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Helena Águas José Águas, o Meu Pai Herói

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Helena Águas

José Águas, o Meu Pai Herói

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© 2011, Helena Águase Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda.

uma empresa do grupo LeYaRua Cidade de Córdova, 2

2610-038 AlfragideTel.: 21 041 74 10, Fax: 21 471 77 37E-mail: [email protected]

Título: José Águas, o Meu Pai HeróiAutoria: Helena ÁguasRevisão: Rui Peyroteo

Composição: Segundo Capítuloem caracteres Sabon, corpo 12

Capa: Margarida Rolo / Oficina do LivroImpressão e acabamento: Rolo & Filhos II, S. A. – Indústrias Gráficas

1.a edição: Junho de 2011

ISBN: 978-989-555-545-1Depósito legal n.o 327 228/11

por vontade expressa da autora, o livro respeita a ortografia anterior ao actual acordo ortográfico.

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À memória de minha mãe, Maria Helena.

À minha filha, Sara,e aos meus sobrinhos,

Filipa, André, Mariana, Guilherme, Martim, Afonso e Leonor,

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Arqueologia do fundo do coração

Quando subitamente no Verão passado a Maria João Lourenço me convidou para escrever um livro sobre o meu pai, José Águas, abri as gavetas onde os álbuns de recor-tes feitos pela minha mãe entre 1950 e 1963 aguardavam desde então, e fui em busca do Portugal dos anos 50, onde, vindo da «longínqua e fecunda» Angola, o meu pai aterrara aos 20 anos, para vir jogar no Benfica. Em mil artigos, entrevistas, comentários, fotografias, e também nas cartas, foi graças ao amoroso trabalho feito pela minha mãe que redescobri o meu querido pai, numa Lisboa de eléctri-cos, num Portugal sem televisão, onde o cinema era parte integrante da vida dos namorados e o rock and roll fazia esquecer a Segunda Grande Guerra.

Numa arqueologia do coração, viajei no tempo durante os últimos meses, desenterrando raízes, colando pequenos cacos, soprando o pó de minúsculas pedras, muitas delas preciosas, com a alegria de poder trazer à luz do presente variadas cenas, lugares e personalidades valorosas da his-tória do futebol português antes de Eusébio. Apaixonei -me pela amizade e solidariedade constante entre jogadores de clubes rivais. Que lição de humanidade, de nobreza, que exemplo para todos os adeptos neste tempo presente

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HELENA ÁGUAS

atribulado e tão pouco pacífico! Gostava que este livro aju-dasse a apaziguar os ânimos, agora que passaram 50 anos sobre a primeira Taça dos Campeões Europeus ganha pelo Benfica, em 1961, a tal magnífica taça retratada na mais famosa fotografia de sempre do futebol português, que foi erguida pelo meu querido pai, o «melhor avançado -centro do mundo!», nas palavras do seu companheiro de equipa Mário João.

Prefiro dizer que compus este livro, pois não fui eu quem o escreveu. Ele pertence por direito a todos os jor-nalistas e fotógrafos da imprensa desportiva da altura… e tantos houve que ficaram anónimos nos recortes! Quero também aqui deixar a minha homenagem a todos os joga-dores que não consegui incluir neste trabalho, e estou a lembrar -me em particular do guarda -redes do Belenenses e da Selecção Nacional, Sério, a quem o meu pai causou um traumatismo craniano numa jogada que não correu lá muito bem, apesar de leal! – como ficou depois provado após acesa discussão e análise feita pelos peritos da época.

Agradeço ao meu querido amigo Pedro F. Ferreira todo o seu apoio. Uma vénia pela tua paixão pelo Benfica!

Agradeço ao Rui Tovar, pai e filho, com todo o res-peito pela vossa paixão pelo Sporting, e uma grande vénia à vossa dedicada leoa Maria João, a minha cuidadosa, maternal e muito paciente editora.

Às famílias de todos os jogadores de futebol, um abraço do tamanho do glorioso clube do meu coração.

Primavera de 2011Helena Maria Águas,

num Oeste de pintassilgos e andorinhas

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Há mais de trinta anos que não assisto a um jogo de futebol. Não conheço os estádios novos, vejo, às vezes, um bocadinho na televisão. Mas entre os dez e os vinte e poucos anos não falhava um jogo do Benfica. E não falhei enquanto Águas jogou. Claro que não era apenas Águas: era Costa Pereira, Germano, Ângelo, Simões, Eusébio, Cavém, o grande Mário Esteves Coluna que Otto Glória considerava o melhor jogador português, outros mais artis-tas do que jogadores, como José Augusto, por exemplo, a todos estou grato pela beleza e a alegria que me deram, porém nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio? Era a elegância, a inteligência, a inte-gridade, o talento, e ao pensar em escrever o meu desejo era ser o Águas da literatura. Vi Pelé, Didi, Nílton San-tos, Puskas, Di Stéfano, Santamaría, tantos outros génios, no tempo em que o futebol não era ainda uma indústria nem os jogadores funcionários competentes, comandados por esse horror a que chamam técnicos: era pura criação, uma actividade eufórica, uma magia cinzelada, uma nas-cente de prazer, uma inspiração, um entusiasmo. Águas foi tudo isso e, muito novo, ganhou o respeito dos colegas,

O Senhor Águaspor António Lobo Antunes

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dos adversários, dos jornalistas da época, que os havia de grande qualidade, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, tantos outros. Não jogava futebol: criava futebol, respirava futebol, inventava futebol, e teria sido um privilégio para mim conhecê-lo. Não para falar com ele, para o ouvir. A sua beleza física invulgar distin-guia-o de todos os outros, a forma de se mover em campo era única, a autoridade sobre os companheiros natural e humilde. Os miúdos que iam comigo à bola chamavam-lhe senhor Águas, sem sonharem que era desse modo que Simões e Eusébio o tratavam, como tratavam Coluna. Senhor Águas, senhor Coluna. Reconhecíamo-lo, do alto do terceiro anel, no estádio de então, onde, de tão longe, os jogadores minúsculos, pelo modo de correr, se deslocar no campo, passar, rematar, reconhecíamo-lo pelos seus golpes de cabeça, inimitáveis, pelo sentido da ocupação do espaço, pela simplificada geometria do seu futebol. Não tinha a garra de Ângelo ou Cavém, a força de Coluna, o gigantesco talento de Eusébio, o poder de drible de Simões, a velocidade de José Augusto: era uma espécie de rei sereno e eficaz, um aristocrata perfeito. Até a andar os olhos ficavam presos nele, na harmonia dos gestos, no modo de ajeitar a bola, e eu, criança de dez anos ou adolescente de quinze, pensava: tenho de trabalhar mais esta página, ainda não chego aos calcanhares de José Águas. Escrever como ele jogava, com a mesma subtileza e a mesma efi-cácia. Escrever como a equipa do Benfica, umas vezes à Ângelo, outras à Germano, outras à Coluna, e finalizar à Águas. Nunca deve ter ouvido falar em mim nem podia adivinhar que um garoto qualquer o tomava não ape-nas como mestre de futebol mas como mestre de escrita.

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JOSÉ ÁGUAS, O MEU PAI HERÓI

Só, mais tarde, certos saxofonistas de jazz, Bird, Coltrane, Webster, Coleman, Hodges, alguns mais, tiveram sobre o meu trabalho influência semelhante. Mas Águas foi o meu primeiro e indisputado professor: escreve como ele joga, meu estúpido, aprende a escrever como ele jogava. Como morava em Benfica, via-o, às vezes, no autocarro do clube e ficava, pasmado de admiração, a fitá-lo. Isto lembra-me o meu irmão Nuno chegando a casa de dedo no ar

− Toquei no Eusébio, toquei no Eusébiocomo, provavelmente, eu o faria, porque na infância e

na adolescência o futebol era, para além de uma aprendiza-gem do mundo, um prazer infinito. A cor dos equipamentos

(o meu amigo Artur Semedo:− Não sou um homem às riscas, sou homem de uma

cor só)a entrada em campo, o hino, tudo isto me exaltava

e fazia feliz. E as vitórias, comemoradas em Benfica com bebedeiras eufóricas. Uma das minhas glórias secretas, confesso-o agora, consiste em ter visto a fotografia do meu pai no balneário do hóquei em patins do Benfica, de ele ter estado no Campeonato da Europa de 1936, em Estu-garda, com vinte ou vinte e um anos, e de brincarmos com uma caixa de lata cheia de medalhas, a que o meu pai não dava importância alguma e eu considerava inestimáveis. Há pouco, a minha mãe

− O que faço eu a isto?exibindo-me uma espécie de troféu ou de placas num

estojo, que alguns anos antes de morrer a Federação de Patinagem lhe entregou, juntamente com outras antigas glórias, e que me recordo de o meu pai, que não saía, ir receber, com satisfação secreta. Mas, claro, eu era só filho

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do Lobo Antunes, não era filho do Águas, e ainda sei medir as distâncias. Portanto, o que vou eu fazer a um campo de futebol se ele já não joga? Seguir os funcionários com-petentes de um negócio? Assistir ao bailado dos técnicos? Ver a fantasia substituída pela sofreguidão, a ambição pela avidez, o amor ao clube pela violência idiota? Claro que continuo a querer que o Benfica ganhe. Claro que sou, como em tudo o resto, parcial, sectário, por vezes sem bom senso algum. Mas há séculos que não sofro com as derrotas e, sobretudo, não choro lágrimas sinceras com elas: estou--me nas tintas. Contudo, voltaria a trotar, radiante, para assistir à entrada em campo de Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz, José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna e Simões, a agradecer-lhes o facto de me terem, durante anos e anos, colorido a existência. E talvez no fim do jogo, postado junto ao autocarro, quando os jogadores saíssem do balneário, o senhor Águas me aper-tasse a mão.

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O charme discreto do avançado

O meu pai nasceu em Luanda no dia 9 de Novembro de 1930, filho de Elisa da Conceição Pinto, nascida no Porto, e de Raúl António Águas, natural de Lisboa. Foi registado na freguesia de Nossa Senhora do Carmo com o nome de José Pinto de Carvalho Santos Águas, mas para todos era o Zeca.

A família morava no Lobito. Numa tarde trágica de Junho de 1934 em que se festejava o aniversário da fábrica de açúcar na Catumbela, onde trabalhava Raúl António Águas, este excedeu -se no esforço despendido no jogo da corda e viria a morrer dias depois com hemorragias inter-nas. Deixou Elisa viúva com cinco filhos pequenos. O Zeca tinha três anos e meio de idade e cedo começou a sentir -se e a dizer -se «o pouca xote»…

Elisa foi trabalhar na lavagem da roupa dos navios que ancoravam no porto do Lobito, próximo de casa. A pouco e pouco, com a ajuda das colaboradoras afri-canas, o negócio foi crescendo. Era «uma boa casa, onde se recebiam hóspedes e se serviam refeições», disse -me o primo Diamantino, filho da tia Maria. Maria do Pilar, de seu nome, era a irmã mais velha do meu pai; a seguir, na linha de descendência, Raúl António; depois Aníbal,

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vítima de meningite aos 14 anos. «Jogava muito melhor do que eu!», dizia o meu pai, que nasceu dois anos depois. Três meses antes da tragédia viera ao mundo Leonor de Fátima; poucos anos mais tarde, fruto de uma breve rela-ção, nascia Maria de Lurdes. Elisa viria a morrer em 1948, aos 53 anos, de coração cansado. Aos 17 anos, o meu pai «vira» já morrer o seu pai, o irmão mais próximo e a mãe.

Já em Lisboa, o Zeca contava a sua vida: «Perdi o meu pai muito cedo, tinha eu três anos e meio. Chamava -se Raúl António Águas e era pugilista amador, mas dos bons, pois dizem -me que se batia, e bem, com estrangeiros.» «Era forte, dos pesados», enquanto o meu pai sempre foi «franzino, embora rijo». E toda a sua inclinação era para correr, saltar e jogar à bola na praia, tanto futebol como voleibol. Também se revelou praticante exímio de pingue--pongue. Anos mais tarde, em Lisboa, vendo -o jogar na secretaria do Benfica, Oliveira Ramos, responsável pela secção de pingue -pongue, convidou -o. Aprendi em miúda a jogar com ele, na sala de jogos da antiga sede, na Avenida Gomes Pereira, em Benfica.

Aos 15 anos, para ajudar a mãe e começar a ter um pouco de independência, o Zeca empregou -se como dactilógrafo no Serviço Ford da Robert Hudson & Sons, Ltd., uma firma comercial do Lobito, que negociava vários artigos, entre os quais automóveis, e passou a jogar futebol pelo grupo da casa. O Lusitano do Lobito, onde jogava o irmão Raúl, cedo começou a andar atrás dele. «Mas a minha mãe, receosa da minha aparentemente fraca compleição física, não me deixava jogar senão pela casa, em atenção ao emprego…»,