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Paulo Pedrassoli Júnior JOSÉ VIEIRA BRANDÃO E O VIOLÃO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Música, sob orientação do prof. Turíbio Santos. Rio de Janeiro 2007

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Paulo Pedrassoli Júnior

JOSÉ VIEIRA BRANDÃO

E O VIOLÃO

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Música da Escola de

Música da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como requisito parcial à obtenção

do grau de Mestre em Música, sob

orientação do prof. Turíbio Santos.

Rio de Janeiro

2007

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Pedrassoli Júnior, Paulo.

José Vieira Brandão e o violão / Paulo Pedrassoli Júnior. Rio de Janeiro: UFRJ / EM, 2007.

xiii, 124 f. : il. ; 29,7cm Orientador: Prof. Turíbio Santos Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música, 2007. Referências bibliográficas: f. 99-101. 1. Música. 2. Violão. 3. José Vieira Brandão. 4. Práticas

Interpretativas – Tese. I. Santos, Turíbio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Música, Programa de Pós-graduação em Música. III. Título.

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À minha família.

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AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo eterno apoio.

À Karla e Isadora Bach, fontes de amor e inspiração.

A Marina Lorenzo Fernândez Silva, Cecília Fernandez Conde e Nilda Luiz da

Costa Freitas, pelo inestimável apoio e colaboração, e, especialmente, pelo carinho e

estímulo preciosos.

A Eunice e Fábio Brandão, esposa e filho do inesquecível maestro, pela

generosidade e dedicação com que atenderam aos nossos pedidos.

À equipe de funcionários do Conservatório Brasileiro de Música, pela disposição

em ajudar nesta pesquisa.

À Maria Regina Câmara, por sua colaboração e por seu contagiante otimismo.

Ao Marcelo Verzoni, que sempre incentivou meus estudos.

Ao Turíbio Santos, pela confiança na qualidade deste trabalho.

Ao José D’Assunção Barros, cuja inteligência e cultura são exemplos

motivadores ao estudo.

Aos integrantes da Camerata de Violões do Conservatório de Música, pela

compreensão em relação às faltas e atrasos do diretor musical que quis tornar-se Mestre.

Ao maestro e amigo José Vieira Brandão, pelo exemplo de integridade humana

e arística, e por ter enriquecido o repertório do violão com sua música de altíssima

qualidade e beleza, inspiração e razão de ser deste trabalho.

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“Considero a figura do maestro Vieira Brandão, além de

excepcional músico, um verdadeiro humanista – a alma mais pura e

transparente que já conheci.”

Marina Helena Lorenzo Fernândez Silva

Presidente da Sociedade Mantenedora do

Conservatório Brasileiro de Música e filha

do compositor Oscar Lorenzo Fernândez.

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RESUMO

PEDRASSOLI JÚNIOR, Paulo. José Vieira Brandão e o violão. Orientador: Turíbio Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / EM, 2007. Dissertação (Mestrado em Práticas Interpretativas: Violão)

Estudo da obra para violão de José Vieira Brandão. Pesquisa de caráter exploratório baseada no levantamento de dados e fontes primárias, com objetivo de criar e difundir o catálogo de obras para violão deste importante compositor brasileiro. Apreciação das obras localizadas sob o prisma da execução musical, sem deixar de lado aspectos relevantes de interesse musicológico, o que inclui sugestões de revisão dos manuscritos. Em anexos, encontra-se disponível uma edição impressa das peças para violão solo, confeccionada sob o critério de autenticidade em relação ao texto musical dos originais autógrafos. Fez-se necessário, no primeiro capítulo, contextualizar histórica e esteticamente o legado de José Vieira Brandão e sua relevância para a música brasileira - como pianista, compositor, regente e educador musical –, visando melhor compreender a importância de sua contribuição para o repertório violonístico brasileiro e mundial.

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ABSTRACT

PEDRASSOLI JÚNIOR, Paulo. José Vieira Brandão e o violão. Orientador: Turíbio Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / EM, 2007. Dissertação (Mestrado em Práticas Interpretativas: Violão)

This study and exploratory research, based on the data-collecting and primary sources of Jose Vieira Brandão’s works for guitar, aims at starting and spreading out the catalog of classical guitar music of this important and genuine Brazilian composer. We appreciate his work not only under the light of the musical performance itself, we consider as well the significant theoretical musicological interest, such as the submission of his manuscripts for review. Available in annex an edition of pieces for solo guitar printed under the criteria of the genuine autographed musical text. In the first chapter, to grasp the importance of José Vieira Brandão’s contribution to the international and Brazilian guitar repertoire, it was necessary to contextualize historically and aesthetically his legacy and relevance to the Brazilian music - as pianist, composer, conductor and musical educator.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura n. 1 – ‘Valsa’, compassos 1 – 14. ........................................................ 52 Figura n. 2 – cópia do manuscrito de ‘Prequeté’, página 1. ............................ 53 Figura n. 3 – cópia do manuscrito de ‘Prequeté’, página 1, detalhe. .............. 54 Figura n. 4 – cópia do manuscrito de 1970 de ‘Prequeté’, página 1. .............. 55 Figura n. 5 – ‘Prequeté’, compassos 1 – 7. ..................................................... 56 Figura n. 6 – ‘Prequeté’, compassos 1 – 7, revisados por nós. ....................... 57 Figura n. 7 – ‘Canção do adeus’, compassos 1 – 8. ........................................ 60 Figura n. 8 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 1 - 4. ............................................... 63 Figura n. 9 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 11 - 18. ........................................... 63 Figura n. 10 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 37 - 42. ......................................... 64 Figura n. 11 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 84 - 87. ......................................... 64 Figura n. 12 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 96 - 106. ....................................... 65 Figura n. 13 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 110 - 115. ..................................... 66 Figura n. 14 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 1 – 9. ... 68 Figura n. 15 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 19 – 24. 69 Figura n. 16 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 26 – 36. 71 Figura n. 17 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 26 – 35.

Trecho revisado por nós. ......................................................... 72 Figura n. 18 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 1 – 11. ... 73 Figura n. 19 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 17 – 24. 73 Figura n. 20 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 33 – 49. 74 Figura n. 21 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 49 - 58. 75 Figura n. 22 – ‘Suite para violão’, terceiro movimento, compassos 1 - 16. .. 77 Figura n. 23 – ‘Suite para violão’, terceiro movimento, compassos 17 - 25. 78 Figura n. 24 – ‘Suite para violão’, terceiro movimento, compassos 39 - 47. 79 Figura n. 25 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 1 - 16. ............................ 82 Figura n. 26 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 48 – 55. ......................... 83 Figura n. 27 – ‘Valsa de Antigamente’, compasso 52. Revisado por nós. ..... 84 Figura n. 28 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 25 - 31. .......................... 85 Figura n. 29 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 80 - 83. .......................... 87 Figura n. 30 – ‘Nazaretiando’, cópia da primeira página do manuscrito. ...... 89 Figura n. 31 – ‘Nazaretiando’, cópia da quarta página do manuscrito,

compassos 16 - 19. ................................................................. 90

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LISTA DE SIGLAS ABM – Academia Brasileira de Música

CBM – Conservatório Brasileiro de Música

FUNARTE – Fundação Nacional de Arte

MEC – Ministério da Educação e Cultura

SEMA – Superintendência de Educação Musical e Artística

SEMA - Serviço de Educação Musical e Artística do Departamento de Educação

Complementar

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

USS – Universidade Severino Sombra (Vassouras)

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LISTA DE ANEXOS

ANEXO A – Partitura impressa de ‘Valsa’ (1963) ............................................ 102

ANEXO B – Partitura impressa de ‘Mosaico n.1’ (1984) .................................. 104

ANEXO C – Partitura impressa de ‘Suite para Violão’ (1987) ......................... 111

ANEXO D – Versão revisada, em Mi menor, do segundo movimento

da ‘Suite para Violão’ (1987) ....................................................... 118

ANEXO E – Partitura impressa de ‘Valsa de Antigamente’ (1988) .................. 121

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ........................................................................... ix

LISTA DE SIGLAS ........................................................................................ x

LISTA DE ANEXOS ...................................................................................... xi

INTRODUÇÃO........................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 - Um artista em múltipla atuação................................. 8

1.1 O pianista........................................................................................ 8

1.2 O compositor................................................................................... 17

1.3 O regente e educador musical......................................................... 41

CAPÍTULO 2 – O violão na obra de José Vieira Brandão................. 47

2.1 As transcrições pianísticas............................................................. 49

2.2 ‘Valsa’ - A primeira composição original..................................... 51

2.3 A versão para violão do acompanhamento de ‘Prequeté’............. 53

2.4 ‘Estudo para violão’...................................................................... 59

2.5 ‘Música para violão’..................................................................... 59

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2.6 ‘Canção do adeus’ – para violão e coro........................................ 59

2.7 ‘Mosaico n. 1’ – interesse renovado nos anos oitenta.................. 61

2.8 ‘Suíte para violão’......................................................................... 67

2.9 ‘Valsa de Antigamente’................................................................ 80

2.10 ‘Nazaretiando’ – o último sopro................................................. 87

CAPÍTULO 3 – Catálogo das obras para violão de José

Vieira Brandão ........................................................... 92

3.1 OBRAS PARA VIOLÃO SOLO................................................... 93

3.2 OBRAS PARA VIOLÃO EM OUTRAS FORMAÇÕES

INSTRUMENTAIS........................................................................ 94

CONCLUSÃO............................................................................................. 95

REFERÊNCIAS ......................................................................................... 99

ANEXOS .................................................................................................... 102

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INTRODUÇÃO

Debruçar atenção sobre temas pouco explorados ou escassamente estudados é algo

que, para além do prazer da descoberta e de se poder trazer à luz certos aspectos de uma

obra que ainda não foi objeto de suficiente estudo e reflexão, é também motivo de algum

orgulho pela contribuição que acreditamos estar prestando àqueles que, futuramente,

possam estar interessados naquilo que hoje é alvo de nossa concentração.

Pretender estudar a obra do compositor, pianista, regente coral e educador musical

José Vieira Brandão focalizando a sua porção mais desconhecida - a produção para violão

solo -, é assumir o risco permanente de explorar novos territórios, onde a escassez de

referências é a tônica principal. Não que José Vieira Brandão seja desconhecido dos

estudiosos, longe disso, e as diversas referências a seu respeito nos mais importantes

léxicos e compêndios dedicados à música brasileira mostram que Brandão gozava de

prestígio e reputação por parte do meio artístico, apesar de ter seu nome mais recentemente

associado à educação musical que à composição.

Uma grande parte das referências pesquisadas aborda preferencialmente aspectos

biográficos de José Vieira Brandão: a infância em Cambuquira, a vinda para o Rio de

Janeiro, o início de carreira como concertista de piano e a aproximação decisiva e definitiva

com Heitor Villa-Lobos - a quem Brandão dedicou inestimável e permanente colaboração,

primeiro como pianista, sendo ele o “intérprete oficial” a quem cabia a responsabilidade de

estrear as composições pianísticas de Villa-Lobos, e, depois, como educador musical,

colaborando com Villa-Lobos no maior projeto de musicalização em massa já realizado no

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Brasil, a partir da década de 30. O Brandão compositor é muitas vezes abordado de forma

superficial, não raro através da citação fria e neutra de algumas de suas obras, com as

respectivas datas de composição. São poucos os autores que se enveredam pelo caminho da

apreciação e análise das obras deixadas por José Vieira Brandão, e, freqüentemente, usam

como objeto preferencial de suas considerações as obras para canto coral, a música de

câmara, as canções, e as peças para instrumento solista - com destaque para o piano. No

entanto, em todas as fontes estudadas, não há referência alguma à obra para violão solo.1 É

como se ela, de fato, não existisse.

É uma incômoda questão, cuja leitura precipitada poderia dar a entender que a obra

para violão de José Vieira Brandão não fosse relevante em comparação à sua produção

pianística, por exemplo, e conseqüentemente, não merecedora de citação. Mas basta a

leitura de alguns compassos para ver cair por terra tão irresponsável suposição, ante a

constatação de que, naquelas peças, estão presentes as qualidades características do

pensamento musical de José Vieira Brandão: a veia lírica, expressa no apego fiel e

duradouro ao tonalismo e a um nacionalismo de sabor romântico; a escrita leve e

transparente, explorando muitas vezes o recurso de sugerir harmonias através do uso de

extensas linhas melódicas sem acompanhamento; a técnica composicional apurada, nunca

sobrepujando, no entanto, a espontaneidade e a fluidez do discurso musical e, por fim, o

fino tecido sonoro e o esmerado acabamento de suas composições.

Por que então essas peças permanecem desconhecidas? 1 Uma única exceção é a dissertação de mestrado de Jane Borges de Oliveira Santos (2003), que trata da biografia documentada de José Vieira Brandão. Nela, a autora menciona a gravação da obra ‘Mosaico n. 1’ pelo violonista Cláudio Tupinambá, bem como a realização de um recital no Conservatório Brasileiro de Música em tributo a Vieira Brandão, pela passagem de um ano de seu falecimento. Neste recital, organizado pelo autor destas palavras, foi executada, pela primeira vez, a integralidade das obras até então conhecidas do maestro para violão solo.

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Na busca das possíveis respostas para essa questão, vamos descobrindo o fio

condutor de nossa investigação. E para compreender a produção violonística de José Vieira

Brandão e sua importância para o repertório de concerto, é necessário antes contextualizar

histórica e esteticamente a obra musical de José Vieira Brandão - seu papel e relevância

para a música brasileira - e, paralelamente, ir construindo um esboço biográfico do pianista,

compositor, regente e educador musical José Vieira Brandão. Numa segunda etapa, a

investigação recai sobre a relação do compositor com o instrumento violão, através do

estudo minucioso de cada uma das peças escritas por Vieira Brandão para este instrumento,

além de considerações sobre a viabilidade de execução das mesmas, já que, como se sabe,

Vieira Brandão era um exímio pianista, mas não tocava o violão.

Este trabalho tem como objetivos, em primeiro lugar, o estabelecimento de um

catálogo verossímil das obras de José Vieira Brandão para violão solo, e para violão em

outras formações instrumentais; em segundo lugar, disponibilizar partituras executáveis das

peças para violão solo, editoradas eletronicamente, porém, fidedignas aos manuscritos

finais do autor; oferecer aos estudiosos uma fonte de pesquisa acerca da produção

violonística de Vieira Brandão, assunto até então não abordado em estudos acadêmicos.

Quanto à metodologia aplicada, optamos pela seqüência de atos que nos pareceu

mais lógica, a começar pela pesquisa nos arquivos do Conservatório Brasileiro de Música -

onde Vieira Brandão trabalhou por boa parte de sua vida - em busca de documentos,

referências bibliográficas e, acima de tudo, indícios da existência de outras obras

violonísticas, além daquelas que conhecíamos. Em seguida, prosseguimos o levantamento

bibliográfico para além das fronteiras do CBM, e quando julgamos ter recolhido material

suficiente, passamos para a segunda etapa, escrita, onde traçamos um esboço biográfico de

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José Vieira Brandão, analisando separadamente a sua atuação como pianista, compositor,

regente e educador musical. Na seção dedicada ao compositor, incluímos uma discussão

estética a fim de ilustrar sua opção pela linguagem tonal, bem como sua identificação com a

vertente nacionalista da música brasileira. Na terceira etapa da pesquisa, listamos todas as

obras escritas para violão – solo, ou em outras formações instrumentais – por José Vieira

Brandão, e dedicamo-nos ao estudo prático das mesmas com finalidade de checar-lhes a

viabilidade instrumental. Isso envolveu pesquisa direta nos arquivos da família do

compositor, que gentilmente nos cedeu cópias dos manuscritos requisitados, bem como

informações importantes para o estabelecimento de uma cronologia verossímil2 da

produção violonística de José Vieira Brandão.

Fatores motivadores desta pesquisa nunca foram escassos, mas talvez o maior deles

tenha sido o desejo de compartilhar com outros violonistas do prazer estético da descoberta

dessas obras de excepcional beleza e qualidade, e para que isso fosse possível, era

necessário disponibilizá-las sob a forma de partituras ao mesmo tempo confiáveis - em

relação ao texto original – e viáveis, do ponto de vista da execução instrumental.

A questão crucial era decidir que tipo de edição seria a mais adequada para alcançar

nossos objetivos. As edições práticas são mais agradáveis ao intérprete, pois

freqüentemente apresentam ajustes no texto musical - realizados por um revisor que

também é instrumentista - a fim de tornar mais natural a execução. O problema é que os

procedimentos de revisão vão progressivamente afastando a partitura editada de seu

original manuscrito, com o inconveniente de nunca sabermos exatamente o que, de fato, foi

2 Encontramos algumas datas contraditórias na versão para voz e violão da canção ‘Prequeté’. O assunto é abordado no segundo capítulo deste trabalho.

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modificado pelo revisor. Não era o que pretendíamos, então, passamos a adotar o critério de

autenticidade para a feitura das edições impressas.

Sempre foi nossa preocupação preservar ao máximo os conteúdos e o estilo gráfico

presente nos manuscritos autógrafos, observando detalhes - como, por exemplo, o

posicionamento dos indicadores dinâmicos e agógicos em relação ao texto musical, ou

mesmo a direção das hastes das figuras rítmicas - e procurando mantê-los tais como o

compositor os imaginou. Com relação à diagramação, tomamos a liberdade de ajustar o

número de compassos por linha, bem como o número de linhas por página, usando critérios

estéticos e funcionais, cujo resultado nem sempre coincide com a diagramação do

manuscrito.

Quanto ao texto musical, a edição mantém integralmente o que aparece nos

autógrafos. Optamos por fazer as sugestões de revisão no interior do trabalho escrito,

deixando a critério do intérprete a sua adoção. Desta forma, preservamos a partitura de

contaminação.

Tivemos que interferir, no entanto, num trecho do primeiro movimento da ‘Suite

para Violão’, onde um erro do compositor impedia a realização de uma partitura

perfeitamente acabada. Neste caso, a edição adquiriu um caráter crítico, pois, ao corrigir o

texto musical equivocado - devolvendo-o às feições originais através do confronto com a

primeira versão da peça, de 1977, para viola solo –, o fez de forma a identificar

precisamente os pontos que sofreram a intervenção do editor, explicitando seus motivos.3

Uma derradeira – mas nem por isso menos importante – motivação é de ordem

particular, e, neste momento, permito-me escrever em primeira pessoa, para falar sobre o 3 Este assunto é amplamente abordado no segundo capítulo deste trabalho.

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José Vieira Brandão que conheci, figura humana excepcionalmente cativante, por sua

inteligência e cultura musical, cuja generosidade sempre me permitiu compartilhar com

naturalidade de suas lembranças sobre importantes fatos e personalidades de nossa história

musical.

Meu primeiro contato com Brandão ocorreu em 1992, após uma apresentação minha

no Salão Leopoldo Miguez, da Escola de Música da UFRJ, por ocasião do XV Panorama

da Música Brasileira Atual. Eu havia acabado de defender a composição ‘Onde Andará

Nicanor’, de Fred Schneiter (violonista e compositor falecido precocemente em 2001)

quando, no espaço onde se poderia imaginar um camarim, fui abordado para cumprimentos

por algumas pessoas. Havia entre elas um senhor alto e claro, de olhos muito azuis, trajado

elegantemente. Seu porte, apesar do peso dos anos que aparentava ter, emanava profunda

dignidade, comum às pessoas que dedicam toda uma vida a uma missão ou a alguma causa

verdadeiramente nobre que conduza toda a trajetória de seus atos. Tecia-me comentários

acerca da obra e de minha interpretação enquanto formava-se em minha mente a certeza de

que ali estava um especialista, alguém que conhecia íntima e profundamente a arte musical.

“É o Vieira Brandão”, confirmou-me um colega. Ele estava lá para assistir à audição de

‘Dança e Seresta’, composição de sua autoria para violino e piano, que foi tocada,

respectivamente, por Ivan Quintana e Inês Rufino.

Alguns anos mais tarde, ingressei no Conservatório Brasileiro de Música e fui

oficialmente apresentado ao maestro José Vieira Brandão, então presidente dessa

instituição. Iniciamos desta forma um relacionamento cordial que se solidificou em

amizade com o decorrer do tempo. Um dia, veio o maestro Brandão falar-me sobre suas

composições para violão e me presenteou com uma cópia dos manuscritos de ‘Mosaico n.1’

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e ‘Suíte para Violão’. Fiquei surpreso ao saber que o compositor de valorosas obras para

piano, grupos de câmara e, especialmente, grupos vocais tinha dedicado uma parte de seu

tempo ao violão, instrumento que carrega até hoje um fardo de antigos preconceitos, muitas

vezes considerado inferior por sua aparente simplicidade, mas que esconde mistérios

insondáveis de quem não lhe tem o domínio. A surpresa transformava-se em maravilha na

medida em que me apercebia da alta qualidade musical e artística daquelas peças, um fino e

delicado tesouro em minhas mãos, cuja beleza e originalidade tornam ainda mais

incompreensível o fato de serem praticamente desconhecidas dos violonistas. Meu

encantamento pelas obras fez-me incluir a ‘Suite para Violão’ no repertório, e tive a

felicidade de poder tocá-la diversas vezes em público, quase sempre com a presença do

compositor, que era um verdadeiro entusiasta. Somente após a morte do maestro - ocorrida

em 2002 - é que fiquei sabendo, através de seu filho, da existência de uma peça ainda

inédita, denominada ‘Valsa de Antigamente’, delicada e encantadora – como pude mais

tarde avaliar -, e que foi estreada por mim no Auditório Lorenzo Fernândez, no Rio de

Janeiro, em 2003.

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CAPÍTULO 1 - Um artista em múltipla atuação

1.1 O pianista

Foi como pianista que José Vieira Brandão despontou no meio musical brasileiro.

Seu talento é atestado por diversos autores. Vasco Mariz (2002, p. 92), em seu livro A

Música Clássica Brasileira, apresenta Brandão como “Virtuoso no piano, compositor

distinto e regente coral com muita experiência”. À tríplice personalidade artística apontada

por Mariz, acrescentaríamos uma quarta: o educador musical. Mas essa faceta só virá

completamente à tona depois da associação definitiva de Brandão com Villa-Lobos. E essa

aproximação, se não foi motivada propriamente pelo excepcional talento pianístico de

Brandão, acabou por fazer do jovem pianista o intérprete preferencial a apresentar em

primeira audição as obras de Villa-Lobos. Mariz continua:

Vieira Brandão f i rmou sua reputação como ar t is ta

consciencioso. Fi lho espir i tual e in térprete of icial de Vil la-

Lobos, nascido em Cambuquira (MG), em 1911, chegou ao Rio

com sete anos e em 1924 já es tava acei to no Inst i tu to Nacional

de Música, onde estudou, entre outros , com Paulo Si lva.

Formou-se br i lhantemente em 1929, com o pr imeiro prêmio de

p iano. Aperfeiçoou-se no Rio com Marguer i te Long. [ . . . ]

Concer t is ta , v is i tou o Brasi l in te iro e apresentou-se nos países

do Prata e nos EUA.

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O ingresso de José Vieira Brandão no Instituto Nacional de Música, aos treze anos

de idade, é descrito com mais detalhes no verbete dedicado a José Vieira Brandão da

Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica, Popular, onde encontramos a

informação de que ele estudou teoria e solfejo com Roberta Gonçalves de Sousa Pinto,

Raimundo da Silva e Alfredo Richard, além de ter cursado contraponto e fuga com Paulo

Silva, e piano com Custódio Fernandes Góis. O período de aperfeiçoamento de estudos

com a pianista francesa Marguerite Long também aparece no verbete:

Diplomado em música e canto orfeônico pelo

Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, do Rio de Janeiro ,

em 1932 aperfeiçoou-se em piano com Marguer i te Long (1978-

1966) . [ . . . ] Como reci ta l is ta , apresentou-se nas pr incipais

c idades brasi le iras , a lém de ter real izado concer tos nos E.U.A.,

Argent ina e Uruguai . Apresentou vár ias obras de Vil la-Lobos em

pr imeira audição, tendo real izado, em 1939, o pr imeiro Reci tal

Vil la-Lobos. (MARCONDES, 1998, p . 113) .

Chamamos atenção para a última informação relacionada à primeira audição de

obras de Villa-Lobos e à realização do primeiro ‘Recital Villa-Lobos’. Não encontramos

registro de data e local deste recital, mas podemos supor que ele tenha acontecido no dia 27

de novembro de 1939, no Rio de Janeiro. Nesta data, segundo informações encontradas no

catálogo de obras de Heitor Villa-Lobos (1989), deu-se a primeira audição de diversas

obras contidas nos vários volumes do Guia Prático – peças de caráter didático, que utilizam

temática baseada no folclore brasileiro -, entre outras obras de Villa-Lobos, por José Vieira

Brandão ao piano. Detalharemos essa questão posteriormente, quando listarmos as obras

cuja primeira audição coube a José Vieira Brandão.

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A crescente atividade pianística de José Vieira Brandão foi relatada pelo

musicólogo Renato Almeida, na segunda edição de História da Música Brasileira, no

capítulo denominado ‘Os Contemporâneos’. É importante destacar que, na primeira edição

deste livro, publicada em 1926, não há referências a José Vieira Brandão, então um jovem e

desconhecido estudante de piano de quinze anos de idade. Podemos concluir que a inclusão

de referência na segunda edição, de 1942, é o próprio testemunho da importância da

atuação de José Vieira Brandão como intérprete, bem como do reconhecimento crescente e

duradouro por ele obtido no decorrer de suas atividades musicais.

Desde então, data a sua at iv idade pianís t ica, tendo

real izado vár ios concertos em nossos estados e , u l t imamente, no

estrangeiro, quando in tegrou a embaixada ar t ís t ica, chef iada por

Vila Lobos [s ic] , que vis i tou o Uruguai , em 1940. A cr í t ica

sempre o saudou com os melhores louvores, reconhecendo- lhe

não só as qual idades de vir tuose , como ainda apr imorada

sensibi l idade de in térprete . (ALMEIDA, 1942, p . 495) .

Encontramos menção à participação de Brandão na embaixada artística também no

livro História da Música Brasileira, de F. Acquarone (1948, p.217), que relata: “Em 1940,

Vieira Brandão visitou o Uruguai, acompanhando Villa Lobos [sic] em sua embaixada

artística.”

A reputação pianística de José Vieira Brandão ultrapassou as fronteiras brasileiras,

como podemos observar ao examinarmos o léxico Dicionário Biográfico de la Música, em

língua espanhola, organizado por F. Ricart Matas (1966, p. 164): “Aluno da Escola

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Nacional de Música, destacou-se como excelente pianista.”4. E também no Diccionario de

la Musica Labor, organizado pelos musicólogos Higinio Anglés e Joaquín Pena (1954,

tomo I, p. 351), onde encontramos mais referências à carreira pianística internacional de

José Vieira Brandão: “Como pianista, realizou diversas turnês em seu país e no exterior.”5

Parecia mesmo haver uma natural predisposição de José Vieira Brandão a uma

excepcional trajetória como pianista. Seu crescente prestígio se traduzia em novas

oportunidades para apresentações, bem como em convites para temporadas de

aperfeiçoamento no exterior, como no caso da pianista francesa Marguerite Long, que

tencionava levar Brandão a Paris, a fim de dar seqüência aos estudos realizados no Rio de

Janeiro. O convite, no entanto, foi recusado. Brandão já estava comprometido com o

ambicioso projeto de Villa-Lobos para a educação musical das massas escolares brasileiras,

trazido à luz em 1932 sob vestes oficiais, com o patrocínio e chancela do governo Vargas.

Essa recusa, que por si só é emblemática da generosidade e da lealdade incondicional a

Villa-Lobos, parece ter sido fruto do redimensionamento do papel do educador musical na

consciência artística de José Vieira Brandão.

Referências às atividades musicais de José Vieira Brandão são encontradas também

na edição concisa do Dicionário Grove de Música (SADIE, 1994, p.131), em língua

portuguesa, onde foram incluídos verbetes adicionais relativos à música brasileira, ausentes

na edição completa do Grove. Essa edição peca justamente no aspecto que deveria ser sua

maior qualidade: a concisão. Por conta da economia de espaço, se paga o preço de não

poder-se ir mais a fundo nos detalhes. De fato, faltam muitas informações complementares,

4 “Alumno de la Escola Nacional de Música destacó como excelente pianista.” (tradução nossa). 5 “Como pianista, ha realizado varias giras en su país y en el extranjero.” (tradução nossa).

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datas inclusive, que já haviam sido publicadas em léxicos elaborados anteriormente ao

Grove “brasileiro”. É de se estranhar, portanto, que tantos conteúdos que nos parecem

relevantes tenham sido omitidos ou descartados na edição concisa deste prestigiado léxico.

O mesmo problema acontece no verbete ‘José Vieira Brandão’ do dicionário de música

publicado pela editora Zahar (HORTA, 1985, p. 54), cujo conteúdo é praticamente idêntico

ao do verbete do Grove conciso, inclusive na redação.

Importante fato na trajetória pianística de José Vieira Brandão foi a estréia do

‘Choros n. 11’, de Villa-Lobos. Assim relata Adhemar Nóbrega (1974, p. 117), em

aprofundado estudo sobre os choros de Heitor Villa-Lobos:

A pr imeira audição absoluta do Choros n. 11, real izada a

18 de ju lho de 1942, teve lugar no Rio , com a Orquestra do

Teatro Municipal , sob a regência do autor . O sol is ta fo i o

pianis ta José Vieira Brandão. [ . . . ] A obra é dedicada a Arthur

Rubinstein.

A realização desta partitura de dimensões monumentais, cuja execução integral

beira os sessenta minutos, é uma empreitada bastante trabalhosa para músicos, regente e

solista, especialmente para este último, a quem cabe a responsabilidade de tocar as partes

de maior dificuldade e importância.

Mas vol temos ao Choros 11, para assinalar que a todos os

episódios o p iano t raz sua contr ibuição, ora contrapondo os

motivos em pauta , ora ampliando-os, emprestando- lhe o re levo

da sonor idade ou as galas de um tratamento vir tuosís t ico d igno

das melhores tradições.(NÓBREGA, 1974, p . 112) .

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Algumas palavras sobre o Choros n. 11, incluindo menção à participação de José

Vieira Brandão no concerto de estréia, estão também na biografia de Villa-Lobos de autoria

de Vasco Mariz (1977, p. 105), cujo subtítulo Compositor brasileiro é sugestivo, ao brincar

com a indissociável - quase simbiótica - identificação do compositor com a sua terra natal,

e com o fato de Villa-Lobos detestar ser conhecido sob este rótulo.

O Choro n. 11 (1928) , para p iano e orquestra , é o mais

longo de toda a sér ie . Os recursos técnicos são os mesmos dos

choros anter iores , mas as in tenções bem diferentes. Trata-se de

uma obra muito subjet iva, sem a preocupação expressa de

reproduzir os elementos sonoros da natureza bras i le ira. Trabalho

grandi loqüente, o Choro n . 11 é também um desaf io ao vir tuoso

do piano, em vis ta de sua extensa e d if ic í l ima cadência . A 1ª

audição foi no Rio com José Vieira Brandão como sol is ta (1942).

Vieira Brandão esteve por duas vezes nos Estados Unidos. Na primeira viagem, em

1945, permaneceu por cerca de um ano em Los Angeles, como bolsista da University of

Southern Califórnia. Foi um período extremamente profícuo para o amadurecimento da

personalidade artística de José Vieira Brandão, que pôde desenvolver seu talento em muitas

frentes de estudo e trabalho. Realizou estudos sobre a educação musical nas escolas

americanas, proferiu palestras e conferências sobre a música brasileira e sobre o ensino do

canto orfeônico nas escolas brasileiras, realizou diversos recitais de música brasileira -

especialmente como regente coral – nas cidades de Sacramento, Oakland, São Francisco,

Salt Lake City, Chicago, Rochester, Nova York, Boston, Filadélfia, Washington e Miami e,

finalmente, acumulou expressivo conteúdo de idéias para novas composições. Essa estadia

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em terras americanas parece mesmo ter servido a deslanchar toda a atividade criativa

posterior de José Vieira Brandão, além de ter reafirmado a sua opção pela estética

nacionalista. Tanto um assunto como o outro serão mais bem explanados na seção ‘o

compositor’.

A segunda viagem guarda um dos momentos mais consagradores da carreira

pianística de José Vieira Brandão. Vasco Mariz (2002, p. 93) relata: “Em 1947, voltou a

Nova York a fim de auxiliar Villa-Lobos na preparação da opereta Magdalena, a ser

apresentada na Broadway, e lá também apresentou a primeira audição mundial da Bachiana

n. 3, para piano e orquestra.” A estréia aconteceu no dia dezenove de fevereiro de 1947,

com a orquestra da Columbia Broadcasting System sob regência de Heitor Villa-Lobos.

Sobre esta obra de profunda espiritualidade e envolvente clima sonoro, em quatro

movimentos, vale dedicar atenção ao comentário de Vasco Mariz (1977, p. 108):

A es trutura do 2º movimento, Fantas ia , embora

apresentada em forma de [de]vaneio musical , tem a fe ição de

uma ár ia , in terrompida por acordes secos a té o p iú mosso, que

introduz o segundo episódio, a legre e vivaz, onde se destaca o

p iano solo em br i lhante v ir tuosismo.

A relação de confiança e amizade, além de grande admiração pelo artista que foi

José Vieira Brandão certamente são fatores que devem ter influenciado Villa-Lobos a

dedicar algumas composições ao amigo mais jovem. É o caso do segundo movimento de

sua ‘Bachiana n. 4’ - um belíssimo momento musical de pungente expressividade intitulado

‘Canto do Sertão’ -, bem como o da totalidade de peças do primeiro volume do Guia

Prático.

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Por fim, listaremos em ordem cronológica as obras pianísticas de Heitor Villa-

Lobos cuja primeira audição foi realizada por José Vieira Brandão, com base nas

informações oficiais obtidas no catálogo intitulado Villa-Lobos: sua obra (1989), publicado

pelo Museu Villa-Lobos.

Em 27 de novembro de 1939:

a) “Plantio do Caboclo” e “Festa no Sertão” (primeiro e terceiro

movimentos, respectivamente, do Ciclo Brasileiro, em quatro

movimentos, compostos em 1936).

b) “Acordei de Madrugada”, “A Maré encheu”, “A Roseira” e “Na

corda da viola” (do primeiro volume do Guia Prático, dedicado a

José Vieira Brandão, composto em 1932).

c) “Brinquedo”, “Machadinha”, “Samba-Lelê” e “Senhora Dona

Viúva” (do segundo volume do Guia Prático, 1932).

d) “João Cambuête”, “Garibaldi foi à missa” e “O pião” (do terceiro

volume do Guia Prático, 1932).

e) “Vai abóbora” (do sétimo volume do Guia Prático, 1932)

f) “Laranjeira pequenina”, “A velha que tinha nove filhas” e “O

castelo” (do nono volume do Guia Prático, 1935).

g) Suíte “As três Marias” (Alnitah, Alnilam e Mintika, composição

de 1939).

h) “Valsa da dor” (1932).

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Em treze de novembro de 1941, como parte do Festival Villa-Lobos, no Salão

Leopoldo Miguez, da Escola Nacional de Música, atual Escola de Música da UFRJ.

i) “Manquinha” (do primeiro volume do Guia Prático, 1932).

j) “Rosa Amarela”, “Olha o passarinho domine!”, “O gato”, e “Ó

sim” (do quarto volume do Guia Prático, 1932).

k) “Os pombinhos”, “Você diz que sabe tudo” e “O bastão ou Mia

gato” (do quinto volume do Guia Prático, 1932).

l) “Sonho de uma criança”, “O corcunda”, “O caranguejo”, “A

pombinha voou” e “Vamos atrás da serra, oh! Calunga” (audição

integral do sexto volume do Guia Prático, 1932).

m) “Os pombinhos” (do sétimo volume do Guia Prático, 1932).

n) “Pombinha rolinha” e “Constante” (do nono volume do Guia

Prático, 1935).

o) “Atché” (do décimo volume do Guia Prático, 1932)

Em dezoito de julho de 1942, com a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, sob

regência de Heitor Villa-Lobos.

p) “Choros n.11” (para piano e orquestra, 1928).

Em 1943, data e local desconhecidos.

q) “Poema singelo” (dedicado a Mindinha, 1942).

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Em dezenove de fevereiro de 1947, em Nova York, com a participação da orquestra

da CBS – Columbia Broadcasting System, sob regência de Heitor Villa-Lobos.

r) “Bachianas Brasileiras n. 3” (para piano e orquestra, dedicada a

Mindinha, 1938).

1.2 O compositor

Se é verdade que foi como pianista que José Vieira Brandão estabeleceu os

primeiros vínculos profissionais com a sociedade e, mais particularmente, com o meio

musical, é também válido admitir que tenha sido como compositor que ele deixou os frutos

mais duradouros - ainda que muito de sua obra esteja praticamente inexplorada – de sua

criação musical. É o momento de mergulharmos no pequeno e fascinante universo das

composições musicais de José Vieira Brandão, a fim de compreender-lhes o significado e a

relevância de seu papel no contexto da cultura musical brasileira. Antes, porém, é

necessário situar a obra deste compositor tanto em relação à linguagem musical empregada,

como também quanto ao posicionamento estético por ele assumido durante sua trajetória

musical.

Talvez a característica mais marcantemente perceptível da obra musical de José

Vieira Brandão seja a coerência. É notável que, apesar das novidades e influências sofridas

pela música brasileira a partir do final da década de 30, com a adoção de técnicas

contemporâneas de composição - em especial o dodecafonismo, trazido ao Brasil e

difundido entre os jovens compositores pela instigante figura de Hans Joachim Koellreutter

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-, tenha José Vieira Brandão permanecido por toda a vida fiel aos ideais do nacionalismo

musical e seguido incólume sua trajetória retilínea como compositor de música

essencialmente tonal.

Observemos o que escreve a este respeito o musicólogo José Maria Neves (1981, p.

142) - que conviveu durante anos com José Vieira Brandão, respectivamente, na vice-

presidência e presidência do Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro -, em

seu valioso livro Música Contemporânea Brasileira:

Os mais at ivos nacional is tas da velha escola ser iam

Franscisco Mignone e Camargo Guarnier i , seguidos de Brasí l io

I t iberê , Frutuoso Viana, Bapt is ta Siqueira , José Siqueira, Luis

Cosme, Radamés Gnat ta l i e José Vieira Brandão. Alguns desses

compositores manter iam imutáveis suas v isões do ato

composicional , apegados ao tonalismo e aos modal ismos e às

es truturas de tendência neo-cláss ica, reaf irmando suas

preocupações regional is tas (como é o caso dos i rmãos Siqueira) ;

outros, como Luis Cosme, procurarão sempre enr iquecer suas

l inguagens musicais , ass imilando elementos das técnicas

contemporâneas (eventualmente mesmo certos processos do

dodecafonismo) .

Dada a importância do tema, cremos ser oportuna uma breve digressão sobre o

sistema de doze sons.

O dodecafonismo foi amplamente utilizado por uma plêiade de compositores

brasileiros, tendo sido difundido, num primeiro momento, entre o círculo de discípulos de

Koellreutter para, mais tarde, disseminar-se entre várias gerações de compositores,

interferindo e modificando, inexoravelmente, o curso dos acontecimentos que formam a

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história da música no Brasil, e estendendo sua influência até os dias atuais, ainda que sem a

mesma força de outrora. Sobre o dodecafonismo, explica José Miguel Wisnik (1989, p.

161):

O sis tema de doze sons cr iado por Schoenberg em 1923,

depois de um per íodo atonal que der ivava do aprofundamento das

contradições do tonalismo, se apresenta como a decorrência

implacável e ao mesmo tempo a ant í tese do s is tema tonal . Ele

reje i ta cerradamente o pr incípio tonal , is to é, o movimento

cadencial de tensão e repouso.

É, de fato, um sistema artificial e fechado, cujo objetivo é impedir ao cérebro a

percepção e, consequentemente, a fixação de qualquer referência que possa levar ao

estabelecimento de um centro tonal. Isso feito através de uma técnica de composição

meticulosamente desenvolvida de modo a evitar a repetição de um determinado som antes

que sejam ouvidos, numa seqüência pré-estabelecida, os onze sons restantes da escala

cromática. Vejamos o que escreveu o historiador e musicólogo José D’Assunção Barros

(2004, p. 189), em seu mais recente livro, um excelente e aprofundado estudo sobre a

história da música no Brasil:

A p ropos ta dodecafôn ica de e l abora r uma sé r i e é p rec i samen te

a de c r i a r um espaço não h ie r a rqu izado , embora o rgan izado e

pe r sona l i zado , den t ro da gama c r omá t ica . Da í que Shoenberg

chamou es t a nova t écn ica de compos ição de ‘ s i s t ema de doze

sons igua i s ’ . Po r i s to d i s semos a t r á s que , s e o Atona l i smo é

uma l inguagem mus ica l , o Dodeca fon i smo é uma t écn ica ou

um s i s t ema que permi t em r ea l i za r um t r aba lho coeren te sob re

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es ta l inguagem. Nes te s en t ido , uma co mpos ição pode se r

a tona l s em se r necessa r i amen te dodecafôn ica , mas não é

poss íve l o con t r á r io : t e r dodeca fon i smo sem t e r a tona l idade .

O dodecafonismo foi utilizado no Brasil como símbolo de negação e libertação dos

ideais nacionalistas, bem como de afirmação de novas tendências estéticas. Significado

distinto, porém, lhe é atribuído por seu criador, Arnold Schoenberg, que considerava o

dodecafonismo a seqüência natural da evolução da linguagem musical dentro da tradição

européia, chegando mesmo a afirmar que tal sistema garantiria a supremacia da música

germânica por algumas centenas de anos (GRIFFITHS, 1987, p. 80).

Mas a verdade é que o dodecafonismo nunca seduziu José Vieira Brandão, e este

fato é corroborado quando constatamos a inexistência de composições de sua autoria que

façam uso de tal técnica. É curioso que ele não tenha tido nenhum tipo de interesse, nem

para fins lúdicos, no experimento de compor utilizando a técnica serial, como já fizera, por

exemplo, seu contemporâneo – e tal como Brandão, ardoroso defensor da estética

nacionalista - Francisco Mignone. Mas se o dodecafonismo não se fixou na obra de

Francisco Mignone, que o utilizou raramente - muito mais como exercício puro do ato de

compor do que como uma opção estética assumida -, tampouco ele chegou a figurar na

paleta de recursos técnicos de José Vieira Brandão. Apesar disso, é inegável a importância

do dodecafonismo para o desenvolvimento da música brasileira a partir de meados do

século XX.

A opção de José Vieira Brandão pela estética nacionalista se manifestou desde

muito cedo. Ela está presente na feitura de suas primeiras peças, e permaneceu ocupando

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posto preferencial no desenrolar de sua atividade criadora. Renato Almeida registra os

primeiros movimentos de José Vieira Brandão no campo da composição musical:

Como composi tor , apareceu José Vieira Brandão, em

1937, e o tem fei to de modo seguro o [s ic] promissor . Integrado

nas tendências nacionalis tas da ar te brasi le ira e possuindo uma

técnica que se vai , de mais a mais , aperfeiçoando, a obra de

Vieira Brandão se mostra d igna do maior in teresse pela invenção

e r iqueza de l inguagem musical . (ALMEIDA, 1942, p .495) .

Ressaltamos que o texto de Renato Almeida foi publicado no ano de 1942. Antes,

portanto, que José Vieira Brandão houvesse concebido as suas obras mais significativas, as

quais, segundo especialistas, pertencem ao período de composição iniciado a partir da

década de 50, quando o compositor assume definitivamente seu papel de relevo e

importância para a música brasileira. Tal fato, segundo nossa interpretação, acrescenta peso

e valor à menção encontrada no livro de Almeida.

Alguma influência da música de Chopin pode ser percebida na primeira fase criativa

de José Vieira Brandão, em especial nas suas peças para piano, onde a veia lírica do jovem

compositor brasileiro pulsa com maior intensidade e paixão. Ecos, talvez, da memória da

atmosfera pianística do grande mestre polonês, a quem Brandão dedicou anos de

disciplinado e aprofundado estudo, como intérprete. Sobre essa questão, observa Renato

Almeida (1942, p. 495-496):

Nas suas p r ime i r a s compos ições p ian í s t i ca s , pode sen t i r -

s e o roçar da a sa chop in iana , sendo que , na Fan tas ia , pa ra

p iano e o rques t r a , o t ema cen t ra l , de ca rá t e r n i t idamen te

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nac iona l , apa rece den t ro duma expressão t ambé m le mb rando

Chop in .

É importante observarmos que, apesar da influência da música de Chopin na

‘Fantasia para piano e orquestra’ de José Vieira Brandão, esta já apresenta elementos

significativos de identificação musical com a temática nacional, como bem aponta o texto

de Renato Almeida. Somos naturalmente levados à conclusão de que o nacionalismo esteve

sempre presente na obra de José Vieira Brandão, tendo se manifestado, porém, de maneiras

distintas, no decorrer de sua trajetória como compositor.

Apesar disso, o nacionalismo nunca significou para José Vieira Brandão uma

bandeira estética, ou mesmo um fator motivador de ações engajadas em defesa de seus

ideais, como foi o caso, por exemplo, da postura assumida por Camargo Guarnieri, ao se

indispor com Koellreutter e com o grupo de compositores que integravam o movimento

denominado Música Viva, em enérgica reação de defesa dos ideais nacionalistas e da

utilização da temática nacional na música brasileira, numa das mais emblemáticas celeumas

estéticas da história recente da música no Brasil.

Este assunto é abordado de forma brilhante no citado livro Música Contemporânea

Brasileira, de José Maria Neves (1981), o que nos dispensa da tarefa de realizar maiores

aprofundamentos. O fato que nos interessa é que Neves situa Vieira Brandão no grupo de

compositores ligados ao nacionalismo de fins da primeira metade do século XX, o que, por

si só, já seria relevante contribuição para nosso estudo, mas seu texto vai mais além e acaba

despertando interesse para outros aspectos da personalidade humana deste compositor,

como, por exemplo, a ausência daquele tipo de vaidade pessoal tão comum a artistas de

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certo renome - e que, num certo sentido, e em justa medida, é necessária para o

estabelecimento e promoção de uma carreira artística -, além de sua imensurável

generosidade, ao deixar por diversas vezes em segundo plano a própria carreira para

auxiliar Villa-Lobos em projetos de monta e responsabilidade. Talvez estes fatores ajudem

a explicar os motivos pelos quais Brandão não tenha se tornado tão conhecido quanto seus

colegas de geração, apesar de fazer música de excelente qualidade, como concordam

aqueles que conhecem sua obra.

José Vieira Brandão é compositor de valor que, no momento

oportuno, não teve oportunidade de se lançar convenientemente. Muito

jovem ainda, ele se viu chamado a assessorar Villa-Lobos em seu

trabalho de educação musical popular (através de coordenação do Canto

Orfeônico e da formação de professores especializados nesta

disciplina), restringindo sua atividade musical à função de pianista

concertista (foi ele o responsável por inúmeras audições de obras para

piano e para piano e orquestra de Villa-Lobos). José Vieira Brandão

escreveu pouco, mas sua obra mostra sempre seu domínio da matéria

sonora e fineza de seu pensamento musical, que se manifesta

preferentemente na música de câmara. Destaque-se, especialmente, seus

dois “Quartetos de cordas” (o segundo, mais recente, bastante liberto do

nacionalismo tradicional), as “Serestas”, os “Mosaicos”, os “Estudos”,

(Chorinho, Modinha e Macumba) e a “Tocata” (dedicada a Villa-

Lobos), todas para piano solo; e ainda os “Cantos Místicos” (Fé,

Esperança e Caridade) para coro, o “Trio de Cordas” e a “Fantasia

Concertante” para piano e orquestra, uma de suas obras mais antigas e

que foi remodelada em 1959. Este compositor é autor de uma grande

série de obras para canto e piano e de enorme produção coral, esta

última especialmente dedicada a grupos corais infantis, refletindo a

preocupação fundamental deste compositor, ou seja, a universalização

de educação e da prática musical. (NEVES, 1981, p.76).

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O nacionalismo evidencia-se na obra de José Vieira Brandão sempre de forma

discreta, nunca como um objetivo a ser atingido em si, mas sim como conseqüência da

expressão natural da musicalidade desse compositor. É assim que podemos apreender das

palavras de Vasco Mariz (2002, p. 155), em valioso estudo sobre a história da canção

brasileira de caráter erudito, publicado sob o título A Canção Brasileira de Câmara:

A inspiração sempre lhe f lu iu fáci l , embora se ressent isse de

estudos mais profundos. Não tem a preocupação de fazer música

nacional is ta , que, no entanto , brota espontaneamente aqui ou

acolá com bom gosto.

Brandão é também tratado como compositor nacionalista em outras obras de Vasco

Mariz, como no já citado A Música Clássica Brasileira (2002, p. 98), onde o autor afirma

que “sob o aspecto estético, [Vieira Brandão] mantinha-se fiel ao nacionalismo, que não

considerava esgotado nem superado.” Mais uma vez a tônica da fidelidade é reafirmada, e

esta parece mesmo ser uma das maiores recorrências ao analisarmos a integralidade da

trajetória musical de José Vieira Brandão, e não somente sua atuação como compositor.

Mas a maior contribuição de Vasco Mariz ao estudo da vida e obra de José Vieira

Brandão pode ser encontrada numa publicação comemorativa aos noventa anos do

compositor, lançada em 2001, sob a responsabilidade editorial da jornalista Heloísa Fischer,

onde estão incluídos valiosos textos biográficos a cargo de José Maria Neves, Vasco Mariz

e Luiz Paulo Horta, além de depoimentos espontâneos de uma série de artistas, entre

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músicos, compositores, regentes e educadores. Neste pequeno livro6, cujas dimensões

gráficas não correspondem à grandeza de seu serviço para a cultura musical brasileira, pôde

Vasco Mariz escrever mais extensamente acerca da obra musical de José Vieira Brandão,

seja tecendo sobre ela considerações mais aprofundadas e ricamente detalhadas, bem como

trazendo à luz diversos aspectos biográficos não encontrados em publicações anteriores,

especialmente em relação aos fatos mais recentes de sua carreira. Sobre o nacionalismo na

obra de José Vieira Brandão, esclarece Mariz (2001, p. 24): “Como compositor, Vieira

Brandão não teve intenção expressa de fazer música nacionalista, mas a verdade é que a sua

inspiração brasileira brotava espontaneamente com muita facilidade.”

Ainda no mesmo livro - que será citado amiúde neste trabalho -, o pequeno texto de

José Maria Neves (2001, p. 11,12) é particularmente significativo, não somente pelo peso

da sua reputação como musicólogo, como também - e principalmente -, por conta da

estreita relação de amizade e colaboração que manteve com o compositor. A soma desses

fatores proporciona ao intelectual mineiro uma posição de privilegiado observador do

processo criativo de José Vieira Brandão, e isso é claramente percebido ao examinarmos

suas palavras.

O compos i to r e s t eve mu i to a t ivo a t é bem pouco t empo

a t r á s , p roduz indo peças novas ou r evendo ou t r a s ma i s an t igas .

E o r e f inamen to de sua e sc r i t a pode se r v i s to em obra que ,

apesa r de r e l a t ivamen te cu r t a , merece luga r de des taque no

panorama da mús ica b ras i l e i r a do sécu lo XX, com ca rá t e r e o

s abo r b ra s i l e i ro s , que não f i cam des focados pe lo emprego de

t écn ica der ivada do neoc las s ic i smo . 6 A idéia original era que esta publicação - cujo título é Cadernos VivaMúsica! - fosse periódica, mas, infelizmente, ela não teve continuidade.

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José Maria Neves é preciso ao colocar em termos mais subjetivos a presença do

nacionalismo na obra de José Vieira Brandão. Com justa razão, ele prefere destacar a

qualidade da escritura musical deste compositor, e o fato dele ter feito, em sua música, um

uso particular de formas clássicas como a sonata, a suíte, o tema com variações, entre

outras, para construir, desenvolver e exprimir seu pensamento musical de maneira fluente e

espontânea. Parece-nos clara a preocupação do musicólogo em situar Vieira Brandão na

categoria dos compositores que detêm o domínio da técnica da composição, e que dela

sabem fazer uso consciente e parcimonioso, nunca priorizando o formalismo como alvo,

mas sim, sabendo utilizar-se de seus meios para dar consistência formal às suas obras

musicais. E como facilmente observamos na audição de algumas peças de José Vieira

Brandão, nada há nelas que soe forçado ou antinatural, nada que denuncie qualquer

tentativa de submissão do livre fluir do discurso musical à rigidez de uma forma pré-

estabelecida por padrões canônicos.

Dando seqüência à análise dos textos publicados na edição comemorativa dos

Cadernos VivaMúsica!, podemos constatar que a presença do neoclassicismo na obra de

Vieira Brandão é também alvo de consideração no artigo de Luiz Paulo Horta (2001, p. 49-

50), publicado sob o título ‘A nobre escrita em CD’, cujo enfoque principal reside na crítica

musical de algumas obras como o ‘Quarteto de cordas’ e a ‘Sonata para violoncelo e

piano’, ambas gravadas no CD intitulado Vieira Brandão, lançado em 1998 pelo selo

Repertório Rádio MEC.

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José Vieira Brandão, aos 90 anos, é um desses tesouros pouco explorados

da música brasileira. Se você nunca ouviu falar dele, há um importante cd

extraído das coleções da Rádio MEC (a velha rádio MEC, dos bons tempos) que

pode preencher a lacuna. Ouça, por exemplo, o belo Quarteto de cordas n. 1, de

1944, gravado em 1959 por um grupo de primeira linha que incluía Santino

Parpinelli, Henrique Morelenbaum, Jacques Nirenberg e Eugen Ranevsky. Ali

está a nobre escrita eficaz de Vieira Brandão que, sabendo tudo de música, soube

se guardar dos novidadeiros, e construir um idioma pessoal maduro. Nessa obra

de inspiração neoclássica não há nacionalismo intencional (como ainda se

praticava muito naquele momento). Há uma capacidade e um desejo de cantar,

aplicados, no primeiro movimento, a uma espécie de estrutura cíclica que dá

unidade à construção. Já o Allegro que vem a seguir aponta para as nossas raízes.

Essa música tem algo a ver (como assinalou José Maria Neves) com a arte dos

rabequistas do Nordeste. É tudo de uma vivacidade, de um sentido lúdico que

denota um compositor na plena posse de seus meios.

No presente texto, há diversos elementos que merecem especial atenção e cuidadosa

interpretação. O primeiro deles trata do desconhecimento, por parte de intérpretes e

estudiosos, acerca da obra musical deste grande compositor brasileiro, tão pouco executado

em salas de concerto no Brasil e afora. Horta é feliz ao referir-se a Vieira Brandão usando a

imagem metafórica do tesouro que ainda não foi devidamente explorado, onde talvez ainda

estejam encerradas jóias de rara beleza e outras riquezas igualmente inesperadas e

desconhecidas. É essa, de fato, a sensação que experimentamos ao entrarmos em contato

com a belíssima produção musical de José Vieira Brandão. Um misto de maravilha e

encantamento provocado pela percepção da real dimensão qualitativa desta obra, e uma

ponta de tristeza e indignação por ela ainda permanecer, em grande parte, coberta e

protegida indevidamente sob os véus da ignorância e do esquecimento. Outro aspecto digno

de destaque é o empenho de Vieira Brandão na construção de um estilo próprio de

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composição, fruto do desenvolvimento permanente e retilíneo de seus estudos musicais, os

quais realizou sem nunca ter titubeado ante a tentação de seguir diferente orientação

estética ou utilizar as novíssimas técnicas européias, introduzidas na música brasileira a

partir de meados do século passado. Para Luiz Paulo Horta, essa atitude é condizente com o

grau de maturidade artística atingido por Vieira Brandão, e não se trata, portanto, de mera

manifestação de conservadorismo, nem mesmo de um tipo de apego ideológico e arraigado

à causa nacionalista. Aliás, Horta faz coro com Mariz e Neves ao reforçar a idéia de um

nacionalismo não intencional na obra do compositor mineiro, e este ponto de concordância

entre os três estudiosos parece-nos revelador de uma das grandes qualidades da obra de

Vieira Brandão, que é justamente a de conseguir construir um discurso musical pessoal e

espontâneo dentro de uma concepção formal consistente. Mérito logrado em plenitude

apenas pelos grandes mestres e, mesmo assim, através do exercício rigoroso e disciplinado

da arte da composição.

A preocupação com a forma sempre foi uma constante na obra de José Vieira

Brandão, e tal atitude acaba por refletir-se no esmerado acabamento de suas composições,

qualidade ressaltada pelos especialistas.

Uma vez estando bem contextualizada a obra de José Vieira Brandão como parte

integrante da corrente nacionalista da música brasileira, e, mais detalhadamente, como

receptora de influências complementares que vão do romantismo – no caráter – ao

neoclassicismo – na forma -, podemos, neste momento, percorrer a linha do tempo das

composições musicais de José Vieira Brandão e acompanhar passo a passo o evoluir de sua

linguagem criativa.

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As primeiras composições de José Vieira Brandão de que se tem registro são de

1928. Um minueto para piano solo e uma canção intitulada ‘O Sabiá e a Mangueira’, para

canto e piano, com letra de Álvaro Moreira, inauguram a produção musical desta primeira

fase, que atingirá seu ápice justamente com a citada ‘Fantasia para piano e orquestra’, de

1936, até então, sua obra de maiores proporções e pretensões. São desta fase as canções

com acompanhamento de piano ‘Felicidade’ e ‘Sinhô Velho’, ambas compostas em 1930

com texto de Pascoal Carlos Magno e Paulo MacDowell, respectivamente, bem como

‘Confidência’, de 1932, com letra de Helio Peixoto, e ‘A sombra verde dos coqueiros’, de

1934, cujo texto é de Carlos Paula Barros.

É também neste período que José Vieira Brandão realiza suas primeiras

composições camerísticas, como o ‘Canto Sertanejo’ e o ‘Romance’, ambas compostas em

1935 para a formação de duo de violino com piano. Sobre essas músicas, vale seguir as

palavras de Renato Almeida (1948, p. 495): “O Romance, para violino, é uma página

sentimental muito viva e o Canto Sertanejo, também para violino, já revela a envergadura

de um compositor de mérito.”

Vasco Mariz, no já citado A Canção Brasileira de Câmara (2002, p. 155),

reconhece dois períodos distintos na obra de José Vieira Brandão:

O primeiro, até 1947, pecava pelo amadorismo típico a tantos compositores

brasileiros de certo renome. Em 1948, todavia, após o regresso da segunda

viagem aos Estados Unidos da América, dedicou-se mais seriamente ao estudo e

à composição. Prosseguiu na série dos lieder e tomou alento para obras de maior

fôlego, dentre as quais um sedutor Quarteto de cordas e uma surpreendente

Sonata para celo e piano.

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Não obstante a crítica do eminente diplomata e musicólogo à fragilidade formal das

composições da primeira fase criativa de Vieira Brandão, é justo observar que estão neste

período duas de suas canções mais conhecidas e de maior êxito: ‘Adivinhação’ e

‘Prequeté’. São páginas de delicioso humor e efeito musical convincente e satisfatório.

‘Adivinhação’, com texto de Martins D’Alvarez, é um jogo quase infantil do tipo “o que é,

o que é?”, com a surpreendente revelação da charada ao fim da canção, que dura apenas um

minuto. O acompanhamento é bem dosado, sendo que o piano dialoga todo o tempo com a

voz, sem, no entanto, ofuscar-lhe a clareza. ‘Prequeté’, com letra de Cassiano Ricardo, é

bem sucedida ao criar uma ambientação musical que consegue transmitir com eficácia

alguns sentimentos do poeta em relação a seus personagens, indo do humor quase

sarcástico, na caracterização do personagem José Prequeté - tratado desdenhosamente pelo

narrador como o moleque mais preto que o pó de café –, à mais delicada ternura, como no

trecho em que o poeta se refere à vovó preta e sua visão conformista e resignada do mundo,

ao acreditar que o desafortunado destino do menino preto e pobre - “que não tem onça p´ra

brincar nem cavalinho p´ra montar”, e que só encontra seus momentos de alegria ao

compartilhar os brinquedos comprados na cidade pelo filho da patroa -, tenha sido causado

pelo fato de não ter ele nascido branco e louro como Deus, e como o filho da sinhá.

Brandão sabe explorar com eficiência os recursos expressivos da voz e do

acompanhamento pianístico, logrando desenhar com precisão o perfil psicológico tanto dos

personagens do poema como de seu narrador.

Essas duas obras fazem parte do primeiro ciclo de canções composto por José Vieira

Brandão, entre 1938 e 1939. Na avaliação de Vasco Mariz, este conjunto é considerado de

menor valia musical se comparado ao grupo de canções pertencentes ao segundo ciclo, que

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abrange as obras compostas a partir de 1948, e que cujo marco inicial são as ‘Quatro

canções em lá menor’. Mariz justifica sua observação diagnosticando certos problemas nas

canções do primeiro período, tais como os acompanhamentos por vezes ricos em demasia -

fazendo submergir a graciosidade e a vivacidade das melodias -, e o uso de tratamento

fonético inadequado, ao deixar-se acumular um exagerado número de palavras num mesmo

compasso. Defeitos esses que, ainda sob a ótica do musicólogo, deixam de estar presentes

nas canções do segundo período, que apresentam maior consistência formal e pureza de

inspiração, além de demonstrar a habilidade do compositor mineiro no tratamento do texto

poético, que passou a ser escolhido com mais discernimento e critério. Apesar disso, Mariz

aponta Adivinhação e Prequeté como duas das mais bem sucedidas criações de José Vieira

Brandão no campo da canção de câmara no Brasil.

Adivinhação (1938), de Martins D’Álvarez, possui graça e comicidade

irresistíveis. Escrita sem preocupação nacional, saiu, contudo, revestida de um

toque malandro, bem carioca. O singelo poema foi compreendido e o comentário

musical, felicíssimo, brotou extremamente sedutor, fazendo jus à grande

popularidade que vem gozando há muitos anos, tanto em sua versão coral quanto

para canto e piano. Prequeté (1938), a história do “negro mais preto que o pó de

café”, contada por Cassiano Ricardo, constitui outro trabalho representativo do

músico de Cambuquira, de veia irônica tão aguçada. Ingênuo, sadio, de um

negrismo delicado, sem a selvageria que outros compositores geralmente

imprimem às obras do ciclo, é um verdadeiro estudo de declamação melódica,

desafio à boa dicção do intérprete. Prequeté forma entre as peças mais

encantadoras do repertório nacional.(MARIZ, 2002, p. 156)

Entre as canções do segundo período, Mariz salienta a qualidade de ‘Nós’, a última

das ‘Quatro canções em lá menor’, embora não se exima da responsabilidade de denunciar

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a fragilidade do texto das mesmas. ‘Ausência’, de 1949, com letra de Tomé Brandão, pai do

compositor, bem como ‘Silêncio’, de 1954, também são citadas.

Aprecio muito Silêncio, sem toque nacional e de belo efeito

canoro, talvez a melhor canção de José Vieira Brandão. Também de 1954 são:

Trova, com acertados efeitos guitarrísticos, e Almas comuns (Gabriel de Lucena)

que não agradou ao próprio compositor, mas nem por isso deixa de interessar

pela singeleza e boa escritura.

Não esqueçamos Coração incerto (1961), de Manuel Bandeira, com

melodia sentida, quase mórbida e belos efeitos violonísticos. (MARIZ, 2002,

p.157)

Em se tratando o nosso trabalho da apreciação da obra para violão de José Vieira

Brandão, não deixa de ser especialmente significativo o trecho onde Mariz menciona

efeitos guitarrísticos, ou violonísticos – o que é a mesma coisa –, no acompanhamento do

piano. Entre as duas composições, há um hiato de sete anos, mas é perfeitamente plausível

supor que Mariz tenha percebido nestas canções alguns reflexos do interesse que Brandão

nutria – ainda que da maneira discreta e reservada que sempre lhe foi característica - pelo

violão.

Na verdade, não se trata de mera suposição. Quando ‘Trova’ veio à luz, Brandão já

havia flertado com a obra violonística de Villa-Lobos ao transcrever para o piano os ‘Cinco

prelúdios’ do gênio carioca, talvez numa tentativa de compartilhar com o universo

pianístico dessas verdadeiras pérolas de excepcional beleza e sentido musical, que tanto

impressionaram o jovem compositor de Cambuquira, e que até hoje figuram como item

obrigatório no repertório de qualquer violonista no mundo que almeje ser reconhecido

como tal. Além disso, dois anos depois da composição de ‘Coração incerto’, temos o

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registro das primeiras composições de José Vieira Brandão originais para violão, ‘Valsa e

Allegro’, de 1963. Ambos os assuntos serão retomados em maior profundidade no segundo

capítulo deste trabalho, quando trataremos especificamente da relação do compositor com o

violão e das características de sua produção original para este instrumento.

De qualquer maneira, tem para nós especial sabor a confirmação de que ecos dos

acordes da guitarra, ou do violão, como preferimos chamar no Brasil, possam ser ouvidos

nas canções com piano deste singular e refinado compositor. Principalmente quando

sabemos da importância das canções de José Vieira Brandão para o repertório de câmara

brasileiro.

Para Vasco Mariz, a canção é o gênero musical no qual a obra de Vieira Brandão

adquire maior relevância, chegando mesmo a representar o ápice qualitativo de toda a

produção musical do mestre mineiro. A avaliação do diplomata e musicólogo baseia-se

preferencialmente na apreciação das canções compostas no segundo período, pois “elas

resistem mais a uma análise rigorosa e colocam o autor em posição cômoda no lied

nacional.” (MARIZ, 2002, p. 157).

A opinião não é compartilhada em sua totalidade por especialistas como o

compositor Ricardo Tacuchian (1995, p. 4-5), que, apesar de reservar palavras do mais alto

reconhecimento e consideração às canções de Vieira Brandão, prefere destacar as

qualidades artísticas da produção para coro deste autor.

A música coral brasileira tem em Brandão um dos mais significativos

nomes de nossa história. É o encontro de dois rios caudalosos, sua alma poética

se encontrando com o aguerrido lutador da causa da educação musical. O

resultado não poderia ser outro: essas primorosas miniaturas de canto coral, tão

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brasileiras quanto universais, não naturais como complexas, tão delicadas quanto

enérgicas, tão inspiradas quanto idiomáticas. E aqui chegamos a um ponto

capital: a par do equilíbrio formal e da invenção melódica, Brandão é um

compositor profundamente idiomático em qualquer meio para qual escreve. A

adequação idiomática é uma das principais qualidades da obra coral de Vieira

Brandão. Na verdade, ele conhece a voz tão bem porque trabalhou com ela

grande parte da sua vida.

Está bem colocada por Tacuchian a questão da adequação idiomática na obra coral

de José Vieira Brandão. Permitamo-nos ampliar a abrangência deste aspecto a praticamente

toda a obra musical deste compositor. Desde as peças para piano solo, logicamente, até

formações mais complexas como o quarteto de cordas ou o quinteto de sopros. A verdade é

que tudo flui com aparente naturalidade na música de Vieira Brandão, e isso é

conseqüência de uma feliz conjunção de fatores, entre eles, destacadamente, a constante

preocupação do autor em compor música que não somente seja confortável do ponto de

vista anatômico-instrumental, mas que, além disso, saiba tirar real proveito da linguagem

característica do instrumento para o qual foi concebida. É preciso conhecer as

características mecânicas de cada instrumento e suas conseqüentes e evidentes limitações, e

é justamente nesse aspecto que reside a impossibilidade de ser o ato composicional algo

totalmente abstrato e exclusivamente pertencente ao mundo das idéias, por mais que seja

essa, talvez, uma das mais legítimas aspirações de boa parte dos compositores, ou seja,

compor apenas utilizando-se de processos mentais, sem a necessidade de recorrer ao

instrumento. É evidente que grandes compositores compõem de memória, mas isso é

decorrência de extenso conhecimento prévio acerca das características de construção e

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funcionamento dos instrumentos musicais, e, principalmente, suas limitações quanto à

execução de determinados elementos da linguagem musical.

A adequação idiomática, portanto, é um dos principais fatores para que uma peça

obtenha sucesso duradouro entre os instrumentistas. Penso logo nos estudos de Chopin para

piano ou naqueles de Villa-Lobos para violão. Não é somente por suas qualidades musicais

artísticas indiscutíveis que essas peças tornaram-se repertório quase que obrigatório para

pianistas e violonistas de todo o globo, mas também, e talvez principalmente, por

aproveitarem-se ao máximo das potencialidades idiomáticas destes instrumentos, a ponto

de servirem como um valioso material de estudo, verdadeiros guias para a compreensão da

linguagem instrumental específica do piano e do violão, respectivamente. Queremos dizer,

com isto, que quando um estudante - ou até mesmo um pianista experiente – inicia o

treinamento de aprendizado de um dos estudos de Chopin, por exemplo, o faz na

expectativa de que, passado algum tempo de trabalho, que pode levar meses, logre uma

execução minimamente convincente, ou, pelo menos, tão próxima da perfeição quanto suas

reais possibilidades de atingi-la. E que quando completa este objetivo, acaba por dar-se

conta de que, na verdade, não aprendeu somente a bem tocar a peça musical a que se

propunha, mas que o processo de estudo da mesma revelou-lhe muito mais sobre outros

aspectos do conhecimento relacionado à execução musical, como, por exemplo, questões

relativas à digitação, ao fraseado, à articulação, o uso ou não do pedal, enfim, diversos

elementos que estão diretamente ligados ao idioma instrumental característico do piano.

Todo esse conhecimento evidentemente influenciará as futuras escolhas do intérprete,

dando-lhe alicerce e experiência para aprender novas peças e enriquecer seu repertório. E o

aprendizado de novas músicas trar-lhe-á mais conhecimentos, num círculo hermenêutico,

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cujo resultado é a construção gradual daquilo que concebemos como técnica instrumental,

um conceito bem amplo, que pouco tem a ver com o repertório de exercícios que

freqüentemente está associado a ele.

Retomaremos a questão da adequação idiomática no próximo capítulo, quando

abordaremos, entre outros temas, a viabilidade instrumental das peças para violão de José

Vieira Brandão. Continuemos, então, com a apreciação crítica de sua obra musical.

Declaradas as preferências de Mariz, pela canção, e de Tacuchian, pela música

coral, é importante salientar a alta qualidade das obras camerísticas de Vieira Brandão.

Parece ter sido mesmo na música de câmara que Brandão pôde exercer sua técnica com

mais liberdade, fazendo-a corresponder mais a contento aos anseios de seu pensamento

musical. É o ambiente propício para o desenvolvimento de idéias musicais mais abstratas,

além de representar um convite para o uso de recursos emprestados do neoclassicismo, que

o autor sempre gostara de traduzir para um idioma pessoal. A música de câmara certamente

representa um dos pontos mais altos da obra criativa de José Vieira Brandão.

Desde as primeiras composições neste gênero - as já citadas ‘Canto Sertanejo’ e

‘Romance’, para duo de violino e piano - até a última delas, infelizmente inacabada,

‘Nazaretiando’, escrita para octeto de violões e dedicada à Camerata de Violões do

Conservatório Brasileiro de Música, percebe-se claramente o rápido amadurecimento da

escrita de Vieira Brandão, bem como o desenvolvimento de sua elegante técnica de

composição.

Destacamos os dois quartetos de cordas, bem sucedidos em sua sonoridade, a

‘Sonata para violoncelo e piano’, de efeito sonoro verdadeiramente impactante, as obras

para violino e piano, entre elas, uma sonata e um duo intitulado ‘Dança e Seresta’, o

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‘Divertimento’, para quinteto de sopros, tão rico em beleza e substância, o ‘Trio’ para

violino, violoncelo e piano, o ‘Choro Carioca’, entre outras obras que completam esta

inspirada vertente da produção musical de Vieira Brandão.

A respeito do ‘Trio’ para violino, violoncelo e piano, pedimos atenção para a última

frase do trecho seguinte, extraído de matéria jornalística publicada no dia dezenove de

setembro de 1973 no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, de autoria do importante crítico

musical Renzo Massarani (1973):

José Vieira Brandão (1911) continua jovem, sorridente, sempre

atarefado e cheio de vivacidade. Não ocupa na opinião pública o lugar que o

exibicionismo deu a numerosos de seus colegas, mas produz incansavelmente e

com autêntico valor. Sua arte foi consagrada sexta-feira, na sala do DER, numa

apresentação que contou com a cantora Maria Fátima Alegria, o ótimo trio Daisy

de Luca, Alberto Jaffé e Márcio Malard, e o coral Harmonia, sob regência de

Solange Pinto Mendonça. [...] Bastaria a beleza do primeiro movimento do Trio

tão bem executado sexta-feira, para confirmar as virtudes deste compositor.

O leitor atento terá apreendido deste texto muito mais que o merecido elogio de

Massarani às qualidades estéticas do ‘Trio’ de Vieira Brandão. Características importantes

da personalidade humana do maestro acabam transparecendo no texto de Massarani. Entre

elas, a humildade e ausência de vaidade pessoal – aspectos já bastante comentados no nosso

trabalho -, o altruísmo sincero, sempre colocando em segundo plano seus interesses

pessoais em função daquilo que considerava ser a sua missão. Para Brandão, muito mais

importante era o exercício disciplinado em busca do constante aprimoramento de seu

ofício, do que a fama e o reconhecimento que, por ventura, pudessem advir como

conseqüência. Massarani aponta ainda a vivacidade do maestro mineiro como uma de suas

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mais marcantes características, e que pode muito bem ser traduzida pela sua inesgotável

alegria de viver, e por um otimismo que sempre contagiou a todos aqueles – incluindo o

autor destas linhas - que tiveram o privilégio de compartilhar do convívio com esta

excepcional criatura.

No decorrer de nossa pesquisa, encontramos, nos arquivos do Conservatório

Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, um raro documento textual contendo sete páginas

datilografadas, cujo título aparece como Notas explicativas sobre o CD/1995 intitulado A

Obra de José Vieira Brandão. Trata-se de texto de autoria de Vieira Brandão sobre as

composições que foram lançadas em CD produzido e lançado pelo Conservatório Brasileiro

de Música. O texto, no entanto, não foi publicado no encarte do CD, como deveria ser, a

princípio, o seu destino. Talvez o estilo literário um tanto quanto prolixo de Brandão tenha

sido responsável por esta exclusão. Mas, de qualquer maneira, a descoberta de palavras não

publicadas do compositor sobre sua própria música tem, para nós, especial valor e, desta

forma, não poderíamos deixá-las adormecendo na gaveta onde a funcionária Ivanilda

Ladeira Bezerra as encontrou, atendendo gentilmente ao nosso pedido de acesso a tudo que

pudesse estar relacionado ao prof. José Vieira Brandão. Examinemos o que tem ele a dizer

sobre ‘Dança e Seresta’, para violino e piano, faixa gravada no mencionado CD pelo

violinista Daniel Guedes e pela pianista Maria Teresa Madeira:

A peça foi dedicada a Henrik Szering como reminiscência do

convívio artístico que mantive com esse extraordinário violinista,

ensaiando o repertório dele em 1939 [quando esteve] exilado no Brasil

após a invasão de sua pátria natal, a Polônia, pelo exército alemão.

A construção formal ABA da obra teve como coordenadas a

oposição [grifo do autor] dos ritmos derivados de danças nordestinas

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com o lânguido, sinuoso e envolvente motivo seresteiro, oferecendo aos

intérpretes a oportunidade de utilizarem plenamente sua virtuosidade.

(BRANDÃO, 1995, f. 5)

Sobre o ‘Quarteto n.1’, para cordas, obra de excepcional beleza e notável feitura, há

interessantíssima apreciação de José Maria Neves (1998, p. 8) no encarte do CD Vieira

Brandão, lançado pela Rádio MEC. Reproduziremos agora parte deste texto,

principalmente pelo fato de não ter sido ele publicado em nenhum dos livros do musicólogo

mineiro.

Composto em 1944, este Quarteto foi gravado em 1959 pelo

Quarteto de Cordas da Rádio MEC. Esta obra revela, com clareza, a técnica

composicional e o estilo do compositor José Vieira Brandão, em três de seus

aspectos fundamentais: de um lado, a precisão da escrita do compositor,

cuidadoso em todos os detalhes da construção da peça, mas sem perder jamais e

espontaneidade; de outro, o gosto pela estética do neoclassicismo, que o faz

adotar princípios composicionais – como o desenvolvimento imitativo – que por

si mesmos asseguram a unidade das obras e o equilíbrio entre suas partes; e

finalmente o compromisso implícito com a estética nacionalista, que talvez

responda ao que Mario de Andrade situaria na chamada fase da “inconsciência

nacional”, por buscar a essência da expressão musical de seu povo, sem

necessidade de citação de temas do populário.

As palavras de José Maria Neves praticamente reafirmam alguns dos principais

aspectos analisados em nosso trabalho sobre a relevante e bela obra musical de Vieira

Brandão, um compositor cujos méritos o Brasil ainda precisa conhecer e aprender a

admirar.

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Um importante reconhecimento do valor da composição de Vieira Brandão veio em

1996, quando ele dividiu com Osvaldo Lacerda o Prêmio FUNARTE de melhor compositor

do ano. Em 2001, ele recebeu ainda o Prêmio VivaMúsica! pelo conjunto de sua obra. Uma

derradeira honraria - e talvez a mais importante - foi concedida pelo Estado do Rio de

Janeiro com o prêmio Golfinho de Ouro.

Devemos acrescentar que Brandão é autor de uma ópera em três atos, ‘Máscaras’,

composta sobre o poema ‘As Máscaras’, de Menotti del Picchia, provavelmente a partitura

mais ambiciosa do mestre mineiro, cujos 120 minutos de música, concluídos em 1958,

permanecem inéditos - escandalosamente - até os dias de hoje.

Por fim, é importante mencionar que a produção musical de José Vieira Brandão

será ainda objeto de estudo do próximo trabalho do historiador José D’Assunção Barros,

que há alguns anos tem se dedicado a traçar um abrangente e aprofundado panorama

histórico da música no Brasil. O primeiro livro da série O Brasil e sua Música intitula-se

Raízes do Brasil Musical e trata de identificar e analisar a presença de elementos musicais

oriundos das culturas indígena, africana e européia na música brasileira, além de registrar

os primeiros movimentos de formação de uma tradição musical erudita no Brasil. O

segundo livro é dividido em dois volumes e abrange o período histórico das seis primeiras

décadas do século XX. O livro que nos interessa em particular encontra-se, no momento,

em fase de preparação e, segundo informações do autor, sem data prevista para ser

concluído e publicado. Mas trata-se do estudo da música erudita no Brasil a partir dos anos

cinqüenta do século passado. A julgar-se pela alta qualidade dos livros até agora publicados

por José D’Assunção Barros, podemos confessar com naturalidade que aguardamos com

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ansiedade a conclusão - e conseqüente publicação - deste trabalho. Especialmente quando o

autor promete dedicar alguns parágrafos à obra musical de José Vieira Brandão.

Será preciso falar também em compositores que não entraram

nesta segunda parte, apesar de não serem tão recentes do ponto de vista

de seus nascimentos. O critério que empregamos foi o de abordar

apenas os compositores que começaram a produzir uma parte mais

significativa de suas obras antes dos anos cinqüenta. Ficaram de fora

compositores como José Vieira Brandão (1911-2002) ou Mário Tavares

(1928-2003), consoante o critério de que é apenas a partir da década de

50 que eles começam a escrever a parte realmente significativa de sua

obra musical. [...] Mas eles serão estudados sistematicamente no

próximo volume, que encerra a parte deste trabalho dedicada à Música

Erudita no Brasil. (BARROS, 2004, p. 526)

1.3 O regente e educador musical

Optamos por relacionar as atividades de Brandão como regente coral e educador

musical, por constatarmos que elas estão intrinsecamente associadas, em sua carreira, mas

também, para dar maior objetividade ao nosso texto e fazê-lo fluir em direção ao segundo

capítulo, onde se concentra a parte mais importante deste trabalho. Sentimo-nos à vontade

para tomar esta decisão por já estarem disponíveis à pesquisa um razoável montante de

informações acerca do canto orfeônico, inclusive com referências à participação de

Brandão neste processo.

Foi através de Villa-Lobos que surgiu o interesse de Vieira Brandão pela educação

musical. Talvez não por vontade própria, mas para suprir a demanda urgente na formação

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de professores de música, multiplicadores das ações propostas no ambicioso projeto

idealizado por Villa-Lobos, e que foi aprovado e implementado em âmbito nacional sob a

chancela do governo Vargas, a partir de 1932, através da criação do Serviço de Música e

Canto Orfeônico.

Não entraremos nos aspectos políticos da relação entre Villa-Lobos e Getúlio

Vargas por não ser nosso principal escopo, além de se tratar de assunto extensamente

discutido. O que nos interessa, particularmente, é que Vieira Brandão tenha sido um dos

principais colaboradores de Villa-Lobos neste processo, tendo participado ativamente de

todas as etapas - da elaboração à execução - do mesmo.

Em 1934, Villa-Lobos começou a ampliar seu projeto educativo,

enviando carta aos interventores de todos os estados da Federação pedindo que o

ensino de música fosse incluído no currículo obrigatório das escolas. Para tanto,

oferecia o envio de caravanas de professores formados pelo Instituto Nacional de

Música e capacitados a servir como multiplicadores de orientação dada pelo seu

setor, a Sema. Recebeu muitas respostas. O professor José Vieira Brandão, de

sua equipe, foi deslocado para Sergipe; os estados da Paraíba e do Pará enviaram

professores para serem formados no Rio de Janeiro; professores de música de

Minas Gerais passam a receber orientação da Sema e a organizar concentrações

orfeônicas com seus alunos; o diretor do Departamento de Cultura de São Paulo

solicitou o envio de programas e músicas adotadas pela Sema. Em julho desse

mesmo ano, Villa-Lobos viajou ao Recife a convite do interventor para orientar

concentrações orfeônicas, proferir conferências e visitar várias escolas.

(GUÉRIOS, 2003, p. 185)

Villa-Lobos conseguiu que a música passasse a constar como disciplina obrigatória

do currículo escolar no Brasil, mas a boa nova trazia consigo o inevitável incremento do

volume de trabalho da equipe de professores da qual fazia parte o jovem Vieira Brandão.

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Havia necessidade de formar novos professores de música, oriundos de várias regiões do

país, que seriam os difusores do processo em seus estados de origem. O texto de Paulo

Renato Guérios é um bom testemunho da importância e do poder integral do SEMA no

processo de definição dos rumos das ações de musicalização e educação musical ocorridas

no Brasil getulista.

Referimo-nos propositalmente ao SEMA, como nos é mais familiar ao ouvido, e

não à SEMA, como faz o historiador. Na verdade, as duas versões são aceitáveis,

dependendo do momento histórico a que nos referimos. É o que esclarece a pesquisadora

Rosa Fuks (1991, p. 119):

Foi criado inicialmente com o nome de Serviço de Música e Canto

Orfeônico, passando em 1933 a denominar-se Superintendência de Educação

Musical e Artística – SEMA e, em 1936, Serviço de Educação Musical e

Artística do Departamento de Educação Complementar. Apesar de alguns

autores que analisaram o período se referirem a esta instituição como “A

SEMA” [grifo da autora], todos os entrevistados, principalmente aqueles que

nela desempenharam cargos importantes, a ela se referem como “O SEMA”

[grifo da autora]. Por esta razão, optamos por esta última forma.

Um bom panorama sobre as atividades de Vieira Brandão como regente e educador

pode ser encontrado no verbete da Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica,

Popular. Embora já tenhamos citado este verbete anteriormente, quando analisamos a

trajetória pianística de Brandão, ainda não havíamos exposto as informações que abaixo se

seguem:

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Fundador do Madrigal Vox em 1934, atuou como regente desse

conjunto coral até 1945. [...] Professor de prática de regência no Conservatório

de Canto Orfeônico desde 1943 até 1967, viajou pelos E.U.A. em 1945-1946,

como bolsista da University of Southern California, de Los Angeles. Nesse

período, além de estudar os diversos sistemas de educação musical utilizados em

escolas norte-americanas, atuou como regente do Madrigal Singers, conjunto

coral daquela universidade, apresentando em vários concertos obras de sua

autoria e de outros compositores brasileiros. Realizou palestras e recitais em

diversas cidades norte-americanas. Em março de 1946 representou o Brasil na

Bienal de Educadores Musicais, em Cleveland, E.U.A. De volta ao Brasil em

1947, a partir do ano seguinte dedicou-se a composição, atuando também como

regente de diversos corais do Conservatório de Canto Orfeônico e do

Conservatório Brasileiro de Música, do Rio de Janeiro, onde lecionou canto

coral. Membro fundador da Academia Brasileira de Música, atuou no serviço de

educação musical e artística do antigo Distrito Federal, como professor auxiliar

de música (1934-1940) e professor de artes (1940-1943). Desempenhou as

funções de técnico e educação musical e artística junto à Secretária Geral de

Educação e Cultura do Rio de Janeiro a partir de 1956 até 1967. É docente livre

de piano na E.N.M.U.B., atual E.M.U.F.R.J., cargo que ocupa desde 1950.

(MARCONDES, 1998, p. 113)

Uma curiosidade em relação à última frase deste texto é que localizamos no

Conservatório Brasileiro de Música a tese de livre docência intitulada O nacionalismo na

música brasileira para piano, concluída em 1949 e defendida por Vieira Brandão na

ocasião de seu exame de ingresso na instituição que hoje se chama Escola de Música da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. A tese é composta de introdução e cinco capítulos,

onde o primeiro deles explana sobre a presença de elementos nacionalistas nas obras

pianísticas de compositores anteriores a Villa-Lobos, como Brasílio Itiberê, Alexandre

Levy, Alberto Nepomuceno, entre outros mais; o segundo capítulo aborda obras de

Francisco Mignone – com destaque para as ‘Valsas de Esquina’ – e Ernesto Nazareth; o

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terceiro é exclusivamente dedicado à Oscar Lorenzo Fernândez, bem como o quarto e o

quinto capítulos são dedicados a Heitor Villa-Lobos e Camargo Guarnieri, respectivamente.

É um interessantíssimo estudo, principalmente quando levamos em consideração a

época em que foi escrito e o estilo característico com que se expressa o autor. É

particularmente valioso para os pianistas, por se tratar de apreciação sobre obras

importantes do repertório brasileiro feitas por um verdadeiro especialista. Transcreveremos

agora a conclusão desse trabalho, que julgamos especialmente significativa. Mantivemos,

por uma questão de fidelidade, a aborrecida numeração de parágrafos presente no

documento original, bem como o incoerente uso de maiúsculas.

211 – Acreditamos que, destacando alguns trabalhos dos compositores

citados nesta síntese, alcançamos como objetivo de estudo do panorama das

influências do Nacionalismo na música brasileira para piano.

212 – Na órbita da qual Villa-Lobos se tornou o centro de gravitação, uma

plêiade de compositores se integraram [sic] na mesma direção, conduzindo sua

imaginação criadora dentro desse ritmo evolutivo.

213 – Atualmente, novos horizontes se desdobram diante da Música

Brasileira que se dirige para rumos estéticos apoiados no panorama da música

universal.

214 – A corrente nacionalista lançou essas sementes que estão frutificando

nas várias tendências dos compositores contemporâneos que conduzem os

Destinos da Música no Brasil. (BRANDÃO, 1949, p. 41)

Aí está a fé de Vieira Brandão no nacionalismo, e, com ela, poderíamos muito bem

encerrar este capítulo. Mas preferimos deixar como últimas palavras aquelas da educadora

Jane Borges (2001, n. 9, p. 37), em artigo publicado no periódico Brasiliana, da Academia

Brasileira de Música.

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Vieira Brandão define um perfil que vai influenciar várias gerações e muitos

músicos pelo Brasil afora, principalmente aqueles que conviveram com ele ou

que receberam seus preciosos ensinamentos. Sua influência em minha vida foi

fundamental no que diz respeito ao desenvolvimento e gosto pelo canto coral e,

com certeza, o mesmo aconteceu com tantos quantos tiveram o privilégio deste

convívio. [...] Há em mim um sentimento de profunda gratidão e apreço ao

maestro Brandão por seu frutífero trabalho como regente coral, por sua

incansável luta pela educação musical no Brasil e pelo legado de uma obra de

reconhecido valor.

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CAPÍTULO 2 – O violão na obra de José Vieira Brandão

Para o desenvolvimento deste capítulo, contamos com o imprescindível apoio de

Fábio e Eunice Brandão, respectivamente, filho e viúva do compositor.

No início de nossa pesquisa, tínhamos conhecimento de apenas quatro peças escritas

por Vieira Brandão para o violão: ‘Mosaico n. 1’, ‘Suite para violão’, ‘Nazaretiando’ – para

oito violões, incompleta –, e ‘Valsa de Antigamente’. Cópias das três primeiras obras

chegaram a nós pelas mãos do próprio compositor, e a valsa nos foi enviada por correio

eletrônico por Fábio Brandão, após a morte do maestro, em 2002.

A alta qualidade musical das peças solo de Vieira Brandão, bem como seu caráter

único e pessoal, intimista, pleno de sutilezas que o distanciam naturalmente do estilo

exuberante de seu mestre Villa-Lobos, além dos indícios da existência de outras obras

desconhecidas, foram fatores de motivação para nosso ingresso no mestrado.

Encontramos, nos arquivos do Conservatório Brasileiro de Música, um documento

intitulado Catálogo cronológico classificado das obras do compositor brasileiro José

Vieira Brandão, datilografado em dez páginas, com data provável de 1972, onde há menção

a uma peça de nome ‘Valsa e Allegro’, de 1963, além de uma versão de ‘Prequeté’ para voz

e violão, de 1969. Esclarecer tais questões e estabelecer em bases concretas o catálogo de

obras violonísticas de José Vieira Brandão impunha-se como necessidade, e, desta forma,

passamos a considerar a elucidação desse tema um dos objetivos prioritários de nossa

pesquisa.

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Obtivemos também a informação de que a funcionária Carmen de España Iglesias,

responsável pela biblioteca do CBM, havia realizado, em caráter privado, um fichamento

catalográfico do acervo do compositor, por encomenda da família. Portanto, eram as mais

recentes informações disponíveis sobre o elenco de obras de Vieira Brandão. Examinar este

material era agora a prioridade absoluta e, assim, decidimos procurar a família do

compositor.

Fomos recebidos com gentileza e generosidade por Fábio Brandão, que se

prontificou a fornecer o material necessário para a pesquisa, apresentando-nos, em seguida,

uma obra desconhecida por nós, original para violão e coro em uníssono, denominada

‘Canção do adeus’, entre outras partituras que comentaremos mais adiante neste capítulo. O

encontro não teve o caráter de entrevista, mas, apesar disso, foi altamente esclarecedor de

uma série de questionamentos que vínhamos fazendo durante a pesquisa. Através da

conversa informal, pudemos obter informações relevantes para a compreensão do histórico

do interesse de Vieira Brandão pelo violão, bem como o importante papel exercido pelo

filho nesse processo. Na ocasião, Fábio Brandão cedeu-nos uma cópia da mais recente

listagem de obras de seu pai, organizada em fichas, como citamos no parágrafo anterior. O

exame do material revelou a existência de duas obras que não haviam sido mencionadas por

Fábio Brandão: ‘Estudo para violão’ e ‘Música para violão’. Desde então temos tentado,

sem sucesso, restabelecer o contato com a família a fim de obter uma cópia das mesmas.

A seguir, traçamos uma cronologia da relação do compositor com o violão, através

da apreciação de suas obras.

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2.1 As transcrições pianísticas

Tudo indica que o interesse nutrido por José Vieira Brandão pelo violão tenha sido

despertado em decorrência de sua amizade e convívio com Villa-Lobos. A aproximação

entre os dois se deu em 1932, quando Brandão atuava como tenor no recém criado Orfeão

de Professores, cujo efetivo tinha 250 vozes, entre professores ligados ao magistério

público do Distrito Federal (Rio de Janeiro), ao SEMA e às orquestras. Sua atuação tinha

caráter cívico-cultural, e estava inserida no projeto maior de Villa-Lobos para a educação

musical dos estudantes brasileiros. Essas informações nos chegam através da tese da

musicóloga Jane Borges de Oliveira Santos (2003), sobre a biografia de José Vieira

Brandão.

Do convívio profissional, surgiu a amizade profunda e duradoura que renderia bons

frutos aos dois artistas. É bem provável que o jovem Brandão tenha se encantado com o

violonismo de Villa-Lobos, já que teve a oportunidade de ouvir - pelas mãos do próprio

compositor - algumas de suas geniais peças para violão. E como atestam algumas raras

gravações disponíveis no museu que leva seu nome, Villa-Lobos não era um mau

intérprete, tinha conhecimento do repertório e notável domínio da técnica violonística.

Vieira Brandão contou-nos, em uma das inúmeras e agradabilíssimas conversas

informais que tínhamos nos corredores do Conservatório Brasileiro de Música, que

freqüentava a casa de Villa-Lobos quando presenciou o ato da composição dos ‘Cinco

Prelúdios’ para violão, concluídos em 1941. Disse ainda que o primeiro prelúdio a ser

concluído fora o de número três e que pediu à Mindinha - Arminda Neves D’Almeida,

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companheira de Villa-Lobos -, que lhe emprestasse o manuscrito secretamente, de tal

maneira que o mestre não percebesse, pois queria fazer-lhe uma surpresa. Assim feito,

chega Brandão alguns dias depois à casa de Villa-Lobos e surpreende o mestre com a

execução do ‘Prelúdio n. 3’ ao piano. Não sabemos qual foi a reação do músico carioca,

mas podemos arriscar sem receio que Brandão obteve aprovação de Villa-Lobos, tanto que

deu continuidade à transcrição dos demais prelúdios.

A versão completa da transcrição pianística dos ‘Cinco Prelúdios para Violão’ foi

publicada em 1970 pela editora francesa Max Eschig. Coube ao próprio Vieira Brandão a

primeira audição dessas obras em 1969, em concerto homenageando Heitor Villa-Lobos

nos seus dez anos de falecimento.

Outro grande projeto que consumiu meses de trabalho do compositor de

Cambuquira, já em plena maturidade, foi a transcrição para o piano dos ‘Doze Estudos’

para violão de Villa-Lobos, concluída na década de noventa e não publicada até este

momento. Tivemos o privilégio de olhar, por instantes, o manuscrito da transcrição do

‘Estudo n. 10’ nas mãos de Vieira Brandão, que teve a generosidade de mostrar-nos em um

de nossos encontros. Não era uma simples adaptação, a partitura continha diferenças

notáveis em relação ao original de Villa-Lobos, o isso sugeria que Vieira Brandão tivesse

reinterpretado – e reescrito – o texto musical ao dar-lhe novo sentido instrumental.

Mensurar a importância da obra violonística de Villa-Lobos é tão desnecessário

quanto destacar o papel relevante dos estudos para piano de Chopin, por exemplo. O que

importa, no nosso caso, é que foi através da música de Villa-Lobos que Brandão

estabeleceu seu primeiro diálogo com o universo do violão, gerando frutos que, até o

momento, ainda não foram devidamente conhecidos e apreciados.

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2.2 ‘Valsa’ - A primeira composição original

Se Villa-Lobos funcionara como uma espécie de vitrine das possibilidades sonoras

do violão, cuja atmosfera ímpar inspirou Vieira Brandão a tentar transportar-lhe o encanto

para o piano, foi seu filho, Fábio, o fator de motivação para que o compositor passasse a

compor originalmente para o violão.

Fábio Brandão começou a estudar violão ainda criança, entre 1962 e 1963, quanto

contava cerca de oito anos de idade. Teve como principal orientador o professor Antonio

Rebello, figura de prestígio no meio violonístico da época, responsável pela formação de

uma geração de bons violonistas, entre eles, os netos Sérgio e Eduardo, que se tornaram

mundialmente conhecidos como os irmãos Abreu.

Esta peça, de caráter puramente didático, apresenta na dedicatória a frase “para o

Fabinho”, e seu manuscrito, em apenas uma página, contém informações adicionais

relativas à digitação, de autoria provável do prof. Rebello. Exibimos agora os catorze

primeiros compassos, de acordo com o que está no original, mas sem as digitações.

Optamos por não incluir as pausas que o compositor deixou de grafar.

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Figura n. 1 – ‘Valsa’, compassos 1 – 14.

Observemos que, apesar da simplicidade intrínseca ao uso didático a que está

destinada, essa ‘Valsa’ evita a vulgaridade das harmonias óbvias e oferece um discurso

musical coerente sem ser excessivamente previsível, risco comum em peças do gênero. Mas

é evidente que ela representa apenas os primeiros passos de Vieira Brandão na composição

de obras originais para o violão, e não se pode esperar dela muito mais que isso.

Do ponto de vista musicológico, é importante esclarecer que esta ‘Valsa’

corresponde, pela data, à obra ‘Valsa e Allegro’ que aparece no catálogo datilografado que

mencionamos anteriormente. Fábio Brandão não soube explicar a discordância de

informações, mas garantiu-nos desconhecer a existência desse ‘Allegro’. A convicção do

filho do compositor indica que a hipótese mais razoável é que tenha havido engano por

parte de quem datilografou o catálogo. E desta feita, consideramos respondida a questão do

paradeiro de ‘Valsa e Allegro’, levantada logo no início de nossa pesquisa.

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2.3 A versão para violão do acompanhamento de ‘Prequeté’

A segunda incursão de Vieira Brandão pelo campo das transcrições teve agora

caminho inverso, com a versão para o violão do acompanhamento pianístico de uma de

suas mais exitosas canções: ‘Prequeté’.

Ao observarmos o belo manuscrito a nanquim em papel vegetal, todo ele escrito

com excepcional capricho pelo maestro, pudemos detectar uma flagrante incoerência no

que se refere às datas, tanto de composição – indicada como 1948, quando sabemos que

comprovadamente ocorreu em 1938 – como de transcrição, onde o enunciado “Rio, 1956”

conflita com a informação encontrada no Catálogo cronológico classificado das obras do

compositor brasileiro José Vieira Brandão7, que aponta 1969 como data da transcrição.

Figura n. 2 – cópia do manuscrito de ‘Prequeté’, página 1.

Dissipar a dúvida em relação à gênese da transcrição violonística de ‘Prequeté’

passou, então, a ser uma necessidade premente. Começamos então a duvidar que a data

atribuída pelo compositor fosse correta, e o motivo disso é que a expressão “Rio, 1956”

7 Documento datilografado ao qual já nos referimos neste capítulo.

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está escrita com traço caligráfico mais fino e com tinta diferente de todo o restante do

manuscrito, num forte indício de que esta linha tenha sido adicionada posteriormente.

Figura n. 3 – cópia do manuscrito de ‘Prequeté’, página 1, detalhe.

Uma segunda fonte manuscrita, datada de 1970, foi-nos apresentada pelo filho do

compositor, e contém a informação que parece dar fim ao mistério. A aparência de

rascunho e a escrita abreviada sugerem enfaticamente que este manuscrito tenha originado

o outro. Portanto, se verdadeira a hipótese, a transcrição violonística de ‘Prequeté’ não pode

ser anterior a 1970.

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Figura n. 4 – cópia do manuscrito de 1970 de ‘Prequeté’, página 1.

E como explicar a informação equivocada na partitura final?

É provável que o autor, ao passar a limpo a partitura, tenha deixado de registrar, por

esquecimento, o dia em que terminou a transcrição. E que, anos mais tarde, tenha resolvido

incluir essa informação, fiando-se em uma estimativa imprecisa quanto a um fato que talvez

já não estivesse mais tão acessível à sua memória. À parte as especulações, e considerando

o conjunto de indícios, é bastante plausível admitir como correto o ano de 1970 para a

transcrição de ‘Prequeté’ para voz e violão.

Observemos como Brandão escreve os sete compassos iniciais, onde o violão

prepara o ambiente para a entrada da voz, que ocorrerá no compasso seguinte.

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Figura n. 5 – ‘Prequeté’, compassos 1 – 7.

Alguns pontos merecem comentário, e o mais visível deles é a questionável opção

do autor pela escrita em duas pautas com clave de sol, algo não muito comum quando se

trata de música para violão. O que não quer dizer que não existam exemplos deste

procedimento no repertório violonístico – e os há -, mas eles costumam ser justificados por

motivos de clareza, seja para dar mais espaço visual a trechos excessivamente densos,

como é o caso de algumas intrincadas polifonias, seja para comportar procedimentos

específicos da música contemporânea e sua crescente necessidade de ampliação do âmbito

da notação musical. Não é o caso, porém, deste arranjo, que poderia ter sido escrito em

apenas uma pauta sem nenhum prejuízo para a clareza da partitura.

Outra questão é a simplificação do discurso musical do acompanhamento

violonístico em relação à parte original para piano. É evidente que o processo de adaptação

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de um texto pianístico para a linguagem do violão implica em algum tipo de perda, pelo

menos no sentido quantitativo do termo. Mas cabe ao transcritor a tarefa de devolver a

naturalidade gestual da execução a trechos musicais que se tornariam inexeqüíveis sem a

sua intervenção, e, além disso, criar uma atmosfera sonora cujo resultado seja

qualitativamente próximo da concepção criada pelo do autor. Dentro desse espírito, e

embasados pela imagem da partitura original do autor, propomos a seguinte solução para os

sete primeiros compassos de ‘Prequeté’:

Figura n. 6 – ‘Prequeté’, compassos 1 – 7, revisados por nós.

Mensurar o quanto deve ser simplificado, cortado, modificado, é tarefa que exige

aprofundado conhecimento instrumental, e nesse sentido, poderíamos dizer que Vieira

Brandão talvez tenha retirado, da parte adaptada para violão, mais elementos musicais do

que os absolutamente necessários para a sua realização. Não estamos querendo afirmar,

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com isso, que a transcrição do autor de ‘Prequeté’ seja pobre, do ponto de vista

violonístico. Pelo contrário, funciona muito bem no instrumento e soa robusta e brilhante, o

que, certamente, se deve à feliz coincidência de Brandão ter escolhido o tom de Mi menor

para a partitura original, de 1938, dispensando de transposição a versão violonística mais

recente.

É pertinente lembrar, especialmente àqueles pouco habituados com o universo

violonístico, que Mi menor é como que a tonalidade “natural” do violão, cujas cordas soltas

produzem a seqüência – do grave para o agudo - mi la ré sol si mi, ou seja, um acorde de mi

menor com adição de quarta e sétima, e estas são, em última instância, notas naturais

presentes na forma primitiva da escala de mi. Não é por acaso que é Villa-Lobos escolheu

este tom para o seu conhecidíssimo ‘Prelúdio n. 1’.8 O mesmo vale para o espanhol Isaac

Albéniz, cuja ‘Asturias’, para piano solo, mostra-se tão idiomática em relação ao violão – e

isso explica boa parte de sua fama entre os violonistas - que cria mesmo a impressão de ter

sido concebida para este instrumento.

De qualquer maneira, reafirmamos que a versão violonística de ‘Prequeté’, tal como

está grafada pelo compositor, é plenamente viável e satisfatória, tanto do ponto de vista

artístico como de sua realização prática no instrumento.

8 Além do ‘Prelúdio n. 1’, Villa-Lobos usou a tonalidade de Mi menor nas seguintes obras para

violão solo: ‘Prelúdio n. 4’, ‘Estudo n. 1’, ‘Estudo n. 6’, ‘Estudo n. 11’, ‘Choros n. 1’ e ‘Valsa-Choro’.

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2.4 ‘Estudo para violão’

Descobrimos a existência desta composição já no fim de nossa pesquisa, após o

exame minucioso das fichas catalográficas fornecidas pelo filho do compositor. Tentamos

restabelecer o contato com ele a fim de obter cópias do manuscrito deste estudo, porém,

não obtivemos sucesso. Lembramos que todo o acervo de José Vieira Brandão encontra-se

guardado com sua família, e apesar da boa vontade e generosidade característica dos

Brandão, é preciso reconhecer que isso dificulta o acesso às fontes de pesquisa.

Impossibilitados de realizar apreciação, repetimos as informações do fichário, onde

se lê que o ‘Estudo para violão’ foi composto no Rio de Janeiro, no ano de 1977, e

dedicado a Fábio Brandão.

2.5 ‘Música para violão’

Situação idêntica à do ‘Estudo para violão’. Tudo o que sabemos é que se trata de

um manuscrito a lápis, sem assinatura e inacabado. Não há menção à data de composição.

2.6 ‘Canção do adeus’ – para violão e coro

Informações sobre esta curiosa peça nos vêm da dissertação de Jane Borges Santos

(2003, p. 102).

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É de 1978 a Canção do Adeus, com letra e música de José Vieira Brandão, para

violão e coro em uníssono, dedicada aos formandos de 1978 do Instituto de

Educação do Rio de Janeiro, turma ‘Monteiro Lobato’. A 1ª audição aconteceu

no dia 23 de dezembro de 1978 na Formatura da turma que recebeu o título de

Festa do Adeus.

Dada a finalidade para qual a música foi concebida, é compreensível que Vieira

Brandão optasse por caminhos harmônicos já bem conhecidos do ouvido e exaustivamente

utilizados pelo universo da canção popular. A parte de violão é um tanto quanto

decepcionante, mas resulta a contento num contexto de simplicidade quase que elementar.

Obviamente, foi escrita para que um violonista amador pudesse chegar ao último compasso

sem maiores percalços.

Figura n. 7 – ‘Canção do adeus’, compassos 1 – 8.

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2.7 ‘Mosaico n. 1’ – interesse renovado nos anos oitenta

Foi na década de oitenta que Vieira Brandão produziu a parte mais expressiva de

sua obra violonística. O renovado entusiasmo demonstrado por um compositor já

septuagenário teve como motivo principal o fato de seu filho, Fábio, estar se dedicando

com mais seriedade aos estudos e obtendo progressos continuados no violão.

É razoável imaginar que Brandão se sentisse mais à vontade, nesse momento, para

escrever música destinada a um instrumento que ele, a princípio, não dominava. O fato de

poder submeter suas peças ao parecer técnico do filho, certamente teria reflexos no grau de

compreensão do idioma instrumental do violão. A hipótese ganha consistência ao

constatarmos a ausência de trechos inexeqüíveis em ‘Mosaico n. 1’, bem como o

aproveitamento consciencioso das particularidades sonoras do instrumento. O

esclarecimento de Fábio Brandão, no entanto, desmente as nossas suposições ao declarar

que o “velho” – é assim que ele se refere ao pai – gostava de compor sozinho, em

isolamento, e não costumava pedir sua opinião (informação verbal).9

‘Mosaico n. 1’ é composição de 1984 e dedicada a Turíbio Santos, que há alguns

poucos anos publicou-a em versão revisada no terceiro volume da série Violão Amigo,

lançada pela editora Zahar (2003, v.3). A peça foi gravada pelo violonista Cláudio

Tupinambá (1999), que se permitiu usar o nome da obra como título de seu primeiro CD.

A escrita de ‘Mosaico n. 1’ é, na maior parte do tempo, leve e transparente. Ao

ouvido, mostra-se com elegância e serena beleza, mesclando sonoridades ibéricas e

9 Conforme o depoimento informal prestado por Fábio Brandão a este autor, em 27 de janeiro de 2007.

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ambientações inspiradas no pungente lamento dos cantadores do Nordeste. Em alguns

momentos, sua escrita delicada chega mesmo a parecer um pouco vazia, provocando no

intérprete um incômodo que muitas vezes só é aliviado quando ele cede à tentação de

completar a partitura, colocando as notas que lhe parecem estar faltando. De fato, a versão

de Tupinambá apresenta vários – e desnecessários, a nosso julgar - acréscimos e

modificações em relação à partitura original. E quanto mais o violonista carioca aproxima a

música de Brandão à sua própria concepção sonora - seja somando oitavas, preenchendo

acordes, reescrevendo trechos ou adicionando efeitos violonísticos não previstos no original

-, mais ele a está afastando da transparência cristalina e da tênue substância com a qual foi

criada.

A música começa com o desenho entrecortado de dois acordes, que estabelecem as

primeiras impressões sobre o caráter modal que percorrerá toda a partitura. Apesar do início

no quinto grau, aos poucos vai se estabelecendo como centro gravitacional desta primeira

seção o modo de Lá eólio, que corresponde ao modo menor da escala natural, sem a

elevação do sétimo grau. Repare que, se encararmos o acorde de mi como o centro – o que

não seria absurdo, pois Brandão insinua esta ambigüidade -, estaremos então trabalhando

com o modo frígio, comumente encontrado nas tradições ciganas ligadas ao flamenco, que

encontraram especial acolhida em terras espanholas. Talvez isso explique o sabor ibérico

deste primeiro trecho, que culmina na típica escala que encontramos no terceiro e quarto

tempos do último compasso da figura.

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Figura n. 8 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 1 - 4.

Após a introdução que ocupa os dez primeiros compassos, surge o primeiro tema,

que vai até o compasso 26.

Figura n. 9 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 11 - 18.

Os compassos que se seguem retomam o desenho encontrado na introdução, mas

agora, usando como centro o modo de Dó eólio. Trata-se de uma transição para um trecho

bem contrastante, em notas repetidas, e andamento mais rápido. Este trecho exige execução

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precisa do violonista e uma bem resolvida técnica de mão direita, apesar da aparente

simplicidade.

Figura n. 10 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 37 - 42.

A forma entrecortada de ‘Mosaico n.1’ apresenta mais uma seção contrastante. O

andamento cai e a música vai ganhando um lirismo crescente, desde seu início, no

compasso 75, até atingir o clímax de dramaticidade num trecho de difícil realização, entre

os compassos 84 e 85.

Figura n. 11 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 84 - 87.

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A partir do compasso 96, a peça adquire caráter mais nordestino, e o compositor

começa a alternar o motivo “ibérico” inicial com recitativos que parecem ter sido

inspirados na arte dos cantadores e rabequeiros do Nordeste brasileiro. A conexão entre as

culturas não é nenhum disparate, e há um sem número de referência aos mouros – que por

muito tempo dominaram a Península Ibérica – em manifestações do folclore brasileiro.

Chamamos a atenção para o uso de harmônicos nas frases em recitativo, de belo efeito

sonoro, e perfeitamente realizáveis no violão através da técnica de harmônicos oitavados.

Figura n. 12 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 96 - 106.

A imaginação de Brandão não cessa, e ele nos surpreende com mais uma seção, esta

sim, de caráter genuinamente nacional, apoiada nos acentos nordestinos e no jogo

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inteligente das notas repetidas e das cordas soltas do violão. O tema, em modo lídio,

começa no compasso 112 quase oculto entre as semicolcheias do ostinato, a não ser pelo

providencial acento colocado acima das notas temáticas, que devem ser destacadas por

timbre, intensidade e duração. Isso se deve à preferência do compositor em utilizar a escrita

monofônica, por sua concisão e clareza, mesmo que o efeito sonoro obtido pela execução

seja claramente polifônico.

Figura n. 13 – ‘Mosaico n. 1’, compassos 110 - 115.

Exposto este último material temático, Brandão consegue aos poucos voltar ao

desenho ‘ibérico’ da introdução e concluir a peça com uma citação melódica, sem nenhum

acompanhamento, retirada do primeiro tema do compasso 11, seguida de um ataque

fortíssimo do acorde de lá sem a terça, e com a nona.

O nome ‘Mosaico’ deve ser uma alusão à forma musical, composta por várias

seções diferenciadas e de curta duração, à maneira de um mosaico, onde a imagem final é

obtida através da combinação de vários pedacinhos de diferentes formatos e cores. De fato,

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o corte formal dessa música é único, e parece não ter sido repetido em outras obras do

maestro. Certamente não, em relação às peças para violão. ‘Mosaico n.1’, com seus 127

compassos, é também a composição violonística mais ambiciosa – e talvez uma das mais

bem sucedidas – de José Vieira Brandão.

2.8 ‘Suíte para violão’

Em 1987, Vieira Brandão decidiu ampliar seu pequeno repertório de peças para

violão, e pôs-se a transcrever uma suíte composta dez anos antes, concebida para ser

executada originalmente em solo de viola (alto), e dedicada a Henrique Nirenberg. A obra

estrutura-se em três movimentos: os dois primeiros não apresentam título nem indicação de

velocidade, na partitura de violão, mas são indicados os tempos lento e allegretto,

respectivamente, na versão original para viola; o terceiro movimento recebe o título de

‘Valsinha’ nas duas versões, bem como a indicação de tempo andante moderato.

Sem fazer uso de modalismos, como em ‘Mosaico n.1’, o compositor nos apresenta

a versão violonística de uma peça elegantemente neoclássica, na forma, algo romântica, na

expressão - especialmente no primeiro movimento – e com alguns toques de brasilidade no

movimento final, onde transparece o espírito seresteiro do autor. O caráter nacional, no

entanto, não é a tônica predominante, e neste sentido, podemos afirmar que a ‘Suite para

violão’ é a mais neoclássica das obras violonísticas de Vieira Brandão.

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Figura n. 14 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 1 – 9.

O primeiro movimento estabelece logo de início o tom de Mi maior como centro, e

seu material temático é apresentado de forma objetiva, começando concomitantemente ao

ataque do acorde inicial, sem a necessidade de ser precedido de uma introdução. A nota

mais importante, por fazer parte da melodia, é o sol sustenido que se encontra na terceira

corda do violão, portanto, no “miolo” do acorde. O problema é fazer soar esta nota de

maneira suficientemente audível para que seja percebida como integrante da melodia que se

desenvolve em seguida. Não sugerimos outra maneira de ferir o acorde inicial que não seja

o clássico ataque arpejado, obtido através do deslizamento do polegar pelas seis cordas –

tomando o cuidado para que o movimento atinja máxima amplitude na altura da terceira

corda – ou, como preferem alguns, o deslizamento do polegar nas três cordas graves e a

seqüência de indicador, médio e anular para as agudas. Digitações heterodoxas podem ser

experimentadas, como tocar de forma arpejada todas as notas do acorde, com exceção do

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sol sustenido, que deve ser tocado por último, de maneira a ser destacado do acorde. Do

ponto de vista puramente racional, o problema do destaque é resolvido, mas, dificilmente,

soluções deste tipo apresentam resultado sonoro que não denuncie a falta de naturalidade

do gesto.

Quanto à questão idiomática, este primeiro movimento não é propriamente o que

poderíamos chamar de violonístico, e, em alguns trechos, a beleza do discurso musical

somente logra aparecer mediante algum esforço físico do intérprete, ao tentar dar sentido

harmônico a acordes escritos em posições algo incômodas. Nada, porém, irrealizável, ou

que, a priori, exija modificações. Além do mais, são somente alguns pequenos trechos.

Observemos um belo momento, quando o tema inicial, composto basicamente sobre

uma bordadura realizada na terça do acorde - as notas sol sustenido, sol natural e sol

sustenido -, é agora apresentado no tom se de Si maior.

Figura n. 15 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 19 – 24.

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A melodia deve ser executada preferencialmente sobre a segunda corda do violão, o

que dará um efeito cantabile mais convincente, pelo timbre mais encorpado e por facilitar o

vibrato, recurso cujo domínio - e uso criterioso, consciente - constitui um dos maiores

indicativos da qualidade de um intérprete.

Em seguida, o tema melódico retorna, desta vez em Dó maior, com feições de breve

desenvolvimento, cujas modulações vão, pouco a pouco, retornando ao tom original de Mi

maior através de escorregadios cromatismos, de esplêndido efeito harmônico. E neste

ponto, há um grave problema no manuscrito final do autor. Um compasso incompleto – o

de número 34, ver figura - foi a pista para detectarmos um erro do compositor. O que

parecia estar faltando, na verdade, era apenas um indício da constatação de que Vieira

Brandão se confundiu ao realizar a transcrição do original para viola – escrito no tom de Dó

maior e na clave de dó na terceira linha – para o violão, cuja versão está em Mi maior e

grafada em clave de sol. É natural que, após algumas operações mentais - repetidas nota por

nota - para chegar ao tom justo, tenha havido algum engano que possa ter se prolongado

por algumas notas. A angústia por não sabermos como resolver este impasse encontrou

alívio através do confronto com os originais do autor, a partitura manuscrita de 1977 que

constitui a primeira versão da música, para viola solo.10

De fato, nada estava faltando, e sim, sobrando. O trecho em questão tem dez

compassos na versão original de 1977, e dez compassos e meio na versão para violão de 10 Fábio Brandão nos apresentou cinco fontes manuscritas diferentes da ‘Suite para viola’, sendo que duas delas apresentavam elementos de digitação e revisão acrescidos pelo violista Henrique Nirenberg, a quem a música foi dedicada. Desconsideramos estas fontes por elas terem sido alvo de contaminação, mesmo com a permissão do autor. Das três fontes restantes, uma é um rascunho, e as outras são, provavelmente, cópias deste rascunho. Escolhemos a fonte manuscrita que mais se aproxima - inclusive em aspectos gráficos e visuais, além do conteúdo – do manuscrito autógrafo da versão para violão. Portanto, sempre que mencionarmos o manuscrito original do autor, para viola, é a essa fonte manuscrita que estaremos nos referindo.

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1987. Mas não se tratava apenas de cortar o excedente na versão mais recente, pois o que

permanecia não corresponde exatamente ao original. Vejamos como se encontrava este

trecho:

Figura n. 16 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 26 – 36.

E agora, após a revisão junto ao original da versão de 1977:

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Figura n. 17 – ‘Suite para violão’, primeiro movimento, compassos 26 – 35. Trecho revisado por nós.

Curiosamente, o trecho revisado é bem mais simples e fluente, do ponto de vista da

execução musical, que o manuscrito de 1987. Algumas notas diferem, e assinalamos com o

losango as lições discrepantes. A aparência mais equilibrada, especialmente no que tange à

forma (repare como ganharam regularidade as notas prolongadas), além do fato deste novo

trecho fazer muito mais sentido harmônico - por conta dos acordes terem sido devolvidos às

suas feições originais - são aspectos que conferem credibilidade e sustentação à revisão.

O segundo movimento apresenta a forma de tema com variações e foi concebido no

tom de Dó sustenido menor. O tema é de extrema delicadeza e simplicidade,

desenvolvendo-se em uma só linha melódica.

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Figura n. 18 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 1 – 11.

A primeira variação tem caráter rítmico e explora a articulação em staccato. A

presença de algumas notas repetidas entre outras não repetidas constitui uma armadilha

perigosa num trecho musical relativamente fácil. É preciso definir uma digitação eficaz

para a mão direita, e sugerimos a ação alternada dos dedos polegar e médio - ou polegar e

indicador -, por serem fórmulas naturalmente propícias ao toque staccato.

Figura n. 19 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 17 – 24.

À primeira variação, segue-se uma espécie de interlúdio, cuja sonoridade remete ao

universo da música vocal. Do compasso 34 (considerando a anacruse) ao 41, uma singela

frase melódica aparece como a dar um repouso para toda a agitação da variação anterior.

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Em seguida, ela é reexposta sob harmonização que lembra a textura coral, entre os

compassos 42 e 47, seguidos de uma longa e brilhante escala ascendente, um dos raros

momentos em que Vieira Brandão se permitiu tirar proveito explícito da virtuosidade do

intérprete.

Figura n. 20 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 33 – 49.

A realização instrumental deste trecho torna-se pouco cômoda a partir do compasso

43. Isso acontece devido à escolha da tonalidade de Dó sustenido maior, quase nunca

utilizada no violão, pelo simples fato de que nenhuma das notas dessa escala coincide com

os sons das cordas soltas, o que significa mais trabalho para os dedos da mão esquerda, que

terão menos oportunidades de se soltar do braço do violão.

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Outra questão importante que envolve a escolha das tonalidades em obras para

violão é a ressonância característica do instrumento. Há tonalidades que inegavelmente

soam melhor que outras, por propiciarem o fenômeno das vibrações simpáticas, ou seja,

quando a freqüência de certas notas é realimentada pelos harmônicos das cordas que não

estão participando diretamente da ação. Por exemplo, ao tocarmos um mi preso na segunda

corda do violão, sua freqüência coincide com o quarto harmônico da sexta corda solta, e

com o terceiro harmônico da quinta corda solta, portanto, sua ressonância natural é bem

maior que a da nota fá, meio tom acima, que não encontra o mesmo suporte de sustentação

por não haver vibrações por simpatia, já que esta freqüência não faz parte da série

harmônica de nenhuma das cordas soltas do violão. Agora imaginemos um tom onde, em

sua escala natural, não há a possibilidade do uso das cordas soltas. Este tom é Dó sustenido

maior.

A segunda - e última - variação tem caráter virtuosístico e efeito brilhante. Sua

execução exige que o intérprete saiba aliar fluência mecânica e consistência sonora,

aspectos cujo alcance pode ser severamente limitado pela tonalidade.

Figura n. 21 – ‘Suite para violão’, segundo movimento, compassos 49 - 58.

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Em todo o segundo movimento, a questão da tonalidade parece ser o maior

inconveniente. Não que impossibilite a execução, pois, apesar do relativo incômodo, a peça

está bem concebida para o instrumento e funciona a contento. Algo, porém, nos levava a

crer que este segundo movimento soaria de maneira mais brilhante se estivesse concebido

num tom mais violonístico. Decidimos experimentar o transporte para uma terça menor

acima, e reescrevemos este movimento em Mi menor.

O resultado, em termos de adequação idiomática, tanto do ponto de vista da

facilidade de execução como da qualidade do efeito sonoro, foi animador. Desta maneira,

pudemos reescrever a parte coral mencionada anteriormente, ganhando um baixo que pode

ser tocado com a sexta corda solta, liberando a mão esquerda da produção desta nota, e

devolvendo a fluência e naturalidade da execução, certamente como imaginou o

compositor.

Tal atitude poderia ser considerada algo herética por alguns puristas, pois,

teoricamente, quebraria a unidade tonal da suíte. Um exame mais minucioso, no entanto,

nos revela que o próprio compositor já abrira mão deste aspecto ao escrever os dois

primeiros movimentos com quatro sustenidos na armadura de clave – os tons de Mi maior e

Dó sustenido menor, respectivamente – e o terceiro movimento com três sustenidos,

indicando o tom de Fá sustenido menor, mas cujo final é um acorde de mi menor. O caráter

ambíguo da tonalidade do terceiro movimento e a aparente normalidade com que o autor

trata essa questão reforçaram-nos a convicção quanto à pertinência do transporte do

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segundo movimento para o tom de Mi menor. E que as vantagens desse procedimento

superam em larga escala os problemas que dele possam advir.11

O terceiro movimento recebeu o título de ‘Valsinha’ e é, talvez, o mais interessante

da suíte, principalmente por seu equilíbrio formal e pela inventividade no trato da harmonia

e da melodia, que se desenvolvem em permanente fusão.

Figura n. 22 – ‘Suite para violão’, terceiro movimento, compassos 1 - 16.

Brandão começa sua ‘Valsinha’ com uma melodia sobre o arpejo da tônica de Fá

sustenido menor, mas logo no compasso sete, inicia um processo modulante em direção ao

tom de Mi menor, que encerra este primeiro período. Curiosamente, o acorde de mi menor

encerra também a própria música, o que, certamente, atribui ambigüidade à percepção da

11 A versão revisada do segundo movimento, em Mi menor, está disponível nos anexos.

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tonalidade, além de representar comportamento pouco usual dentro do contexto de

neoclassicismo proposto pelo compositor. Recapitulemos o esquema de tonalidades da

‘Suite para violão’: o primeiro movimento começa e termina com o acorde da tônica de Mi

maior; o segundo movimento começa na tônica de Dó sustenido menor e termina com o

acorde de dó sustenido maior, a chamada terça picarda; o terceiro movimento tem seu

início na tônica de Fá sustenido menor e seu término num acorde de mi menor.12

De qualquer maneira, o acorde final não representa a tonalidade preponderante,

como veremos mais adiante.

O trecho que se segue é dos mais bem construídos, e está nas notas acentuadas o seu

sentido fraseológico. O acento mais forte está sobre as notas da melodia, representadas pela

figura da mínima pontuada, nos três primeiros compassos de cada sistema. O acento mais

brando é colocado sobre algumas notas da segunda voz, e sugere que as mesmas sejam

prolongadas, criando assim um efeito mais polifônico e complexo do que aquilo que

aparece grafado.

Figura n. 23 – ‘Suite para violão’, terceiro movimento, compassos 17 - 25.

12 Usamos letras minúsculas para os acordes e maiúsculas para as tonalidades, conforme a convenção.

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A escrita é extremamente eficaz, e a prova disso é que a aparência limpa e direta da

partitura nos conduz objetivamente a resultados sonoros ricos em complexidade,

rebuscamento e beleza.

‘Valsinha’ ganha interesse especial a partir do compasso 39, quando o autor usa

quiálteras com intuito de diluir a percepção do ritmo, e assim, tratar com mais liberdade as

vozes que vão surgindo do desenho melódico dos acordes. Os acentos, bem como as

ligaduras de fraseado, são fundamentais para a compreensão deste trecho que, apesar de ser

um dos mais belos momentos da música, poderia perder o sentido nas mãos de um

intérprete desatento.

Figura n. 24 – ‘Suite para violão’, terceiro movimento, compassos 39 - 47.

Este tema é reexposto uma oitava acima, com modificações, e representa uma

transição em retorno à seção inicial, que finaliza a peça no paradoxal acorde de mi menor.

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Um fato de grande interesse para nossa pesquisa foi a descoberta de um esboço para

o quarto movimento da suíte, ‘Dança’, já concebido originalmente para violão, cujo

manuscrito13, de 1987, estava guardado nos arquivos do compositor, junto a uma cópia da

‘Valsinha’. Infelizmente, a segunda seção da peça está incompleta, mas temos todo o início,

uma seção completa de desenvolvimento, bem como indicação do compositor para a

realização do final. Arriscaríamos dizer que poderia ser concluída por um compositor

competente sem grandes prejuízos para o estilo característico de Vieira Brandão. De

qualquer forma, não é esse o intuito de nosso trabalho.

2.9 ‘Valsa de Antigamente’

Fomos informados da existência da ‘Valsa de Antigamente’ em 2002, por Fábio

Brandão, após a missa encomendada pela família pelos 30 dias de falecimento do

compositor. Segundo Fábio, seu pai havia composto esta peça aparentemente

despretensiosa para que pudesse ser tocada por ele. A música, no entanto, reservava certas

singularidades e trechos de difícil realização ao violão, apesar de, no papel, parecer simples

e fluente. O fato é que a peça, concluída em 1988, só foi estreada catorze anos depois pelo

autor desta dissertação, no recital ‘Vieira Brandão – 1 ano de saudade’, realizado no dia 29

de julho de 2003 no Auditório Lorenzo Fernândez do Conservatório Brasileiro de Música,

onde foram apresentadas diversas obras do maestro, na interpretação de destacados artistas

da cena musical carioca.

13 Por uma questão ética e de fidelidade ao autor, que primava pelo fino acabamento de suas composições, não disponibilizaremos cópias dos manuscritos das peças inacabadas.

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Trata-se de uma obra que revela algumas das melhores qualidades do estilo musical

de José Vieira Brandão em sua fase mais madura, e que podem ser traduzidas pela busca

constante da simplicidade e da clareza do discurso musical. É uma peça cristalina por seu

fino acabamento e delicada transparência, e desenvolve-se num incessante fluir melódico

de inspirada e espontânea beleza.

A ênfase na melodia como meio de expressão poderia nos dar uma falsa impressão

de preponderância desta em relação à harmonia, ou ainda, que a utilização de extensos

trechos onde aparece somente uma linha melódica desacompanhada poderia ser indicativa

da ausência de harmonia. Se a primeira suposição soa-nos imprecisa, a segunda, então, é

flagrantemente incorreta. O equívoco reside no fato de que, mesmo nos trechos

essencialmente monódicos, a harmonia está sempre presente, não de maneira explícita, mas

como resultado da seqüência dos acordes que vão sendo desenhados pelo traçado sinuoso

da melodia. O recurso não é novidade, tendo sido usado com excepcional maestria por

Bach, há quase três séculos, em especial nas suas várias sonatas e partitas (suítes) para

instrumentos solistas. Mas é a maneira elegante pela qual Brandão se utiliza desta técnica

que seduz nossos sentidos estéticos.

Retornando à suposição deixada em aberto, se a melodia prepondera sobre a

harmonia na ‘Valsa de Antigamente’, defendemos que, apesar de o compositor ter-se

utilizado de textura melódica na quase totalidade da peça, seu raciocínio é essencialmente

harmônico, bem como seus objetivos.

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Figura n. 25 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 1 - 16.

Observemos o início da partitura, representado na figura n. 1, e vejamos como

demora cerca de cinco compassos para ficar bem definida a tonalidade da música, Si

menor. Brandão parece apreciar a ambigüidade produzida pelo início no quarto grau, o

acorde de mi menor com a nona na melodia, que funciona quase que como uma apojatura

que dura o compasso inteiro. Na verdade, ele foge todo o tempo das soluções harmônicas

óbvias, e o faz valorizando o poder atrativo das dissonâncias, atrasando sua resolução e

conseguindo, assim, maior efeito expressivo, mas tudo dentro de um contexto

eminentemente tonal.

Outro aspecto que chama a atenção é a precisão da escrita, rica em detalhes, mas

nada há lá que não seja o absolutamente essencial. Não é carregada de penduricalhos

inúteis e nem apresenta informações em excesso, tão comuns a alguns compositores

ansiosos por interpretações cada vez mais idealisticamente fiéis à sua concepção, não

importando muito a concepção do intérprete. Vieira Brandão escreve o que considera

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importante. Reguladores de dinâmica e expressões básicas como crescendo e diminuindo,

informações quanto à agógica - como na sugestão de tempo rubato e no uso criterioso do

ritenuto, do rallentando, do accelerando – e quanto à articulação, que também é notada

com precisão, através de acentos e de generosas ligaduras que percorrem toda a peça,

servindo como um valioso guia para a compreensão do fraseado desta obra.

Com relação à forma, Vieira Brandão utiliza-se do clássico corte A-B-A, mas as três

partes estão bem alinhavadas e a conexão entre as duas primeiras é tão natural que pode

passar despercebida, se o intérprete ignorar as indicações de agógica e articulação. Na parte

B, no tom de Lá menor, aparece um expressivo tema em assumida textura de melodia

acompanhada.

Figura n. 26 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 48 – 55.

Com relação à viabilidade instrumental desta obra, podemos afirmar que quase toda

ela flui com naturalidade se o intérprete não optar por digitações – ou dedilhados – que

interrompam o efeito legato das frases melódicas. Aliás, a escolha da melhor “coreografia

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dos dedos” - a que melhor se presta a recriar os contornos melódicos imaginados pelo

compositor - constitui um dos mais importantes fatores para o êxito de uma interpretação.

Há pequenos pontos que merecem cuidado especial. Um deles encontra-se ainda na

figura n. 26, compasso 52, na quarta colcheia: o acorde de lá menor é incômodo – não

impossível – de ser tocado após a nota fá, sem que haja um significativo corte entre as duas

figuras, o que estaria em desacordo com a indicação de legato entre as mesmas. , do

compositor. Sugerimos a exclusão da nota dó no referido acorde, o que permite a execução

do trecho em legato, sem ter que tirar a mão da posição, e sem nenhum prejuízo para a

definição modal do acorde, já que todo o compasso está em lá menor e há mais duas notas

dó, na mesma altura. Ficaria assim:

Figura n. 27 – ‘Valsa de Antigamente’, compasso 52. Revisado por nós.

Outro trecho de difícil solução técnica está localizado entre os compassos 25 e 31,

que veremos a seguir. Antes, porém, é necessário tecer um esclarecimento sobre a maneira

pela qual o compositor faz uso do acento denominado tenuto, que é representado

iconicamente por um hífen colocado acima – ou abaixo, mas preferencialmente próximo –

da “cabeça” da nota. Entre os signos da família dos acentos, o tenuto é deles o mais brando,

e costumeiramente assume caráter agógico, além do dinâmico. Seu efeito está mais para um

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prolongamento - uma sustentação - das notas nas quais ele vem grafado – que devem ser

tocadas levemente apoiadas, claro - do que um reforço sensível no ataque das mesmas,

como é o caso dos outros acentos.

Dito isso, precisamos agora compreender que, quando Brandão usa uma seqüência

linear de colcheias, onde algumas delas recebem o tenuto e outras não, ele está sugerindo

que as notas acentuadas devem ficar soando mais tempo que as não acentuadas, ou seja,

está propondo uma interpretação “polifônica” de um trecho escrito, a princípio, a uma só

voz. É evidente que ele poderia ter desmembrado em mais vozes, mas tal atitude faria com

que a partitura fosse invadida por novos e desnecessários elementos gráficos, que

acabariam por obscurecer a límpida aparência e a eficácia precisa da escrita do mestre

mineiro.

Vejamos o trecho mencionado:

Figura n. 28 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 25 - 31.

Se considerarmos que as notas com o tenuto devem ser mantidas mais tempo, o

ideal seria que todas elas pudessem ser tocadas em cordas diferentes, de tal maneira que a

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emissão do som de uma nota não interrompesse a ressonância da nota anterior. Quase todas

as digitações testadas davam como resultado algo muito aquém daquilo que consideramos

esteticamente razoável, primeiro porque teríamos obrigatoriamente de tocar pelo menos

duas notas sustentadas na mesma corda, o que significa a impossibilidade de elas serem

ouvidas simultaneamente, e em segundo lugar, a região extremamente aguda em que o

trecho está escrito dificulta sobremaneira a movimentação natural dos dedos.

A frustração por não encontrar uma saída satisfatória para um trecho tão pequeno da

música só foi debelada com o surgimento de uma idéia engenhosa. O problema todo era a

nota ré encontrada nos terceiros tempos dos compassos 25 ao 31. Se ela não estivesse ali,

daria para fazer cada nota em uma corda diferente, e a mão esquerda poderia ficar parada,

sustentando todas as notas e misturando-lhes a ressonância, num belo efeito violonístico

conhecido como campanela. A solução veio de maneira peculiar, pois o ré em questão

poderia ser feito como um harmônico natural produzido apenas pela mão direita – numa

técnica semelhante à dos harmônicos artificiais - na altura de onde seria o traste XXIV da

quarta corda, produzindo o ré duas oitavas acima da corda solta. Desta forma, a nota mais

aguda fica na primeira corda e cada uma das três notas que recebem o tenuto distribuem-se

comodamente na segunda, terceira e quarta cordas. A sonoridade do harmônico, juntamente

com a tessitura assaz aguda, a mistura dos sons e a dinâmica em piano criam um clima de

delicada magia, num trecho que teria tudo para “murchar” pela dificuldade de realização.

Uma última observação refere-se aos acordes em harmônicos presentes nos segundo

e terceiro tempos do compasso 82 e no primeiro tempo do compasso 83.

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Figura n. 29 – ‘Valsa de Antigamente’, compassos 80 - 83.

O acorde de mi menor pode ser realizado em harmônicos naturais, de maneira

elementar, já o acorde de lá menor, exigiria um bom tempo de pesquisa para achar uma

aproximação convincente, e seria necessário um procedimento técnico tão radicalmente

diferente do acorde anterior – e para não ter um resultado cem por cento satisfatório -, que

julgamos ser a solução mais pertinente abrir mão dos harmônicos e realizar a execução dos

acordes em sua forma simples, na mesma oitava em que aparecem na partitura.

2.10 ‘Nazaretiando’ – o último sopro

O ano de 1996 marcou o início das atividades da Camerata de Violões do

Conservatório Brasileiro de Música, grupo idealizado numa reunião de professores e que

conquistou espaço no panorama musical brasileiro sob nossa direção musical. O maestro

Vieira Brandão era um verdadeiro entusiasta da sonoridade do conjunto, e raramente perdia

uma de nossas apresentações. Motivado, ele iniciou em 1998 a composição daquela que

seria sua última obra, ‘Nazaretiando’, para oito violões, dedicada ao nosso octeto. Alguns

meses depois, recebemos das mãos do compositor um manuscrito inacabado contendo 37

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compassos de excelente música, porém, não mais do que uma introdução e um tema cujo

desenvolvimento ainda estaria por vir. A idéia era que avaliássemos esses primeiros

compassos quanto à sua adequação à técnica violonística e, mais especificamente, à

sonoridade do grupo. Testamos as partes num ensaio e, apesar dos gaguejos e hesitações

comuns à primeira leitura, estava claro que tínhamos em mãos o princípio de uma obra

musical da mais alta qualidade, representativa do período de maturidade máxima de um

compositor que, há muito, encontrava-se em plena posse de seus recursos técnicos e

estéticos.

Transmitimos ao maestro nossas impressões positivas e obtivemos dele a promessa

de conclusão da obra. Enquanto aguardávamos notícias, prosseguíamos em atividade. Após

a virada do milênio, e por conta da proximidade de seu aniversário de noventa anos, José

Vieira Brandão passou a receber inúmeras homenagens e premiações, ao mesmo tempo em

que sua saúde já não o permitia gozar do tardio reconhecimento. Certa vez, indagamos ao

maestro sobre a música e não tivemos coragem de interrompê-lo em interessantíssima

explanação genérica sobre o tema “a música”. Parecia não se recordar da composição que

ficara inacabada, mas diante de nossa insistência, prometeu averiguar. O tempo,

infelizmente, não trabalhava a nosso favor e nossas esperanças foram definitivamente

abortadas no dia 26 de julho de 2002, com o falecimento do maestro José Vieira Brandão,

aos noventa anos de idade.

Tecida em inteligente contraponto de efeito musical irresistível, evocando o

universo do choro carioca com a homenagem explícita a Ernesto Nazareth, esta obra é

também uma homenagem ao violão, e isso fica evidente quando observamos, na

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introdução, os agrupamentos de quartas – mais a terça sol si - que correspondem às cordas

soltas deste instrumento.

Figura n. 30 – ‘Nazaretiando’, cópia da primeira página do manuscrito.

É notável o jogo rítmico que estabelece desde o início, através do desenho

entrecortado que vai sofrendo processo de constante desenvolvimento, e cujo objetivo é

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essencialmente lúdico. A introdução atinge seu clímax a partir do compasso dez, onde o

compositor passa a se utilizar da textura homofônica, fazendo do uníssono rítmico o

aspecto de maior interesse do trecho.

A textura contrapontística assume posição preponderante a partir do compasso

dezoito, onde tem início a sessão temática de ‘Nazaretiando’.

Figura n. 31 – ‘Nazaretiando’, cópia da quarta página do manuscrito, compassos 16 - 19.

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E o discurso musical vai fluindo à perfeição até ser abruptamente interrompido pela

ausência das páginas que nos conduziriam ao restante da composição. Precisávamos agora

saber se o material que possuíamos era, de fato, a última versão da música, ou se o

compositor escrevera algo mais. Fábio Brandão confirmou-nos a existência de mais páginas

no manuscrito autógrafo, onde o maestro chegou a escrever 47 compassos incompletos,

contra os 35 que sabíamos existentes. Além disso, mostrou duas folhas avulsas com o

rascunho de partes a serem incluídas em ‘Nazaretiando’. Porém, todo o material pesquisado

mostrava nitidamente que a peça estava em franco processo de desenvolvimento criativo, e

que seu término ainda estava longe por vir.

Lamentamos profundamente que o maestro não tenha tido tempo para concluir esta

obra única, tanto do ponto de vista do repertório violonístico como também o da sua própria

produção artística. Nela, estão sintetizadas as características mais marcantes do pensamento

musical de José Vieira Brandão, que encontra sua expressão mais natural no terreno fértil

da música de câmara.

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CAPÍTULO 3 – Catálogo das obras para violão

de José Vieira Brandão

Com este catálogo, cumprimos o objetivo de fixar, pela primeira vez em trabalho

acadêmico, relevantes e confiáveis informações sobre a produção musical violonística deste

grande compositor brasileiro.

É importante frisarmos que esta listagem não tem caráter definitivo, e a explicação

para este fato vem da maneira pela qual estão organizadas as fichas catalográficas que, até

então, constituem a fonte mais recente de informações sobre o acervo de Vieira Brandão.

De fato, muitas fichas omitem informação relativa à instrumentação, e, desta maneira

ficamos impossibilitados de afirmar categoricamente que nosso elenco corresponda à

totalidade de obras compostas para o violão por José Vieira Brandão. É possível, se não

provável, que existam mais músicas. Para termos absoluta certeza, seria necessário

examinar a integralidade do acervo do maestro, o que, evidentemente, foge às nossas

possibilidades, devido ao fato de o mesmo estar sob responsabilidade da família do

compositor, e não disponível em alguma instituição que pudesse propiciar-lhe o acesso.

Encontramos menção às peças ‘Estudo para violão’ e ‘Música para violão’ através

do exame das fichas, mas, até o momento, não obtivemos as cópias dos manuscritos. Por

essa razão, faltam informações completas sobre as mesmas.

Dividimos as obras em duas categorias: a primeira, dedicada às composições para

violão solo; a segunda abrange as peças que incluem o violão em sua formação

instrumental.

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Nas duas categorias, seguimos a ordem alfabética pelo título, que aparece sempre

em negrito, seguido de informações quanto a local e data de composição, instrumentação

(apenas na segunda categoria) e aspecto do manuscrito. Informações complementares,

como o conteúdo das dedicatórias, podem ser encontradas nas observações.

3.1 OBRAS PARA VIOLÃO SOLO

Estudo para violão Rio de Janeiro, 1977. Manuscrito a lápis. [?]p. Obs.: “Para o Fábio” Mosaico n. 1 Rio de janeiro, maio de 1984. Manuscrito autógrafo, 6 p. Obs.: “A Turíbio Santos”. Obs.(2): Há versão impressa publicada pela editora Zahar, na coleção Violão Amigo (2000, v. 3). Música para violão Local e data ignorados. Manuscrito a lápis, sem assinatura e inacabado. [?]p. Suíte para violão Rio de Janeiro, abril de 1987. Em três movimentos: Lento, Allegretto e Valsinha. Manuscrito autógrafo, 6 p. Obs.: Transcrição do autor da suíte original para viola (alto) solo, de 1977. Obs. (2): Há um esboço – que não faz parte deste manuscrito - para um quarto movimento da ‘Suíte para Violão’, intitulado ‘Dança’, de 1987. Valsa Rio de Janeiro, 12 de maio de 1963. Manuscrito autógrafo, 1 p. Obs.: “Para o Fabinho”.

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Valsa de antigamente Rio de Janeiro, 02 de junho de 1988. Manuscrito autógrafo, 3 p. Obs.: “A meu filho Fábio”.

3.2 OBRAS PARA VIOLÃO EM OUTRAS FORMAÇÕES INSTRUMENTAIS Canção do adeus Rio de Janeiro, 1978. Para violão e coro a uníssono. Manuscrito autógrafo, 1 p. Obs.: Na dedicatória consta “Aos formandos de 1978 do Instituto de Educação do Rio de Janeiro”. Nazaretiando Rio de Janeiro, 1998. Para octeto de violões. Manuscrito autógrafo, 11 p. Obs.: composição inacabada, dedicada à Camerata de Violões do Conservatório Brasileiro de Música. Prequeté Rio de Janeiro, 1970. Para voz e violão. Poema de Cassiano Ricardo. Manuscrito autógrafo, 7 p. Obs.: Versão do autor do original para voz e piano, de 1938. Obs. (2): Na primeira página, aparecem as datas incorretas de 1956 (versão para violão) e 1948 (composição). Obs. (3): Há outra fonte manuscrita, com aspecto de rascunho, datada de 1970.

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CONCLUSÃO

Esperamos que este trabalho tenha ajudado a melhor dimensionar a importância de

José Vieira Brandão para a música brasileira, em sua múltipla atuação. Como pianista,

cujos méritos foram amplamente reconhecidos ainda na primeira metade do século passado,

e que fizeram com que Villa-Lobos confiasse ao jovem artista a estréia de várias de suas

obras. Como compositor, cujo estilo elegante e pessoal desmente a injustiça que costumava

cometer a si próprio, quando se declarava um mero seguidor de Villa-Lobos. E, por fim,

como regente coral e educador musical, atividades que se entrelaçam continuamente em sua

plural trajetória.

O homem generoso, afável, otimista, bem humorado, cujo porte emanava um tipo

de dignidade que jamais se confundia com arrogância, é também abordado na sua dimensão

mais humana, particularmente através da palavra de pessoas como José Maria Neves e

Vasco Mariz, especialistas, mas acima de tudo, amigos próximos do compositor.

Esses foram assuntos tratados no primeiro capítulo desta dissertação, onde traçamos

um esboço biográfico do artista em sua multifacetada personalidade artística, com destaque

à sua atuação como compositor. Aliás, a produção musical de Vieira Brandão suscitou

abrangente discussão estética cuja conclusão pode ser expressa na identificação dos

elementos característicos do estilo musical único do maestro de Cambuquira. São eles: o

uso exclusivo da linguagem tonal; a presença de elementos regionais e nacionais (mesmo

não sendo o nacionalismo um objetivo declaradamente assumido em sua obra); a

preocupação com o equilíbrio formal, que se manifesta preferencialmente através da

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apurada técnica de composição, inspirada em procedimentos do neoclassicismo;

inventividade melódica; espontaneidade e fluidez do discurso musical. Qualidades, entre

muitas outras, que certamente colocam José Vieira Brandão na categoria dos mais

importantes compositores brasileiros atuantes na segunda metade do século XX.

No segundo capítulo, investigamos a relação do compositor com o violão, desde o

interesse inicial, na década de trinta – que foi despertado em decorrência da amizade com

Villa-Lobos, resultando na transcrição pianística dos ‘Cinco prelúdios’ -, passando pelo

auge da produção dedicada ao violão, na década de oitenta, e chegando à última das obras

de seu catálogo geral: ‘Nazaretiando’, de 1998, para octeto de violões.

Abordamos cada uma das peças deste especial elenco, fornecendo as informações

que nos pareciam pertinentes e relevantes, tanto do ponto de vista musicológico como do

puramente prático, em sua relação direta com a técnica instrumental. Mesmo quando

enveredamos no campo da análise musical, houve a preocupação, no uso da linguagem, de

evitar o tecnicismo pernóstico que caracteriza certos trabalhos do gênero. Os critérios para

a escolha dos assuntos, bem como a profundidade da abordagem, variaram conforme as

necessidades do contexto.

No terceiro capítulo, exibimos um dos mais importantes resultados de nossa

pesquisa: o catálogo das obras violonísticas de José Vieira Brandão. Acreditamos ser esta

uma válida contribuição para a feitura de um catálogo geral de obras deste compositor,

ainda inexistente.

As peças originais para violão solo receberam cuidadosa editoração eletrônica, e

estão disponíveis na seção de anexos. Com isso, pretendemos honrar um de nossos mais

relevantes compromissos, que é o de tornar acessível aos violonistas este especialíssimo –

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se não extenso – repertório que, sem dúvida, enriquece a literatura de nosso instrumento,

por sua alta qualidade e beleza. Em relação a este assunto, ressaltamos a importância da

edição da ‘Suite para violão’, cujo manuscrito de 1987 continha um grave erro no primeiro

movimento, o que tornaria inviável uma correta interpretação da obra. Restauramos o texto

original através do confronto com os manuscritos da primeira versão da música, de 1977,

para viola solo.

Além da ‘Suíte para violão’, disponibilizamos a edição impressa de ‘Valsa’ (para o

Fabinho), ‘Valsa de Antigamente’ e ‘Mosaico n.1’. O fato de ‘Mosaico n.1’ já ter sido

contemplado com uma cuidadosa edição, revisada e publicada pelo violonista Turíbio

Santos (2003, v. 3), não constitui, a nosso ver, impedimento para que ofereçamos aos

estudiosos uma versão não revisada - e, portanto, mais autêntica em relação ao manuscrito

autógrafo – da mesma obra.

Incluímos também, nos anexos, uma versão revisada por nós do segundo

movimento da ‘Suíte para violão’, transportado e ajustado para o tom de mi menor. A

inclusão desta versão alternativa se justifica pelo interesse que ela pode suscitar aos

violonistas, por resolver grande parte das dificuldades técnicas da peça. Pequeníssimas

modificações - ajustes, melhor dizendo - foram realizados com o intuito de propiciar uma

melhor acomodação do texto musical ao novo tom. Deixamos claro que esta versão tem o

intérprete – e não o pesquisador - como público preferencial.

Esclarecemos que, por uma questão de fidelidade ao compositor, não

disponibilizamos as cópias dos manuscritos das músicas inacabadas, por mais interessante

que seja o material musical esboçado nelas. Segundo nossa consciência, isso iria contra o

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altíssimo padrão de acabamento – musical e visual - com que Vieira Brandão costumava

realizar seus manuscritos.

Por último, é necessário aceitar que esta pesquisa não tem caráter definitivo. É bem

possível que haja outras obras dedicadas ao violão e que permanecem, até o momento,

desconhecidas, conforme já discutimos no capítulo anterior. As dúvidas remanescentes

somente serão desfeitas com o estabelecimento de um catálogo geral de obras do

compositor José Vieira Brandão, ainda inexistente, e que cuja feitura – que foge totalmente

ao escopo desta pesquisa – recomendamos efusivamente como assunto a ser tratado em

trabalho acadêmico posterior.

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REFERÊNCIAS

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WISNIK, J. M. O Som e o Sentido. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1989. p. 161.

2. DICIONÁRIOS E ENCICLOPÉDIAS

ANGLÉS, H.; PENA, J. (org.) Dicionário de la Musica Labor. Barcelona: Labor, 1954. tomo I, p. 351. HORTA, L. P. (org.) Dicionário de Música. Rio de Janeiro: Zahar. 1985. p. 54. MARCONDES, M. A. (org.) Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica, Popular. 2. ed. São Paulo: Art Editora, 1998. p.113. MATAS, F. R. (org.) Diccionario Biografico de la Musica. 2. ed. Barcelona: Editorial Ibéria, 1966. p. 164. SADIE, S. (org.) Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 131.

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4. TEXTOS REPRODUZIDOS DE ENCARTES DE CD NEVES, J. M. As Obras. In: Vieira Brandão: um quarteto, um estudo, uma sonata e dez canções. CD de áudio produzido pela Rádio MEC. Rio de Janeiro, 1998.

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TACUCHIAN, R. Vieira Brandão, Luz Própria. In: A obra de José Vieira Brandão. CD de áudio produzido pelo Conservatório Brasileiro de Música. Rio de Janeiro, 1995.

5. TESES BRANDÃO, J.V. O nacionalismo na música brasileira para piano. 1949. 41 p. Tese de concurso à Docência-livre de Piano da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil. 1950. SANTOS, J. B. de O. Biografia documentada de José Vieira Brandão: pianista, educador, regente coral e compositor. 2003. 167 p. Dissertação de mestrado em musicologia pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. 2003.

6. DOCUMENTOS BRANDÃO, J.V. Notas explicativas sobre o CD/1995 intitulado ‘A Obra de José Vieira Brandão’. Documento datilografado localizado nos arquivos do Conservatório Brasileiro de Música, Rio de Janeiro. 7 f. 1995. CATÁLOGO cronológico classificado das obras do compositor brasileiro José Vieira Brandão. Documento datilografado localizado nos arquivos do Conservatório Brasileiro de Música, Rio de Janeiro. 10 p. [1972?]

7. MATÉRIAS JORNALÍSTICAS

MASSARANI, R. José Vieira Brandão. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 19 dez. 1973.