José Gabriel da Costa

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    1/13

    Jos Gabriel da Costa, um ilustre Enteogenista.

    Jos, o menino de Corao de Maria

    No dia 10 de fevereiro de 1922, na localidade de Corao de Maria, prxima a Feira de Santana,Bahia, nasce Jos Gabriel da Costa. Filho de Manuel Gabriel da Costa e Prima Feliciana da Costa,Jos nasce em uma numerosa famlia de treze irmos: Joo, Dionsio, Otaclio, Pedro, Romo, Maria,Mida, Jos Gabriel, Sinh, Alfredo, Antnio, Maximiano, Hiplito[2]. No livro Unio doVegetal: Hoasca; Fundamentos e Objetivos, o nico texto editado para o grande pblico at omomento pela instituio, apenas trs pginas tratam da vida do fundador da UDV. Assim, tivemosde buscar informaes junto a parentes e outras pessoas que com ele conviveram, alm de pesquisar

    no jornal Alto Falante, do Departamento de Memria e Documentao da UDV.

    Segundo seus parentes, desde pequeno, Jos j se destacava como algum especial. Contam queainda criana, ele auxiliou uma mulher com dificuldades de parto. O beb se encontrava malposicionado e a parteira temia que morressem me e filho. Jos entra no quarto, manda todos sarem,tranca a porta e logo em seguida a destranca. Quando o menino abre a porta, simultaneamente nasce acriana.

    Na dcada de 20, o menino Jos cresce em um meio rural fortemente marcado pelo catolicismopopular. Uma recordao que narram de sua infncia que o garoto ia aos domingos igreja de suacidade e levava com ele um barbante. Durante a missa, amarrava as pessoas umas s outras, pelos

    passantes das roupas, sem que elas percebessem[3]. Nas chamadas, hinos entoados durante o ritualda UDV, h referncias constantes a Jesus e a vrios santos catlicos: a Virgem da Conceio, So

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    2/13

    Joo Batista, a Senhora Santana, So Cosmo e So Damio.

    Aos 13 anos de idade, em 1935, Jos vai trabalhar em Salvador. Emprega-se em diversosestabelecimentos comerciais. Aos 18 anos, presta servio militar voluntariamente na Polcia Militarda Bahia, chegando em poucos meses patente de cabo de esquadra. Segundo seu irmo Antnio,

    atualmente tambm mestre na UDV, Jos Gabriel conheceu todas as religies, conheceu os terreirosde Salvador, andou por todas as religies procurando a realidade[4]. Segundo outro mestre, Josiniciou na cincia esprita com apenas 14 anos. Provavelmente, esta informao refere-se participao de Jos em terreiros de candombl, e no em centros kardecistas, com os quaisentretanto ele tambm entrou em contato, s que posteriormente, ainda quando morava em Salvador.

    Segundo o pesquisador Afrnio Patrocnio de Andrade, Jos Gabriel freqentou sesses espritaskardecistas na Bahia[5] . Foi, alis, em Salvador que teve incio o espiritismo kardecista no Brasil, noano de 1865. Lus Olmpio Teles de Menezes fundou nesse ano o centro esprita Grupo Familiar doEspiritismo[6]. De acordo com Patrocnio de Andrade, certos temas recorrentes na Unio do Vegetalpoderiam ter sido colhidos do espiritismo kardecista. Antes de mais nada, a viso reencarnacionista,

    um dos eixos fundamentais da viso de mundo da UDV. Assim como o lema Luz, Paz e Amor,denominado o smbolo da Unio, poderia provir dos temas espritas da luz interior, da paz deesprito e do amor ao prximo (ou caridade). A prpria nfase na Unio freqente entre osespritas no Brasil.[7]

    3. O capoeirista

    Segundo declaraes de familiares, o jovem Jos foi considerado pelos prosadores populares um dosmelhores da regio. Como cantador repentista teve sucesso inclusive em Alagoas e Sergipe. Tambmse destacou na capoeira, chegando a ser considerado um dos melhores do Nordeste. O livro de RuthLandes, A cidade das mulheres, nos auxilia a traar um panorama dos ares soteropolitanos da dcadade 30, que Jos tantas vezes respirou. A autora levada por Edison Carneiro para assistir umacapoeira. Ela descreve detalhadamente a seqncia do jogo, e em certo momento, observa:silenciados os ecos do desafio, terminada a rodada, os dois homens andavam e corriam semdescanso em sentido contrrio aos ponteiros do relgio, um atrs do outro, o campeo frente com os

    braos levantados[8]. interessante notar que no ritual da UDV a circulao das pessoas no salo sefaz tambm no sentido anti-horrio, pois este o sentido da fora. Na capoeira, Jos cultiva umasrie de habilidades postas em prtica posteriormente, em suas experincias de incorporao nostoques de caboclo como Sulto das Matas. Do mesmo modo, tais habilidades tambm foramexercitadas como Mestre da UDV.

    Evocadora desse ambiente capoeirista a cantiga de domnio pblico gravada por Nara Leo, svezes tocada em sesses da UDV:

    Minino, quem foi teu mestre?

    Meu mestre foi Salomo.

    A ele devo dinheiro,

    saber e obrigao.

    O segredo de So Cosme

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    3/13

    quem sabe So Damio, ol

    gua de beber, camarada

    gua de beber, ol

    gua de beber, camarada

    faca de cortar, ol

    Faca de cortar, camarada,

    Ferro de engomar, ol

    Ferro de engomar, camarada

    Perna de brigar, ol

    Perna de brigar, camarada.

    Minino, quem foi teu mestre?[9]

    Parece estar relacionada capoeiragem a deciso do jovem Jos de viajar da Bahia para o Norte. Deacordo com relato de seu filho Carmiro da Costa, em 1943 Jos envolve-se num conflito. Um amigoseu, de nome Mrio, tem o p pisado por um policial. Jos Gabriel compra a briga do Mrio. Estefoge e os policiais seguram Jos. Num golpe de destreza, ele consegue se desvencilhar dos policiais.Segue para um navio, para onde tinha ido se refugiar o amigo Mrio. Os dois se alistam no Exrcitoda Borracha e rumam para o Norte no navio Par, da frota do Lloyd Brasi leiro. Chegando a Manaus,embarcam no navio Rio Mar, com destino a Porto Velho, onde chegam no dia 13 de setembro de1943. Os dois vo juntos para o trabalho na seringa e fazem um pacto de amigo, de s se separarempela morte. No seringal, Jos Gabriel cumpre at o fim esse pacto, cuidando de Mrio, que adoececom leishmaniose. Chega a carregar Mrio nas costas por vrios quilmetros. Quando o doentemorre, seu amigo sozinho o enterra na floresta.[10] Tudo indica que Mrio era companheiro de

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    4/13

    capoeira de Jos Gabriel. No mundo da capoeiragem na poca, a tica dos grupos sublinhava aimportncia da solidariedade e fidelidade entre os camaradas. E eram freqentes os conflitos entre osgrupos, com a polcia ou com indivduos de outros segmentos da sociedade. Em dissertao acerca dacapoeira no Rio de Janeiro de 1890 a 1937, Antonio Pires afirma que as relaes de conflito esolidariedade na capoeiragem estiveram permanentemente relacionadas com os conflitos mais gerais

    da sociedade[11]. Parece que j se esboa nesse tempo a preocupao de Jos Gabriel com ajustia. Sua participao na capoeiragem em Salvador no conflita com seu engajamentoprofissional, primeiramente como comercirio e depois como enfermeiro. Como observa AntonioPires quanto capoeira no Rio, a maioria dos capoeiras comprovaram manter vnculos com omundo do trabalho, descaracterizando o esteretipo de vadios construdo em relao a eles.[12]

    4. O seringueiro do Exrcito da Borracha

    Chegando no Territrio de Guapor, atual Estado de Rondnia, Jos Gabriel se insere num ambientecom uma configurao ecolgica e scio-cultural bem distinta da Cidade de Salvador. O extrativismoda borracha, depois de seu perodo de boom, entre 1890 e 1912, havia em seguida atravessado uma

    fase de declnio, devido concorrncia no mercado internacional da borracha extrada na sia. Coma Segunda Guerra Mundial, apresentou-se a necessidade de borracha para os exrcitos Aliados. Coma assinatura de acordos com os Estados Unidos, o Governo Vargas iniciou uma ampla campanha derecrutamento de trabalhadores, principalmente nordestinos, para a extrao gomfera no Norte. Foicriado o SEMTA, Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia, que, somenteno ano de 1943, encaminhou 13 mil pessoas, segundo dados oficiais[13].

    No mesmo ano de 1943, Jos Gabriel integra essa massa de trabalhadores nordestinos que se lanamcomo brabos nos seringais amaznicos. Brabo gente que nunca cortou seringa, nunca andou nafloresta. Sofremos muito, como brabo - declara Pequenina, esposa de Jos Gabriel[14]. Osofrimento daqueles homens, submetidos a condies de vida e trabalho extremamente penosas, emum ambiente desconhecido, sem o auxlio governamental prometido pela propaganda oficial, ficou

    bem marcado na memria dos sobreviventes da batalha da borracha. A antroploga Lcia Arrais,que est elaborando sua tese de doutorado a respeito dos soldados da borracha, recolheu o seguintedepoimento, de um Sr. Chico, ex-soldado da borracha, que bem se assemelha ao da esposa de JosGabriel: .... a casa dele era bem pequenininha num tinha onde a gente dormir. Dormimo no tetomermo. Carapan! Carapan, Lcia! e agora, a comida? Tudo brabo, tudo... a gente j tinha deixado aCompanhia [SEMTA] j... A fiquemo a sofrendo.. fiquemo jogado que nem cachorro na beira dorio... [Qual?] era o Solimes acima de Tef. A eu disse: ombora pessoal! v amo meu povo!, boracuidar!, bora se virar.[15] Arrais observa que aqueles que conseguiram sobreviver a condies toadversas foram homens de significativa inteligncia e iniciativa, que conseguiram adaptar seus

    esquemas de percepo e recursos cognitivos nova realidade em que se encontravam: Numaatitude de quem vive em estado de autodefesa permanente, o Sr. Chico diz: ombora pessoal! bora sevirar!. E ento escolhem uma linha de ao onde predomina a iniciativa e a coragem. Ondeprevalece a concentrao dos recursos da percepo, da memria e da ateno para dirigir esforos nadescoberta de meios capazes de resolver a questo.[16] Jos Gabriel foi um desses homens de agudainteligncia e destreza, que no somente conseguiu sobreviver como chegou a ser considerado pelosseus companheiros como o Tuxua, o seringueiro que coletava maior quantidade de seringa naregio. Tais xitos eram acompanhados de dureza e sofrimento, como quando Jos Gabriel pisou emuma arraia, e teve de passar um ano e dez meses sem poder andar, de muleta.[17]

    5. O og do terreiro de Chica Macaxeira

    Depois de trabalhar um tempo no seringal, Jos Gabriel muda-se para Porto Velho, onde fica

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    5/13

    trabalhando como servidor pblico, enfermeiro no Hospital So Jos. Conhece, em 1946, RaimundaFerreira, chamada Pequenina, com quem se casa no ano seguinte. Em Porto Velho, Seu Gabrielatendia pessoas em sua casa, pois jogava bzios. Mais tarde, se torna Og e Pai do Terreiro de SoBenedito, de Me Chica Macaxeira[18]. Esse terreiro foi citado por Nunes Pereira[19], que o visitou,possivelmente em meados da dcada de 60 ou no incio dos anos 70. O pesquisador maranhense

    reconhece o terreiro de Porto Velho como sendo da tradio mina-jeje, oriundo da Casa das Minas.Os toques, inegavelmente, tinham a rtmica que me era familiar no s da Casa das Minas, de SoLus do Maranho, como do Bogum de Me Valentina, em Salvador, Estado da Bahia.[20]

    surpreendente descobrir que Nunes Pereira encontrou no Terreiro de Chica Macaxeira umainovao no ritual mina-jeje, o uso da ayahuasca. E isso, sem dvida, para estimular , paralelamente,com os cnticos rituais e com a voz sagrada dos tambores, ogs e gs, o estado de transe, a possessoque ligam os Voduns do panteo daomeano ou do ioruba s gonjais e noviches que o cultuam[21].Ora, no tempo em que Jos Gabriel l trabalhava como Og, no havia utilizao da ayahuasca noculto, tanto que ele somente viria a conhecer a bebida anos depois, no seringal. Assim, legtimodeduzir que a Me-de-Terreiro Chica Macaxeira conheceu a ayahuasca atravs de seu antigo Og e

    Pai-de-Terreiro Jos Gabriel. Quando Nunes Pereira visitou o terreiro, o conjunto dos cnticos era ldenominado Doutrina da Ayahuasca. Nomes de santos catlicos, nalguns desses cnticos, semisturaram com os dos Voduns mina-jejes, tais como Xang, Bad, Avrqute, e os ditos Baro deGor, Sulto das Matas, Marangal, Jatpequare, Tindarer, etc.[22] significativo que nos anos 60ou 70 haja a presena do Sulto das Matas na lista das entidades do terreiro, j que, como se veradiante, Jos Gabriel recebia esse caboclo quando trabalhava num terreiro que armou no seringal,nos anos 50.

    6. O Sulto das Matas e os xams da fronteira boliviana

    At 1950, Jos Gabriel morava com Pequenina em Porto Velho. O casal j tivera dois filhos: Getlioe Jair. Alm de trabalhar como enfermeiro, ele tinha tambm uma taberna de bebidas. E gostava depoltica. Diante dos dois partidos que disputavam o governo do Territrio de Guapor, o de Rondon eo de Alusio, Jos Gabriel era pr-Rondon. No entanto, seu candidato perdeu, e ele foi perseguido emseu emprego pblico no hospital. Tendo de se afastar de seu trabalho, Jos resolve voltar para oseringal. E sua mulher discorda: Eu disse: No, o que isso? Eu no nasci no seringal, em mato.

    No quero criar meus filhos sem saber ler e escrever. Ele disse: porque eu vou atrs de umtesouro. Mas eu era uma pessoa de cabea cheia de muitas coisas e achei que era riqueza materialque ele ia achar, e ns ia enricar, ter uma vida de rosa. Ento, quando ele disse que ia, eu disse:Ento, vamos. Ento eu digo que esse tesouro que ele encontrou junto comigo e os dois filhos, pramim, um tesouro to maravilhoso que dinheiro nenhum no paga essa felicidade. (...) Ento, esse

    tesouro, que a Unio do Vegetal, tem me amparado.[23] Nestas palavras de Mestre Pequenina eprovavelmente tambm na afirmao de Jos Gabriel, poder-se-ia detectar a presena dos motivosednicos que povoaram o imaginrio das populaes que se defrontaram com a floresta amaznica.Nos sonhos e anseios dos nordestinos pobres que se lanam na aventura da borracha ecoam ainda as

    buscas das estranhas coisas deste Brasil: do Eldorado, da Lagoa do Vupabuu, ou da serraanunciada por Filipe Guilln, que resplandece muito e que, por esse seu resplendor era chamadasol da terra [24]. Posteriormente, o sonho do tesouro a ser encontrado na selva resignificado,passando a expressar a Unio do Vegetal, que nasce da floresta, de um lquido tambm dourado,denominado por vezes de ch misterioso[25].

    No seringal Orion, Jos Gabriel abriu o terreiro no qual recebia o caboclo Sulto das Matas. Como

    recorda Mestre Pequenina, vinha gente de tudo quanto era seringal[26] consultar o Su lto dasMatas. E ele curava as pessoas, assim como indicava o lugar certo onde se encontrava caa.

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    6/13

    Adaptando-se a um novo contexto scio-ecolgico-cultural, Jos Gabriel dirige um rito sincrticoafro-indgena, no qual o valor simblico da floresta, que perpassa toda a vida dos seringueiros, ficaevidente. Tal rito, designado pelo filho de Jos Gabriel simplesmente como macumba[27], pareceassemelhar-se pajelana cabocla amaznica[28], uma forma de xamanismo no-indgena na qualtem importncia fundamental a noo de incorporao do curador por entidades espirituais que agem

    atravs dele para a cura dos doentes. No entanto, certamente permaneciam marcantes nos toques doSeringal Orion os elementos religiosos afros vivenciados anteriormente por Jos Gabriel, seja naBahia, seja em sua participao no Terreiro de So Benedito de Porto Velho.

    Mais tarde, quando j esto em outro seringal, Pequenina fica sabendo de um ch: o pessoal v isso,v aquilo, o cara falou at com o filho depois de morto[29]. Ela fala a Jos Gabriel e ele vai pedir och ayahuasca a quem o distribua no lugar. Mas o homem disse que no dava o Vegetal praquele

    baiano que sabe aonde as andorinhas dormem[30]. Tempos depois, no seringal Guarapari, numacolocao chamada Capinzal, na regio da fronteira boliviana, Jos Gabriel recebe pela primeira vezo ch de um seringueiro chamado Chico Loureno, no dia 1 de abril de 1959. Chico Lourenorepresenta uma tradio indgena-mestia de uso xamnico da ayahuasca que se espalha por uma

    ampla regio da Amaznia ocidental. Tal tradio designada posteriormente pela UDV como a dosMestres da Curiosidade. A se inicia nova etapa na trajetria de Jos Gabriel.[31]

    7. O Mestre e Autor da Unio do Vegetal

    Jos Gabriel bebe apenas trs vezes o ch com Chico Loureno. Logo depois, viaja por um ms paralevar um filho doente a Vila Plcido, no Acre, e quando retorna traz um balde com o cip mariri e afolhas de chacrona que colheu no caminho. Diz mulher: Sou Mestre, Pequenina, e vou prepa rar omariri[32]. Segundo seu filho Jair, nesse perodo o Mestre Gabriel no deixou a macumba no. Elefazia uma Sesso de Vegetal e uma de umbanda.[33]

    Somente em 1961 ele reuniu as pessoas e disse: Eu quero falar pra vocs que tudo que o Sulto dasMatas fez eu sei: Sulto das Matas sou eu.[34] Este um dos momentos mais importantes de rupturade Jos Gabriel com a tradio religiosa qual estava ligado anteriormente. Ao postular para simesmo o poder antes atribudo entidade Sulto das Matas, o agora Mestre Gabriel nega a

    incorporao dos cultos de caboclo e configura o transe que ser tpico da Unio do Vegetal: aburracheira. A burracheira, que segundo Mestre Gabriel significa fora estranha, a presena da

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    7/13

    fora e da luz do Vegetal na conscincia daquele que bebeu o ch. Assim, trata-se de um transediverso, no qual no h perda da conscincia, mas sim iluminao e percepo de uma foradesconhecida. H uma potencializao dos sentimentos, das percepes e da conscincia doindivduo.

    Em seguida, Mestre Gabriel e sua famlia se mudam para o seringal Sunta. No dia 22 de julho de1961, ele rene as pessoas para um preparo de Vegetal. Nesse dia, o Mestre Gabriel declara criada aUnio do Vegetal. Ou melhor, afirma que a UDV foi recriada, j que ela teria existido no passado,quando ele mesmo teria vivido em outra encarnao. No dia 6 de janeiro do ano seguinte, MestreGabriel se rene com doze Mestres da Curiosidade no Acre, em Vila Plcido. Numa sesso, elesreconhecem Gabriel como o Mestre Superior. Finalmente, no dia 1 de novembro de 1964 realizadauma sesso na qual o Mestre Gabriel afirma que fez a Confirmao da Unio do Vegetal no AstralSuperior. Logo depois, em 1965, ele se muda para Porto Velho, para l consolidar a nascenteinstituio. Apenas seis anos depois, se deu o falecimento de Jos Gabriel da Costa, no dia 24 desetembro de 1971.

    8. Concluso

    Descrevendo-se em largos traos a vida de Jos Gabriel da Costa, fica patente a sua participaonuma larga seqncia de configuraes culturais muito prprias da sociedade brasileira: ocatolicismo popular rural do interior da Bahia, a capoeiragem e os cultos afro-brasileiros de Salvador,a vida sofrida de seringueiro na Amaznia, a experincia de incorporao dos cultos de caboclo, otranse xamnico do hoasqueiro, e, finalmente, a atuao carismtica do fundador de um novomovimento religioso.

    A maleabilidade, a destreza, a vivacidade e a ginga da capoeira contriburam para que Jos Gabrielviesse a elaborar uma inovadora sntese de diversos elementos culturais e religiosos, num cultoprofundamente adaptado realidade scio-cultural amaznica. E no apenas adaptado a esta, mascom virtualidades para se expandir por todo o Brasil, exatamente por ser constitudo por uma criaovigorosa que se apropriou de configuraes provenientes de diversas regies brasileiras.

    O que ensina Gilberto Freyre pode inspirar a concluso deste texto: Verificou-se entre ns umaprofunda confraternizao de valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    8/13

    das senzalas; puxando para o individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes.Confraternizao que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado aformao social do Brasil; um tipo mais clerical, mais asctico, mais ortodoxo; calvinista ourigidamente catlico; diverso da religio doce, domstica, de relaes quase de famlia entre ossantos e os homens, que das capelas patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas -

    batizados, casamentos, festas de bandeira de santos, crismas, novenas - presidiu o desenvolvimentosocial brasileiro.[35] Jos Gabriel da Costa, nascido nessa sociedade propensa a hibridismos, plenade plasticidade e inclusividade, elabora uma nova religio que tambm doce, na medida em queprivilegia o sentir e propicia ao indivduo espao para que ele prprio construa suas reinvenescriativas.

    * * *

    Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Centro de EstudosSuperiores da Companhia de Jesus (CES), em Belo Horizonte, Licenciado em Filosofia pelaPontifcia Universidade de So Paulo e Bacharel em Teologia pelo CES, o autor atualmente faz o

    Mestrado do Programa de Ps-graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, daUniversidade Federal do Rio de Janeiro. Desde 1992 vem estudando a Unio do Vegetal, e o tema desua dissertao ser a respeito dos discpulos urbanos da UDV.

    BIBLIOGRAFIA

    ABREU, Regina. A doutrina do Santo Daime. in: Leilah Landim (org.) Sinais dos tempos -Diversidade religiosa no Brasil, Rio de Janeiro, ISER, 1990. pp. 253-263. (Col. Cadernos do ISERn23).

    ANDRADE, Afrnio. A Unio do Vegetal no Astral Superior. in: Comunicaes do ISER, Rio deJaneiro, ano 7 n 30, 1988. pp. 61-65.

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    9/13

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    10/13

    So Paulo, 1992, 163 p.

    MAUS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajs, Santos e Festas: Catolicismo popular e controleeclesistico. Belm: CEJUP.

    PIRES, Antonio Liberac Cardos Simes. A capoeira no jogo das cores: criminalidade, cultura eracismo na Cidade do Rio de Janeiro (1890-1937). Dissertao de mestrado em Histria - UNICAMP. Campinas, 1996. 258 p.

    PEREIRA, Nunes. A casa das minas. Contribuio ao estudo das sobrevivncias do culto dos vodunsdo panteo daomeano, no estado do Maranho, Brasil. Petrpolis, 1979, 2a. ed. 245 p.

    SILVA, Clodomir Monteiro da. O palcio de Juramidan. Santo Daime: um ritual de transcendncia edespoluio. Dissertao de mestrado em Antropologia Cultural - UFPE. Recife, 1983. 202 p.

    SOARES, Luiz Eduardo. Misticismo e reflexo. in: Comunicaes do ISER, Rio de Janeiro, n 37,

    pp. 42-49.

    ______________________O Santo Daime no contexto da nova conscincia religiosa. in: LeilahLandim (org.) Sinais dos tempos - Diversidade religiosa no Brasil, Rio de Janeiro, ISER, 1990. pp.265-274. (Col. Cadernos do ISER n 23).

    ____________________ Religioso por natureza: cultura alternativa e misticismo ecolgico no Brasil.In: Leilah Landim (org.) Sinais dos tempos - Tradies religiosas no Brasil, Rio de Janeiro, ISER,1989. pp. 121- 144. (Col. Cadernos do ISER n 22).

    JORNAIS

    1. ALTO-FALANTE. Jornal do Departamento de Memria e Documentao da UDV. Braslia.

    a) Mar / Jul 92 - CONFEN libera ch por unanimidade.

    b) Dez 92 / Jan 93 - No relato dos pioneiros, o perfil do Mestre.

    c) Jan / Jul 93 - pp. 10-13 - Entrevista com M. Nonato.

    d) Ago 93 / Fev 94 - pp. 8-10 - Entrevista com M. Ccero.

    e) Mar / Abr 94 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Sidon.

    f) Mai / Jun / Jul 94 - pp. 8-11 - Entrevista com M. Pernambuco.

    g) Ago / Set / Out 94 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Roberto Souto.

    h) Nov / Dez 94 / Jan 95 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Manoel Nogueira.

    i) Abr / Jun 95 - pp. 8-11 - Entrevista com Cons. Paixo.

    j) Ago / Set / Out 95 - pp. 6-9 - Entrevista com M. Pequenina e M. Jair.

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    11/13

    l) Nov / Dez 95 / Jan 96 - pp. 4-5 - Entrevista com M. Monteiro.

    m) Fev / Set 96 - pp. 8-11 - Entrevista com M. Florncio.

    2. CORREIO BRAZILIENSE. Braslia.

    a) 10 de julho de 1996. Caderno Cidades, p. 4 - Ch Hoasca inofensivo sade.

    3. O Alto Madeira. Porto Velho.

    a) 6 de outubro de 1967. Artigo: Convico do Mestre.

    --------------------------------------------------------------------------------

    [1] Este texto integrar a minha dissertao de mestrado no Programa de Ps-graduao emAntropologia Social do Museu Nacional - UFRJ, a respeito dos Discpulos da Unio do Vegetal narealidade urbana brasileira.

    [2] Depoimento de Antnio da Costa, irmo de Jos Gabriel da Costa, ao autor, em 4 de novembro de1995.

    [3] DEPARTAMENTO DE ESTUDOS MDICOS DA UDV. Texto do Programa Oficial do IICongresso em Sade. Hoasca e desenvolvimento integral do ser humano. Campinas, 1993. p. 1. Otexto continua: Jos Gabriel da Costa - Mestre Gabriel - era esse menino. Fundou a Unio doVegetal para continuar unindo as pessoas.

    [4] Depoimento de Antnio da Costa. Idem.

    [5] ANDRADE, Afrnio Patrocnio de. O fenmeno do ch e a religiosidade cabocla. Um estudocentrado na Unio do Vegetal. Dissertao de Mestrado na Ps-Graduao em Cincias da Religiodo Instituto Metodista de Ensino Superior. So Bernardo do Campo, 1995. p. 170.

    [6] GIUMBELI, Emerson Alessandro. O cuidado dos mortos: os discursos e intervenes sobre oEspiritismo e a trajetria da Federao Esprita Brasileira (1890-1950). Dissertao do PPGAS -UFRJ, 1995. p. 29. Ver tb. KLOPENBURG, Boaventura. O espiritismo no Brasil. Petrpolis, 1960.

    p. 25.[7] ANDRADE, Afrnio Patrocnio de. Idem.

    [8] LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, 1967. p. 117. O grifo nosso.

    [9] Cf. outra cantiga semelhante, recolhida por Edison Carneiro:

    Minino, quem foi teu mestre?

    quem te ensin a jog?

    - S discipo que aprendo

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    12/13

    Meu mestre foi Mangang

    Na roda que ele esteve,

    outro mestre l no h.

    In: Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro, 1974. p. 138.

    [10] Depoimento de Carmiro da Costa, filho de Jos Gabriel da Costa, ao autor, em 4 de novembrode 1995.

    [11] PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simes. A capoeira no jogo das cores: criminalidade, cultura eracismo na Cidade do Rio de Janeiro (1890-1937). Dissertao de mestrado em Histria - UNICAMP. Campinas, 1996. p. 143.

    [12] Idem, p. 201.

    [13] Em 13 de agosto de 1946, Paulo de Assis Ribeiro, Chefe do SEMTA, declarou CPI acerca dossoldados da borracha ser esse o nmero de pessoas encaminhadas Amaznia. Depoimentopublicado no Dirio Oficial de 24 agosto de 1946. Dado informado pela antroploga Lcia Arrais.

    [14] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento deMemria e Documentao da UDV. Braslia, agosto-outubro 1995, p. 6.

    [15] In: ARRAIS, Lcia. No captulo Dados ignorados da tese de doutorado em elaborao a respeitodos soldados da borracha para o Programa de Ps-graduao em Antropologia Social do MuseuNacional, da UFRJ. Agradeo autora por me possibilitar o acesso a esse texto, ainda indito.

    [16] ARRAIS, Lcia. Idem.

    [17] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem, p. 6.

    [18] Entrevista do Conselheiro Paixo. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento de Memria eDocumentao da UDV. Braslia, abril-junho 1995, pp. 8-9.

    [19] PEREIRA, Nunes. A casa das minas. Contribuio ao estudo das sobrevivncias do culto dos

    voduns do panteo daomeano, no estado do Maranho, Brasil. Petrpolis, 1979, 2a. ed. pp. 121-143.223-225.

    [20] Idem, p. 223.

    [21] Idem, p. 142.

    [22] Idem, p. 143. O grifo nosso.

    [23] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento deMemria e Documentao da UDV. Braslia, agosto-outubro 1995, p. 7.

    [24] HOLANDA, Sergio Buarque de. Viso do paraso. So Paulo, 1994. pp. 36-37.

  • 8/7/2019 Jos Gabriel da Costa

    13/13

    [25] Artigo: Convico do Mestre. In: O Alto Madeira. Jornal. Porto Velho, 7 de outubro de 1967.

    [26] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. In: ALTO FALANTE, Jornal do Departamento deMemria e Documentao da UDV. Braslia, agosto-outubro 1995, p. 7.

    [27] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem, p. 9.

    [28] Cf. MAUS, Raymundo Heraldo. Padres, Pajs, Santos e Festas: Catolicismo popular e controleeclesistico. Belm: CEJUP.

    [29] Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair. Idem. p. 7.

    [30] Ibidem. p. 7.

    [31] Haveria muito a observar acerca da tradio vegetalista amaznica, o que transbordaria o

    mbito desta breve exposio da trajetria de Jos Gabriel da Costa. Prefiro remeter aos textos deLuis Eduardo Luna e Edward MacRae citados na bibliografia.

    [32] Ibidem. p. 8.

    [33] Ibidem. p. 9.

    [34] Ibidem. p. 9.

    ltima edio por eusonho; 01-02-10 s 08:28.