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A coordenação destas Obras de José Martins Garcia é da responsabilidade dos escritores Urbano Bettencourt e Carlos Alberto Machado. Urbano Bettencourt (Pie- dade, Pico, 1949), é Licenciado em Filologia Români- ca pela Faculdade de Letras de Lisboa. Doutorado em Estudos Portugueses pela Universidade dos Açores, com a tese Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia (2013). Carlos Alberto Machado (Lisboa, 1954) é Licenciado em Antropologia (FCSH/ UNL) e Mestre em Sociologia da Comunicação e Cultura (ISCTE). Editor da Companhia das Ilhas. As Obras de José Martins Garcia integram a Biblioteca Açoriana da editora, que pretende constituir um fundo bibliográfico de referência e, ao mesmo tempo, resgatar do esquecimento obras e autores relevantes do panorama literário açoriano e nacional, cujos livros não estão disponíveis em livrarias e bibliotecas. O primeiro título da Biblioteca Açoriana saiu em Abril: Almas Cativas e Poemas Dispersos, de Roberto de Mesquita, com organização e prefácio de Carlos Bessa. OBRAS DE José Martins Garcia Notícia Bibliográfica | #001 Maio de 2016 | Companhia das Ilhas A Companhia das Ilhas começa a publicar este ano as Obras do escritor José Martins Garcia (1941-2002). Martins Garcia é um dos mais importantes escritores do século xx, com dimensão nacional, especialmente a partir da publicação de parte da sua obra na editora Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello, em meados da década de 70. A ficção (romance e conto), tem proeminência na sua obra (mais de três dezenas de títulos), mas abor- dou também a poesia, o teatro e o ensaísmo, tendo neste domínio particular importância os seus estudos sobre Vitorino Nemésio e Fernando Pessoa. Para cada volume das Obras de José Martins Garcia a Companhia das Ilhas convidou escritores e ensaístas para leituras pessoais: este ano, as aberturas de cada romance de Martins Garcia têm a assinatura de Luiz Antonio de Assis Brasil (A Fome), João Nuno Almeida e Sousa (Lugar de Massacre), e Alexandre Borges (O Medo). Para os anos seguintes estão confirmados, entre outros, Joel Neto, Manuel Tomás, Miguel Monjardino, Nuno Costa Santos, Renata Correia Botelho, Rosa Maria Goulart e Vamberto Freitas. UMA OBRA DE REFERÊNCIA

José Martins Garcia - Direção Regional da Culturaculturacores.azores.gov.pt/ficheiros/agenda/2016615161219.pdf · [Luiz Antonio de Assis Brasil, em “Por Uma Costeleta”, texto

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A coordenação destas Obras de José Martins Garcia é da responsabilidade dos escritores Urbano Bettencourt e Carlos Alberto Machado. Urbano Bettencourt (Pie-dade, Pico, 1949), é Licenciado em Filologia Români-ca pela Faculdade de Letras de Lisboa. Doutorado em Estudos Portugueses pela Universidade dos Açores, com a tese Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia (2013). Carlos Alberto Machado (Lisboa, 1954) é Licenciado em Antropologia (FCSH/UNL) e Mestre em Sociologia da Comunicação e Cultura (ISCTE). Editor da Companhia das Ilhas.

As Obras de José Martins Garcia integram a Biblioteca Açoriana da editora, que pretende constituir um fundo bibliográfico de referência e, ao mesmo tempo, resgatar do esquecimento obras e autores relevantes do panorama literário açoriano e nacional, cujos livros não estão disponíveis em livrarias e bibliotecas. O primeiro título da Biblioteca Açoriana saiu em Abril: Almas Cativas e Poemas Dispersos, de Roberto de Mesquita, com organização e prefácio de Carlos Bessa.

OBRAS DE

José Martins GarciaNotícia Bibliográfica | #001 Maio de 2016 | Companhia das Ilhas

A Companhia das Ilhas começa a publicar este ano as Obras do escritor José Martins Garcia (1941-2002).

Martins Garcia é um dos mais importantes escritores do século xx, com dimensão nacional, especialmente a partir da publicação de parte da sua obra na editora Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello, em meados da década de 70.

A ficção (romance e conto), tem proeminência na sua obra (mais de três dezenas de títulos), mas abor-dou também a poesia, o teatro e o ensaísmo, tendo neste domínio particular importância os seus estudos sobre Vitorino Nemésio e Fernando Pessoa.

Para cada volume das Obras de José Martins Garcia a Companhia das Ilhas convidou escritores e ensaístas para leituras pessoais: este ano, as aberturas de cada romance de Martins Garcia têm a assinatura de Luiz Antonio de Assis Brasil (A Fome), João Nuno Almeida e Sousa (Lugar de Massacre), e Alexandre Borges (O Medo). Para os anos seguintes estão confirmados, entre outros, Joel Neto, Manuel Tomás, Miguel Monjardino, Nuno Costa Santos, Renata Correia Botelho, Rosa Maria Goulart e Vamberto Freitas.

UMA OBRA DE REFERÊNCIA

a um livro sobre o poeta dos heteró-nimos. Na Universidade dos Açores foi o responsável pela introdução da cadeira de Literatura Açoriana nos planos curriculares das licen-ciaturas em Línguas e Literaturas Modernas, da qual foi docente durante alguns anos, e ocupou os cargos de Vice-Reitor e director da revista Arquipélago-Línguas e Literaturas, tendo terminado a sua carreira académica como Professor Catedrático.

A sua relação com a imprensa de Lisboa está atesta-da pela colaboração no suplemento Letras e Artes do jornal República (1972-1974), onde publicou uma boa parte das críticas e ensaios reunidos em Linguagem e Criação (1973), bem como as crónicas de Katafaraum é numa nação (1974). Entre 1973 e 1974 foi ainda críti-co literário da Vida Mundial; colaborou igualmente n’A Capital e no Diário de Notícias, prolongando-se a colaboração neste último até Fevereiro do ano seguin-te. Em Fevereiro de 1976 passou a exercer as funções de director-adjunto do Jornal Novo.

A partir do início dos anos setenta, como refere Ricar-do Jorge, José Martins Garcia torna-se «um dos mais assíduos colaboradores de Fernando Ribeiro de Mello nas Edições Afrodite», onde, aliás, publicou parte da sua obra, a começar por Alecrim, alecrim aos molhos (1974) e a prolongar-se em obras de referência como Lugar de Massacre (1975), A fome (1977) e Revolucionários e Querubins (1977). Além disso, a sua colaboração com Fernando Ribeiro de Mello traduziu-se na escrita de prefácios, na organização de antologias e na tradução, substituindo, com as devidas distâncias, «a conterrânea Natália Correia como referência literária da Afrodite.», na opinião de Pedro Piedade Marques.

José Martins Garcia faleceu em Ponta Delgada a 3 de Novembro de 2002.

Urbano Bettencourt

JOSÉ MARTINS GARCIA

José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941. No então Liceu Nacional da Horta fez uma parte dos seus estudos. Os bons resulta-dos escolares deram-lhe acesso a uma bolsa da Junta Geral, o que lhe permitiu completar o curso liceal no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, cidade onde se licenciou em Filolo-gia Românica pela Faculdade de Letras.

No ano lectivo de 1964-65 foi professor eventual no Liceu da Horta. Chamado a cumprir serviço militar, em 1965, foi mobilizado para a Guiné, aí permanecendo de 1966 a 1968, experi-ência que se projecta em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra em África, incluído por Rui de Azevedo Teixeira no grupo dos oito romances obrigatórios, canónicos, da literatura da Guerra Colonial. Essa experiência acabaria por pontuar, sob diversas formas e em diferentes circunstâncias, o conjunto da sua obra.

Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris. De regresso a Portu-gal, leccionou na Faculdade de Letras de Lisboa entre 1971 e 1979. Neste ano rumou aos Estados Unidos como professor visitante da Brown Univer-sity (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imita-ção da morte e no livro de poemas Temporal.

De seguida ingressou na Universidade dos Açores, onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa, Fernando Pessoa: «coração despedaçado», escrito precisamente durante a sua permanência nos Estados Unidos e graças às condições de investiga-ção aí encontradas, como o próprio autor confessa na apresentação da obra; a tese representa a sucessi-va expansão de um projecto inicial de recensão crítica

- RomanceLugar de Massacre. Lisboa, Afrodite, 1975 (2.ª ed. Círculo

de Leitores; 3.ª ed. Lisboa, Salamandra 1996). A Fome. Lisboa, Afrodite, 1977 (2.ª ed.

Lisboa, Salamandra, 1988). O Medo. Angra do Heroísmo, Col. Gaivota, SREC, 1982.Imitação da Morte. Lisboa, Livraria Moraes, 1982. Contrabando Original. Lisboa, Vega, 1987

(2.ª ed. Lisboa, Salamandra, 1997).Memória da Terra. Lisboa, Vega, 1990.

- ContoKatafaraum é uma nação. Lisboa, Assírio

& Alvim, 1974 (2.ª ed. 1974),Alecrim, Alecrim aos Molhos. Lisboa, Afrodite, 1974.Revolucionários e Querubins. Lisboa, Afrodite, 1977.Receitas para Fritar a Humanidade. Lisboa, Montanha, 1978.Morrer Devagar. Lisboa, Arcádia, 1979.Contos Infernais. Ponta Delgada, Signo, (1987.Katafaraum ressurrecto. s/l, Ed. do Autor, 1992.Português, contrabandista. Antologia de contos.

Selecção e posfácio de Urbano Bettencourt. Lajes do Pico, Município das Lajes do Pico, 2009.

- LíricaFeldegato Cantabile. Porto, Livraria Paisagem, 1973.Invocação a um Poeta e Outros Poemas. Angra

do Heroísmo, Col. Gaivota, SREC, 1984. Temporal. RI, EUA, Gávea-Brown, 1986,No Crescer dos Dias. Lisboa, Salamandra, 1996.

- DramaTragédia Exacta. Jornal do Fundão, 1975.Domiciano. Angra do Heroísmo, Col. Gaivota, SREC,

(Prémio Armando Côrtes-Rodrigues), 1987.

- Ensaio. Crónica Linguagem e Criação. Lisboa, Assírio & Alvim, 1973.Cultura, Política, Informação. Lisboa,

Perspectivas, & Realidades, 1976. Vitorino Nemésio – a obra e o homem. Lisboa, Arcádia, 1978.Temas Nemesianos. Angra do Heroísmo.

Col. Gaivota, SREC, 1981.Fernando Pessoa: «Coração Despedaçado». Ponta

Delgada, Universidade dos Açores. 1985. David Mourão-Ferreira Narrador. Lisboa, Vega, 1987.Para uma Literatura Açoriana. Ponta Delgada,

Universidade dos Açores, 1987.Vitorino Nemésio – à luz do Verbo. Lisboa, Vega, 1988.Exercício da Crítica. Lisboa, Edições Salamandra, 1995. (Quase) teóricos e malditos. Lisboa, Salamandra, 1999.

OBRAS DE JOSÉ MARTINS GARCIA

(bibliografia estabelecida por Urbano Bettencourt)

2016 A Fome (romance) Lugar de Massacre (romance) O Medo (romance)

2017 Imitação da Morte (romance) Contrabando Original (romance) Katafaraum é uma nação (contos),

seguido de Katafaraum ressurrecto(contos)

2018 Memória da Terra (romance) Alecrim, Alecrim aos Molhos (contos) Poesia reunida:

Feldegato CantabileInvocação a um Poeta e Outros PoemasTemporal No Crescer dos Dias

PLANO DE PUBLICAÇÃO DAS OBRAS

2019 Revolucionários e Querubins (contos) Receitas para Fritar a Humanidade

(contos) Tragédia Exacta (teatro)

2020 Domiciano (teatro) Morrer Devagar (contos) Contos Infernais (contos)

2021 (e anos seguintes)Toda a obra ensaística, organizada por temas, com estudos introdutórios.

O MEDOISBN: 978-989-8828-07-1Dimensões: 14×22cmNº páginas: 104Nº Edição: 084Colecção:Obras de José Marti ns Garcia 003Biblioteca Açoriana 004Género: Ficção (romance)PVP: 13 €

A FOMEISBN: 978-989-8828-02-6Dimensões: 14×22cmNº páginas: 232Nº Edição: 082Colecção:Obras de José Marti ns Garcia 001Biblioteca Açoriana 002Género: Ficção (romance)PVP: 16 €

LUGAR DE MASSACREISBN: 978-989-8828-06-4Dimensões: 14×cmNº páginas: 168Nº Edição: 083Colecção:Obras de José Marti ns Garcia 002Biblioteca Açoriana 003Género: Ficção (romance)PVP: 16 €

Mas de que fome se trata? Aqui também temos duas perspectivas notórias: uma é a fome pri-mária, estomacal, fi siológica, que corrói as vísceras de António Cordeiro, a fome de costeleta e de bife, que inclusive navega a bordo do mítico Carvalho Araújo que levou o protagonista – e várias gerações de açorianos – para Lisboa, onde ele desembarca “em Alcântara, sem tostão no bolso.” Na Capital, a fome não dá tréguas, vitimizando-o “o cheiro da comida, o apelo da co-mida, a imagem da comida, a alucinação da comida”, em que o ícone é uma saborosa costeleta entrevista num restaurante. Já na universidade, António Cordeiro “prolongava o jantar para além dos limites razoáveis. Mastigava cuidadosamente...”, tudo isso para enganar a fome. Essa carência absoluta faz com que declare, a páginas tantas, “Sempre me foi a fome uma entidade familiar. Profi ssão: faminto – eis o que não consta nos arquivos deste planeta.” A outra fome é mais sofi sticada, é fome metafórica, mas não menos dolorosa: é a constituída pela ausência de tudo o que dá dignidade e conforto à existência, é tudo aquilo que António Cordeiro não tem e que tanto deseja, embora não lhe seja perfeitamente claro o que isso seja.

[Luiz Antonio de Assis Brasil, em “Por Uma Costeleta”, texto de abertura de A Fome]

Neste livro não há amanhãs que cantam, nem sequer um requiem por um Portugal moribun-do, nem tampouco qualquer glorificação da luta do inimigo pela sua emancipação. O inimigo é invisível, mas existe no coração do mato e é dessa fantasmagoria que emerge o horror. A selva esconde um perigo de morte, causa de um vigilante “horror que adivinha o inquietante mais do que vê, mas que por isso mesmo o homem é apanhado por ele nas suas garras poderosas”. A citação de Ernst Jünger é transplantada de O Coração Aventuroso, mas o horror que se vive na Guerra da Guiné está mais próximo da fronteira de temor que ecoa no Coração das Trevas de Joseph Conrad. Em Lugar de Massacre, rio acima até à Ponta do Inglês, sítio não cartografado e de indecifrável valor estratégico-militar, a guarnição, ao atingir o seu inútil destino, salta da lancha de patrulha “atascando-se até ao joelho num solo traiçoeiro” para ser emboscada pela “sombria e pensativa floresta”, de que nos fala Conrad, e de cujo coração aparecem seres humanos “como se saíssem da terra”. O horror telúrico é o mesmo que povoa o Coração das Trevas, sendo que temos Pierre Avince no lugar de Marlow e o Rio Geba é o equivalente do Rio Congo. Em ambos, os homens à deriva estão à mercê da “grande muralha de vegetação – exuberante, emaranhado de troncos, ramos, folhas, rebentos e grinaldas – que lembra uma invasão violenta de silenciosa vida, uma alta onda vegetal, prestes a desabar na enseada e a varrer os homens insignificantes”, citando Conrad.

[João Nuno Almeida e Sousa, em “À Deriva no Império Morto” texto de abertura de Lugar de Massacre]

Sempre desconfi ei da qualidade intrínseca de poemas sobre cravos. O realismo dá-se-me mal com amanhãs que cantam. Entendo que está por fazer justiça àqueles que, como José Martins Garcia, tiveram a coragem de não escrever para serem amados. De não jogar para a canoni-zação instantânea.Martins Garcia, que militou brevemente nos primeiros tempos do Partido Socialista, que es-creveu n’A República e, depois, no Jornal Novo, que, antes disso, andara de G3 pela Guiné, ver-te essas vivências para o olhar cortante com que capta o medo durante um tempo, entre 1974 e 75, que fi cou para a História descrito como “PREC” – Processo Revolucionário Em Curso. E, embora não estejam lá os nomes das personagens que habitam a Lisboa desses dias, estão todas as pistas para que as deduzamos à memória recente do país – com o “Xerife” à cabeça. Os excessos, os embustes, as contradições desses dias, estão todos aqui, retratados sem apelo nem agravo, sem deslumbre, nem sequer mágoa – apenas a crua razão, serena e distante, que tão mal tende a cair aos estômagos mais sensíveis.[...] Outros cantaram e cantarão as glórias de Abril. Outros a maravilha da bruma açoriana. Aqui, quem quiser entrar, é favor pendurar o deslumbre à porta. E deixar-nos em sossego com os nossos cigarros e o nosso pessimismo.

[Alexandre Borges, em “Isto do Medo”, texto de abertura de O Medo]

Esse mundo, enraivecido e descabelado, é dado, com a hipertrofia da ficção, em Lugar de Massacre (escrito entre Dezembro de 1973 e Setembro de 1974, i. é, aca-bado no ambiente de liberdade de escrita pós 25 de Abril). Lugar de Massacre (1.ª edição, 1975, reedita-do em 1991 pelo Círculo de Leitores e com 3.ª edição, Lisboa, Salamandra, 1996) é não só tipologicamente uma obra de literatura ligada à guerra colonial, como um típico documento da ficção hipertrófica e violenta

de Martins Garcia. O Pierre Avince de Lugar de Massacre é porta-voz de um violento protesto contra a experiência de guerra, a mobilização «for-çada» e caótica, a precarida-de de meios. De algum modo, massacre será uma ideia e um sentimento que subjazem em

toda a obra de Martins Garcia, como forma de apreen-são da vida por um ser humano descontente com ela e nela vendo sempre objecto de forte sarcasmo.[António Machado Pires, “José Martins Garcia”, in Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, em linha: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=5337]

Na obra de ficção de Martins Garcia nota-se ironia, sar-casmo e amargura. Não só são evidentes algumas no-tas disfémicas na reconstituição de alguns ambientes de Lisboa, quer dos anos de estudante, quer mesmo do 25 de Abril (veja-se O Medo), como a recordação de uns Açores de infância e adolescência, iluminada depois pelas leituras de história e pela própria refle-xão. Ficamos então com uma imagem de ilhas ignotas, caracterizadas por pobreza real e pobreza cultural, por uma religiosidade primária e quase grotesca, por uma aridez do clima e das pessoas. Talvez pensando em es-pecial no Pico da sua infância, lhe ficou esse mundo ári-do, amargo, injusto, que se esconde porém por detrás de uma paisagem muito bela. A Fome (1978) é uma amarga narração de vivências do estudante das ilhas «perdido» no continente, mas é também um mundo fantástico e simbólico, no qual embrecha uma narra-tiva histórica do padre António Cordeiro. Há realismo amargo na viagem «paradigmática» dos navios da In-sulana (as privações e horrores do enjoo em segunda ou terceira classes de um paquete velho!), o destino incerto do estudante, os anos difíceis da capital no fim do regime salazarista. Mais do que a habitual violência verbal, A Fome aponta para uma fome simbólica (iso-lamento, emigração, terramotos).A obra de José Martins Garcia, como se vê na dedi-

Como poeta, destaquem-se Feldegato Cantabile (1973), Invocação a um Poeta e outros poemas (1984). Temporal (publicado nos E.U.A, Providence, Gavea Brown, 1986), que é um amargo testemunho do «exí-lio» americano nos anos 80 após desentendimentos com alguns docentes da Faculdade de Letras de Lis-boa no ambiente pós-revolucionário. No Crescer dos Dias (Lisboa, Salamandra, 1996) será talvez um dos seus melhores livros de poemas, pois a ressonância de Fernando Pessoa liga-se à isotopia da insularidade, que se inscreve num ritmo anafórico de apreensão angustiada do tempo vivi-do, que é cíclico, em «eter-no retorno» dos dias e das estações. Mas não se pode esquecer a importância que a passagem pelos Estados Unidos – julgada como «desterro» definitivo! – teve no sujeito de um lirismo de dor e desespero, lembrando o país «maldito» e a vida que nele sonhou. É essa a forte tónica de Tem-poral (publicado já o autor se encontrava nos Açores):

só eu sou o sem deus a contas só comigo» (“Das imensas cren-ças”)(…)sol ventado e brincando nas crianças sobre a relva america-na deste meu exílio(...)a saudade futura a amnésia ambígua rolam dentro de mim em sílabas perdidas restos reduções porções ruínas sono-ras seduções acentos rimas e outras páginas que já esqueci (“Amnésia defensiva”).(...)se ao menos eu pudesse chorar! Chorar de riso o queainda seria omais saudável.Mas não, estou farto de coisas risíveis, estou farto dos ou-tros /estoufartíssimo de mim. (“Versos de Pé de Galo”)

O longo poema “Versos de Pé de Galo” (de Tempo-ral) é um bom exemplo, se não um dos melhores, do tedium vitae, do isolamento intelectual e espi-ritual, do sentimento de decadência nacional, da amargura ácida que pairam em toda a sua obra.[António Machado Pires, “José Martins Garcia”, in Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, em linha: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=5337]

SOBRE O AUTOR E A SUA OBRA

«De algum modo, massacre será uma ideia e um sen-timento que subjazem em toda a obra de Martins Garcia, como forma de apreensão da vida por um ser humano descontente com ela e nela vendo sempre objecto de forte sarcasmo»

fuso e o diário, deixa o retrato de um tempo cinzento, os anos cinquenta, e de uma comunidade fechada “na clausura do cabo do mundo”.[Urbano Bettencourt, “José Martins Garcia”, in Boletim do Núcleo Cultu-ral da Horta, N.º 13, 2004, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 2004)

Em Junho [de 1975], terminando um semestre frenéti-co de edições, chegou um dos livros mais importantes da Afrodite nesse ano. Lugar de Massacre foi não ape-nas o primeiro romance de José Martins Garcia (cola-borador regular da Afrodite desde a Revolução), como,

sobretudo, o primeiro ro-mance português sobre um tema ainda quente e muito fresco na memória colec-tiva: a Guerra Colonial, em particular na Guiné, o mais mortífero palco da mesma. Desenvolvendo alguns dos contos de Katafaraum é

Uma Nação (publicado na Assírio & Alvim em Feverei-ro de 1974), que a necessidade de esquiva à censura o obrigara a polvilhar de uma toponímia fictícia, o autor estava agora livre para abordar a sua experiência no conflito entre 1966 e 1968 de uma forma directa, ain-da coada pelo seu estilo particular pleno de ácida mor-dacidade e “numa perspectiva paranóica e demencial” [Urbano Bettencourt, “José Martins Garcia”. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, Nº 13, 2004: 59-64.] Com este romance, e depois do seu primeiro livro de contos na Afrodite no ano anterior, Martins Garcia provou ser não apenas um colaborador erudito, fiável e rigoroso, mas uma revelação e uma definitiva aposta de Ribeiro de Mello num novo autor nacional, algo de realmen-te novo na história da editora, cujas edições “avulsas” (isto é, que não fossem antologias) de autores portu-gueses se tinham limitado à poesia e a nomes já con-sagrados ou, pelo menos, já estabelecidos no “merca-do” (casos de Natália Correia ou Ary dos Santos).[Pedro Piedade Marques (autoria, organização e edição), Editor Con-tra. Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, Lisboa, Montag, 2015: pp. 194 e 198]

A Fome, considerado um dos (poucos) grandes roman-ces açorianos posteriores a Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, poderá entender-se essencialmen-te como um romance de personagem, se atendermos a que aí se textualiza o percurso do jovem estudante António Cordeiro, narrador da sua própria experiência, uma experiência de iniciação na vida e nos seus mis-térios, seja ela a do “mundo abreviado” da ilha (Pico, Faial), seja a do grande mundo, de que Lisboa é apenas a parte do todo (França, Estados Unidos em narrativas

catória de A Fome, é quase toda ela uma “descida aos infernos” (é autor de uma colectânea de Contos Infernais...), um acto de preenchimento de uma soli-dão profunda: «Procuro-me como um fantasma que regressa ao lar (...). [...]. Procuro-me na fome imorre-doura.» (A Fome). A vida em Monte Brabo (Contra-bando Original, 1987) é uma pasmaceira, uma rotina; a montanha do Pico uma espécie de presença tutelar, mas também quase um fantasma – como vê no conto «Depois do fim do mundo» (em Morrer Devagar).São evidentes na obra de José Martins Garcia um sen-timento de amarga solidão, de ironia e de sarcasmo veiculados numa linguagem contundente ou mesmo dis-fémica, com uma repulsa pelo falso moralismo, uma tendência caricatural con-tra os «bons propósitos» da sociedade, ou até mes-mo acerca das contradições da Revolução (José Martins Garcia viveu o 25 de Abril). Há cargas satíricas muito perto de personagens à clé. Mas toda essa irreverência e essa “violência” verbal se fazem num uso impecável da Língua Portuguesa, que se afina no seu ensaísmo e nos seus trabalhos de natureza académica. A obra de José Martins Garcia é já objecto de teses académicas em Universidades Portuguesas e estrangeiras (nomea-damente no Brasil e nos EUA). [António Machado Pires, “José Martins Garcia”, in Enciclopédia Açoriana, Centro de Conhecimento dos Açores, em linha: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=5337]

A chave para a leitura de uma boa parte da ficção nar-rativa de José Martins Garcia pode encontrar-se no seu livro Invocação a um Poeta e outros poemas (1984) e num título como “Signo Atlântico”, em que a viagem e a partida surgem sob um desígnio de fatalidade e de destino inevitável e constituem o traço indelé-vel da condição insular, e da sua expressão lite rária. Particularmente em romances como A Fome (1978), Imitação da Morte ou Contrabando Original (1987) encontramos personagens cuja radicação insular as atira para um percurso de dispersão, de errância e, no limite, de perdição; fugindo ao universo concentracio-nário da ilha, elas farão a experiência da desterritoria-lízação, do exílio absoluto e, olhando para si próprias, descobrirão os infernos íntimos que as atormentam e projectarão essa mesma imagem sobre o mundo en-volvente. Narrativas de partida essas três, elas têm o seu contraponto em Memória da Terra (1990), uma narrativa de sentido inverso, cujo narrador vem à ilha na tentativa de reconstituir a imagem e o percurso do irmão desaparecido e, num registo entre o policial di-

«Não é cantarolando amor que, efectivamente, se ama. Ama-se melhor quando se resiste e muito me-lhor quando se resiste desmistificando o opressor” – confessou o autor»

«A obra de José Martins Garcia continua a ofere-cer-nos, pela sua complexidade, a nível temático, teórico-crítico e cultural, amplas possibilidades analíticas e interpretativas»

(…) um dos melhores livros da Afrodite do ano e uma confirmação do talento de José Martins Garcia: a co-lecção de contos Revolucionários e Querubins, que, como escreveu Urbano Bettencourt, seguia o proces-so habitual do autor de paródia de fábulas conheci-das (…) que aproveita precisamente a sua concisão e linearidade narrativa como meio de veicular uma perspectiva satírica sobre acontecimentos e persona-gens“ [Urbano Bettencourt, Inquietação insular e fi-guração satírica em José Martins Garcia. Dissertação de Doutoramento. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2013, pp. 95-98]. Estamos sob o mesmo tom desencantado de Alecrim aos Molhos, mas a focagem é agora em casos e personagens obviamente inspira-dos no Portugal pós-revolucionário. Um exemplo per-

versamente delicioso é o do conto “Atribulações Docen-tes”, nitidamente inspira-do nas experiências como professor universitário do autor. “Apontado durante anos pelo doutor Florêncio como modelo de excelência [a História da Literatura Por-

tuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes], torna--se um problema para o docente quando este sabe que ‘o Saraiva já não é do Partido’. Como identificar a parte escrita pelo dissidente? Por contraste ideológi-co: ‘a parte do Lopes é progressista’. Como continuar a utilizar um manual em que, subitamente, passam a conviver o mal e o bem, a boa história e a má? Inuti-lizando (isto é, saneando, para recorrer ao léxico da época), a parte escrita pelo autor politicamente não recomendável” [Urbano Bettencourt, Inquietação insular e figuração

satírica em José Martins Garcia. Dissertação de Doutoramento. Ponta Del-

gada: Universidade dos Açores, 2013, p.158].

– Camaradas! Quando ensinei Literatura Portuguesa em Angola, a marabunta comeu várias páginas deste livro… Apontou um compêndio ratado e prosseguiu: – Mas só comeu as páginas do Saraiva. As que restam, as boas, as do Lopes, são as que vão orientar o nosso estudo. Como estão lembrados, foi a essas que me re-feri ontem. [José Martins Garcia, Revolucionários e Querubins, Lisboa: Afrodite, 1977:

63]

[Pedro Piedade Marques (autoria, organização e edição), Editor Con-tra. Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, Lisboa, Montag, 2015: p. 212]

posteriores). Daí, em primeiro lugar, a forte dramati-zação da condição insular, manifesta na tensão entre a permanência petrificante, o sentir-se preso à ilha, às suas fomes materiais, e o chamamento, o apelo do desconhecido, as fomes de distância, que diferentes sinais exacerbam.[Urbano Bettencourt, “José Martins Garcia”, in Boletim do Núcleo Cul-tural da Horta, N.º 13, 2004, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 2004)

(…) convém ainda chamar atenção para uma das mais imediatas vertentes da obra de José Martins Garcia, a sua dimensão satírica – projecção de uma determinada visão do mundo e de um relacionamento distanciado e crítico em relação a ele e às suas normas e condutas, e que, em termos literários, se organiza com base em procedimentos linguísticos e retóricos diversificados. A sátira escolhe os seus al-vos, as suas vítimas, e joga--se toda na inventiva e nos mecanismos da linguagem que, da ampliação à atenu-ação, proporcionam o espelho deformante (côncavo ou convexo) em que o mundo poderá olhar-se na sua imagem ora ridícula, ora burlesca, (e eventualmente corrigir-se). Processos como a citação, a paródia, a alu-são, a antífrase, o sarcasmo com o seu pendor hiper-bolizante sucedem-se em José Martins Garcia, cons-truindo uma linguagem que alterna a violência com a expressão subtil, desconstruindo sentidos fossilizados e questionando o poder da própria linguagem ou a linguagem enquanto poder e a fragilidade da sua pró-pria convencional idade. Esses procedimentos servem o propósito satírico e nas suas diferentes modulações instauram o relativismo, a começar pelo da linguagem, anulam as verdades absolutas e, para lá do manique-ísmo do lamento trágico ou da exaltação épica, abrem espaço para uma coisa outra, o riso e o seu forte po-der desestabilizador e libertador também: “satirizar a loucura que se pretende lúcida, rir do poder e das suas vaidades... Eu creio que esta última atitude é que representa a verdadeira solidariedade para com todos os que sofreram os pontapés dos tiranetes, dos dita-dores. Não é cantarolando amor que, efectivamente, se ama. Ama-se melhor quando se resiste e muito me-lhor quando se resiste desmistificando o opressor” – confessou o autor em entrevista dada por ocasião da saída de Memória da Terra (veja-se Estante – jornal de informa-

ção editorial, n.º l, Vega, 1991).

[Urbano Bettencourt, “José Martins Garcia”, in Boletim do Núcleo Cul-tural da Horta, N.º 13, 2004, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 2004)

(…) Este autor tem caminhado sempre por caminhos próprios, sem atenção às últimas modas ou preocu-paçõezinhas existenciais. Não é yuppie nem está fora de horas – vai, exactamente por isso, perdurar. Noutro livro seu, pressentimos que algo de maior está para vir. Talvez a preocupação, a obsessão, com o Grande e Definitivo romance diz só respeito aos críticos. Tal-vez. Mas poucos em Portugal, nestes nossos dias, têm dado provas dessa possibilidade, como este autor.[Vamberto Freitas, “Memória da Terra ou o Perpétuo Cativeiro”, in O Ima-ginário dos Escritores Açorianos, Lisboa, Edições Salamandra, 1992: 41]

(…) [o seu nome] deveria ser hoje saudado como o do escritor mais completo e mais complexo que no últi-

mo decénio entre nós se re-velou; (...) com igual mestria tanto abrange os registos da mistificação narrativa como os da exegese crítica, tanto os da desmistificação satíri-ca como os da transfigura-ção telúrica, e que sem dú-vida não encontra paralelo,

pela convergência e concentração de todos estes vec-tores, na produção de qualquer outro seu coetâneo.[David Mourão-Ferreira, Jornal Signo, 30 de Setembro de 1987]

A obra de José Martins Garcia continua a oferecer-nos, pela sua complexidade, a nível temático, teórico-críti-co e cultural, amplas possibilidades analíticas e inter-pretativas. E, na sua faceta especificamente literária, de apurado trabalho da língua e sentidos daí deriva-dos, de criatividade, de domínio seguro das regras de construção da poesia, da narrativa e até do texto dra-mático, são um claro e ilustre exemplo do que é boa literatura.[Rosa Maria Goulart, “José Martins Garcia, crítico da literatura e crítico do mundo”, in Insulana, LXVIII, 2012: p. 15, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2012]

A fervorosa imaginação que enforma a sua ficção não tem limites, a narração desenfreada não se amarra a quaisquer tabus, o divórcio entre a vida calma e ini-gualavelmente produtiva que ele leva como professor universitário em Ponta Delgada e a inacção e descren-ça destas suas inventadas vozes é total.[Vamberto Freitas, “Memória da Terra ou o Perpétuo Cativeiro”, in O Imaginário dos Escritores Açorianos, Lisboa, Edições Salaman-dra, 1992: p. 39]

(…) “Ilha”, que em Memória da Terra não tem nome, é a metáfora perfeita não só de qualquer parte do país, pelo menos aqui nestas páginas, feito de cafés e ou-tras pequenas instituições sociais, como é ao mesmo tempo símbolo do cativeiro geográfico e do estado interior de quase todas as personagens, quer disso es-tejam conscientes ou não. E um mundo não só feito de absurdas coisas como age de modo, digamos, pate-ticamente paranóico; está cheio de sinais totalitaristas, desde a vigilância da Pide ao indivíduo que quer saber dos outros só por saber (o mexerico elevado a uma espécie de Filosofia por-tuguesa), ao reino dos imbecis caciques locais. Todos parecem saber que nada vai a parte nenhuma, como o barco que chega de Lisboa de tempos a tempos, sem novidades algumas ou amostra de vida diferente, mas tingem que esta é uma vivência consequente, e por vezes de crise e a saque. Entretanto, os acontecimen-tos de “grande” importância reduzem-se a sessões comemorativas disto ou daquilo, a sessões “culturais” das sumidades locais, ou a tentativas de promoção do meio através de manifestações de “cultura” popular. Parte da cómica subversão da narrativa de Memória da Terra, como sempre acontece com Martins Garcia, é a total ausência de condescendência ante tudo e todos, assim como o autocastigo do narrador quando se vê totalmente incapacitado de se refazer ou de se aproximar íntima ou amorosamente seja de quem for, mesmo quando, momentaneamente, lhe venha esse desejo ou impulso. A sua credibilidade ante o leitor reside também nisso – os esporádicos sinais da sua humanidade e a consequente vontade de procurar ou-tros mundos, coisas e gentes.[Vamberto Freitas, “Memória da Terra ou o Perpétuo Cativeiro”, in O Imaginário dos Escritores Açorianos, Lisboa, Edições Salaman-dra, 1992: p. 40]

«A fervorosa imaginação que enforma a sua fic-ção não tem limites, a narração desenfreada não se amarra a quaisquer tabus»

JOSÉ MARTINS GARCIA POR ELE MESMO

Precedido pela fama de senhor de uma têmpera de ebulição frequente, forte e em pouca água, nunca nin-guém viu Martins Garcia levantar a voz, zangar-se, po-lemizar, maltratar quem quer que fosse. De uma lisura impecável, chegava a parecer subserviente no seu sau-dar de cabeça inclinada e pasta na mão. As secretárias conheciam-no por “São Tomás de Aquino”. Desconhe-ço quem teve a ideia, provavelmente sugerida em par-te pela crescente calvície, mas o certo é que o epíteto revela bem a imagem deixada por JMG em quem se cruzava com ele quase diariamente. Atendia os alunos quando necessário e todos apreciavam a atenção que lhes dedicava. [Onésimo Teotónio Almeida, “Coração despedaçado a morrer devagar. Da experiência americana de José Martins Garcia”, in Minima Azorica. O meu reino é deste mundo, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2014: p. 152]

(...) Olhar que podia ser o de fascínio pela generosida-de da natureza (o que não redunda necessariamente na caricatura do olhar turístico), mas esse não se qua-dra ao perfil do escritor: é a ilha como espaço fechado, sufocante, que lhe interessa. (como já o fora, sobre-tudo, em Varanda de Pilatos de Vitorino Nemésio. Jul go significativo que Martins Garcia, estudioso notável da obra nemesiana, se empenhe na “recuperação” do primeiro romance do autor do Mau Tempo no Canal, contra palavras deste que de facto não devemos to-mar ao pé da letra.) Repetem-se ao longo de Memória da Terra as considerações sobre a ilha, fracção de terra fatidicamente cercada pelo “roncar do mar, a ameaça do mar” (p.95), e a condição insular, que o narrador, continental, não consegue fazer sua, nem na realida-de física (cita-se o clima que impõe “a viver” – p.146) nem na dimensão humana (“Mais saudável, sem dúvi-da, seria agredir esse mundo mediante a excomunhão duma fracção chamada ‘ilha’, rocha fatídica, cativeiro, claustro, paradoxalmente cheia de mexericos, boatos, piadas de mau gosto, recalcamentos, bolor” – p. 91).Negativamente (em mais do que um sentido!), José Martins Garcia continua a celebrar a(s) ilha(s). [J. M. Bettencourt da Câmara, sobre Memória da Terra (1990), in Co-lóquio-Letras, LXVIII, n.º 120, Abril de 1991: p. 215, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian]

Aconteceu-me figurar na lista de Trois Poetes des Açores, iniciativa de dois professores de passar para francês poesia de três poetas açoreanos: o José Se-bag, eu e o Emanuel Jorge Botelho. Tinha que dizer alguma coisa na sessão de lançamento, e é curio-so que tenha citado o O›Neill… Passo a ler: «Peço licença para citar dois versos do poeta Alexandre O›Neill, dois versos de Poemas com Endereço, de 1962, dois versos bem característicos do humor que, em Alexandre O’Neill, foi uma forma de resis-tir a uma circunstância vigiada, censurada, policiada, o Portugal dos anos sessenta, o Portugal da guerra colonial: «Que interessa aparecer em Estocolmo, a bordo de um poema que não chega sequer a Trás-os-Montes?» Note que eu não cito mais ne-nhum poeta português, escrevi apenas uma página e meia, mas esta honra de ser vertido para francês levou-me a pensar na necessidade desta reflexão que é de bom-senso e de modéstia: o que é que ser-ve que um poema meu seja lido em Paris, se eu sou perfeitamente desconhecido na ilha em que nasci? Eu não chego à ilha do Pico. Lugar de Massacre teve talvez mais críticas em língua inglesa (aquando da primeira edição) do que em português.[“A felicidade é um relâmpago”, entrevista concedida por José Martins Garcia a Ana da Silva, in LER, n.º 36, Outubro de 1996: pp. 42-51]

“ Eu conheço um cavalheiro que disse a um amigo meu:

«Eu tenho a obra desse senhor lá em casa apenas

porque ele é da minha ilha, mas nunca a li», como se o facto de ler textos meus lhe conspurcasse a alma. Ora, se ele tem uma alma muito limpa, não devia recear

as minhas ironias, as minhas sátiras. Devia considerar-se moralmente acima desses

seres pecaminosos que eu, possivelmente, ponho em cena.

Mas gostaria também de fazer algumas observações sobre Contrabando Original. E começo por fazer uma pergunta embaraçosa: Quem é o narrador desse ro-mance? Por outras palavras: eu, que sou apenas o “au-tor empírico” do livro, a quantos narradores dei voz? Quantas vozes se acumulam nesse romance? Ser eu próprio a responder a tais perguntas significaria um poder de objectividade pretensioso, ridículo mesmo. Se admitimos a unidade do narrador, não me parece que esse narrador se revele cínico. Não será ele um professor de Latim que declara, no fim do livro, que inventou uma família por ter ficado órfão de tenra ida-de?… Não será ele um diplomata enfastiado com a fa-chada que é obrigado a cultivar? Ou será ele um actor tornado efectivo contrabandista? Ou este contraban-do é todo em sentido figurado?… Porque será o narra-dor um refractário à guerra colonial?…Cínico?…Talvez sim, em certas circunstâncias. Talvez não, se reparar-mos na sua situação de clandestino. Enfim, creio que, seja lá quem for o narrador de Contrabando Original, sátira e amargura se sobrepõem ao cinismo. Sátira e angústia… o riso perante a própria extinção. [in “Memória do tempo: à conversa com José Martins Garcia”, entrevista realizada por Vamberto Freitas, publicada no seu blogue Nas Duas Margens, em 24 de Junho de 2013, em linha: https://vambertofreitas.wordpress.com/2013/06/24/memoria-do-tempo-a-conversa-com-jose-martins-garcia/]

Deixe-me recordar um aspecto de Lugar de Massa-cre: aquelas personagens loucas ou a caminho da loucura, que se movem num hospital de Bissau, não são simples “palhaços” caídos nas malhas de uma guerra sem finalidade; são seres despedaçados na própria identidade; representam uma geração sacrifi-cada ao nada. E a função do narrador, neste caso, não é suscitar o riso, muito menos mascarar-se de cínico. A função desse narrador é essencialmente de denún-cia da paranoia que foi aquela guerra colonial. Uma denúncia que se processa em vários planos, parecen-do-me o plano satírico um dos mais relevantes do li-vro. Mas note: quem é a vitima dessa sátira? Os tais “palhaços” meio loucos?… Não; os chefes megalóma-nos, ou chefes (ou supostos chefes) com as cabeças cheias de fumaça imperialista.[in “Memória do tempo: à conversa com José Martins Garcia”, entrevista realizada por Vamberto Freitas, publicada em no seu blogue Nas Duas Margens, em 24 de Junho de 2013, em linha: https://vambertofreitas.wordpress.com/2013/06/24/memoria-do-tempo-a-conversa-com-jose-martins-garcia/]

Vamos fi xar-nos em sáti ra e irreverência. Sim, tenho de reconhecer que até certa anti pati a, que me é dedicada pelos meios conservadores, tem a sua razão de ser e certa faceta satí rica perante a fi cção que eu construo. Acho que escrevi romances e contos que incomodam uma certa forma de estar na vida, que é caracterizada pelo conformismo, pela acatação dos valores estabele-cidos, por uma certa supersti ção em relação a valores caducos, uma falta de abertura. As personagens que veiculam essa críti ca social, ao fi m, ao cabo, e críti ca de valores, podem ser anti páti cas para aquelas pes-soas que se vêem ameaçadas por uma ati tude irreve-rente, como no tempo do Salazar se via o comunismo por toda a parte. Há uma espécie de extrapolação do senti do satí rico que se pretende com uma determina-da fábula, conto ou romance. Uma extrapolação que eu posso sinteti zar da seguinte maneira: «Os textos de fulano são perigosos», «Os textos de fulano são subversivos», «Os textos de fulano são incómodos». Eu conheço um cavalheiro que disse a um amigo meu: «Eu tenho a obra desse senhor lá em casa apenas por-que ele é da minha ilha, mas nunca a li», como se o facto de ler textos meus lhe conspurcasse a alma. Ora, se ele tem uma alma muito limpa, não devia recear as minhas ironias, as minhas sáti ras. Devia considerar-se moralmente acima desses seres pecaminosos que eu, possivelmente, ponho em cena.[“A felicidade é um relâmpago”, entrevista concedida por José Martins Garcia a Ana da Silva, in LER, n.º 36, Outubro de 1996: pp. 42-51]

De facto, eu vivi algum tempo obcecado pela ideia de que há três poderosos inimigos da dignidade humana: a fome, o medo e a morte. Dos dois primeiros termos, a fome e o medo, eu fi z tí tulos para romances. Quando ia escrever A Morte, verifi quei que eu não podia dizer nada sobre a morte. Além disso, o Vladimir Yankelé-vich escreveu um tratado fi losófi co, que em francês se chamou La Mort. Tenho impressão que eu conheci esse livro depois de ter escrito aquilo que seria A Mor-te e que acabei por chamar – Imitação da Morte, por moti vos que são um bocadinho complexos. Quanto a A Fome, também acabei por descobrir – um lapso da minha cultura, todos nós os temos – que A Fome era o tí tulo de um livro de um norueguês, Knut Ha-msun. Quem me chamou a atenção para o facto de eu estar a usar um tí tulo que ti nha sido usado por um Prémio Nobel da Literatura, mas do princípio do sé-culo, foi o Vergílio Ferreira, num cartãozinho em letra muito minúscula, dizendo: «Gostei muito do seu livro. Só lamento o tí tulo, porque foi usado por Knut Ham-sun que, como deve saber, se tornou fascista.» Eu pen-sei comigo: «Coitado, o Vergílio Ferreira está cheio de boas intenções, mas eu não me vou tornar fascista por ter escrito A Fome.» Depois li A Fome de Hamsun, em francês. O livro não tem grande analogia temáti ca, mas houve uma coisa que me surpreendeu. Em francês, há um indivíduo que é caracterizado como tendo yeux aigus e eu, n’A Fome, uso a expressão «olhos agudos de fome». São estas coincidências que nada podem explicar, porque eu não ti nha lido Hamsun. Quanto a O Medo, eu creio que também há outras obras com o mesmo tí tulo.[“A felicidade é um relâmpago”, entrevista concedida por José Martins Garcia a Ana da Silva, in LER, n.º 36, Outubro de 1996: pp. 42-51]

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