Jossi Borges - Estranhas Historias de Amor [1]

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  • 8/14/2019 Jossi Borges - Estranhas Historias de Amor [1]

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    Estranhas Histrias de Amor

    Antologia do amor sobrenatural

    Amor & Livroswww.amorelivros.justtech.com.br

    Estranhas Histrias de Amor, Copyright 2009

    Jossi Borges

    Publicao dezembro de 2009

    Arte da Capa: Amor&Livros Digital

    Imagens: Deviantart.com

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    Caro Leitor:

    Na antologia que compem este livro, h os seguintes contos:

    O ESTRANHOUm amor to profundo e alucinante pode transformar umapessoa? Rodrigo sentiu isso na pele, ao tornar-se para aesposa um homem completamente estranho...

    ANGLICAUma moa moderna, apaixonada pelos mistrios do AntigoEgito, de repente se v transportada para uma outra poca eapaixona-se por um homem que no pode compartilhar suavida com ela. Esse mistrio que ela precisa desvendar leva-aao encontro de outro homem, esse pertence sua realidade...Mas ela conseguir esquecer o prncipe egpcio e livrar-se damaldio que a faz viajar no tempo, mesmo sem querer?

    A ESCOLHIDANbia nunca pensou que sua vida medocre, como ela dizia,iria passar por uma transformao to intensa... e que ela iriaconhecer um homem to estranho, misterioso e fascinantequanto perigoso. Um homem que ia por em risco sua vida e odestino de toda a raa humana.

    MEMRIAS PR-MORTAISPodemos guardar lembrana de nossa vida pr-mortal? possvel rever algum que amamos e que conhecemos antes davida fsica? Ou amar algum cujo destino jamais seentrelaar ao nosso?

    Neste exemplar para degustao, voc vai ler o conto

    Anglica. Esperamos que aprecie!

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    ANGLICA

    I

    Meu amor impossvel...Eu sou, na dor que me avassala,O transeunte perdido na tormenta,O vento ulula, a chuva aoita,O raio estala,

    E no h uma janela aberta,E no h uma porta amiga,

    Um clido refgioQue me acolha e aquea,Que me distraia e consoleDo rigor da tormenta.

    O nico refgio serias tu,E tu ests para almDa muralha instransponvelQue marca os limites do possvel.

    Helena Kolody, Canto do Amor Impossvel

    nglica deu um passo frente, quando a fila de alunosafastou-se para a sala ao lado. Foi ento que o viu. O seuantigo professor de Histria da faculdade, Nacibe. Ele

    estava parado diante de um pster grande com a fotografia deTuthankamon.

    De certa forma, o perfil de Nacibe e a mscara faranica

    combinavam entre si, pois Nacibe, muito branco, cabelos deum negro azeviche, ligeiramente longos, barba cerrada meiogrisalha, parecia mais um sacerdote antigo. No a viu.

    Anglica, um pouco embaraada, no sabia seadiantava-se e cumprimentava o antigo professor, ou saa...Nacibe nunca fora de muitas prosas, e era provvel que nemlembrasse mais dela.

    A

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    Ele voltou-se e olhou-a um momento... Ela ficou imvel,

    ansiosa, esperando uma palavra... Mas o professor,aparentemente, no a vira... olhara-a por um instante, depoisvirou-se, os olhos perdidos entre o povo que aflua pelos

    corredores do museu, depois voltou-lhe as costas,continuando a andar para as prximas salas.

    Ela ficou parada, imvel. Seria uma bobagem falar comNacibe, agora? Sempre dera-se bem com ele, na sala deaula... Mesmo quando se reuniam, com outros colegas deturma, para irem a um barzinho conhecido, em um ou outrofim de semana, Nacibe era sempre um bom amigo... Alegre,brincalho, todo ouvidos, se bem que um tanto rpido emsuas maneiras, brusco at... Mas um bom ouvinte, bom

    conselheiro. Lembrou-se de algumas vezes em que, perdidaentre os problemas da famlia e as dificuldades do cursouniversitrio, ela conversara com ele. E ele nunca adecepcionara, sempre tinha uma opinio a dar, uma crticaconstrutiva, uma palavra de consolo ou de apoio.

    Quando terminou o curso, manteve a amizade com oprofessor, convidando-o para um churrasco de fim de semanana casa dos pais, juntamente com mais cinco ou seis colegas.Lembrou-se de que sua me, fazendo uma cara

    maliciosamente risonha, dissera, entre risinhos:

    Anglica, minha filha... Que histria essa com oprofessor, h? Algo est... rolando entre vocs? Filha, vocsabe... Sabe que pode contar comigo, no sabe? Com a minhadiscrio, quero dizer. Seu pai talvez no ache uma coisalegal, afinal... Nacibe uns quinze anos mais velho que voc.Mas eu, bom... Eu j vivi tanto e vi tanta coisa, que no possodizer, no tenho como lhe dizer esse bom pra voc, esseno.... S quero que...

    Ela a interrompera, com um gesto brusco, mas aindaassim riu-se um pouco:

    Me, no sei... Sinceramente. No sei se h algo entreeu e o professor... Bom, me parece que ele um solteiroconvicto, e no me parece ter... hum... se interessado

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    afetivamente por mim. D pra voc entender? Mas eu no vounegar que o acho atraente.

    A me sorrira, compreensiva como todas as mes. E lhedera a sua bno, se fosse o caso.

    Mas no fora... Pois apesar de Anglica sentir,realmente, certa atrao por Nacibe, ele era quase como umvelho tio para ela. Mantinha uma distncia bem ntida dosalunos e ex-alunos, comportando-se com notvel seriedadepara um bomio da sua laia. E depois de mais algumasvisitas e comemoraes, no se viram mais.

    Passaram-se quase dois anos, desde o ltimo encontrodeles, na vspera do Natal de 2005. Quando ela soube

    notcias dele, foi para descobrir que ele tinha se casado. Maisum ano, e Samara, a amiga com quem agora dividia oapartamento, contou que ele estava se separando.

    E agora, ali estava ele... E ela, Anglica, confusa,perdida. Nacibe talvez no a pudesse ajudar, talvez ningumpudesse... Mas ele sempre fora to correto, to racional, to

    justo em suas observaes. Lembrou-se de quantas vezesconversara com ele sobre assuntos que pouco tinham a vercom a matria que ele ensinava, assuntos que a fascinavam

    na poca, como o ocultismo e as sociedades secretas,fenmenos paranormais, misticismo. Coisas que os demaiscolegas abominavam e dos quais tiravam o maior sarro. Masque ele encarava sempre com seriedade e para os quais, emgeral, tinha sempre uma opinio lgica ou pelo menos,coerente.

    Ela mordeu os lbios, impaciente com sua prpriaindeciso, e finalmente, achou que era melhor ir embora.Seus problemas no interessariam a mais ningum, exceto a

    ela prpria ou talvez, seus pais. Mas eles estavam longe,agora, em uma viagem de negcios, e ela s podia contar como apoio de Samara. Ela arrepiou-se ante a idia de contar oque se passava com ela amiga... Definitivamente, Samarano.

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    Deu alguns passos em direo porta de sada, quandoouviu a voz masculina s suas costas.

    Anglica? Anglica!

    Voltou-se e deu com o rosto corado do professor Nacibe.

    Ol, professor. Ah... Puxa, um prazer rev-lo.

    Nacibe sorriu de orelha a orelha.

    ...Eles foram a um caf prximo, onde s vezes nos dias

    de inverno costumavam ir, poca da faculdade. O velho ebom Nacibe tinha o mesmo rosto de mrmore, e os anos que

    passaram no pareciam t-lo afetado muito. Alguns ps-de-galinha a mais, em torno dos olhos escuros, mais fiosbrancos na barba e nos cabelos escuros, talvez menos energianos movimentos... Mas era algo sutil. De modo geral, elecontinuava o mesmo homem atraente, de intelecto brilhante,o professor de Histria, o escritor, o arquelogo, que tantoencantara as garotas na poca em que Anglica estudara, eque de certa forma, tambm a encantara.

    Agora, porm, ela j no era mais to mocinha... vinte e

    trs anos e ela j se sentia uma velha. Talvez para algumaspessoas o decorrer do tempo fosse diferente... Para Nacibe,por exemplo, o tempo passava com vagar. Para ela... Para ela,que estava transpondo os limiares de Cronos de uma formato esdrxula... Talvez um ano correspondesse a cinco.

    Voc no est me contando tudo Tornou ele,tomando mais um gole do seu caf expresso, e fitando-a comolhos brilhantes. Voc me falou de sua vida... Contousobre seus planos em fazer o curso graduao em

    arqueologia, o que acho timo... At sobre o ltimonamorado...

    Ele deu um leve sorriso e meneou a cabea.

    Um cara sem um pingo de discernimento. Onde j seviu deixar escapar uma garota linda como voc?

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    Ela deu um risinho nervoso, e disse:

    Professor, no me deixe sem graa. Ela passou asmos pelos cabelos que iam at os ombros, castanho-escuros

    com leves reflexos cor de mel.

    S estou sendo sincero. Voc deve saber que eusempre te achei linda ele continuou, naquela entonao quea deixou de sobreaviso. O que significava aquilo? Nacibe...Aps tantos anos... Ia passar-lhe uma cantada?

    Ela continuou calada. Ele prosseguiu, com uma vozmais suave:

    Anglica, voc falou muitas coisas, mas no dissenada. O principal. Alguma coisa que a est deixandopreocupada, e que voc est dando voltas e voltas, e noconsegue desembuchar. Vai, fala a... O que estacontecendo, mocinha? Sei que est precisando desabafarcom algum. Por que no comigo?

    Ela fixou nele um olhar levemente irritado. Mocinha?Era como costumava cham-la, antigamente. Mas ela no sesentia mais nenhuma adolescente. Mesmo assim, o simples

    fato de estar ali, conversando com ele, ouvindo-lhe a vozquente, amistosa, gentil, deixou-a mais vontade. Sabia quepodia confiar nele... Ele sempre fora mais que um amigo, umprofessor. Era um confidente. E ela respirou fundo, pararesponder:

    Sim, voc est certo, Nacibe. Eu estou mesmoprecisando desabafar com algum... Trata-se de... umproblema. Um... fenmeno. Uma coisa que est meacontecendo e que no sei como explicar... ou classificar.

    Ele semicerrou os olhos, tomou mais um gole do caf, eapenas meneou a cabea, incentivando-a a continuar.

    algo fantstico. Ela prosseguiu Eu no sabiase era real... Parecia apenas um produto de minhaimaginao... Achei que talvez estivesse tendo um surto. Mas

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    tenho uma prova material de que, aquilo tudo que passei,aconteceu de fato. Foi real...

    Sim... O que aconteceu com voc, Anglica?

    Ela abriu a bolsa e tirou um pequeno saquinho develudo. Abriu-o e exps um anel, largo mas provavelmentefeminino, com o formato de um escaravelho. Era dourado e asasas do besouro eram formadas por uma grande esmeralda,delicadamente lapidada. Nacibe tomou a jia e examinou-acuidadosamente, soltando um pequeno grunhido deadmirao.

    lindo. Como o conseguiu?

    Eis o mistrio, professor.

    Mistrio? Ele a olhou, enquanto acariciava comdedos apaixonados a jia de beleza inigualvel.

    O que voc acha disso a? Ela apontou para o anel.

    Isso me parece... uma antiga jia egpcia. Com oescaravelho solar... No posso alegar nada, preciso umexame minucioso, mas pelo estilo e tcnica, parece muito

    antigo, embora no haja nada aqui que denoteenvelhecimento... claro que existem muitas imitaes, masesse aqui... est muito, muito perfeito.

    Pois ... Eu acho que uma verdadeira jia egpcia.

    E onde... Voc o conseguiu? Perguntou Nacibe,franzindo a testa.

    No sei, professor... essa a pura verdade. Ele...

    apareceu... na minha mo.

    Nacibe encarou-a, incrdulo. Como ela fora idiota...Como pode contar aquilo a ele? Ou a tacharia de louca... Oude ladra. E sem imaginao, ainda por cima.

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    Em resposta, ele apenas riu-se, seu rosto iluminando-sesubitamente. Os olhos negros inteligentes pareciam abrir-semais diante do reconhecimento.

    Voc sempre teve senso de humor, minha querida.

    Sim, sei... Ele apareceu na sua mo... Foi um presente? Osolhos dele se entrefecharam, o sorriso foi desaparecendo.

    Talvez ele pensasse outras coisas... que tambm no eramverdadeiras.

    Ela meneou vigorosamente a cabea e mordeu os lbios.Como explicar aquilo? Como continuar aquela conversa? Jestava arrependida pela idia absurda de contar tudo aoantigo professor... Mesmo se tivessem sido amantes... Setivessem sido, sabe-se l, noivos, namorados. Aquele tipo de

    histria no se encaixava com a realidade, com nenhumarealidade.

    No, Nacibe. E acho que... No vai adiantar nada seeu lhe contar. Voc no acreditaria em nada...

    Ei, espere um pouco... Calma, Anglica. Vamos porpartes... Primeiro me conte sua histria. Talvez se desabafar,sinta-se mais vontade. Aconteceu alguma coisa com voc,foi? Algo que a deixou transtornada. Eu sei disso. E depois,

    entra essa jia. Por que no comea do incio?

    Ela respirou fundo e meneou a cabea. Era melhorcomear.

    II

    esde pequena ela sempre se interessara por coisas eculturas antigas, e junto desse interesse, veio acuriosidade pelo mstico, pelo sobrenatural, desde que

    lera alguns livros de Paul Brunton sobre as sociedadesiniciticas do Antigo Egito... Depois, outras sociedadesesotricas e msticas da Idade Mdia. Mas o Antigo Egitosuperava tudo o mais. Ela assistira o filme Clepatra duasvezes, bem como A Maldio da Mmia... Lera todos oslivros possveis sobre a arte egpcia, sobre as pirmides, sobreos pretensos labirintos e cmaras secretas que jaziam nos

    D

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    subterrneos das pirmides... Estudara casos dereencarnao de pessoas, que contavam em detalhes a vidapassada no velho Egito... e sobre a maldio de

    Tuthankamon? Lera e assistira a todos os documentriospossveis... Fora por essa paixo que fizera o curso de

    Histria. E agora pretendia fazer graduao em Arqueologia embora, claro, no Brasil essa cincia fosse dirigida paraoutras culturas, e houvesse poucas chances de ela vir aestudar a cultura egpcia.

    Mas toda essa paixo sempre teve os seus limites bemdefinidos e isso no interferira nunca em sua vida pessoal.

    At pouco tempo atrs...

    Ela, porem, tinha certeza: O que estava lhe acontecendono era produto da sua cabea, to cheia de Egito Antigo. Eraoutra coisa, fantstica, inconcebvel talvez... Mas aquele anelera a prova. Tinha de ser.

    Tudo aquilo comeou h cinco ou seis meses atrs,quando visitara com Samara a Exposio sobre o Egito Antigono Museu Oscar Niemeyer, promovida por uma equipe depesquisadores brasileiros que voltara h pouco do Cairo.

    Est claro que ela no podia deixar de ir, e levou aamiga Samara.

    Era um mundo inteiro de coisas interessantes, umafesta para seus olhos sequiosos. Fotos grandes tiradas doMuseu do Cairo, esfinges, vasos de alabastro, bano, ouro,prata, cermica. Objetos femininos como esptulas, cofres epentes de faiana e marfim, estojos delicados de faianaesmaltados e decorados com esmeraldas ou coral, colarescom ricas incrustaes de lpis-lazli, rubis, esmeraldas...

    Espelhos e vidros de perfume, braceletes de slex, osso, chifree metais... reprodues de desenhos de tumbas. Estatuetas...Coisas maravilhosas, que a deixaram completamentefascinada.

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    Ela passava diante das vitrines e suas mos acariciavamo vidro, era quase como se sentisse a textura de cada umdaqueles objetos.

    O que mais a impressionou, contudo, estava em outra

    sala. Um sarcfago vazio que viera de So Paulo, junto comos demais objetos e que tinha a tampa com o rosto do faramorto. Uma sensao esquisita no ar... Anglica sentiu-seligeiramente tonta, quando se aproximou da vitrine, assimcomo se outra atmosfera impregnasse o local naqueleinstante, em torno dela e daquela vitrine.

    Por um momento muito rpido tudo pareceu sumir aoredor dela, at o rosto de Samara, que ria e gesticulava,apontando para o sarcfago. Tudo se esfumou... mas logo

    tudo voltou ao foco.Ela olhou primeiro para a plaqueta explicativa sobre o

    vidro:

    SECHEM-CHET ou OREMHEBPrncipe da III dinastia, 2572 a. C.

    Depois olhou para o rosto da tampa... Era umaescultura em cedro da Sria, dizia a placa, recoberto comfolhas de ouro e prata. Era lindo. Parecia um homem ainda

    jovem, tinha os traos suaves, lbios grossos, nariz reto,zigomas levemente salientes e olhos de obsidiana, com umaexpresso ao mesmo tempo firme e triste. No tinha aquele arprepotente, majestosamente desdenhoso de outros nobres,mas um ar altivo e gentil. Anglica estremeceu ao olhar paraaquele rosto. Foi como se revisse algum que conhecessemuito bem... E num relance luminoso, ela sentiu umaestranha fascinao pairando sobre aquele sarcfago, sobreaquele rosto belo, belo tanto na obra de arte quanto nostraos humanos que reproduziam.

    Desejou poder toc-lo, senti-lo sob os dedos, o contornodos traos gravados na madeira como se fossem os de umapessoa viva... Aquele rosto sob a vitrine parecia fit-la. Elasentia, sim, uma emoo diferente ao olhar para ele, mas nopensou em reencarnao, em vidas anteriores, no, no era

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    como se o tivesse conhecido no passado. Era como se oestivesse conhecendo naquele exato momento.

    Quando deixou o museu, procurou esquecer tudoaquilo, uma coisa da sua cabea impressionvel, como ela

    mesma classificou a sensao, ao explicar a Samara.Entretanto, no pode esquecer. O que estava se passandocom ela? Uma bobagem romntica? Um... encantamento? Umresto da velha maldio dos faras...? Ela no soube dizer.

    O segundo episdio deu-se no seu apartamento, quandotomava banho. Era uma noite de inverno, ela tinha chegadoda empresa de informtica, onde trabalhava, cansadssima elouca para ir para a cama. Ligara o chuveiro e se esfregava,tiritando de frio, quando percebeu que o frio diminura

    bruscamente, como se a temperatura subisse bruscamente.

    Ela abriu mais o chuveiro, pensando que talvezhouvesse algum problema com ele. Estranho, ela pensou. Noinverno aquele banheiro era sempre horrivelmente gelado.

    O calor continuou, aumentando at tornar-se aflitivo...ento ela sentiu um cheiro, um misterioso perfume que

    jamais sentira antes, bem diferente de todos os perfumes quetinha nos frascos de cosmticos. Era como se algum tivesse

    derramado aquele perfume ali, algo que trescalava a cravo,incenso e almscar e a outros perfumes desconhecidos. Elaquis desligar o chuveiro e ver o que era, quando de novo tevea sensao de vertigem, de estar em outro lugar... E ouviualguma coisa diferente tambm. Uma espcie de suavemurmurejar de vozes femininas, como se viessem de muitolonge e at mesmo uma msica, uns leves acordes, muitovagos como se fossem empurrados pelo vento...

    Ela sentiu o sangue gelando-se nas suas veias. Desligou

    o chuveiro e prestou ateno, e quanto mais atentava paraaquilo, mais ntidos se tornavam os sons e cheiros. Quandoresolveu abrir a porta do boxe e chamar Samara, ela entocomeou a ver.

    Atravs do vapor da gua, que tapava o banheiro, ela viualgumas formas femininas, que se agitavam em uma alegre

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    conversao, rindo algumas, outras cantarolando, outras ematitudes mais srias. Algumas sentadas, outras de p, outrassegurando nas mos largos leques de plumas, que agitavamlentamente... Ela no podia distinguir com nitidez, maspercebeu que as tais formas no estavam no seu banheiro, no

    pequeno e apertado banheiro do apartamento. Piscou comfora e olhou ao fundo.

    Por trs delas havia um vasto salo sustentado porenormes colunas de pedra frisada e o cho que pisavamparecia mrmore branco, enquanto nos lados erguiam-segrandes vasos decorados com folhagens de um verdeesmaecido. As mulheres, ela notou, usavam tnicas leves,algumas presas nos ombros por pedras coloridas, outrastinham os seios nus e s usavam uma espcie de saiote

    curto, com abertura lateral. Pareciam-se muito, umas com asoutras, por causa da pele morena e o cabelo, que era negro,de franja e ia-lhes at os ombros. Num instante elacompreendeu tudo... Eram egpcias!

    Ela sentiu faltar-lhe o ar... Arquejou, sufocada, aterrada.Aquilo era incrvel... Ela estava em um banheiro egpcio...

    Foi rpido. Quando pensou em gritar e sair correndo,tudo aquilo sumiu. As vozes foram se afastando e ficando

    cada vez menos audveis. As formas foram ficando vaporosas,at sumirem. O perfume desapareceu e o frio de invernovoltou.

    Ela ficou assustada. No contou nada a Samara,temendo ser chamada de maluca.

    Dali a uma semana, deu-se o segundo episdio. Foidurante a noite, e ela no sabia dizer se fora sonho ourealidade, aquele tipo de realidade que j experimentara no

    banheiro...

    Estava dormindo, e quando acordou, naquele estadointermedirio entre sono e viglia, sentiu-se transportadapara aquele outro mundo. O velho Egito. Estava em umquarto que no era o seu.

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    Uma moa de pele azeitonada, cabeleira negra arranjadaem inmeras tranas, aproximou-se de sua cama com umpequeno cofre nas mos. Abriu-o e tirou de dentro o anel deescaravelho, entregando-o a ela, com algumas palavras:

    Da parte de Sua Alteza Real.

    Ela, meio que em transe, aceitou a bonita jia,colocando-a no dedo anular da mo esquerda. Depois, tudovoltou a ser confuso em sua mente... Outros sonhos... Equando acordou na manh seguinte, estava realmente com oanel no dedo.

    O terceiro episdio deu-se na rua, certo dia em que iavisitar a famlia de Samara, no distante bairro em que

    moravam. O lugar era bastante sossegado, pois tratava-se deuma rea residencial.

    A maior parte dos loteamentos era tomada por bosquesde pinheiros e ips roxos. Fazia um dia de sol, com aprimavera se aproximando e trazendo um ar mais clido eperfumes de flores no vento, um perfume doce, de florestenras recm-desabrochadas. Ela aspirou com fora aquele archeiroso e continuou andando, olhando com verdadeiroprazer a verdura das rvores e campos e ouvindo os gorjeios

    dos pssaros no arvoredo. Sorriu. Ento, quando dobravauma esquina, sentiu sbita vertigem.

    Abriu os olhos, segurando a cabea com ambas asmos, mas suas pernas ficaram fracas, ela pisou em falso,quase caindo. Ento viu o pssaro.

    Era um pssaro grande, semelhante a uma gara,branco de longas pernas, cabea preta e um comprido bicorecurvo. Ela jamais vira um pssaro daqueles em lugar

    algum, nem mesmo no zoolgico. Aquele tipo de pssaro elaj vira, sim, mas nos livros... Era uma bis.

    As bis eram aves africanas, adoradas pelos egpcios porcomerem serpentes.

    Anglica olhou ao redor, ainda zonza, e teve a impressode que o mato que a cercava estava diferente... Eram

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    touceiras de um vegetal estranho, de hastes finas e folhasque formavam um chumao na copa, lembrandocoqueirinhos. Olhou para a rua.

    No havia rua alguma, asfalto algum, o cho era seco,

    de terra batida, com escassas ervas crescendo aqui e ali.Onde ela estava? Que estaria acontecendo com ela, ou comsua mente?

    Quando ela fechou de novo os olhos, tentandoraciocinar, sentiu novamente que a atmosfera estavamudando. O canto dos pssaros primaveris voltou.

    Ela deu mais alguns passos pela rua asfaltada e voltou aver apenas os pinheiros e ips, as casas de alvenaria, um ou

    outro carro passando quase silenciosamente pela rua.

    Estava de volta ao presente.

    ...

    Aps a narrativa, Nacibe ficou quieto por algum tempo. Tinha terminado seu caf, limpara os lbios em umguardanapo e ainda olhava com ateno para o anel deescaravelho.

    Isso tudo realmente... Esquisito, Anglica. Disse,por fim.

    Ela apoiou o rosto na palma da mo, depositando suaxcara tambm vazia no pires. No sabia mais o que dizer,nem saberia dizer o que se passava pela mente do professor.

    Eu sei. mais do que esquisito. Voc deve achar queestou doidona, no ?

    Ela deu uma risadinha acanhada. O professor meneou acabea, cofiando a barba, com um ar pensativo.

    Voc nunca usou drogas, que eu saiba... Ou...?

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    Nunca ela foi enftica. Nem drogas, nemcalmantes, nem mesmo bebida alcolica, exceto as antigascervejinhas. Agora, nem isso. Descobri que elas engordam.

    Nacibe meneou a cabea, parecendo perdido em

    pensamentos. Depois falou:

    Eu tenho um amigo ele disse finalmente. Pareciaquerer dar-lhe uma chance de provar a realidade daquelerelato maluco.

    Ela ergueu os olhos para ele, tensa.

    O que ele faz... Por acaso psiquiatra? Tentoubrincar.

    No, no nada disso, Anglica. Ele se diz mdiumesprita, compreende? Eu at j participei de algumassesses, na casa dele... No que eu acredite piamente nessascoisas. Mas algumas vezes em que estive com Zanetti, ele meexplicou que, em determinadas ocasies, voc pode vir alembrar de coisas que lhe aconteceram em... digamos, outrasvidas. Talvez seja o seu caso.

    No creio... mas em todo caso...

    Voc gostaria de conhecer o Jaime Zanetti? umcara legal, muito honesto, e me parece que tem estudado afundo essas coisas de regresso da conscincia, regresso aoutras vidas, etc.

    Por que no? Ela perguntou, cruzando as mossobre a mesa. Deu um sorriso encabulado para Nacibe.

    Passe-me os telefones de contato, que o mais breve

    possvel marcamos uma entrevista com ele.

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    III

    semana seguinte pareceu voar, para Anglica, pois natera-feira seguinte, recebeu a ligao de Nacibe. O

    professor avisava-a que Zanetti estava disposiodeles, a qualquer dia da semana.

    O que ele faz, professor? Isto , alm de ser mdium? Perguntou ela, ao celular, enquanto arrumava os livros devolta na estante da biblioteca, onde trabalhava.

    Bem, ele artista plstico falou Nacibe. Acho quevocs tero muito o que conversar... Alm de ser umexcelente artista, por si s, ele tambm faz pinturasmedinicas.

    Ah! Interessante falou ela, erguendo assobrancelhas. E onde vamos encontr-lo?

    Ele tem uma pequena galeria de arte no centrohistrico de Curitiba explicou Zanetti. Podemos ir at l,ou ir at sua casa, aps as dezoito horas.

    Por mim tudo bem... Voc decide.

    E decidiram ir at a casa de Jaime Zanetti.

    A casa dele era um bonito chal de madeira, estilo suo,em um bairro nobre da cidade. Ficava dentro de umcondomnio de luxo, cercado por reas de preservaoambiental to em moda ultimamente na capital paranaense.

    A sala onde foram recebidos tinha um encanto sbrio e

    confortvel. Era grande, mas os tapetes de desenhosgeomtricos no cho garantiam um ar de aconchego, bemcomo as estantes repletas de volumes novos e antigos. O quemais chamou a ateno de Anglica foram os diversos leosnas paredes da sala, a maioria com paisagens e cenas de

    jardins, cus iluminados ou tempestuosos e dos maisvariados estilos. Teriam sido todos pintados por Zanetti? Pelaassinatura nas telas, parecia que sim.

    A

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    Boa tarde Disse uma voz s costas dela. Ela e

    Nacibe voltaram-se.

    O rapaz teria no mximo trinta e cinco, era alto e tinha

    uma forte musculatura. Ela no imaginara que ele fosse to jovem... Pelo que ouvira Nacibe falar, julgou tratar-se umhomem mais maduro.

    Alm de jovem, ele tinha certa beleza rebelde, que seriaconsiderada extica por um europeu, embora fosse maiscomum no Brasil. Era moreno, muito bronzeado, e no rostode traos regulares os olhos se destacavam, como duasgrandes esmeraldas. Em torno do rosto, os cabelos castanho-escuros formavam caracis, talvez um pouco longos demais

    para a moda atual.

    Anglica sentiu-se tomada, subitamente, de uma grandetimidez. No estaria sendo ridcula, indo casa daquelehomem, com tal histria? Ele no ia consider-la apenas umaboba, vtima de algum surto psictico?

    Ele to bonito, que no parece um intelectual, e sim ummodelo...

    Ol, Jaime! Como vai? Essa Anglica, a moa quelhe falei. Nacibe foi fazendo as apresentaes edescontraindo o clima.

    Ela apertou a mo que Jaime lhe estendeu, e em poucosinstantes, estava sentada, ao lado do ex-professor e contandotudo novamente ao mdium. Este ouviu muito atento, assobrancelhas negras erguendo-se s vezes, outras vezesfranzindo-se. Ele parecia bastante receptivo, e ela no notounenhum ar de reprovao ou desdm. Sentiu-se mais

    confiante.

    Bem, isso... tudo Ela terminou o relato, juntandoas mos e apertando-as.

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    Essas suas viagens... atravs do astral... So muitopeculiares, Anglica Ele disse, aps alguns momentos dereflexo.

    ? Ela sorriu, ainda sem entender o que ele

    dissera. Peculiares... O que quer dizer?

    Diferentes de tudo o que j estudei e conheci, nessesanos todos em que vivencio minha mediunidade e a de outraspessoas... Sabe, conheci diferentes tipos de vivncias, tudo oque possa imaginar... Conheci uma indiana que conseguiamaterializar coisas, como ptalas de flores, pedras, razes...Conheci um homem que vivia atormentado, porque no tinhaconseguido livrar-se de antigos problemas morais e familiaresde suas vidas anteriores... e para libertar-se disso, teve que

    reviver tudo atravs de regresso, diversas vezes... E conhecitambm outro, que estava sempre sonhando com suas vidasanteriores, de tal maneira, que acabou lembrando-se delasem todos os detalhes. Bem, conheci pessoas e casos de todotipo.

    Ela mordeu os lbios e olhou ansiosa para o rostoescanhoado e moreno de Zanetti.

    Mas nenhum caso que fosse, de longe, semelhante ao

    seu.

    Isso significa... o qu? Acha que estou mentindo? Ela sentiu-se como que desafiada.

    Significa que seu caso uma novidade para mim. Eque muito me agradaria estud-lo a fundo Completou ele,sorrindo.

    Ela ofegou. Fechou os olhos por um instante, depois

    disse:

    Oh, meu Deus. Cheguei a pensar que voc... Noestivesse acreditando em mim.

    Acredito. J vi, ouvi, presenciei coisas que at Deusduvidaria... Pode estar certa, sua situao muito estranha,

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    mas real. Talvez... Talvez at possa ser explicada. H umateoria, sim, j exposta por outros estudiosos da mentehumana e das terapias de regresso.

    Uma empregada entrou na sala, com uma bandeja de

    refrescos. Serviu-os, depositando depois a bandeja sobre amesa de centro. Zanetti agradeceu, e depois continuou:

    O que deve estar acontecendo com voc algo que osestudiosos, na falta de um termo mais adequado, chamam deviagem dimensional. Voc no precisa deslocar-se do seuespao-tempo... mas por algum motivo desconhecido, asdimenses temporais-espaciais se interpenetram. O porqudisso, no se sabe, coisa que ainda teremos de estudar,mas quase certo que voc mesma seja a causadora desses

    fenmenos.

    Eu... Sim, faz sentido... Ela relembrou o dia emque visitou o museu, e viu o sarcfago do prncipe egpcio.

    Nacibe, que ouvia tudo de braos cruzados e umaansiedade que o fazia movimentar as pernas sem parar,aparteou:

    Anglica, voc no faz nenhuma idia sobre o que

    causou isso? Algum incidente... Alguma trauma, sei l?

    No, mas tudo comeou aps a visita que fiz aomuseu, e viso daquele sarcfago.

    Ambos os homens menearam a cabea. Nacibe falou denovo:

    O anel que voc me entregou, est aqui... Quero queZanetti d uma olhada.

    Nacibe tirou o anel de dentro de sua pasta, expondo-ona palma da mo. Zanetti tomou-o, e no mesmo instante,fechou os olhos, com um ar de intensa concentrao.

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    real Ele abriu os olhos verdes, fixando-os emAnglica. real, o anel, as viagens de Anglica. Tenhoabsoluta certeza disso.

    ...

    Anglica no precisaria ter ido falar a um mdium parasaber que o que vivia era real. Entretanto, alguma coisa emZanetti chamava-lhe a ateno. Talvez fosse o modo como elea olhava, os olhos verdes como os de um gato e que pareciamemanar uma luz, quase a ponto de brilharem no escuro...

    Talvez fosse seu ar intelectual e rebelde ao mesmo tempo... Talvez fosse seu rosto bonito, bonito at demais... Ou o seu jeito de sorrir... Ou sua inegvel e inesgotvel sede de

    conhecimento, que o fazia dedicar-se com tanto afinco ao seucaso, passando-lhe inmeros e-mails todos os dias,explicando-lhe sobre coisas que ele descobrira, casos novos ediversas teorias.

    O fato que ela sentiu-se ligada ao jovem mdium epesquisador de forma estranha, a ponto da amiga, Samara,sugerir que ela poderia estar apaixonada por ele.

    Ela riu-se, pois seria impossvel estar apaixonada. Vira-

    o mais duas vezes, aps o primeiro encontro, no qual Nacibeestivera presente. Depois, troca de emails e telefonemas, es... Como dizer que estava apaixonada, se mal o conhecia?

    Mas no fosse por isso. Cinco dias depois, recebeu umtelefonema de Zanetti, pedindo-lhe que viesse sua casa.Props-se a apanh-la em seu apartamento, pois precisavafalar-lhe com certa urgncia.

    Ele recebeu-a na mesma sala de visitas, e assim que ela

    entrou, ele comeou a falar:

    Anglica, antes de tudo, queria saber uma coisa.Voc no teve mais nenhuma daquelas experincias, nessemeio tempo?

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    No... Na verdade, tenho tido sonhos, sim. Mas nadade experincias conscientes.

    Ele andava de um lado para o outro, como se estivesseansioso e indeciso. Finalmente falou:

    Voc acha... Acha que poder ter outra, em breve?

    Ela semicerrou os olhos, refletindo. H dois dias haviasonhado... Fora como a experincia de sonho anterior.Sentira-se no limiar entre sono e viglia, e ento tinhapercebido que estava novamente vivenciando a dupladimenso... Chegara a sentir o cheiro forte, de almscar,canela e incenso e ouvira as vozes, suaves, distantes. Massabia que no era apenas um sonho qualquer, era algo mais.

    provvel E ento contou a ele sobre a experincianoturna.

    Entendo... Bom, ento me deixe lhe propor umacoisa. Eu quero que fique aqui, na minha casa, por algumtempo... No sei quanto tempo. Mas o que for necessrio, atque voc tenha outra dessas experincias.

    Ela o encarou de olhos semicerrados, confusa, surpresa

    diante de tal proposta. Sentia-se um pouco inquieta diante deZanetti, como se ele a desequilibrasse emocionalmente. Sabiaque ele no era o culpado por isso, mas ela prpria. Era algoseu. Uma certa timidez, um acanhamento intrnseco, umafalta de jeito. Como se de repente, voltasse adolescncia.

    No sabia exatamente o que dizer, diante daquelaproposta. Sabia, por Nacibe, que Zanetti morava no casaroelegante com uma velha tia, uma senhora distinta e culta,que tambm era artista plstica e design de jias. A velha

    senhora passava grande parte do tempo em viagens,participando de exposies e mostras de jias e esculturas.Zanetti, pelo que ela soube, estaria praticamente sozinho nacasa, pelos prximos dias. E ela no sabia como se sairia, sefosse para l e ficasse to prxima dele.

    No sei o que dizer, Jaime... Eu... no sei...

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    Por favor. O olhar dele era profundo, mas ela no

    soube dizer o que havia nele. Interesse? Mas por quem oupelo que? Ser muito importante para ns. Para mim, paravoc e para algumas pessoas, outros espiritualistas, que

    pretendo lhe apresentar. Quem sabe, Anglica, esse fenmenoque voc est vivendo possa ser transposto para as pginasde um livro? E quem sabe voc possa ajudar muita gente, quevive o mesmo processo, e no tem como saber se real ouno?

    Aquilo a fez decidir-se. Sim, ele tinha interesse, maspela sua pesquisa e pelo seu prprio trabalho. Nada havia depessoal no interesse dele. Ela suspirou, talvez... talvez s umpouquinho decepcionada. Que bobagem a minha. Pensar que

    um homem desses tivesse algum interesse pessoal em umagarota insossa como eu.

    Ok, voc me convenceu. Eu irei.

    Ele sorriu, os belos dentes claros iluminando o rosto, osolhos mais verdes do que nunca.

    Certo! Voc no vai se arrepender. Pretendo ajud-laa resolver esse problema, se que mesmo um problema.

    Anglica trouxe uma mochila de casa, com poucasroupas, pois no pretendia ficar muito tempo ali. Aempregada da casa mostrou-lhe o quarto que ocuparia, deparedes recobertas por um papel de parede floral, natonalidade creme e amarelo pastel. Os mveis eramlaqueados de branco, as janelas recobertas por cortinas derenda que filtravam a luz, tornando o ambiente cheio de umacalidez reconfortante.

    Assim que ela entrou, notou sobre a mesa de cabeceiraum volume grosso, que trazia na capa uma fotografia daspirmides do Egito. E o ttulo era: EGITO, Magia e Mistrio.Percebeu que fora deixado ali de propsito, para que elalesse.

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    Ela relanceou o olhar em torno, e viu nas paredesalgumas paisagens de estilos variegados e temas distintos.Uma, sobretudo, chamou-lhe a ateno. Era a figura de umamulher, uma mulher envergando tnica de listras azuis ebrancas. Na cabea, a peruca negra das egpcias e nos olhos

    escuros como duas pedras de nix, o antimnio traandouma linha curva. Ela ficou ali parada, observando com certaestranheza o quadro.

    Todos os mistrios do Egito Antigo pareciam repousarnaqueles olhos de nix, e na pele de alabastro da mulher. Elaestava sentada em uma espcie de cadeira dourada, cujos pslembravam patas de leo. Ao fundo, uma paisagem noturna,onde se destacavam as estrelas e um luar buclico.

    Ela bonita, no?

    A voz de Zanetti soou s suas costas, e ela virou-se,enrubescendo sem saber por qu.

    Ah, sim. verdade... Ela bonita. Quem ela? Perguntou Anglica, voltando-se de novo para o quadro.

    Na verdade eu no sei. Eu pintei isso h cerca de doisanos, depois de ter lido um romance medinico sobre uma

    determinada princesa egpcia. Talvez essa imagem seja adaquela princesa.

    Anglica virou-se para ele, com um meio-sorrisoacanhado. No entendia nada daquelas coisas de trabalhomedinico, possesso por espritos, trabalhos inspirados...Na verdade, ela no acreditava muito naquelas coisas,embora respeitasse as pessoas que praticavam o Espiritismo.Mas no poderia conceber a Arte sem um prvioconhecimento do que ela representava. Como Zanetti poderia

    ter pintado algo, ou algum, que ele sequer sabia quem era eo que significava?

    No acredito que voc no saiba quem ela era.

    Ele meneou a cabea, como se relutasse em falar. Deualguns passos pelo quarto, e seus olhos fixaram-se na janela.

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    Um vento sbito enfunou as cortinas e um perfume suaveenvolveu o ambiente. Parecia de flores, talvez fosse das floresdo jardim que circundava a casa.

    Realmente, esse quadro sempre foi um mistrio para

    mim.

    No entendo... Como assim, um mistrio? Voc opintou. Deve saber o que ele representa, quem a pessoa oupor que voc foi inspirado a pint-lo ela insistiu.

    De fato, eu deveria saber. Talvez, de modoinconsciente, eu saiba... s vezes, eu sonho com essamulher... Acredito que ela foi uma princesa ou nobre queviveu cerca de 1500 antes de Cristo... S o que sei, que to

    logo terminei a leitura do livro, senti uma compulso paratomar de minha palheta, procurar a solido do meu ateli.Assim fiz, e logo aps, postando-me diante de uma tela,minhas mos comearam a mover-se, como se tivessem vidaprpria. Foram surgindo toques de cor, linhas, nuances...aps quatro horas de trabalho, tornou-se visvel o primeiroesboo, ou seja, o rosto dela. Os olhos dele ficaram vagos,na lembrana. Eu nunca entendi... No era a obraespiritual de nenhum artista conhecido. Era apenas eu. Masfoi a mim que ela... ela escolheu para retrat-la, no sei com

    que propsito. E depois, passaram-se algumas semanas, atque sonhei com ela. Sabe, foi um sonho estranho, como seela quisesse me passar alguma mensagem, um aviso, umaadvertncia ou pedido de socorro... Eu a via sorrindo, entreoutras egpcias, diante de uma piscina coalhada denenfares. Ela era linda, trazendo apenas uma tira larga detecido transparente em torno do corpo, at que ela me viu.Parou de sorrir e dirigiu-se a mim, falando, com os braosestendidos em minha direo: Voc precisa nos ajudar.Voc... Apenas voc pode nos ajudar... Precisar evitar que ele

    me deixe, precisa evitar....

    uma histria e tanto. E at hoje, voc no tem idiade quem ela foi? O que ela quis dizer? Quem era ele?

    At agora no. por isso que fiz questo que vocviesse at aqui, Anglica. Algo em sua histria me fez lembrar

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    Pode ser... Mas as dvidas ainda me deixam inquieto.E aqui? O que vocs conseguiram apurar?

    Nada de concreto tornou Jaime. Anglicaaprendeu alguma coisa sobre nossas teorias

    reencarnacionistas, embora eu duvide muito que suaexperincia tenha algo a ver com reencarnao.

    Enquanto os homens debatiam aquela questo, elasentiu uma leve tonteira, como se de repente todo o estressedos ltimos meses estivesse cobrando seu preo. Ela fechouos olhos, e ouviu um leve zumbido dentro da cabea, como deum inseto irritante. Sentiu uma onda de calor envolvendo-a ecerta nusea revolvendo-lhe o estmago.

    Baixou a cabea, segurando a fronte.

    Est sentido alguma coisa? Zanetti apressou-se aperguntar, vendo-a empalidecer e segurar a fronte com asmos.

    Sim... no me sinto muito bem.

    Ambos os homens se entreolharam. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo, e ento pararam, meio constrangidos.

    Zanetti tomou a dianteira e aproximou-se dela:

    Anglica, o que sente? Podemos ajudar em algumacoisa?

    No, obrigada, Jaime. Eu... acho que j passou.

    Ela respirou fundo, sentindo-se mais equilibrada,embora o zumbido continuasse em seus ouvidos. De repente,sentiu medo de si mesma... e do que poderia lhe acontecer.

    Achou que a melhor coisa seria subir para o seu quarto.

    Acho que apenas estresse e preocupao. Talvezseja melhor eu subir e me deitar.

    Ela olhou para o rosto de garoto rebelde sua frente, esentiu uma onda de angstia. Poderia estar... Poderia estar

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    aproveitando melhor aqueles dias, entretanto... umsentimento de constrangedora timidez a impedia de falar emostrar seu lado mais feminino e charmoso. Como sou boba.Se Samara estivesse no meu lugar, aposto que estariaflertando abertamente com esse cara... Mas ele tem uns olhos

    to... to... verdes e magnticos, e uns lbios...

    Levantou-se da mesa, amaldioando aquele mal-estarque no poderia ter surgido em momento mais imprprio, edando boa noite aos dois homens, subiu para o seu quarto.

    Nacibe estava cofiando o bigode, e olhando para a ex-aluna, com um olhar atento. Jaime percebeu e parou ao ladodo amigo, semicerrando os olhos verdes. Seu tom de vozagora soou spero:

    Ela linda, no ?

    Nacibe voltou-se, um ar de surpresa e estarrecimento,como se Jaime tivesse dito uma grande barbaridade.

    O qu?

    Disse que ela uma linda mulher, Nacibe. O qu voctem, h? Ser que eu disse alguma besteira? No concorda

    comigo?

    Nacibe franziu o sobrolho, enrubescendo de repente.Seu rosto de efgie marmrea tornou-se de um prpuracarregado, e os olhos pareciam dois carves acesos.

    O qu voc est... Zanetti, no me diga que voc estflertando com ela? A voz dele soou grave e levemente rouca,como se ele se esforasse por no explodir de raiva.

    O qu h, Nacibe? O que teria de mais, se fosse isso? Perguntou Zanetti, com um dar de ombros.

    O que tem de mais? O que tem...

    Nacibe parou, e respirou profundamente, procurandomanter o controle.

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    O que tem de mais, que essa moa minha aluna...

    Sua ex-aluna, pelo que ela me disse cortou Zanetti,com rispidez. E acho, meu amigo, que voc est ficandoruborizado e enfurecido toa. Em primeiro lugar, ela no

    nada sua... ou ? Em segundo lugar, livre. E eu tambm. Eagora, Nacibe, diga-me o que te deixou to furioso?

    O professor meneou a cabea e deu alguns passos pelasala, retornando mesa.

    No, no h nada. Eu... nada tenho a ver com a vidadela, essa a verdade. Houve um tempo em que eu... eupoderia ter tido... Mas passou.

    Zanetti voltou a sentar-se, encarando o amigo com umolhar desconfiado. Seu rosto tambm traa certa hostilidade.

    Entendo... Quer dizer que voc e ela, no passado...tiveram alguma coisa?

    No! ele ergueu o rosto, encarando Zanetti comapreenso.

    Que isso, Nacibe? Por que todo esse

    constrangimento? Se vocs tivessem namorado no serianenhum absurdo... Quantos casos de alunas e professoresexistem por a? Muitos, muitos... no vejo nada deextraordinrio.

    Zanetti, escute... No houve nada. Entende? Nada.Mas eu me sinto meio... como posso explicar isso...responsvel por ela. Sempre fomos grandes amigos. E agora,foi a mim que ela veio pedir ajuda. Foi a mim que ela confiouesse problema, a mim. Preferiu contar a mim que para

    qualquer outra pessoa. Entende? Eu gosto muito dessagarota. Muito. E...

    Zanetti observou Nacibe com um olhar sombrio e irnicoao mesmo tempo. J estava comeando a entender o que sepassava com o amigo.

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    Compreendo, Nacibe. Voc era apaixonado por ela.

    Nacibe apertou os lbios, baixando os olhos, como selutasse contra si prprio. Seu rosto continuava prpura.

    Por favor, Zanetti... No quero falar disso agora. Issoj passou.

    Tem certeza? Perguntou o outro, desconfiado, umaruga entre as sobrancelhas.

    Aconteceu na poca em que eu fui professor dela...Mas eu sempre tive muito cuidado e tica no trabalho e nasrelaes pessoais.

    Sei, sei... Quer dizer que no ia opor-se se acaso eu eela...

    Subitamente, ambos ficaram como que paralisados.Zanetti calou-se, Nacibe voltou o rosto em direo s escadas.Ouviram um grito: Anglica estava chamando por eles!

    Foi um momento de susto e apreenso, mas eles logo semexeram, subiram correndo as escadas e logo estavamparados diante da porta do quarto da moa.

    Zanetti no perdeu tempo e foi abrindo a porta,entrando direto. O quarto estava em ordem, calmo, silente. Aluz do abajur estava acesa, banhando a cama em um crculode luz dourada e deixando todo o resto mergulhado emtrevas. Na cama, deitada de bruos, o rosto apoiado em umbrao, estava Anglica.

    Os dois homens se entreolharam. Nacibe pareceunervoso, ao aproximar-se do leito e chamar baixinho o nomeda ex-aluna. Ela mexeu-se e virou-se na cama, mostrando

    uma face levemente ruborizada, embora no abrisse os olhos.Respirava suavemente.

    Ela tem alguma coisa?... Est doente? PerguntouZanetti, igualmente nervoso. O rosto de Anglica nunca lhepareceu mais bonito, ela tinha uma pele perfeita, lbioscheios e vermelhos, nariz pequeno, longos clios sedosos e era

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    impossvel para ele no deter os olhos mais um pouco nodecote da camisola rendada.

    No d para saber... Ela parece inconsciente, ou emtranse... Tomou-lhe o pulso. Parece que est bem... Mas

    algo aconteceu. Por que ela gritaria?...

    Pesadelos? Outra daquelas vises de alm-tempo-e-dimenso? Respondeu Zanetti, sem poder tirar os olhosdela.

    Aproximou-se e chamou-a baixinho, com o coraobatendo um pouco descompassado.

    Sorriu ao v-la mexer-se de novo e suas plpebras

    estremecerem levemente. Ela entreabriu os olhos e foi paraele que olhou, murmurando:

    Jaime...Ele inclinou-se, tomando-lhe a mo.

    Ouvimos voc gritar, Anglica... O que aconteceu?Voc saiu da mesa dizendo que sentia-se mal. Fiqueipreocupado...

    A tontura j passou, agora. Mas eu estive l, foi porisso que os chamei... Vocs tambm viram?

    Vimos... o que?

    O lugar, ou melhor... a dimenso... porque eu viquando vocs chegaram, mas era como se pairassem no ar,suspensos, como se... fossem sombras, como se fossem deoutra substncia.

    Voc viu? Tem certeza? Indagou Nacibe, a testafranzida, os lbios repuxados em uma linha quase dura. Seuolhar denotava incredulidade.

    Acho que entendo Apaziguou Zanetti. Seus olhosfixaram-se nos dela. Somente Anglica tem poder deperceber a outra dimenso, de alcan-la. Pessoas que se

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    aproximarem sero como sombras, fantasmas. Em resumo, ofenmeno limita-se percepo dela, apenas.

    Nacibe encarava o amigo com ar de dvida, e agora araiva insinuava-se em seu tom de voz. Notou, irritado, que

    Anglica olhava embevecida para Jaime, e sua mocontinuava entre as dele, que a afagava suavemente. Nacibeainda notou que o clima entre os dois jovens estava ficandodiferente, e ele, no fundo, no estava gostando daquilo. Eracomo se o tivessem excludo, e...

    Isso tudo pode no passar de simples alucinao, no?

    Anglica voltou-lhe os olhos, que se abriram

    subitamente. Foi como se lhe tivessem jogado um baldedgua fria. Sentiu-se ofendida.

    Ento voc no acredita, no ?

    Zanetti interveio, lanando ao amigo um olharfulminante.

    Nacibe, voc sempre foi cptico por natureza.

    Eu imaginei isso mesmo... Ela disse. Por issoresolvi trazer mais uma prova.

    Ela abriu a mo esquerda, que estivera crispada, eestendeu-a na direo deles. Na sua palma brilhava umapequenina jia. Nacibe tomou-a e examinou-a, soltando umgemido de fascinada surpresa. Era uma espcie defrasquinho de toalete em formato oblongo, dourado e comuma efgie gravada com tal pericia, que os dois amigosficaram estupefatos. A efgie tinha um perfil feminino usando

    a coroa do Alto e Baixo Egito e no lugar dos olhos, faiscavauma delicadssima pedra talvez um diamante.

    Inacreditvel disse Nacibe, voltando para a moa osolhos negros que cintilavam na febril antecipao de umanovidade fantstica.

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    Passou-o para as mos de Zanetti, que observou com amesma expresso fascinada do amigo.

    , temos mais um objeto de estudo, meu amigo.

    E voltando-se para a moa, que se pusera sentada nacama e puxava o roupo, da cadeira prxima:

    Anglica, e ento? Ele aproximou-se, tocando-a noombro.

    Ela sentiu-se um pouco acanhada, ali diante daquelesdois homens. O antigo professor que um dia ela at cogitarapaquerar e o rapaz de rosto belssimo, que a atraa de um

    jeito impossvel de evitar. Ela enrubesceu, mas amarrou o

    roupo e engoliu em seco, comeando a sua narrativa.

    Bem... acho que comeou l embaixo, to logocomecei a me sentir tonta. Eu sabia que era o incio, mastentei ignorar... corri pra c, e o mal-estar persistiu. Resolvime deitar, com medo que acontecesse algum acidente, casoainda continuasse de p. Fui sentindo que o quarto pareciaalargar-se, aumentar de tamanho, adquirindo outras formase cores... Fechei os olhos e quando os abri de novo no estavamais aqui e sim, numa grande sala toda feita de mrmore,

    parecia. Trs grandes colunas erguiam-se minha frente enuma espcie de tablado, um pouco mais minha frente,havia um trono de granito e ouro, ornamentado com pedraspreciosas e forrado com um tecido vermelho, cujas pontaschegavam at quase os meus ps. De cada lado do trono eu vipresas por fortssimas cadeias e correntes, duas onaspintadas de aspecto manso, deitadas como se fossem doisgatinhos... mesmo assim, levei um choque ao v-las...Olhando para cima, senti-me, de repente, muito pequena,muito mortal, muito insignificante... a altura da abbada de

    granito devia chegar aos vinte metros e as colunas, mais oumenos, uns cinco metros de circunferncia. Aquele lugarcolossal, exageradamente grande, assustou-me tanto quantoas feras acorrentadas ao lado do trono. As paredes, a umadistancia de quinze a vinte metros de mim, estavamrecobertas de relevos coloridos, flores decorativos ehierglifos os mais estranhos. Alinhados junto s paredes, vi

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    dezenas de serpentes, hipoptamos, ces, lobos, gatos e bis,sob a forma de efgies de pedra. Todas perfeitas, sem o menorsinal de deteriorao. Voltei meus olhos de novo frente.

    Sobre o tablado do trono e de cada lado deste, vi duasarquibancadas de madeira escura, esculpidas com motivos de

    ltus, onde se sentava a corte, em dias de cerimnias eaudincias publicas. O mais extraordinrio, porm, era afigura macia, possante e altiva que estava sentada no trono.Quando olhei para ele, quando nossos olhares se cruzaram,foi como se todo o meu passado se dissolvesse nas trevas daminha inconscincia. Eu s podia pensar em mim dali parafrente, s aquele momento e meu futuro importavam: Nohavia passado, no houvera outra vida, outra poca, outraspessoas e lugares. S havia aquela vida ali, eu e ele, e o Egitoe todas as coisas que nos cercavam ali.

    Nacibe ouvia a narrativa de braos cruzados, umasombria nvoa de desconfiana turvando-lhe os olhos negros.Zanetti, ao contrrio, parecia exaltado, andando de c paral, como se as palavras de Anglica o incomodassem.

    Do que voc est falando, Anglica? De quem? Quemera ele? Perguntou Zanetti, parando diante dela.

    Jaime, no momento eu no entendi... mas um tremor

    logo me percorreu o corpo, uma emoo mista de veneraocontida e contrio, como se uma massa incandescente dechumbo me forasse o peito para sair. Eu quis gritar,extasiada, assustada, mas minha prpria garganta estavaseca, anestesiada. Minha lngua parecia presa ao cu daboca. Eu no disse nada.

    O homem do trono tinha um rosto de pedra... Era ele,eu reconheci depois. Era Sechem-Chet. No era, porem, ofara. Usava apenas a coifa listrada de azul e branco e umcetro dourado, alm de um colar largo de pedras verdes e

    uma tnica branca e curta. Era o Prncipe Sechem-Chet.

    Venha disse ele, erguendo um brao e quebrando aimobilidade.

    Era como se eu estivesse fora de mim... Louca. Eu noo queria, queria apenas voltar ao meu mundo, voltar para c,

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    fugir daquela atrao mgica... mas comecei a andar para olado dele... Ento ele levantou-se do trono e seu rostobronzeado moveu-se, sorriu. A pele morena brilhava como seestivesse untada com azeite e seus dentes eram brancos eperfeitos. Eu me aproximei, e quando ficamos face a face, ele

    disse:

    Serei rei, quando meu irmo morrer e voc foiescolhida por mim, voc veio de outro mundo, de outrotempo, para ser minha. Rainha. Ningum nunca poderexplicar como eu conheci voc, como voc me conheceu, nemos Grandes Sacerdotes dos Mistrios de Amon-R. Eu seiapenas que voc sempre esteve dentro de mim, sem que eusoubesse, at o dia que vi seu rosto refletido nas guas doNilo. Foi como se a luz da lua, falando no sussurro do vento,

    me dissesse: Esta a mulher que vive em teu corao. Ela viveem ti, mas seu corpo est longe, s teu amor poder aproxim-la de ti. Confia em teu amor, que ela atender ao teu chamado.O chamado do teu amor.

    Eu sei disse eu eu senti a mesma coisa quando via sua imagem... senti que o conhecia, de alguma maneira, dealguma forma. E que um dia o encontraria.

    Lembrei do dia em que vi aquele rosto no museu e

    compreendi tudo. Aquele homem, de algum lugar no tempo,no espao ou nas dimenses que coexistem paralelas,tambm me vira e se apaixonara por mim. No exato momentoem que eu vi seu rosto no sarcfago, no museu.

    Ento ele se aproximou ainda mais de mim e mecolocou alguma coisa nas mos.

    Toma esse perfume, cujo estojo tem uma efgiegravada. Ele deveria pertencer a outra mulher, uma noiva

    que me fora destinada por minha famlia, mas no a possodesposar agora, depois de ter conhecido voc. Agora v,mulher do meu corao, mas volte logo.

    No mesmo instante a paisagem se esfumou. Volteimeus olhos e vi vocs dois pairando no ar, como se fossemfantasmas. Fiquei um pouco confusa, talvez tenha apagado

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    por alguns minutos, e quando abri os olhos de novo, estavaaqui na cama.

    Nacibe sentou-se na cama, ao seu lado, e segurou-lhe osombros. Seus olhos se estreitaram ainda mais, ficando como

    dois pequenos riscos negros e brilhantes, fixando-se nos seusolhos.

    Anglica, me escute. Isso tem que parar. Entendeu?Isso tudo no passa de uma alucinao, compreende? Vocprecisa parar com isso. No existem provas... nada, nemmesmo essas pequeninas jias que voc...

    Voc est querendo dizer que estou delirando,professor? - Ela sentiu um n na garganta, um desespero

    envolveu-a. Que estou ficando doida? isso? Achammesmo... que enlouqueci, ou que inventei tudo isso? Ouambas as coisas? E que estas jias so uma fraude?

    Ela levantou-se da cama, o rosto j molhado delgrimas. Correu em direo ao guarda-roupas, abrindo asportas quase com raiva. Zanetti lanou ao professor um olharfurioso e avanou para Anglica, tomando-a nos braos. Elacomeou a soluar.

    Acalme-se, minha querida. No nada disso. Nacibe um cptico, ele nunca aceitou nada do que ns,espiritualistas, acreditamos... Vamos conversar melhor sobreo que aconteceu a voc. Ns ainda nem conversamos com opessoal da Sociedade Esprita... voc no pode ir emboraagora, assim. Acalme-se...

    Eu sei... Eu sei que parece mentira, tolice, delrio... Etalvez... Talvez seja... J no sei mais nada... Estou confusa...Estou com medo, Jaime...

    Nacibe apertou os lbios e tentou acalmar a situao:

    Tudo bem, Anglica. Eu no quero que se magoe comminhas palavras... Acho que voc e Zanetti podero conversarmelhor sobre isso, eu... Eu vou embora. Se precisarem dealguma coisa, qualquer coisa, sabem meu celular.

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    Ele deixou o quarto, pisando duro. Anglica enxugou as

    lgrimas.

    Calma, Anglica tornou Jaime. Sei que tudo o que

    voc viveu foi real.

    Voc acha? Ela perguntou, voltando para ele osolhos avermelhados.

    Lembra-se dela?

    Ele apontou para o quadro leo, com a figura damulher egpcia.

    Ela olhou para a imagem da mulher e assentiu. Aindano estava compreendendo.

    Olhe para essa efgie...

    Ela tomou o pequeno frasco de perfume, e observou operfil da mulher gravado nele. Sim, havia certa semelhana, onariz pequeno, os lbios carnudos, faces arredondadas.

    O que isso quer dizer? Ela perguntou.

    a mesma mulher. A noiva de quem Sechem-Chetlhe falou, a mulher a quem esse frasco pertencia, oupertence... A mulher com que ele deveria se casar. Ela mepediu ajuda, nos sonhos... Voc precisa nos ajudar. Voc...Apenas voc pode nos ajudar... Precisar evitar que ele medeixe, precisa evitar.... Compreende? Ele ia deix-la... E elame pediu ajuda. Ele ia deix-la...

    Anglica meneou a cabea, compreendendo tudo... Seria

    mesmo real? E aquele sentimento to forte que ela sentiu, aover o prncipe egpcio... o desejo de ficar com ele... era amor,no era? O que sentiu ao ver-lhe o rosto, o mesmo rosto quevira no sarcfago... Amor, atrao, saudades... Ia querervoltar para ele... Ou para o que quer que fosse aquelemundo? Parte dela dizia que sim... Mas ao olhar para JaimeZanetti, para seus grandes olhos esmeraldinos, e sentir-lhe o

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    toque das mos, o perfume msculo... Se ambos eram reais,talvez ela preferisse a realidade daqui, a realidade dos olhosverdes e da face clara de Jaime.

    Ele ia deix-la...

    Porm, no ir mais deix-la. Ficar com ela, e voc,Anglica, ficara aqui, onde o seu lugar. Tornou ele, comvoz firme.

    Jaime tocou-lhe o rosto, e ela sentiu uma onda de fogosubir-lhe face. Tambm queria aquele contato, queria sabercomo era beijar os lbios firmes, ser acariciada pelas moslongas e geis dele, sentir na sua a pele quente...

    Ele a beijou, e Anglica entregou-se doura daquelebeijo com abandono.

    Uma rajada forte de vento entrou pela janela, enfunandoas cortinas e fazendo a porta do quarto bater com estrpito.Eles se afastaram um do outro, e Zanetti olhou em torno,com um olhar aterrado.

    Anglica comeou a ouvir novamente o zumbidocaracterstico, sentiu a tontura e meneou a cabea, enquanto

    via que o quarto parecia mexer-se, alterando sua estruturafsica e aparncia. Olhou para Jaime, e gritou:

    Est comeando de novo!

    Pela expresso de terror nos olhos dele, percebeu que eletambm via alguma coisa.

    Sim, eu tambm vejo, Anglica! Mas voc no ir,entendeu?

    Ele olhou volta, enquanto a estranha ventania pareciaestar varrendo tudo: O penteador foi derrubado e todos osfrascos, vasos e potes caram pelo cho, as portas do guarda-roupas abriram-se e comearam a sacudir-se nas dobradias,como em uma dana bizarra, a cadeira e a escrivaninhaforam derrubadas. Ao mesmo tempo, a prpria atmosfera

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    parecia transformar-se, e um turbilho de cores estranhasmoveram-se no ar, ondulantes, como a outra dimensoquisesse fundir-se com essa.

    Ele puxou Anglica para perto de si e abraou-a,

    dizendo em altos brados:

    Voc no vai lev-la, nunca mais!

    Em meio ao turbilho de cores e ao balano da casa,como se estivesse merc de um terremoto, eles enxergarama silhueta colossal de um homem. Anglica abriu a boca, poisreconheceu na figura grande e altiva o rosto de Sechem-Chet.Ele olhava para ela, estendendo-lhe os braos, como se achamasse para si.

    V embora! Gritou Zanetti, apertando-a mais entreos braos.

    Ento a voz ressoou pela casa: Era ao mesmo tempocomo o uivo do vento e o ribombar dos troves, com umaentonao apenas ligeiramente humana e com um laivo detristeza. Uma voz que os deixou gelados de pavor:

    Venha, mulher do meu corao! No pode me deixar

    agora!

    No! Quero ficar aquiiiiii! Gritou Anglica.

    E no momento seguinte, a voz silenciou. O grande vultomasculino desapareceu, o turbilho cessou, o vento amainou.A casa firmou-se, como se o terremoto tivesse acabado.

    Eles olharam, ofegantes e assustados em torno de si. Oquarto continuava destroado, como que varrido por um

    tufo.

    Jaime olhou para Anglica e tirou uma mecha decabelos dela da testa, mida de suor, sorrindo:

    Ele se foi. Como a princesa do meu sonho disse, s eupoderia impedi-lo. E o fiz.

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    Jaime! Ela sorriu. Foi terrvel... mas no sei por

    que, me sinto aliviada depois de tudo... Que loucura... Talvezporque voc testemunhou tudo isso, e agora eu sei que foitudo real... e que agora acabou, acabou.

    Jaime abraou-a novamente, beijando-a com ardor, e elacorrespondeu, entendendo finalmente os muitos por qusdaquela sua fantstica experincia.

    ...

    No dia seguinte, quando o professor Nacibe veio v-los, tarde, foi surpreendido pelo clima de bom humor edescontrao que notou entre ambos. Ao indagar sobre o

    estado de Anglica, ouviu-a dizer, para seu espanto, queestava sentindo-se muito bem.

    O senhor tinha razo, professor. Tudo o que tem meacontecido, nos ltimos tempos, deve ser algum tipo dedelrio, ou como Jaime acredita, uma regresso involuntria avidas passadas. Disse ela. Ela e Zanetti haviam combinadoque o melhor era no contar o que acontecera realmente, nema Nacibe, nem a qualquer outra pessoa. Ningum iriaacreditar, e dar o assunto por encerrado era o melhor que

    podiam fazer.

    Como? O qu? Mas, Zanetti, voc tinha descartado ahiptese de regresso...- Rebateu Nacibe, encarando-os.

    Tudo leva a crer que seja isso, Nacibe. Sei que vocno cr nessas coisas, mas ontem eu fiz uma experincia deregresso hipntica com Anglica, e foi positiva. Realmente,ela voltou poca do fara Sechem-Chet, e acho que uma

    terapia de regresso vai fazer bem a ela... mentiu Zanetti.

    Terapia de regresso? Nacibe franziu a testa,estranhando. Ora, mas se voc mesmo tinha aludido hiptese de uma espcie de desdobramento inter-dimensional, ou coisa parecida...

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    Esquea isso! Falou Jaime, erguendo a mo. Tolices. Acho que a terapia de regresso j est surtindoefeito, pois Anglica hoje acordou sentindo-se muito melhor,no mesmo, querida?

    Anglica sorriu e meneou a cabea. No momentoseguinte, para seu completo estupor, ela e Zanettiabraaram-se e beijaram-se.

    Mas...

    Eu e Anglica estamos... namorando explicouJaime, com um sorriso enigmtico.

    Nacibe meneou a cabea e sua expresso de assombrou

    fez o jovem casal rir.

    Mas...

    Professor, eu tenho que lhe agradecer disseAnglica. Se no fosse por voc, eu jamais teria conhecido

    Jaime, e jamais teria comeado com as terapias de regresso,e...

    Tudo bem, tudo bem! Ele disse, deixando escapar

    um sorriso tmido e amarelo.

    E depois, quando deixava a casa de Jaime, soltou umsuspiro, pensando nas chances que tinha perdido, quandoAnglica ainda era sua aluna e como outras, fra totalmentedeslumbrada por ele. Ele, com sua figura de homemexperiente, como professor e mestre, como homem sbio,maduro... Sim, ele perdera sua chance com a linda moa.

    S que agora era tarde. Mas afinal, ela e Jaime eram

    jovens, e ele, Nacibe, um cinqento tolo e sistemtico. E seeles estavam se dando bem... e se Anglica estava gostandoda terapia de Jaime Zanetti... Fazer o qu?

    Vai l se entender esses jovens...

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    Ele disse, enquanto olhava com uma pontinha de invejao jovem casal, que trocava pela dcima vez outro beijoapaixonado.

    ***

    Sobre a autora

    Jossi Borges nascida em Curitiba, Paran.Escreve desde criana, participou, aos 14 anos deidade, do IX Concurso Literrio da FundaoCopel - PR., tendo uma poesia publicada no livro

    "Encontro IX".

    Jossi web designer, artista plstica, teveparticipao ativa no Movimento Pararrealista de Artes Plsticas, em1993 e 1994.

    Atua como web designer e tem um comrcio virtual de livrosusados, alm de escrever para diversos sites, fanzines e grupos deleitura na internet, como a Biblioteca Virtual do Escritor, RomanZine,Editora Virtual (Argentina), e outros, onde tambm publica obras de

    fico vamprica e sobrenatural, contos e poesias.

    Gostou do conto? Leia o livro inteiro:

    www.amorelivros.justtech.com.br

    Ou entre em contato com a autora:

    [email protected]