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Gabinete do Reitor – Assessoria de Comunicação da UFRJ • Setor de Mídia Impressa – Ano 2 – nº 10 • Novembro de 2005 Pág. 24 Caetano Veloso Narciso camaleônico Após a derrota dos EUA na guerra do Vietnã, muitos analistas vaticinaram o ocaso do poder norte-americano. Entretanto, a partir das décadas de 1970 e 1980, com o fim do regime monetário de Breton Wood e o esfacelamento da antiga URSS, os EUA parecem ter recomposto a primazia no cenário político internacional. Essa é a posição de José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da UFRJ que em longa entrevista concedida ao Jornal da UFRJ, discute esses e outros temas importantes para o entendimento da geoeconomia e da geopolítica contemporâneas. Afinal, existe alguma ameaça ao poder unilateral do minotauro norte-americano? Pág. 12, 13 e 14 Pág. 22 Jornal da UFRJ http://www.jornal.ufrj.br O poder do minotauro americano Entrevista José Luís Fiori Estudantes da EBA ilustram bilhetes do Metrô Rio Marco Fernandes Pág. 4 e 5 Gabriela d’Araújo Bilhetes especiais do Metrô do Rio, que serão usados durante o reveillon de 2005/2006, terão desenhos criados por estudantes da Escola de Belas Artes da UFRJ, vencedores do concurso “Bilhete Solidário” do Metrô. Além de ilustrar os bilhetes, os trabalhos farão parte do calendário Metrô Rio 2006 junto com outras artes. Os cinco trabalhos foram escolhi- dos entre 12 por um júri composto de três professores da EBA e dois profissionais de marketing do Me- trô Rio. A venda dos bilhetes terá 10% de sua renda revertida em cestas básicas destinadas a ONGs (Orga- nizações Não-governamentais) e a instituições de caridade do muni- cípio do Rio de Janeiro, que serão escolhidas pelos alunos. Os vencedores do concurso são: Marco An- tônio Ribeiro Bravo, Maria Blasquez, Nancy Rosa Torres, Vinicius Mitchell e Rafael Rodri- ques Nobre. A Venezuela de Hugo Chávez tem despertado muito interesse e discussões na mídia e em setores da esquerda. Na maioria das vezes, esses debates têm produzido mais calor do que luz e pouca atenção tem sido dada às mudanças estruturais por que passa aquele país. Venezuela passada a limpo A luta pela democratização do acesso à Justiça esbarra muitas vezes na comunicação hermética dos profissionais do Direito. A Associação de Magistrados Brasileiros lança campanha para simplificar a linguagem jurídica. Os homens que falam juridiquês Profissionais de saúde enfrentam cotidianamente uma inimiga indecifrável enquanto muitos poetas e escritores denunciam certa atração por ela. O último selo Lideranças da UFRJ lançam olhar sobre a crise com diagnósticos divergentes num cenário de incerteza política. O inferno astral da esquerda Pág. 10 e 11 Pág. 16 e 17 A Morte

José Luís Fiori - UFRJ · Belas Artes da UFRJ, vencedores do concurso “Bilhete Solidário” do Metrô. Além ... 3 Por trás da guerra no Iraque e de seu subseqüente pro-

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Gabinete do Reitor – Assessoria de Comunicação da UFRJ • Setor de Mídia Impressa – Ano 2 – nº 10 • Novembro de 2005

Pág. 24

Caetano Veloso

Narciso camaleônico

Após a derrota dos EUA na guerra do Vietnã, muitos analistas vaticinaram o ocaso do poder norte-americano. Entretanto, a partir das décadas de 1970 e 1980, com o fim do regime monetário de Breton Wood e o esfacelamento da antiga URSS, os EUA parecem ter recomposto a primazia no cenário político internacional. Essa é a posição de José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da UFRJ que em longa entrevista concedida ao Jornal da UFRJ, discute esses e outros temas importantes para o entendimento da geoeconomia e da geopolítica contemporâneas. Afinal, existe alguma ameaça ao poder unilateral do minotauro norte-americano?

Pág. 12, 13 e 14

Pág. 22

Jornal da

UFRJhttp://www.jornal.ufrj.br

O poder do minotauro americano

Entrevista

José Luís Fiori

Estudantes da EBA ilustrambilhetes do Metrô Rio

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Bilhetes especiais do Metrô do Rio, que serão usados durante o reveillon de 2005/2006, terão desenhos criados por estudantes da Escola de Belas Artes da UFRJ, vencedores do concurso “Bilhete Solidário” do Metrô. Além de ilustrar os bilhetes, os trabalhos farão parte do calendário Metrô Rio 2006 junto com outras artes.

Os cinco trabalhos foram escolhi-dos entre 12 por um júri composto de três professores da EBA e dois profissionais de marketing do Me-trô Rio.

A venda dos bilhetes terá 10% de sua renda revertida em cestas básicas destinadas a ONGs (Orga-nizações Não-governamentais) e a instituições de caridade do muni-cípio do Rio de Janeiro, que serão escolhidas pelos alunos.

Os vencedores do concurso são: Marco An-tônio Ribeiro Bravo, Maria Blasquez, Nancy Rosa Torres, Vinicius Mitchell e Rafael Rodri-ques Nobre.

A Venezuela de Hugo Chávez tem despertado muito interesse e discussões na mídia e em setores da esquerda. Na maioria das vezes, esses debates têm produzido mais calor do que luz

e pouca atenção tem sido dada às mudanças estruturais por que passa aquele país.

Venezuela passada a limpo

A luta pela democratização do acesso à Justiça esbarra muitas vezes na comunicação hermética dos profissionais do Direito. A Associação de Magistrados Brasileiros lança campanha para simplificar a linguagem jurídica.

Os homens que falam juridiquês

Profissionais de saúde enfrentam cotidianamente uma inimiga indecifrável enquanto muitos poetas e escritores denunciam certa atração por ela.

O último selo

Lideranças da UFRJ lançam olhar sobre a crise com diagnósticos divergentes num cenário de incerteza política.

O inferno astral da esquerda

Pág. 10 e 11

Pág. 16 e 17

A Morte

2 Novembro•2005UFRJJornal da

Reitor: Aloísio Teixeira – Vice-Reitor: Sylvia da Silveira Mello Vargas – Pró-Reitoria de Graduação – PR-1: José Roberto Meyer Fernandes - Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: José Luiz Fontes Monteiro – Pró-Reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Joel Regueira Teodósio – Pró-Reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-Reitoria de Extensão – PR-5: Marco Antonio França Faria – Superintendente de Graduação SG-1: Deia Maria Ferreira dos Santos – Superintendente de Ensino SG-2: Leila Rodrigues da Silva – Superintendente Administrativa SG-2: Regina Dantas – Superintendente SG-3: Almaísa Monteiro de Souza – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Carlos Antônio Kalil Tannus – Superintendente do FCC: Marcos Maldonado – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da Universidade /ETU: Maria Angela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Assessor de Comunicação: Fernando Pedro Pahl Campos Lopes

ExpedienteJORNAL DA UFRJ É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DO SETOR DE MÍDIA IMPRESSA DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – Av. Brigadeiro Trompovsky, s/n. Prédio da Reitoria - Andar Térreo - Cidade Universitária - Ilha do Fundão - CEP 21941-590 - Rio de Janeiro - RJ – Telefones: (21) 2598 1621 - 2598 1894 – Fax: (021) 2598 1605 – [email protected] – Editor/Jornalista Responsável: Fortunato Mauro – Reg. 20732 MTb – Pauta:Fortunato Mauro e Francisco Conte – Editoria de arte/projeto gráfico: José Antonio de Oliveira – Secretaria gráfica: Soraya Rodrigues – Ilustração: Jefferson Nepomuceno – Reportagem: Ana Gomes, Coryntho Baldez, Joana Jahara, Rafaela Pereira e Ro-drigo Ricardo – Estagiários de jornalismo ECO/UFRJ: Bruno Franco, Carla Marques e Carlos Eduardo Cayres – Estagiários de arte, ilustração e fotografia: Anna Carolina Bayer, Pina Brandi, Patrícia Perez, Marco Fernandes e Fábio Portugal (EBA/UFRJ) – Estagiária de revisão de texto: Daniele Robert (Faculdade de Letras/UFRJ) – Estagiário de web: Virgílio Fávero Neto (Instituto de Matemática/UFRJ) – Pesquisa: Juliana Paixão (ECO/UFRJ) – Resenhas: Francisco Conte

Fotolito e Impressão – JORNAL DO COMMERCIO – 15 mil exemplares

Cartas

Rafaela Pereira

Acompanho sempre com muito interesse o Jornal da UFRJ e parabenizo a toda equipe pela qualidade dos artigos e pelo projeto gráfico. Gostaria, entretanto, de solicitar uma retificação na matéria intitulada “Uma cinebiografia do Bra-sil” de autoria de Rafaela Pereira, publicada na página 22 da edição nº 9, de outubro de 2005.

Ao se referir ao concerto ocorrido na Sala Cecília Meireles a jornalista disse que o evento “contou com a presença da Orquestra Sinfôni-ca dos Alunos da Escola de Música da UFRJ”. O nome correto da orquestra é Orquestra Sinfô-nica da UFRJ.

A orquestra, diretamente ligada ao Departa-mento de Música de Conjunto, não é formada só por alunos. A maioria dos músicos é de alunos da disciplina Prática de Orquestra, mas a orquestra tem em seu quadro de instrumentistas 20 mú-sicos profissionais, funcionários técnico-admi-

nistrativos da UFRJ. Os funcionários, inclusive, suspenderam, por dois dias, a greve em que se encontram para ensaiar e participar do concerto promovido pela Reitoria da UFRJ.

Para fazer justiça à participação e ao trabalho desses profissionais, gostaria que o nome da or-questra fosse retificado na coluna “Erramos” (pági-na 2 do jornal). Tal retificação torna-se necessária, também, para que não haja dúvidas com relação a qual conjunto participou do evento, uma vez que a Escola de Música conta com outra orquestra, liga-da diretamente ao gabinete da Direção.

Certo de ter minha solicitação atendida, des-peço-me,

Atenciosamente,André CardosoProfessor Regente da Orquestra Sinfônica da UFRJ

Caros amigos

Boa notícia para os amantes da arte: foi reconhecida a posse de um terreno que é da Escola de Belas Artes da UFRJ desde 1949. Localizado na Rua Men de Sá, 78, na Lapa, o local foi a casa do pintor e professor da escola, Belmiro de Almeida, que deixou o terreno em testamento para a EBA.

Segundo a diretora Ângela Ancora da Luz o local vinha sendo usado, indevida-mente, como estacionamento. Porém, no

EBA consegueposse de terreno

Belmiro de Almeida (1858 - 1935)

início de agosto o processo reintegração de posse movido UFRJ chegou ao fim e o ocupante assinou o termo de entrega do imóvel.

“Em comemoração, os alunos se juntaram para ‘grafitar’ os muros. Com a parceria da Prefeitura do Rio, iremos colocar uma lona cultural, mas depois, nossa intenção é construir o Centro Cultural Belmiro de Almeida”, adianta a diretora.

Meu nome é Luiz Roberto, tenho 50 anos, sou Bacharel em Administração de Empresas e atualmente estou cursando Direito. Um dos meus hábitos que mais adoro é ler.

Através de um grande amigo tive acesso a um exemplar do Jornal da UFRJ e simplesmente fiquei maravilhado com o conteúdo. Portanto, solicito, se possível, o recebimento desta obra

magnífica para a minha residência sempre que o mesmo for publicado.

Desde já, agradeço a atenção e aproveito a oportunidade para parabenizá-los por esse belo trabalho de grande significado para a Educação.Atenciosamente,Luiz Roberto de Lima Sant’Anna

Prezados Senhores

Erramos

Apolônio de Carvalho“vale a pena sonhar”

Militantes que, presos e torturados, foram trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e pela Ação

Libertadora Nacional (ALN). No detalhe, Apolônio.

Alexandre Pinto Cardoso, pneumo-logista, professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medi-cina da UFRJ, foi escolhido diretor ge-ral do Hospital Universitário Clemen-tino Fraga Filho (HUCFF) com 84% dos votos, contra 10% do seu adversá-rio Paulo Felix, assistente administra-tivo, na eleição que ocorreu nos dias 7, 8 e 9 desse mês. A posse, a princípio, está marcada para o dia dois de janeiro de 2006.

HUCFF tem novo diretorRafaela Pereira

Sua plataforma foca o fortalecimen-to da Pesquisa Clínica, a criação de Centro Cirúrgico de menor porte para atendimento de pacientes submetidos a procedimentos oftalmológicos e outras pequenas cirurgias e, também, a criação de um CTI neurocirúrgico.

Pinto Cardoso pretende investir no acolhimento dos pacientes e na área de recursos humanos visando oferecer ca-pacitação, recuperando a auto-estima por meio da valorização dos profissionais.

Pintor, desenhista, caricatu-rista, escultor, professor e escri-tor. Freqüentou o Liceu de Artes e Ofícios e a Academia Imperial de Belas Artes (Aiba), entre 1869 e 1880, no Rio de Janeiro, onde estudou com Agostinho da Mot-ta, Zeferino da Costa e José Ma-ria de Medeiros e, em 1878, com Henrique Bernardelli e Rodolfo Amoedo, no Ateliê Livre. Lecionou dese-nho no Liceu de Artes e Ofícios, de 1879 a 1883, e na Escola Nacional de Belas Artes (Enba), de 1893 a 1896. A partir de 1884, passou a viver entre Paris e o Rio de Janei-ro. A primeira viagem a Paris, em 1884, resulta num redirecionamento estético do seu trabalho, conseqüência do estudo e contato com obras de artistas e intelectuais que renovaram a Arte do período: Édouard

Manet e Edgar Degas na pintura e Gustave Flaubert e Émile Zola na literatura.

Em sua segunda estada na capital francesa, iniciada em 1888, entra em contato com Ge-orges Seurat na École National Supérieure des Beaux-Arts (Es-cola Nacional Superior de Belas Artes) e estuda pintura com Ju-

les Joseph Lefebvre e B. Constant et Pelez, aproximando-se de vertentes pós-impres-sionistas. No Rio de Janeiro, trabalha como caricaturista em diversas revistas, como Comédia Popular, Diabo a Quatro, Cigarra, Bruxa e O Malho. Funda os periódicos Ra-taplan e João Minhoca, entre 1886 e 1901. É um dos criadores do Salão dos Humoristas, em 1914, e membro do Conselho Superior de Belas Artes, de 1915 a 1925.

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Ao contrário do que foi publicado na matéria “Apolônio de Carvalho: vale a pena sonhar”, da última edição, nº 9, Apolônio de Carvalho não foi promovido ao posto de general-de-brigada por decisão das Forças Armadas, mas sim à patente de coronel. O Centro de Comunicação Social do Exército informou que “foram-lhe concedidos, pela Comissão de Anistia do Ministério da Jus-tiça, com base em contagem do seu tempo de serviço, tão somente os proventos de general-de-brigada”.

Da mesma forma, na fotografia que ilustra a matéria, também erramos quando destacamos a imagem de um outro militante. Republicamos abaixo, a fotografia, apontando, de forma correta, a imagem de Apolônio.

Ainda assim, como afirmou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um dos maiores defensores da promoção de Apolônio, o militante “lutou todas as lutas que valeram a pena no século passado”.

Novembro•2005 UFRJJornal da 3

Por trás da guerra no Iraque e de seu subseqüente pro-cesso de ocupação, há bem mais do que revela a cobertu-ra jornalista. Os atentados com homens-bomba e mísseis e a exibição televisiva da decapitação de prisioneiros, por mais cruéis que aparentem ser, e o são, não confi-guram gestos desesperados de indivíduos que odeiam a democracia. Esses expedientes representam o que a Sociologia vem chamando de Guerra Assimétrica.

Este conceito leva em consideração a disparidade de forças envolvidas em um confronto e a posição do estrategista militar germânico Clausewitz, segundo a qual toda guerra continua política por outros meios. De acordo com Francisco Carlos Teixeira, professor do Departamento de História, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), na Guerra Assimétrica, o combatente mais fraco – impossibilitado de vencer a disputa nos termos de seu oponente – utiliza táticas não-convencionais, visando quebrar-lhe a vontade política.

Norma de guerraApesar da aparente novidade da terminologia, a as-

simetria é uma norma da guerra, afirma Martin Shaw, professor de Relações Internacionais e Política da Universidade de Sussex, na Inglaterra, em entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ. Shaw – autor do livro The New Western Way of War – Risk-Transfer and It´s Crisis in Iraq, lançado este ano e ainda não editado em português – explica que isto acontece, pois guerras são disputas de poder sem limites. “Entretanto, assimetria não é desculpa para ações indiscriminadas contra ci-vis”, ressalta o professor britânico.

Francisco Carlos Teixeira faz eco às palavras de Shaw e acrescenta que não há discrepância entre a mo-ral de insurgentes (a exemplo de iraquianos e afegãos) e a de tropas nacionais. “Ambos buscam a vitória com os meios que lhes estão disponíveis, não obstante as forças militares ocidentais sejam mais cobradas pela opinião pública internacional”, afirma o professor.

“Guerra de videogame”Mesmo que a ênfase de impor medo à sociedade civil

seja a razão de ser do terrorismo, Shaw afirma que “na prática, militares ocidentais são altamente culpados pela adoção, rotineiramente, de táticas de transferência de risco, como bombardeios intensos que protegem seu próprio efetivo, mas, necessária e conscientemente, leva à morte acidental de civis”.

O uso massivo de força, que impressiona a opinião pública, segundo Teixeira, pode inclusive reduzir o tempo do conflito e, conseqüentemente, o sofrimento do povo, cujo Estado esteja sendo agredido. Este foi um dos argumentos que nortearam a campanha norte-ame-ricana ao Iraque, batizada de “Choque e Pavor”.

Inspirados pela doutrina do general chinês Sun Tzu (Século IV a.C) – e disposto a vencer o trauma da Guerra do Vietnã – os Estados Unidos passaram “a valorizar a

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Derrotadas as forças militares iraquianas, os Estados Unidos enfrentam os insurgentes no Iraque em uma

forma diferente de conflito: a Guerra Assimétricailustração Pina BrandiBruno Franco

moldagem do campo de batalha, usando a superiori-dade de sua tecnologia bélica, para lutar da forma que lhes fosse mais favorável, impedindo que o inimigo desse as cartas”, explica Francisco Carlos Teixeira.

Isso levou ao que Teixeira chama de “guerra de vi-deogame”, um método de conflito utilizado pelo Pentá-gono, no qual as tropas norte-americanas bombardeiam maciçamente o “centro de gravidade” do inimigo. As imagens captadas pela imprensa internacional mostra-riam ataques à infra-estruturas, com poucas vítimas entre civis, e pequenas baixas entre soldados americanos.

Esse modelo se tornou particularmente nítido na segunda Guerra do Golfo. No entanto, os EUA não conseguiram o desengajamento de seu efetivo militar e o prolongamento da ocupação evidencia que a “guerra de videogame também trouxe um imprevisto número de vítimas civis e acarretou uma rotina de resistência por meio da manutenção de uma guerra sistêmica per-manente”, constata Teixeira.

Segundo o professor, a estratégia militar americana para o Iraque mostrou-se um fracasso. “Contudo, não seria possível, neste momento, a retirada das tropas, mesmo quando os gastos excedem os US$200 bilhões. O prestígio do Partido Republicano será posto à prova nas eleições de 2007, que revelarão a extensão do seu desgaste junto a opinião pública ”. O impacto econô-mico e a situação dos marines serão levados em conta. “Bush recebeu de Clinton (predecessor de George W. Bush na Casa Branca) contas públicas devidamente saneadas, que agora encontram-se em déficit crescente”, informa Teixeira.

Esse desgaste apenas não foi maior, devido ao jor-nalismo embedded (encaixado), como denomina o professor Martin Shaw. Jornalistas, credenciados pela coalizão liderada por americanos e britânicos, seguiam junto às tropas, muitas vezes usando fardas militares. Isso aliado à simpatia inicial da mídia americana à guer-ra ao terror, fez com que os erros da coalizão fossem, até certo momento, sub-reportados. Como afirma Teixeira, o jornalismo estadunidense reproduziu – sobretudo no início do conflito e da ocupação – as informações passadas pelo governo americano.

O fato é que não existe horizonte definido para o fim da crise no Iraque, acreditam Teixeira e Shaw. Um dos motivos para a perpetuação da instabilidade foi o desmantelamento das forças militares e policiais iraquianas tão logo a coalizão ocupou o país. De acor-do com Teixeira, o usual, em casos de ocupação, é o aquartelamento deste efetivo, que, no Iraque, participa ativamente da resistência.

Esse foi um dos erros cometidos pela coalizão, ao aconselhar-se com a elite iraquiana exilada ao invés de analisar a cultura e a história da região. Mas o equívoco básico, segundo Martin Shaw, é a “crença de Bush e Blair de que a guerra pode substituir soluções políticas para problemas políticos”.

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VENEZUELAInternacional

Na cidade argentina de Mar Del Pla-ta, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, surpreendeu ao participar, na primeira semana de novembro, de dois eventos simultâneos e anta-gônicos: a IV Cúpula das Américas,

que reuniu 34 líderes nacionais do continente, e a Cú-pula dos Povos, batizada de “anticúpula” por conta da agenda combativa à Área de Livre Comércio das Amé-ricas (Alca). Chávez repetiu o feito de sua presença no último Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e foi ovacionado por uma multidão de 40 mil pessoas na Cúpula dos Povos, onde defendeu a Alternativa Boli-variana para as Américas (Alba). A Alba faz frente à Alca e se basearia em princípios de solidariedade e de complementaridade econômica.

A Venezuela, que entrará para o Mercosul como membro integral em dezembro, lidera hoje um mo-vimento de integração das nações latino-americanas. O país de Chávez está à frente de iniciativas como a Telesul, cujo mote é uma televisão produzida por e para latino-americanos.

Recente pesquisa da ONG chilena Latinobarómetro revelou que Hugo Chávez tem 61% de aprovação

entre a população venezuelana. De acordo com o estudo, a Venezuela é vista como o país mais

democrático da América Latina. Classificado como “ditador” por considerável parte da mídia in-ternacional, Chávez venceu duas eleições diretas, seis plebiscitos e um referendo – além de ter supe-

rado uma tentativa de golpe de Estado, em 2002. O pe-tróleo, base da economia venezuelana, é um dos motivos da polêmica entre o governo e a

oposição (interna e externa). O país é o quinto maior pro-dutor mundial e um dos princi-pais fornecedo-res dos Estados Unidos. Apesar disso, cerca de 80% da popu-lação é consi-derada pobre. Uma das prin-cipais bandei-ras levantadas por Chávez é

a utilização dos lucros do petró-

leo para o financia-mento de programas

sociais. Com esse intuito, Chávez pôs fim à autonomia da estatal petroleira, a Petróleos de Venezuela (PDVSA), identificada há décadas como “um Estado dentro do Estado”, e passou a regulamentar a produção e os preços. Um resultado já foi colhido em outubro deste ano: a Venezuela se declarou território livre do analfabetismo.

Hugo Chávez, tenente-coronel reformado do Exérci-to, professor e mestre em Ciências Políticas, tornou-se conhecido a partir da tentativa de golpe que coordenou, em 1992, contra o então presidente neoliberal Carlos Andrés Pérez. Chávez assumiu a autoria do plano e foi preso por dois anos. Em 1993, Pérez sofreu um processo de impeachment e, cinco anos mais tarde, foi preso sob acusação de enriquecimento ilícito. O episódio deu a Chávez a popularidade que precisava para se firmar como uma nova alternativa ao cenário político venezuelano, polarizado historicamente pelos partidos social-democrata e democrata-cristão. Nas eleições de 1998, Hugo Chávez, do partido Movimento Quinta República (MVR), venceu com 57% dos votos sua principal concorrente, Irene Sáez, ex-Miss Universo e prefeita de um bairro nobre de Caracas.

passada a limpoA Venezuela segue sendo um enigma. Para a mídia hegemônica o presidente

do país não passa de um populista anacrônico. Já setores de esquerda vêm nos conflitos sociais venezuelanos uma experiência importante

Carla Marquesfoto Gabriela d’Araújoilustração Jefferson Nepomuceno

“O nosso segundo decreto, em abril de 1999, foi a realização de um plebiscito para saber se deveríamos convocar uma Assembléia Constituinte para refundar a República. Em julho daquele ano, mais de 80% dos venezuelanos disseram sim”, afirmou Chávez, sobre seu primeiro ano de governo. A Constituição Boliva-riana, inspirada nos ideais de Simón Bolívar, herói da independência do país, foi finalizada em dezembro do mesmo ano e aprovada por 86% da população por meio de um plebiscito. Nos mesmos limites territo-riais, nasceu outro país: a República Bolivariana da Venezuela, nome adotado com a nova Constituição. Entre os itens inovadores, a carta constitucional in-clui o “poder cidadão”, que consiste na confirmação ou não dos governos dos representantes eleitos, in-clusive do presidente da República. A escolha é feita pelo povo, por meio do voto, depois de transcorrida a primeira metade do mandato. Além disso, o texto per-mitiu também a reeleição presidencial. Laura Tavares, professora da Escola de Serviço Social e atual pró-rei-tora de Extensão, da UFRJ, ressalta que “Chávez é o primeiro presidente latino-americano, legitimamente eleito, que submeteu seu mandato a novas eleições com apenas um ano e meio de governo”. Após a con-firmação da Constituição Bolivariana, todos os man-datos foram revogados e Chávez se reelegeu na presi-dência com 60% dos votos.

As bases da reforma política foram formadas com a Constituição Bolivariana, vieram depois ainda mu-danças mais profundas na estrutura econômica. No final de 2001, o governo Chávez anunciou um pacote de 49 leis, conhecido como “segunda Lei Habilitante”, que tem a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário com uma das mais polêmicas. Esta lei regulamenta a função social da terra, entendendo que é “necessária a eliminação integral do regime latifundiário, como sistema contrário à justiça, ao interesse geral e à paz social no campo”, conforme relata o texto constitu-cional. Foi criado o Instituto Nacional de Terras, com jurisdição sobre todo o território, para promover a re-forma agrária. Apesar da fúria despertada nos anti-chavistas, a lei, a rigor, não atenta contra a proprie-dade privada, mas impõe limites à concentração de riqueza no campo, além de combater a ociosidade da terra e os fazendeiros com títulos de propriedade em situação irregular.

Petróleo: a serviço da discórdiaA Venezuela é o quinto maior produtor de petróleo

do mundo, membro ativo da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), com uma produção de 330 milhões de barris por ano. O país possui a pri-meira reserva mundial deste recurso e a oitava maior de gás natural. O “ouro negro” é fator-chave para o entendimento das crises políticas na Venezuela. A companhia estatal de petróleo, Petróleos de Venezue-la (PDVSA), teve, historicamente, autonomia em rela-ção ao poder governamental. Estima-se que a PDVSA tenha operado 15 mil postos de gasolina e três refina-

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Internacional

rias nos Estados Unidos durante 35 anos, sem ter remetido os lu-cros de volta para a Venezuela. Além de substituir as lideranças da PDVSA por quadros de sua confiança, Chávez também con-trolou a produção e elevou os preços. Meses depois, eclodiu uma greve, acusada por setores chavistas de ser orquestrada por dirigentes tradicionais da esta-tal, conhecidos como “oil-ligar-quia”.

Em discurso transmitido pela televisão, pouco antes da tenta-tiva de golpe contra Chávez, o diretor da CIA, George Tenet, afirmou: “obviamente que a Ve-nezuela é importante, porque é o [nosso] terceiro maior prove-dor de petróleo. Eu diria que o senhor Chávez não está preocu-pado com os interesses dos Es-tados Unidos”. A dependência, contudo, é mútua: o petróleo é vital para a economia da Ve-nezuela, que tem nos Estados Unidos o seu maior comprador. A agricultura está atrofiada e o país precisa importar mais de 70% dos gêneros que consome. De um total de 25 mi-lhões de habitantes, apenas 7% da população ainda vive no meio rural.

Um dos maiores objetivos de Chávez é usar os lu-cros do petróleo para diversificar a economia e dis-tribuir renda. O governo criou mercados e bibliote-cas populares, onde se vendem gêneros de primeira necessidade por preços mais baixos e se distribuem gratuitamente títulos da literatura universal, como Os Miseráveis, de Victor Hugo. Na área da saúde, Vene-zuela e Cuba firmaram um convênio que consiste no atendimento gratuito de venezuelanos pelo serviço médico cubano. O governo venezuelano se compro-mete, em contrapartida, a fornecer o transporte aéreo dos pacientes até a ilha nos casos mais graves, sem contar a atuação dos médicos cubanos na própria Ve-nezuela. O convênio faz parte do acordo sobre a venda de petróleo a preços mais baixos para Cuba e reflete a aproximação entre as duas nações – que não é bem vista por setores importantes das elites do país e por Washington.

O golpe mais curto da HistóriaOs atritos entre o governo e a oposição chegaram

ao ponto mais crítico em 2002, com um golpe contra Hugo Chávez, que durou apenas dois dias. O docu-mentário irlandês A Revolução não será televisiona-da, produzido e dirigido por Kim Bartley e Donnacha O’Briain, registra desde os precedentes da ação gol-pista até a tomada das ruas pela população a favor de Chávez.

Os cineastas capturaram imagens dos cinco canais de televisão privada, todos contrários a Chávez, em um momento anterior ao golpe. Nelas, o presiden-te era acusado de estar fascinado “de forma sexual, tipo freudiana, pelo senhor Fidel Castro” e de sofrer de “insanidade mental”, para citar alguns exemplos. A âncora de um telejornal terminou dessa maneira o noticiário do dia: “está chegada a hora para que todos falemos sobre a transição, sem Chávez, é claro. Até a próxima quinta-feira”. A imprensa privada, ligada à elite política tradicional, foi parte ativa dos arran-jos para a tentativa de golpe. Chávez contava somente com a TV estatal, pela qual se comunicava de forma direta com o povo por meio do programa Alô, Presi-dente!, em que recebia chamados telefônicos e res-pondia-os ao vivo.

Carlos Ortega, líder da Confederação dos Trabalha-dores da Venezuela (CTV), uma das mais expressivas centrais sindicais do país, atrelada há anos ao setor patronal, viajou com Pedro Carmona, presidente da

A sanitarista, doutora em Economia do Setor Público e professora da UFRJ, Laura Tavares, foi convidada, em 2000, pelo Ministério da Saúde da Venezuela para ajudar na re-formulação do sistema ambulatorial do país. O “Desastre de Vargas”, uma das maiores catástrofes naturais vividas pela Venezuela no século XX, que devastou cidades inteiras e deixou milhares de mortos com desabamentos e inunda-ções, tinha acontecido poucas semanas antes da chegada de Laura ao país. Integrada a uma das Missões Bolivarianas, a professora da UFRJ presenciou, no estado de Vargas, na costa caribenha da Venezuela, o funcionamento destas or-ganizações que reúnem esforços do Estado, da população civil e das Forças Armadas.

Laura conta, de forma trágica, como os médicos vene-zuelanos desapareceram durante o “Desastre de Vargas”. Na área da saúde, principalmente, as Missões Bolivarianas contam com o trabalho dos médicos cubanos, que já tem o espírito de solidariedade mais enraizado, explica a profes-sora. O Bairro Adentro, programa social em que os médicos habitam os locais mais carentes, como favelas, para prestar atendimento integral à população, é amparado, sobretudo, pela presença dos profissionais cubanos. O setor médico na Venezuela, segundo Laura, é muito elitista e ainda não assi-milou os valores dos novos tempos. Os opositores de Chá-vez vêem com maus olhos os médicos, professores e treina-dores esportivos cubanos no país, sob acusação de que são quadros políticos de disseminação do Comunismo.

As Missões se traduzem também em cooperativas de trabalhadores e em programas de alfabetização. Em 28 de outubro de 2005, a Venezuela se declarou território livre do analfabetismo. O governo venezuelano adotou o mo-delo cubano de alfabetização Yo si puedo (Sim, eu posso) e já obteve o reconhecimento dos resultados pela Unesco (órgão da ONU para a Educação, Ciência e Cultura). De

acordo com o ministro da Educação, Aristóbulo Istúriz, “a educação preparava as pessoas para serem consumis-tas, não para produzir. Agora, é preciso mudar isto e criar um ser solidário, criativo e que saiba conviver”. Além da mudança de filosofia, o governo também alterou a fatia do orçamento destinada à educação: mais do que dobrou desde 1998.

A organização popular tem crescido por meio dos Cír-culos Bolivarianos, definidos por Laura Tavares como “a capilarização dos canais de fazer política”. Os Círculos são uma espécie de comitês de bairro, onde cidadãos comuns se encontram para discutir questões públicas, aprender a Constituição e fazer reivindicações ao governo. Para Laura, é importante a participação do governo neste processo, pois permite que os problemas levantados pela população che-guem até as autoridades e cria a possibilidade de soluções oficiais.

Questionada sobre as chances de um retrocesso, na pers-pectiva da Venezuela sem Chávez, Laura Tavares responde categoricamente: “apenas com um golpe da direita política, que implique necessariamente em violência contra o povo”. E completa: “não há como fazer uma transição tranqüila. É pouco provável uma alternância entre esquerda e direita como é aqui”. A professora enfatiza que as mudanças pro-movidas pelo governo foram protegidas por legislação, que reformou os três poderes do Estado. Não é somente o pre-sidente Chávez que anda com uma cópia da Constituição nas mãos, mas também a população passou a adotar esse hábito.

Laura Tavares conclui: “é um caminho venezuelano, diferente do cubano e não há como exportá-lo. A lição que a gente pode tirar é sobre a necessidade de operar mu-danças políticas e transformações sociais sem ficar amar-rado aos indicadores econômicos”.

Missões, Círculos e perspectivas Bolivarianas

Fedecámaras, a maior entidade empresarial da Venezuela, a Wa-shington para reuniões com altos funcionários do governo Bush. No dia 10 de abril de 2002, o ge-neral Nestor Gonzalez Gonzalez apareceu nas redes privadas de televisão, lançando um ultimato a Hugo Chávez para que renun-ciasse ao poder. No mesmo dia, Carmona convocou uma marcha dos anti-chavistas, apesar dos apelos do governo, que atenta-va para o risco de um embate civil. Em 11 de abril, chavistas e anti-chavistas se confrontaram nas ruas de Caracas, resultando a morte de civis. No Palácio Mi-raflores, cercado de tanques do Exército, Chávez se entregou para evitar o bombardeio, porém sem assinar a renúncia.

No dia 12, em um programa de televisão, em que estavam presentes tanto militares de alta patente, como jornalistas, os primeiros agradeceram nomi-nalmente aos canais Venevisión, RCTV, Televen, CMT e Globovi-sión. Em Miraflores, Pedro Car-

mona tomou posse da presidência da República e dis-solveu o Congresso Nacional e o Tribunal Supremo de Justiça, entre outros organismos públicos. Na tomada seguinte do documentário, uma mulher gritava na rua: “o que vou fazer com o meu voto? Votei no Chávez, quero que termine seu mandato!”.

A oposição de Chávez divulgou que o presidente havia renunciado ao cargo, quando em verdade estava preso. A informação vazou para a população por um

canal internacional a cabo e, ao nascer do segundo dia do golpe, já havia manifestações e barricadas por toda a cidade que exigiam a volta imediata de Chávez ao poder. A população cercou o Palácio de Miraflores, que foi retomado dos golpistas pela Guarda Nacional, leal a Chávez, e o governo foi reposto.

Pedro Carmona fugiu para Miami, onde até hoje ar-ticula a oposição contra Chávez; Carlos Ortega ficou escondido e só reapareceu quando o presidente pro-meteu que não haveria perseguição aos golpistas; e os generais envolvidos foram expulsos do Exército.

não há como fazer uma transição tranqüila.

É pouco provável uma

alternância entre

esquerda e direita como é

aqui(Laura Tavares) Venezuela reancende a utopia

6 Novembro•2005UFRJJornal da

Internacional

Bruno Francofotomontagem Zé

Idealizada pelo presidente venezuelano Hugo

Chávez e financiada, em sua maior parte, pelo

governo de Caracas, a Telesur iniciou suas

transmissões em maio, com o intuito de fomentar

a integração latino-americana e competir com as

grandes cadeias de mídia norte-americana.

Quando esteve no Rio de Janeiro, em novembro de 2004, Hugo Chávez discursou no Salão Pedro Calmon, no Palácio Universitário da UFRJ. Em sua efusiva de-fesa da integração regional, sustentou a criação de em-presas multinacionais financiadas pelo capital público, a Petroamérica (que seria responsável pelo gerencia-mento e harmonização da política energética no con-tinente) e uma emissora de televisão que combatesse a hegemonia de cadeias estadunidenses, a Telesur. Esta última tornou-se realidade no dia 24 de julho.

A emissora foi criada com um orçamento inicial de US$ 2,5 milhões, 51% deste montante é oriundo do governo venezuelano, o restante é bancado por Argenti-na, Uruguai e Cuba. Transmitida pelo satélite NSS 806, sua freqüência pode ser captada em todas as Américas, no norte da África e na Europa Ocidental. O governo brasileiro declinou do convite a participar financeira-mente da empreitada, apostando no lançamento futuro do canal Brasil Internacional, voltado principalmente à divulgação do país – sua cultura, virtudes e produtos – no exterior. O apoio brasileiro limitou-se, até agora, à cooperação com a Radiobrás e TVs comunitárias que retransmitam o sinal da multiestatal.

Mohammed El Hajji, professor de Jornalismo In-ternacional, da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), acredita que o Brasil deve definir seu lugar no mundo para ser reconhecido como interlocutor respeitável pelas demais nações. Para o professor, não obstante isso, “nossa experiência só toma forma e tem sentido no contexto latino-americano”. A Telesur e a Brasil Internacional não são incompatíveis, “podem ser com-plementares e convergir para uma sinergia que trans-borda o continente e agrega forças do mundo inteiro”, esclarece El Hajji.

De acordo com o jornalista Paulo Miranda, secre-tário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, e criador do site www.tvcomunitariadf.com.br - por meio do qual se pode assistir a Telesur - a idéia é oferecer uma alternativa audiovisual atraente e, ao mes-mo tempo, capaz de fazer o enfrentamento necessário com os conglomerados da mídia, como a Fox News, a CNN e outras.

O embate com potências midiáticas consolidadas não é uma tarefa que a Telesur possa vencer sozinha, acredita Miranda. “Ela é um instrumento a mais que veio para fortalecer as TVs e as rádios comunitárias e a todos que lutam pela democratização da informação, rebelando o ar por meio das antenas parabólicas”, ex-plica o jornalista. Visão semelhante tem o professor e cientista político Aluízio Alves, do Instituto de Filoso-fia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ). Segundo Alves, esta é uma luta que se dá em terreno minado, “onde tudo favorece o gigante (CNN e emissoras assemelhadas), onde tudo foi minuciosamente planejado e preparado por ele, para favorecê-lo”.

Conforme explica o professor, o sistema de comu-nicações é historicamente engendrado, “envolvendo discursos ‘enlatados’ no Império, acrescidos pelos que são elaborados em conluio com aquele. Discursos que em sua dominância têm por propósito ‘fabricar o con-senso’, de acordo com interesses dos grupos econo-micamente hegemônicos. Esses discursos, martelados

na grande mídia, criam imagens positivas e negativas, impedindo as pessoas de pensar, uma vez que produ-zem sistemas de representações que antecedem o livre exame dos fatos”.

A Telesur pretende não apenas fornecer conteúdo de qualidade, baseado no tripé informação, formação e entretenimento. Outro objetivo da emissora é dar voz aos povos latino-americanos, destacando produ-ções comunitárias e independentes.

Na visão de Miranda, a emissora deve mostrar tudo o que foi produzido na região e a que poucos tiveram acesso. O próximo passo é democratizar o processo de criação. “É preciso montar núcleos de produção, com equipamentos e cursos de capacitação do povo latino-americano para que a nossa cara realmente apareça na TV Sul”, defende.

O Conselho Executivo da Telesur pensa da mesma forma. O próximo passo do grupo, liderado pelo jor-nalista uruguaio Aram Aharonian, é a criação da Flaco – Factoría Latinoamericana de Contenidos – uma ins-tância que será responsável por fomentar a produção, promoção e distribuição de material latino-americano, e que atenderia não apenas a Telesur, como as demais emissoras do continente.

Esse projeto de integração – que encanta alguns, como o jornalista Milton Temer e o sociólogo Emir Sader – é alvo de críticas, sobretudo nos Estados Uni-dos, por uma suposta instrumentalização pela chama-da Revolução Bolivariana em curso na Venezuela. A esse respeito, Miranda acredita que o incômodo dos norte-americanos se deve ao enfoque dado pela emis-sora às notícias. “Na Telesur, nós falamos que a guerra contra o Iraque não é guerra, é um massacre contra o povo iraquiano e um saque ao petróleo daquele país”, arremata o jornalista.

A situação da Venezuela não foi, no entanto, a úni-ca responsável pelo surgimento de um projeto desta natureza. O contexto geopolítico – a predominância de governos de esquerda na América do Sul e a tenta-tiva de países em desenvolvimento buscarem acordos de complementaridade econômica e progresso social entre si – também foi decisivo, acredita Rodrigo Dan-tas, doutor em Filosofia pela UFRJ e professor de Filo-sofia Política da Universidade de Brasília (UnB). Dan-tas, assim como Alves e Miranda, adverte: “para que a emissora se estabeleça de fato é necessário a conti-nuidade do ideário político que a gerou, apostando na integração regional e na reestruturação social”. Para Mohammed El Hajji, isso depende “da força de von-tade da sociedade latino-americana e sua capacidade de enraizar o projeto de instituição de uma instância de enunciação própria, não apenas nos programas de governo, mas também nos projetos do Estado que, em definitivo, devem ser a expressão das aspirações da sociedade”.

Ao se propor esses objetivos, a Telesur parece ser um novo instrumento de uma velha luta – assim en-tende Aluízio Alves – produto da era das mídias glo-bais, de fato, mas que faz parte de um processo “do qual partilham e partilharam tantos que acreditam e acreditaram numa América Latina próspera e feliz, li-vre dos grilhões de seus eternos colonizadores”.

TelesurA América

(re)pensada

pelo sul

Novembro•2005 UFRJJornal da 7

nãoO resul-tado do referendo do desar-mamento do último dia 23 de outubro, quan-do mais de 64% dos eleitores se posicionaram pelo “Não” provoca perplexidade, sobretudo naqueles setores que opta-ram pelo “Sim”. Para ajudar a entender esse resultado o Jornal da UFRJ ouviu o professor Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da UFRJ.

Em um país mergulhado no sentimento de insegurança, onde a sensação é de que a qual-quer momento pode ser assaltado, a tendência é defender o comércio de armas de fogo, mesmo que não pretenda usá-las. Michel Misse, professor de Sociologia e especialista em Violência Urbana, faz a sua análise a respeito do resultado do referendo. “As pessoas votaram apenas para preservar o direito de comprar armas. Hoje, para comprá-la é bastante complicado. É preciso fazer provas de psicotécnico, capacitação técnica, e comprovar a efetiva necessidade de uso. Foi baseado nesse esclarecimento que o ”Não” conseguiu vencer”.

O foco principal da campanha do “Sim” era chamar a atenção para os conflitos interpessoais, mas para o coordenador, a má condução na campanha levou a sua derrocada. “Usaram um pouco de estatísticas, mas soltas não convencem a ninguém. Quiseram utilizar a empatia dos artistas, mas deveriam ter dado mais importância para o fato de a maioria dos homicídios no Brasil não ser cometido por bandidos, mas pelo vi-zinho, namorado, ex-marido e conhecidos. No Rio de Janeiro, isso não é verdade, porque tem o tráfico, que responde por uma parte importante, mas nas cidades do interior e de médio porte é o que acontece”, afirma Michel Misse.

Mesmo com todos os especialistas em segurança pública do Rio de Janeiro apoiando o desarmamento, através da assinatura de um Manifesto, a campanha do “Sim” não os utilizou para depoimentos e nem men-cionou o Documento. “Ficou muito baseado na idéia da paz, com depoimentos de artistas. Mas, artista não entende disso. Faltou dizer que a arma que o cidadão

compra para se defender não é usada para esse fim. É na hora em que se esquenta e perde a cabeça que o cidadão usa da maneira na qual não gostaria de usar e que de-pois vai se arrepender. O argumento contra o bandido continuar armado, é óbvio. Bandido é bandido e a lei é feita para o cidadão de bem”, disse o coordenador.

Não foi surpresa. Como era esperado, nas áreas mais pobres a vitória foi do “Sim”, enquanto que as mais ri-cas, a do “Não”. Isso porque comprar uma arma hoje é muito caro. A Região Nordeste, na sua totalidade, apre-sentou um equilíbrio, ao contrário da Região Sul, onde

os estados apuraram um percentual acima dos 70%, pelo fato de que nas localidades de fronteiras existirem muito conflitos de terra. Para Misse, a novidade ficou no Rio de Janeiro, mais precisamente no município de Nova Iguaçu, que teve um volume maior de votos a favor do desarmamento do que a capital.

Os númerosSomente no Estado do Rio, são cerca de seis mil

homicídios, para mais ou para menos, por ano. Desse número, mil são legalmente produto de confrontos com a polícia. Outros mil são reconhecidamente envolvendo conflitos entre pessoas conhecidas. Dos quatro mil que sobram, mil são em decorrência do envolvimento com o tráfico, e os três mil restantes não se sabe o motivo. Dados fornecidos pelo coordenador para em seguida refletir. “O problema está aí, o de sub-cidadania. Há muita gente excluída, de direitos, renda, e tudo mais. São pessoas que estão completamente à margem da sociedade, tanto que quando morrem não aparece ninguém no IML (Instituto Médico Legal) à procura do cadáver. É um indigente. Não se sabe quem ele é e o que fazia”. E dos mil conflitos envolvendo pessoas conhecidas, apenas três foram em legítima defesa.

Como apenas 5% dos homicídios são esclarecidos pela polícia, o resultado do plebiscito pode ser visto também como uma conseqüência da impaciência da população. “Porém, ninguém quer ser testemunha. As pessoas se recusam, por medo, mas também porque aqui no Brasil não é costume. A relação da sociedade com o Estado está nas bases do lapidamento da nossa crise política”, analisa Misse.

O fato de possuir uma arma em mãos não traz ao cidadão a segurança que ele acredita ter. A maioria das vítimas de assaltos que tenta reagir morre. Em casos de latrocínio, verifica-se que 46% das pessoas que respon-deram com armas morreram, enquanto foram apenas 12% dos assaltantes. Um percentual repetido em di-versos outros países. O número de bandidos mortos é bem mais baixo porque, além de estarem acostumados a manusear armas, também têm ao seu favor o fator surpresa, lembra Misse.

O desarmamento não traria, segundo o pesquisador, o surgimento de um novo tráfico, como se afirmou, porque a circulação de armas clandestinas sempre foi muito grande. “O mercado negro das armas funciona há muito tempo. A maior parte de armas apreendidas pela polícia do RJ são fabricadas no Brasil. Armas essas que deixaram de ser legais, por terem sido exporta-das, provavelmente para o Paraguai, e reingressadas clandestinamente pela a fronteira”, disse Misse. O comércio clandestino vai continuar, mas de acordo com o Estatuto do Desarmamento, agora ter uma arma em casa sem registro é crime inafiançável. Isso não foi mudado pelo referendo.

A arma do

nãonãonão

8 Novembro•2005UFRJJornal da

– de acordo com Ivo Lesbaupin – foi no III Encontro Intereclesial, em João Pessoa (PB), com a presença de 150 pessoas, entre as quais 17 bispos. A maior parte, porém, era de lideranças populares comuni-tárias. O encontro, em 1979, foi descrito como o da “irrupção da palavra”, lembra o pesquisador. “De repente o pessoal se encontrou, pôde falar e soltou o verbo. Isso foi muito significativo porque aconteceu na presença dos que eram considerados os chefes da Igreja, os bispos”, analisa.

A explosão das CEBsO III Encontro vira uma

espécie de divisor de águas. Um ponto de chegada das primeiras reflexões e um ponto de partida para a multiplicação da experi-ência das Comunidades de Base pelo país. Em fins da década de 70 e início dos

anos 80, já sob a inspiração da Teologia da Libertação, impulsionada nas Conferências Episcopais Latino-Americana de Medellín (1968) e Puebla (1979), as Comunidades de Base se transformam em esteio dos movimentos sociais e sindicais. “Em São Paulo, por exemplo, os membros das CEBs passam a disputar eleições em associações de moradores para pôr fim às práticas clientelistas dessas entidades, como era o caso das Sociedades de Amigos de Bairros. A partir daí, no Brasil inteiro o movimento comunitário se renova”, registra Lesbaupin. Quando estouram as greves no ABC paulista, em 1978, e os sindicatos sofrem intervenções, elas também vão ser pontos de apoio para as lutas do sindicalismo autônomo e combativo que ali despontava. Houve, ainda, uma confluência entre a forma de construção das CEBs e do Partido dos Trabalhadores (PT), “que nasceram em meios populares e de baixo para cima”, diz. O PT se tornou, naquela conjuntura, o escoadouro natural para os membros das CEBs que decidiram fazer po-lítica partidária. “Lembro-me de uma época em que lideranças de comunidades diziam que ser cristão é ser do PT. Havia quase um sectarismo em relação aos que não pertenciam ao partido. Acho inclusive que o PT foi tão longe nos setores populares por causa das Comunidades de Base”, avalia Lesbaupin.

Em 1992, quando integrava a equipe de asses-soria do Instituto de Estudos da Religião (ISER) – que viria a criar a ONG Iser Assessoria, da qual é pesquisador – Ivo Lesbaupin participou de um levantamento nacional sobre o total de CEBs exis-tentes nas paróquias. “Chegou-se a um número de 100 mil comunidades católicas no país inteiro. Dessas, cerca de 70 mil corresponderiam ao mode-lo de Comunidade Eclesial de Base, com reflexões sobre a Bíblia e a vida e celebrações regulares conduzidas por leigos”, observa. De lá para cá, o boom no neopentecostalismo e a entrada em cena da Renovação Carismática (ver box) contiveram a

Os militares ainda esboçavam a melhor estratégia para alinhar os passos da Na-ção à marcha das tropas em 1965. Jamais poderiam suspeitar que no interior da vetusta Igreja Católica se ensaiava um

modo de viver a fé que, mais tarde, encarnaria longa e tenaz resistência à ditadura implantada um ano antes. A ruptura com práticas litúrgicas tradicionais e o estímulo aos valores da solidariedade e da jus-tiça social acenados pelo Concílio Vaticano II (1962 a 1965) inspiraram as primeiras Comunidades Ecle-siais de Base (CEBs) cria-das no Brasil. A sacristia como supermercado da fé perdeu terreno para um trabalho pastoral coleti-vo que incorporou leigos e religou o Evangelho à vida social.

Segundo o sociólogo e ex-dominicano Ives Lesbaupin, o modo burocráti-co de funcionamento das paróquias levava à mera procura pelos sacramentos. As pessoas sequer se conheciam e não formavam laços de convivência comunitária. Naquela época – afirma – a onda re-novadora dentro da Igreja Católica no Brasil foi pu-xada por bispos vinculados à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), sob a liderança de Dom Hélder Câmara, e teólogos como o padre Ca-ramuru de Barros. “Foram eles que prepararam um plano pastoral conjunto, em 1965, no qual aparece pela primeira vez a idéia das Comunidades Ecle-siais de Base”, conta Lesbaupin, autor de estudos sobre religião e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão Exclusão Social e Poder Local, da Escola de Serviço Social da UFRJ.

Indo onde o povo estáAs Comunidades Eclesiais de Base ganham im-

pulso no início dos anos 1970. Depois da edição do AI-5, em 1968, a ditadura fecha o cerco à militância de esquerda e investe ainda mais contra espaços tradicionais de ação política, como sindicatos e associações de moradores. Com engajamento cada vez mais nítido em atividades que põem na berlin-da as injustiças sociais, as CEBs começam a abrigar reuniões ligadas às lutas pela melhoria da qualidade de vida do povo, tanto no campo como na cidade. “Sendo religiosa, a Comunidade não era tão visada pela repressão”, diz Ivo Lesbaupin.

Em 1975, Dom Luiz Fernandes, bispo em Vitória e entusiasta das CEBs, propõe a realização do I En-contro Intereclesial de Comunidades de Base, que conta com o apoio de um grupo de bispos, padres e teólogos, entre eles Leonardo Boff. “Realizado em Vitória, foi mais um encontro desse grupo original, não contado com a presença de leigos”, de acordo com o sociólogo. Um outro foi realizado no ano seguinte, também em Vitória, mas ainda com baixa representação das comunidades. A grande virada

A

na

vida

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) persistem em

trabalho de renovação pastoral e engajamento político-social

depois de 40 anos

CEBsCoryntho Baldezilustração Anna Carolina Bayer

Nacional

Novembro•2005 UFRJJornal da 9

Nacional

expansão das CEBs, na análise de Lesbaupin. Mas se isso aconteceu – acrescenta – os dois fenômenos religiosos também não foram suficientes para fazer encolher o número de CEBs no Brasil, que teria se mantido estável desde a época da pesquisa (não há levantamento mais recente).

Nova missãoNo Rio de Janeiro, um dos bispos que mais se en-

volveram com a experiência das CEBs, Dom Waldyr Calheiros, afirma que elas são o espelho de “um novo modelo de organização da sociedade”. Nomeado bispo na Diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda, em 1966, ele concorda que o ambiente renovador do Concílio Vaticano II – “cujo lema principal era Comunhão e Participação” – foi o que motivou a criação das CEBs e oxigenou a missão evangelizadora da Igreja Católica no Brasil.

De acordo com Dom Waldyr – aposentado como bispo, mas ainda atuante em lutas comunitárias – em 1967 apareceram as primeiras Comunidades Eclesiais de Base na periferia de Volta Redonda, que discu-tiam a realidade social dos bairros pobres a partir de uma leitura renovada do Evangelho. Elas também se envolveram com os problemas que afetavam os operários da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) – frisa Dom Waldyr, para quem as CEBs “agiam em uma realidade de opressão como instrumento de libertação”.

Hoje, ao analisar o futuro das CEBs e sua relação com a hierarquia da Igreja, Dom Waldyr não se mostra preocupado com possíveis pressões do Vaticano sob o Pontificado de Bento XVI. Na condição de Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger silenciou Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação e ativo colaborador das Comunidades Eclesiais de Base. Mas como papa – segundo o ex-bispo – ele assume a responsabilidade pela animação da comunidade católica no mundo. “É algo completamente diferente”, afirma. E alguns gestos de Bento XVI, para Dom Waldyr, não indicam um caminho de confronto. Ele lembra que o papa chamou para o diálogo o teólogo de linha crítica e ex-colega de cátedra Hans Küng, a quem também impusera a lei do silêncio. Um outro sinal teria sido o seu discurso de posse, quando reafirmou o caminho traçado pelo Concílio Vaticano II. Mas mesmo que quisesse “silenciar” as CEBs – conclui Dom Waldyr – o papa teria dificuldades instransponíveis, pois “esse modo de ser Igreja no Brasil já ganhou vida própria”.

Embora não constasse da agenda oficial de de-bates, a crise política não passou em branco no 11º Encontro Intereclesial das Comunidades de Base, realizado em Ipatinga (MG), de 19 a 23 de julho. Presente ao encontro, Ivo Lesbaupin conta que, nos bastidores, havia um sentimento de frustração com os rumos do governo. E muito mais perguntas do que certezas. O que aconteceu? Por que o Lula não está fazendo o que deveria fazer? A decepção era indisfarçável, mas a maioria ainda preserva a figura do Lula – garante Lesbaupin.

Dom Waldyr Calheiros também relata a solidarie-dade a Lula entre os participantes do encontro, mas confirma que “o choque foi grande”. Segundo ele, houve críticas em relação a promessas não realiza-das e espanto diante de políticas de favorecimento ao capital. Mas, ao mesmo tempo, os membros das comunidades avaliam que “a burguesia quer vol-tar a se apoderar do governo”. E fazem a seguinte equação: “se com Lula está difícil, sem ele será impensável qualquer mudança social”, conta Dom Waldyr.

O maior saldo do encontro, no entanto, foi mos-trar que as CEBs mantiveram o vigor ao longo dos últimos 40 anos, segundo Lesbaupin. O testemu-nho dos números parece confirmar a análise. No total, foram 3.806 participantes, entre eles 3.000 leigos e leigas, 420 religiosos e religiosas, 380 pa-dres, 50 bispos católicos, dois bispos anglicanos, 48 representantes de outras 11 igrejas cristãs e 89 indígenas pertencentes a 32 nações diferentes. Uma experiência viva da fé plural e aberta postu-lada na Carta Final do 11º encontro: “Acreditamos na vocação profética das CEBs, contribuindo para que a Igreja em suas estruturas se torne mais circu-lar, colegiada, acolhedora, participativa, unida no respeito à diversidade missionária e defensora dos excluídos”.

A última onda pentecostal no Brasil, nos anos 90, fez surgir igrejas ao estilo da Universal de Reino de Deus, que evitam a ação política e valorizam o esforço individual como meio para o enriqueci-mento material. “Esse neopentecostalismo estan-cou o crescimento das CEBs”, diz Ivo Lesbaupin. Algumas chegaram mesmo a perder membros para os pentecostais, segundo relatos de coordenadores das comunidades.

Contudo, Lesbaupin afirma que na origem das CEBs há certa influência da experiência exitosa do pentecostalismo na formação de comunidades e de redes populares de ajuda mútua.

Também a Renovação Carismática Católica apareceu, segundo o pesquisador, numa disputa com o neopentecostalismo. Em ambos, identifica muitas semelhanças, como a ênfase sobre presen-ça do demônio no mundo, os ritos de exorcismos, os cânticos e a reflexão socialmente desengajada em torno da fé. “A Renovação Carismática satisfez o setor conservador da Igreja, que viu no movi-mento a grande chance de enfrentar a expansão do neopentecostalismo, imbatível naquele período”, ressalta.

Ao lembrar que o movimento carismático chegou ao Brasil vindo dos Estados Unidos, Dom Waldyr Calheiros vai mais longe. “Não é incoerente pensar que vieram para cá com o intuito de deter as prá-ticas da Igreja Libertadora, como as CEBS”, avalia. Ele relata que, em conversa pessoal com João Paulo II, em meados da década de 80, disse ao papa que a Renovação Carismática poderia ser uma interfe-rência norte-americana contra as Comunidades de Base. “João Paulo II respondeu que não excluía essa hipótese”, revela Dom Waldyr.

Nos últimos anos, porém, alguns teólogos liga-dos à Teologia da Libertação, como Clodovis Boff, condenam a oposição cerrada ao movimento ca-rismático. Defendem a incorporação de elementos

da Renovação Carismática, como as orações e os cânticos, às ações de cunho político-social

das Comunidades de Base.

Crise é pauta paralela no 11º Encontro

As CEBs, o pentecostalismo e os carismáticos

10 Novembro•2005UFRJJornal da

ONacional

Ana Gomes

inferno astral

A imprevisível crise política em que o país se arrasta há quase seis meses desarrumou a esquerda brasileira e provoca leituras diversas entre dirigentes e lideranças de

forças políticas que atuam nos movimentos sindical e estudantil na UFRJ. Os depoimentos colhidos pelo Jornal da UFRJ revelam as dificuldades dos corações e mentes militantes em superar a perplexidade e apontar saídas.

As entrevistas procuraram refletir as diversas correntes de pensamento que disputam influência entre professores, estudantes e funcionários no interior da universidade. Mas, mesmo no universo da visão da esquerda fragmentada, como o leitor vai constatar, há um ponto comum na análise: a denúncia das forças conservadoras que aplaudem a política ortodoxa de condução da economia da equipe liderada pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, ao mesmo tempo em que investem no enfraquecimento do governo explorando os escândalos de corrupção que roubaram de Lula e do PT o monopólio da ética.

O PT falhouO presidente da Adufrj (Associação dos Docentes

da UFRJ), José Antônio Martins Simões, professor do Instituto de Física da UFRJ, que se situa no campo da “esquerda independente”, sem alinhamento partidário, observa dois aspectos dominantes no noticiário sobre o governo: “os escândalos políticos e os elogios à saúde econômica do país”. Simões destaca que “em outros lugares e em outros momentos, estes dois fatores andaram juntos, mas, no Brasil atual, ‘aparentam’ estar separados”. Segundo o professor, o interesse da grande mídia em dissociar questões que estão intimamente relacionadas indica uma posição conservadora que “entre outras conseqüências, desestimula posicionamentos críticos” em relação à política econômica, por um lado, “e desacredita a organização política, sindical

Lideranças lançam olhar sobre a crise com diagnósticos divergentes num cenário de incerteza política

O alvo é o PTNeuza Luzia Pinto, coordenadora de Comunicação

Sindical do Sintufrj (Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e integrante da CUT Socialista e Democrática (CSD), afirma não ter dúvidas de que a atual crise foi instalada e é controlada por setores da direita. “O principal alvo da investida conservadora foi e é o PT”, diz. “Apesar da conjuntura ser muito dinâmica e ainda não ser possível estabelecermos com clareza os seus desdobramentos, em nenhum momento me pareceu que o objetivo seria atingir o governo Lula na sua estrutura, uma vez que a centralidade de sua política serve aos interesses conservadores. O alvo, portanto, é o PT”, insiste.

Neuza afirma que, por mais que Lula tenha sucumbido às pressões oriundas de sua aliança estrutural e tenha se mostrado disposto a manter a

e popular, que possa representar uma ameaça aos interesses dominantes”.

José Simões afirma que a idéia de que a ocupação do aparelho de Estado por um grupo voltado para os interesses populares seria avanço social falhou com o PT. “A escolha pela continuidade do modelo econômico, rapidamente revelou que o governo Lula estava situado no campo conservador. Um dos preços desse alinhamento é a corrupção, prática política necessária para se perpetuar no poder”, avalia Simões.

Segundo o dirigente sindical, a crise gera imensas dificuldades para a esquerda, mas, ao mesmo tempo, “contém elementos positivos como o de enterrar a ilusão de que a simples ocupação do aparelho de Estado resolveria a situação”. Para Simões, o grande desafio será o amadurecimento de um projeto de mudanças sociais ancorado em bases mais sólidas do que aconteceu até agora.

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José Simões: mídia dissocia o que está intimamente relacionado

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Nacional

lógica capitalista, havia por trás dele uma estrutura sob a qual os setores conservadores não tinham controle. “Para a direita, desacreditar o PT significa matar a chance de construção de um processo de ruptura com a lógica predominante”, avalia a sindicalista.

A dirigente destaca que o PT foi atingido em seu maior patrimônio que são a ética e a integridade moral no lidar com o patrimônio público. “Entre verdades e pirotecnias, conseguiram construir o senso comum de que não há diferenças entre esquerda e direita”, acrescenta.

Integrante da Democracia Socialista (DS), uma das tendências do PT, Neuza Luzia entende que estão enganados aqueles que se encontram na esquerda, e agem como colaboradores desta política “conservadora” pensando em construir alguma alternativa a partir deste processo. “O grande desafio é compreender o momento de transição que o país atravessa e posicionar-se na ala esquerda dos movimentos político-sociais baseados nas organizações dos trabalhadores que impulsionem as mudanças”, diz.

Socialismo é a agendaA coordenadora geral do Sintufrj, Denise Góes,

afirma que apesar de todos os aspectos negativos, como a desmoralização do Congresso e do Executivo, a crise trouxe um fato importante. “Transformou a política em assunto cotidiano”, diz. Integrante do coletivo Vamos à Luta, que faz duras restrições ao governo Lula mesmo antes dos escândalos, Denise Góes responsabiliza o PT pelo “espetáculo degradante” que, segundo ela, compromete o papel de toda a esquerda uma vez que fortalece a idéia segundo a qual não existem diferenças entre esquerda e direita e de que todos os políticos são iguais. Segundo a dirigente, num breve espaço de tempo o PT e o governo Lula, ao fazerem sua opção pelo projeto conservador, destruíram concepções de ética e integridade, valores caros da esquerda e que a sociedade assim identificava. “Não vai ser fácil reconstruir tudo de novo”, observa.

De imediato, afirma Denise, a atitude indispensável dos que compreendem a política como instrumento de transformação, é a defesa da apuração dos fatos, a identificação dos corruptos e corruptores e a punição dos envolvidos. “Não que isso venha a mudar a essência do Estado burguês, que traz na sua lógica a corrupção como um dos métodos”, afirma. Na opinião de Denise, a experiência oferecida pelo PT e pelo governo, que abriu mão dos seus compromissos assumidos com a maioria da população, deve servir de lição para a construção de um novo caminho. E esse caminho, segundo ela, é a unificação de forças que recoloque a agenda da construção do Socialismo como a estratégia em busca de um país mais justo.

Sucessão na pautaEx-diretora do Sintufrj, atualmente integrante

da Executiva Nacional da CUT, Lúcia Reis afirma que a crise que o país enfrenta é fruto da disputa política decorrente da proximidade das eleições presidenciais que vão se realizar no próximo ano.“O governo Lula deu continuidade a política econômica que privilegia metas financeiras e que está voltada para a exportação, herdada de FHC, e retomou o processo de reformas, como a da Previdência Social, com o aplauso do bloco PSDB/PFL. Nesse cenário, apesar da correlação de forças desfavorável no Congresso, o governo vinha tranqüilo na sua relação com os conservadores. Mas a disputa sucessória entrou na pauta e um novo quadro começou a se desenhar”, analisa, com a oposição lançando mão de mecanismos para fustigar Lula e o PT, como as CPIs que, na sua opinião, não querem apurar efetivamente a corrupção.

Lúcia Reis, que integra, na CUT, a corrente Articulação, diz que os erros do PT fizeram do partido alvo e atingiram a popularidade de Lula. A dirigente acha cedo para avaliar os desdobramentos da crise sobre as eleições de 2006 e a esquerda. “Dependerá das decisões do PT e dos demais partidos da esquerda, do que acontecerá no Congresso, das opções do governo Lula e da mobilização do movimento social”, diz. Lúcia aponta como os maiores erros do governo e do PT a manutenção de políticas e práticas da direita. Ela lembra que

A opção “errada” do governoO dirigente do DCE da UFRJ, Pedro e Sá, afirma que a

crise política é resultado direto da opção do governo do PT de administrar os negócios das grandes empresas e bancos internacionais no país. Nesta tarefa, segundo ele, o PT e Lula teriam como aliados a CUT e a UNE. O dirigente cita números para sustentar a tese de adaptação do governo ao projeto das elites. “A renda média do trabalhador no país cresceu 1,1%, ao mesmo tempo em que as 220 maiores empresas brasileiras tiveram crescimento de 71% em seus lucros líquidos. Além disso os bancos atingiram lucros recordes durante o atual governo alcançando patamares de 49,3% de crescimento”, relaciona, exibindo dados de institutos oficiais. Para ele é necessário criar novas alter-

nativas para substituir a CUT e a UNE como organizações de massa. O DCE tem como forças majoritárias o PSTU e o movimento Reage Socialista, dissidente do PT.

Fernanda de Lima, dirigente da Associação dos Pós-Graduandos da UFRJ, ao comentar a crise, afirma que a corrupção é o método utilizado por este e pelos últimos governos para a manutenção de política econômica vol-tada para minoria de privilegiados. “Diante deste qua-dro, é chegada a hora de a esquerda ter como bandeira a organização e a mobilização da massa de trabalhadores e estudantes, na luta diária em seus locais de trabalho e estudo, ao invés de priorizar interesses eleitoreiros como única alternativa”.

DCE e APG

a CUT, o MST e a UNE cobram de Lula mudanças na política econômica.

Neste momento, segundo ela, “o fundamental é que a esquerda e o campo democrático e popular tenham unidade e força para buscar a saída desta crise” que, como afirma, não se limita ao Brasil e a América Latina.

“Restou a decepção”Na opinião de Simone Silva, militante do PSTU

e também coordenadora de Comunicação Sindical, do Sintufrj, os problemas enfrentados pelo PT e pelo governo Lula têm origem bem anterior às denúncias de corrupção. “Já nas disputas eleitorais anteriores o PT vinha buscando patamares de igualdade com os partidos das elites. Para isso, foi necessário abandonar a história da construção do partido”, diz. “É aí que reside a raiz da crise: o PT se transformou numa legenda que em nada difere das agremiações burguesas”.

Os escândalos, segundo Simone Silva, “vêm coroar” os desvios que resultaram “na compra de votos através do ”mensalão”, no caixa dois, no desvio de dinheiro envolvendo estatais e os fundos de pensão”. De acordo com a sindicalista, “aos brasileiros que imaginavam que com a eleição de Lula as desigualdades sociais iriam ser combatidas e a vida melhorar, restou a decepção”.

Simone acrescenta que a CUT e a UNE se aliaram ao governo e estão longe da luta para construir outros caminhos. “Para a esquerda resta o desafio da construção de uma alternativa para a classe trabalhadora”. Na sua opinião, a indignação com o PT cria um campo fértil para a reorganização dos trabalhadores. Mas faz uma ressalva. “O risco é de, na busca dessa alternativa, repetirmos os erros do PT com a construção de projetos fincados em processos eleitorais”. Simone diz que a saída para a esquerda é trabalhar pela organização política independente dos trabalhadores, com os olhos voltados para o socialismo.

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Denise Góes: PT responsável pelo “espetáculo degradante”

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Simone Silva: aos brasileiros, restou a decepção

12 Novembro•2005UFRJJornal da

O poder doEntrevista

E do ponto de vista geopolítico,

a resistência e oposição às decisões

unilaterais dos Estados Unidos, sobretudo depois de 2001, é cada

vez maior

Coryntho Baldez

A recente visita oficial ao Brasil do presidente norte-americano, George W. Bush, teve ingredientes que já se tornaram rotina em suas andanças pelo mundo: protestos contra as guerras expansivas dos EUA e um esquema de segurança colossal para proteger o dirigente máximo da superpotência planetária. O encontro entre Lula e Bush também

produziu as surradas e vagas declarações em torno da defesa da democracia e do livre mercado. Mas, para além dos seus interesses mais imediatos, que papel estratégico desempenha hoje os EUA? Como se relacionam com os países excluídos do jogo de poder mundial, como o Brasil?Para ajudar a elucidar tais questões, o Jornal da UFRJ entrevistou o cientista político José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da UFRJ. Desde meados da década de 80, ele vem desenvolvendo estudos sobre o que chama de “poder americano”, que teria dois pilares: o controle de uma moeda internacional capaz de condicionar a política econômica em outros territórios e o comando de uma infra-estrutura militar global. Para Fiori, embora enfrente resistências, o “minotauro” americano ainda não dá sinais de “crise terminal”.

José Luís Fiori

fotos Marco Fernandes

Jornal da UFRJ: Desde a década de 1970 fala-se em crise da supremacia norte-americana. Hoje, alguns analistas chegam a afirmar que o sistema econômico internacional, tendo à frente os EUA, está em “crise terminal”. As suas pesquisas apontam para o lado oposto, especialmente os ensaios publicados no livro O poder americano (Vozes, 2004). De fato, o destino dos demais povos depende cada vez mais das ações do governo norte-americano? José Luís Fiori: O pensamento social às vezes tem dificuldade de analisar situações concretas sem supor um fim próximo ou uma ruptura definitiva. Como se ele não conseguisse entender o mundo, nem propor alternativas de ação, sem imaginar que este mundo está em crise. Eric Hobsbawm disse uma vez que devemos estar sempre muito atentos nas nossas análises históri-cas para não confundir previsões baseadas no estudo e nos fatos com previsões baseadas no nosso desejo. De fato, pode-se e deve-se falar de uma crise econômica e geopolítica que atingiu o poder americano durante a década de 1970. Mas aquela crise foi superada pela grande restauração liberal-conservadora mundial, que começa nos anos 1980, a partir dos países anglo-sa-xões, e segue até hoje liderada pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha. E nesse início de século XXI, não me parece que existam sinais de uma crise terminal do poder americano.

Jornal da UFRJ: Mas há obstáculos crescentes ao exer-cício desse poder...Fiori: Não há dúvida. Os Estados Unidos enfrentarão dificuldades nas próximas décadas para manter o seu controle global, político e econômico, mas do meu ponto de vista não se divisa no horizonte do sistema mundial o apocalipse da crise final. Os Estados Unidos estão atolados no Iraque e sem uma porta de saída clara e honrosa, mas isto não é parte de uma crise terminal. Na verdade, o conceito de crise não me parece o mais adequado para dar conta do que está acontecendo neste momento dentro do sistema mundial, que vai digerindo lentamente uma mudança radical do seu eixo geopolí-tico e geoeconômico.

Jornal da UFRJ: E que mudança radical é essa?Fiori: Depois de cinco séculos, a Europa perdeu sua centralidade, e o mundo vive por algum tempo sem uma bipolaridade nítida que organize o cálculo estratégico dos seus principais atores, enquanto a Ásia globaliza

definitivamente o modelo interestatal de origem euro-péia. Por trás desta transformação, entretanto, esconde-se uma outra mudança ainda mais complexa. A entrada no tradicional jogo de poder das grandes potências de alguns paÍses que fazem mais de 500 anos que se trans-formaram no objeto do desejo dos europeus e foram suas colônias ou protetorados até meio século atrás. Agora, são eles que estão batendo na porta, anunciando sua passagem.

Jornal da UFRJ: Como o senhor vê a discussão em torno dos conceitos de poder hegemônico e poder im-perial? Algum deles traduz melhor o papel dos EUA no mundo? Fiori: Essa discussão às vezes prejudica mais do que ajuda a entender a dinâmica dos acontecimentos con-temporâneos. Se entendermos por hegemonia uma relação virtuosa de liderança dos Estados Unidos com as demais grandes potências econômicas e políticas, como ocorreu no mundo capitalista nos primeiros 25 anos depois da II Guerra Mundial, é evidente que após os anos 80, em particular depois do fim da Guerra Fria, a relação dos Estados Unidos com seus antigos aliados mudou sensivelmente. A economia norte-americana cresceu de forma quase contínua desde 1982, com uma pequena interrupção na virada dos anos 1990, enquanto a economia européia entrou num longo processo de letargia junto com a economia japonesa. E do ponto de vista geopolítico, a resistência e oposição às decisões unilaterais dos Estados Unidos, sobretudo depois de 2001, é cada vez maior. Mas tudo isto é parte da mudan-ça do eixo de que já falamos. A hegemonia americana do pós II Guerra só foi possível graças à bipolarização militar com a URSS e à integração econômica virtuosa e complementar do tripé formado pelos Estados Uni-dos com seus dois concorrentes recém derrotados e transformados em protetorados militares, a Alemanha e o Japão, que funcionaram como anéis transmissores do dinamismo econômico global dentro da Europa e Ásia.

Jornal da UFRJ: E foi essa engenharia que começou a ruir a partir da década de 1970?Fiori: Sim, a partir das décadas de 1970 e 1980, com a desintegração da URSS e a substituição do velho tripé pela nova relação econômica dos Estados Unidos com a China. Neste contexto, fica difícil falar de hegemonia, se por ela se entende uma liderança capaz de gerar si-

minotauroamericano

Novembro•2005 UFRJJornal da 13

não cumprem com os requisitos fundamentais indis-pensáveis ao funcionamento do sistema mundial e colocam dificuldades e limites imediatos para a exe-cução desta nova estratégia de contenção global dos Estados Unidos.

Jornal da UFRJ: Por quê?Fiori: Em primeiro lugar, do ponto de vista da segu-rança interna dos Estados Unidos a ubiqüidade do adversário interno exigiria, para ser eficaz, um con-trole permanente e cada vez mais rigoroso da própria sociedade americana, uma espécie de estado de sítio crônico intolerável no longo prazo, mesmo para os norte-americanos. Em segundo lugar, do ponto de vista da segurança externa, a nova estratégia cria uma situação de insegurança coletiva e permanente dentro do sistema mundial. O novo adversário não é uma religião, uma ideologia, uma nacionalidade, uma civilização ou um estado, e pode ser redefinido a cada momento. E os Estados Unidos se reservam o direito de fazer ataques preventivos contra todo e qualquer estado onde considerem que há bases ou apoio às ações terroristas, o que significa a auto-atribuição de uma soberania imperial.

Jornal da UFRJ: É uma doutrina que cria uma situação de guerra permanente?Fiori: Sim, no campo internacional cria essa situação porque, estabelecido o princípio geral, não há acordo possível sobre o que seja terrorismo e quem são os ter-roristas. Tudo indica, portanto, que a estratégia da luta global contra o terrorismo não tem sustentabilidade no médio prazo e não conseguirá bipolarizar e equilibrar o sistema mundial no longo prazo. Pelo contrário, deve aumentar a resistência dentro dos próprios Estados Unidos e acelerar o retorno do conflito entre as grandes potências, no médio prazo.

Jornal da UFRJ: O Iraque continua ocupado depois da invasão norte-americana, mas as ações internas de resistência parecem não ter fim. As recentes eleições no país significam o estabelecimento de uma rotina política diferenciada e sustentável ou o Iraque pode virar um novo Vietnã para os EUA?Fiori: Só é possível comparar as duas situações no sentido de que também no Iraque o passar do tempo está colocando os Estados Unidos numa disjuntiva pa-recida com a do Vietnã, depois de 1968. Se decidirem retirar suas tropas de imediato do Iraque, perderão posições de poder decisivas na região. Mas ao mesmo tempo, quanto mais atrasarem sua retirada inevitável, mais claramente sairão de lá como o grande derrotado dessa guerra.

Jornal da UFRJ: Caso o custo político-eleitoral interno das guerras em outros territórios aumente, é possível que o governo Bush impulsione a “terceirização” des-sa política de ocupação, inclusive por meio de órgãos multilaterais?Fiori: Todos os grandes poderes imperiais sempre “terceirizaram” suas guerras, de uma forma ou outra. A Inglaterra, por exemplo, não fez praticamente nenhu-ma guerra nos 200 anos de seu apogeu imperial com suas próprias tropas. Confiou mais nos seus recursos financeiros e na sua capacidade política de dividir os adversários do que nos seus próprios homens. Isso aconteceu nas suas guerras imperiais fora da Europa, mas também nas suas guerras européias, onde sempre soube jogar uns contra os outros e mobilizar suas po-pulações coloniais para diminuir os próprios custos e perdas. Ainda hoje, os europeus fazem o mesmo na África, ora mobilizando tropas da África do Sul, ora da Nigéria. O mesmo acontece na Ásia e na Oceania. As tropas das Nações Unidas, neste sentido, são apenas uma forma mais elegante e barata de fazer o mesmo.

Jornal da UFRJ: Em relação às disputas geopolíticas, você afirma que o hemisfério americano é uma exceção em relação ao resto do mundo desde a primeira hora de sua existência independente. Por quê?

Entrevista

nergia de soma positiva. Por outro lado, quando se fala de império americano, em geral se está olhando para a relação dos Estados Unidos com o resto do mundo. Um império que não seria contínuo nem implicaria em governo colonial direto das suas províncias. Estaria ba-seado, sobretudo, no controle de uma moeda internacio-nal com capacidade de impor ou condicionar a política econômica de todas as “províncias” do seu “território econômico” e no comando de uma infra-estrutura de controle militar global, envolvendo acordos, bases e instalações em cerca de 130 países. Além, também, do controle inconteste de todos os oceanos e mares e do espaço aéreo dos cinco continentes.

Jornal da UFRJ: Você cunhou a expressão estado “mi-notauro” para se referir às grandes potências. Fale um pouco sobre isso. Fiori: Essa foi uma metáfora a respeito da natureza du-pla e contraditória dos estados nacionais, que são ao mesmo tempo as grandes potências, situadas no epi-centro do sistema político mundial. Para muitos histo-riadores, o estado nacional foi uma forma superior de organização do poder político que venceu e substituiu os grandes impérios, durante o século XVI. Do nosso ponto de vista, entretanto, não foi isto o que ocorreu. Não há dúvida de que o sistema europeu e o próprio sistema político mundial se mantiveram durante 500 anos sob a liderança dos seus estados nacionais mais poderosos. Mas ao nascerem, esses estados se trans-formaram quase imediatamente em cabeças de novos impérios, dentro e fora da Europa. Portanto, há um paradoxo na origem do sistema estatal. Seus “países fundadores”, os primeiros estados que nasceram e se expandiram imediatamente para fora de seus próprios territórios eram seres híbridos, uma espécie de “mino-tauros”, meio-estado e meio-império. Enquanto luta-vam para impor seu poder e sua soberania interna, já estavam se expandindo para fora dos seus territórios e construindo seus domínios coloniais. Nesse sentido, o mais correto é dizer que o império ou a compulsão expansiva foi uma dimensão essencial dos primeiros estados nacionais europeus.

Jornal da UFRJ: Parece que desde o 11 de setembro o estado “minotauro” dos dias atuais definiu um novo inimigo principal quando declarou “guerra” ao terro-rismo internacional. O que está por trás dessa linha de ação dos Estados Unidos?Fiori: O que se constata historicamente é que os esta-dos-imperiais ou grandes potências sempre recriaram seus adversários. O que os Estados Unidos tentaram fazer depois dos atentados de 2001 foi definir seu novo inimigo bipolar, propondo ao mesmo tempo uma par-ceria estratégica global com todas as grandes potências para combater o terrorismo internacional. O problema é que o terrorismo é um inimigo que não se identifica com nenhum estado, não tem território e não estabelece nenhum tipo de complementaridade econômica com seu adversário. Ele é universal e ubíquo, um inimigo tipicamente imperial, da humanidade, e não de algum estado em particular. Aceitá-lo significa entrar numa guerra em que os Estados Unidos definem, a cada mo-mento, quem é e onde está o adversário, numa guerra que não terá fim e que será cada vez mais extensa, uma guerra permanente e elástica.

Jornal da UFRJ: Assim como é elástica e mutável a definição de inimigo pelos EUA? Fiori: Ela já foi modificada várias vezes nos últimos anos. Primeiro foram as redes terroristas, depois o “eixo do mal”, constituído pelo Iraque, pelo Irã e pela Coréia do Norte, e finalmente os estados produtores de armas de destruição em massa. Mas essa última categoria in-clui, no momento, quase todos os aliados americanos na guerra do Afeganistão e do Iraque.

Jornal da UFRJ: Essa estratégia se sustenta no longo prazo?Fiori: Do meu ponto de vista, as características deste novo inimigo bipolar escolhido pelos Estados Unidos

O que se constata

historicamente é

que os estados-

imperiais ou

grandes potências

sempre recriaram

seus adversários.

O que os Estados

Unidos tentaram

fazer depois dos

atentados de 2001

foi definir seu novo

inimigo bipolar

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Escola de ComunicaçãoEntrevista

depois de 1991. Também aumentam os sinais do retorno da luta pela hegemonia dentro do continente europeu, mesmo que seja na forma de uma luta prolongada pelo controle da União Européia. E não é improvável uma aproximação estratégica entre a Alemanha e o poder militar “ocioso” da Rússia.

Jornal da UFRJ: E onde entram os estados asiáticos, es-pecialmente a China, nesse tabuleiro internacional?Fiori: O sistema estatal asiático se parece cada vez mais com o velho modelo de competição pelo poder e riqueza que foi a marca originária do “milagre europeu”, desde o século XVI. Não é provável que se repita na Ásia algo parecido com a União Européia. Mas não há dúvida que a grande novidade geopolítica e geoeconômica do sis-tema mundial, desde os anos 90, é a nova relação entre os Estados Unidos e a China. Ela reproduz e prolonga o eixo Europa-Ásia que dinamizou o sistema estatal e ca-pitalista desde sua origem, e a relação privilegiada dos Estados Unidos com o Japão, desde 1949. Só que neste caso, para além da relação econômica complementar e competitiva entre Estados Unidos e China, o próprio sucesso dessa relação prenuncia uma disputa cada vez maior pela hegemonia militar no Sudeste Asiático. É bom lembrar que durante a Guerra Fria, os Estados Uni-dos mantiveram sua competição militar com um país com quem não tinham relações econômicas importantes para o dinamismo de sua própria economia nacional. E mantiveram relações econômicas dinâmicas com países que não tinham autonomia militar, nem possibilidade de expandir seu poder político nacional. Com a relação americano-chinesa, a complementaridade volta a ser parceira da competição político-militar.

Jornal da UFRJ: Então os norte-americanos não po-dem simplesmente descartar a China?Fiori: Neste momento, os Estados Unidos não têm mais como se desfazer economica-mente da China. Mas chegará a hora em que terão que blo-quear o movimento expansi-vo da China para fora de si mesma, no momento em que este movimento não for mais apenas econômico e assumir a forma de uma vontade política imperial. Em síntese, o poder global dos Estados Unidos tem limites e neste momento, na ausência de um adversário bipolar, o sistema mundial está experimentando um es-tranho sentimento de vácuo ou de perda de orientação estratégica clara. Mas nesse vácuo aparente, as antigas e novas grandes potências estão reconstruindo suas alianças e zonas de influência.

Jornal da UFRJ: A tendência, no médio prazo, é de uma ins-tabilidade da ordem política e econômica mundial?Fiori: No médio prazo, a Alemanha e o Japão aumen-tarão sua autonomia com relação aos Estados Unidos, a Rússia voltará ao seu papel tradicional e a China tentará impor sua hegemonia dentro da Ásia, uma situação muito difícil de ser controlada ou administrada solitariamente pelos Estados Unidos. Pode levar anos ou décadas, mas o mais provável é que chegue de novo um momento em que o mundo voltará a ler com

Fiori: De fato, é o único pedaço do mundo onde jamais existiu disputa pela hegemonia regional. Ela foi sem-pre anglo-saxônica. Primeiro da Inglaterra, durante a primeira fase da Doutrina Monroe, que foi formulada originariamente pelos ingleses e não pelos norte-americanos, entre 1823 e 1894. E depois dos Estados Unidos. Neste sentido, aliás, para bem ou para mal, a América Latina nunca teve maior importância dentro das grandes disputas geopolíticas mundiais. Mas não se pode esquecer que todo o continente foi submetido a ditaduras militares depois da Revolução Cubana. E nesse período os Estados Unidos construíram sua su-perestrutura de poder imperial no continente por meio dos quartéis e das armas. Hoje, entretanto, estamos num período em que os quartéis foram substituídos pelos Bancos Centrais e pelas burocracias públicas e priva-das ligadas à administração das políticas econômicas adequadas à livre circulação dos capitais financeiros. Exatamente como aconteceu no início da vida indepen-dente dos estados latino-americanos e depois durante todo o século XIX, e até a crise de 1930.

Jornal da UFRJ: A Área de Livre Comércio das Amé-ricas (Alca) não saiu do lugar na última reunião de cúpula dos países da região, em Mar Del Plata. Ela ainda pode vingar?Fiori: A primeira vez que os Estados Unidos propuse-ram a formação de uma Alca na América foi na reunião pan-americana de 1889. Fracassou e tenho a impressão que agora de novo ficará em “banho-maria” por muitos anos, sem chegar a nada conclusivo ou definitivo, pelo menos no que diz respeito ao Brasil e Argentina, os dois países que realmente interessam aos Estados Unidos.

Jornal da UFRJ: De onde virão as maiores resistências ao poderio do “minotauro” americano? Fiori: Acho que no médio prazo as resistências ao poder americano acabarão vindo de onde sempre vieram, das velhas e novas grandes potências. A própria necessi-dade norte-americana de alianças e apoios nas guerras do Afeganistão e Iraque acabou devolvendo a liberdade de iniciativa militar ao Japão e à Alemanha, ao mesmo tempo em que permitiu à Rússia reivindicar de volta o seu direito de “proteção” na sua “área de influência” clássica, onde estão incluídos vários territórios que já foram ocupados militarmente pelos Estados Unidos

atenção a polêmica do início do século XX entre Karl Kautsky e Vladimir Lênin sobre os limites e o futuro da ordem política e econômica mundial. Um acreditando na possibilidade de uma coordenação ultra-imperialista entre os estados e os capitais das grandes potências. E o outro convencido da inevitabilidade das guerras, devi-do ao desenvolvimento desigual do poder dos estados e da riqueza das nações.

Jornal da UFRJ: Mas se for verdade, e o mundo estiver vivendo de fato uma espécie de intermezzo, o que se deve esperar é também um período de passividade nos países que estão fora do núcleo central de poder e riqueza do sistema mundial?Fiori: Não. Acho que aí é que está o grande equívoco que leva muitos analistas e militantes anunciarem sem-pre de novo e com o mesmo insucesso o fim dos tempos. Não é indispensável a explosão do poder americano ou a hecatombe final do sistema mundial moderno para que ocorram mudanças ou revoluções no mundo. Basta lembrar, por exemplo, o século XIX, para ver que foi no período áureo da expansão do poder global da Grã-Bre-tanha, entre 1840 e 1880, que ocorreu a revolução car-tista na própria Inglaterra, as revoluções democráticas européias de 1848, a revolução Meiji no Japão, a Guerra Civil nos Estados Unidos, a unificação da Alemanha e da Itália e o início do grande movimento nacionalista que passou para a história como a Primavera dos Povos. Não é indispensável uma crise global do Capitalismo ou a destruição final do poder americano para que haja mudanças nos países fora do núcleo central do sistema mundial. O que é necessário para que isto ocorra é a mobilização dos povos e a existência de governos com vontade estratégica continuada de aumentar e distribuir a riqueza e o poder dos seus povos.

Não é indispensável a explosão do

poder americano ou a hecatombe final do sistema

mundial moderno para que ocorram

mudanças ou revoluções no

mundo

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DepressãoSaúde

“Isso é frescura!”. “Depressão é doença de rico. Pobre não tem isso”. Essas expressões são comuns na vida de quem sofre de depressão, pois boa parte das pessoas demora a perceber os sintomas e, por conseqüência, demora a aceitá-los como doença que precisa ser tratada.

Em geral, parentes e amigos lidam com o paciente deprimido como se ele pudesse se “erguer com as próprias forças”, ou simplesmente “deixar de frescura e enfrentar as dificuldades”. Apenas quem passou por uma depressão sabe quanto é sofrido precisar reagir e não conseguir sozinho. O deprimido sofre calado, pois, na sua insegurança, acaba aceitando o estigma de “fraco”. Numa sociedade em que todos os indivíduos precisam ser independentes e ninguém pode ficar doente, a situação do deprimido é bastante complicada.

A diminuição geral do nível de energia pessoal caracteriza, diretamente, a depres-são. Nem sempre, porém, ela significa tristeza; na maioria das vezes o sintoma princi-pal é a queda de energia, mesmo.

A psiquiatra Maria Tavares, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina e do Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ, diz que a depressão é uma doença do corpo como um todo. Ela afeta o sono, o apetite, a dis-posição física, e diversos aspectos psicológicos, como a auto-estima e a autoconfiança. Além disso, dá um tom especialmente “cinzento” e pessimista a tudo que a pessoa faz, sente e percebe do mundo à sua volta.

Maria Tavares destaca que é importante diferenciar a doença depressiva da reação depressiva. Segundo ela, a reação é natural em qualquer sujeito que passa por um momento difícil. “Uma forma de exemplificar o que estou dizendo é o período de luto. Todos nós quando perdemos alguém que gostamos, ficamos tristes. Isso é extre-mamente normal e até saudável. Apenas vai se consolidar a depressão, se esse período durar além do normal”, sublinha.

O psicanalista e professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, da Faculdade de Medicina da UFRJ, Theodor Lowenkron, complementa, citando Luto e Melancolia (1915-1917), de Sigmund Freud, e afirma que esses sentimentos têm semelhanças, mas se diferenciam, entre outras características, pelo fato do luto não apresentar distúrbio da auto-estima.

“A melancolia ou depressão grave pode estar relacionada a uma perda de objeto retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual pouco existe de incons-ciente a respeito da perda. Nele é, particularmente, o mundo que se mostra pobre e vazio; diferente da melancolia, onde o acento dessas manifestações está no próprio ego, ou seja, ao mesmo tempo em que se sofre uma perda relativa a um objeto, expe-rimenta-se uma perda relativa a seu ego”, diz Lowenkron.

Estudos mostram que a depressão é mais comum do que se acredita. Entre 15 e 25% das pessoas podem ter uma crise depressiva, que precise de tratamento, pelo me-nos uma vez na vida. Ou seja, até uma em cada quatro pessoas vai precisar se tratar de um quadro depressivo alguma vez na vida. A depressão é um problema médico mais comum que o diabetes e a hipertensão.

O que é depressão?Não são conhecidos ainda todos os fatores que estão associados aos quadros de-

pressivos. Entretanto, pesquisas nessa área sugerem fortes influências bioquímicas na regulação dos estados afetivos. Daí a importância do tratamento farmacológico associado à psicoterapia.

As influências bioquímicas mais conhecidas dizem respeito a disfunção nos neuro-transmissores, que parecem associadas à depressão. Isso faz com que o depressivo se sinta abatido, desanimado, desconcentrado, com falta de memória, embora algumas pessoas fiquem agitadas em vez de apáticas. Para estabilizar os neurotransmissores, os psiquiatras recomendam antidepressivos. Não são calmantes e nem estimulantes, não criam dependência física nem psíquica. Quase todos eles precisam de três a seis semanas para fazer efeito, logo é normal não sentir melhora nos primeiros dias.

Além dos fármacos, a psicoterapia é importante. Traços de personalidades, assim como problemas atuais ou passados podem estar relacionados com a doença, e a tera-pia ajuda a descobrir. Em casos mais graves, a medicação tem prioridade.

Depressão e trabalhoQue a depressão é uma das principais causas de afastamento no trabalho, não é

novidade para ninguém. Apenas no ano de 2003, a Divisão de Saúde do Trabalhador (DVST), da universidade, registrou que 2,5% dos afastamentos estavam relacionados à doença; e em 2004, das 2630 licenças concedidas, 77 foram pelo mesmo problema.

Vânia Glória Alves, enfermeira, diretora da DVST, afirma que os motivos pelos quais os funcionários procuram a divisão estão quase sempre associados à carência afetiva, às dificuldades de relacionamento e de reconhecimento no ambiente de trabalho, à baixa remuneração.

Depressão faz com que as pessoas percam o prazer de viver

Páginas em branco no livro da vida

Kadu Cayres

Segundo ela, a DVST tem dado uma atenção especial à depressão. “Estamos aten-tos a esse tipo de problema. Quando a pessoa chega aqui e já está sendo acompa-nhada por um profissional a gente somente providencia o afastamento dela para que possa se recuperar. Agora, se chega precisando de ajuda e com um quadro depressivo anterior, nós a encaminhamos para o Pólo de Saúde Mental do Trabalhador – depar-tamento que criamos para atender os funcionários, localizado no IPUB –, onde re-ceberá toda assistência de profissionais qualificados”, disse a diretora. Nos casos não diagnosticados, a divisão apenas concede a licença em última instância, pois acredita que o trabalho ajuda a recuperação.

O pólo existe desde 2002, e se destina a atender servidores da universidade com transtornos mentais. Visando dar um tratamento interdisciplinar, o pólo reúne cinco psiquiatras, duas psicólogas, uma assistente social e uma enfermeira.

Na universidade, existe muito preconceito em relação à doença. Para a diretora da DVST, há uma certa tendência das chefias e dos departamentos pessoais em não reconhecer esse tipo de problema, postergando a solução até encaminhar para divi-são: “costumam achar frescura, malandragem do funcionário para não trabalhar”, destaca.

Os servidores técnico-administrativos são os que procuram em maior número a DVST. No entanto, segundo Vânia Alves, houve um aumento significativo de quadros depressivos entre os docentes, que passam a procurar a divisão.

ilustração Marco Fernandes

16 Novembro•2005UFRJJornal da

M O R T EUniversidade

P o r dever de ofício, os médicos são obri-gados a encará-la nos olhos dos enfermos. Nas emergências dos hospitais, não parece haver tempo para reflexões diferentes do que a de salvar vidas. Mas, em situações menos extremas, uma série de questionamentos dividem os profissionais. Entram em cena possibilidades tecnológicas, questões éticas, o diálogo e a sensibilidade individual diante daquele momento singular. À escola médica cabe a difícil tarefa de preparar os estudantes para lidar com um fenômeno

Enigmática, traiçoeira, selvagem, redentora, indigesta. As inúmeras faces da morte refletem a profusão de sentimentos que desperta em homens e mulheres desde sempre. Para os profissionais de saúde ela é sempre uma incômoda presença. Os escritores e poetas revelam um estranho fascínio por ela

que, apesar de natural, ninguém é capaz de enfrentar facilmente.

“Toda morte é da natureza, mesmo a partir de um evento externo como bala ou acidente. Existem pe-culiaridades em cada uma delas. O que determinará isto é o grau de identificação que se estabelece com o paciente. Os motivos vão variar de razões étnicas, sociais, políticas e até de torcida a um clube de fute-bol”, analisa Sérgio Zaidhaft, autor do livro Morte e Formação Médica (Francisco Alves, 1990), que lamenta o despreparo dos profissionais da saúde para com um evento habitual em suas carreiras.

Professor de Psicologia Médica, do Departamen-to de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRJ, Zaidhaft explica que a abordagem da temática perpassa essa disciplina obrigatória do 6º período, quando os alunos começam a acompanhar os doentes no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF). Entretanto, observa que as repercussões

vão além das meras salas de aula e percorrem os corredores do cotidiano médico.

“Nada parece suficiente, diante de um acon-tecimento que espanta e assusta, por mais

que se estude. A modelagem da identidade do aluno acabará filtrada pela rotina das

enfermarias. Na relação que ele mantém com os preceptores e residentes. Esta transmissão de conhecimento prático, em geral, divide-se em duas correntes. Uma, que respeita e vê o paciente através de sua história pessoal. E, a segunda, que entende que o seu objeto é apenas tratar de uma lesão e quando isto não é curável, deixa de

fazer parte dos interesses da medici-na”, observa Zhaidaft.

Ciclo biológico versus drama humanoO docente põe em xeque a banalização da

morte, pensada indevidamente como o fugaz desfecho de um ciclo biológico. Afirmação

que não se sustenta quando vista pelo prisma dos que vivenciam o drama da eminente extinção.

Como defesa psicológica dos médicos, Zhaidaft diz que freqüentemente se repete o mote: “não se envolva com o seu doente, porque você vai sofrer tanto que vai querer largar a profissão”. Esse argumento, segundo

A MorteO ÚLTIMO SELO

Rodrigo Ricardoilustração Patrícia Perez

Novembro•2005 UFRJJornal da 17

Universidade

ele, deriva de uma interpretação equivocada do artigo 65 do Código de Ética Médica, que proíbe a obtenção de qualquer tipo de vantagem por intermédio do rela-cionamento entre médico e paciente.

“Resolveram achar que, ao se considerar o sofrimen-to alheio, a capacidade técnica desapareceria. Como se fosse possível tratar de alguém, sem estabelecer algum tipo de vínculo. Agora, é difícil mesmo acompanhar alguém que está morrendo. E ainda ter que levantar hipóteses diagnósticas, solicitar exames complemen-tares e conversar com pacientes de aids, leucemia ou câncer. O processo é extremamente doloroso, mas ninguém mandou escolher medicina”, expõe Zaidhaft, sublinhando que o distanciamento e a dor podem trazer sentimentos de culpa. ”Se acontece aquela naturali-zação da morte, impera a sensação de que faltou algo. Diferente de quando você tem a certeza que fez todo o possível”.

Afeto e tecnologiaA paixão pelas relações humanas e o desenvolvimen-

to afetivo e emocional são condições imprescindíveis para o profissional da saúde. Assim afirma a professora Eliane Falcão — coordenadora do Laboratório de Estu-dos da Ciência, do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes), da UFRJ — que aconselha outra atividade para quem não está disposto a ocupar-se destas questões. Diante dos avanços tecnológicos, a qualificação torna-se ainda mais complexa, exigindo perícia técnica, além da consciência dos valores, visão e cultura do mundo onde se atua.

Eliane lembra que a morte chega a cada dia perto de nós e que a conquista da eternidade não está no horizonte de nossas possibilidades:“preferimos acre-ditar que, se tivermos a solução técnica apropriada, não vamos morrer. Mas não é isso que acontece. Os aparatos modernos alimentam, talvez, a ilusão de que caminhamos para o controle da situação fatal. A ver-dade é que vivemos um tempo de expressivos ganhos científicos, mas andamos muito longe da aceitação da finalização de nossas vidas”.

A angústia faz com que sejam identificadas várias formas de morte, como a cardíaca, a cerebral ou a por falência dos órgãos, o que alimenta a polêmica sobre quando termina a vida. “A ciência — incluo nesse ter-mo as áreas Humanas e Sociais — tem muito a dizer a respeito, mas essas questões estão em aberto”, enfa-tiza Eliane Falcão. Ela chama atenção também para o cuidado com certo monopólio dos médicos sobre as decisões de prolongamento da vida, quando “decidir unilateralmente, sob um único ponto de vista, a morte de alguém, é brutalizar a convivência humana. Cada caso é um caso. Há situações em que o morrer como o nascer pode exigir, ou permitir, mais atenção, cuidado e tempo. Nesse processo, além do paciente e médico, a equipe de atendimento, familiares e amigos devem estar envolvidos”.

Ponto delicado e feticheSegundo Zaidhaft, muitos médicos são contrários a

qualquer abreviação da existência, independentemen-te dos desejos do doente ou da família e guiados pela ideologia de salvar vidas a qualquer custo. Mesmo quando os pacientes foram desenganados, retardar o desfecho inevitável apenas trará mais sofrimento a ele e a seus familiares.

“O Código de Ética Médica ainda é ambíguo em relação a isso, ordenando ao médico lutar com todas as forças ao seu alcance em benefício do doente e ao mesmo tempo respeitar a sua vontade. Como no Brasil, ainda não existe lei que ampare o arbítrio das pessoas, muitos julgam que o não socorrer se trata de omissão”, diz Zaidhaft, acrescentando que, o juramento de Hipócrates, estabelece, entre as funções do médico, a de trazer alívio, mas não há nada nele que permita abreviar a vida.

Sobre o aparato tecnológico que pode prolongar indefinidamente a vida, Zaidhaft avalia que “a apa-relhagem em si é benéfica, posto que salva, quando antes era impensável. Quantos têm sobrevivido e se recuperado de acidentes e doenças graves, como no caso do cantor Herbert Vianna? Não podemos demo-nizar a tecnologia. Ela é muito bem-vinda. Mas, como instrumento, dependerá de quem a usar. Há quem a veja como um fetiche — de máxima importância na relação médico-paciente — e como escudo, diante da nossa condição absolutamente igualitária de seres mortais. Afinal, é cômodo olhar para as máquinas e dizer que o respirador continua funcionando”.

O mito e a sensibilidadeNão por acaso, no imaginário dos povos, as práti-

cas de saúde flertavam com mitos e deuses. Asclépio, deus da Medicina, era capaz de ressuscitar os mortos e vencer o inexorável. “Lidar com a frustração e a im-potência é difícil para o médico. Ainda é o seu ideal curar a todos. Afinal, que maravilha, receitar um pro-cedimento e tudo ficar bem. Perfeito, sou quase um ser divino, que reconstitui a integridade do paciente. A gente sabe que o médico não é Deus, mas espera dele uma fonte de conforto e acolhimento”, destaca Zai-dhaft, que lembra a dificuldade dos profissionais de saúde em dialogar quando já não é mais possí-vel acenar com a esperança. Nessa hora, cada um se vira com a própria sensibilidade. Pelo menos é essa a conclusão de duas dissertações de mes-trado orientadas pela professora Eliane Falcão, em duas escolas médicas.

“É preciso incluir, de forma continuada, a abordagem da questão da morte e de seu ines-capável enfrentamento pelo futuro profissio-nal. Isso deve acontecer do primeiro ao último período da formação, sob diferentes ângulos. Essa aprendizagem exige amadurecimento de quem vai lidar com o fato de que o pa-ciente pode falecer”, defende Eliane, que aponta as dificuldades em compreender o término da existência. “Elas estão relacio-nadas com os padrões de uma cultura em determinado período da história. Rom-per com tais amarras é responsabilidade social que exige iniciativas persistentes de diferentes segmentos da sociedade”. De um outro ponto de vista, Sérgio Zai-dhaft enfatiza que “para o narcisismo humano, é insuportável a idéia de que o mundo vai continuar a existir sem a sua presença”.

Musa das ArtesNo século XIX, O Romantismo te-

matizou com estranho fascínio o sentimento da perda e associou beleza e morte. A ponto de o escritor Edgar Alan Poe proclamar “como mais belo tema poético: a morte de uma bela mulher”. Na literatura, aliás, há uma longa lista de escritores, entre eles Shakespeare, Dostoievski, Machado de Assis, Drummond, Bandei-ra e Saramago, que visitam esse enigma da condição humana que se confunde com o próprio mistério da criação estética.

“A imaginação precisa do vazio, impulsionando o mergulho do artista neste abismo do desconhecido. Um salto visto como morte, quando suspendem-se os senti-dos habituais para que ele possa enfim criar”, comenta a professora Vera Lins — do Departamento de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras, da UFRJ, autoridade na obra do judeu-romeno Paul Celan, que sobreviveu à barbárie e à perplexidade dos campos de concentração nazista. Em um fragmento do poema Fuga da Morte, diz-nos ele: “Leite negro da aurora nós te bebemos à noite/nós te bebemos pela manhã e ao meio-dia/nós te bebemos ao crepúsculo/bebemos, bebemos...”.

Sérgio Zaidhaft. Morte e formação médica. Francisco Alves Editora, 1990. Diálogo entre a Morte e o Cavaleiro, traduzido de Le septième sceau (O sétimo selo) do filme dirigido por Ingmar Bergman, realizado em 1956.

Apoiado em considerações do filósofo alemão Heide-gger, o professor Luiz Edmundo Coutinho, do Programa de Pós-graduação de Ciências da Literatura, também da Faculdade de Letras, sustenta que a referência da morte no jogo poético é sempre uma provocação de novas idéias a respeito do mundo. Autor da tese de doutorado (O Desastre da Imortalidade — e a crônica do sujeito na poética do diário) sobre o mineiro Lúcio Cardoso, Luiz Edmundo define a poesia como espanto. “Escrevo e o que escrevo liberta-me da morte. Essa passagem do Lúcio demonstra a sua inquietação e confirma que a manutenção da vida é o exercício da escrita apregoada por Roland Barthes. Podemos dizer ainda, que Lúcio chamaria os recursos técnicos ocidentais para vencer a morte como ficções”, afirma o professor.

A morte também brilha no escuro das salas de ci-nema e poucas vezes foi tão bem retratada como em o Sétimo Selo, do sueco Ingmar Bergman: “Lá no céu tempestuoso, a severa morte os convoca para dançar e quer que todos se dêem a mão para formar uma longa fila. A morte vai à frente com a foice e a ampulheta na mão. Eles vão dançando, se distanciando do sol. E, solenemente, dançam rumo à escuridão, enquanto a chuva cai nos seus rostos, lavando as lágrimas salgadas da face”, FIM.

O Cavaleiro: - Quem é você?

A Morte: - Eu sou a Morte.

O Cavaleiro: - Veio me procurar?

A Morte: - Tenho caminhado a seu lado há

muito tempo.

O Cavaleiro: - Eu sei.

A Morte: - Está pronto?

O Cavaleiro: - Meu corpo tem medo. Eu não.

18 Novembro•2005UFRJJornal da

Universidade

Como aniversário de 100 anos não se pode deixar passar em branco, no último dia 26, a biblioteca Car-valho de Mendonça, da Faculdade de Direito, festejou seu centenário com toda pompa e circunstância que a data exige. A solenidade, que teve lugar no salão Ruy Barbosa, contou com as presenças do reitor da univer-sidade, Aloísio Teixeira, da diretora da Faculdade de Direito, Juliana Neuenschwander Magalhães, da chefe da biblioteca, Maria de Fátima Ramos Madruga, da co-ordenadora do Sistema de Bibliotecas da UFRJ (SiBI), Paula Mello, e do advogado e criminalista, Técio Lins e Silva. Além da cerimônia, a faculdade promoveu uma exposição de painéis, que relembravam fatos marcantes da histórica biblioteca.

Sua história começa em 1905, com a doação de livros e estantes feita por dois alunos, um deles Arnal-do Guinle, segundo informações do livro História da Faculdade de Direito, de Pedro Calmon, ex-reitor da UFRJ. Nessa época, os livros foram instalados em uma sala cedida no Ginásio Nacional, atual colégio Pedro II. Acompanhando a Faculdade de Direito, depois disso ela foi transferida para a Rua do Catete e, finalmente, na década de 40, para o atual prédio, ganhando o espaço que ocupa hoje.

Somente em 1945 a Faculdade contratou a primei-ra bibliotecária, Cléa Marques Ferreira Sangirad. “A partir daí começou o processamento técnico da biblio-

Considerada uma das mais antigas da universidade,a biblioteca Carvalho de Mendonça passa por uma reestruturação,

assim como toda a Faculdade de Direito,e promete continuar crescendo e contribuindo para a formação dos estudantes.

Biblioteca Carvalho de MendonçaHistória para ser lembrada

teca, os livros ganharam uma organização por assunto e registros no acervo, entre outras melhorias”, conta Sânia Moura, uma das bibliotecárias atuais.

Desse tempo, a biblioteca guarda recordações e livros. Atualmente em processo de informatização, espera-se fechar o ano disponibilizando o emprésti-mo e a consulta online. Segundo Sânia Moura, toda a catalogação, que antes era feita em fichas, é feita por computador e os terminais de consulta já estão dispo-níveis para os estudantes.

Para Paula Mello, coordenadora do Sistema de Bibliotecas e Informação da UFRJ (SiBI), essa é uma das bibliotecas mais antigas, dividindo o título com a da Escola de Belas Artes (de 1816), e a da Escola de Música (de 1904). “Esse é momento do reconhe-cimento da importância e da relevância das biblio-tecas para o ensino e pesquisa da universidade. Isso é feito com o apoio da Reitoria, com o orçamento e planejamento aprovado e com parcerias que o SiBI tem firmado com unidades, o que tem dado certo”, analisa a coordenadora.

Acervo: a vida de uma bibliotecaSão aproximadamente 30 mil livros e 18.845 fas-

cículos de revistas jurídicas guardados na biblioteca Carvalho de Mendonça, de acordo com os dados do ano passado. Na parte do acervo de obras raras, há

Rafaela Pereira e Luciana Campos

clássicos como Gaetano Filangieri, por exemplo. Nes-se espaço, o acesso aos livros deve ser cuidadoso. “Em geral, estes livros ficam em um local reservado e os alunos têm acesso ao catálogo, mas não é permitido irem até onde estão os livros”, afirma Maria de Fátima Madruga, chefe da Biblioteca.

De acordo com o reitor Aloísio Teixeira, esse impor-tante acervo mostra a continuidade das atividades da universidade. “Uma biblioteca é um dos instrumentos mais importantes para formação universitária. As universidades são instituições que na Europa têm mil anos e desde as primeiras experiências um dos aspectos mais importantes foi a organização de suas bibliotecas”, afirma o reitor.

E para continuar cumprindo o seu papel na forma-ção dos estudantes e estender seu acervo, a biblioteca promove campanhas de doações de livros. De acordo com Fernanda Laje Alves, diretora executiva do CACO (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira), a doação de livros pelos docentes ainda é muito pequena e grande parte dos exemplares recebidos pela biblioteca vem de ex-alunos.

Juliana Neuenschwander Magalhães, diretora da Faculdade de Direito, revela que está nos planos da direção uma renovação do acervo. Essa mudança será feita em conjunto com a reforma estrutural do projeto pedagógico do curso. Segundo ela, cada disciplina terá seu programa revisto e adequado a uma proposta de curso com um novo perfil. “Queremos um profissio-nal que esteja preparado para, enquanto jurista, atuar em prol da inclusão social. E para isso a biblioteca tem que estar preparada”, adianta a diretora. Outra proposta é a retomada do intercâmbio de revistas ju-rídicas com outras universidades do país e do mundo que tenham periódicos de qualidade.

Necessidades e melhoriasAlém dos problemas gerais da Universidade e da

Faculdade de Direito, a biblioteca também tem seus próprios contratempos. Segurança, falta de espaço e reformas são alguns deles. “Nós precisamos instalar um sistema de segurança, já que o furto de livros continua sendo uma constante na biblioteca”, alerta a diretora Juliana Magalhães.

A seção de obras raras necessita de reformas. Se-gundo Paula Mello, através de um projeto do SiBI, já aprovado pelo BNDES, vinculado aos cuidados com acervos antigos e raros, até o final do ano as 13 bi-bliotecas que possuem esses títulos receberão equipa-mentos de controle e de classificação.

No início deste ano, o SiBI restaurou o mobiliário, reformou o piso, ampliou os pontos de rede e comprou dois computadores para a biblioteca. Segundo Maria de Fátima, chefe da biblioteca, há ainda outro projeto que visa criar um espaço para os alunos estudarem com o seu próprio material na biblioteca e o SiBI estuda a construção de uma biblioteca com seis andares no campus da Praia Vermelha, reunindo todas as obras raras e clássicas da área de humanas da UFRJ.

foto Marco Fernandes

Novembro•2005 UFRJJornal da 19

Universidade

Estranhos caminhos têm seguido a crítica contem-porânea da literatura. Com freqüência, ela tem absolu-tizado o objeto literário como se ele pairasse no vácuo. Para resgatar a dimensão social do texto que o atraves-sa e informa, a Faculdade de Letras da UFRJ organizou o seminário Literatura & Sociedade, realizado entre os dias oito e 11 de novembro.

Segundo André Bueno, um dos coordenadores do evento, o seminário se propôs a afirmar a importância crucial das mediações estéticas, que fazem com que o texto (a obra literária) dialogue com o contexto (His-tória e Cultura). Bueno cita o filósofo alemão Theodor Adorno, ao ressaltar que a forma estética, ainda que enigmática, é matéria social. ”Mediante interpretação, o substrato social está lá”, afirma o professor.

“O maior problema do pensamento é ele se estra-tificar. Ele precisa de uma aeróbica”, defende Alberto Pucheu, coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras. Uma das competências da universidade é estimular essa

Seminário promovido pela Faculdade de Letras resgata o diálogo entre literatura e sociedade. Ainda que, às vezes, elas se encontrem tão distantes

Deserto do real

do diálogo enriquecedor entre sociedade e literatura. Com 26 anos, Cândido iniciou uma historiografia da literatura brasileira, que resultou na publicação da obra-prima Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos.

Antônio Cândido fundamentou a literatura no tripé autor-obra-público e impôs a questão nacional — o elo entre o autor e sua pátria — como valorativa da deno-minação de literatura brasileira, contraposta ao critério da territorialidade. Sem receios de polêmicas, Cândido, por exemplo, não incluiu o poeta Gregório de Matos em sua relação da literatura brasileira, pois não obstante a qualidade da obra de Gregório seja indiscutível, faltava-lhe uma perspectiva nacional.

Assim sendo, afirma Luis Alberto Nogueira, pro-fessor do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, autores que precedem 1750 não são incluí-dos na Formação da Literatura Brasileira, pois fogem ao processo de emancipação política e literária. Com Antônio Cândido, a historiografia passa a ter compro-misso com o interesse nacional.

De acordo com Nogueira, Cândido utiliza a ironia, não como recurso, mas como método, e assim con-segue um distanciamento seguro para com o objeto estudado. Nogueira destaca que a crítica em Cândido é ponderada, de forma a respeitar a inteligência do leitor.

Cândido postula o Arcadismo e o Romantismo como momentos-chave para a formação da tradição literária brasileira, privilegiando o caráter comunicativo dos neo-clássicos (árcades) em detrimento do bacharelismo dos românticos.

Isso denota sua preferência pela escrita pública. “Cândido rejeita o provincianismo, afirmando a im-portância social do estudo da literatura, para além dos muros da academia”, afirma Luis Alberto No-gueira. “Ele valoriza a potência das classes médias, e a possibilidade da democratização do acesso aos bens da cultura pelos desprivilegiados”, acrescenta o professor.

aeróbica, sendo um espaço de criação de pensamento, linguagem e reflexão sobre a sociedade.

Essa importância social da obra literária é depreciada por muitos setores da própria academia, em favor de um beletrismo burocrático. Esta é a visão de André Bueno, para quem, a Academia Brasileira de Letras (ABL) é “um lugar detestável”, onde “os varões da pátria” ali-mentariam suas próprias vaidades. Isso faz com que o estudo sociológico da Literatura seja um anátema para o que Bueno chama de “bibelôs pós-modernos”, que qualificariam tal abordagem como grosseria e insensi-bilidade estética.

Na opinião de Bueno, a Literatura (a expressão cul-tural em um sentido mais amplo) já teve maior influ-ência sobre a sociedade, fazendo-a refletir e agir. No entanto, afirma que “o populismo esquemático da es-querda cultural esqueceu-se — como Gramsci (mar-xista italiano) jamais se esqueceria — que os setores populares têm sua cultura, suas formas de sociabilida-de, seus intelectuais orgânicos”.

“A classe média carioca e paulistana convocou o povo a fazer a revolução, e o povo faltou ao encontro. O povo não era gentil, educado e, principalmente, não es-tava engajado no processo revolucionário como supu-nham estas classes médias”, destaca Bueno. Isso levou o afastamento entre essas classes, a falta de formula-ções de novas propostas. “O governo Lula provou que não basta botar um operário, um trabalhador, no poder para que se mudem as injustas estruturas sociais brasi-leiras”, afirma o professor. O resultado desta desilusão, acredita, é que “chegamos a um deserto do real”.

A Literatura como engajamento nacionalNa perspectiva de retomar a dimensão social do he-

misfério literário, a obra polêmica de Antônio Cândido, um dos mais importantes críticos literários, merece destaque.

A reconstrução da tradição literária e afirmação do seu vínculo ao interesse social são características fun-damentais da obra, imprescindível para a compreensão

Bruno Francofotos Marco Fernandes

Luis Roberto Nogueira: autores fogem ao processo de emancipação política e lirterária

Mesa de abertura do seminário: discussão do sentido social da forma literária

20 Novembro•2005UFRJJornal da

Universidade

Rodrigo Ricardo

Ciência & Tecnologia

fotos Marco Fernandes

Ao sobrevir das chuvas, a terra transfigura-se em mutações fan-tásticas, contrastando com a de-solação anterior. Os vales secos

fazem-se rios”. Inspirado pelo trecho do livro Os Sertões – escrito pelo engenhei-ro Euclides da Cunha, ex-aluno da Escola Politécnica da UFRJ – o Núcleo de Soli-dariedade Técnica (Soltec/UFRJ) aportou ao cenário das áreas tecnológicas concei-tos como o de responsabilidade social e de modelos de desenvolvimento. Temas, que para a Engenharia, ainda são áridos e dispersos em produções isoladas, além de encarados por alguns como preocupa-ções utópicas. Mas para quem ousa um olhar diferente, vislumbra um campo de atuação profissional, capaz de contribuir tecnicamente para a geração de renda e cidadania.

“Nossa questão é ir além do trabalho voluntário. Um dos nossos objetivos é demonstrar que há uma opção diferente da ótica tradicional. Existem, por exem-plo, inúmeras cooperativas populares necessitando de apoio técnico. E, ainda mais importante, é a criação de uma consciência social para que os futuros engenheiros – mesmo os que não venham a trabalhar no terceiro setor – adquiram uma formação crítica sobre a aplicação da técnica e sobre seus impactos, seja numa multinacional ou num órgão do governo”, explica Felipe Addor, coordenador-execu-tivo do Soltec e mestrando em Engenharia de Produção no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), da UFRJ.

Addor estava entre os estudantes da graduação, que se mobilizaram, em mar-ço de 2003, para fundar o Soltec, projeto logo abraçado por professores, desenca-deando-se em um novo núcleo de ensi-no, pesquisa e extensão na universidade. Apesar do pouco tempo de existência, criaram disciplinas como “Gestão de Projetos Solidários”, realizaram dois en-contros nacionais e, recentemente, lan-

Tecnologia e responsabilidade social,uma engrenagem de futuro

Com a marca da “tecnocrítica”, núcleo da UFRJpensa novos raios de ação social nos horizontes tecnológicos

çaram o livro Tecnologia e o Desenvolvi-mento Social e Solidário (organizado por Addor e Sidney Lianza). A publicação, que reúne artigos de autores como Car-los Lessa e Paul Singer, discute desde a relação entre ciência e política até sanea-mento ambiental nas áreas urbanas, pas-sando pela experiência da pesquisa do Soltec sobre a cadeia produtiva da pesca, em Macaé, que envolve 100 cidadãos e 25 instituições, promovendo programas de preservação do meio ambiente, eco-nomia local e outros.

“Nesse trabalho, estabelecemos vín-culos além do que chamamos de respon-sabilidade recíproca. Não é fácil, porque muitas pessoas ainda têm o costume da cultura paternalista, querendo soluções dadas de bandeja. O que buscamos é a metodologia participativa, onde todos sejam ouvidos para que as reais neces-sidades sejam identificadas. É o diálogo que conduzirá à construção coletiva das soluções”, destaca Felipe.

Resgate e mudança de mentalidadeA execução de políticas assistencia-

listas ainda encontra receptividade em setores menos privilegiados da socie-dade, o que, para o professor Sidney Lianza, da Escola Politécnica da UFRJ, se trata de uma visão de mundo. “Tem gente que pensa assim, e ponto. Pesso-almente, não tenho nada contra estas práticas compensatórias. Agora, a nos-sa profissão, em suas diferentes moda-lidades, tem condições de propiciar a inserção e a sustentabilidade do traba-lhador marginalizado dentro do quadro sócio-econômico”, frisa Lianza – tam-bém coordenador geral do Soltec – que vê como desafio o resgate da articulação entre Engenharia e crescimento.

“Hoje, há uma verdadeira demanda no campo social por engenheiros, mas na for-mação profissional ainda há ausência de um debate acerca dos setores excluídos. Entretanto, reparo que estas temáticas cativam cada vez mais o interesse dos es-tudantes. Em 1996, por exemplo, quando falava em Globalização, as turmas ficavam

vazias ou sonolentas. Agora, são as mais atentas e concorridas. Acredito que este processo de sensibilização e conscien-tização decorra das mesmas forças que levaram a população a eleger Lula, e que seguem adiante apesar da frustração com o governo”, observa Lianza.

“Instrumento libertário”De acordo com Addor, é crescente a

preocupação com questão social no uni-verso acadêmico, mas aponta – citando o ex-ministro da Educação e senador Cristovam Buarque (PDT-DF) – que as universidades ainda continuam sendo transmissoras de certezas, em vez de fun-cionarem como instrumento libertário.

“Aquela identidade européia que serviu de paradigma às universidades brasileiras ainda impera. O processo de seleção é elitista e impede que as reali-dades do país não sejam discutidas nos estudos acadêmicos como deveriam. Os projetos de extensão não contam para o pesquisador que, por exemplo, para ser valorizado, precisa ter seus trabalhos publicados em revistas indexadas dos Estados Unidos ou do velho continen-te”, finaliza Felipe, sem esquecer a mar-ca da tecnocrítica.

Felipe Addor, coordenador-executivo do Soltec

Sidney Lianza, da Escola Politécnica da UFRJ

Novembro•2005 UFRJJornal da 21

Prédio da FAU

Universidade

Símbolo da arquitetura moderna, marco da adoção dos ideais funcionalistas no Brasil, projeto premiado na Exposição Internacional de Arquitetura, da IV Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1957, o prédio, que de início seria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da UFRJ, hoje divide seu espaço com outras três unidades (Escola de Belas Artes, Deca-nia do Centro de Letras e Artes e Reitoria), representou um passo importante na aceitação da nova estética nos meios oficiais e na elite cultural. Elaborador do projeto, Jorge Machado Moreira adotou em grande parte o sis-tema arquitetônico desenvolvido pelo franco-suíço Le Corbusier, flertando pouco com a evocação do passado ou com o sincretismo formal.

Até ocupar o seu endereço atual, na Ilha do Fundão, em 1961, a então Faculdade Nacional de Arquitetura, posteriormente Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, passou por diversas modificações.

A produção e o aprendizado da Arquitetura no Brasil Colônia se dava em corporações de ofício ou nos can-teiros de obras. Apenas com a chegada da Família Real, em 1808, foi criada a Academia de Artes e Ofícios, que começou a funcionar em edifício próprio em 1826, já como Academia Imperial. Iniciou-se, assim, o ensino regular de Arquitetura – então um dos cursos da Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios – em edifício projetado e construído pelo arquiteto Garndjean de Montigny, na Avenida Passos, no Centro do Rio.

No final do século XIX, já na República, as diretrizes do curso são alteradas e o ensino de Arquitetura vai se distanciando aos poucos do das chamadas Belas-Artes. No início do século XX, foi construído um novo edifício, projeto do professor e arquiteto Morales de los Rios, ins-pirado no Museu Louvre (Paris/França), para abrigar a Escola de Belas Artes, na Avenida Central, atual avenida Rio Branco.

Na década de 1930, sob influência dos ideais mo-dernistas – que valorizam a técnica industrial –, se dá a

separação definitiva do curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes. A Faculdade Nacional de Arquitetura é transferida para o antigo Hospício Pedro II, na Praia Vermelha. A reforma foi introduzida pelo diretor e arqui-teto Lúcio Costa, contrariando parte do corpo docente, o que acarretará o seu afastamento posterior da direção do curso.

Assim como o arquiteto e urbanista Lúcio Costa, au-tor do projeto piloto de Brasília, Jorge Machado Mo-reira, arquiteto-chefe da Cidade Universitária, bebeu a tempestade inovadora do Modernismo. Graduado em 1932, pela Escola Nacional de Belas Artes, sua forma-ção se desenvolveu em um período de grandes debates, quando o historicismo arquitetônico, revigorado com o movimento de criação de um estilo tradicional brasi-leiro – o neocolonial – se confrontava com os ideais de ruptura do modernismo.

Le Corbusier, um dos mestres da arquitetura moder-na, foi o seu ponto de referência. Trabalharam juntos no projeto do prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Centro, importante momento da afirmação da Ar-quitetura moderna no Brasil. Jorge Machado Moreira, Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Er-nani Vasconcellos e Oscar Niemayer formavam a equi-pe, e Corbusier foi o consultor.

O edifício da FAU é a adaptação do projeto corbusia-no para a sede do Ministério da Educação e Saúde, no Centro. Reconhecendo, em escala maior, seu sistema compositivo e alguns elementos de referência desen-volvidos nos projetos precedentes: no vestíbulo princi-pal, aparece a escada imaginada por Le Corbusier para o projeto anterior. Na volumetria quase idêntica dos dois edifícios se percebe a homenagem do discípulo ao mestre, concretizando, o sonho do racionalismo nos trópicos.

O projeto e suas implicaçõesEm depoimento de 1979, Jorge Machado Moreira

sintetizou seu método de trabalho: “Para mim, fazer arquitetura é idealizar a obra visando a resolver, com intenção plástica, o problema proposto, de acordo com a época, os materiais e as possibilidades técnicas; assina-lando e considerando fatores externos que nela influem; respeitando imposições e hábitos do meio; detalhando e articulando todos os elementos e buscando sempre a verdade, quanto à sua finalidade e função, tanto na forma como no uso de materiais”.

De acordo com a tipologia de volumes recomendada por Le Corbusier, o edifício da FAU conjuga dois deles. A placa horizontal para acomodar espaços fechados, semi-abertos e abertos, enquanto que a placa vertical assume a condição de monólito compacto. A superfície

Joana Jaharafoto Marco Fernandes

Racionalismo nos trópicos

é tratada como simples face externa de volume passível de ser perfurada e ornamentada.

O diretor da FAU, Pablo César Benetti, observa que “a cerâmica ordena o prédio na sua totalidade. Pode parecer fácil, mas é extremamente difícil de se conseguir. É de uma racionalidade radical, tanto no sistema construtivo quanto na disposição das instalações”.

Jorge Machado Moreira explicitou como os elementos arquitetônicos constituem as superfícies e estas confi-guram os volumes ao se agregarem à estrutura. É essa flexibilidade que permite a ocorrência de mudanças ao longo desses 60 anos. “Mesmo com o surgimento da pós-graduação, mestrado, e a entrada da administração central, além da introdução de novas tecnologias, esse prédio foi possível de ser adaptado sem maiores altera-ções. Isso porque naquela época deixaram um espaço previsto para o imprevisto”, disse o diretor.

Os espaços internos conformam verdadeiras caixas cúbicas devido a um desenho dos seus limites baseado nas formas do quadrado e do retângulo. Para tanto, con-tribui o fato de fazer coincidir, na maior parte das vezes, os elementos estruturais e os planos delimitadores dos cômodos. Também são encontrados poucos elementos que fogem à lei da ortogonalidade – curvas e planos dispostos em ângulos agudos ou obtusos –, tratados com uma sutileza que realça a regularidade.

O painel frontal, onde se lê, em desenhos geométricos, a palavra Reitoria

Ant

onio

As grandes áreas envidraçadas proporcionam leveza e boa iluminação natural

Os vãos livres, os pilotis e as formas sinuosas do mezanino são características marcantes da arquitetura moderna brasileira

22 Novembro•2005UFRJJornal da

Cultura

Rodrigo RicardoIlustração Jefferson Nepomuceno

No dia-a-dia dos tribunais, a extinção do seu uso ainda soa distante. Ao contrário, flui entre os doutores e corredores do Fórum. Um dialeto que, aprendido nas salas de aula do curso de Direito, ganha novos falantes, em nome da vaidade e da tradição. Os truques advêm de citações em latim, mesóclises e outras pirotecnias verbais. Mais do que jargão, o juridiquês tornou-se ini-migo da Justiça e aparece como uma das principais queixas da população sobre a Justiça. Diagnóstico que levou a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) a instituir a Campanha Nacional pela Simplificação da Linguagem Jurídica. Uma mudança cultural que passa pelos meios acadêmicos e depende da disposição de todo um corpo de profissionais.

“O juridiquês é um entrave, que adia as soluções e ca-mufla os conflitos. O seu desaparecimento só acontecerá em uma faculdade de Direito crítica, que apenas pode existir numa universidade pública, afirma José Ribas, professor de Direito Constitucional da UFRJ.

Segundo o mestre, não há espaço para o linguajar ar-caico no mundo contemporâneo, marcado pela interna-cionalização do Direito. No Brasil, os 30% de analfabetos funcionais tornam o caso ainda mais grave, mas observa que o fenômeno da judicialização no país e os veículos de comunicação vêm contribuindo para o esclarecimento de certos conceitos e medidas legais.

“Após a Constituição Federal de 1988 acontece um certo embevecimento com as pessoas buscando cada vez mais seus direitos. Essa mobilização, de certo modo, acaba por exigir maior objetivade e propicia maior contato com o universo jurídico. Até porque, é no ter-reno do juridiquês que surgem os sentidos dúbios, as interpretações errôneas, o não cumprimento das leis e a esperteza”, analisa Ribas, para quem “a universidade ainda não está preparada, mas vai precisar se colocar diante das exigências do século XXI. Hoje, o procurador, ou o magistrado, não pode prescindir, em sua formação, do português e de outras línguas, mas sempre se expres-sando de modo direto”.

Egolatria“O excesso de formalismo e tratamentos como Vossa

Excelência acabam por afastar o Direito do seu propó-sito”, é o que pensa a diretora do Centro Acadêmico Cândido Oliveira (Caco), Mariana Picanço, estudante do 9º período da Faculdade de Direito da UFRJ. “Além da burocracia desnecessária, percebo agora, no estágio, que quando uma parte não tem mais o que dizer, re-corre muita vezes ao juridiquês para ganhar tempo. É o que se chama de procrastinar o processo”, diz Mariana questionando que “tem gente que se exibe e faz questão desse modo de falar para manter uma tradição. Há os que questionam e, entre alguns professores, principalmente os mais jovens, já se aponta uma tendência diferente”.

Questão de poderA juíza e vice-presidente de Comunicação da AMB,

Andréa Pachá, lembra que a linguagem sempre foi um instrumento de dominação ao longo da história e o ju-ridiquês precisa ser combatidos, por impedir o entendi-mento do cidadão comum sobre o que acontece no curso do seu processo.

“Por meio da linguagem, as elites se perpetuam no poder e, quanto mais inacessível melhor para elas. A linguagem jurídica não foge à regra e, durante décadas, ela vem sendo utilizada de maneira a restringir acesso da maioria da população ao Poder Judiciário. Mas, com a redemocratização do país e a função constitucional de guardião dos direitos individuais e coletivos, o judi-ciário precisa adequar sua linguagem, se quiser de fato, ser parceiro da cidadania”, sentencia a magistrada.

A AMB encomendou em 2003, ao Ibope, pesquisa qualitativa para avaliar a opinião das pessoas sobre o

Os homens que sabem juridiquêsData vênia, senhora Língua. O juridiquês – do ab ovo, do areópago, do abroquelar, da cártula, do exordial, do fulcro, do supedâneo, do vetusto

e de uma série de palavras e adjetivos irreconhecíveis para a maioria das pessoas – está com os dias contados se depender da campanha de simplificação da linguagem jurídica instituída pela Associação de Magistrados Brasileiros.

judiciário em São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco. O resultado do trabalho – que não se importa-va com o número de entrevistados, mas com a percepção deles do poder – apontou a dificuldade de compreensão da linguagem em todos os estados pesqui-sados. O fato acabou por motivar a Campanha Nacional pela Simplificação da Linguagem Jurídica, inclusive, com uma cartilha para jornalistas e os cha-mados operadores do Direito (defensores públicos, promotores etc). Entre os objetivos, promover um vocabulário mais simples, aproximando a sociedade da Justiça. Já os críticos da iniciativa alardeiam os riscos da eliminação de termos técnicos.

“Não há, na campanha, qualquer projeto para banir os termos técnicos. O que se pretende é reduzir o em-polamento, o uso excessivo de adjetivos, termos latinos desnecessários e o texto longo e confuso”. É claro que não temos a pretensão de resolver todas as mazelas do nosso sistema judicial, mas é um bom começo”, avalia Andréa Pachá, que conhece as dificuldades da altera-ção de uma cultura cristalizada, mas tem certeza de que esse é um passo seguro “rumo à inclusão jurídica e ao exercício da cidadania. Ninguém valoriza o que não entende”.

Vontade de mudançaA professora de Sociolingüística da Faculdade de

Letras da UFRJ, Helena Gryner, considera interessante a iniciativa da AMB, mas adverte para os perigos das cartilhas, geralmente associadas a práticas ditatoriais. O efeito desejado pode retornar como um bumerangue e provocar ainda mais polêmicas.

“A alma da Língua é a sua variedade e suas mu-danças se dão espontaneamente. Não é possível im-por nada de fora para dentro, de um jeito artificial. A linguagem é uma experiência que, para acontecer, precisa ser compartilhada socialmente. Ela tanto pode funcionar como instrumento de reprodução como de emancipação de valores. Uma transformação verda-deira do juridiquês passa pela disposição dos seus membros”, destaca Gryner, que indica a necessidade de uma reflexão ampla no meio forense sobre o exer-cício de poder que passa pela linguagem.

Desde os tempos de San Tiago DantasHá meio século, em 1955, o célebre jurista San Tiago

Dantas já implodia a cultura jurídica ao denunciar o ju-ridiquês, durante aula inaugural na Faculdade de Direi-to da UFRJ. O episódio histórico é recordado por José Ribas como uma demonstração de que houve avanços, mas ainda insuficientes. “San Tiago Dantas combatia esses vícios em plenos anos 40 e 50. Ele foi advogado, deputado, ministro das Relações Exteriores e professor. As suas aulas de Direito Civil eram dadas na bibliote-ca Carvalho Mendonça, da Faculdade de Direito, onde ele mostrava os livros e as doutrinas aos alunos. Enfim, dava força a uma cultura palpável ao invés da retórica”, explica Ribas.

Ribas também lembra Alberto Venâncio Filho, outro notório jurista e membro da Academia Brasileira de Le-tras, para afirmar que “o estilo de Rui Barbosa mais do que marcar uma época, acabou se perpetuando ao lon-go de outras gerações. Não é à toa que se escreveu um famoso conto chamado o Homem que Sabia Javanês”. Nele, Lima Barreto descreve um personagem que chega ao posto de cônsul, impressionando a todos, por saber algumas palavras do exótico idioma malaio. Os valores morais e os padrões das classes dominantes nos limia-res do século XX sempre foram alvo de ironia do autor. Qualquer semelhança com a realidade atual talvez não seja coincidência.

O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos ex-

celsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo,

contaminando as súplicas do petitório, não repercute

na cognoscência do átrio forense.(Tribuna do Direito)

Traduza se puder

Ab Ovo: Desde o início, desde o princípioAbroquelar: FundamentarAncilar: Que subsidia, auxilia, assessório, suplementarApelo extremo: Recurso ExtraordinárioAreópago: TribunalÁtrio: Sala principalAutarquia Ancilar: Instituto Nacional de Previdência SocialCártula chéquica: Folha de talão de chequesCognoscência: Que tem conhecimentoCom supedâneo no artigo: Com base no artigoConsorte Supérstite: Viúvo(a)Digesto Obreiro: Consolidação das Leis do TrabalhoDiploma Provisório: Medida ProvisóriaEgrégio Pretório Supremo: Supremo Tribunal FederalErgástulo Público: CadeiaEstipêndio Funcional: SalárioEstribado no Artigo: Com base no artigoExcelso: Sublime, eminente, elevadoExordial: peça ou petição inicialForense: Relativo aos tribunaisFulcro: FundamentoIndigitado: RéuPeça Increpatória: DenúnciaPeça-Ovo: Peça ou petição inicialPetição de Intróito: Peça ou petição inicialPetitório: Relativo a petição, pedidoPretório: Magistratura, tribunalPretório Excelso: Supremo Tribunal FederalProemial Delatória: DenúnciaRemédio Heróico: Mandado de SegurançaVernáculo: Língua correnteVetusto: AntigoVistor: Perito

Glossário

Novembro•2005 UFRJJornal da 23

Universidade

A festa que nunca termina

Para ler

Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização, Néstor Garcia Canclini.Editora da UFRJ, 2005, 5ª edição, 228 páginas.

As mutações societais con-temporâneas, aquilo a que se convencionou chamar globali-zação, têm sido objeto de inten-sa produção intelectual. Para Néstor Garcia Canclini, diretor do Programa de Estudos sobre Cultura Urbana da Universida-de Autônoma Metropolitana, México, uma perspectiva multi-cultural é necessária para com-preender os fenômenos: não estaria em curso, como muitos autores afirmam, um processo de nivelamento e homogeneiza-ção, mas um “reordenamento” – sem efetivamente suprimi-las – das desigualdades e das dife-renças sócio-culturais.

Consumidores e cidadãos analisa os impactos da globalização sobre as cidades e a indústria cultural da América Latina a partir desse viés metodológico. Este ponto de vista, entretanto, não sig-nifica qualquer opção localista, pois, como afirma Canclini, não é mais possível pensar e agir politicamente fora da globalização. Não se trata, também, vale sublinhar, da retomada de explicações ante-riores das relações – colonial ou imperialista – entre o continente e os Estados Unidos e a Europa. As transformações nas maneiras de consumir, provocadas pela indústria cultural, alteraram as formas e as possibilidades de exercer a cidadania. Elas afetaram drastica-mente a esfera pública: as campanhas eleitorais, por exemplo, sob seu impacto, migraram dos comícios e das praças para as telas de TV, dos debates ideológicos para o marketing.

Não se trata, sublinha Canclini, em depositar esperanças na conquista do Estado ou no suposto caráter revolucionário das camadas populares, mas de redefinir, ao mesmo tempo, o papel do Estado e da sociedade civil, o que implica em repensar as formas de participação política, como consumidores e cidadãos. Esse debate ganha, assim, urgente atualidade.

O lugar da escrita no tra-balho antropológico continua sendo objeto de disputas. E não apenas entre especialistas do campo, pois a ciência (a denominação mesma já é con-troversa) impactou, a partir, sobretudo, de meados do século passado, diversos campos da cultura contemporânea. Há tempos ela deixou de ser apenas um depositário de investigações acerca de lugares, culturas e povos estranhos às sociedades ocidentais; no entanto, muitos – mesmo entre aqueles que a praticam com maestria – per-manecem reticentes em reco-nhecê-la uma espécie peculiar de escrita, intermediária entre os textos fortemente autorais, com os da literatura, e os esvaziados de subjetividade, como os das Ciências Naturais.

Essas e outras questões que dizem respeito à natureza da disciplina são objetos deste pequeno livro, cuja audiência ultra-passa em muito o círculo dos especialistas. Clifford Geertz, que é um mos mais conceituados especialistas da chamada etnologia simbólica americana, analisa os trabalhos de quatro fundadores da Antropologia moderna – Claude Lévi-Strauss, Edward Evan Evans-Prichard, Bronislaw Malinowski e Ruth Benedict –, e reco-nhece neles, apesar das imensas diferenças, um caráter “autoral”, ao mesmo tempo insuspeito e instaurador de uma discursividade nova que vai além da mera exposição comedida de resultados de uma investigação acadêmica. A preocupação de Geertz não é, portanto, com dados históricos e particularidades biográficas – embora eles estejam presentes –, mas como o modo como esses pesquisadores famosos escrevem.

Essa orientação para o texto acaba revelando uma antro-pologia – e, por tabela, uma cultura – que se realiza em larga medida no palco da linguagem. Um projeto, por certo, pleno de riscos. Riscos que Clifford Geertz reconhece, mas que nos convida a correr.

Obras e vidas: o antropólogo como autor,Clifford Geertz.

Editora da UFRJ, 2005, 208 páginas.

Rafaela Pereira

Espremido entre o Dia de Reis e a Quaresma, o Carnaval acontece quatro dias antes da Sexta-feira Santa. O calendário, po-rém, diz pouca coisa sobre uma festa que tem fascina-do os brasileiros das elites e do povo e despertado o interesse crescente de pesquisadores, como Fe-lipe Ferreira, doutor em Geografia Cultural pela UFRJ, professor do Insti-tuto de Artes da UERJ que

acaba de lançar Inventando Carnavais: o surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões carna-valescas. A obra é da Editora UFRJ que promoveu um debate para comemorar o lançamento, no último dia 10, às 17h, no Salão Moniz de Aragão, no Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ. Participaram da mesa-redonda intitulada “O carnaval e a cidade do Rio de Janeiro”, o autor do livro, Felipe Ferreira, Maria Lucia Cavalcanti (IFCS/UFRJ), Mônica Velloso (historiadora da Casa de Rui Barbosa) e Sonia Gomes Pereira (EBA/UFRJ).

Estavam presentes as personalidades do mundo do samba como Marcelo de Jesus Reis, atual Rei Momo do Rio de Janeiro, e Maria Helena, ex-porta-bandeira da G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, entre outros.

Inventando carnavaisO livro apresenta uma nova visão da formação da

festa carnavalesca, ressaltando o diálogo entre sujeitos, objetos e ações em múltiplas escalas de influência, do local ao global. Para o autor, a obra apresenta uma vi-são não evolucionista ou positivista, e adota uma ótica mais contemporânea e mais relacional. “Os processos

do carnaval acontecem através de uma série de diálogo, de vários atores. Não são oposições da elite contra o povo, mas diálogos das diversas camadas da sociedade que formam essa festa”, analisa o autor citando como exemplo as atuais escolas de samba, saudadas como uma reunião de luxo e animação. “É exatamente essa mistura que vai se estabelecer já no século XIX, a partir dos encontros e desencontros das tensões e das disputas entre a forma de brincar da elite e a festa carnavalesca popular”.

Paris com seu carnaval hegemônico, Nice e sua festa como atração para viajantes, e Rio de Janeiro com seus múltiplos carnavais nas mais diferentes camadas sociais. A partir dessas três cidades, Felipe traça o início de uma das festas mais populares. Maria Laura Cavalcanti, pro-fessora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), na introdução do livro, adverte que se trata de mostrar como cada cidade, “em sua concretude orgânica e espacial, expressa de modo muito próprio, com o seu carnaval, a expansão dos idéias burgueses, a forma peculiar de a burguesia participar na história de sua própria sociedade e no cenário de então”.

As fronteiras geográficas da culturaA partir de cenários tão distantes, Felipe Ferreira

revela a importância do espaço na formação ou trans-formação de culturas. Enquanto a Antropologia enfati-za a universalidade da festa e a Sociologia ressalta as interações sociais que a definem, a geografia, a partir dos anos 1990, também passa a manifestar seu interes-se pelo estudo do carnaval. “A visão do espaço com a cultura é muito importante. A partir desse estudo con-segue-se entender porque esse fenômeno do carnaval acontece desta maneira no Rio de Janeiro, por exemplo. A lógica urbana que criou a cidade é a lógica que forma a cultura”, compara Felipe.

24 Novembro•2005UFRJJornal da

Personalidade

Joana Jaharailustração Jefferson Nepomuceno

Caetano Veloso

Narciso Narciso camaleônico

experimentais, e até certo ponto

radicais, com canções aparentemente banais”. É justamente

essa mistura camaleônica que faz de Caetano Veloso um criador moderno e contemporâneo.

O provocador“A Tropicália foi o avesso da Bossa Nova”. Assim Caetano

explica o movimento que, em 1968, revolucionou a

música popular brasileira. Dessa corrente, liderada pelo baiano de Santo Amaro da Purificação, participaram também os compositores Gilberto Gil e Tom Zé, os letristas Torquato Neto e Capinam, o maestro e arranjador Rogério Duprat, Os Mutantes e as cantoras Gal Costa e Nara Leão. A Tropicália pretendia instaurar uma nova atitude musical e comportamental, era uma intervenção no conjunto da cena cultural do país.

Como resultado de tantas provocações, entre elas, a do questionamento dos padrões tradicionais da chamada boa aparência, subvertidos por cabelos compridos e roupas extravagantes, as reações ao movimento

se tornaram mais contundentes. Em um debate, em junho de

1968, organizado pelos estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo (USP), Caetano, Gil, Torquato e os poetas concretos Augusto dos Campos e Décio Pignatari, que manifestavam simpatia pelo movimento, foram hostilizados com vaias, bombinhas e bananas. Um confronto ainda mais violento ocorreu durante o III Festival Internacional da Canção, no teatro da Universidade Católica de São Paulo, em setembro. Ao defender com Os Mutantes a canção É Proibido Proibir, que compôs a partir de um grafite do

movimento estudantil francês, Caetano foi agredido pela platéia com ovos e tomates. A reação do cantor foi um discurso, quase happening, que

ficou famoso: “mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”.

Com o endurecimento progressivo do regime militar, as interferências do

Departamento de Censura Federal foram se tornando costumeiras; canções tinham versos cortados, quando não, vetados

integralmente. O Ato Institucional nº5, em 13 de dezembro de 1968, oficializou de vez a repressão política. As detenções de Caetano e Gil, em 27 de dezembro, anteciparam o enterro da Tropicália, embora a sua morte já tivesse sido decretada pelos próprios integrantes do movimento meses antes.

Ser crítico como nos tempos do Tropicalismo ainda é uma exigência, embora não se possa deixar de reconhecer que o país mudou, o mundo mudou e a atitude provocadora de Caetano tomou outras formas. “Se ressentem e querem que ele aja como na década de 1960, vestindo as roupas e compondo as mesmas canções. Mas, isso seria ridículo, por estar totalmente fora de época. Mas, quando ele canta de terno, sentado no banquinho, apenas com o violão, ele está sendo provocador. Tanto é que comentam e perguntam sobre isso”, analisa Eucanaã.

Com o tempo, a constância na cena musical brasileira e a recepção do público e da crítica, Caetano Veloso se tornou mais amigável. “O jornalismo fala mal, implicam, o que não é uma coisa recente. Caetano nunca foi aplaudido pela imprensa, ao contrário, sempre houve uma relação de conflito entre eles. A exceção foi no período do exílio, quando a imprensa de esquerda queria fazer de Caetano um mártir. Mas, ao voltar ao Brasil, ele causou uma decepção enorme, por não querer vestir essa fantasia de herói. Foi aí que passaram a atacá-lo”, alfineta o professor.

O mundo não é chatoO título do livro O mundo não é chato foi baseado

em uma crônica incluída na obra, onde Caetano declara a sua admiração pelo filho Moreno e pelo amigos do filho. “Ao perceber coisas novas surgindo, ver o seu filho e seus amigos fazendo coisas lindas, onde haverá a continuidade, ele se emociona dizendo que o mundo não é chato. Eu achei que esse nome caberia ao título, não que o mundo não seja sórdido, cruel, miserável e doloroso, porque no livro se mostra isso. Mas, não é chato no sentido de ser um tédio, ao contrário, é o livro de alguém que está muito vivo, que é curioso, que quer participar e intervir”, conta o professor.

A verdade é que, como salienta Eucanaã, Caetano Veloso continua sendo uma incômoda presença na cultura brasileira. O baiano põe em xeque os valores estabelecidos tanto pela direita como pela esquerda. Afinal, Narciso continua achando feio tudo o que não veja espelho.

Definir o cantor, o compositor e o crítico Caetano Veloso não é das tarefas mais fáceis. Requer uma apreensão atenta dos seus 40 anos de carreira.

Organizador de dois livros de Caetano, Letra Só (Companhia das Letras, 2003) e o recém-lançado O mundo não é chato (também pela Companhia das Letras, 2005), o poeta e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ, Eucanaã Ferraz, identifica, na obra do artista, certos temas recorrentes.

Canções ligadas à existência e à Bahia, por exemplo, atravessam, toda a sua obra da década de 1960 até hoje sem perderem a atualidade, como exemplifica Eucanaã. “Optei organizar o livro por temas para mostrar ao leitor uma visão abrangente do que é a obra do Caetano, não apenas como artista, mas também com sua amplitude, riqueza e complexidade”.

Exigir de Caetano os mesmos comportamentos e atitudes da experiência tropicalista, a fase mais analisada pelos críticos, indignam Eucanaã. O cantor do banquinho e do violão é o mesmo, não está em um novo tema, afirma o professor. A crítica hoje o reprime por cantar baladas de outros compositores e se envolver com a multidão. “Ele é de fato um artista que sempre trabalhou com a comunicação de massa, e nunca quis ser um artista de vanguarda para distanciar sua obra. Na verdade, a sua carreira é uma junção de canções muito