Canto, 70, que morreu noincêndio de um ônibus em Bo-tafogo, depois de um ataque amando do traficante Fern a n-dinho Beira-Mar.

– O fotógrafo que estava comi-go falou gracinhas para a netadela! A menina respondeu quesua avó era a morta. Ele se justi-ficou dizendo que fotografava en-terros todos os dias. Nessa hora,já estava com vontade de botar a

JOANA DALE, MARIA LINDENBERG E RODRIGO COSTA PEREIRA

Jornalistas da morte

A indesejada das gentes29

Repórteres de jornais cariocas vivem a banalizaçãoda morte no dia a dia da cidade

“Presunto era aforma como todos no

O Povo se referiamaos mortos e acabeiadquirindo a gíria

que, no fundo, achode mau gosto”

Florença Mazza

Jornalistas no Caju à espera de cadáveres

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minha cara dentro do caixão, detanta vergonha. Depois do expe-diente eu e o fotógrafo acabamosrindo da história enquanto tomá-vamos uma cerveja no bar – rela-ta Bruno.

Os jornalistas referem-se aosmortos como presuntos

O re p ó rter viveu dezenas decasos como este e foi apre n d e n d ocom as novas situações – e com oscolegas mais experientes – a tratara morte com indiferença. É o ca-minho natural de jornalistas quetrabalham na editoria de Cidadeou Polícia. Florença Mazza, 24,ex-estagiária do jornal O Povo eque hoje trabalha no Jornal doBrasil, aprendeu a se referir aosm o rtos como “pre s u n t o s ” .

– Esse é um termo bastante uti-lizado por quem trabalha comj o rnalismo policial, o que nãodeixa de ser um reflexo da bana-lização da morte para quem estáacostumado a lidar com ela nodia a dia. “Presunto” era a form acomo todos no O Povo se re f e r i a maos mortos e acabei adquirindo agíria que, no fundo, acho de maugosto – diz Florença, que se for-mou em 2002 pela UniverCidade.

A primeira vez que Florença

enfrentou a morte a trabalho foiem um plantão de sábado. Foiuma experiência chocante: a jor-nalista teve que escrever sobredois corpos carbonizados dentrode um carro no Rio Comprido. Nolocal, o repórter fotográfico que aacompanhava chegou a sugerirque ela ficasse dentro do carro,mas, por acreditar que boa partedo trabalho do jornalista está jus-tamente na observação, Florençaencarou a cena.

– Confesso que fiquei assustada.Não só pelos cadáveres que teriade ver, mas também por não saberexatamente como pro c e d e r, o quep e rg u n t a r. Não sabia se manteriaequilíbrio suficiente para apurarbem a matéria. Concentrei-me naapuração e reagi, até certo ponto,tranqüilamente. Lembro que a-quela imagem ficou por muitotempo na minha cabeça. Espe-cialmente o cheiro, de carne quei-mada, que não conseguia esque-c e r. Naquele dia, quando chegueiem casa, lavei toda a roupa, oscabelos, mas o cheiro não saía.P a recia estar impregnado em mim– lembra a re p ó rt e r.

Florença não sabe exatamentequando passou a se acostumarcom esse cotidiano. Uns casos a

chocavam mais, outros menos,até que um dia ela se deu contade que já tinha banalizado amorte dos personagens de suasmatérias:

– Estava cobrindo o velório deum pastor evangélico que foimorto por um policial. A famíliae os fiéis estavam revoltados coma morte. O jornal me enviou cedopara São Gonçalo e acompanheitudo. Cerca de duas horas depois,me peguei pensando:

– Esta história já está começan-do a demorar demais. Podiame n t e rrar logo este corpo parapoder voltar ao jornal, almoçar ebater a minha matéria.

Depois me dei conta do absur-do que estava pensando. As pes-soas tinham acabado de perderum ente querido e eu pensandono almoço!- confessa.

Psicóloga afirma que abanalização da morte porjornalistas é natural

A psicóloga Carmem Nabucolembra que cobrir uma guerrae n t re traficantes, no Rio deJaneiro, é expor a vida. Assimcomo os policiais cada vez maisfazem incursões nos morros embusca de criminosos e de seusarsenais. São situações tão cor-riqueiras que já não causamcalafrios nesses profissionais. Amorte é vista como fruto de umasituação de trabalho.

– Os jornalistas lidam com amorte de forma tranqüila e semtraumas, pois já incorporaramestes fatos à inerência do traba-lho. Isso pode causar surpresapara quem vê essa situação defora, mas eles não só convivemcomo estão expostos a isso. A

Julho/Dezembro 200430

“As pessoas nafavela já encaram amorte de um parenteou vizinho como umfato normal de seu

cotidiano”Bruno Menezes

Como noticiar sem invadir a dor alheia?

André Lobo

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profissão faz com que o jornalistacoloque sua vida nas mãos dasorte – afirma a psicóloga.

Morte também é encaradacom naturalidade em comu-nidades carentes

No território dominado pelostraficantes, onde muitas comu-nidades vivem nos morros cario-cas, também ocorre a banaliza-ção da morte pela própria popu-lação. O repórter Bruno Menezesteve a prova disso no sepulta-mento de um menino de seteanos, atingido por uma bala per-dida num baile de carnaval naVila do Cruzeiro, onde os risosrolaram soltos.

– Um homem enorme subiu emuma cova para ver o enterro,acho que era o fotógrafo de outrojornal, e outras pessoas foramatrás dele. De repente, todo mun-do caiu dentro da cova. Foi tãoengraçada a cena que até a mãedo menino morto riu. A tia delefalou:

– Até no dia do enterro o Vi-tinho faz todo mundo rir.

As pessoas na favela já enca-ram a morte de um parente ouvizinho como um fato normal deseu cotidiano – avalia Bruno.

De acordo com a socióloga ep rofessora da PUC-Rio, Apare c i d aMarinho Abranches, a morte estábanalizada na sociedade cariocadevido à desfuncionalização dasinstituições que deveriam cuidarpara que os valores fossem man-tidos. Na avaliação de Apare c i d a ,o sentimento de respeito emrelação à vida como algo que nãodeva ser violado, a própria so-ciedade produz essa norma vi-gente, mas por outro lado re c l a-

ma instituições que exerçam au-toridade na vigilância.

– Se essa instituição não temprontidão, não é eficiente no quediz respeito à punição dos vio-ladores, então acontece de fatouma corrosão nos valores que aprópria sociedade produz. O queleva as pessoas a verem a mortecomo algo banal é a ineficácia doEstado – analisa a socióloga.

Ela lembra que a Baixada Flu-minense, nos anos 1980, era umlocal muito perigoso, violento. Oscorpos eram desovados ali, as pes-soas acordavam e viam um ca-d á v e r, mas ninguém sabia se teriainvestigação policial, se sechegaria aos criminosos ou se afamília seria avisada. As pessoasnão acompanhavam o processo ea conseqüência disso é uma des-c rença, do tipo “não tem jeito”.

Desafio: manter sensibilidadee razão

F l o rença acredita que mesmodiante de um dia-a-dia escuronuma cidade carente de segurança,os jornalistas não podem perm i t i rque a profissão os transforme em“ m o n s t ros” também porque o

re p ó rter deve pre s e rvar sua sensibi-lidade em equilíbrio com a razão.Para ela, esse é um dos grandesdesafios do jorn a l i s m o .

– Vivemos de ouvir as pessoas, ahistória de cada um e, para re p ro-duzi-las, é fundamental que te-nhamos sensibilidade. Quandofaço uma matéria, mantenho umdistanciamento de tudo o que estáacontecendo, mas é preciso, acimade tudo, lembrar que você estáfalando com seres humanos queestão passando por um momentodifícil – afirma Flore n ç a.

Os jornalistas mais calejadosainda se chocam diante de cenash o rríveis, como um corpo sendoc a rregado no carrinho de mão porpoliciais nas ladeiras da Rocinhae parentes gritando atrás, ou umamãe desesperada sentada notapume manchado com o sanguedo filho atingido por uma balap e rdida no Pavão-Pavãozinho.Mesmo sabendo que esses fatosrendem manchetes em primeiraspáginas no dia seguinte.

– Luto bastante para nãoperder a capacidade de me indig-nar com os fatos – conclui BrunoMenezes.

A indesejada das gentes 31

A publicação de fotos como essa na primeira página gera polêmica entre editore s

JP. Engelbrecht