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JOSÉ WESLEY FERREIRA Questão Social: um estudo acerca dos fundamentos teóricos, estratégias metodológicas e relação teórico-prática no ensino em Serviço Social Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do grau de doutor em Serviço Social. Orientadora: Dra. Ana Lúcia Suárez Maciel Porto Alegre 2015

JOSÉ WESLEY FERREIRA - CORE · 2016-12-27 · Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade ... Prof. Dr. Reinaldo Nobre Pontes Universidade Federal do Pará ... a Questão

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  • JOS WESLEY FERREIRA

    Questo Social: um estudo acerca dos fundamentos tericos, estratgias metodolgicas e relao terico-prtica no ensino em Servio Social

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do grau de doutor em Servio Social.

    Orientadora: Dra. Ana Lcia Surez Maciel

    Porto Alegre

    2015

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    F383 Ferreira, Jos Wesley Questo Social: um estudo acerca dos fundamentos tericos estratgias metodolgicas e relao terico prtica no ensi- no em Servio Social / Jos Wesley Ferreira. Porto Alegre, 2015. 174p.

    Tese(Doutorado em Servio Social): Faculdade de Servio

    Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do

    Sul - PUCRS.

    Orientadora: Dra. Ana Lcia Surez Maciel

    1.Servio Social 2.Educao 3.Metodologia

    4.Questo Social 5.Formao Servio Social I. Ttulo

    CDU:364:37

    Ficha catalogrfica elaborada por Dayse Pestana CRB10/1100

  • 3

    JOS WESLEY FERREIRA

    Questo Social: um estudo acerca dos fundamentos tericos, estratgias metodolgicas e relao terico-prtica no ensino em Servio Social

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obteno do grau de doutor em Servio Social.

    BANCA EXAMINADORA

    Profa. Dra. Ana Lcia Surez Maciel Orientadora

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS/FSS

    Profa. Dra. Jane Cruz Prates

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS/FSS

    Profa. Dra. Jussara Maria Rosa Mendes

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS

    Prof. Dr. Reinaldo Nobre Pontes

    Universidade Federal do Par UFPA

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus pela vida

    A minha me Milta pelo cuidado e dedicao

    A minha irm Pmela que est sempre torcendo por mim

    A Mabel, meu amor, pelo companheirismo na histria que estamos construindo

    A professora Maria da Graa, por socializar seu saber, por instigar-me a pensar na relao terico-prtica e pelo incentivo aos estudos

    A minha orientadora Ana Lcia Suarez Maciel, pelo apoio e pelos ensinamentos durante a elaborao da tese

    Ao professor e as professoras componentes da banca examinadora, pelas sugestes para o aprimoramento da tese

    Aos colegas e estudantes da UNIPAMPA que aceitaram participar deste estudo

    E, ainda, a CAPES por viabilizar a realizao da pesquisa

  • 5

    RESUMO

    Este estudo discute o ensino da Questo Social na formao em Servio Social, com objetivo de analisar como vem se dando o ensino da mesma, no que se refere aos fundamentos tericos, as estratgias metodolgicas e a articulao terico-prtica, com a finalidade de oferecer subsdios para o aprimoramento da formao na rea. Do ponto de vista metodolgico, a pesquisa qualitativa, tendo sido eleito o materialismo histrico e dialtico como mtodo que possui as seguintes categorias centrais: a totalidade, a historicidade e a contradio; bem como lanou-se mo do estudo de caso de um Curso de Servio Social, vinculado a uma universidade pblica do Rio Grande do Sul. Foram utilizadas, para a coleta dos dados, as tcnicas de entrevista semiestruturada, cujos sujeitos foram quatorze docentes e doze estudantes do referido curso e anlise documental do Projeto Poltico Pedaggico e a tcnica da anlise de contedo para o tratamento dos dados e anlise dos mesmos. Os resultados do estudo revelam que o ensino da Questo Social no Curso pesquisado fundamenta-se no materialismo histrico e dialtico. Entretanto a apreenso do paradigma se d de forma fragilizada, o que repercute na heterogeneidade de concepes e na reproduo mecnica do conceito. As estratgias de ensino da Questo Social variam desde abordagens ldicas, at aulas expositivas, precedidas de leituras. A articulao com as experincias cotidianas dos estudantes foi ressaltada como uma estratgia potente no ensino da Questo Social. J a articulao do ensino da Questo Social com a experincia como assistente social dos docentes foi apontada com uma estratgia eficaz para apreenso terico-prtica do objeto profissional. H dificuldades no entendimento da Questo Social como objeto de interveno profissional durante o estgio supervisionado. Essa dificuldade antecede o ingresso no estgio, visto que, a transversalidade do ensino da prtica no contemplada no ensino da Questo Social nesse curso. Porm, os estudantes demostram aproximaes no entendimento da articulao das competncias terico-metodolgicas e tcnico-operativas durante o estgio supervisionado. Os supervisores de campo e acadmicos apresentam divergncias quanto operacionalizao do trabalho, o que demanda maior articulao dessa trade para superar os desafios de articulao terico-prtica. As proposies deste estudo indicam que preciso aprofundar o entendimento do materialismo histrico e dialtico para superar a heterogeneidade de concepes sobre a Questo Social, h necessidade de articular o ensino da Questo Social com a experincia cotidiana dos estudantes e de mediar o ensino da relao terico-prtica com as experincias dos docentes como assistentes sociais, tanto em espaos sciocupacionais como em projetos de extenso. O aprimoramento do ensino da Questo Social a partir da relao terico-prtica tambm requer a elaborao de pesquisas que discutam s competncias tcnico-operativas, problematizem a Questo Social como objeto e resultem em produes tericas sobre essas temticas que, efetivamente, subsidiem a formao em Servio Social.

    Palavras- Chave: Ensino em Servio Social; Questo Social; Formao em Servio Social; Relao Teoria-Prtica.

  • 6

    ABSTRACT

    This study discusses the teaching of Social Issues in training in social work, in order to analyze how we are giving the teaching thereof, in relation to the theoretical foundations, methodological strategies and the theory-practice articulation, in order to offer subsidies for the improvement of education in the area. From a methodological point of view, the research is qualitative, elected dialectical and historical materialism as a method that has the following main categories: all, historicity and the contradiction. It employed the case study of a Course of Social Service, linked to a public university in Rio Grande do Sul. Were used for collecting the data, semi-structured interview techniques, whose subjects were fourteen teachers and twelve students that course and document analysis of Project Political. The content analysis technique was used for data processing and analysis. The study results show that the teaching of Social Issues in the Course researched is based on historical and dialectical materialism. However the arrest paradigm occurs in a weakened form, which affects the heterogeneity of concepts and mechanical reproduction of the concept. Teaching strategies of Social Issues range from game approaches, to lectures, preceded by readings. Coordination with the everyday experiences of students was highlighted as a powerful strategy in the teaching of Social Issues. Have the articulation of the social issue with teaching experience as a social worker of teachers was identified with an effective strategy for theoretical and practical grasp of object professional. There are difficulties in understanding of the social issue as the object of professional intervention during the supervised training. This difficulty predates the entry on stage, since the mainstreaming of practice teaching is not included in the teaching of Social Issues in this course. However, students demonstrate approaches in understanding the articulation of theoretical and methodological, technical and operational skills during the supervised training. The field supervisors and academic controversy exists as to the operation of the work, which requires greater coordination of this triad to overcome the challenges of theoretical and practical articulation. The propositions of this study highlight the need to deepen the understanding of the historical and dialectical materialism to overcome the heterogeneity of views on Social Issues, there is need to link the teaching of Social Issues with the everyday experience of students and to mediate the teaching of theoretical relationship -Practice from the experiences of teachers and social workers, both in socio-occupational spaces as extension projects. The improvement of the Social Issues teaching from the theory-practice relationship also requires the development of research to discuss the technical and operational skills, problematize the Social Issues as object and result in academic research on these issues which effectively subsidize training in Social Service. Key-words: Education in Social Work; Social Issues; Training in Social Work; Relationship Theory-Practice.

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................9

    2. O Ensino da Questo Social na formao em Servio Social.........................27

    2.1. Questo Social, Trabalho e Formao em Servio Social..................................27

    2.2. A particularidade do Ensino da Questo Social na formao do Assistente

    Social..........................................................................................................................46

    2.3. As contribuies do materialismo histrico e dialtico no ensino da Questo

    Social..........................................................................................................................60

    3. O Ensino da Questo Social na UNIPAMPA: Fundamentos Tericos em

    Debate.......................................................................................................................68

    3.1. A Universidade Federal do Pampa como lcus do estudo.................................68

    3.2. Marxismo: fundamento para a apreenso e o ensino da questo social...........72

    3.3. Heterogeneidade de concepes sobre as determinaes da questo social na

    realidade concreta......................................................................................................78

    3.4. A questo social como eixo articulador dos componentes curriculares: um

    desafio para a formao em servio social................................................................89

    4. O Ensino da Questo Social na UNIPAMPA: As estratgias metodolgicas no

    ensino da questo social.......................................................................................102

    4.1. Diversidade de instrumentos e estratgias de ensino da questo social.........102

    4.2. Mediao com as vivncias dos estudantes: uma estratgia potente para o

    ensino da questo social..........................................................................................109

    4.3. Mediao com as experincias profissionais: uma estratgia potente para o

    ensino da articulao terico-prtica na compreenso da questo social...............115

    5. O ensino da questo social na UNIPAMPA: a articulao terico-prtica no

    ensino da questo social.......................................................................................125

    5.1. Interveno como sinnimo de encaminhamentos aos direitos sociais...........125

  • 8

    5.2. Os desafios para compreenso da articulao terico-prtica nas intervenes

    realizadas durante o estagio supervisionado...........................................................131

    5.3. A articulao da teoria com as vivncias dos estudantes no estgio e nos

    projetos de extenso................................................................................................145

    6 CONCLUSES.....................................................................................................152

    REFERNCIAS........................................................................................................161

    APNDICE A ROTEIRO NORTEADOR DA ENTREVISTA COM OS

    ESTUDANTES.........................................................................................................167

    APNDICE B ROTEIRO NORTEADOR DA ENTREVISTA COM OS

    DOCENTES..............................................................................................................169

  • 9

    1 INTRODUO

    A partir da graduao, a partir dos textos e debates de sala de aula, eu comecei a perceber, porque como te disse [...] eu abri os olhos, ao tirar a venda que me encobria [...] antes de entrar, a sociedade para mim estava boa, havia crimes? Havia. Havia pessoas pobres? Havia, mas isso no tinha me afetado ainda, porque no estava acontecendo prximo a mim, ento, tinha o pensamento de que as pessoas ficavam pobres porque no queriam trabalhar [...] eu pensava ele ladro porque quer, mas na verdade o nico jeito que ele encontrou de sustentar a famlia o que no pensamos muito porque para ns, ladro ladro, o velho pensamento preconceituoso, sem conhecer realmente a realidade o que s fui mudar atravs da insero no curso (Estudante A, 2 Semestre).

    Optou-se em introduzir esta tese a partir desse depoimento para mostrar

    como o ensino da Questo Social transforma a apreenso dos estudantes sobre a

    realidade concreta. A formao em Servio Social insere os estudantes diante da

    Questo Social atravs de leituras de textos, aulas expositivas, exerccios, teatros e

    letras de msicas, dentre outros instrumentos de ensino, que permitem a

    problematizao do objeto profissional na realidade concreta. Esse processo

    contribui para os estudantes superar suas concepes, s vezes, fragmentadas

    sobre a pobreza, a violncia, dentre outras demandas sociais que evidenciam os

    impactos da contradio capital-trabalho. Identifica-se que ao apreender as

    demandas sociais como expresses da Questo Social os estudantes vo

    apreendendo a articulao das refraes do objeto profissional com a totalidade

    concreta determinada pela estrutura econmica da sociedade.

    Esta pesquisa buscou desvendar o modo como ocorre o ensino da Questo

    Social no curso de Servio Social da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA,

    problematizando os fundamentos tericos, as estratgias metodolgicas e as

    mediaes terico-prticas no ensino da matria Questo Social. O estudo possui

    trs categorias explicativas da realidade, definidas anteriormente pesquisa de

    campo que so: a Questo Social, a formao em Servio Social e o ensino.

    Para o entendimento da Questo Social, recorre-se a Lefebvre (1995). Ele diz

    que a aparncia manifesta a essncia, a essncia em forma de existncia. As

    expresses da Questo Social podem ser comparadas aparncia, necessitam ser

    desvendadas em profundidade atravs do conhecimento de suas conexes com

  • 10

    outros fenmenos que, simultaneamente, se manifestam e se ocultam. Todos esses

    fenmenos esto vulnerveis a legalidade social que nos termos de Pontes (1999),

    so as tendncias universais que se impem a sociedade e so produtos da

    explorao do trabalho, decorrente dos processos de alienao postos pelo modo de

    produo capitalista que tem sua raiz na propriedade privada dos meios de

    produo.

    Nesse contexto uma parcela minoritria da sociedade (burguesia) adquire a

    possibilidade de produzir riqueza atravs da explorao da maioria (trabalhadores).

    Assim produzida a Questo Social como um resultado da explorao do trabalho

    que gera concomitantemente riqueza para a burguesia e pobreza e rebeldia dos

    trabalhadores que com o passar dos anos vo adquirindo conscincia de classe, se

    organizando coletivamente e conquistando direitos materializados a partir da

    insero de suas demandas na agenda pblica.

    A compreenso dessa categoria terico-temtica de suma importncia

    medida que o estudo visou compreender como a Questo Social vem sendo

    ensinada na UNIPAMPA. Desse modo o conhecimento terico da categoria

    Questo Social foi til na analise dos dados coletados a partir do estudo e para a

    elaborao das categorias empricas que ofereceram os indicativos de resposta ao

    problema de pesquisa.

    A formao profissional tem a Questo Social como categoria central, pois ela

    a base de fundao scio-histrica do Servio Social; o ponto articulador das

    disciplinas que compem o processo formativo o eixo histria, teoria e mtodo.

    Conforme Simionato (2004), a abordagem dessa lgica que no separa histria,

    teoria e mtodo prpria da vertente terica marxista. Conforme a autora os

    princpios mais importantes das Diretrizes Curriculares so a necessidade do

    rigoroso trato histrico, terico e metodolgico para possibilitar a compreenso das

    demandas postas ao trabalho profissional no universo da produo e reproduo

    social e a adoo da teoria social crtica para apreenso da Questo Social a partir

    da totalidade historicamente determinada em suas dimenses de universalidade,

    particularidade e singularidade.

    Portanto, neste estudo a compreenso da categoria terico-temtica

    formao profissional em Servio Social est ancorada na proposta bsica

  • 11

    elaborada pela Associao Brasileira de Estudos e Pesquisas em Servio Social -

    ABEPSS que indica o eixo histria, teoria e mtodo como ordenador do currculo e a

    Questo Social como matria que perpassa os contedos das disciplinas dos

    ncleos de fundamentao da formao que articulados oferecem subsdios terico-

    metodolgicos, tcnico-operativos e tico-polticos para a operacionalizao do

    trabalho profissional (ABEPSS, 1996).

    O ensino consiste em direcionar o processo de aprendizagem e a didtica a

    disciplina que estuda o processo de ensino, principal atividade docente, ela trata da

    teoria geral do ensino, investiga os fundamentos, condies e formas de realizao

    do processo de ensino (LIBNEO, 1994). O ensino corresponde a aes, meios e

    condies para realizao da instruo; contm, pois, a instruo (LIBNEO, 1994,

    pg. 23).

    Portanto, nesse estudo a categoria terico-temtica ensino corresponde s

    estratgias metodolgicas e aos fundamentos tericos utilizados pelos docentes do

    curso de Servio Social da UNIPAMPA para inserir os estudantes diante de

    situaes que possibilitam a aproximao com a matria Questo Social.

    Para realizao do estudo foi realizado o planejamento da pesquisa.

    Conforme Prates (2003b), planejar a pesquisa algo imprescindvel, pois o que

    orienta a ao do pesquisador. Assim, o planejamento da pesquisa tem em vista

    uma determinada finalidade e para alcan-la, preciso sistematizao de vrias

    etapas do estudo.

    [...] o planejamento da pesquisa deve estar permeado e fundamentado de

    valores. Deve ter direo definida. A prpria escolha do tema, do mtodo,

    das estratgias dependem de valores, interesses, apropriaes e

    priorizaes, que, sem dvida, so histricas, contextualizadas e, em parte,

    condicionadas por este contexto. Algumas vezes, os temas nos escolhem,

    mas, se o contedo no tem significado para ns, dificilmente nos

    mobilizam (PRATES, 2003b, p.125).

    Portanto, alm da organizao das etapas de uma pesquisa, o planejamento

    inclui escolhas, posicionamentos, crenas e motivaes do pesquisador. O tema

  • 12

    escolhido pelo mesmo deve instig-lo e fazer sentido para ele, j que preciso

    envolver-se ao mximo com a temtica.

    Esta pesquisa se caracterizou como um estudo de caso de cunho qualitativo

    com lcus na unidade social - UNIPAMPA. O mtodo utilizado na elaborao deste

    estudo foi o dialtico-crtico. Tal vetor terico encontra sua origem na corrente

    filosfica materialista, que considera os fatores concretos da prtica, na produo de

    conhecimento. A partir do mtodo dialtico-crtico, o entendimento construdo acerca

    do homem e da sociedade considera a base material que os constituem

    (LEFEBVRE, 1995). Esse mtodo trabalha com a ideia de monismo materialista:

    A tese de monismo materialista sustenta que a estrutura econmica, entendida como o conjunto de relaes sociais (polticas, ideolgicas, culturais, educacionais) que os homens estabelecem na produo e reproduo material de sua existncia, que define, em ltima instncia, o complexo social em suas diferentes dimenses (FRIGOTTO, 1994, p. 84).

    O enfoque dialtico-crtico entende que o conhecimento parte das condies

    objetivas e que o pensamento capta as contradies referentes s relaes

    concretas, colocando-se em movimento. Conforme Lefebvre (1995, p.12), o

    pensamento se desloca incessantemente do plo lgico, racional, aquele da forma

    pura, para o real, a natureza, o prtico sensvel, a prxis ou, numa palavra, o

    contedo. Esse movimento impulsionado pela contradio observada na

    realidade. So categorias centrais do mtodo dialtico-crtico a totalidade, a

    historicidade e a contradio.

    A totalidade, mais do que a reunio de todas as partes, significa um todo articulado, conectado, onde a relao entre as partes altera o sentido de cada parte e do todo. A totalidade concreta no um todo dado, mas em movimento de autocriao permanente, o que implica a historizao dos fenmenos que a compem (PRATES, 2003a, p. 87).

    As partes esto articuladas dialeticamente, formando uma totalidade de

    relaes que so sempre contraditrias. A contradio est includa na totalidade

    concreta, e o seu acirramento conduz o pensamento ao movimento que busca

    superar os impasses em um permanente movimento dialtico.

  • 13

    A compreenso dialtica da totalidade significa no s que as partes se encontram em relao de interna interao e conexo entre si e com o todo, mas tambm que o todo no pode ser petrificado na abstrao situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interao das partes (KOSIK, 1976, p. 34).

    O conhecimento da totalidade ocorre a partir do aprofundamento do

    entendimento das articulaes dialticas entre as partes e o todo. preciso partir do

    todo para as partes, a fim de retornar para o todo de forma aprimorada.

    Este movimento pressupe a historicidade dos fenmenos sociais, reconhece a processualidade, o movimento e transformao do homem, da realidade e dos fenmenos. Significa que os fenmenos no so estticos, esto em curso de desenvolvimento e, portanto, s podem ser apreendidos a partir do desvendamento deste movimento, por cortes histricos (PRATES, 2003, p. 95-96).

    Esse movimento de pensamento e de ao embasado no materialismo

    histrico e no materialismo dialtico. O primeiro considera a histria a partir de sua

    materialidade, das leis objetivas, que existem independentemente da conscincia; o

    segundo inclui a contradio na histria, e o motor do desenvolvimento da

    conscincia passa a ser a contradio. Ento, as contradies, que encontram seus

    fundamentos no plano objetivo, conduzem o pensamento a apreend-las e super-

    las, em um movimento dialtico entre tese, anttese e sntese. No h produo sem

    contradio, sem conflito, a comear pela relao do ser social (o homem) com a

    natureza atravs do trabalho (LEFEBVRE, 1995).

    Ao estudar um objeto singular, utilizando o mtodo dialtico-crtico, no se

    pode analisar o mesmo fora do universo, das leis universais que permitem a

    apreenso do todo como um processo, um devir, oriundo de um movimento

    universal que fornece meios genricos para entender os aspectos singulares. A

    articulao desses aspectos singulares forma o universal que se expressa nas

    situaes concretas particulares (LEFEBVRE, 1995).

    A categoria da contradio, segundo Cury (2000), a base de uma

    metodologia dialtica e reflete o movimento mais originrio do real. A racionalidade

  • 14

    do real est no movimento contraditrio dos fenmenos, que so provisrios e

    superveis. Portanto, a contradio remete ideia de movimento, tensionamento,

    algo que capaz de criar e destruir, a luta dos contrrios na tentativa de superar

    conflitos. A contradio permeia as relaes dos homens entre si e a dinmica da

    sociedade.

    O ponto de partida de uma pesquisa o levantamento de um problema, de

    uma interrogao. A pesquisa busca responder s necessidades de conhecimento

    de um problema ou fenmeno especfico (MARCONI; LAKATOS, 1999). A realizao

    do estudo foi motivada pela seguinte indagao: Como vem se dando o ensino da

    Questo Social no que se refere aos fundamentos tericos, estratgias

    metodolgicas e articulao terico-prtica no curso de Servio Social da

    Universidade Federal do Pampa?

    O problema uma dificuldade terica ou prtica no conhecimento de algo

    relevante, para a qual se busca uma soluo (MARCONI; LAKATOS, 1999).

    Segundo Prates (2003b), elaborar o problema sintetizar o ncleo duro de uma

    investigao, atravs de uma pergunta que ser desdobrada em questes

    norteadoras, que so problematizaes auxiliares que compem a questo central e

    auxiliam a respond-la.

    Para responder ao problema de pesquisa, foram construdas as seguintes

    questes norteadoras: Quais os fundamentos tericos adotados pelos docentes da

    Universidade Federal do Pampa para ensinar a Questo Social? Quais as

    estratgias metodolgicas adotadas pelos professores para ensinar a Questo

    Social durante a formao em Servio Social? Como ocorre a articulao terico-

    prtica no ensino da Questo Social durante o estgio supervisionado?

    O objetivo geral deste estudo foi analisar como vem se dando o ensino da

    Questo Social no que se refere aos fundamentos tericos, estratgias

    metodolgicas e articulao terico-prtica, com a finalidade de oferecer subsdios

    que contribuam com o aprimoramento da formao profissional em Servio Social.

    Para atingir esse objetivo geral foram traados alguns objetivos especficos:

    Identificar quais os fundamentos tericos adotados pelos docentes da Universidade

    Federal do Pampa para ensinar a Questo Social; Verificar as estratgias

    metodolgicas adotadas pelos professores para ensinar a Questo Social durante a

  • 15

    formao em Servio Social; Compreender como ocorre a articulao terico-prtica

    no ensino da Questo Social durante o estgio supervisionado.

    A prxima etapa na definio da metodologia utilizada o delineamento da

    pesquisa. Nesse momento foram escolhidos os instrumentos de pesquisa, as

    tcnicas utilizadas e ocorreu a delimitao da amostra. A tcnica de pesquisa

    adotada foi o estudo de caso que se caracteriza por investigar em profundidade uma

    unidade social. Neste estudo de caso a unidade social pesquisada a UNIPAMPA.

    O estudo de caso orientado pelo mtodo dialtico-crtico deve antes da

    sistematizao dos dados, preocupar-se com a compreenso do objeto de estudo no

    contexto mais amplo, incluindo na sua problematizao fatores polticos,

    econmicos, sociais e culturais que contribuem com o desvendamento do fenmeno

    e possibilita sua insero em uma concepo mais geral de mundo (DINIZ, 1999).

    Conforme Andrade (2008), o objetivo do estudo de caso a investigao de

    uma unidade social em profundidade, caracteriza-se como uma pesquisa emprica

    que busca apreender, descrever e interpretar os fenmenos em seus contextos.

    Para o autor, o estudo de caso pede avaliao qualitativa, pois o foco a anlise

    profunda de uma unidade social e a busca da compreenso contextual do

    fenmeno. Portanto o presente estudo de cunho qualitativo. Esse tipo de

    pesquisa se interessa mais em abstrair os aspectos qualitativos da realidade social

    do que quantificar o objeto de estudo. Conforme Martinelli (1999), a pesquisa

    qualitativa voltada aos significados, s interpretaes a respeito dos sujeitos

    pesquisados e de suas histrias, j as informaes quantitativas so

    complementares e fundamentam o conhecimento produzido pela outra.

    A finalidade real da pesquisa qualitativa no contar opinies ou pessoas,

    mas ao contrrio, extrapolar o espectro de opinies, as diferentes representaes

    sobre o assunto em questo (BAUER; GASKELL, 2002, p. 68). Logo, o foco deste

    estudo no foi quantificar, fazer mensuraes, e sim compreender em profundidade

    como vem se dando o ensino da Questo Social no processo de formao em

    Servio Social na UNIPAMPA.

    A abordagem qualitativa, assim como o mtodo dialtico-crtico reconhece

    que no h neutralidade no modo como o pesquisador investiga o seu objeto de

  • 16

    pesquisa. Por isso, as atribuies de valores e os significados construdos por ele

    tambm compem o estudo realizado. Nesta pesquisa foram utilizadas as seguintes

    tcnicas de coleta e tratamento de dados: anlise documental, entrevistas

    semiestruturadas e a anlise de contedo.

    A anlise documental caracterizada pela investigao de um ou vrios

    documentos, no produzidos pelo pesquisador e pr-existentes ao estudo. Esses

    documentos podem ser polticas, projetos, cartas, normativas, fotos, dentre outros

    (PRATES, 2009). Neste estudo, foi realizada anlise documental do Projeto Poltico

    Pedaggico - PPP. O universo dos documentos analisados abrange o PPP em sua

    integralidade, perpassando a justificativa, os objetivos, o perfil, as competncias e

    habilidades, o perfil docente, as estratgias pedaggicas, o ensino, a pesquisa, a

    extenso, a avaliao, as normativas de estgio supervisionado e do trabalho de

    concluso de curso, a base curricular, as ementas, os programas e as bibliografias,

    portanto, o universo idntico a amostra. A amostra uma parcela

    convenientemente selecionada do universo (populao, documentos); o

    subconjunto do universo (MARCONI; LAKATOS, 1999, p. 32).

    Nesta pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com um

    roteiro1 que privilegiou o ponto de vista dos entrevistados acerca do objeto da

    pesquisa. Optou-se pelo uso de perguntas abertas, pois elas viabilizam que os

    pesquisados possam responder livremente, emitindo suas opinies, utilizando

    linguagem prpria (MARCONI; LAKATOS, 1999). A entrevista semiestruturada

    oferece mais liberdade ao entrevistador de acrescentar novas questes ao roteiro se

    houver necessidade. Esse tipo de entrevista parte de certas interrogativas que

    podem ser reformuladas com base nas respostas recebidas dos entrevistados

    (TRIVIOS, 1987). Para realizao deste estudo foram realizadas trs entrevistas

    como pr-teste. A etapa do pr-teste importante para que a investigao seja

    realizada com xito. Conforme Marconi e Lakatos (1999), atravs desse

    procedimento possvel identificar falhas como inconsistncia ou complexidade de

    questes, ambigidade, ou linguagem inacessvel, perguntas suprfluas e verificar

    se a ordem e a quantidade perguntas esto adequadas. As entrevistas utilizadas

    como pr-teste foram realizadas no ms de setembro de 2014, com docentes e

    1 Ver apndice B.

  • 17

    estudantes. Como no foram identificadas falhas nas entrevistas utilizadas como

    pr-teste, elas foram utilizadas no estudo. Aps o pr-teste, realizou-se contato

    telefnico com os docentes e estudantes, agendando as entrevistas

    semiestruturadas que ocorreram preferencialmente fora do espao institucional.

    Atualmente o curso de Servio Social conta com onze docentes da rea de

    Servio Social que foram entrevistados em sua totalidade, ou seja, o universo dos

    docentes corresponde amostragem j que todos eles foram sujeitos do estudo.

    Tambm foram entrevistados quatro docentes de outras reas de conhecimento que

    ministram componentes curriculares no curso de Servio Social.

    O curso de Servio Social da UNIPAMPA tem atualmente 163 estudantes

    matriculados que compem o universo dos estudantes pesquisados, sendo 44 do

    oitavo semestre, 36 do sexto semestre, 33 do quarto e 50 do segundo. O critrio

    utilizado para a composio da amostragem foi semestralidade dos estudantes,

    foram escolhidos estudantes de diferentes semestres com fins de avaliar o nvel de

    apreenso da Questo Social durante as etapas da formao. Os estudantes

    sujeitos do estudo foram trs estudantes do segundo semestre, trs do quarto, trs

    do sexto e trs do oitavo.

    Portanto, o tipo de amostra a no probabilstica do tipo dirigida ou

    intencional. Ao escolher esse tipo de amostra, que no possibilita fazer

    generalizaes, o pesquisador est interessado em conhecer as opinies e

    experincias vividas de uma parte da populao, nem sempre representativa da

    mesma, sobre a temtica que se props a investigar (MARCONI; LAKATOS, 1999).

    Segundo Gil (1994), a amostragem no probabilstica aplicada em

    pesquisas exploratrias ou de carter qualitativo, que no tm a preocupao com o

    rigor estatstico. Ento, optou-se por esse tipo de amostra, j que a mais adequada

    a pesquisas qualitativas que no tm como objetivo generalizar, e sim aprofundar o

    estudo do tema escolhido a partir dos dados aos quais o pesquisador tem alcance.

    Na tentativa de desvendar as contradies do tema estudado, foram

    realizadas entrevistas e a anlise documental com fins de captar elementos

    empricos, analisados luz da teoria. A anlise dos dados foi realizada a partir da

  • 18

    tcnica de Anlise de Contedo. Essa tcnica compatvel com o mtodo dialtico

    e contribui para

    [...] o desvelar das ideologias que podem existir nos dispositivos legais,

    princpios, diretrizes, etc., que simples vista, no se apresentam com a

    devida clareza. Por outro lado, o mtodo de anlise de contedo, em alguns

    casos, pode servir de auxiliar para instrumento de pesquisa de maior

    profundidade e complexidade, como, por exemplo, o mtodo dialtico.

    Neste caso, a anlise de contedo forma parte de uma viso mais ampla e

    funde-se nas caractersticas do enfoque dialtico (TRIVIOS, 1987, p. 159-

    160).

    Essa tcnica permite a anlise das comunicaes dos sujeitos a partir do

    contedo manifesto de suas mensagens. No presente estudo, a anlise de contedo

    foi utilizada, atravs da leitura das transcries das entrevistas, da descrio e

    interpretao dos relatos dos entrevistados, o que propiciou entender a construo

    de significados elaborados pelos mesmos acerca do ensino da Questo Social na

    Universidade Federal do Pampa.

    Entende-se por fundamentos tericos as teorias vinculadas ao materialismo

    histrico e dialtico que subsidiam os assistentes sociais em suas leituras de

    realidade e contribuem com o direcionamento das aes profissionais tanto no

    mbito da academia como nos campos de interveno. Essa pesquisa buscou

    desvendar como esses fundamentos tericos so articulados com o ensino do objeto

    de trabalho do Servio Social. A Questo Social hegemonicamente conceituada

    nos espaos representativos da categoria como resultante da explorao do trabalho

    pelo capital no modo de produo capitalista, por isso, a importncia em abordar a

    relao da categoria trabalho com o conceito de Questo Social predominantemente

    assumido pela categoria profissional. Constata-se que para desvendar a Questo

    Social como fruto da desigualdade produzida no modo de produo capitalista

    preciso entender primeiramente o trabalho como categoria ontolgica do ser social,

    como atividade que possibilita aos homens se diferenciar dos outros seres vivos.

    Compreender o trabalho como atividade atravs da qual o homem se liberta e se

    pe em posio ativa diante da natureza fundamental para compreender os

    processos de alienao decorrentes da propriedade privada dos meios de produo

    que permite o controle do processo produtivo por uma classe social e a submisso

  • 19

    do trabalho a produo de mais valia atravs da explorao da fora de trabalho que

    a gnese da Questo Social.

    A proposta bsica da ABEPSS para a formao em Servio Social indica a

    Questo Social como eixo articulador das disciplinas que compem os ncleos de

    fundamentao da formao. No entanto, existem desafios e possibilidades no

    ensino da Questo Social como eixo articulador dos currculos. Dentre os desafios

    esto a precarizao do trabalho docente que condiciona a realizao de reunies

    de trabalho com fins pedaggicos, a heterogeneidade na apreenso da Questo

    Social entre os docentes e a dificuldade de ministrar o ensino da prtica de modo

    transversal. J dentre as possibilidades destaca-se a organizao coletiva tanto em

    nvel nacional como no interior das universidades com a finalidade de lutar por

    melhores condies de trabalho e garantir a qualidade do ensino atravs da

    conquista de tempo para reunies pedaggicas em que sejam avaliadas, por

    exemplo, a carga de leitura que est sendo repassada para os estudantes, para

    problematizar se o excessivo nmero de textos est gerando aprendizagem em

    profundidade, ou alienao e sofrimento, processo que nos termos de Freire e Shor

    (1986), so entraves para o processo de ensino e afastam os estudantes do

    exerccio do protagonismo no processo de aprendizagem que quando ocorre dessa

    forma reproduz a lgica na qual o estudante centra mais na nota e na busca do

    diploma como um meio para insero no mercado de trabalho. A produo de

    pesquisas, artigos e livros que abordem a articulao das competncias

    profissionais durante o trabalho profissional tambm se constitui como uma

    possibilidade para qualificar o ensino da Questo Social no que concerne a relao

    terico-prtica.

    relevante problematizar que o Servio Social, por ser uma profisso com

    um direcionamento poltico claramente vinculado a um projeto societrio

    contracorrente requer um processo de formao no qual o ensino fomente o esprito

    crtico nos estudantes, eles precisam ser instigados a falar, a discordar, enfim os

    estudantes precisam ser sujeitos do processo de ensino, pois isso um exerccio

    que contribuir com o desenvolvimento de atitudes necessrias ao exerccio

    profissional. muito comum aos assistentes sociais que atuam em convergncia

    com o projeto tico poltico ter que se posicionar em seus campos de trabalho

    buscando convencer seus colegas, por exemplo, de que os usurios podem

  • 20

    participar de reunies de planejamento do processo de trabalho da instituio, de

    que isso no vai bagunar a reunio porque eles no sabem nada, mas sim

    favorecer a parceria entre profissionais e usurios na luta pela ampliao dos

    recursos disponibilizados para a poltica operacionalizada na instituio. O

    desenvolvimento dessas atitudes deve perpassar o processo de ensino da Questo

    Social e podem ser realizadas atravs de atividades simples como o planejamento

    dos planos de ensino com a participao coletiva dos alunos e dos professores

    otimizando leituras, articulando atividades conjuntas, afinando o entendimento em

    relao a temas chaves para a categoria profissional como trabalho, Questo Social,

    cidadania, dentre outros. No entanto, esse processo requer tempo e disposio dos

    atores envolvidos o que geralmente dificultado pelo fato de muitos professores se

    dedicarem a atividades burocrticas e de gesto e, tambm, porque os estudantes

    vivem atribulados com atividades relacionadas a bolsas, disciplinas, dentre outras.

    Portanto, a precarizao do trabalho expresso em mltiplas tarefas, s vezes,

    desconectadas, um dos principais fatores que condicionam o desenvolvimento de

    estratgias metodolgicas coordenadas de ensino da Questo Social.

    Atualmente, a Questo Social como objeto de trabalho dos assistentes sociais

    legitimada em todos os documentos que regem o exerccio profissional. A lei n

    8662/93 de regulamentao da profisso, as diretrizes curriculares de 1996, assim

    como o Cdigo de tica de 1993, apontam a Questo Social e suas manifestaes

    como a matria sobre a qual incide a ao profissional. O processo que conduziu a

    categoria profissional a legitimar a Questo Social e suas expresses como objeto

    de trabalho ocorreu na esteira de movimentos mais amplos da sociedade brasileira,

    no perodo da redemocratizao que culminou com a elaborao da Constituio

    Federal Brasileira de 1988. Para os assistentes sociais, as discusses delinearam

    uma redefinio na direo social da profisso que iniciou com a Reforma Curricular

    de 1982, em que se consolidou a aliana do Servio Social com a classe

    trabalhadora, tendncia que se confirmou no Cdigo de tica de 1996 e,

    posteriormente, foi reafirmada no Cdigo de 1993 e na Reforma Curricular de 1996

    (ABEPSS, 1996).

    As diretrizes curriculares de 1996 tomam a Questo Social como elemento

    estruturador da formao profissional em Servio Social. Os ncleos de

    fundamentos terico-metodolgicos da vida social, fundamentos da formao scio-

  • 21

    histrica da sociedade brasileira e fundamentos do trabalho profissional, se articulam

    com a finalidade de subsidiar os estudantes atravs das competncias terico-

    metodolgica, tico-poltica e tcnico-operativa para apreenso das particularidades

    da Questo Social durante a interveno profissional (ABEPSS, 1996).

    No entanto, durante a pesquisa de mestrado2, foi constatado que os

    assistentes sociais pesquisados faziam uso da dimenso terico-metodolgica de

    modo frgil e inconsistente. Isso ficou evidente na heterogeneidade de concepes

    acerca da Questo Social, na dificuldade de compreend-la a partir de sua gnese

    comum (conflito capital-trabalho) e de sua dimenso contraditria (desigualdade-

    resistncia) e no entendimento reducionista economicista da Questo Social, j que

    esta foi reduzida pobreza, impossibilitando a apreenso do objeto profissional em

    sua totalidade.

    Atravs desse estudo, foi possvel verificar que os profissionais pesquisados

    recorriam s tcnicas de interveno de modo fragmentado da teoria e se

    apropriavam do objeto institucional como se ele fosse o prprio objeto profissional.

    Alm disso, reduziam o instrumental de trabalho aos instrumentos utilizados em

    suas intervenes.

    Identificou-se que as fragilidades tericas na apreenso da Questo Social

    repercutiam na qualidade dos processos interventivos e constatou-se que essas

    fragilidades poderiam estar relacionadas aos referenciais tericos utilizados e ao

    modo como as discusses tericas so estabelecidas no espao de formao

    profissional. Quando os contedos abordados divergem da proposta bsica da

    ABEPSS, gerado um descompasso entre a prtica docente e o projeto de

    formao, que no fragmenta histria, teoria e mtodo.

    Outro estudo realizado em 20063 identificou desafios no processo de

    implantao das diretrizes curriculares propostas pela ABEPSS. Dentre os

    obstculos, destaca-se a heterogeneidade no que se refere ao ensino da Questo

    Social. Tal diversidade evidencia-se na diversidade posicionamentos dos docentes

    2 FERREIRA, Jos Wesley. Questo Social: apreenso e interveno no trabalho dos assistentes

    sociais. Dissertao (Mestrado em Servio Social) Programa de Ps-Graduao em Servio Social, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2008. 3 Pesquisa realizada pela ABEPSS em 2006, sobre a implementao das diretrizes curriculares pelas

    Unidades Formadoras de assistentes sociais, aps dez anos de sua elaborao pelo conjunto da categoria profissional em 1996.

  • 22

    quanto a matria Questo Social, na dificuldade em apreender a Questo Social

    como decorrente da explorao do trabalho no modo de produo capitalista e na

    utilizao de autores com posies divergentes da recomendada pela ABEPSS para

    conceituar a Questo Social. Portanto, esse processo desencadeado na formao

    favorece a fragilidade terica dos assistentes sociais para a compreenso da

    Questo Social.

    Em relao ao ensino da prtica, a pesquisa supracitada evidenciou que ele

    est atrelado predominantemente a disciplina de estgio e as disciplinas que

    compem o ncleo de fundamentao do trabalho profissional. Esse processo aliado

    heterogeneidade no ensino da Questo Social favorece a dicotomizao das

    competncias terico-metodolgicas e tcnico-operativas o que gera srias

    divergncias entre a formao profissional e a concepo terica que, a priori, deve

    subsidi-la que tem com uma de suas leis a unidade entre teoria e prtica.

    Segundo Faermann (2014), as diretrizes para o curso de Servio Social no

    inovaram nas propostas concernentes ao ensino da prtica, principalmente no que

    se refere s tcnicas e instrumentos de trabalho, pois as diretrizes apenas indicam a

    necessidade de subsidiar os estudantes em relao ao uso de tcnicas e

    instrumentos para atender as demandas do mercado e dos usurios, mas no

    explicitam detalhadamente como articular o ensino da competncia tcnico-operativa

    com as competncias terico-metodolgica e tico-poltica.

    Constata-se que a fragilidade terica na apreenso da Questo Social e a

    escassez de produo sobre a operacionalizao de tcnicas e instrumentos de

    trabalho com fins de intervir nas mltiplas determinaes da contradio capital-

    trabalho esto intimamente articuladas. Esse nexo causal entre fragilidade terica e

    as dificuldades no manejo de tcnicas e instrumentos fica evidente no fato de que o

    ensino da prtica, por exemplo, mais problematizado no estgio. At o momento

    do estgio predominam discusses que possibilitam a apreenso conceitual da

    Questo Social sem oferecer muitas pistas que iluminam o entendimento de como

    ela se constitui como objeto de interveno profissional. Isso demonstra que existe

    uma lacuna entre a concepo terica da Questo Social e o seu entendimento

    como objeto que ser transformado a partir da ao teleolgica mediada pelo uso de

  • 23

    instrumentos e tcnicas4. Portanto, durante a graduao preciso aprofundar a

    compreenso terica do objeto profissional problematizando situaes em que

    assistentes sociais se deparam com expresses da Questo Social e lanam mo

    de instrumentos e tcnicas para intervir na realidade.

    As diretrizes preconizam que o ensino da prtica seja transversal,

    perpassando todas as disciplinas dos currculos. Em contrapartida essa

    recomendao da ABEPSS encontra obstculos na prpria produo terica do

    Servio Social que desde o movimento de reconceituao tem se centrado mais nas

    competncias terico-metodolgicas e tico-polticas. Segundo Faermann (2014),

    diversos autores5 reconhecem os avanos referentes produo terica calcada na

    tradio marxista desde os anos 1980, mas advertem para a necessidade de

    investimento em pesquisas e produes para subsidiar o entendimento das

    competncias tcnico-operativas da profisso. importante ressaltar que essas

    produes no devem tratar a competncia tcnico-operativa de modo dissociado da

    teoria e da intencionalidade profissional, portanto, preciso aprofundar o

    entendimento do manejo de instrumentos e tcnicas de modo articulado com os

    fundamentos tericos que orientam a leitura de realidade e a direo social

    assumida pela categoria.

    O movimento de reconceituao foi pautado em discusses tericas que

    explicavam como os fatores econmicos, polticos e culturais impactam na profisso.

    Portanto, o movimento centrou-se nos aspectos exgenos ao Servio Social e nesse

    processo as discusses privilegiaram as competncias terico-metodolgicas e tico

    polticas em detrimento da problematizao de tcnicas e instrumentos de trabalho.

    A carncia de problematizao das competncias tcnico-operativas desafia os

    docentes no processo de ensino da Questo Social, pois no basta identificar a

    Questo Social na realidade porque aos assistentes sociais demandada a

    interveno.

    O curso de Servio Social da Universidade Federal do Pampa tem como base

    curricular a proposta de Diretrizes Curriculares proposta pela ABEPSS em razo

    disso toma Questo Social como eixo central da formao profissional. Ele o

    5 Guerra (2011-2012), Santos (2006, 2011, 2012), Sarmento (2010-2012), Mioto e Lima (2009),

    Baptista (2009), Battini (2009), Silva (2009), Prates (2003-2009), e Vasconcelos (2012).

  • 24

    primeiro curso instalado em uma Instituio Federal de Ensino Superior Pblico no

    Rio Grande do sul.

    Da a relevncia social desse estudo que problematizou o ensino da Questo

    Social no processo de formao em Servio Social na UNIPAMPA6. Identifica-se que

    os resultados dessa pesquisa que analisou como vem se dando o ensino da

    Questo Social na UNIPAMPA, subsidiaro aes potentes no sentido de

    aprimoramento da formao profissional nesta e em outras Universidades,

    fortalecendo sua materializao em convergncia com a proposta bsica da

    ABEPSS. Ou seja, o estudo importante para a sociedade porque contribui com a

    melhoria da formao dos assistentes sociais que atendem a populao nos mais

    variados espaos sciocupacionais.

    Para a categoria profissional o estudo importante medida que seus

    resultados favorecem o alinhamento da formao profissional com os pressupostos

    e princpios recomendados pela ABEPSS e consequentemente com a direo social

    hegemnica do projeto profissional construdo pela categoria na dcada de 1990.

    Durante a experincia profissional e docente do pesquisador7, foi possvel

    observar que a maioria dos professores estava submetida a uma sobrecarga de

    atividades acadmicas e que isso repercutia na dificuldade de articular os contedos

    das disciplinas em consonncia com os ncleos de fundamentao da formao,

    resultado em uma heterogeneidade de concepes tericas acerca da Questo

    Social e em uma fragmentao dos contedos e disciplinas, o que no favorecia a

    discusso e execuo do currculo numa perspectiva de totalidade, como preconiza

    a proposta bsica para o projeto de formao em Servio Social da ABEPSS

    Na experincia durante a residncia multiprofissional em sade da famlia e

    comunidade ocorreram situaes desafiadoras quando a possibilidade de mediar a

    teoria e a prtica. Foram vivenciadas algumas contradies postas ao exerccio

    profissional dos assistentes sociais, que incluem desde a falta de clareza a respeito

    6 Esta pesquisa foi realizada como projeto piloto. Posteriormente ela ser desenvolvida em outras

    Universidades. 7 Trabalhou como docente na Faculdade do Sul da Bahia de Fevereiro a agosto de 2008, na

    Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul de maro de 2011 a janeiro de 2013 e na Universidade Federal do Pampa desde janeiro de 2013. Tambm foi residente em sade da famlia e comunidade no Programa de Residncia Multidisciplinar do Grupo Hospitalar Conceio de fevereiro de 2009 a janeiro de 2011.

  • 25

    do objeto de interveno do Servio Social at a dissociao entre os princpios do

    projeto profissional e as demandas apresentadas a esses trabalhadores pelo

    mercado de trabalho.

    Constatou-se que o assistente social visto pela equipe como o profissional

    que sabe encaminhar, ou seja, na maioria das situaes em que os outros

    profissionais marcam atendimentos de usurios com o assistente social com o

    intuito de que haja encaminhamento para acesso a medicao, para aposentadoria,

    para atendimento de fisioterapia, dentre outros. Identifica-se que o encaminhamento

    faz parte do trabalho do assistente social, mas a interveno no pode ficar restrita a

    esse procedimento. Entre outras atribuies dadas ao assistente social destaca-se a

    marcao de transporte social, a solicitao de camas hospitalares, a entrega de

    fraldas e vales transporte. Nos atendimentos com a equipe multidisciplinar durante a

    residncia, no foi raro situaes em que profissionais de outras reas sugeriram ao

    assistente social que se responsabilizasse por conseguir creches a crianas ou pela

    incluso de usurios no Programa Bolsa Famlia - PBF, reduzindo a interveno

    profissional a esses procedimentos. Quando isso ocorria era quase intil explicar

    que o trabalho do Servio Social no se resume a tais aes e que podemos fazer

    outros tipos de intervenes, pois, predominantemente, os profissionais no

    estavam interessados em saber e pensavam que as atribuies do assistente social

    estavam dadas. Mesmo assim identificou-se que possvel mostrar atravs da ao

    profissional que o Servio Social pode fazer mais, que temos conhecimento para

    intervir em diversas situaes que expressam a Questo Social, no intuito de

    fortalecer a autonomia dos usurios para que eles rompam com os processos de

    alienao e assujeitamento em suas vidas. Ou seja, ao solicitar uma cama hospitalar

    ou o transporte social os profissionais podem se vincular aos usurios e a partir

    disso intervir em outras situaes que so resultados da Questo Social em suas

    vidas. Por isso, durante a residncia reforou-se o entendimento de que preciso

    re-elaborar a demanda, utilizando essas situaes para propiciarmos reflexes

    crticas acerca da realidade social, a fim de que os usurios possam se tornar mais

    autnomos na conduo de suas vidas.

    . Atualmente, o proponente deste projeto docente do curso de Servio Social

    da UNIPAMPA que est em processo de reformulao do Projeto Poltico

    Pedaggico, mas as discusses esto ocorrendo lentamente, visto que apesar de

  • 26

    ser uma universidade pblica, os docentes acumulam uma srie de atividades, o que

    dificulta a discusso em torno de aspectos pedaggicos da formao. Nas reunies

    de equipe predominam discusses de cunho administrativo e logstico. Portanto, o

    presente estudo tambm relevante para a instituio na qual ele foi realizado,

    porque tanto seus resultados, como seu processo de construo contribuiram com

    subsdios para a reformulao do atual Projeto Poltico Pedaggico.

    O estudo justificou-se por ser relevante para a sociedade, para a categoria

    profissional e para a instituio em que ser realizado. Para a sociedade

    importante contar com um curso de graduao pblico e de qualidade; para a

    categoria interessante que as Universidades problematizem e busquem

    alternativas concretas de padronizar a formao que generalista, e, por isso,

    independentemente das peculiaridades regionais e de posicionamentos tericos e

    polticos de profissionais e universidades isoladas, devem ser graduados assistentes

    sociais com posicionamentos polticos e concepes tericas convergentes com a

    direo social assumida hegemonicamente pela categoria. J para a UNIPAMPA, o

    estudo importante medida que sua elaborao e seus resultados favorecem a

    melhoria do ensino da Questo Social e trazem subsdios para a reformulao do

    Projeto Poltico Pedaggico.

    Enfim, alguns pontos que at agora foram destacados so discutidos neste

    estudo, que composto por seis captulos. O primeiro apresenta a contextualizao

    do estudo e as questes introdutrias, o segundo trata da relao do trabalho com a

    questo social, da centralidade da questo social na formao em servio social e

    da educao a partir do materialismo histrico e dialtico. O terceiro aborda os

    fundamentos tericos utilizados pelos docentes da UNIPAMPA para apreender e

    ensinar a questo social, o quarto discorre sobre as estratgias e instrumentos

    utilizados pelos docentes no processo de ensino do objeto profissional e o quinto

    aborda o ensino da questo social a partir da relao terico-prtica. Para finalizar,

    no sexto captulo, apresentada a tese e algumas proposies para superar os

    desafios ao ensino da questo social na formao em servio social.

  • 27

    2 O ENSINO DA QUESTO SOCIAL NA FORMAO EM SERVIO SOCIAL

    O presente captulo versa sobre a Questo Social, a formao em Servio

    Social e aborda a educao na perspectiva marxista. A Questo Social decorrente

    da alienao do trabalho no modo de produo capitalista que produz contradio

    na relao capital-trabalho, desigualdades e resistncias. A formao em Servio

    Social, conforme as diretrizes da ABEPSS tm a Questo Social como eixo

    articulador central, por isso, sua problematizao deve perpassar todos os

    componentes curriculares com fins de garantir uma formao generalista que

    possibilite a apreenso do objeto profissional em suas dimenses universal, singular

    e particular. O ensino da Questo Social deve ser orientado pelo materialismo

    histrico e dialtico que subsidia a crtica aos processos sociais que contribuem para

    que a educao seja utilizada como instrumento para reproduzir a ideologia

    dominante. Tal concepo terica concebe que os processos educativos

    revolucionrios so aqueles que favoream os processos de contra-internalizao

    dessa ideologia, contribuindo com a transformao social.

    2.1 Questo Social, trabalho e formao em Servio Social

    O trabalho e a Questo Social so eixos articuladores que perpassam os

    ncleos de fundamentao da formao profissional em Servio Social. Estes so

    desdobrados em disciplinas que, articuladas, devem proporcionar o desenvolvimento

    das competncias terico-metodolgicas, tico-polticas e tcnico-operativas,

    indispensveis para um fazer profissional qualificado e comprometido com a direo

    social assumida hegemonicamente pelo Servio Social (ABEPSS, 1996).

    Nas diretrizes curriculares o trabalho compreendido a partir do vetor terico

    marxiano que o concebe como atividade vital oriunda do dispndio de energia fsica

    e mental, que visa produo de bens e servios, contribuindo para a reproduo

    da vida humana e societal. um processo no qual participam o homem e o meio

    fsico, em que o ser social controla e regula seu intercmbio com a natureza,

  • 28

    atuando sobre ela, transformando-a e modificando a si prprio (MARX; ENGELS,

    1989).

    O homem movimenta as foras naturais de seu corpo com o intuito de

    apoderar-se dos recursos da natureza, criando produtos teis humanidade. Alm

    de provocar transformaes sobre a natureza externa, o ser social modifica a sua

    prpria natureza, descobrindo e desenvolvendo o seu potencial humano. Portanto, o

    trabalho a relao dos homens com a natureza e entre si, na produo das

    condies necessrias a sua existncia (MARX; ENGELS, 1989).

    Sob a perspectiva marxiana, o homem objetiva-se atravs da produo e

    reproduo da vida material e humana, algo que se efetiva pelo trabalho. atravs

    dessa atividade que o indivduo se torna um ser social, diferenciando-se dos demais

    seres no humanos. Portanto, o trabalho ontolgico por ser fundante do ser social.

    Atravs do trabalho, o homem constri sua autodeterminao, dando origem

    sociabilidade, conscincia, universalidade e liberdade dos seres humanos

    em face aos outros seres da natureza. Dessa forma, o trabalho socializa o homem e

    possibilita que este desenvolva outras habilidades como a linguagem, visto que essa

    atividade no uma ao isolada, e sim social, produzida nas relaes humanas

    (MARX; ENGELS, 1989).

    No movimento relacional entre a natureza e o homem, este se humaniza e se

    constri como ser genrico social. O trabalho permite ao homem o domnio sobre a

    natureza, pois, alm de modific-la atravs da atividade direcionada a um fim, o

    homem transforma os objetos nela existentes em outros produtos com utilidade

    social (MARX; ENGELS, 1989). Atravs do trabalho, o homem no transforma

    apenas os recursos naturais do meio fsico, mas as suas potencialidades, que fazem

    parte de sua natureza humana, desenvolvendo a sua sociabilizao e a sua

    humanizao, que, tambm, so de extrema utilidade social, j que permitem a vida

    em sociedade.

    Nesse processo, em que h transformao tanto dos homens como da

    natureza, o trabalho considerado um elemento desencadeador de modificaes

    objetivas e subjetivas. Ele determina a autoconscincia e a autodeterminao,

    denota a capacidade racional libertadora do homem em tomar decises, superar

  • 29

    limites, concretizando suas escolhas nos produtos de seu trabalho (MARX;

    ENGELS, 1989).

    O trabalho produz objetos que no esto dados na natureza, mas so frutos

    da ao humana que utiliza propriedades do meio fsico, como ocorreu no momento

    histrico em que o homem descobriu o fogo atravs do intercmbio com

    propriedades que estavam presentes na natureza. Ao modificar o meio fsico,

    utilizando seus recursos para produzir fogo, o homem tambm se modificou, pois

    pde cozinhar seus alimentos e concretizar uma srie de outras finalidades, por

    exemplo, espantar animais predadores (BARROCO, 2001). Nessas transformaes,

    so produzidos valores que no existem nos objetos em si, pois as propriedades da

    natureza que possibilitaram a produo do fogo no tinham o mesmo valor antes de

    transformadas em fogo atravs da atividade humana. O homem, alm de objetos,

    produz relaes, se autoproduz e cria novas formas de sociabilidade.

    Quando o homem cria um produto atravs do trabalho, ele se reconhece no

    produto, pois este previamente imaginado em sua mente antes de ser

    transformado. Por isso, o trabalho uma atividade direcionada, atravs da qual o

    homem objetiva a sua intencionalidade e cria objetos com valores de uso para

    satisfazer as suas necessidades e as dos demais:

    [...] o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente sua construo antes de transform-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar a sua vontade (MARX; ENGELS, 1989, p. 202).

    Dessa forma, a projeo antecipada o diferencial do trabalho humano, que

    uma ao pela qual o homem se autoconstitui e se torna livre para colocar a

    natureza sua disposio. Enfim, o trabalho que o ser humano produz teleolgico,

    j que sua ao feita com conscincia e possui uma finalidade.

    Todo trabalho , de um lado, dispndio de fora humana de trabalho, no

    sentido fisiolgico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato,

  • 30

    cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, dispndio de

    fora humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e,

    nessa qualidade de trabalho til e concreto, produz valores de uso (MARX;

    ENGELS, 1989, p. 54).

    O trabalho possui duplo sentido, podendo ser concreto (work) e abstrato

    (labour). Na dimenso concreta, o trabalho genrico-social, j que uma atividade

    que produz valores de uso, capaz de satisfazer s necessidades humanas. A

    dimenso abstrata do trabalho est voltada para a realizao das atividades

    alienadas, esvaziadas de significado humano e social (MARX; ENGELS, 1989).

    O trabalho produz coisas reconhecidamente teis e necessrias, transforma o

    homem em ser social, proporcionando o seu autodesenvolvimento. Contudo, no

    modo de produo capitalista, o trabalho humano reduzido produo de

    mercadorias e valorizao do capital, adquirindo, portanto, um carter ambivalente

    Na sociedade capitalista, a posse privada dos meios de produo

    impossibilita que o trabalho se materialize como uma atividade emancipadora, e os

    trabalhadores ficam alienados do objeto que eles mesmos criam, da relao, da

    atividade consigo mesmo e com os outros. A partir do instante em que o trabalhador

    afastado dos meios de produo e, conseqentemente, do planejamento e do

    resultado de seu trabalho, essa ciso provoca uma relao de estranhamento que

    no permite que a riqueza produzida socialmente seja apropriada pelos seus

    produtores. O prprio indivduo transforma-se em objeto, e os objetos passam a

    valer como coisas (MARX, 2004).

    Segundo Marx (2004), so vrios os nveis de alienao que ocorrem durante

    os processos de trabalho, a do trabalhador em relao a si mesmo, com o produto

    do seu trabalho, assim como, em relao com os demais trabalhadores. A alienao

    do trabalhador, em relao ao produto, ocorre quando ele no tem alcance ao que

    ele mesmo produz e no se identifica no que faz. A alienao do trabalhador, em

    relao ao processo de produo, acontece quando o trabalhador no determina o

    que e como fazer; j a do trabalhador, em relao a si prprio, ocorre quando o

    trabalho se torna algo penoso, no possibilitando a realizao pessoal; a alienao

    do trabalhador com os demais trabalhadores ocorre quando os vnculos de

    cooperao e solidariedade so substitudos pela competitividade.

  • 31

    Marx (2004) afirma que quanto mais o trabalhador produz, menos ele vale,

    pois h uma supervalorizao do mundo das coisas e uma depreciao do mundo

    dos homens, estabelecendo-se uma relao reificada/coisificada entre os seres

    sociais, j que o vnculo social entre os homens se transforma em uma relao

    social entre as coisas. O trabalho produz mercadorias e faz do trabalhador uma

    mercadoria, o objeto que ele cria lhe aparece como um poder estranho, pois o

    produto adquire vida autnoma do produtor. O autor, assim, define o processo de

    alienao:

    [...] o trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho como a um objeto estranho. Com base nesse pressuposto, claro que quanto mais o trabalhador se esgota a si mesmo, mais poderoso se torna o mundo dos objetos, que ele cria diante de si, mais pobre ele fica na sua vida interior, menos pertence a si prprio [...] A alienao do trabalhador no seu produto significa no s que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existncia externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autnomo em oposio a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma fora hostil e antagnica (MARX, 2004, p.112).

    Desse modo, o produto do trabalho materializado no objeto, transformado

    em uma coisa fsica que adquire independncia em relao ao trabalhador, processo

    que denominado como a alienao do trabalho. Na sociedade capitalista, o

    trabalho aparece como algo estranho ao trabalhador, pois o produto do seu trabalho

    algo que no lhe pertence e apropriado pelos capitalistas que so os

    proprietrios dos meios de produo e controlam o sistema produtivo.

    O trabalho alienado possui vrias implicaes, aliena a natureza do homem e

    aliena o homem de si mesmo, de sua posio ativa, de sua atividade vital, de seu

    prprio corpo e de sua vida espiritual. Devido alienao do trabalho, o ser humano

    aliena-se do seu produto de trabalho e de outros seres humanos. Ou seja, o homem

    est alienado da sua vida genrica e de outros homens que tambm esto alienados

    da vida humana, ocorrendo o predomnio da concorrncia sobre a cooperao, do

    individual sobre o coletivo (MARX, 2004).

    No capitalismo, a liberdade de escolha dos trabalhadores restrita, pois eles

    ficam impossibilitados de pensar no seu processo de trabalho, assim como de

    apropriar-se dos frutos do mesmo. O trabalho a condio de subsistncia dos

  • 32

    trabalhadores e, nessa tica, os mesmos trabalham para sobreviver e sobrevivem

    para trabalhar. Esse processo ocorre porque o capitalista paga ao trabalhador um

    salrio que equivale ao montante necessrio para sua subsistncia, isto , o

    capitalista paga o necessrio para reproduzir a classe trabalhadora, o salrio um

    custo necessrio para a manuteno da fora de trabalho. Ao receberem uma

    remunerao que lhes confere somente o necessrio subsistncia, os

    trabalhadores deixam de viver como seres humanos livres, vivendo somente para o

    trabalho. As condies impostas pela sociedade capitalista classe trabalhadora

    fazem com que a mesma se reproduza de gerao para gerao, mantendo as

    condies para produo e reproduo da ordem social capitalista.

    Nos dois sentidos, portanto, o trabalhador torna-se servo do objeto; em primeiro lugar, pelo fato de receber um objeto de trabalho, isto , de receber trabalho; em seguida, pelo fato de receber meios de subsistncia. Desse modo, o objeto capacita-o para existir, primeiramente como trabalhador, em seguida, como sujeito fsico. A culminao de tal servido que ele s pode manter-se enquanto sujeito fsico enquanto trabalhador e s trabalhador enquanto sujeito fsico. (MARX, 2004, p. 160).

    Na sociedade capitalista, o trabalho no pertence ao trabalhador e sim ao

    burgus, que se apropria dos frutos do trabalho. Nesse contexto, o trabalhador

    reduzido a mais um elemento componente do processo produtivo. A criao de

    riqueza se d pela explorao do trabalhador, o trabalho humano se torna uma

    mercadoria, ocorrendo um movimento de alienao que tem origem na separao

    entre os trabalhadores e os produtos por eles realizados, o que decorrente da

    posse privada dos meios de produo pelos capitalistas.

    A contradio posta no capitalismo ntida, quanto mais as tecnologias ficam

    potentes, mais frgeis se tornam as condies de trabalho e de vida dos

    trabalhadores. Quanto mais eles produzem, maior a sua pobreza e a sua

    vulnerabilidade, pois no tm acesso abundncia produzida pelo seu trabalho. Por

    outro lado, os donos dos meios de produo ficam cada vez mais poderosos, j que

    no socializam a riqueza produzida socialmente pela classe trabalhadora.

    Claro, o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz a privao para os trabalhadores. Produz palcios, mas casebres para o trabalhador.

  • 33

    Produz beleza, mas deformidade para o trabalhador. Substitui o trabalho por mquinas, mas lana uma parte dos trabalhadores para um trabalho brbaro e transforma os outros em mquinas. Produz inteligncia, mas tambm produz estupidez e o cretinismo para os trabalhadores (MARX, 2004, p. 161).

    Dessa forma, a explorao do trabalho pelo capital produz a desigualdade

    social, o que origina a Questo Social. Esta se distingue de outras demandas sociais

    precedentes ordem burguesa, justamente pelo fato de que na sociedade

    capitalista, na mesma proporo em que se produz riqueza, se produz o pauperismo

    da classe trabalhadora (NETTO, 2001). A presso dos trabalhadores faz o

    contraponto as resistncias. A classe trabalhadora organizada, pressionando,

    obriga o Estado a assumir as demandas dessa classe como expresses Questo

    Social.

    Portanto no se pode conceber a Questo Social de modo fragmentado do

    trabalho, pois a explorao do trabalho no modo de produo capitalista um

    fenmeno que antecede e determina o surgimento a Questo Social. Por isso,

    trabalho e Questo Social so categorias transversais na formao em Servio

    Social e perpassam os contedos da totalidade das disciplinas, pois a compreenso

    da Questo Social exige o reconhecimento do trabalho em sua dimenso

    contraditria, por isso, as categorias trabalho e Questo Social so centrais nas

    novas diretrizes curriculares. Desse modo, contedos como trabalho do assistente

    social e a pobreza no Brasil, por exemplo, devem ser ensinados de modo articulado

    com os conceitos universais de Questo Social e de trabalho adotados pela

    categoria profissional e expressos na proposta do novo currculo.

    Os assistentes sociais defrontam-se, cotidianamente, com as mais variadas

    manifestaes da Questo Social, como a violncia, a pobreza, o desemprego, a

    falta de acesso sade, educao, ao trabalho, habitao, etc. A apreenso de

    situaes singulares como expresses do conflito entre capital e trabalho demarca a

    particularidade do Servio Social nos espaos scio-ocupacionais. Os assistentes

    sociais buscam o conhecimento de como os processos decorrentes da estrutura

    econmica da sociedade produzem a Questo Social e como se interpenetram e se

    manifestam, por exemplo, na vida dos idosos com direitos violados, dos moradores

    de ruas, das mulheres vtimas de violncia, e em outras situaes limites que se

  • 34

    apresentam aos assistentes sociais, bem como as manifestaes dos sujeitos para

    enfrent-las.

    A Questo Social emergiu do pauperismo da classe trabalhadora na Europa

    Ocidental, no perodo do surgimento da industrializao. As lutas dos trabalhadores

    obrigaram o Estado a assumir a responsabilidade pela mediao do conflito de

    classes (NETTO, 2001). A revolta dos trabalhadores deu visibilidade para as suas

    condies de vida, que eram precrias, e contribuiu para que elas fossem

    reconhecidas como expresses da Questo Social. Se a populao ficasse

    resignada frente s situaes de excluso impostas pelo sistema, no ocorreria a

    incorporao do pauperismo da classe trabalhadora na agenda pblica. Para

    Iamamoto (2001), um problema social torna-se efetivamente Questo Social quando

    e assumido politicamente; as presses da classe trabalhadora organizada foram a

    sociedade a introduzir os dilemas dessa classe na pauta de atuao dos rgos

    pblicos.

    No entanto, essas incorporaes intervm nas expresses da Questo Social,

    e no na Questo Social propriamente dita. Para intervir sobre a Questo Social, de

    fato, seria necessrio modificar a estrutura econmica da sociedade, modificando a

    ordem social capitalista. Cabe ressaltar, aqui, a importncia das pequenas vitrias

    do trabalho sobre o capital, e dos momentos histricos em que ocorre o

    reconhecimento das demandas da classe trabalhadora como demanda pblica, pois,

    no movimento de avanos e recuos, a classe trabalhadora adquire conscincia de

    classe. Para transformar a realidade, as pequenas conquistas no podem ser

    ignoradas, pois e no processo de luta organizada que a classe trabalhadora

    reformula suas estratgias de enfrentamento, fortalecendo sua resistncia diante da

    sociedade do capital, amadurecendo politicamente como classe social homognea.

    O texto a seguir e ilustrativo:

    [...] as revolues proletrias como as do sculo dezenove, se criticam constantemente a si prprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomea-lo outra vez, escarnecem com impiedosa conscincia as deficincias, fraquezas e misrias de seus primeiros esforos, parecem derrubar seu adversrio apenas para que este possa retirar da terra novas foras e erguer-se novamente, agigantando, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus prprios objetivos at que se cria uma situao que torna impossvel

  • 35

    qualquer retrocesso e na qual as prprias condies gritam (MARX, 1978, p. 21).

    A conscincia de classe adquirida em um processo de lutas concretas em

    que as manifestaes, inicialmente limitadas s situaes especificas, expandem-se

    com base em uma identidade de interesses, at chegar a um patamar em que a

    classe trabalhadora identifica a existncia de anseios comuns a todos os

    trabalhadores (BOTTOMORE, 2001). Nesses movimentos progressivos e

    regressivos, a classe trabalhadora rev suas estratgias de luta, adquire maturidade

    politica at criar um instrumento adequado, sob a forma de partido poltico

    (BOTTOMORE, 2001, p. 77). Nesse cenrio de confronto entre trabalhadores e

    burgueses, a Questo Social inserida na agenda estatal como uma questo

    pblica a ser resolvida, pois, caso contrrio, a classe hegemnica (burguesia), no

    aceitaria ceder.

    Contudo, a supresso da Questo Social s possvel com a extino da

    sociedade capitalista (NETTO, 2001). Sendo assim, quando o Estado incorpora a

    demanda da classe trabalhadora ocorre uma interveno no efeito, mas no na

    origem do problema, pois a explorao do trabalho pelo capital a raiz da Questo

    Social e, para transformar essa realidade, e preciso modificar o sistema que a

    origina.

    A Questo Social manifesta a relao dialtica entre a estrutura e a ao em

    que os sujeitos se organizam politicamente, transformando as necessidades sociais

    em questes, com vistas a incorpor-las na agenda pblica. necessrio

    problematizar sobre as peculiaridades da Questo Social na contemporaneidade,

    como a fragilizao da classe trabalhadora, em um contexto no qual a luta de

    classes e ocultada pela classe dominante e, por isso, no esta em debate

    (PEREIRA, 2001).

    A classe trabalhadora encontra-se estratificada, dividida entre trabalhadores

    qualificados, inseridos nas relaes de trabalho formal e os desqualificados que

    realizam trabalhos precrios. Essa fragmentao da classe trabalhadora

    (trabalhadores do setor formal-informal, qualificados-desqualificados, estveis-

    precrios, etc.) impe dificuldades organizao coletiva. Nesse contexto em que o

    poder de presso da classe trabalhadora esta vulnerabilizado, o Estado no

  • 36

    incorpora a Questo Social na agenda pblica. Dessa forma, ocorre uma

    despolitizao no trato da Questo Social, pois o pauperismo da populao

    trabalhadora deixa de ser visualizado como uma expresso do conflito de classes

    pela sociedade civil, e as instituies que atuam com o social tratam as expresses

    da Questo Social desarticuladas de sua origem, ou seja, da relao capital-

    trabalho.

    No entanto, hegemonicamente a categoria profissional dos assistentes sociais

    reconhece o pauperismo de seus usurios como um desdobramento da

    desigualdade social oriunda da relao de explorao imposta pela estrutura

    econmica da sociedade. Sendo assim, tais profissionais devem buscar a politizao

    no enfrentamento das situaes que se apresentam durante o desenvolvimento do

    seu trabalho, contribuindo ou estimulando os usurios, assim como seus colegas,

    conscientizao8 quanto origem dos processos sociais que culminam na excluso

    da populao que alvo dos servios institucionais.

    As abordagens da mdia relacionadas s demandas sociais, como a fome, o

    desemprego, o trabalho infantil e outras situaes que denotam as fraturas postas

    no cotidiano da sociedade brasileira, jamais enfocam tais situaes limites como

    sendo decorrentes da relao capital-trabalho. Nas instituies em que trabalham os

    assistentes sociais essa compreenso fragmentada da Questo Social e

    reproduzida, e, em decorrncia disso, as propostas organizacionais se propem a

    atuar nos efeitos e no na relao geradora da demanda.

    Portanto, como o Servio Social, tambm, atua nos espaos institucionais criados para atender de forma particularizada as expresses que emergem da Questo Social, estas expresses se tornam demandas que se constituem no objeto institucional que vo permear a configurao do objeto Questo Social no espao institucional a partir da relao entre a demanda institucional e a prpria Questo Social em si (TURCK, 2008, p. 09).

    Na contemporaneidade, as instituies no atuam com a Questo Social, mas

    sim com situaes que so expresses da mesma. As instituies no visualizam

    8 A conscientizao entendida como um processo continuo de compreenso critica da realidade.

    Isto , a partir da realidade existencial que se tem, passa-se a uma percepo ampliada dessa realidade; estabelecem-se relaes de causa e efeito e formulam-se juzos e criticas que direcionam a formulao de atitudes para seu enfrentamento (SOUZA, 2004, p.. 89-90).

  • 37

    suas demandas como consequncia da relao capital-trabalho e no tm como

    finalidade a mudana estrutural. Contrariamente, a categoria profissional dos

    assistentes sociais objetiva modificao da ordem social estabelecida.

    Algumas instituies intervm na vida de adolescentes, outras na vida dos

    idosos com direitos violados, h instituies que trabalham com mulheres vtimas de

    violncia. A proposta de interveno dos assistentes sociais supera os objetivos e a

    atuao da instituio, pois tem a finalidade de causar impactos na relao capita-

    trabalho, na Questo Social. Esta, como j foi dito, se constitui como o objeto de

    trabalho da categoria profissional e se manifesta na vida dessa populao, que

    alvo dos servios institucionais.

    Sabemos que as sequelas da Questo Social permeiam a vida das classes subalternas destitudas de poder, trabalho, e informao. Sabemos tambm que em nossa pratica cotidiana a relao com o real e uma relao com a singularidade expressa nas diferentes situaes com que trabalhamos. E, ai se colocam nossos limites e nossas possibilidades. Limites de vrias ordens, mas, sobretudo limites de ordem estrutural (YAZBEK, 2001, p. 39).

    Desse modo, os assistentes sociais colocam sua fora de trabalho em ao

    com a inteno de contribuir para a transformao de diversas situaes singulares

    que se expressam de formas distintas. No entanto, visualizam essas situaes

    dentro de uma totalidade em que as relaes de produo determinam as relaes

    sociais. A relao capital-trabalho manifestada nessas situaes singulares, que

    so expresses da Questo Social. O objeto de trabalho dos assistentes sociais no

    se resume a essas situaes fragmentadas, pois abrange a totalidade

    historicamente determinada pelo modo de produo capitalista.

    Os processos sociais que geram situaes singulares que manifestam a

    Questo Social tem origem nas decises da burguesia, mas seus reflexos se

    materializam nas condies de vida dos trabalhadores. Ou seja, quando um

    capitalista decide investir em capital constante, reduzindo o nmero de

    trabalhadores em sua indstria, essa deciso ocorre no centro da vida social, sendo

    desencadeada pela classe que domina o modo de produo, mas seus reflexos so

    visveis na periferia da vida social, no cotidiano da classe trabalhadora. Os

    trabalhadores perdem seu nico meio de subsistncia, que a venda de sua fora

  • 38

    de trabalho, pois no encontra lugar no mercado formal de trabalho. A classe

    trabalhadora , majoritariamente, a populao alvo dos assistentes sociais, que

    devem visualizar e direcionar a interveno aos processos desencadeados no centro

    da vida social e no exclusivamente na periferia onde so manifestados os efeitos

    da Questo Social, mas no so encontradas suas causas. Tanto o centro da vida

    social como a periferia contm expresses da realidade em movimento. Por isso,

    importante que os assistentes sociais faam mediaes no s na perspectiva da

    gnese, onde a Questo Social produzida, mas tambm onde ela se expressa

    como refrao.

    O agravamento da Questo Social decorrente da reestruturao produtiva

    tem gerado um expressivo aumento na procura dos servios sociais pblicos, que

    esto sendo reduzidos pelas polticas neoliberais. Isso gera um cenrio de total

    abandono da classe trabalhadora, que, alm de sofrer com a falta de emprego

    formal, deixa de ter a proteo social por intermdio das polticas pblicas

    universais, ocorrendo o exacerbamento da Questo Social e a ampliao de suas

    expresses (IAMAMOTO, 2001).

    Comparando ao incio do processo de desenvolvimento e consolidao do

    capitalismo, a Questo Social adquire novas e mltiplas formas de expresso na

    contemporaneidade. No entanto, a sua base produtora permanece sendo as

    relaes estabelecidas entre os proprietrios e no proprietrios dos meios de

    produo.

    Mesmo existindo novas manifestaes da Questo Social, no pode ser

    afirmado que h uma nova Questo Social. Para Pastorini (2004), falar de uma velha

    em oposio a uma nova Questo Social no ajuda na compreenso da Questo

    Social na atualidade. Embora esse fenmeno se expresse de varias formas, ele no

    perdeu os traos essenciais e constitutivos de sua origem.

    A Questo Social contempornea nas sociedades capitalistas mantm a caracterstica de ser uma expresso concreta das contradies e antagonismos presentes nas relaes entre as classes, e entre estas e o Estado. As relaes capital-trabalho, no entanto, no so invariveis, como tampouco o a forma de organizao do capital e do trabalho: por isso, concordamos com a ideia de que existem novidades nas manifestaes da Questo Social, o que muito diferente de afirmar que a Questo Social

  • 39

    outra, j que isso pressuporia afirmar que a Questo Social anterior foi resolvida e/ou superada (PASTORINI, 2004, p. 14-15).

    Logo, existem diferentes verses da Questo Social, ao longo da histria do

    capitalismo, e diferentes formas de dar conta dela, como salienta Pastorini (2004). A

    autora afirma que essas formas sempre contm os traos de manuteno da ordem

    estabelecida que reproduzem os antagonismos e as contradies capitalistas.

    A referida autora refora que a realidade precisa ser apreendida a partir de

    uma perspectiva de totalidade, que est em movimento. Somente a partir de cortes

    histricos, possvel entender esse movimento, mas no pensando linearmente no

    passado e no futuro, no novo e no velho, mas apreender a histria a partir de uma

    relao dialtica composta por continuidades e rupturas.

    Pastorini (2004) critica a insistncia de alguns autores em afirmar a existncia

    de uma nova Questo Social. Isso consiste em buscar o novo, deixando de lado as

    caractersticas que acompanharam a sociedade capitalista desde o seu surgimento,

    no explicando o porqu dessa permanncia. Concorda-se com a autora que a

    Questo Social no algo novo e que a discusso sobre esse fenmeno e sobre

    suas novas expresses de suma relevncia para compreenso das respostas

    engendradas na realidade para fazer frente as suas manifestaes.

    Em decorrncia da reestruturao capitalista ocorreram mudanas nas formas

    de gesto do processo de trabalho e da Questo Social. Tais mudanas

    repercutiram em uma maior complexificao da classe trabalhadora que se tornou

    heterognea. Isso levou alguns tericos referir que a classe trabalhadora deixou de

    existir. Essas teses negam a centralidade do trabalho e consequentemente o papel

    de agente transformador do modo de produo capitalista da classe trabalhadora.

    Logo, tais teses negam s possibilidades de resistncia inerentes as expresses da

    Questo Social e alinham-se as perspectivas que defendem a existncia de uma

    nova Questo Social. O Servio Social, hegemonicamente, no converge com

    essas teses, pois para a categoria profissional dos assistentes sociais a contradio

    representada pela tomada de posio pol