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Senos da Fonseca

Papiro EditoraPorto 2012

O p a i d a p á t r i a

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FICHA TÉCNICA

Título João Sousa Ribeiro - O pai da pátriaAutor Senos da Fonseca

Editor Papiro Editora Porto Rua de Pinto Bessa no 615 4300-433 Porto t. 220 120 144/5/6/7/8/9 f. 220 120 143 e. [email protected] b. blogdapapiroeditora.blogspot.com s. www.papiroeditora.com

Ano de Edição Maio 2012

Coordenação Editorial Papiro Editora Coordenação Gráfica Papiro Editora Design Papiro Editora Distribuição BUK Distribuição telefone: 220 120 144/5/6/7/8/9

ISBN 000000000000000Depósito Legal

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João SouSa RibeiRo

— o pai da pátRia —

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Pórtico

Século xviii. Os fumos do Império em decadência adensavam-se. Turvos e embreados, enovelados, faziam tresver e pressagiar estranhas ocorrências. Nada de bom se agenciava para o futuro do país.

O reinado do culto mas não menos dissoluto, ostentoso e de-vasso, de D. João V iria consumir a primeira metade do século. Fim de ciclo, onde o espavento substituía o pano de cena, escondendo o gesto teatral da esfarrapada realidade. A nobreza ambiciosa e perdu-lária, alimentada pelas mercês honoríficas, mostrava-se cada vez mais indisciplinada e arrogante.

Foram tempos que, pelo fausto gongórico, mais pareceram ser de ficção. Enquanto isso, o povo de servos e ignorantes (porque assim melhor o tinham na mão) moirejavam a carregar as pedras de Mafra. «Blimunda e Baltasar», ainda então — Saramago nos assegura —, pro-curavam na serra de Montejunto a Passarola para nela festejar o seu amor, atestada a vontade de voar à procura de novo império (o do sonho)…

Ao «Magnânimo», finado pelas mazelas contraídas nos catres doirados das madres «Paula e Companhia», logo lhe sucederá seu filho D. José I. Homem pouco afeito às exigências do mando absoluto, logo remeteria as rédeas do poder para as mãos de Sebastião José, acre-ditando que, para tal, a recomendação era bastante…

O país até ali favorecido pelas riquezas — fictícias! — do Império, passou então a ser garrotado pela mão forte de Pombal. E pareceu — finalmente — encetar uma aproximação a uma Europa efervescente, desinquietada pelos ventos iluministas que sopravam de uma França em profunda mutação ideológica.

Pombal, é certo, manteria o «poder absoluto» centrado no rei, ainda que este não passasse de uma figura decorativa. Assumindo as rédeas do poder efectivo, Pombal foi rápido, incisivo e determina-do, na produção de legislação que alterasse a organização económica do país, promovendo o aparecimento de novos meios de produção

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interna e dando novo fôlego aos ainda sobrantes, de modo a minorar a dependência externa do Portugal.

Era fundamental para os planos de Pombal substituir (a bem ou a mal) uma alta burguesia cortesã, indolente, espaventosa, madraça e inútil, frequentadora de salões e dependente das rendas da corte, por uma nova burguesia industrial e comercial. Que sem títulos provindos de áureos berços, fosse activa e empreendedora, dinâmica e diligente, capaz de erguer uma política manufactureira para fixar a riqueza em Portugal. Para esta mudança estrutural era necessário laicizar o ensino. Reformulada a universidade, chegaria a hora de levar a instrução ao povo já que, segundo Sebastião José, nele residia a força do Estado.

Bem pelo contrário, pensava ser imperioso e urgente banir de todo o território (de todo o império) os Jesuítas enfarpelados de breu, no seu entender, causa de todo o atraso e malefícios sucedidos no país.

Foram, assim, mais os inimigos que os aliados de Pombal na ta-refa de salvar o país da exploração estrangeira (leia-se prioritariamente inglesa). Por isso, os tempos e as personagens não poderiam deixar de ser controversos, a originar várias leituras, a precisar da distância para melhor se compreender o pombalismo independentemente de se discutir o homem, Pombal.

De entre os vultos de «casas burguesas» de relevo no país, pre-dispostas a secundar os esforços de Pombal, distinguiu-se, em Aveiro, João Sousa Ribeiro da Silveyra. Morgado com vínculo, Sousa Ribeiro estava em perfeita sintonia com os planos de Pombal de investir nas vias de comunicação (portos em primeiro lugar) como o meio de fazer chegar os produtos a pontos distantes, e até no estrangeiro. Não bas-tava, no entender de Pombal, fazer mais e melhor. Era preciso colocar as mercancias onde delas se sentisse a falta.

Sucederia que, em meados do referido século, o Porto de Aveiro, que em tempos anteriores tinha atingido importância notória, ascen-dendo a lugar de proeminente relevo nas trocas comerciais (internas e com o estrangeiro), viu-se completamente barrado e inutilizado, inacessível, já que a natureza, caprichosa e volúvel, se encarregou de fechar o cordão litoral de areias impedindo a ligação da ria ao mar.

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Com o terramoto de 1755, Pombal precisou de todos os valores disponíveis para valer e reconstruir Lisboa. Por isso o interesse que ti-nha mostrado pela recuperação do Porto de Aveiro teve de ser adiado. Só que a situação de calamidade acontecida com o apodrecimento das águas lagunares, e o consequente fim de toda a vida no seu interior, acrescida às pestilências que grassaram e devastaram populações intei-ras, não se compadecia com tal hiato, com tal compasso de espera.

João Sousa Ribeiro bem desafiou os maiorais da Villa para pu-xarem dos seus cabedais e fazerem a obra em nome do bem público. A resposta foi um longo silêncio, de todo esclarecedor.

E foi a voz troante de Sousa Ribeiro que ecoou forte: se mais ninguém quer participar, a obra será feita integralmente à custa da casa dos Sousa Ribeiro.

E o milagre aconteceu. A laguna voltou de novo a ser esperança. E sonho. E a riqueza de novo brotou das suas entranhas.

Este feito, de entre outros que aqui damos conta, todos levados a cabo em prol de Aveiro e sua região, constitui uma verdadeira e empolgante história, um dos momentos mais decisivos (e dos mais bonitos) do historial lagunar.

E porque, por unanimidade, as gentes apodaram João Sousa Ribeiro de O Pai da Pátria e lhe quiseram erguer estátuas para que a sua grandeza nunca mais caísse no olvido dos vindouros, nos pareceu do maior interesse aqui dar relato fidedigno dos seus feitos.

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1. João Sousa Ribeiro e o seu tempo

João Sousa Ribeiro, de seu nome completo João Sousa Ribeiro da Sylveira nasceu, conforme prodigamente referido mas nem sempre documentalmente provado, em Aveiro. Encontrámos o seu assento de baptismo registado no último dia do mês de Maio de 16991, na Igreja de S. Miguel.

Fig. 1 – Assento do nascimento de JSR

Estava o século xviii a despontar. Um «século glorioso» onde se iriam verificar profundas e irreversíveis mutações, históricas e so-ciais, tanto aqui, no país, como vinha acontecendo em toda a Europa. O nascimento aconteceria, precisamente, no mesmo ano e mês2 do

1 Vários autores referem o ano de 1700. Ora quem nasceu em 1700 foi, sim, seu irmão, Francisco.

2 Esta é, desde logo, a primeira coincidência que não deixa de ser interessante, como vere-mos adiante.

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nascimento de Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal (13 Maio de 1699). Seria esta personagem singular e contro-versa quem, anos mais tarde, assumiria as rédeas de um país deixado ao fraco3 D. José I. Um soberano sem inteligência nem vontade que, segundo o testemunho de Pombal, esteve, nos últimos anos do reina-do do seu antecessor, seu pai, o rei D. João V, assistindo à decadência do país, então já inválido, sem jamais proferir reparo algum, apenas convicto da sua majestade hereditária no fútil aparato de uma inerte soberania que se assumia absoluta. D. José sucedeu, pois, a D. João V, o rei magnífico (?), um ser voluptuário e negligente4 que, segundo uma corrente de apreciação histórica, deixou o país mergulhado num idiotis-mo de imitação de sumptuosidades tontas. O povo sobrevivia miserável, oprimido e descrente, agachado na apanha das migalhas atiradas pelas classes nobres, ociosas, nutridas pelo ouro e pedrarias, albardados nas longínquas paragens do império pátrio, em cargos oficiais.5

A coincidência temporal do nascimento destas personalida-des — Sebastião José e João Sousa Ribeiro — poderá ter ocasiona-do, como sugerimos adiante, um presumível conhecimento, pessoal e directo, proporcionado na fase de juventude quando ambos fizeram os estudos em Coimbra: — Sebastião José com mau6 aproveitamento;

3 Para outras leituras, um tirano consciente e até sanguinário: — um rei pouco instruído que esgotava a sua vontade nas fadigas da caça e no prazer da música (touradas, concertos e óperas). A tal se resumia a actividade do rei, que só à noite despachava com o secretário de Estado.

4 Opinião de alguns historiadores, que vem sendo corrigida.

5 Sérgio, António cita Herculano que descreve assim este período: «Quando os diamantes e o ouro do Brasil vinham inundar Portugal de riquezas (…) então era preciso entulhar de frades, capelães e cónegos, de monsenhores, de principais, de desembargadores, de caturras, de rimado-res de epitalâmios e elegias, de oradores académicos impertinentes, o insondável sorvedouro de inutilidades públicas. (…) Obreiros hábeis a cunhar moeda, estavam supridos trabalho, instru-ção pública, actividade, tudo.», Educação Cívica, ed. Ministério da Educação, 1984, p. 81.

6 Camilo, no bilioso e truculento livro, O Perfil do Marquês de Pombal — ed. Livraria Civilização, 1936 — zurze, e arrasa literalmente a figura do ministro do reino. Repete o que acima referimos, de ter sido S.J. um mau aluno. E vai mais além. Diz Camilo: «Sebastião José era bronco. Descreve-o, mesmo, como um trauliteiro aquando da sua estada em Coimbra: a mocidade deste homem agitara-se em tempestades que hoje chamaríamos canalhas. Foi um

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João Sousa Ribeiro de lá vindo formado em «cânones»7, pronto para o exercício dos altos cargos, acessíveis e compatíveis para uma nobreza provinciana de linhagem baça, que iria pela mão de Pombal adquirir verdadeira proeminência. Bem diferente e muito mais activa, da cons-tituída pelos grandes fidalgos e senhores, alimentados, apenas, pelas graças, mercês e privilégios honoríficos, concedidos pelo soberano. Uma nobreza arrogante, indisciplinada e ambiciosa, mas praticamen-te inútil — sonhando ser igual ao rei — constituída por fidalgueiros ociosos por quem Sebastião José nutria profundo desprezo, e a quem votava profunda animosidade. Que, diga-se, era recíproca.

Senhorios de coutos herdados, por vezes de (quase) pleno e total direito, que tinham vindo flanar para os salões da corte,8 para aí, pela proximidade e atavios, melhor se insinuarem e alinharem na mendiga de mercês.

Esta frequência contemporânea de Coimbra9 e, por certo, o co-nhecimento pessoal, inevitável, viria a ser, mais tarde (na fase que se considera ser a «segunda» da actividade política de Pombal, no pós terramoto10) da maior importância para a concretização dos valiosos e

espancador distinto (p. 31), diz Camilo. Sebastião José teria vivido seis anos em Londres sem conseguir aproveitamento no falar da língua inglesa. Camilo chega mesmo a exprimir um cer-to ódio ao Marquês quando lhe vai buscar a procedência ao Padre Sebastião da Mata Escura, e à preta escrava, Marta Fernandes. Agustina Bessa Luís, no livro Sebastião José, ed. Casa da Moeda, 1984, também não poupa Pombal, considerando-o um provinciano de certa maneira rude, amando ao mesmo tempo o sucesso e uma vida sem exigências e sem grandes abismos. De baixo nascimento, com boa soma de bastardias, chamando à colagem a negra Leonor Dias ou Marta Fernandes (p. 73).

7 A Universidade de Coimbra estava especialmente vocacionada para a predominância de estudos jurídicos. E dentro destes para «cânones», dada a ambivalência deste ramo jurídi-co que permitia o acesso à magistratura secular, ou à administração eclesiástica. Fonseca, Fernando Taveira, A Universidade de Coimbra 1700 -1771, ed. Univ. Coimbra, 1995, p. 126.

8 A partir de D. Pedro, os condes e marqueses (a grande nobreza), senhores das terras, pas-saram a residir em Lisboa, junto da corte.

9 Alguns historiadores põem em dúvida a frequência da Universidade de Coimbra, por Sebastião José, muito embora não descartem a hipótese da frequência de um ou outro colégio.

10 Real, Miguel, O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa, ed. Quidnovi, 2005.

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notáveis préstimos de Sousa Ribeiro à Vila de Aveiro (mas, e também, a toda a região lagunar). Para isso terá tido, obviamente, peso decisório Carvalho e Mello, já então ministro todo-poderoso do reino que, apesar de assoberbado por milhentas questões graves que a gestão dos negócios e política do país lhe puseram pela frente, em tempo particularmente conturbado, viria, apesar disso, a dedicar particular atenção a Aveiro.

Terão sido imensos os problemas a justificar petições para re-solução dos mesmos. E muitas mais as exposições a sublinhar os an-seios, e simultaneamente a exacerbar — ou reforçar — a descrença. Estados de ânimo feitos chegar à corte por representantes da população lagunar, dando conta dos tempos angustiantes, toldados de amargura, carregados de privações, fome, e até morte, que atingiram a região, e muito particularmente a Vila de Aveiro, nos meados do século xviii, culminando um período de decadência que se começara a desenhar no século anterior. Sem dúvida um dos períodos mais negros, proble-máticos e conturbados da sua velha história, ultrapassando, em muito, a capacidade de intervenção do poder local.

Voltemos, porém, ao nascimento daquelas figuras.Detenhamo-nos num breve olhar sobre a época em que estes

homens sentiram pela primeira vez o afago pátrio na grandeza dos seus progenitores. Perceberemos melhor as questões que se iriam co-locar, anos mais tarde, à sua geração. Uma geração que iria viver uma pouco convencional revolução nacional (?), que não teve génese num escol intelectual e muito menos por forçado ditame da turba do povo, mas pragmaticamente concretizada à sombra do absolutismo por vezes despótico e severo das providências: numa mão a caneta para elaborar os decretos reformadores, na outra a vara pronta para abater e humilhar os que conspiram. Facto singularmente estranho terá sido o de, mesmo nessas circunstâncias, irromper ainda que ténue ou no mínimo con-troverso, um esboço de emancipação do povo português. Na verdade Pombal elevou o trono ao mais alto limite de poder (absoluto) para com isso — assim defendia — o libertar da influência nefasta do clero e da nobreza, a quem imputava a razão e a verdadeira causa do avexamento pátrio. Esta concepção de poder absoluto emanado de

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uma origem superior, divina, foi constante e em permanência assu-mida e propalada à exaustão por Pombal, como justificação da política traçada. Argumento com que sempre pretendeu justificar os seus actos, por mais controversos (e até cruéis) que fossem. O poder residia no rei. Mas certo é que Pombal era o mentor omnipotente do rei.11 E logo de-pois, o executor desse poder. O Estado, para Pombal, era o motor do país. Nesse sentido, entendia ser correcta e necessária uma estratégia de absoluto dirigismo económico. E se, como pensava, as reformas quase sempre falhavam devido à oposição dos que pelas mesmas eram atingidos, então, se necessário, era preciso provocar rupturas revolucio-nárias, calando esses opositores.

Houve desde logo reformas profundas de grande alcance social,12 verdadeiramente históricas, ao tomar providências para acabar (?) com a escravatura13 e estatuir a liberdade pessoal, abolindo as leis e tradições abusivas, brutais e desumanas, concedendo inicialmente a liberdade para os índios do Grão Pará. E logo de seguida para todos os índios do Brasil. Mais lata, a concessão da liberdade para todo o escravo que pisasse terra da metrópole.14 E abrindo o comércio do Brasil a nacionais (dec. de 10 Julho de 1755), que até aí era monopólio do Estado (já anteriormente o mesmo aplicado a Angola, Congo, Luango e Benguela).

No campo das classes sociais, Pombal insistiu no fomento de uma nova burguesia com a secularização do ensino — que no seu

11 Pombal seria, a partir de 1759 um «regalista». Cioso do poder de D.José I face à influência do poder eclesiástico, expulsando os jesuítas, perseguindo posteriormente os oratianos, retirando à Igreja o domínio sobre a totalidade do conteúdo do ensino «menor» e universitário, classici-zando aquele e modernizando este, nacionalizando o Tribunal da Inquisição e findando com a separação na lei entre cristãos-novos e cristãos-velhos, permitindo assim o regresso dos judeus a Portugal — Real, Miguel, A Morte de Portugal, ed. Campo das Letras, 2007, p. 93.

12 Mais claramente a partir de 1759.

13 A abolição do tráfico de escravos: «fica proibido de transportar escravos para o continen-te do reino e havidos e por libertos e forros os que ali cheguem a entrar…» — Alvará de 19 de Janeiro de 1771.

14 Os negros não ficariam apenas homens livres, mas adquiriram a consagração da sua aptidão para todos os ofícios e dignidades.

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entender devia deixar de ser ostentoso e estéril — permitindo a ascen-são dos mestres15 públicos, elevados à categoria de nobres. Reformar, foi pois, a palavra de ordem. Romper com o estatuído foi a forma de proceder quando encontrava oposição às reformas que tentava im-plementar. Em todas as frentes Pombal travou um combate16 enérgico, contrapondo ao despotismo da tradição clerical e nobre, a energia de um poder (também ele despótico), sem limites, mas intencionalmente destinado (assim acreditava) a uma mudança do estado comatoso em que o país se deixara cair. Fê-lo na reforma da educação17, no pressupos-to que seria através da instrução18 que o povo ganharia valores morais e económicos se liberto do avassalador garrote que as ordens religiosas, e em especial a Companhia,19 lhe aplicava com o fim último de o manter ignorante da verdade científica. Introduziu profundas reformas no sis-tema comercial, invertendo a decadência, promovendo o aparecimento de novas companhias20 capazes de dinamizar o comércio, e ou, assumir a produção industrial nacional,21 incrementando e alargando-a a novos

15 Aos mestres e comerciantes seria concedida a possibilidade de exibirem em actos religio-sos (tal como os nobres) o espadachim.

16 Mesmo um dos maiores críticos da altura, um ex-jesuíta desterrado em Memórias do Marquês de Pombal reconheceria: «(…) Sebastião José entrando no Ministério restabeleceu a ordem em todas as partes do governo (…) a agricultura foi animada, novas artes e novas manufacturas se estabeleceram. A Milícia apareceu debaixo de um novo aspecto; em uma palavra, as maiores reformas foram operadas.»

17 No tempo foram criadas aulas de matemática (álgebra e geometria), navegação, arquitec-tura civil e militar, desenho e outras, em simultâneo com a prática das artes.

18 Com Pombal aparece o ensino público — monopolizado pelo Estado — desligado de todo o vínculo ao clero. Só em 1773 foram abertas 40 escolas secundárias e 47 escolas primárias.

19 «(…) não resta dúvida de que sob o ponto de vista da política colonial, ao Marquês de Pombal sobraram razões para expulsar os jesuítas dos nossos domínios coloniais por decreto de 19 de Janeiro de 1759» — Cortesão, Jaime, em História da Expansão Portuguesa, p. 499.

20 O alvará de 19 de Maio de 1759 confirmando os estatutos da «Aula do Comércio», abriu novas portas aos negociantes portugueses. Até então, os simples guarda-livros tinham de se ir recrutar a Génova e ou a Veneza.

21 Um dos casos mais paradigmáticos foi a Real Fábrica de Seda. Para isso vieram operá-rios especializados de Lyon; a fábrica iniciou-se instalada no Rato, sob direcção de particulares.

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produtos fabricados no país.22 Para esta profunda mudança essencial para nos libertar do jugo estrangeiro, era necessário rebaixar os poderosos de modo a permitir o aparecimento de uma nova classe social, culta, progressista e empreendedora, capaz de recriar uma sociedade nova.23 Que iria contar com uma elite de funcionários especializados, integra-dos no «Erário Régio» (1760), organismo em que se centralizaram as contas do Estado e que tratava do controlo dos impostos segundo regras comerciais de importação e exportação. Uma espécie de Ministério da Fazenda (ou Ministério das Finanças do século xx).

Lutando contra o morgadio que contrariava o uso honesto do domínio, impedindo a multiplicação de famílias, Pombal atacou o au-mento, e até, a conservação das casas nobres num único senhorio, que entende serem prejudiciais ao erário régio e ao comércio dos vassalos.24 Tudo ideias que duas dezenas de anos, mais tarde, seriam incluídas no cardápio dos princípios libertadores da revolução francesa. Não se pode, contudo falar de ideias iluministas25 em Pombal, se não de uma maneira ténue e muito vaga. Talvez só e apenas no campo educacional e pedagógico. Mas é inegavelmente certo e incontroverso que com a sua acção determinante, Pombal (regalista) pretendeu aproximar Portugal dos restantes países da Europa.

Homem exaltado por uns em demasia, ou caluniado e ofen-dido por outros, por mero antagonismo — que não justificaria a

Rapidamente, dado o elevado esforço financeiro, «teve o Governo de a tomar por sua conta».

22 A criação da Aula de Comércio é uma concretização dessa vontade.

23 Muitas outras áreas se desenvolveram durante a grande transformação manufactureira do país. Estão, nesse caso, as indústrias do vidro, lã, algodão, refinação do açúcar, tabaco, cor-dame, papel, cerâmica, indústria militar e naval, etc. Só em 1770 foram criadas 200 unidades manufactureiras.

24 O fim desta lei «era sustentar o património das casas e facilitar o matrimónio dos filhos delas».

25 Pombal, através da Mesa Real Censória, fixou vários livros como proibidos de serem lidos. E, em 1776, é mesmo impedida a publicação do Elogio de Descartes.

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ignomínia — decerto e indiscutivelmente figura controversa,26 não é difícil nele reconhecer o ser implacável (cruel!) para o indivíduo que o desafiava. Ou para quem se colocasse como obstáculo às suas pre-tensões e intenções, que considerava servirem o colectivo do seu povo. Todos os embaraços para travar a luta reformadora do estadista eram desabridamente removidos pelo seu braço duro, vigoroso, inflexível, e até por vezes inclemente. Assim, sem tibieza, sem tiques ou sinais de misericórdia, enviou para o cadafalso, ou deportou para exílio, muitos que tiveram a arrogância (ou somente pretensão) de se lhe opor.

Duro, não mostrou ou permitiu qualquer tipo de indulgência (ou excepção) para os que o afrontaram quando pretendeu acabar com o fosso da desigualdade ao limitar a ostentação de sumptuosida-de à fidalguia e aos altos dignitários da Igreja; foi inflexível, inamovível quando decretou o fim da distinção de raças. Ou ainda quando de-terminou o fim da distinção entre puros e impuros. Seria contundente e convicto quando ordenou a libertação dos escravos desembarcados dos barcos negreiros.27

Longo foi o período em que os historiadores olhavam o carácter de Pombal, mais preocupados com a sua personalidade controversa e extremada, do que detidos sobre a sua obra. Desta arte permitin-do, se não fomentando, a inverdade histórica. A falha de abordagem e aprofundamento histórico fez com que nem sempre fosse avaliada com rigor, e ou intuída, a excepcional validade da sua acção, quando prodigamente legislou na pretensão veemente de aproximar Portugal dos países desenvolvidos da Europa. E foi só quando se deixou de analisar o autor e se passou a estudar o Pombalismo, que se anteviu a

26 A acção da vontade dos homens não é completamente estéril (…) ainda quando seja, como foi a do Marquês, viciada por uma crueldade ferina (…) se o Marquês condenava a uma ruína (…) batia de frente o Portugal jesuíta, consumava uma revolução, mostrando ao português, beato e ensandecido, que havia no mundo alguma coisa mais do que freiras e marmelada, piedosa luxúria e visões desvairadas. Martins, Oliveira: História de Portugal, Ed.Guimarães & Comp., Lisboa, 1977, p. 490.

27 Os negros desembarcados, chegados à metrópole, passariam a ser livres, sem nenhuma indemnização a pagar aos senhores.

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grandeza inquestionável do estadista. Borges de Macedo28, elogiando a tarefa de Pombal, foi um dos primeiros a incitar que se fosse além da investigação do carácter da figura humana, para focar e dar relevância aos aspectos das transformações económicas e culturais introduzidas por Pombal, no contexto daquela época.

Por sua vez o historiador Disney29 vai ao ponto de afirmar: no other figure statesment has ever cut a more commanding figure as Pombal (…). During this remarkable era (…) unprecedent change occurred…

Embora predestinados para fins diferentes, um envolvido com o país, o outro servindo a sua região, certo é que ambos — Sebastião José e Sousa Ribeiro — sobrelevaram-se ao vulgo, atingindo superior notoriedade e lustro. Um alcandorando-se a figura entre os primaciais pátrios. Controvérsia à parte, vulto proeminente entre os maiores da História de Portugal. O outro, Sousa Ribeiro, com dimensão local inigualável, inquestionável, porventura só mais tarde igualada pelos grandes lutadores liberais aveirenses do século xix. De qualquer modo ambos fazendo jus ao título de verdadeiros salvadores, egrégios e indis-putáveis «pais da pátria». Verificaremos adiante que ambos, Sebastião José e Sousa Ribeiro, tiveram visões muito próximas sobre o essencial, o necessário e urgente, para salvar o país lastimosamente enfermo, prostrado em estado de indignidade exulcerante.

Desde logo e pelo menos num ponto, são indiscutíveis as atitu-des de convergência na visão que ambos possuíam, de que para salvar o país era necessário produzir, revitalizando, incrementando e fomen-tando a produção nacional. E logo depois criando condições para co-locar esses produtos no exterior. Ora, uma das grandes dificuldades das reformas económicas de Pombal residiu na inexistência de vias de comunicação. E de fracos ou inexistentes meios de transporte, difi-cultando a implementação ou a reanimação de medidas económicas, ou até, a sustentabilidade de algumas levadas à prática. Entre outras

28 Macedo, Borges, A situação económica no tempo de Pombal , ed. Gradiva, 1989, 3.ª ed., p. 26.

29 Disney, A. R., A History of Portugal and the Portuguese Empire, Cambridge.

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tarefas ingentes, era essencial fazer um ordenamento (e recuperação) dos portos do litoral português, abrindo-os à navegação,30 pois que esta era o meio mais rápido e seguro de ligar as regiões produtoras às consumidoras, permitindo a actividade comercial no país, bem como as trocas deste com o estrangeiro. E assim houve desde logo que defi-nir uma estratégia portuária: definir os portos que serviriam as trocas entre as regiões litorais do país, e aqueles que seriam dotados de con-dições para promover as exportações.

Os têxteis, as armas, o ferro, o milho, o trigo… tudo vinha e ia pelo mar, dada a inexistência de vias de comunicação terrestre. O sal era a nossa primeira e preciosa exportação. Havia que criar riqueza própria, para isso revitalizando ou fomentando nova e diversificada produção nacional. Criando fazenda para trocar com o que se impor-tasse, de modo a diminuir, a nossa dependência do exterior. Que era praticamente total.

A partir de 1770 foi perseguida, sistematicamente, uma políti-ca manufactureira, apoiando-se as artes (ofícios) num país carecido de todas as manufacturas de primeira necessidade. É assim de imediato elaborado um plano contendo as «vinte manufacturas principais» que urgia desenvolver. E arquitectado o projecto para as estabelecer (que se pretendeu resguardado do conhecimento inglês a fim de evitar retaliações comerciais). Ao mesmo tempo que se identificavam, de entre aquelas, as que escapadas à vigilância inglesa, já estavam instituídas e em labo-ração, justificando apoio governamental.31 Procurava-se, desse modo, aumentar a sua produção para incrementar a utilização de mão-de-obra local, criando riqueza de um modo sustentável.

30 Umas das ordenações de Pombal foi que se erigissem seis faróis na costa portuguesa, para ajuda e segurança das embarcações (Lei de 1 de Fevereiro de 1758). E impulsionou a especiali-zação dos Portos, dinamizando o estudo de obras para sua melhoria, superiormente dirigidas pelo notável engenheiro do reino, Manuel da Maia.

31 E quando necessário, o Marquês até encomendou empresários e comerciantes estrangei-ros: Vanzeller, Ratton, Bacigalupo, Verdier e outros. Martins Oliveira, ant. cit, p. 489.

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Ambos, Sousa Ribeiro e Sebastião José — a diferentes esca-las — pensavam exactamente na urgência em modificar o país que tinham herdado: — um país indolente, com olhos cobiçosos, aguar-dando expectante a chegada dos quintos32 fulvos com que se alimenta-va o morgadio soberbo e preguiçoso. Era pois necessário, desde logo, promover e glorificar o trabalho nacional, já que o ouro que chegava do Brasil, mal descarregado das naus, saía imediatamente para mãos estrangeiras a fim de comprar tudo o que era necessário. Mas e até, o desnecessário e acessório. O luxo sumptuoso, prodigioso, viria a des-truir fortunas, filho da corrupção dos costumes de inseparáveis osten-tações que se apossou daqueles que procuravam, apenas, distinguir-se pela jactância. Uma grande parte, a enorme fatia, esvaía-se, pois, para mãos inglesas. À época se afirmava: a Inglaterra subministra a Portugal, além de vestidos alimentos, os materiais para edifícios, e todos os objectos de luxo, recambiando-lhe as suas matérias-primas depois de manufactu-radas; nestes trabalhos se ocupam um milhão de ingleses.

O país favorecido pelas riquezas do Império — fictícias, pois quanto maior era a sua existência, menor era o seu valor 33 — vivia numa ideia enganadora. Cada vez mais dependente do exterior de tudo o que precisava, era certo que, tarde ou cedo, inevitavelmente, soçobraria.

Perdida a supremacia no oriente, as riquezas da Índia deixaram de ter o significado dos séculos anteriores; só as riquezas vindas do Brasil pareciam, então e de novo, inesgotáveis. Mas a habilidade mer-cantil dos ingleses tendo por princípio o mais meticuloso egoísmo na-cional e fazendo uso dos mais restritivos condicionalismos, fazia reverter

32 No século xviii contabiliza-se como mil toneladas, o ouro arrancado no Brasil. Deste ouro — que ia praticamente todo para Inglaterra — Portugal apenas ficava com a quinta parte dos quintos — calculados em 100 milhões de cruzados. (Bourdon, Albert-Alain, in História de Portugal).

33 Caso dos diamantes do Brasil, em que a sua extracção intensa fez descer o seu valor a preços ridículos.

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em seu favor o pecúlio das empresas comerciais. Portugal tornara-se um feudo do império britânico.34

Quando aqueles ilustres nasceram, estávamos então no termo da vida de D. Pedro II. Estávamos perto do ano de 1706, o início do reinado do «Magnânimo» D. João V, sobre o qual são contraditórias as apreciações dos nossos mais representativos historiadores.

Poderemos aqui abreviar as duas posições «extremas», apreciati-vas da história sobre este controverso Rei.

Uma corrente é a que reduz o reinado da afirmação absolutis-ta deste descendente da casa de Bragança, «a um tempo perdido da história pátria». Focada num rei dissoluto, frequentador inveterado de ninhos amorosos, estranhos e proibidos, de uma Petronilha da ópe-ra do Bairro Alto, ou de uma Gamarra que abandonaria o marido pelo rei. Mas o seu maior delírio de paixão tinha especial expressão nos catres coalhados de deslumbrantes colgaduras de seda brocadas a prata e ouro — dignas de uma rainha — das beatas soror Paula & Comp.ª das celas de Odivelas, que o rei transformará em lupanário de luxo: — jarrões da Índia, talhas douradas, mosaicos italianos, móveis de ébano embutidos de marfim, espelhos de Veneza, etc.; todo o luxo sonhado na época se acumularia na sala decorada a fogo, no maior desvario lúbrico onde se misturava o perfume do amor carnal com a voluptuosidade do perfume doce do incenso. Servido por mulatas de arrecadas de ouro nas orelhas, o rei era acalmado das apelativas e insistentes tentações carnais lascivas pela irmã Paula que, vaporosa, dolente e sensual, oferecia o amor sem pecado (?) em tentadores trajes rendados. Serenados e satisfeitos os apetites sôfregos, colhida acalmia e reconforto para o vício travesso, lavadas as mãos nas pias de prata que descansavam ao lado do leito amoroso, o rei lá seguia rodeado da sua ociosa, indolente e envilecida corte, ajoelhar, devoto e solene, cerimo-niosamente, em Te-Deum de fervorosa graça.

34 Ao tempo já se dizia: «a Inglaterra teve bons comerciantes; Portugal teve hábeis almirantes, mas nunca bons ministros».

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Desses doces tempos lassos, resta a marmelada de Odivelas e o pudim da madre Paula, como memória de um tempo em que era chique um nobre ter freiráticos convívios, alimento fácil e fértil, moti-vação picaresca para os folhetins truculentos da época.

De facto é comum atribuir a este período o epíteto do reinado das alcovas freiráticas frequentadas pelo dissoluto D. João V, e acó-litos poderosos que exauriam nas ditas o vigor com que faltavam à pátria. O país corria como que indiferente à guerra, pois nem nesta se demonstrava fervor ou querer de vencer, ou sequer vontade para dela fazer uso como factor de estímulo, sublimação e agregação, da consciência nacional. Era um tempo de manso despotismo onde se alquebravam e exauriam os restos de vigor e hombridade do povo. Um tempo de frivolidade onde a magnificência exibida aos olhares contrastava com a miséria das gentes, tapando uma qualquer aberta por onde penetrassem os ventos iluministas que já varriam a Europa. Ventos de secularização do conhecimento trazendo no seu seio uma ciência moderna, experimental, criadora e racional, capaz de arrancar uma população ao estado inculto que o monopólio da Igreja tudo fazia para manter. Reprimindo com sanha inquisitória toda a velei-dade de afirmação e divulgação das novidades científicas que consi-derava heréticas. Em Portugal a falsa grandeza simulava civilização; o absolutismo joanino expelia bravatas (delirantes) nos introdutórios das suas leis que não passavam de regras estéreis, feitas para não serem cumpridas. Até o que se produzia na escrita livresca era grosseiramente erróneo, mais de acordo com os tempos de trevas da idade média.

Toda a ciência certa tinha a censura do poder clerical impedin-do a divulgação, cortando célere o acesso a um Newton escorraçado como um utópico perigoso e sacrílego, herético. Negando o acesso a um Descartes, um heterodoxo visionário, por cuja proibição da divulga-ção das novas ideias e conhecimento, o Santo Ofício zelava atentamente. E nem os conceitos de Copérnico e ou de Kepler sobre o movimento da Terra escapavam a uma simples classificação de exercícios especulati-vos, provinda da atenta, toda sabedora e zelosa, Inquisição.

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É esta, a traços largos, a visão dos historiadores anti-absolutistas (onde se destaca Oliveira Martins) que severa e contundentemente, sem peias, consideram despótico, embora inerte, o tempo joanino. Aniquilador da vontade35 e consciência de um povo. A pobreza e sofri-mento deste (que várias vezes e por muitas partes do país criaria conflitos sociais de monta, originando levantamentos, motins, greves e arruaças) contrastava com o absurdo do fausto de uma corte sumptuosa, gran-diosa, magnificente e deslumbrante, em que a riqueza e ostentação pareciam não ter limites.

Para aquela linha de historiadores, críticos do absolutismo, a própria literatura da época era um produto de gongórica e estrondosa alegoria, estéril e bacoca. A que nem a fundação da «Academia Real da História Portuguesa», fruto da frequência assídua dos salões faus-tosos onde se passeavam eruditos académicos com cuja presença o rei julgava alimentar e reforçar o seu poder absoluto, conseguiu desviar da maneira de pensar. Alimentada pelo sermonário dos púlpitos profanos e extravagantes ou inscrições panegíricas de elogio (em prosa ou em verso) a personagens eminentes, a corte vivia nas pompas sumptuo-síssimas, deslumbrantes e aduladoras, nos elogios hiperbólicos onde medrava a vulgata delirante, e onde se não descortinava o vulto, com-prazendo-se no elogio destinada à ignorância fanática. A corte era um lugar central na estruturação e afirmação das elites cortesãs.36 Assim o pensavam, os anti-absolutistas. Foi isso o que o reinado beato e devasso de D. João V veio mostrar, patenteando um regime de costumes ridículos e nojentos, diz Oliveira Martins37 na sua História de Portugal.

Mas para outros estudiosos mais contemporâneos que se deti-veram sobre aquela primeira metade de oitocentos, focalizando-a em

35 Dizia D. João V: «Todos os meus súbditos são outros tantos ociosos, a quem a preguiça induz a abraçar a vida monástica (…) o meu reino é uma espécie de convento».

36 Monteiro, Nuno Gonçalo em «Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia», p. 341. História de Portugal, vol iv, dirigida por José Mattoso, Ed. Círculo de Leitores, 1993.

37 Martins, Oliveira, História de Portugal, ant. Cit., p. 435.

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momento posterior, mais distanciado da época, existe uma perspectiva de sinal contrário, quase diríamos diametralmente oposta à anterior avaliação radical. Atendendo e dando maior relevância às circunstân-cias em que se desenrolou o reinado joanino. As duas visões têm ape-nas em comum a verberação do desaforo despesista, questionando al-gumas obras de grandiosa ostentação — embora elogiando o tesouro artístico legado, caso do Convento de Mafra, a Patriarcal, a Biblioteca da Universidade de Coimbra, entre outras — sublinhando e dando apreciável relevo a algumas em particular, ao referir o impacto das van-tagens advindas para as populações com a sua implementação, como foi o caso do Aqueduto de Águas Livres. Esta apreciação releva como de «menor importância» o comportamento libertino do monarca (trans-mitido a toda a corte que o rodeava), detendo-se mais na compreensão das realidades geopolíticas, sociais, culturais e mentais, em que se desenro-lou o reinado joanino38 que rotulam como o reinado magnânimo.

E dentro dessa corrente histórica, é elogiada a política de D. João V39 na administração e segurança do comércio com o Brasil, a que se junta uma acertada escolha de sábios ministros: D. Nuno da Cunha Ataíde, D. Diogo Corte Real e Frei Gaspar da Encarnação.40 Ou de notáveis e reputados embaixadores, como o Conde de Tarouca, D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão e outros, todos eles concei-tuados diplomatas diligentes, sabedores e inteligentes, que muito se esforçaram na dinamização do comércio exportador (especialmente com Inglaterra). Reconhece esta corrente de apreciação positiva do rei-nado «magnânimo», como muito decisivo o impulso dado no reinado joanino à produção de manufacturas (no intuito último do reforço

38 Entre outros, Cortesão, Luís Ferrand de Almeida, Eduardo Brasão e Borges Macedo. Ou até José Hermano Saraiva.

39 Bourdon, Albert-Alain considera, na sua História de Portugal, o reinado de D. João V «como dos mais longos e prestigiosos».

40 Este Fr. Encarnação era tio do Duque de Gouveia, mais tarde Duque de Aveiro, que daquele receberia benefícios de toda a ordem, o que fez da casa de Aveiro uma das maiores casas ducais portuguesas.

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do poder do Estado): exemplo desse esforço, as fábricas de papel na Lousã, de vidro em Coina, a de atanados em Alenquer, e a de Sedas no Rato. A que se junta a renovação do Estaleiro das Naus, das ferrarias na Foz do Alge, e das fábricas de lãs da Covilhã.

Os seus intervenientes vão mesmo ao ponto de descortinar no rei, firmeza e audácia, quando se colocou ao lado do ministro Diogo de Macedo na desavença que este teve com os Jesuítas, ainda que em documentos da época se prove que tais actos teriam sido, tão só, pro-duto de mero calculismo provocado pelo receio de que o consideras-sem inconsiderado e leviano. A ameaça de expulsar os Jesuítas, casta que explorava avidamente o país e a cuja sombra Portugal se definhava e se corrompia (ameaça que setenta anos mais tarde se poria termo pelo decreto de Pombal, anteriormente referido), serve aos autores alinha-dos com essa corrente para elogiar no «Fidelíssimo», uma certa força de ânimo e firmeza de carácter, contrastando com uma certa timidez e frouxidão que lhe eram comummente apontadas.

A própria necessidade de aumentar a extracção do ouro e diaman-tes para assim equilibrar o défice com os gastos sumptuosos em constru-ções megalómanas, ou prodigamente esbanjados na sustentação do pres-tígio da imagem da corte no estrangeiro, parecem não merecer censura nas novas leituras, mas apenas decisão louvada ao rei. Ainda que no pro-jecto de uma visita intentada à Europa com uma duração prevista de um ano — que dizia desejar passasse incógnita (!) — reprovada por Castelo Melhor, D. João V pretendia ser acompanhado por um séquito de 200 pessoas e 80 guardas, num gasto previsto de oito milhões de cruzados!41

Algumas questões são, contudo, pacificamente aceites pelos es-tudiosos: o rei teria tido uma esmerada educação de onde lhe adviria uma propensão para um actuação de mecenato régio atraindo gran-des artistas estrangeiros (Canevari, Nasoni, Mardel, Garbo, Ludovice

41 Se quisermos ter uma noção deste valor podemos compará-lo aos doze milhões que custou o Convento de Mafra.

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e outros) ou fomentando a instalação de notáveis bibliotecas,42 pro-movendo e suportando a aquisição de livros de apoio às artes, e ou às instituições culturais. De que o maior exemplo reside na fundação da anteriormente referida «Academia Real da História Portuguesa» em 1720. E até promovendo a feitura de grandes estudos históricos, caso da monumental História Genealógica da Casa Real Portuguesa, para lá de outras, também elas relevantes: Biblioteca Lusitana de Diogo Machado ou O Vocabulário Português e Latino de Rafael Bluteau. Contraponto de outras formas menores de elegias em tons panegíricos superlativos (o verso estava então em moda) de adulação ou de encó-mios hiperbólicos que mostravam «a face de profunda baixeza e deca-dência da razão em que mergulhavam as novas gerações». Enaltece-se ao rei o ter proporcionado um verdadeiro movimento filosófico de que é figura mais destacada, Luís António Verney, autor do célebre e revolucionário Verdadeiro Método de Estudar.43

42 Embora se verbere «o facto dessas grandes e sumptuosas bibliotecas estarem sepultadas num claustro, ao dispor de uma casta fradesca que apenas devia ler os livros que a ensinasse na prática do bem», Cormatin, Barão de, A Administração do Marquês de Pombal, ed. Bonecos Rebeldes, Junho de 2010.

43 Verney, oratoriano, um empirista de tendência claramente anti-metafísica, defendia uma laicização do ensino. Posição que punha em causa a omnipresença jesuíta. A sua obra viria lançar uma tumultuosa discussão no panorama intelectual português, contribuindo, inques-tionavelmente, para uma aproximação com o progresso cultural que animava os espíritos iluministas europeus mais progressistas.

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Fig. 2 – Método de Estudar

Mas a verdade é que o Rei Sol terá dado particular atenção ao reforço da Inquisição, numa perspectiva de afrontamento com todas as doutrinas e posições que pusessem em causa o carácter absoluto, régio. E dentro desse provimento reforçaria e desenvolveria, não apenas a es-trutura central do tribunal inquisitório, como apoiaria as nomeações de «grupos familiares» do Santo Ofício (decreto de 20 Novembro de 1737). Cargos disputadíssimos, pois que para os nomeados revertiam importan-tes dádivas de valorosos privilégios: fuga às fintas, isenção de prestação nos ofícios dos concelhos e, até, impedimento de confiscação de bens. Para lá da permissão de uso de armas, capacidade de foro, cível e crime, poder de recrutamento militar e isenção da prática do mesmo.

Ora, Pombal e Sousa Ribeiro, nascidos neste turbilhão absolutista, tiveram — descortinamos — muitos pontos de comum entendimen-to. Eram ambos oriundos de famílias abastadas, mas de uma certa (bai-xa) nobreza provinciana sem grande historial ou lustro — um outro Sebastião, avô de Sebastião José, terá casado com D. Leonor de Ataíde, filha de Gonçalo da Costa Coutinho, governador de Aveiro — até cer-

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to ponto mais ligados ao homem comum que à grande nobreza fidalga44. Adiante referiremos as origens de Sousa Ribeiro.

Fixemo-nos para já, de passagem, sobre Sebastião José. Tenta a iniciação na carreira militar, muito embora sem êxito45 nem glória, re-cusada que lhe terá sido uma promoção a capitão. Vai valer-lhe a for-tuna herdada de seu tio, Paulo de Carvalho Ataíde, lente de Coimbra e arcipreste da Patriarcal, homem de grande merecimento que lhe dei-xará bens em Oeiras e Sintra, prédios em Lisboa, e uma boa maquia de moedas. E tão ou mais importante: o introduzirá junto de D. João da Motta, cardeal e primeiro-ministro, que enviará Sebastião José em missão diplomática para Londres, com a incumbência de «perceber e apurar as causas pelas quais, era activo e opulento o comércio com os estrangeiros, e passivo e miserável o dos nossos nacionais», tão maltra-tados eram por aquele país, velho aliado.46

Durante a estadia em Inglaterra, Sebastião José iria aperceber-se da existência de uma Igreja afastada de Roma, mas fiel ao seu rei. Esta observação fará germinar em Sebastião José uma ideia fixa que perse-guiu obstinadamente quando alcançado o poder: a de acabar com os privilégios do império teocrático, relegando a clerezia para os domínios do espírito, submetendo às regras seculares a arrogância e até a tirania do poder eclesiástico (caso dos tribunais da Inquisição, nacionalizados, cujos bens foram entregues ao Estado, e cujas decisões, em ultima análi-se, passaram a ser passíveis de apreciação pelos tribunais cíveis.)

Deixemos Sebastião José no cumprimento da sua missão, onde acabaria por ter um elogioso desempenho, conseguindo meritórias de-cisões em favor do nosso país. A 26 de Janeiro de 1741, o representante

44 Sebastião José casou com D. Teresa de Noronha, filha de D. Bernardo de Noronha e de D. Maria Antónia de Almada, Donatária de Ílhavo. Sobre esta D. M. Antónia, ver: Fonseca, Senos da, Ensaio Monográfico de Ílhavo Séc. X – Séc. XX, Papiro Editora 2007, p. 58.

45 Entra mesmo pelo posto mais baixo.

46 Nação privilegiada, a Inglaterra permitia — ou até alimentava — actos de pirataria sobre embarcações portuguesas, promovendo o contrabando, inclusivamente do ouro do Brasil. E impondo sobretaxas a produtos essenciais à alimentação da população portuguesa.

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em Lisboa daquele país, assegurava que tão cedo quanto possível, seria decretada a revogação da proibição da exportação de cerais de que havia forte carência em Portugal.

Voltemos, então, a Sousa Ribeiro.

2. As origens de João Sousa Ribeiro (da Sylveira)

Sousa Ribeiro é descendente dos «Ribeiros» de Aveiro. Era filho de Manuel de Sousa Ribeiro da Sylveira de Oliveira Barreto, natural de Aveiro, e de sua mulher Maria de Oliveira Da Fonseca, natural da freguesia de S. Salvador, Ílhavo. Os «Ribeiros» tinham casa instalada no largo do Terreiro, junto ao mosteiro das Carmelitas.

Nascido em 1699, na freguesia de S. Miguel da Vila de Aveiro, Sousa Ribeiro irá prosseguir estudos superiores na Faculdade dos Sagrados Cânones, da Universidade de Coimbra.

Será elevado à categoria de «Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo» por alvará de 26 de Abril de 1727, que reproduzimos abaixo.

Fig. 3 – Alvará da nomeação de JSR a Cavaleiro da Ordem de Cristo.

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Trata-se de uma honrosa, e das mais significativas promoções so-ciais, concedida com beneficências e privilégios reais. Ao longo do sécu-lo xvii, esta Ordem que D. Dinis tinha criado para suceder à Ordem do Templo, tornar-se-ia um império dentro do Império. Administrando uma estrutura semi-governamental paralela, que incluia fazendas, hospitais, escolas, fortalezas, marinha mercante, caixa económica, serviço de car-tografia e inteligência, batalhões militares e força naval, tornar-se-ia, as-sim, uma espécie de pequeno vice-reino monástico. Economicamente a Ordem era, praticamente, auto-suficiente.

Em 1780 contava com 30 mil cavaleiros combatentes — in-cluindo as forças navais e terrestres — e 40 mil em funções de apoio. Além de abrigar 250 mil dependentes e auxiliares não-professos.

Não ficaria por aqui limitada a ascensão social de João Sousa Ribeiro.

Em 26 de Junho de 1742, Sousa Ribeiro viria a ser nomeado «Familiar do Santo Ofício».

Clarifiquemos um pouco esta subida na hierarquia social para melhor compreender, e assim retirar a carga negativa que aos olhos de hoje possa sugerir, aos mais desatentos, a posse deste cargo.

Comecemos por perceber, desde logo, que o julgamento de cons-ciências não tinha a carga de crime abjecto contra a liberdade pessoal, tal como o entendemos nos tempos actuais. Porque esse conceito ain-da nem sequer existiria, ou nem sequer estaria, então, percepcionado.

Durante cerca de três séculos,47 o Tribunal de Santo Ofício aju-dou a manter o país numa teia medieval de trevas — de apagada e vil tristeza — em que o atraso e a ignorância do povo era estratégia elaborada pela Igreja, com fim último de evitar que o conhecimento pudesse trazer com ele o colocar em causa os dogmas da fé. Cobrando, desse modo, a exigência de «uma partilha de poder sobre as almas».

47 O Tribunal do Santo Ofício foi instituído por bula de Papa Paulo III, a solicitação de D. João III, em 23 de Maio de 1536.

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Julgados pelo Tribunal do Santo Ofício, eram todos os crimes de heresia, os praticantes de bruxaria, os blasfemos, bigamos, sodo-mitas e outros. Em Portugal este tribunal terá poucas preocupações com a heresia, ao contrário do sucedido na Europa, em que o protes-tantismo teve notável acolhimento, justificando particular atenção (e medo) à Igreja de Roma. Para a delacção de um qualquer crime inclui-do naquele cardápio, talvez não acreditando no voluntarismo dos fiéis ao rei, e ou à Igreja, foi criado um «corpo de Familiares» cuja função era, na sua área de habitação, e ou actividade, efectuar denúncias dos casos identificados. Para além disso era sua primordial incumbência, a prestação de ajuda nas diligências e execução das sentenças.

Contudo, na prática (e muito especialmente fora dos grandes centros), os referidos familiares limitavam-se a receber as visitas e cuidar dos aspectos logísticos de acomodação dos Inquisidores em missão.

E no século xviii (que abordamos) a existência destes Familiares era (já), apenas, uma maneira de a coroa recompensar a nobreza local com uma distribuição de privilégios, como atrás referido, nomeada-mente: isenção de impostos e de obrigações comunitárias, de presta-ção de serviço militar, de alojamento de tropas, etc. Era-lhes, ainda, concedida autorização de usar vestuário de seda, mesmo não sendo cavaleiros, e permissão de uso e porte de armas. Muito significativa, socialmente, era a concessão, aos Familiares, de reconhecimento de ju-risdição privada na maior parte dos crimes e disputas judiciárias em que pudessem estar envolvidos.48

A ascensão de Sousa Ribeiro a Familiar do Santo Ofício, com-prende-se, se atentarmos que provinha de uma família com fortes li-gações à Igreja Católica.

Era vulgar neste tipo de família, que uma expressiva maioria dos descendentes (praticamente todos à excepção do morgado) seguisse o caminho da prática religiosa. Os rapazes tomavam o hábito de frade,

48 Bethencourt, Francisco: História das Inquisições (Portugal, Espanha e Itália) — ed. Círculo de Leitores, p. 125.

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ou monge, seguindo uma carreira eclesiástica, por norma altamente compensadora. Quer sob o ponto de vista material — acumulando cabedais para a «casa» do morgado — quer sob o ponto de vista de aquisição de saberes. Quanto à prática religiosa, ela estava na maior parte dos casos bem longe das regras de devoção canónica. Tão es-quecida e impraticada estava a abstinência carnal e o jejum de muitas tentações avulsas, bem como práticas cristãs de ajuda ao próximo.

Por sua vez, os elementos femininos encalhavam num ou nou-tro convento, assistidos pelas suas serviçais, que levavam consigo para a clausura. Prontas a servi-las, rodeando as recolhidas de mimos e conforto. Eram clausuras brandas. E até, em alguns casos, a clausura era propriciadora de muito maior liberdade que a usufruida em casa paterna. Fugiam à regra da clausura, uma ou outra filha de família destinada a, com generoso e negociado dote, acrescentar dimensão ao morgadio — e às vezes fidúcia — por «acertado» casamento com descendente ilustre, de preferência morgado, provindo de boa casa.

Dos dez irmãos de JSR, só o próprio e o seu irmão mais velho não seguiriam um tal caminho.

E já na sua prole, apenas cinco enveredaram por não vestir o há-bito. JSR foi, pois, educado dentro dos rigorosos parâmetros em que a Igreja se confundia com a Pátria. Defender uma, era defender a outra.

Ao assumir o cargo de capitão-mor, JSR já se integrara numa es-trutura de força pública que constituía a base da ordem social e política. Ora, para a manutenção destas, era fundamental que a exclusividade religiosa fosse garantida. Os dois cargos tinham, pois, numa leitura tem-poral, ao fim e ao cabo, uma mesma finalidade. E por isso não se pode analisar, numa perspectiva de hoje, a pertença, então, a um corpo co-laborante com actos inquisitórios(porque essa pertença aos Familiares, não tinha esse significado, mas tão somente um significado honorífi-co). Aliás, não se conhecem, em Aveiro, graves problemas que tenham obrigado à intervenção do Santo Ofício. Isto apesar de a vila, a partir do século xv, ter atraído uma expressiva e activa colónia judaica, que ali se veio instalar, despertada pelo forte pendor mercantil que se tinha declarado na vila, onde se verificava um intenso desenvolvimento das

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transacções comerciais, nas quais os judeus eram figuras dominantes. O bacalhau e o sal provocaram, naquele século, um assinalável fluxo comercial com o exterior, que se iria manter, ainda, no século seguinte. Por outro lado na estrutura da sua população, desde os primeiros tem-pos (ainda mesmo anteriores à formação da vila) ocupou lugar especial, de grande destaque, a colónia moçárabe. Comprovadamente já ali ins-talada desde data anterior à formação da vila, dispersa pela laboração nas actividades do sal, pesca e olaria. Poderemos, pois, afirmar ter havi-do sempre um grande entendimento e uma vivência de paz e boa vizi-nhança entre estas colónias de gentes49 instaladas, de culturas e religiões diferenciadas que souberam adaptar-se, com facilidade e pragmatismo, às alternâncias de poder verificadas nos tempos anteriores à fundação, e nos primeiros tempos de domínio cristão. Vivência que seria mantida e até aprofundada por miscegenação, com o passar dos séculos.

João Sousa Ribeiro viria a casar, em 1743, com D. Brites Joana da Silveira, filha de Jerónimo de Magalhães Coutinho Cardozo, e de sua mulher, D. Maria Jerónima da Silveira Bacelar.

Deste casamento nasceriam:1 – João de Souza Ribeiro Sylveira Magalhães, capitão de ca-

valaria em Chaves, sem descendência.2 – D. Joana Sylveira Magalhães, freira no Convento de Jesus3 – D. Margarida Sylveira Magalhães, freira no mesmo

convento.4 – Miguel Souza Ribeiro de Magalhães, frade Bento.5 – D. Maria Clara Ribeiro de Magalhães, freira no Convento

de Jesus.6 – Manuel Sousa Ribeiro da Sylveira, juiz da Alfândega de

Aveiro, por sucessão a seu pai.7 – D. Rosa Sylveira Magalhães, solteira.8 – D. Ritta Sylveira Magalhães, freira no Convento de Jesus.

49 Fonseca, Senos (ant. ref.) sublinha a possibilidade de, a igreja de S. Miguel, poder ter sido um templo árabe, onde, em plena concórdia e alternadamente, se teriam celebrado dife-rentes credos religiosos.

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9 – D. Inês Sylveira Magalhães, que casaria com Sebastião José Pizarro, fidalgo da coroa.50

João Sousa Ribeiro da Sylveira era neto paterno de Manuel Ribeiro de Oliveira e de Maria da Silveira Cardosa, da Freguesia de S. Miguel. E neto materno de Domingos André51, de Alqueidão, Ílhavo, e de Luísa de Oliveira, natural de Eixo.

Terá JSR recebido grossa fortuna provinda de seu avô materno, cabedais que lhe irão abrir as portas da Santa Família, tendo sido nome-ado por carta de 26 de Junho de 1742. Para isso cumpriria os requisitos indispensáveis: «ter fortes cabedais», ser «limpo de sangue», provindo de gente de «bem proceder e de confiança», de idoneidade comprovada, e senhor de «fazenda suficiente para viver abastadamente». Tais eram os requisitos indispensáveis para a integração num posto com aquela relevância social, pródigo em concessões e privilégios, e de grande influ-ência e ascendência sobre a comunidade, em alguns casos infundindo sentimentos de temor quando se tratava de defesa cega da fé.

Mas era certo que este poder discricionário da Igreja estava prestes a ser definitivamente abalado por um novo entendimento que sobre a matéria viria a ter Pombal. Pois este entendia e apostolava ter de «sujeitar» a Igreja, não só na doutrina (porque o rei era um enviado de Deus) mas e também, e fundamentalmente nas áreas disciplinares (Santo Ofício, Real Mesa Censória). E até na área administrativa, isto é, interferindo com as Ordens Religiosas. Quando Sousa Ribeiro in-gressou nos Familiares, estes não eram mais do que burocratas que pelos cabedais atingiam um grau honorífico de nova fidalguia.

50 Deste casamento nasceria D. Maria Benedita, que veio a casar com José Carlos do Amaral Osório e Sousa.

51 Já em 1711, Domingos André aforava à Irmandade do Santíssimo, terras e outros. Fonseca, Senos, Ensaio Monográfico de Ílhavo Séc. X – Séc. XX, Papiro Editora, 2007.

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3. Origens dos seus «cabedais»

Já as referimos. O avô materno de Sousa Ribeiro — Domingos André — teria estado no Brasil de onde trouxera apreciável fortu-na com que edificara uma casa agrícola de grande dimensão, agre-gando importantíssimos terrenos de lavra e marinhas de sal. Foi este Domingos André que mandou construir um grande Palacete, em Alqueidão, Ílhavo, com vínculo integrado da Sr.ª da Nazaré, e onde tinha capela privativa.

Fig. 4 – O Palacete de João Sousa Ribeiro em Alqueidão.

Este palacete, sobranceiro à Ria e dominando a entrada do rio da Vila, foi assim descrito nas memórias Paroquiais de 1721:52

(…) No fundo deste lugar (Alqueydão) se achaõ hu-mas sumptuosas e nobres casas de campo cabeça de opulen-tíssimo Morgado com huma Capella contigua de invocação

52 Madahil, Memórias Paroquiais de 1721, ADA III, p. 29.

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de Nossa Senhora da Nazaré (…) de que é Administrador João de Sousa Ribeyro da Silveyra , Cavaleiro da Ordem de Cristo, Familiar do Santo Ofício e Capitam mor (…) ao dito Cavaleyro Joam de Sousa deve Aveyro sua Pátria e as mais villas, e Povoaçoens adjacentes o importante beneficio de abrir à sua custa com que as livrou das innundações em que estavam submergidas e estirilizadas as salinas, servindo a João Sousa Ribeiro para nele habitar por períodos de esta-dia, em Ílhavo, à época em que foi capitão-mor desta Vila.

Seria este palacete e ainda, entre outros, o da Quinta da Sr.ª das Dores (Verdemilho) e o palacete do Terreiro,53 em Aveiro, que viriam a pertencer aos Barões de Almeidinha, José Carlos do Amaral Osório e Sousa e D. Maria Benedita de Sousa de Quevedo Pizarro, uma vez que esta D. Benedita era filha de Sebastião José de Sousa Cardoso Pizarro, e de D. Inês da Sylveira de Sousa Ribeiro, filha de João Sousa Ribeiro (como referido anteriormente).

A Viscondessa de Almeidinha, D. Benedita, era, pois, detentora de uma avultada fortuna, ao tempo das maiores do país, em que se incluíam o referido Palacete de Alqueidão e muitas marinhas de Sal.54

Curioso, porque recolhido em documentos coevos por Ferreira Neves, é o modo como vem parar à posse, e assim acrescentar os enor-mes cabedais de João Sousa Ribeiro, a Ilha do Trovisco, no Posso, a qual englobava marinhas e pastagens, e seria uma das maiores proprie-dades lagunares da época.

Detenhamo-nos um pouco sobre este assunto. Ficaremos a intuir e a melhor perceber, em condições de reflectir sobre uma das características marcantes deste notável aveirense. Sendo herdeiro de

53 Palacete que viria a arder em 24 Junho de 1871, sito no local onde esteve instalado o Governo Civil de Aveiro.

54 Uma dessas marinhas, a da Remelha — o melhor chão da casa da Baronesa — está ligada à «História do Chão dos Pobres», Fonseca, Senos, in Ensaio Monográfico de Ílhavo Séc. X – Séc. XX, ed. Papiro Editora, 2007, e sítio www.senosfonseca.com, «O Chão dos Pobres».

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farta casa, Sousa Ribeiro não ficou imóvel nem ocioso a esbulhar os cabedais que lhe vieram parar às mãos. Desde muito cedo, JSR mos-traria pendências empreendedoras, sendo reconhecido como um ho-mem de acção, de trabalho e decisão, homem de palavra, honrado, cumpridor da mesma com exacta prontidão. Se Sousa Ribeiro recebeu grossa herança, a verdade é que a esses bens foi, porfiada e diligente-mente, acrescentando outros valiosos, engrossando a sua fortuna pelos réditos provindos das suas actividades e iniciativas. Algumas de gran-de dimensão, extremamente rendosas. Adestrando-se no meneio dos negócios, neles se mostrou hábil, de bom juízo, e de pleno acerto nas opções tomadas, factores primordiais que lhe permitiram, cedo ainda, consolidar e até aumentar as posses recebidas dos seus antepassados, juntando a esse farto legado, novas posses que tornaram a sua «casa», uma das mais sólidas e esplendorosas da região.

Reza a história da laguna que no século xviii eram já (prati-camente) existentes e formadas todas as ilhas interiores, aquando do desenvolvimento do fenómeno da formação lagunar. Poderemos ir mais longe e afirmar que o interior lagunar estaria já completamente desenhado nos séculos xv e xvi. A Ilha do Trovisco, que mais tarde se viria a designar como do Posso, situada a oeste do canal, terá sido afo-rada por D. Jorge de Lencastre (filho bastardo de D. João II, Senhor da Vila de Aveiro55), a Simão Henrique, natural de Aveiro e fidalgo da Casa Real, em 1524.

Num documento publicado no Volume XXX da ADA, página 81 e seguintes, são referidos títulos de «pertenças» de Sousa Ribeiro, afirmando-se: Este livro serve para nelle se transladarem e copearem tosos os títulos pertencentes ao senhor João de Sousa Ribeiro Silveyra e à sua Casa.

Ora no referido rol refere-se a ilha do Trovisco, baldio do conce-lho de Aveiro confrontando a norte, a partir do torrão de Sama, com a

55 Para este assunto consultar Fonseca, Senos: Ensaio Monográfico de Ílhavo Séc. X – Séc. XX, ant. cit.

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Cale do Espinheiro. E pelo sul, com a cale da Lobeira e com o esteiro do Puxadouro, até ao (dito) Torrão de Sama. Tinha este baldio sido aforado em 1524, como anteriormente referido, tendo em vista o seu aproveitamento agrícola e o aumento das rendas de Aveiro.

Fig. 5 – A ilha do Posso.

Esta ilha encontrava-se na relação da grandiosa doação feita a D. Jorge pelo seu primo, o rei D. Manuel I (preferido a D. Jorge na sucessão a D. João II por influência da rainha e corte) que incluía a vila de Aveiro com as suas lezírias e ilhas dentro da Foz (…) Ílhavo e Vila de Milho e casais de Sá. Sendo que todas as ditas vilas e lugares foram doadas com todas as rendas e direitos, foros e censos, emprazamentos, tri-butos, pensões frutos novos que o rei neles tinha e de direito deveria ter. Salvaguardadas apenas a correição e alçada.

Estava previsto que D. Jorge, não podendo vender nem empe-nhar, podia, contudo, aforar.

Que foi precisamente o que veio a suceder com o aforamento da referida ilha do Trovisco.

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No texto do referido aforamento56 ficava bem explícito que o mesmo pretendia promover a transformação do terreno lodoso em terra fértil, capaz de produzir pão. Para isso deveriam nele ser lançados produ-tos de engorda tradicionais na região (certamente moliços).

Em 1736 esta ilha tinha ido parar à posse de Aires de Sá e Melo e de sua mulher, D. Sebastiana Inês de Melo,57 moradores em Coimbra. E será a estes que João Sousa Ribeiro a irá aforar, em regime fateusim 58 perpétuo. Orçava o foro em dez mil reis anuais para os aforantes, de-vendo ainda ser pagos dez tostões de foro aos descendentes do duque de Aveiro (que era seu senhorio histórico, directo).

Na carta de aforamento já se fala que a ilha referida consta de juncais e gramatas e praias altas e baixas e regueirão e pastos de gados e bestas, sendo ainda referido confrontar a dita com o esteiro dos Frades (anterior esteiro do Puxadouro).

João Sousa Ribeiro tomou, assim, posse da quase totalidade da ilha pela escritura de 7 de Janeiro de 1737. E mais tarde, em 1739, agregaria a restante parte (um oitavo), a qual estava ainda na posse de D. Inês Perestrelo Rangel e de seu filho Diogo Luís Rangel (em fateusim perpétuo por dois mil e quatrocentos reis, acrescido dos dez tostões por ano que se pagava ao Duque de Aveiro).

Deste modo ficou permitido a Sousa Ribeiro usar a referida ilha como coisa sua, e fazer nela o que lhe apetecer (…) até «ao fim do mundo». (Esta ilha viria a ser, mais tarde, propriedade de sua neta, D. Benedita, Viscondessa de Almeidinha.)

Sousa Ribeiro acrescenta, assim, à fortuna provinda dos seus anteriores, gentes de avultados cabedais, novos, importantes e estraté-gicos bens de uma das áreas de maior interesse económico regional: a

56 Estes aforamentos de terras na borda ou interior lagunar ditaram a forma como se teria processado o desenvolvimento da região inter-lagunar.

57 ADA, Vol. XXX, p. 86.

58 Ou infateosim.

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produção de sal. Para lá desta actividade, a parte não salgada da enor-me ilha servia para, em simultâneo, desenvolver a criação de gado em campo aberto. Profundo conhecedor da região e das transformações que na mesma se operavam, Sousa Ribeiro, homem de uma larga, em-penhada e sagaz visão, cedo percebeu as potencialidades que a laguna proporcionava. Dinâmico e empreendedor, ocupando posição de des-taque entre a burguesia ilustre da época, mostrou uma vontade muito séria e determinada em dar os passos certos para tornar a «casa dos Ribeiros» uma das mais sólidas, não só da região, mas de dimensão e referência no país. João Sousa Ribeiro é, ao tempo, o paradigma da nova burguesia fidalga, mediana, subscrita e incentivada no consulado pombalino. Grupo emergente que não detendo os pergaminhos da alta nobreza, insolente e ociosa dos «Senhores Donatários», fâmulos da coroa alapados à sombra do poder régio a que conferiam total vas-salagem, pretendia aquela, ao contrário, ser moderna e empreendedo-ra. Gentes de grossos «cabedais», fidalguia provinda do exercício de cargos judiciais e da administração, e ou do exercício mercantil, ou e mais habitual, herdeiros de dignitários da vida eclesiástica, eram por natureza ambiciosos. Apostados em colaborar na revolução de menta-lidades de modo a corresponder às reformas das políticas, mercantis e económicas, necessárias para libertar a nação do baraço externo. Este novo grupo soube aproveitar com sagacidade a mão que Pombal lhes estendia numa aliança para combater os poderosos que pela ociosida-de, uns, e pela cobiça, outros, exauriam as riquezas do reino, pois que apenas nos empregos se elege somente a personalíssima indústria e aptidão das pessoas. Fidalguia provinda da plebe, daria um forte contributo para a ideia pombalina de reforço do Estado como entidade exclusiva não só do domínio político e administrativo, como cultural.59

59 Macedo, Borges, A situação económica no Tempo de Pombal, ed. Gradiva, Lisboa, 3.ª ed., p. 28.

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4. Capitão-mor de Ílhavo

D. Sebastião instituíra em 1570 as Ordenanças, pretendendo com as mesmas substituir a milícia dos «Besteiros de Conto».

As capitanias de Ordenanças eram circunscrições de recruta-mento para todos os maiores de 16 anos (excepto privilegiados e ido-sos), sendo os seus oficiais eleitos pelas câmaras municipais. Chefiadas por um capitão-mor (coadjuvado por um sargento-mor) detinham a capacidade discricionária de indicar os que deveriam ser recrutados para a prestação de serviço militar.

O cargo de capitão-mor (no século xviii) não era remunerado. Sendo vitalício (praticamente assim o era em todas as nomeações), conferia aos detentores proeminência e influência, locais, propor-cionando-lhes avultados rendimentos por razões de desempenho do cargo (acesso a propriedades e outras prebendas) a que acresciam outras sinecuras decorrentes do enorme poder (directo e indirecto) que detinham.

João Sousa Ribeiro ascendeu a capitão-mor de Ílhavo numa época terrivelmente conturbada, de grande carência e sofrimento para as populações que se iam fixando na borda da Laguna. Esta era, afinal, a circunstância de toda aquela gentiaga.

Detenhamo-nos um pouco a precisar melhor a catastrófica e calamitosa situação a que se tinha chegado. O infortúnio caprichoso que rege a natureza veio espalhar não só o desalento e o sofrimento nas gentes, como pareceu fazer ruir, em definitivo, as esperanças que nos séculos anteriores a laguna pareceu prometer. A desalentadora e sofrida situação levaria a que uma grande parte da população migrasse litoral abaixo em procura de novos pousios onde se pudessem alapar, gentes e tralha, em locais da costa ainda inexplorados ou em sítios onde fosse possível exercer artes mais compensadoras, mais compatí-veis com os instrumentos detidos para as bem desempenhar.

A ria, mais ou menos como é hoje, teria começado a formar-se no século x. Estudos comprovam que tal não teria, certamente, acon-tecido muito mais cedo. Podemos admitir o século atrás referido para

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datar o início de tal acontecimento, sem com isso andar muito longe da realidade.

A partir dessa data, lentamente, à acção das marés — que nes-te ponto do litoral correm de norte para sul, sobrepostas à do vento, que sopra preponderantemente do quadrante norte — veio juntar-se o assoreamento provocado pelos aluviões despejados pelo Vouga60 (e outros rios de menor envergadura) no seu destino final. A conjugação daqueles fenómenos naturais, cavalgando uns sobre os outros e sempre no mesmo sentido, terá originado o aparecimento e desenvolvimento de um cordão de areias litoral que viria a progredir a partir de Ovar e que, inexoravelmente foi sempre avançando para sul. Incipiente de início, ligeira lingueta formada no cabedelo de Ovar progrediu, alongando-se (e consolidando-se) sem se deter, à medida que os alu-viões iam aumentando os altos fundos da laguna, polvilhando-a de pequenas ilhotas. À medida que o cordão se formava, se consolidava e estendia cortando a ligação ao mar, ia sendo cada vez mais difícil a re-novação das águas que restavam aprisionadas no seu interior. O amor-tecimento da intensidade das correntes, por essa razão, traria como consequência a intensificação do assoreamento da Laguna. O corte umbilical desta com o mar foi, por isso, inevitável. Em sete séculos de transformação continuada, o mapa geográfico da região lagunar viria a sofrer continuadas transformações; primeiro para melhor, e logo de-pois sempre para pior, até que pareceu chegar ao fim o que parecia ser prodígio da natureza, uma dádiva divina.

Numa primeira fase, entre os séculos x e xiii, o cordão litoral continuou a progredir até atingir, em 1200 d.C., a zona da Torreira. E irá continuar a deslocar-se para sul. Em 1500 situar-se-ia já muito próximo do que é hoje S. Jacinto.

60 Não esquecer que aquele rio era muito caudaloso e profundo, navegável até Pessegueiro do Vouga. Bem diferente do rio que nos é dado conhecer, hoje.

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Fig. 6 – Barra no século xvi.

Em 1549 existia já a capela da Senhora das Areias.A partir desta situação, o galefenho61 de areias viria a crescer, mas

agora de sul para norte (figura acima), desde Quiaios até ao cabedelo das Gafanhas, pelo efeito conjugado das causas anteriormente referidas.

Os fluxos e refluxos das marés, então já condicionados, iriam acelerar o aparecimento de ilhas no interior e na foz. Ao princípio pequenos e esporádicos sapais, logo mais tarde provocando o surgimento de planícies extensas de aluvião.62

No último quartel do século xiv a situação da costa estaria já muito longe do sugerido no portulano de Visconti63 abaixo reproduzi-do, embora ainda longe do estado actual.

61 Será deste termo galefenho, cordão de areias — que derivará o termo «gafanha», arre-dando outras disparatadas explicações (terra de gafos e outras).

62 Para melhor informação ver Embarcações que tiveram Berço na Laguna, do autor, p. 10 e seguintes.

63 Considerada a primeira representação do litoral, que embora datada de 1318, admite-se ter sido efectuada no século ix.

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Fig. 7 – Portulano de Petrus Visconti.

Certo é que o delta do Vouga começaria a tomar proporções significativas. No século xiv, a barra estaria posicionada junto à Sr.ª das Areias, atrás referida. E no século xv todas as ilhas estariam, então, já formadas, embora ainda submersas na preia-mar. As últimas que se vieram a afirmar teriam sido as do Monte Farinha64 e a dos Ovos, aquelas que ficam mais a oeste.

Em 1445 na escritura de doação feita por D. João I a frei Álvaro Camelo, da ilha da Testada, esta era assim referenciada:

Teemos por bem e damos-lhe que elle tenha e aia de nos em quanto nossa mercê fou hua Ilha que nos auemos em termo desgueira a que chama a Ilha da testada que he no almoxarifado daaveiro a qual parte de hua parte com a uea de uouga e da outra parte com a uea que uay pêra o ual cabanões e da outra parte cõ a uea que uem pela passagem de caçia e uay pêra o mar.65

64 Em 1515 a ilha do Monte Farinha estaria contra a foz —- Foral de Aveiro de 1515 — Colectânea de Documentos Históricos, Doc. CXLIX, Tomo I, p. 287.

65 Chancelaria de D João I, liv. 3, fl. 29, in Arquivo Histórico Português, vol. ii, p. 61.

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No referido século xv, o cordão litoral emergente manter-se-ia perto da ermida da Sr.ª das Areias, como acima referido. Os canais navegáveis eram ainda bem profundos; a barra situar-se-ia entre aque-le oratório e as gafanhas. A acessibilidade portuária ganharia, então, um forte incremento, verificando-se um intenso movimento de en-tradas e saídas de embarcações. Para as necessidades da época, o porto de Aveiro era magnífico. Tinha profundidade e largueza, suficientes, para permitir manobras fáceis no acesso a todo o tipo de embarcações. Batido por ventos predominantes do noroeste, amurada a embarcação pelo través, permitia uma boa entrada, e/ou saída, à vela — o único meio de propulsão conhecido à época, questão da maior importância para a sua demanda.

No início do século xvi, a parte mais significativa do delta si-tuava-se a sul-sudoeste do estuário do Vouga, coincidindo com o pe-ríodo de maior movimentação do porto. Que irá verificar-se quando a Barra, em 1500, se situa, «algures», num local que Rocha e Cunha define como muito a norte da actual barra, ligeiramente a sul da capela da Senhora das Areias. Era então, uma barra ampla, profunda, limitada a norte pela duna onde os mareantes edificaram a Capela da Senhora das Areias, e a sul pelas dunas da Gafanha, que proporcionará a toda a região um surto de desenvolvimento acelerado. E até inusitado. Aveiro (principalmente) vai afirmar-se como um importante centro de activi-dade mercantil, atraindo muitos comerciantes estrangeiros, levados a assentar tenda e escritório de representação na vila, ocupando as zonas da Ribeira e do Alboi, locais de proximidade com os cais de movi-mentação de carga e descarga. Esta frenética actividade mercantil irá influenciar o desenvolvimento das zonas urbanas vizinhas66, ao serem chamadas,67 elas também a dar resposta às exigências criadas por este surto de desenvolvimento.

66 Esgueira, Sá, Eixo, Ílhavo e Vagos, principalmente..

67 A vila de Aveiro era deficitária em bens alimentares sendo, por isso, necessário recorrer ao apoio das populações vizinhas. Assim foram criadas isenções ou redução de impostos, referentes a muitos géneros em que aquela era deficitária.

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Em 1584 a progressão do cordão litoral deslocará de novo a bar-ra que se irá situar, na referida data, em frente à actual Costa Nova. Esta posição marcará o início da decadência das condições de acesso marítimo, acarretando uma profunda estagnação ao movimento por-tuário, e consequentemente, às actividades produtivas da região.

Na verdade, a progressão do cordão litoral não pararia por aí; saltando sempre para sul, a ligação ao mar atingirá a Vagueira, em 1643, e logo depois, em 1685, a Quinta do Inglês para mais tarde se situar em Mira, cerca de 1726. Desde os finais do século xvii que a laguna se encontrava com enormes dificuldades para renovar as suas águas, dadas as condições deficientes da sua ligação ao mar. Na pri-meira metade do século xviii, a situação agravar-se-ia. De facto, aquela ligação ao mar — sempre pouco estável, variando de posicionamen-to, século após século, devido à sua configuração arenosa — foi-se deslocando permanentemente para sul. À medida que tal situação progredia, as condições da acessibilidade portuária foram continua-damente piorando. O assoreamento era cada vez maior, acelerando a elevação dos fundos lagunares pelo continuado depósito dos aluviões dos rios que despejavam as suas águas na laguna, que, sem correntes que os arrastasse, iam engrossando, até formarem pequenos ilhotes. Esse facto marcaria o final para o período áureo de desenvolvimento que se tinha verificado nos séculos anteriores, na região, trazendo o desespero e o desalento às gentes que teimavam em se fixar em torno da laguna. Fazendo dela a sua circunstância, empenhadas em fazer re-verter em seu favor as enormes potencialidades de um lençol de água que parecia prodígio da natureza.

Toda a actividade económica asfixiou, já que estava dependente da estrada lagunar, uma vez que as vias terrestres eram, ainda então, praticamente inexistentes. Paisagem recortada por valas e canais, num sistema capilar confuso que se forma, divide, e junta adiante, os pon-tos de apoio são demasiadamente frágeis para lançar pontes de atra-vessamento. Ou, quando existentes em alguns pontos, eram, contudo, difíceis de transpor, principalmente em situações de cheias, tornadas impraticáveis pelo motivo da região ser cortada por tantas e diversas

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veias de água. Obstruída a barra, a laguna ficaria aprisionada no seu interior, invadindo os campos vizinhos, e até os centros habitados, submergindo as zonas ribeirinhas. A estagnação das águas provocaria o seu consequente inquinamento. Que não só destruiria a vida na la-guna, como ainda originaria o aparecimento de surtos pestilentos que ceifaram milhares de vidas. As águas exalavam um cheiro pútrido. Do seu ventre emergiriam verdadeiras pandemias que dizimaram uma boa (e significativa) parte da população. Zonas populacionais ribeirinhas houve, que ficaram reduzidas a um terço.68 A laguna estava ferida de morte. Sem vida, de nada servia. Antes era, por então, fonte de mor-tandade cuja dimensão tomava forma de terrível calamidade pública. Aquela que outrora fora a promessa de tempos fartos virava causa de morte, e ou, de dolorosa provação.

Os rendimentos da Alfândega eram nulos por não haver qualquer movimento de entrada ou saída de embarcações. A pobreza atingiria tal ponto, que, em Aveiro, a população não teve outro recurso que não solicitar ao rei o não pagamento do «cabeção» num total de 5000 cruza-dos.69 Em 1757, a cheia atingiria proporções nunca vistas: todas as ilhas, campos e a parte baixa da Vila de Aveiro ficaram submersos.

Debalde o esforço intentado para que a coroa fizesse as obras, o dinheiro era pouco para a reconstrução de Lisboa, atingida, em 1755, pelo terramoto de 1 de Novembro. Descrente da solidariedade dos poderosos, abandonada à sua sorte, a população virou-se para a in-tervenção divina; organizaram-se vigílias e procissões, ofereceram-se novenas, flagelaram-se corpos num exorcismo dramático de penitên-cias purificadoras. Fanáticos pregadores, clérigos apocalípticos, frades ociosos aterrorizavam com as suas profecias a timorata imaginação da população. Exigia-se penitência aos fracos e protecção espiritual aos graúdos, enquanto se esperava destes dádivas de salvação que ate-

68 Entre outras as que mais foram afectadas terão sido Ovar e Aveiro.

69 O que aconteceu em 1686.

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nuassem a escassez dos réditos das igrejas e conventos, também eles atingidos pela quebra da dízima e das oferendas.

O poder local estava manifestamente manietado. Com os cofres vazios, o sentimento de impotência perante tamanha calamidade condu-ziu à renúncia a qualquer intervenção. Todos os esforços foram debalde para se conseguir uma solução. A população desesperava. Começavam a ser correntes actos de pilhagem para garantia pontual de sobrevivência.

Os grandes da vila, autoridades eclesiásticas, representantes do poder local e régio, reúnem-se em procura de solução. Percebe-se que só com o esforço da participação de dinheiros provindos das bolsas dos maiorais da Vila se poderiam reunir meios capazes de levar a obra por diante. Mas (praticamente) todos, uns evocando um ou outro motivo para escusa; outros dando conta da sua disposição de fugir da região pestilenta, levando consigo famílias e haveres. Outros ainda, deixando à natureza o encargo de repor a situação, foram arranjando motivo para se eximirem em comparticipar a obra cuja dimensão os aterrorizava. Certo é que todas as razões (?!) — ausência e ou inacção — criariam uma situação de total impasse, enquanto por todo o lado a mortandade abundava, gadanhando raso no empestado meio humano circundan-te, a quem os meios restritos da época pouca ajuda podiam oferecer. Mesmo depois de ouvidas as terríveis consequências que adviriam para todos se não fossem tomadas medidas urgentes para solucionar o pro-blema — romper o areal — certo é ter sido o silêncio a resposta que espelhava a impotência. No meio de tal calamidade não era de todo es-tranho que mesmo os mais fortes se deixassem abater, e lhes entibecesse a vontade. Tão grandiosa e de tanta monta era a tarefa.

5. Perfil de João Sousa Ribeiro da Silveira

Se é certo ser escasso o que sabemos sobre João Sousa Ribeiro é, contudo, suficiente para desenhar, ainda que de um modo aproxima-do, o perfil deste grande aveirense.

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Sabemo-lo um homem sereno, de vontade forte e ânimo inque-brantável. Talentoso e enérgico, reunia em si as virtudes da «cavalaria»: sobejava-lhe a honradez na palavra, como nos actos, dissentindo de tipos de comportamento habituais da burguesia da época, cumprindo com zelo escrupuloso todas as obrigações do alto cargo que ocupava sem que lhe fosse alguma vez imputada uma falha (ou um excesso) no desempenho da capitania que chefiava. Chefe das Ordenanças, orga-nização militar da 3.ª linha, competia-lhe recrutar e efectivar a mobi-lização, sempre que necessária, de modo a satisfazer o exército regular. O cargo era escolha e eleição da câmara (que escolhia a figura de entre um dos seus maiores e mais conceituados cidadãos). A nomeação tinha (mais ou menos) carácter perpétuo em vida e era, por norma, transmis-sível aos filhos. Como foi o caso de seu filho, Manuel Sousa Ribeiro de Magalhães, que lhe veio a suceder no cargo. As Ordenanças eram um elemento fulcral da «militarização geral da sociedade». Círculo de poder ao nível local,70 já que gozavam de grande autonomia relativa-mente à hierarquia militar, tornavam-se, na prática, um pólo indepen-dente de «poder».

Tais cargos tornavam-se por vezes intimidatórios, quando exer-cidos com poder discricionário no decurso do recrutamento para cumprimento de serviço no exército do rei, a que só escapavam, ve-lhos e privilegiados.

Não consta, no caso de João Sousa Ribeiro, que tivesse uma prática desse tipo. Consta, isso sim, como iremos referir adiante, um enorme e generalizado apreço do povo pela sua figura, que muitos consideravam a de um verdadeiro salvador, um homem atento ao que se passava à sua volta, preocupado com os seus concidadãos, próvido e perseverante, cultor de uma proximidade abnegada com os mais des-favorecidos; desacomodado com a procela que os flagelava impiedosa-mente e para cuja superação viria a ser, providência e salvação.

70 Monteiro, Nuno Gonçalo, «Os Concelhos e as Comunidades», Vol. IV, História de Portugal de José Mattoso, p. 308 e seg.

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No século xvii iniciara-se um processo de debate do alargamento da condição de nobreza.71 A ocupação de altos e influentes cargos veio criar um estatuto intermédio entre a nobreza — herdada e transmiti-da de pais para filhos — e o povo, com o surgimento do estatuto de privilegiado. Adquiriam-no aqueles que, nascendo em «casas» de cabe-dais vultuosos, viam as suas virtudes avaliadas e reconhecidas por actos valiosos, praticados no desempenho de cargos ligados à administração local, e ou senhorial, ou às ordens religiosas. Era uma nobreza adqui-rida72 não pelo sangue, mas conseguida pelo desempenho de cargos civis, políticos ou religiosos. Isso foi o que aconteceu no período de acalmia (relativa) afastado das guerras do regime absolutista régio, em que se deu relevância aos ofícios e cargos civis, cujos titulares ascen-diam aos títulos de cavaleiros e, por via disso, a um certo estatuto de fidalguia. Assim, o título de Cavaleiro de Cristo era em muitos casos atingido, verificada a condição de o pretendente ter grossos cabedais e grandes tratos no desempenho de uma actividade, comercial ou pro-dutiva, relevante. Claro que este novo escalonamento social trouxe exageros de toda a ordem. Os cargos, em muitos casos, compravam-se. E era tal a generalização ao seu acesso, que bem se poderia caricaturar estarem os três milhões de habitantes reduzidos a três milhões de nobres. Viver nobremente, pelo desempenho de altos cargos — ordenanças incluídas — passou a ser prática institucional aceite.

E se Sousa Ribeiro não proveio da fidalguia nobre pelo san-gue, esta dissolução do conceito virá a ser redimida quando sua neta, D. Benedita, mulher de porte senhoril e distinto, casou com o Barão de Almeidinha73 passando a ostentar, de jure e de facto, o título de

71 Monteiro, ant. ref. Poder Senhorial — Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia, Mattoso, ant. referido., p. 333 e seguintes.

72 «Tem-se vulgarizado as honras não só à força de concessões avulsas, mas até de tarifas», como referia o Conde de S. Lourenço.

73 João Carlos do Amaral Osório e Sousa foi primeiro Visconde de Almeidinha por

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Baronesa de Almeidinha. Senhora de portentosa fortuna — em grande parte provinda de seu avô — excelsa figura, no porte como na dádiva, prodigiosa na caridade concedida aos doentes e desprote-gidos, heróica no desprezo com que arriscava a sua vida para tratar, nos próprios tugúrios, fétidos e irrespiráveis, os atingidos pela peste, seria a protagonista de um comovente episódio: «O Chão dos Pobres». Perante a enormidade da pestilência que grassava entre as populações suas protegidas, fez — e cumpriu — a promessa de legar o seu me-lhor «chão»74 para futuras e perpétuas ajudas, se houvesse intercessão divina capaz de pôr fim ao sofrimento humano que diariamente, em visitas e dádivas, procurava atenuar, mas para o qual se sentia impo-tente face à dimensão da calamidade. D. Benedita relevou, assim, a lei e tradições de solidariedade e altruísmo herdadas do seu ancestral avô, titular da Casa dos Sousa Ribeiros.

Sousa Ribeiro não procedia da nobreza aristocrática, já o re-ferimos. Era oriundo da junção de duas casas de notável dimensão, erectas em esforçada labuta pelos seus anteriores, para o que foi im-portante o continuado esforço e persistência com que se atiraram a afeiçoar a terra que marginava a laguna, adoçando-lhe o ventre para que a semente germinasse.

A Sousa Ribeiro chegaria já a opulência de cabedais. Condição exigida (para lá do perfil pessoal e humano, como atrás referimos) para aceder à Ordem e para, mais tarde, receber o hábito de Familiar do Santo Ofício. O que o tornaria, ainda, mais poderoso. Não pe-rante os mais fracos, pois era homem recto, despoluído de vícios, em que pontificava um certo pendor espiritual sobrepondo-se aos atalhos

Dec. de 20 de Dezembro de 1865 e carta do mesmo mês. Tinha sido segundo Barão de Almeidinha. Foi par do Reino (por carta régia de 5 de Março de 1853), e grande do reino (Dec. de 28 de Setembro de 1855), tendo exercido grande parte da sua actividade política e social na cidade de Aveiro.

74 «Chão» era a melhor terra produtiva do seu vasto património. Assim sucedeu, doando à Igreja de Ílhavo «A Romelha», cujo produto se destinava a donativos para os carenciados da vila.

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tortuosos dos caminhos profanos. É crível, por isso, que o hábito seria em JSR, pois e apenas, uma distinção social necessária à consolidação da sua «casa». E não porque alguma vez o tenha utilizado para as bru-mosas intenções, fanáticas e desapiedadas acções denunciantes que, é lícito equacionar mas não generalizar, porventura antevistas na leitura do estatuto da poderosa milícia.

De facto, os «familiares» eram funcionários leigos sem remune-ração e sem função específica na estrutura jurídico-administrativa do órgão inquisitório. Tratava-se de uma espécie de colaboradores a quem se exigia ser «pessoas de bom proceder, e de confiança, e capacidade conhecida», sendo indispensável possuir «fazenda, de que pudessem viver abastadamente. E qualidades que, conforme ao Regimento do Santo Ofício, se requerem em seus Oficiais».

Como fim último era — em teoria — como uma espécie de milícia, podendo os seus membros ser convocados pelos inquisidores, visi-tadores ou comissários, cabendo-lhes a finalidade ou encargo de desenvol-ver actividades de vigilância e investigação, ou até, de prisão de suspeitos.

Os Familiares do Santo Ofício, afastados dos grandes centros, contudo, raramente desempenhavam funções inquisitórias, remeten-do-se, na sua maioria, a um papel pouco activo. Os autos de fé esta-vam já praticamente em fase de extinção. O auto de fé de Malagrida, adiante referido, seria mesmo o último a verificar-se no país. O esta-tuto de «familiar» visava, essencialmente, objectivos de ordem social. Uma espécie de certificado da chamada limpeza de sangue.

A sua admissão era precedida de um processo de habilitação75 em que os candidatos deveriam apresentar as suas genealogias — pais e avós, filhos e outros parentes de referência, nomeadamente já admitidos como familiares76; as suas respectivas naturalidades e residências, e outros dados

75 «Para se averiguar se o candidato reunia as precisas condições impostas pelo Regulamento, o Santo Ofício organizava meticulosa investigação e complicado processo». Madahil in Ilhavenses Familiares do Santo Ofício — ADA, vol. i, p. 96.

76 JSR teria, como referido, vários familiares (tios avô, primos, sogro, etc.) pertencendo ao St.º Ofício.

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considerados relevantes para o processo, os quais eram posteriormente ave-riguados e confirmados.

Para sua confirmação eram ouvidas testemunhas e recolhidos os seus depoimentos, visando conhecer pormenores confirmativos sobre a bondade de carácter e personalidade dos candidatos, suas vidas fami-liares e sociais, condições financeiras, ocupação profissional, etc.

O estudo de JSR e a sua formatura nos «Sagrados Cânones», na Universidade de Coimbra, indicia, à partida, um destino fixado para o seguimento da carreira eclesiástica77. Mas o certo é que escolhida a vida civil, a sua formação — e os antecedentes da sua família — ter-lhe-iam aberto mais facilmente a porta de admissão na estrutura do «Familiares», o que viria acontecer em 26 de Junho de 1742.78

Nada se refere em desabono do capitão-mor. Não se encontra, um ou outro desempenho, que manche a dimensão da sua figura, ou que atente contra o seu carácter. Se JSR não era de fidalguia nobre provinda por via sanguínea, foi nobre pela conduta, pelo empenho altruísta co-locado em favor da causa pública, pelo fervor, clarividência e empenho, postos ao serviço da comunidade em momento tão crítico. Foi, ainda, um activo participante na gestão política local, tendo sido vereador da câmara de Aveiro por diversos momentos, e em várias situações.

Mas, sem dúvida, o aspecto mais relevante da sua acção será o assumir, a seu total encargo, a resolução79 de um problema que afligia a comunidade regional, não lhe dizendo por isso, a si, exclusivamente, a obrigatoriedade da sua solução. Tratando-se de uma obra de interesse público (como o seria mais tarde a obra de 1808), deveria ser suporta-da pelos cofres públicos, tão grande era a sua dimensão como univer-sal era o seu interesse. E mais do que isso; o acto de JSR extravasava a

77 Dos dez irmãos de Sousa Ribeiro, quatro foram frades e cinco, freiras.

78 Carta Familiar de 26 de Junho de 1742, João-maço, 77, n.º 1409.

79 Como veremos adiante, irá tratar-se da abertura de uma barra na Vagueira, que iniciará um novo período de esperança e prosperidade.

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benfeitoria local. Virá a ter repercussões em toda a comunidade ribeiri-nha, do sul ao norte da laguna, fazendo sentir os seus benéficos efeitos muito para lá das fronteiras da vila de Aveiro. A obra da abertura da barra, trazendo com ela uma renovada vivificação de toda a actividade lagunar, devolverá a esperança e aliviará as gentes de sofrimento. Será como que um segundo dia de renascimento que alentou o homem ribeirinho a refazer o envidraçado dos tabuleiros de sal, polvilhando a laguna de formas geométricas disciplinadas e irrepreensivelmente gra-vadas no chão acabado de surgir. E de novo o homem semi-anfíbio irá entregar-se à tarefa de disciplinar as marés, no afeiçoar de canais e esteiros para tornar enxutas as leiras onde pretendia lançar a semente. Que vingando dos terrenos lodosos lhe retribuiria o esforço.

Renovada a actividade produtiva, seria inevitável o recomeço da actividade mercantil que desde o século xv tinha tornado a vila de Aveiro um entreposto de mercadores interessados nos produtos da região: o sal em especial, o peixe salgado80 e madeiras. As vantagens seriam, pois, universais, beneficiando todos. Mas certo é que, tanto na vontade férrea com que JSR se empenhou na abertura do desaguadoiro que rapidamente se transformará em barra aberta, como nos tama-nhos e brutais capitais que enterrou na sua prossecução, a verdade é estarmos confrontados com uma obra extraordinária, de uma dimen-são gigantesca para a época, difícil de situar e contextualizar, hoje, tal a magnanimidade exigida para a consumar.

Não ficariam, contudo, por aqui — e já não seriam pou-cos! — os valiosos e decisivos préstimos de Sousa Ribeiro à sua ter-ra natal. Em momentos difíceis e críticos, JSR emprestou a ilimitada consideração e peso que o seu vulto tinha junto da coroa — porque El-Rei o achava leal e bem verdadeiro — para avalizar e expor com elevada diplomacia, os pedidos que as suas gentes lhe depositavam em mão, para por eles pugnar junto de sua majestade. Eleito por

80 Principalmente a sardinha, depois da «aventura» das primeiras idas à Terra Nova para a pesca do bacalhau, ter já então, terminado, muito embora se continuasse a importar bacalhau salgado.

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unanimidade e em diversas vezes como seu lídimo, genuíno e acredi-tado representante e porta-voz, mostrar-se-ia totalmente disponível, interessado e diligente, para encetar tratos firmes junto da coroa para resolução das questões que afligiam as suas gentes.

Assim sucedeu quando lhe foi solicitado (expressamente) pelo povo e maiorais da vila, a libertação do anátema que sobre as suas gen-tes recaía, quando o seu mais ilustre (?) e poderoso Senhor — o últi-mo Duque de Aveiro — se envolveu no atentado a El-Rei. Aceite tal incumbência em momento tão crítico e delicado, JSR soube proceder com grande diplomacia e com enérgico desempenho, afastando junto da coroa qualquer hipótese de ligação das gentes de Aveiro à tentativa de regicídio. A ponto de, após ser ouvido em audiência, mais do que ser acreditado na argumentação evocada em defesa da inocência dos seus conterrâneos, lhe ser concedida, por sua majestade, a honra de ser o portador da carta que dava a notícia da elevação da Vila de Aveiro a cidade. E não bastando a obtenção deste êxito diplomático — o per-dão dado a toda a população isentando-a de qualquer cumplicidade de um dos seus, no acto regicida — El-rei proclama e faz JSR porta-dor da boa nova: o perdão do pagamento das taxas que eram habitual-mente devidas, aquando da ascensão dos agregados populacionais na hierarquia administrativa.

Uma outra faceta de realçar em JSR era a de ser um homem bom, piedoso, sempre atento às necessidades dos mais desfavorecidos. À sua «casa» acorriam os mais carenciados na certeza de, tanto no seu morgado como na sua esposa, encontrarem uma palavra, um gesto de solidariedade, um amparo para momento de desdita, uma dádiva ou concessão. Aos mais pobres mandava entregar uma ou outra moe-da para satisfazer necessidade premente, nunca faltando com o pão a quem dele demonstrasse carência.

Ao tempo eram ainda escassas e penosas as ligações com o lugar de Alqueidão, em Ílhavo, onde a família Sousa Ribeiro tinha o seu palacete à vila. Nesta, o rio separava os centros habitacionais, a norte e sul, dificultando o acesso de um para outro. Apenas no Passadouro, muito lá para dentro da vila, tal era possível. Por isso a Capela da Sr.ª

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da Nazaré, privativa do palacete, tinha capelão próprio, que diaria-mente celebrava missa a que acorria uma grande parte dos moradores dessa parte alta da vila. Era habitual aos domingos e após a celebração fazer-se uma distribuição de esmolas pelos mais necessitados, tarefa que D. Brites se encarregava com dedicada afeição e aprazamento, fazendo prova de enorme bondade e piedosa conduta.

João Sousa Ribeiro, para lá de exercer as suas funções de autori-dade local, ocupava-se em gerir de muito perto as vastas e grandiosas propriedades. As que tinha herdado e juntara ao dote do seu casamen-to e aquelas que ia adquirindo e com as quais procurava ataviar e au-mentar constantemente a sua «casa», até a tornar uma das poderosas, e mais valiosas, da região.

Com grande perspicácia, JSR investiria nas zonas lagunares de fácil acesso onde se verificavam condições privilegiadas para a produ-ção de sal e para a pastagem para gado. Caso da Romelha e da Ilha do Pousio, entre outras, sitas junto aos canais principais da ria.

O conhecimento de JSR sobre os fenómenos lagunares — re-velando-o uma autoridade na matéria, facto que virá a ser apreciado e reconhecido pela coroa, como veremos adiante — terá sido precioso quando tomou a decisão de, sem mais demora, abrir a ligação da la-guna com o mar, confrontado com a tragédia que se abateu sobre as populações lagunares. Na decisão foi indiferente à dificuldade e gran-deza da empresa. A escolha do local onde assumiu refazer a ligação ao mar, pareceu, atendendo à falta de meios, ser o mais aconselhável: em custo e rapidez. Mostrou, assim, ser um homem de decisão pronta, actuante, pouco temeroso das dificuldades de monta que tal obra co-locava. E mesmo quando confrontado com a ingratidão dos agentes atmosféricos, que pouco colaborantes viriam atrasar substancialmente o finalizar da obra, ampliando as dificuldades de concretização rápida, terá demonstrado uma indesmentível firmeza, um ânimo inquebran-tável e uma perseverança férrea. Posto nessa inconfortável posição de se sujeitar aos desígnios da natureza, precisamente nessas circunstân-cias adversas, demonstraria uma perspicaz observação e intuição para aguardar a chegada do momento exacto. Sousa Ribeiro sabia que na

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época invernosa a natureza engrossaria majestosamente o caudal dos rios que acorriam para a laguna, provocando uma subida espantosa do nível das suas águas interiores. Estariam, assim, criadas, só então, as condições ideais, irrepetíveis, para romper em força o último mara-chão que se opunha ao seu encontro com o mar regenerador, de modo a que abertura se tornasse ampla e profunda: uma barra de bom acesso às embarcações que a demandassem, e permitisse, simultaneamente, uma regeneração rápida da vida lagunar.

Este conjunto de aptidões e conhecimentos dos fenómenos da natureza, locais, será reconhecido por Pombal, (1759) que solicitou a participação e determinou a sua inclusão, no grupo de técnicos espe-cializados que a coroa nomeou para um estudo aprofundado sobre a possível localização da barra — que já então se queria definitiva (?) — juntando, assim, o conhecimento prático de que Sousa Ribeiro deu inegáveis provas, ao conhecimento teórico dos engenheiros, Rego e Polchet (e seus ajudantes).

Mas ainda maior reconhecimento lhe adveio, quando foi in-vestido — e quem mais o merecia ser?! — no alto cargo de Juiz da Alfândega do Porto de Aveiro, logo após a abertura da barra que levara a cabo. Era um cargo de sobrelevada importância a cujo desempenho se dedicou com distinta e reconhecida proficiência. Rapidamente o cabe-ção da Alfândega interessou licitadores externos, ponto de partida para um novo período de renascimento do movimento do porto de Aveiro que, por razões de boa acessibilidade, voltou a permitir a demanda por embarcações de alto bordo de tonelagem apreciável para a época.

A referida nomeação traria a Sousa Ribeiro fortes réditos, pois ao tempo os direitos eram, por norma, objecto de encabeçamento. Leiloado o seu presumível valor, era adquirida a sisa, competindo ao licitante a recolha desse valor através das diversas taxas cobradas na entrada e ou saída de produtos, valor que por norma era mais elevado do que o licitado, permitindo, assim, substanciais mais-valias. Para o juiz, no caso «dono da alfândega», sobrava valioso quinhão.

No desempenho de tão altos cargos, ressalta na prática dos mes-mos um facto que será objecto de elogio rasgado, relevado pelos seus

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conterrâneos: um rigoroso, absoluto, e quase diríamos, beato, cum-primento dos compromissos assumidos. Mesmo que tivessem apenas como penhor a sua palavra. Bastante para valer tanto, ou mais, do que uma escritura, com selo notarial aposto. Um perfeito cavaleiro que mais parecia saído da época medieval.

Sabe-se que visitava frequentemente a corte. E terá sido aí, pre-cisamente, que se encontrava em tratos, quando lhe foi solicitado pelos maiorais da Vila para beijar a mão a sua Majestade, D. José I, com o fim de Lhe agradecer a mercê da elevação da Vila de Aveiro, a cidade. E, em simultâneo, captar as boas graças de El-rei para dispensa do pagamen-to dos direitos devidos pela subida hierárquica no mapa administrativo nacional. Veremos adiante como a sua intervenção pronta, enérgica e diplomática teve êxito completo, atestando as suas inegáveis qualidades no desempenho de negociações políticas ao mais alto nível.

6. Os «trabalhos» de Sousa Ribeiro

6.1. A abertura da Barra em 1757

Voltemos um pouco atrás nestas notas biográficas, ao momento anteriormente abordado da situação calamitosa em que (praticamente) se encontravam paralisadas todas as actividades económicas na região. Consequência do charco em que se tinha transformado a laguna, es-tagnadas que estavam as suas águas, aprisionadas pelo cordão de areias que as separava do mar, sem existir qualquer brecha que permitisse a sua junção ao mar, e assim lhes permitir a regeneração para trazer a vida de volta à laguna. Tal estranha situação depressa originaria que a mesma se transformasse num enorme lago pestilento, pútrido e fétido, sem vida, desastrosamente inútil. Tal facto conduziria a uma desastrosa e insusten-tável condição de insalubridade (o aquecimento das águas aceleraria essa situação), originando surtos pandémicos de pestilência que, aliados às frágeis (ou inexistentes) defesas sanitárias, acabariam por dizimar uma boa parte das populações fixadas em redor da toda a área lagunar.

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O pouco que (ainda) se produzia estava praticamente impe-dido de sair as portas da região, já que ao tempo só as estradas marí-timas o permitiam. O acesso ao exterior por via marítima, essencial para permitir as trocas comerciais, estava, contudo, fora de questão, impossível de concretizar, dada a inexistência de um qualquer canal de ligação ao mar.

Embora autores de referência81 exibam registos com números em alguns momentos substancialmente diferentes, mesmo contraditó-rios, poderemos concluir, numa análise cuidada, terem demandado a barra de Aveiro, no período de 1619 a 1624, 300 embarcações. Destas, 109 com carregamentos de bacalhau (importado). De 1638 a 1700, o número será já substancialmente reduzido. E daí em diante a situação agravar-se-á em absoluto. Irremediável e irreversivelmente, já que de 1741 a 1745, apenas menos de uma dezena de navios teriam entrado no porto de Aveiro. E de 1746 a 1749, nenhum outro pôde demandar a barra, já então totalmente fechada, absolutamente inoperacional.

Houve um baixar de braços. Um desânimo generalizado apos-sou-se das gentes, obrigadas a procurar o ganha-pão na borda do mar, arriscando-se na costa desabrigada do litoral, envolvendo-se na pesca da sardinha82 (e de uma ou outra espécie). No princípio, dada a ur-gência colocada pela sobrevivência, não restou outra alternativa que a aventura demente em desespero de causa. Embarcados nos seus ba-teirões, puxados para a borda, impróprios para vencer a pancada do mar, foi preciso esperar pelo «meia-lua» da xávega para melhorar o desempenho, e assim, rentabilizar este novo desígnio. Certo é que a porção de litoral entre S. Jacinto e Ovar (subindo a Espinho) era curta de mais para ali se estabelecerem companhias que empregassem (toda) a gentiaga, que num repente se viu privada das diversas actividades

81 Amorim, Inês: Aveiro e a sua Provedoria no Séc. XVIII e Mendes, Humberto Gabriel in Cartografia e Engenharia Pombalinas da Ria e Barra de Aveiro, n.ºs 42 e 43 do Boletim Histórico Militar (1973/74).

82 Para este assunto ver Fonseca, Senos da: As Embarcações que Tiveram o seu Berço na Laguna, ed. Papiro, 2011.

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praticadas no interior lagunar. E, assim, muitos migrariam, abalançan-do-se litoral «abaixo», entrando Tejo adentro em emposta para encon-trar novos pousios menos hostis. Foi, desta forma, empreendido um ousado e desmedido, e por vezes penoso surto migratório83 — ver-dadeira diáspora — em luta continuada com as ruindades agrestes da natureza, em campos até ali desconhecidos. Ao longo do litoral, de pousio em pousio, de recanto em recanto, foram experimentando a sua sorte. Que pescador julga sempre nunca encontrar, sendo por vias disso um ser irrequieto, enloilado com o mundão das águas, cabeça sempre a procurar sem nunca achar bastante. Botanto «ferro» hoje, aqui, quando julga ter descoberto uma ceva em pleno mar,para logo no amanhã, esmorecido, suspender ou desamoirar, saltando em nova emposta. E lá foi rumando sempre a sul, até aportar ao Tejo, para se fixar, numa primeira fase, nas margens da sua embocadura. Tempo apenas de conhecer o rio, picar, levantar ferro, e seguir para mon-tante. Em demanda do sável, subindo o rio até Vila Franca de Xira. Estas gentes idas da laguna, fugidas ao desespero de umas águas po-dres onde só havia bosta de boi, ratos, e pulgas saltitantes, tribulações que alguns diziam ser precisas para combater os hereges, agarraram nas parcas trouxas, e vá de se esgueirarem até àquele enorme rio onde os cardumes de sardinha eram maiores que as coroas lodosas da sua laguna. O mar não mudara, que mar não muda, a estrada é sempre a mesma. Já a terra, essa, lhes pareceu um novo mundo de renovada esperança, na crença de os seus filhos poderem tentar novos rumos para uma vida de menor mourejo. Ou pelo menos não tão esfarra-pada, menos endoada. Decidiram, por isso, ali fundear barcos e re-dame. Mas, e agora, com a família, de pronto chamada, que a dor de saudade e cheiro de mulher não alivia com a distância, nem esmorece com a doçura da maresia. Foram-se dispersando, agrupando-se em pequenas colónias piscatórias, de hábitos e costumes muito próprios,

83 Este surto migratório, talvez o mais forte e intenso verificado no interior do país, foi designado pela «diáspora» dos ílhavos (se bem que outros «povos» — ovarinos, murtoseiros, cagaréus, etc., os acompanhassem na aventura).

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distanciando-se claramente das populações envolventes. Muito fecha-das a aculturação externa, distinguiam-se de tal modo e singularmente de todos os outros, que a história ribeirinha do Tejo lhes concedeu lugar de relevo, e os registou com a identificação muito própria, ge-nérica e indistinta, de «varinos».84 Catalogando desse modo as gentes idas da laguna — independentemente do seu exacto local de origem. Era comum às mesmas a fuga à calamidade que sobre o seu mundo de sustento se abatera nos finais do século xvii. Que se agravaria no sé-culo xviii. Nada mais restava que debandar e partir em logro de uma outra vida, por pesada que fosse, mas que, no mínimo, proporcionasse condições de sobrevivência.

Na região lagunar os que ficaram imploravam medidas às au-toridades locais, exigindo empenho enérgico aos seus maiores, para que, junto da coroa, dessem real figuração da calamidade que desa-bara sobre eles. E mais: exigiam que se produzisse prova irrefutável da inexistência de recursos para se opor à tragédia, cessadas que estavam, praticamente, todas as actividades produtivas. Se as coisas já estavam mal agravar-se-iam com toda a certeza. Mas certo é que não existindo transacções, não haveria matéria substantiva sobre a qual se pudessem fazer recair as sisas fixadas. Assim, era absolutamente impossível o re-fazer da ligação da ria ao mar com meios provindos dos cofres locais, já que estes se encontravam totalmente exauridos. A solução teria de vir, pois, da fazenda pública, tão grossos e avultados eram os dispên-dios avaliados para a consecução da mesma.

O homem lagunar que tinha vindo teimosamente a tentar fixar a movediça natureza da água escorregadia, domesticando-a entre mu-ros ou escoando-a das entranhas da terra lodosa à procura de espaços para criar leiras enxutas de arroteio, viu num repente tudo ser submer-so pelas águas que tudo invadiam, desfazendo o que tinha vindo a ser feito ao longo de séculos em suado e paciente labor. Gesto repetido

84 «Varino» (entre muitos outros significados) designava toda a gente ida da laguna. Ver Fonseca, Senos, Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, ed. Papiro, 2011, p. 201.

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vezes sem conta, por vezes descomedido e descaroado, dispendido de geração em geração que agora parecia ter encontrado um obstáculo para o qual não bastava a vontade de recomeçar, as vezes que fosse preciso, porque inútil.

Em 1752 o governo de sua majestade, consciente da gravidade da situação a que se tinha chegado, tomou a decisão de enviar a Aveiro o engenheiro húngaro Carlos Mardel, com a incumbência de estu-dar, e de seguida elaborar, uma proposta de solução. Mardel analisa e não leva tempo a relatar a situação que, confirma, é, de facto, insus-tentável. E aponta (mesmo) o local que supunha ser o melhor para proceder á abertura da barra: — a cerca de meia légua, para norte, de S. Jacinto. Só que a obra, como prevê, atingirá valores substantivos, incomportáveis para o momento. E a solução ficaria adiada.

Fig. 8 – Plano elaborado por Mardel

No entretanto, sobreveio o terramoto de 1755, calamidade sem exemplo que no dizer de Pombal «ficará memorável a todos os sécu-los», desabou sobre a capital do reino. Iria mobilizar, para a sua reedi-ficação, todas as receitas disponíveis; os «oiros» dos brasis nem tinham tempo de ser derretidos; ainda as naus que os traziam nos seus porões não tinham dobrado o «bugio», e aqueles já tinham destino aprazado para ajustar contas com os credores externos que vigiavam através dos

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seus representantes, a sua chegada. O metal era o único meio que tínhamos para suprir a nossa incapaz e insignificante capacidade pro-dutiva. Era necessário reerguer uma cidade que era, tão só, a capital do país, e que depois da hecatombe mais parecia acampamento de barracas nos subúrbios da cidade. Alguma monumentalidade tinha desaparecido; certo era, porém, que a parte da cidade que tinha sido mais atingida, era um inextrincável labirinto de ruas angulosas e becos, vielas sujas e torpes, escuríssimas, onde o ar não circulava e a luz só pai-rava pelos cimos e onde os despojos insalubres e hediondos se acumulavam livremente a céu aberto. Era necessário, sem demora, tomar decisões e desde logo sobrepor os interesses do Estado a todos os interesses parti-culares. Traçar a nova cidade e edificar segundo regras e leis inflexíveis, era imperioso e urgente, a prioridade das prioridades. A autoridade de Sebastião José, num poder desorientado, as prontas e eficazes pro-vidências que assume no meio da lassidão geral, é a única voz que se sobrepõe ao desnorte. Tudo era preciso para essa monumental e ciclópica tarefa, a que Sebastião José de Carvalho «se aplicará com a lucidez do seu espírito e a decisão da sua vontade», depois de lhe serem remetidos os poderes absolutos, sem qualquer tipo de limite. Desde logo, Pombal procura no estrangeiro ajudas para o infortúnio apelando à «solidariedade»85 dos Estados estrangeiros. Assim, nos anos seguintes, todos os recursos eram obrigatoriamente canalizados para essa tão ingente como colossal tarefa.

Perante esta prioridade irrecusável, compreende-se e aceita-se, que as reivindicações provindas das gentes lagunares não tivessem tido, de imediato, um acolhimento favorável.

Mas logo passado o período crucial das primeiras decisões para orientar a reconstrução de Lisboa, o espírito perspicaz, lúcido e sagaz de Pombal deu seguimento a uma primeira acção, a de enviar técni-cos para, no local, avaliar a situação. E desde logo propor soluções

85 Algumas ofertas, caso da francesa, seria mesmo diplomaticamente adiada por Pombal por perceber que as finalidades pouco tinham de solidariedade, antes imbuídas de vínculos interesseiros e egoístas.

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para a resolver. Sebastião José não poderia ficar indiferente ao facto da alfândega de Aveiro, que já fora a quinta do país em termos de recolha de impostos sobre mercadorias transaccionadas, se encontrar, então, completamente privada de receitas, inoperativa pela falta de movimento portuário.

Fig. 9 – Capa livro da receita da Alfândega de Aveiro no ano 1755.

O arguto primeiro-ministro, infatigável na acção de fomento do trato mercantil, sabia claramente que a via marítima era factor determinante para a sustentabilidade de uma economia que urgia relançar para fazer face à situação de profunda carência comercial. Situação aproveitada pelos ingleses em cujas mãos ambiciosas se de-tinha, praticamente, o monopólio da actividade das praças de Lisboa e Porto. Era pois urgente, mesmo primordial, reanimar a navegação mercantil, de modo a vencer a inércia e apatia que dominavam to-dos os sectores produtivos desde os finais do reinado de D. João V. A intervenção do estado, apesar das dificuldades — compreendia Pombal — era fundamental para alavancar, não já e apenas as re-formas, mas a «revolução» contra as forças que considerava serem o bloqueio económico (cultural e social) do país. A implantação de

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faróis na costa portuguesa86 é sem dúvida um complemento de outras acções no domínio de dinamizar o tráfego marítimo, tais como a isenção (ou redução) de impostos quando as mercadorias eram trans-portadas em embarcações nacionais e as obras decretadas para benefí-cio dos portos de navegação.

Entretanto Sebastião José arquitectara, já então, um plano desti-nado a arrecadar verba para a possível intervenção no Porto de Aveiro. Para o efeito instituiu o imposto, o Real da Barra87 (mandado cobrar por provisão de 27 de Maio de 1756), precedido do despacho do Desembargador do Paço de 24 de Maio do mesmo ano. Inicialmente este imposto foi pensado para ser pago, exclusivamente, pelo concelho de Aveiro88.

Só que na vila a questão agravava-se dia a dia. A crise económica face ao ruir de todas as actividades produtivas, provocava uma recolha insignificante de impostos. Mais grave: o decréscimo demográfico era assustador, gerando um temor real sobre a sustentabilidade de uma região que o demiurgo — o Homem lagunar — tinha vindo, pa-ciente e esforçadamente a recriar. A vila chegara ao extremo de não ter meios para pagar o cabeção 89 de 5000 cruzados, devido, à Corte, reduzida que estava a pouco mais do que 900 fogos, num total de 3000 habitantes. Número espantoso a que ficara confinada, se tiver-mos presente os números indicados em época imediatamente anterior por D. João Soares, Bispo de Coimbra, que afirmava ter Aveiro o nú-

86 Pela lei de 1 de Fevereiro de 1758, Pombal ordenou que se erigissem faróis no Bugio, S. Julião, Guia, Berlengas, Porto e Viana.

87 Na verdade designado correntemente, real do vinho, por incidir nas transacções deste produto.

88 Mais tarde, em 17 de Abril de 1838, para dar continuidade às melhorias da nova Barra aberta em 1808 no local onde a mesma se encontra actualmente, o referido imposto foi es-tendido a todo o distrito.

89 Lei do encabeçamento das sisas, decretado por D. Sebastião (1564-1565).

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mero (espantoso) de 11 36590 de almas com comunhão (o que excluíria os menores de sete ano).91 e 92

A invernia de 1757 trouxe com ela chuvas copiosas, torrenciais e prolongadas que engrossaram os rios despejando para uma laguna fechada. As águas vindas lá das serranias, impedidas de se escaparem para o mar, à medida que se iam acumulando, originariam inunda-ções de grandeza nunca vista, cobrindo os campos ribeirinhos, inva-dindo e destruindo as salinas, derrubando os seus muros de protecção que, construídos em torrão, se mostrariam impotentes para lhes fazer frente. E até a parte baixa da vila de Aveiro ficará coberta de água, circulando-se de bateira no interior das suas ruelas. Será deste insóli-to marear de pequenas embarcações, abicadas pelos erráticos novelos das ruelas típicas da baixa da vila, que advirá para Aveiro o título da «Veneza de Portugal». As ruas da vila nova viraram charcos e canais estagnados, onde os jericos não apeavam para o carrego de gentes e mercancias. E o que anteriormente era levado e trazido, alombado no homem ou no jumento, era agora sob céu chuvoso de tormenta, empastado, turvo e baixo, carregado por embarcações negras argoladas nas aldrabas das portinholas, à espera de carreto.

O povo, esgotada a fé nos homens, virou-se para a intercessão divina em procura de remédio para as suas maleitas (sem por vezes se interrogar se não poderia, o divino, ter evitado os desnortes da natureza).

90 Este número parece-nos claramente erróneo. Mas foi repetido à saciedade por citações continuadas sem análise. Por muito que Aveiro tivesse crescido no séc. xv e xvi, o número de almas correspondentes aos 2500 fogos não deveria ultrapassar as 8000 almas (3,5/fogo). Em 1685 haveria 1650 fogos no núcleo da cidade (5700 a 6000 habitantes), que comparados com os 1047 fogos (cerca de 3000 habitantes) nos dá a noção de decréscimo demográfico verificado no séc. xviii.

91 Ferreira, Messias: «A questão demográfica» Cap. III, História de Aveiro: Sínteses e Perspectivas, ed. CMA, 2009.

92 Amorim, Inês, aborda esta questão da evolução da população com muito maior serieda-de, concluindo que esse abaixamento populacional não terá acontecido, mas sim uma demo-rada estagnação — Aveiro e a Sua Provedoria no século xviii — cap. iv, pp. 133 e seguintes. Da mesma autora «Fazer e Desfazer um Preconceito: o da mortalidade excepcional de Aveiro no século xviii, in População e Sociedade, p. 114.

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Mas a fé não esgota a demanda de um interveniente próximo. No medo, o infinito é coisa que se deixa para outra altura, mais para logo à noite, que «deus» que se preze não comparece cedo ao serviço. E por isso vai insistindo no enviar de recados ao rei,93 alertando-o para a ne-cessidade de intervir na guerra que a natureza tinha declarado, como reza a exposição abaixo entregue por aqueles que:

(…) Representam as pessoas pobres e mizeráveis de Aveiro e os soldados dragões q. assistem nella que sendo esta mtº doentia por não haver barra capas que possa levar pª forae pª o mar os lodos que há naquelle rio, todos os a. São os sup. persizados a recolherem se pª se curarem no hospital q. há na dª Villa, porém hindo pº la he coasi certa a morte, e muito poucos escapam, sahindo curados, e isto pela razão de não tratamento que se lhes faz porq. Alem de serem mtº poucas as roupas com que se cubram não se lhes dá o sustento nesessario com q. se alimentarem, e o mais he q. a mayor parte dos q. morremhe sem os sacram. tªs pelo pouco cui-dado q. nisso tem hum clérigo thisoureiro dos rend. t todos da Misericordia chamado o Pª Antonio ou M. el Ribeiro, homem de 70 e tantos q. nada tem de são.

Com os campos alagados, as oficinas das artes são abandona-das (incluindo as de construção naval). O mesmo sucede às embar-cações empregadas na pesca, que serão, naquela situação, inúteis. Desaparecida que era a fauna piscícola da ria (toda a fauna vegetal e animal terão sumido), não restou outra utilidade para aqueles esquifes negros (?), se não a de fazer carreto para transportar as vítimas da peste a pousio cristão no cemitério alpendorado sobre o canal do Cojo, ali nas ribas, ao alto da vila, por detrás do Convento de Jesus. Que outra forma não havia de levar os corpos amortalhados para o campo do

93 Citação do Prof. António Maria Lopes em Sonetos Regionais, Separata da Beira-Mar, 1927.

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descanso eterno, porque alagadas, afundadas na maré, se encontravam as veredas para seu acesso.

Eram tantas as vítimas que já nem assento de óbito havia ques-tão de fazer. Deus (mesmo zangado), certamente informado da razão, não lhes perguntará a origem nem a filiação. Que os pobres no mor das vezes só sabem (quando sabem?!) a barriga de onde vieram. A «al-fândega da fé», ainda que pontualmente habituada a estas aglome-rações (normais naqueles tempos de intensa e continuada moléstia), mostrava-se incapaz de dar aviamento a tantas almas. Do lamentável facto, bem se poderiam assacar responsabilidades aos «zeladores» celes-tiais, pela distracção, pois que a calamidade teria, era inegável, provin-do lá das alturas. Com enormes dificuldades lá se ia, contudo, dando despacho favorável aos infelizes ceifados pela pestilência: mulheres, crianças, velhos e novos, à falta de comparência de servidor terreno da igreja de Deus, habilitado, para os «encomendar» com unção puri-ficadora para deganho celestial, certamente que seriam, apesar disso, recebidos cristãmente.

Aqui na terra enquanto se ia esperando (desesperadamente) pela resposta aos insistentes pedidos, pouco ou mais nada restaria àquelas gentes, que acorrer às prédicas sermonárias em invocação dos bem-aventurados, próximos. Para tal não faltavam altares. S. Miguel lá em cima, longe das águas infectas; e disseminados estrategicamente por toda a vila, um céu deles. De maior ou menor nomeada, fama e resplendor, crédito e ou avença, todos serviam, e eram poucos, para implorar mediação no trato com o divino. Melhor e mais seguro era mesmo acorrer «a todos» com celebração apontada, na incerteza do estado das relações do orago celebrado, com o pai. Tudo feito em alar-via, num espectáculo onde o misticismo subvertia a realidade do so-frimento daquelas gentes abandonadas, paupérrimas, tão aperreadas na alma como nos cintos que lhes entram pelas barrigas encovadas, faces escanifradas pela fome, e em cujos bolsos não sobrava espórtula para encomenda, ou troca, do que quer que fosse. Quanto mais para responder ao esmoler para «alimento» do orago. Tempo, pois, de pro-

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funda e generalizada crise, que atingia com evidência preocupante, também, os cofres da Igreja.

Aqueles que não conseguiram fugir à tragédia, já apenas espe-ravam ajuda milagreira vinda do «além». Ainda que paradoxalmente o além pareça deles esquecido, votados que estavam a cruel sofrimento no aquém.

Novenas, desfiles de maiorais, corregedor, dominicanos, «dra-gões», frades de todas as ordens, quadrilheiros, mercadores, gentiaga de todas as sortes, más e boas, engrossavam o corrupio humano que despejava sobre o terreiro de S. Miguel, a desmanchar-se em promes-sas. Pairavam no ar, húmidos fumos heréticos provindos da queima de muafos em bruxarias praticadas nas moitas mais longínquas, res-guardadas dos olhares zeladores do St.º Ofício. Via-sacra interminável e dolorosa, a mistura herética com o fervor da fé, para aqueles que apostavam em diferentes «tabuleiros», na esperança que o milagre se desse, viesse de onde viesse, intermediado fosse por quem fosse. Em todas as circunstâncias viria lá do sobrecéu, pois que o herético só na intermediação com o oculto (seja a bruxa ou a santa, ou o oráculo) faz escolha diferente. Apenas se limita a romper com a boa prática da religião institucionalizada, (o poder) dominante.

Importante, mesmo, era que Deus voltasse atrás com o castigo com que — vá lá saber-se a razão (?!) — decidiu revogar o sonho com que parecia ter querido, em tempos anteriores, premiar o esfor-ço das gentes lagunares. Gentiaga anfíbia fazedora de paisagem no amaciar das crestas e lombas, prateando os tabuleiros faiscantes das marinhas, catando e penteando a ria para lhe colher o húmus para as suas lavras. Ou coando as águas azuis da ria para endrominar os peixes de que precisavam para sobreviver. É certo que a humanização da paisagem, aqui, na laguna, sempre terá tido tiques de uma certa precariedade. Mas os olhos da memória não se lembravam de coisa assim. Tudo parecia ser vulnerável à impiedade com que a natureza entendeu subverter as regras do jogo, apagando todas as réstias de es-perança. Até o sal se terá vestido de negro; e a água pareceu não ter fim, prolongando-se até não mais ver. A laguna, perdida a magia da

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luz que a veste de mil e uma cores, era então charco estagnado, lodoso e escuro. As névoas, negrumes lúgubres de almas desgrenhadas que padecem, sombras mal esboçadas dançando ao vento, pairavam sobre as águas fazendo aumentar a fantasmagoria de um espaço irreal de mistério que deixou de ter vida.

6.2. O milagre aconteceu

Só que mais prosaicamente e com maior certeza, vindo, afinal, de tão perto. Do campo do homem terreno. Embora se não possa, de todo, negar a interferência divina, como adiante teremos ocasião de referir.

No meio do desnorte fez-se ouvir uma voz decidida. Reconhecendo a incapacidade de todas as instâncias que detinham a obrigação da resolução de tão magno problema, e a inércia de homens ditos maiorais (gente de retórica mimosa mas acrimoniosa na força e vonta-de), compreendendo que não era possível ficar indiferente a tanto sofri-mento, João Sousa Ribeiro decide agir por sua (total) conta e risco.

Podemos com maior ou menor fidelidade — isso que im-portância tem para o fim (?!), esse sim, comprovadamente aconteci-do — refazer, ou recriar, aqui, o teor e o tom das conversas de João Sousa Ribeiro com os seus pares, depois de uma visita às suas proprie-dades na laguna:

(…)Chegados desembarcaram no cais do Côjo, estava o

sol raso, quase desaparecido lá para as bandas do mar. JSR ficou a dar as últimas instruções ao arrais «Bexiga» para as matinas do dia seguinte, jornada em que desejava ir aos en-charcados aluviões da ilha do Posso, totalmente cobertos de água. Fixada a jorna, tomou pelas rédeas a égua «Malhada» que seu jovem filho, João da Silveira, lhe tinha já apron-tado. Tocou-a meigamente no lombo, e os dois, pai e filho, lado a lado, ladeados pelas éguas, foram andando em passo

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estugado para a Porta da Ribeira. Na marginal que se inter-punha entre a muralha e o canal da Villa, viam-se grupos de mulherio, coitanaxas maltrapilhas andrajosamente vestidas, caras esquálidas patenteando no esgar o espectro de fome. Empurrando-se e esgadelhando-se, se uma era mais afoita, lépida e matreira, o suficiente para se adiantar às restantes na abordagem ao passante. Parecendo postadas em conver-salha lastimosa, estavam, contudo, sempre atentas, prontas a saltar para a rua para estender mão à esmola de um qual-quer passante. João Sousa Ribeiro retirou algumas moedas e lançou-as sobre o grupo, dando origem a uma contenda entre as que, momentaneamente felizardas, logo acorriam a beijar a mão ao habitual benfeitor. Pretendendo ser as primeiras na esperança que ainda sobrasse alguma moeda, esquecida, ou para marcar reconhecimento, para quando amanhã, o passante habitual, de novo, mostrasse misericórdia condoído com tanta miséria humana.

Rapazio sem trabalho, olhava o espectáculo atiran-do chufas àquelas desgrenhadas mulheres, na esperança de, por mãos-travessas, lhe vir parar às mãos, alguma parte das espórtulas. Em outros esconsos e pouco iluminados cantos, mulheres que nada têm para vender senão os escanzelados corpos, procuravam com alguma vergonha freguês para con-seguir barata recompensa que desse para matar a fome, a si e aos seus. Vindos de reconfortar, não se sabe quem, nem com o quê já que tantos eram os sofrentes e tão pouco era o agasa-lho, avistavam-se frades de vida matreira que se escapuliam, afregulhados, virando costas àquele espectáculo miserável às portas da cidade, recolhendo-se, silenciosos e apressados, ao aconchego dos mosteiros.

E até a «Zefa Muda» bruxa com banca escondida, mas afreguesada, tinha largado o seu palheiro, encafuado lá bem para o fundo de um beco, esconso e lúgubre, vindo para a borda à procura de freguês que desse crédito às sua sentenças

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proféticas. Ao descortinar JSR, Irmão do St.º Oficio, ainda fez tenção de ensaiar fuga. Mas S. R. travou-lhe os passos, atirando-lhe com severidade: «mulher, toma cuidado e não enganes estes desgraçados, que para desgraça basta o que so-frem. O remédio não pode vir das tuas mezinhas, mas da vontade do homem ajudado pelo divino».

Chegados à Porta da Ribeira que ultrapassaram sem paragem, pai e filho foram saudados reverencialmente pela guarda de plantão, à mesma, com honras e deferência de-vidas a oficial superior. João Silveira Magalhães, já então cadete no Esquadrão dos Dragões de Aveiro, respondeu à saudação com garbosa prontidão e aprumo. Seu Pai, que trazia estampado no rosto um inabitual cenho em que se vislumbrava dor e preocupação, semblante carregado como que abstraído do que lhe ia em volta, o que lhe dava um ar absorto e longínquo, foi menos circunstancial. Remeteu-se, apenas, a um aceno de simpatia enquanto estugava o pas-so. Ao subir a calçada que ladeava pelo nascente a Igreja de S. Miguel, deram conta de um desusado movimento que àquela hora, quase nocturna, se fazia sentir no edifício da Alfândega. Na frontaria viam-se vários cavalos bem arraia-dos, presos pela arreata aos argolões, indiciando a presença de gente nobre que no interior estaria a tratar de algo impor-tante. Decidiram por isso, parar, e entrar no mesmo. Logo a sua presença foi motivo de saudação, contemplados com efu-sivas manifestações de boas-vindas com que os presentes dis-tinguiram a chegada do Capitão mor, parecendo aquietados com o facto, como se estivessem, precisamente, à sua espera. E vissem assim, inesperadamente consumado o seu desejo, de o inquirir. Ao que respondeu cortesmente:

(…)— Senhores: compreendo as dificuldades da coroa

(?!). Ainda por cima logo após a terrível catástrofe que se abateu, vai para dois anos sobre Lisboa, destruindo-a,

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praticamente. É necessário reparar os danos do terramoto er-guendo tudo o que a fúria dos elementos deitou abaixo. Mas trago cuidado no meu coração. O qual é este: sei que a nada se fazer, aqui, a calamidade que se deparou a meus olhos du-rante a jorna que hoje fiz, tudo apagará da história. A conti-nuar a desdita, se Deus nos não livrar dela, aqui, em Aveiro, nem sequer haverá vivos para cuidar. As medas de sal na ria desapareceram, levadas pelas águas. Os vizinhos, desde a villa de Ovar até Sousa, estão a ser dizimados. E com eles as suas fazendas. Viradas infrutíferas. Mas e também nas vidas (suas e dos seus, filhos, maridos e irmãos) pelas pestilências contagiosas que os aniquilam em toda a vizinhança da ria. Nesta já não lobriguei sinais de vida; nem uma tainha en-carreira para os saltadoiros. Nenhum alguivão se avista no horizonte. As ervagens estão podres, coalhando a ria, dela exalando um cheiro fétido, podre, nauseabundo. Matarão toda a planta deitada à terra que as contenha. Na villa há ruelas onde já só a remo se tem acesso. Meus Senhores: muito desejei e desejo fazer; é hora disso. Não é hora, nem razão, de escusa. Não podemos ficar de braços cruzados, à espera que o «inimigo» se retire da nossa porta. Porque este ainda que o queira, não tem para onde ir. Se não se desalagar a ria, se não se criar ligação ao mar para as águas se escaparem; se o bujão não for sacado, tudo que vem dos nossos antepassados perecerá. Os braços fortes vão por esse litoral abaixo á procu-ra de novos pousios, em autêntica debandada. Levando com eles a família.

— D. João … Deus Vos guarde, humano e caridoso senhor, o mais ilustre filho da villa, homem de grande saber e grande autoridade. Deixai-me vos inquirir: onde ir buscar cabedais para levar a termo tão necessária e urgente obra, que tanto nos ofende, amargura e vexa? Os cofres da coroa estão vazios e os da Câmara desta villa, como nos acabam de dizer D. João Egas de Bulhões e D. Luis da Gama Rangel

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de Quadros, estão vazios. Restam umas parcas centenas de cruzados que vêm sendo arrecadados para a dita obra (?!).

— Pois honrados e distintos senhores: está na hora de os maiorais desta villa se decidirem, eles, a assumir o custo de tal obra. Pois sempre lhes ficará mais barato deitar agora fora uns anéis, que amanhã os levarem na mortalha que terão por certa - afirma com voz grave Sousa Ribeiro.

Fez-se silêncio no Salão. Murmúrios correram sopra-dos de orelha em orelha. Chegada a hora de colocar os cabe-dais sobrantes em obra pública, todos pareciam arrepiar, ou pelo menos, retardar decisão.

Vendo a incomodidade criada, João Sousa Ribeiro fa-zendo reverente saudação, majestoso na sua figura imponente de espantosa virilidade, arcaboiço garboso de cavaleiro, toma pelo braço seu filho que tinha assistido, calado, ao diálogo dos maiorais, e remata, seco, duro, e sibilinamente peremptório:

— Senhores: num vim aqui para estar convosco em palavras. Chamaste-me para içar a bandeira. Mas agora verifico que não tendes mastro nem a corda e, quem sabe (?)a bandeira. Não me inquietais mais do que já trago co-migo. Levai-me V/ decisão ao meu conhecimento, amanhã. Porque tardar pode custar-nos caro. Aos que aqui estão, mas e também a todos os que estão lá fora à espera que a magna-nimidade dos nobres desta terra não seja apenas palavra sem correspondência no gesto. Passem bem, Vossas Senhorias que eu quero ainda ir à celebração do Carmelo.

Ao outro dia vieram desculpas e não actos. Sousa Ribeiro ouviu, e ironicamente comentou:

— Curioso como numa terra de sal, este que é fei-to para evitar a contaminação do podre, nesta villa de S. Magestada, o sal imaculado não evitou a corrupção dos va-lores nem o falimento da solidariedade. Ou o sal é fraco, ou as pessoas se deixam corromper pela ambição. E sendo certo que receberam doutrina, mais certo, foi, que ouvindo-a, não

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a queiram perceber. E em vez de servir os homens conforme ditou Cristo, negam o que de si depende. Servem-se apenas para satisfação dos seus apetites. Não desejais pagar singelo hoje? Vede o que recusais, pois amanhã, se não vos enterne-cer hoje, o choro das mulheres, velhos e crianças, amanhã (!) chorarão os nobres, os veneráveis e até os religiosos. Pois nem a estes será perdoada a desumanidade. Chorarão todos. Certamente mais pungente será o choro dos inocentes. Deus por vezes experimenta-nos; mas não nos quer insensíveis ao sofrimento dos mais desfavorecidos. Que no caso nem sei bem quais serão. O que creio julgar e tenho por fé, é que esta provação não pode ser a paga final pelo suor derramado a construir um novo e sonhado mundo de fartura. Deus não nos pôs mesa farta, para depois nos negar a refeição.

E sem outra censura, voltou-se para o filho, ordenando:— João! Meu filho: prepara animais e o rol das coi-

sas. Amanhã ao raiar da aurora, partiremos para a coroa. Iremos pedir autorização a El Rei, D. José para abrir a bar-ra e voltar a dar esperança a toda esta gente que sofre, mas ainda vive. Sebastião José, tenho a certeza, não deixará de ser sensível, a que também aqui, em Aveiro, se cuidem dos ainda vivos.

Do grupo de maiorais que tinha vindo à casa do Terreiro trazer a escusa, saiu uma angustiada interrogação:

— Mas a expensas de quem será aberta a Barra D. João? Sabe V. Senhoria, melhor que todos, que a importân-cia de tal obra ultrapassará os 100.000$000 réis. Onde os ir buscar? — perguntaram.

— A expensas totais e únicas da casa dos Ribeiros da Sylveira, cujo fato sobra para tal monta. E que se mais curto ficar, os fundilhos são limpos, asseados e honrados, para merecerem respeito. Que não pena. Não foram gastos na perdição ou ambição, mas no acudir a desgraçados. Meus

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Senhores, passem muito bem que me vou despedir de Dona Brites Joana, e dar-lhe conta de meu decisório.

A Gazeta de Lisboa dá conta, em edição de 1756, da situação di-fícil em que se encontravam as gentes. E refere a oferta de JSR, feita ao Rei, de levar a cabo, a expensas totalmente suportadas por si, o plano de revivificação da laguna:

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Fig. 10 e 11 – A Gazeta de Lisboa com notícia da abertura da Barra.

Um gesto de grandeza cívica incomparável, uma portentosa manifestação de grandiosidade, ética e moral, uma recuperação dos ideais nobres do cavaleiro medievo investindo contra o dragão que não expele fogo, mas um bafo fétido e pestilento, mortífero, que contami-na quem dele se abeire.

E desse modo, um homem talentoso e voluntarioso, em que se conjugava um elevado sentimento de valores com uma soberana razão, bastou para fazer valer a sua voz à descrença que se generalizara. Não a voz de um vacilante, entibiado e frouxo ser, mas a voz de um homem de vontade inexpugnável, inabalável, que não se deixara paralisar pelo máximo infortúnio. E que, perante a tragédia, muito menos desertara. Como fizeram tantos outros, fugindo com a família para locais mais saudáveis, opção que se tornara habitual na burguesia encadernada, local. Os ares pútridos e pestilentos exalados da laguna, infestando Aveiro e redondezas, levara grande parte das famílias a procurar outras

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paragens mais saudáveis. Nem Sousa Ribeiro, nem os seus, se deixa-ram quebrar pela vivência com o terror da mortandade que grassava à sua volta. Enquanto Sousa Ribeiro se assumia disposto a pôr cobro ao sofrimento, assumindo defrontar a natureza adversa, sua mulher, D. Brites Joana, mulher de uma bondade cristã, dadivosa, acudia aos tu-gúrios dos mais humildes levando-lhes palavras de conforto, agasalho, alimento e espórtula, numa acção de grandiosa abnegação e caridade, indiferente ao perigo que corria.

Transmitida a mensagem ao rei da inteira disponibilidade para enfrentar a calamidade, com trabalhos e «cabedais» bastantes, logo sua majestade se apercebeu estar perante um ânimo exornado de inque-brantável fortaleza, disposto a sacrificar-se, total e inteiramente, para melhor servir a sua comunidade. E, mais do que isso, servir a sua própria pátria. E em 27 de Janeiro de 1757, o rei promulga, por aviso régio, a autorização para os ditos trabalhos, como abaixo:

Sua Majestade houve por bem conceder Licença ao Capitão Mor de Ílhavo, João de Souza Ribeiro da Silveyra, para que à sua própria custa possa abrir huma vala que dê corrente e expedição interina às agoas que inundavão essa villa, sangrando-as pela dita abertura, thé se meterem no mar , e porque o louvável zelo com que sobre o dito volun-tariamente se offerece a esta obra da Vitilidade Publica, he digno favor , sendo o mesmo Capitão mor o director da re-ferida obra que há de fazer com a sua própria despeza. He o dito Senhor servido , que V mº lhe dê para ella todo o auxilio de valadores, jornaleiros, carros, e tudo o mais que necessário for, sem duvida ou mora, e no cazo que nos incidentes da referida obra se offereça a vmº alguma razão para duvidar o faça sempre prezente a S. Magestade, sem suspenção da obra, por esta Secretaria de Estado dos negócios do Reyno Deos Guarde a Vmº. Bellem a vinte e sete de Janeiro de mil e setecentos e cincoenta e sete, Sebastião José de Carvalho.

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João Sousa Ribeiro não perde tempo. Obtida a autorização ré-gia atira-se à obra sem tergiversar. Animoso e audaz, inicia os traba-lhos em 13 de Fevereiro do mesmo ano, fazendo-se acompanhar por 200 homens que contrata, e a quem paga jorna muito mais elevada da que habitualmente ocorria na região, em tempos de acalmia. Com os trabalhadores braçais viriam 8094 juntas de bois, à canga, para rapida-mente atacar a duna, rasgando-lhe o ventre para aprofundar e alargar o regueirão, vestígio de uma outra ligação natural, outrora existente, e que Sousa Ribeiro intentava de novo restabelecer. Sousa Ribeiro não arreda pé por um dia que seja, orientando os trabalhos, acudindo aqui e ali, dando ordens precisas para a colocação de estacaria de supor-te, zelando para que tudo corresse como planeara. Numa actividade frenética procura ganhar tempo, pois sabe que no momento decisivo precisará de «más condições atmosféricas» para provocar o rompimen-to final do areal, o que provavelmente não sucederá se chegados à época estival. À medida que avançava, as beiras do canalete iam sendo protegidas por paliçadas de estacaria, evitando, desse modo, o cor-rimento das areias dunares. A norte do local onde se desenvolviam os trabalhos, quadrante de onde habitualmente sopra a ventania rija numa repetição quase diária, Sousa Ribeiro fez dispor três carreiras de estacaria de modo a permitir a formação de um Cabedelo (cabeço) de protecção, mais elevado, onde as areias arrastadas pelo vento se iam acumulando, engrossando desse modo a lomba dunar.

Que a escolha de Sousa Ribeiro para o local da barra parecia acertada, comprova-o o facto de se ter encontrado durante as esca-vações uma placa com a inscrição «1643 Rei de Portugal, João IV», o que prova que já no tempo daquele rei se teriam tentado obras de melhoria da barra natural, continuadamente instável, que na altura já por ali teria estado estabelecida.

A obra pretendida por JSR encontraria alguns problemas com a circunscrição de Ovar. Esta Vila detinha a jurisdição sobre toda a

94 «Nunca se vira tanto animal em esforçado lavor», clamou-se na época.

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extensão da língua de areia que ia confrontar com a anterior barra de Mira. Por vias da nova barra, na Vagueira, o cordão norte seria diminu-ído em cerca de duas léguas, distância aproximada entre as duas barras referidas. Ovar pediu assim uma nova demarcação ao juiz de Fora da Vila, que mandou fixar no lado norte da nova barra, na Vagueira, uma placa inserindo a palavra «VAR», indicando, deste modo, a nova limi-tação da jurisdição daquela Vila: o extremo sul do cordão do areal95 96 que, saído de Ovar, separava o mar da laguna até àquele local.

Fig. 12 – Carta da nova Barra.

Havia então que aprofundar e alargar o regueirão num compri-mento de 600 metros, a distância que naquele local separava a ria do mar. Ao fim de sete semanas, apenas, já só uma estreita barreira separava as águas salobras, barrentas e acastanhadas da ria, das águas vivas e des-lumbrantemente azuis do mar imenso primaveril. Mas o capitão-mor era um homem muito experiente, percebendo que teria de esperar que o nível de água na laguna subisse substancialmente. Significativamente aci-ma do nível do mar para potenciar o efeito de enxurrada, e assim rasgar impetuosamente o caminho desenhado. Paciente, embora naturalmente ansioso, sabia, contudo, que para o êxito do seu plano era necessário reu-nir as condições ideais. Dando mostra de grande competência técnica na matéria, Sousa Ribeiro com grande experiência no trato com as águas da

95 Fonseca, Senos: Ílhavo – Ensaio Monográfico Séc. X – Séc XX, ed. Papiro, 2007, p.531.

96 A desanexação e a definição das novas fronteiras para o cordão litoral, foi dado pelo decreto Lei de 21 de Março de 1835 (completado pelo decreto de 18 de Julho desse mesmo ano). Fonseca, Senos, ant. cit., p. 324.

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ria, irá aguardar pelo inverno seguinte para que as chuvadas, e o natural crescimento das águas no interior lagunar provocado pelo despejar dos rios na laguna, produzissem a elevação ao nível desejado. Mesmo assim não abandona o local, pois que em Agosto volta a usar as juntas de bois para trabalhos de rectificação e consolidação da estacaria. Todos os tra-balhos, independentemente de estarem ou não concluídos com êxito, terão sido pagos pontualmente, como era seu timbre; e sempre, como anteriormente referimos, por valores fixados bem acima dos correntes. Sousa Ribeiro nunca se aproveitou da situação que atirara com milhares de seres para penúria — facto muito realçado na altura — conduzin-do a um excesso de mão-de-obra disponível dada a paralisação das acti-vidades produtivas. Sem qualquer tipo de actividade de onde pudessem receber remuneração adequada, em situação de penúria generalizada, os trabalhadores empregados na obra estariam certamente predispostos, pela situação de fragilidade, a aceitar qualquer oferta. Bem pelo contrá-rio, Sousa Ribeiro contratou-os a jorna mais elevada do que era corrente antes do período de crise. E recusou, em qualquer circunstância, recorrer ao recrutamento (obrigatório) de gentes baseado no interesse público da obra, que poderia ter aberto a porta a esse tipo de procedimento. Possibilidade que estaria ao seu alcance, dado o cargo que desempenha-va. E que lhe terá sido sugerido. Prática, aliás, muito habitual nas capi-tanias de ordenanças, era a utilização abusiva de mão-de-obra gratuita, em interesses particulares, próprios. Esta atitude de grandeza ética, jus-tificativa de encómio, parecendo despicienda, releva uma enormidade de carácter, dando por ela só, um retrato das qualidades, morais, éticas e humanas, deste homem raro, de princípios rígidos e rectos, de uma hon-radez impoluta, virtuosa. Na verdade, como capitão-mor, era-lhe lícito ter utilizado o poder de recrutamento, que detinha, tendo assim acesso a mão-de-obra gratuita, bastando-lhe para o efeito evocar o bem público. Não o fez, renegando frontalmente a proposta que lhe terá sido sugerida. Ao contrário, contratou aquela gente como trabalhadores, pagando-os à jorna, pois percebia que em tempos de crise profunda, como o era aque-la época prodigiosamente dolorosa, era preciso fomentar o aparecimento

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de actividades97 propiciadoras da reactivação da economia, que mais do que estagnada, se encontrava em verdadeiro retrocesso.

Certo é que João Sousa Ribeiro percebia que estava a fazer um investimento. Desde logo porque restabelecido o movimento portuário e melhoradas as condições da laguna, a produção de sal de que Sousa Ribeiro era um dos maiores produtores da região, recomeçaria. Por outro lado, os impostos futuros recolhidos na Alfândega do Porto de Aveiro, seriam substanciais, e, por certo, alguma recompensa adviria para si ou para seus filhos se conseguido êxito na descomunal tarefa. Mas era certo que muitos outros poderiam ter-se chegado e contribuído para o custo da obra, por motivos idênticos. Porém, na hora da verdade, nenhum se «chegou à frente». JSR ficou a sós, a arcar com a execução (e responsa-bilidade) da obra; e ainda com a assumpção do suporte financeiro para a mesma, ainda que o benefício fosse para todos, geral: gentes, adminis-tração local, mas, e também, de interesse para o próprio país.

Fig. 13 – Carta da Barra de Aveiro em 1755.

97 Sousa Ribeiro, preocupado com as mais de 1500 marinhas que era preciso reactivar, per-tencentes a proprietários sem recursos para as pôr de novo a produzir, propõe que lhes fosse feito um empréstimo reembolsável, para retoma de actividade. E desde logo se propondo como um dos contribuintes para tal empréstimo. Desse modo, afirmava «os réditos da «Mesa de Sal», aumentariam rapidamente, apressando-se a retoma». Vê-se, assim, a visão acertada, fomentadora de desenvolvimento regional numa perspectiva e atitude muito adiantadas para a época, muito próximas das ideias de desenvolvimento pombalino.

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Em 8 de Dezembro Sousa Ribeiro julga ter chegado o mo-mento certo para, auxiliado pelas condições atmosféricas, proceder ao rompimento do canal.

Cerzindo as referências colhidas de excertos de vários relatos, bem poderemos tentar refazer (com alguma imaginação, refira-se desde logo) o quadro que marca um momento decisivo na história de Aveiro e que já publicámos em outro local:

(…)Postado numa corcova arredondada da duna fustiga-

da pelo vento tempestuoso e frio da manhã invernosa, João Sousa Ribeiro olhava ansioso, o mar. Os primeiros raios de sol ainda baixos, muito horizontais e frouxos, deixavam ver as gigantescas e infinitas dobras de espuma que os vagalhões, batendo no fundo na areia, provocavam, vindo esparralhar-se na praia. Chovia. Nuvens pesadas, negras — que nas nuvens até a água é escura — entreloucadas, vagueando nos céus tocadas pelo vento, entalhadas e enoveladas, desfa-ziam-se entre raios e trovões violentos.

As gotas de água batidas pela sulada batiam-lhe com força na cara. Contudo em vez de se sentir desconfortado sob a chuva impiedosa, aconchegado no seu capote de bu-rel, Sousa Ribeiro parecia sentir-se aliviado e até fortalecido, pronto a jogar a última cartada. Um sorriso confiante, como que agradado (e agradecido) com o que via, aflorava ao seu rosto exposto à intempérie.

Era certo que o temporal causava preocupações ao Capitão-mor, pois o estado do mar poderia contrariar, e ate-nuar, o rompimento do areal pelas águas aprisionadas na ria. Mas a verdade é que na laguna, o efeito do mau tempo provocara uma das maiores enchentes de que havia memória. O nível elevado das águas tudo submergiu, destruindo casas e afogando animais. E se é certo que não se podia manter por

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mais tempo a situação aflitiva, JSR julgou chegado o grande momento porque tanto ansiara.

— Era por este aumento de nível de águas no interior que afinal esperei desde o verão, ia lucubrando para si, JSR. Que a Nª Srª da Conceição nos auxilie na nossa pretensão, e amanse um pouco a fúria do mar. Antes da redenção foi preciso suspirar e gemer de dor; depois deste novo dia haverá que possuir e colher. Senhor: que através de nós cumpramos inteiramente a Vossa vontade: «Fiat Voluntas tua»

Sousa Ribeiro mandara levantar todo o acampamen-to pelas cinco da madrugada. Nos últimos dias mais de 160 trabalhadores tinham-se afadigado arduamente a preparar o último acto da grandiosa tarefa de desentupimento da ria. Que por estranha coincidência (seria bom presságio?) tinha vindo cair ao dia 8 de Dezembro, dia da celebração da N.ª Sr.ª da Conceição, Padroeira do Reino.

— Bom augúrio, pensou em voz alta. No regaço da nossa excelsa padroeira, protectora da Pátria, zelosa pelo bem-estar de seus filhos, deponho o destino de todos os filhos da região e rogo a sua piedosa intercessão.

Depois de um ligeiro aconchego proporcionado pela beberagem de um caldo quente de boa mantença, distribu-ído por todo o acampamento, foi hora de se dirigir, acom-panhado por muitos dos seus mais próximos colaboradores e de seu filho, João S. Ribeiro de Magalhães, para o improvi-sado altar onde Frei Bernardo dos Pregadores se encarregou do exercício das matinas em piedoso acto cristão. A que não faltaria uma empolgada prédica, apropriada ao momento, testemunha de fé na certeza que a vontade de Deus — a de pôr fim à calamidade — se cumpriria:

— Deus! — exortou o pregador — concorrerá com a luz e a graça para o êxito deste assinalado feito. Vejo (já) o reencontro das águas da ria com mar, rasgando o are-al e deixando nele uma veia portentosa líquida. Por onde

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correrão as águas que se irão refrescar às entranhas do mar, revigorando para trazer de novo a vida à ria: Et fructum fecit centuplum. (e os frutos se multiplicarão) Leio lá no alto, anunciada pelas trombetas dos anjos, a mensagem de estar próximo o fim das tormentas e do sofrimento. Voltará um novo período de prosperidade, que Deus na sua infinita misericórdia, Deus da paz e do amor se dignará conceder, graças à intercessão do grande Capitão-mor, Sousa Ribeiro, protector dos pobres, filho obediente da santa madre igreja, homem de rara magnanimidade e fervor, zelador exemplar dos costumes cristãos, senhor de grandes saberes e frutuosa acção, para quem todas as graças futuras, requeridas, se-rão concedidas. Dessa justiça estamos certos, porque o feito supera a grandeza do homem aproximando-o do acto di-vino — concluirá deste modo exaltado, Frei Bernardo, a prédica, em pose mística: braços abertos, olhar soerguido no endireito do além, exclamando: agradeçamos: Quam mihi et vobis, etc

João Sousa Ribeiro terminado o ofício, tirando o bar-rete com que se resguardava do vento agreste, com os joelhos no areal, mãos alevantadas e olhar fixo no céu, ergueu a voz para implorar:

— Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, temos esperan-ça na tua ajuda. Em Ti confiamos e a Ti nos entregamos. Pecador, dos pecadores o maior, Te peço humildemente, em nome destes inditosos servos Teus, que nos dês força e ânimo para sairmos vitoriosos desta batalha com a natureza, que de nós se amofinou. Bem!, vamos lá a isto; que Deus nos proteja e auxilie nesta suprema tarefa de trazer de novo a esperança à Ria e aos que dela dependem — afirma JSR erguendo-se. Mãos à obra, gentes, antes que a maré reponte.

Tudo a postos, JSR fixa a hora em que deveria ser reti-rado o tapume central (a rolha como lhe chamava) que fazia de represa às águas da ria. Intencionalmente J. Sousa Ribeiro

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quis rodear o momento de grande simbolismo, chamando para junto se si, seu filho. Um garboso rapaz de porte altivo, estru-tura muito sólida onde se percepcionava uma vontade felina, muita firmeza e decisão. Enlaçando-o pelo ombro cingiu-o a si com força, enquanto em voz grave determinou:

— Meu filho: serás tu quem rasgarás com as tuas botas de Dragão, o rego que iniciará o movimento impa-rável do desentupimento. Um Dragão é um soldado feito para a guerra. Mas as guerras não se fazem sempre com armas As guerras só têm sentido, se feitas para cumprir a paz e o bem das populações. Por isso nós que queremos o bem das nossas gentes, e que nos empenhamos para que ao sofrimento sucedam dias de farto porvir, viemos aqui tra-var combate com a natureza inimiga. Vai! E assinala a tua marca no areal, assinando a tua presença nesta batalha. Esta será a tua primeira batalha.

João Magalhães, que envergava a farda de cadete do Regimento, saúda seu Pai, e, resoluto, com o capote balan-çando ao vento que soprava rijo vindo lá do sul, espeta a bi-queira da bota mesmo no centro da represa. E enterrando-a bem fundo, firme, abre «regadeira» por onde de imediato se escoa a água lamacenta da ria.

— Fujam! Fujam… grita-se.O alarido é enorme. Gentes e animais que tinham

começado a erguer a estacaria da represa mal tiveram tempo de escapar à enxurrada. Tumultuoso caudal leva o areal na sua frente em revoltos remoinhos medonhos.

— Senhor meu Pai, está salva a Pátria, grita J. Magalhães.

Célere afasta-se da torrente brava. Leva na mão er-guida, o boné do regimento. E na cara um rasgado sorriso de alegria. Ao lado segue seu Pai que espreitando sobre o ombro lança constante olhar para o vazadouro. E o que vê

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mais parece milagre vindo das alturas: — do anterior pe-queno rego existente no local sobre o qual JSR tinha decidido levar a cabo as obras, surge uma larga, profunda e espaçosa Barra,98 de 224 braças de largo, que se iria mostrar capaz de dar entrada a embarcações de toda a grandeza. Oferecendo profundidade, facilidade de manobra e acessibilidade, apre-ciáveis para a época.

Já afastado do canal tumultuoso, João Sousa Ribeiro, pára, ajoelha-se, entrelaça as mãos que ergue com fervor aos céus, e, com voz embargada, mas suficientemente poderosa para lá chegar, clama:

— Etas aurea reviviscet (ressuscitará a idade doura-da). Felices qui viderint (bem aventurados os que isto vi-rem». Obrigado, Senhor. Entrego-Vos esta terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto, para que im-pere nela a Vossa vontade, declara emocionado JSR.

E voltando à história dos factos…A ria estava prenhe de água que o Inverno tempestuoso se tinha

encarregue de trazer lá das serranias. Torrente tumultuosa, logo que encontrou uma nesga precipitou-se ao encontro do mar levando tudo à sua frente, num ímpeto de que as areias lassas mais pareceram que-rer arredar-se, do que opor-se. Quando os níveis se equilibraram,99 e as águas se aquietaram, reparou-se que a largura do canal em vez das cem braças pretendidas, tinha atingido a largura de quase 300 braças (dimensão verdadeiramente fora de todas as expectativas), permitindo que as embarcações, qualquer que fosse a sua dimensão, pudessem perfeitamente dar volta no seu interior. As marés recomeçaram o seu refluxo contínuo; ora correndo para dentro, ora para fora, com um

98 Sobre esta dimensão consulte-se p. 162.

99 Para este nivelamento entre as águas do mar e da ria foram precisas 48 horas de descarga contínua.

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pequeno hiato para breve e merecido refolgo. Foram elas que devolve-ram vida à laguna, revivificando os seus habitats. A cor azul das águas parecia devolver a tonalidade e vida às terras da beirada. O salgado das que entravam misturava-se com a doçura das águas vindas lá da serra, constituindo o meio preferido das espécies, que nesse caldeio, de novo, encontraram as condições ideais para se multiplicarem. As linhas de pesca começariam a estralhar vários anzóis. Navegando pela ria era de novo possível verem-se cortiçadas enfeitadas de bandeirolas, a anunciar o espinhaço da linha afundada. A engorda das leiras já enxutas, devol-veria o viço às terras de arroteio. Pareciam, assim, terminados os dias de privação. E logo que o sopro quente do aquilão zoou encanado lá do norte a fustigar os vitrais das marinhas, o milagre de prestidigitação que transforma a «salsugem», em ouro branco, voltou a consumar-se. A flor de sal despontava, alva, nos tabuleiros. E logo o marnoto sob abrasador sol escaldante se atirou em passo lépido, miudinho e afadi-gado, num prodígio de equilíbrio sobre as «barachas», em jeito de ara-mista circense, para a ir depôr no malhadal, acumulando-a, erguendo cones alvos, faiscantes, reflectidos no azul encharcado e vivo das águas. Imagem aquietada a que o salto inesperado de uma tainha vem provo-car distorção, quebrando a serenidade da paisagem com a ondulação que provoca, se propaga e esvai. A ria de novo ganhou vida própria.

A maresia trará com ela o cheiro tonificador da flora marinha inundando os ares, limpando-os do fedor anterior. E no ventre da ria serão tecidos, de novo, os sedosos fios das ervagens. Mariscados100pelos pentes dos ancinhos, serão postos a secar nas motas das beiradas, para depois de caldeados com escasso, irem impermeabilizar as areias lodo-sas, retendo as águas da chuva que matam a sede à semente que o la-vrador ribeirinho recomeçou a esborralhar nas leiras frágeis, mais secas e mais enxutas. Num repente, a enfezada planta que timidamente, ao princípio, rompeu a terra, ganha força, rompe e empertiga-se. E desa-ta a enverdecer os campos debruçados sobre a laguna, emprestando-

100 Por «mariscar» designava-se a apanha do moliço arrolado nas beiradas da ria.

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lhes cor e viço. A laguna voltaria, assim e de novo, a ser a circunstância das gentes neste renovo de vida, trazendo de volta a esperança e o sonho. E tudo recomeçará como «ao princípio»: a humanização da paisagem explode logo que arredada a desesperança, substituída por novas energias e renovado alento. O homem lagunar recomeça, então, nova diáspora de criação. Teimosamente, corpo exsudado pelo suor, volta a atirar-se à terra, a surribar teimosamente as leiras, a domesticar a natureza que se estende a seus pés: e recomeça, crente, a disciplinar as águas, limitando-as entre muros de torrão para que o sal surja do vidrado dos tabuleiros. Enquanto aguarda o milagre, é tempo de lan-çar, de novo e confiadamente, as suas chinchas e botirões na recolha de sustento. Anfíbio, não perde tempo, nem lhe fenece a vontade para ir afeiçoando esteiros, afagando e arroteando lombas, transformando-as em jardins fruitivos, verdejantes, pontilhados aqui e ali pelo ocre do telhado do cortiço alapado que lhe serve de habitação.

Sobre este renovo, concluídos os trabalhos, Sousa Ribeiro dá conta ao Marquês de Pombal do feito, em exposição enviada em 28 de Abril de 1759:101

(…)

Hé certo que eu dei principio à abertura da barra nova em o mez de Fevereiro de 1757, e só me paresseu conve-niente em 8 de Dezembro do ditto anno fazer rompimento das agoas que então havia naquelle dilatado Ryo para o mar-com a fellicidade de ficar todo dazalagado em 48 horas thé o o mês de Setembro do anno seguinte em que fuy assistir com os enginheiros na sobredita diligência não ouve acréscimo de agoas do Monte no dito Ryo, e por essa cauza não tomou a

101 Mendes, Humberto Gabriel: «Cartografia e Engenharia da Ria de Aveiro no último quartel do Séc. XVIII», in Boletim Arquivo Histórico, n.ºs 42 e 43, 1973/74.

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barra nova a boa forma com que prezentemente se acha, pois o Ryo sem fazer volta dezagua agora direito põe ella fora o que tudo se deve ao favor de Deus, e à abundância de ágoas do Monte que emriquessem aquelle Ryo, as quais costumão dar milhor forma às barras dezentupindo-as (…)

Por sua vez o vigário João Bernardino Leite de Sousa, na Memória Paroquial de Ovar, de 30 de Abril de 1758, dava nota da existência do rego que João Sousa Ribeiro aproveitaria, para sobre o mesmo e seguindo a mesma direcção que a natureza fixara, proceder ao seu alargamento. Refere ainda o referido pároco, o imposto do real de vinho que anteriormente a coroa tinha, efectivamente lançado,102 sendo certo que na altura decisiva se concluíra que a verba aforrada tinha voado dos cofres, porquanto utilizada103 para outros fins bem diversos. Atestava o vigário Leite de Sousa:

(…) no Distrito desta freguesia, três légoas abaixo da Capella de Senhora das Areias se acha aberta a chamada nova Barra de Aveiro, que he hum Rego largo de setenta pal-mos de largura na entrada do mar, o qual se abriu por or-dem de S. Majestade fidelíssima para dar sahida as ágoas do rioi que submergirão a villa de Aveiro e freguesias vizinha. Espera-se ver seguro e firme o dito Rego. Para o que corre já um real de vinho neste termo, e em várias comarcas já. (…)

102 D. José, por provisão de 20 de Abril de 1751, concedeu a provisão à vila de Aveiro de dous Reis em cada Coartilho de vinho e dous em cada aratel de carne pela abertura da Barra (Colecção Documentos Históricos, p.569, Vol. I, Ed. CMA., 1959.Em 20 de Abril o mesmo rei faz provisão, determinando ao Provedor da Comarca de Esgueira de não obrigar o povo de Aveiro a contribuir com a sisa dobrada para o tesouro dos três esta-dos mas, sim, para se aplicar na obra da Barra (idem, ant.cit., p.570).

103 Mais tarde a coroa destinará a João Sousa Ribeiro uma das chaves do cofre onde se guar-daria o produto do imposto. Só com sua autorização se poderiam gastar as verbas recolhidas.

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Fig. 14 – Planta da Barra da Vagueira.

6.3. O «Pai da Pátria»

O dia do rasgo da lingueta, último e periclitante obstáculo que impedia a junção das águas, aconteceu, como acima referimos, no dia que a Igreja consagra à Nossa Senhora da Conceição, padroeira da pá-tria. Sousa Ribeiro tinha prometido, e cumpriria, a promessa de dedi-car ao orago uma festa de acção de graças pelos bons acontecimentos, agradecendo assim a intercepção da olheira pátria, no alcance do êxito. Pretendeu, assim, Sousa Ribeiro, pública e confessadamente, partilhar com o familiar divino o bom êxito dos seus trabalhos.

A história deu razão ao homem — voluntarioso, inteligente e ressolto — que não podia ter sido maior nem melhor, nas circuns-tâncias. Mas crente fervoroso, Sousa Ribeiro acreditava que o homem era apenas o justo meio (e instrumento) encontrado pelo Senhor para realizar a sua vontade; e assim, entendia que não tinha sido mais do que o instrumento que humanizara o milagre. Precisamente e certa-mente, obedecendo a intencional desígnio divino, mais do que por feliz e ocasional coincidência, acontecido naquela fresca manhã dedi-cada à Senhora.

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E no dia 14 de Maio de 1758, Sousa Ribeiro manda enfeitar e adornar os altares e a própria nave da Igreja da Misericórdia de Aveiro, na qual se venerava a imagem da Senhora da Conceição. Redobraram-se os preparativos para que a festa habitual ganhasse dimensão e expres-são inabituais, de modo a mostrar-se o regozijo pela graça concedida.

Naturalmente que a população compareceu em peso.Vindos de todas as paragens da laguna, do norte e do sul, as po-

pulações vieram nos seus barcos, comparecendo em peso a associar-se ao agradecimento à Padroeira. O canal da Ribeira viu-se coalhado de pequenas e grandes embarcações, que iam desembarcando gentiaga à medida que arreada a vela, com um ou outro toque do leme, lá encon-travam uma nesga para passar cabo e acostar. Era tanta a embarcação que mais parecia terem as duas margens se encostado uma à outra. Parecia que todos tinham marcado encontro para aquele local, tal a profusão de embarcações e tripulações que em grande alarido ali se tinham vindo juntar. Logo eles de gabão enfiado, tamanco aferrado, davam as mãos às passageiras; mulheres, mães e primas, todas de fatio-ta própria, asseada, algumas exibindo brincos, argolas, cruzes e berlo-ques para sem perda de tempo irem á casa do «Senhor». Carregando as sacadas onde vinha aconchego para o corpo. Logo depois de cumprida a mortificação em cumprimento da promessa, lavada a alma seria a tempo de aquietar os humores do corpo . Que o dia não era dia para deixar que as mulheres acorressem à igreja sozinhas, pois embora fos-sem parcas as moedas contidas nos bolsilhos, havia que demonstrar agradecimento. E havia que marcar lugar na procissão, onde já se ali-nhavam as Irmandades da vila que se vinham achegando ao terreiro da Misericórdia. Opas vermelhas, brancas e azuis, roxas e amarelas, sugerindo cores celestiais de pureza, contrastavam com encapuzados de Santo Ofício, cujo negrume das vestes se juntava ao anonimato do rosto para melhor definir a proximidade do castigo temporal.

A procissão desfilou ao fim da tarde. À frente, os frades carre-gando os pendões com as representações dos santos eleitos pela con-gregação. Depois os penitentes que no acto de sofrimento tinham ju-rado cumprir castigo corporal público. Uns transportavam grilhões;

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outros carregavam pesos brutais. Muitos flagelavam-se, actuando com alguma brutalidade que não raro lhes fazia brotar o sangue. Atrás se-guiam os andores. Por vezes era difícil distinguir o ícono, desaparecido no meio de uma verdadeira floresta florida. Pelos meios, intervalando, seguia a fradalhada das confrarias e irmandades. Circunspectos, mãos cruzadas sobre o peito, escondidas nas mangas dos seus hábitos, pare-ciam mesmo acreditar na salvação da alma. Se não acreditavam, certo é que disfarçavam muito bem. Atrás, a coberto do pálio, vinha res-guardado o prior de S. Miguel em quem o Bispo de Coimbra delegara ritual. Lá ia distribuindo benzeduras para um ou outro lado, aspergin-do o conteúdo do hissope sobre a multidão, enquanto acólito agitava, para lá e para cá, o incensório. Vinha seguido dos homens grados da vila. À frente o capitão-mor, Sousa Ribeiro e filhos. Imponentes e gar-bosos, fardados a rigor, tinham estampado no rosto o sabor da vitória, respondendo a todas as elegias vindas do povo que na beira das ruelas se ajoelhava ao seu passar, acotovelando-se na tentativa de lhes beijar as mãos. Gritando com júbilo o nome de Sousa Ribeiro, crismado «salvador da pátria».

Ao passar a procissão, não raro era assistir-se a cenas patéticas com gentes a rojarem-se e a contorcerem-se no chão por entre clamo-res histéricos, esgatanhando as faces. E não raro massacrando-se com bofetões e punhadas bem pregados no seio das suas carantonas.

Recolhida a procissão, ouvido o sermonário, recolheu-se tam-bém o sol lá para os lados do mar. A noite estava quente. As ruelas pejadas de gente. Diligentes e apressados, os romeiros acotovelavam-se na ânsia de chegar a convento com mesa montada à porta para sa-tisfação dos estômagos já desconfortados. Junto da porta da Ribeira, ouviam-se clarins e atabalaques, enquanto do céu descia prodigioso e exuberante fogo-de-artifício lançado no largo da igreja do S. João no Rossio. Cachoeiras de estrelinhas multicores soltam-se a estreluzir, estrondosas. E em movimentos divergentes mudam a cor do céu que, de escuro vira ecrã rubro, azul ou prateado, parecendo querer reduzir os longes do céu à distância de mão, associando-se ao flostriar daquelas gentes, ébrias de folguedos e tropeces. O povo miúdo iluminado pelas

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tochas dos archotes, bule ao som das gaitas e tamboris, espantado com tanto aparato. Nas ruelas sentia-se o cheiro da erva-doce. E do jasmim queimado, purificador adequado para limpar os ares e os eslavaçar dos cheiros pestilentos ainda sobrantes, provindos, aqui e ali, de um tugú-rio onde ainda desfaleciam corpos e se amortalhavam almas.

Isso não impedia a festa. A rua Directa que ligava a Misericórdia ao Terreiro estava toldada, pejada de mastros engalanados com as ar-mas do patriarca; gentes penduradas nas janelas, divertidas, iam ati-rando umas moedas amarelecidas para a turva, que ávida e em tu-multo, de imediato, as esbulhavam de entre as ervas que alcatifavam o chão arenoso, copiosamente polvilhado de juncais durante o dia. Os sinos repicaram noite dentro à disputa, no noticiar do fim das privações. Dos claustros dos conventos tinham-se escapulido os fra-des, faltando à recolha. Capuchinhos, franciscanos, dominicanos, regrantes de Aviz e do Sacramento e tantos outros, safos das celas, libertos da clausura, correm a associar-se ao regozijo geral. Pareciam vir de alma lavada pelos serões consumidos nas matinas em rezas im-plorantes. Lestos, aproveitavam a oferta das tendas que os maiorais se apressaram a montar às portas das suas casas, para recuperar das dietas da clausura, empanzinando-se com os dourados capões ou com carneiro avinhado, e outras lambarices regadas com o tinto bairradino que jorrava das pipas encanteiradas. Longe do recato, iam folgando e dançando como os demais, mortificando, agora sim, o corpo, com a excessiva e consentida folgança. Em cima da hora aprazada, chegavam os senhores; esquecidos anteriormente de abrir os cordões ao saco para a salvação geral, vinham agora prazenteiros associar-se à celebração. De sapatos de fivela prateada, meias pelo joelho aconchegadas ao per-nil, mangas de bofes saídas das jaquetas bordadas, traziam atrás de si o cortejo das suas damas. Matronas entoucadas, faces brochadas de carmim e alvaiade, golas de renda circundadas por lírios de ouros que teriam feito grande aconchego se entregues para as despesas da salva-ção, enquadravam as virgolosas e gentis filhas, vestidas de brocados com bordaduras de oiro, veludos e rendas, cabelos fulvos radiosos, meio trançados meio soltos, aprisionados em ataduras de laços e fitas,

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onde se viam flores de rosas e madre silvas, incrustadas. Na mão segu-ravam o rosário, enquanto iam deitando olhares fugazes, nem sempre desinteressados, aos garbosos dragões que volteavam nas garbosas e excitadas montadas.

Era certo ter Deus experimentado aquela gente; depois de um tempo de castigo severo, guiara a vontade de Sousa Ribeiro que obrara o prodígio.

Motivo para que se ordenara cantar missa solene e pregação elo-quente, pelas matinas, sobre os desígnios do divino que apenas teria querido colocar à prova a humildade e crença paciente das gentes. Seguro da mesma, era agora tempo de premiar a fidelidade dos pro-vantes com o acto salvador, libertador do sofrimento humano. Mérito que a mão do Homem executara, apenas possível pela intercessão e permissão da incomensurável bondade divina.

As palavras provindas das prédicas empolgadas regouxam, pa-recendo agitar as colgaduras roxas que guarnecem o interior frio do templo. Atemorizam-se os faltosos, exulta a fradalhada contando com o dobrar das dádivas. Debulham as contas do rosário os simples, te-mentes que Deus, deslembrado do sofrimento que lhes destinara, pu-desse, um dia qualquer e de novo, os voltar pôr à prova. E eram de temer estas indisposições celestiais; havia apenas dois anos, em dia de todos-os-santos (que se deveriam ter ausentado para parte incerta, dei-xando desguarnecida a pátria) que o sol desaparecera repentinamente e a terra tremera, tendo muitos edifícios derrocado por efeito das forças libertas da energia subterrânea. Então se apregoara que tal descalabro era justa punição para as grandes iniquidades que varriam Portugal no governo do ministro de D. José, profetizando-se a vinda de castigo maior. Tinham pois razão os simples tementes da chegada de novos e inquietantes sinais, agora que parecia que o pior tinha passado.

Mas «enquanto o pau vai e vem, folgam-se as costas»… e as mentes. Agora o momento era de festa… bródio farto regado de briol escorregadio, descantes, dança e festim. Vadiação a provocar escara-muças entre gente toldada pelo regabofe.

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Os que não estiveram presentes apressaram-se a aproveitar para de qualquer modo ligar o seu nome ao prebendado, associando-se ao feito, em retumbantes alaridos e aplausos, inseridos em múltiplos, so-nantes e apologéticos encómios, e elegias.

Por toda a região se imitou e multiplicou o acto de glorificação de João Sousa Ribeiro, eleito o «Salvador» do povo lagunar. Nasceria, assim, uma figura (quase) mítica, um ícone, que desprezando bens ter-renos soubera erguer-se acima das incapacidades e indecisões dos seus pares, e, sozinho, cometer o feito milagroso de «conceder», de novo, vida à laguna. Bem se poderá dizer que apesar de tanto empecimento, Sousa Ribeiro parece ter sido o executor de uma ordem vinda lá das al-turas; a razão pediu-lhe que aceitasse o desafio de transcendente mon-ta. Mas, acima disso, a vontade desejou, certamente, atirar-se a esse cumprimento. João Sousa Ribeiro era um homem rico. Mas usava essa riqueza não à má toa, mas com tino e inteligência activos. Louvá-lo-ão as gentes porque na sua atitude houve, acima de tudo, merecimento, gesta liberal. Um rico avaro, nada mais tem de seu que a posse mesqui-nha de bens materiais adentro das suas portas, negando a virtude da largueza seja a quem for. Vive por si, exclusivamente para si, aferreto-ado às arcas encouradas em que guarda o pecúlio, e onde se compraz, solitário, a refocilar, sentindo o odor bafiento e bolorento das moedas empoeiradas. Sousa Ribeiro herdou fortuna, mas acima de tudo prin-cípios que soube conservar e até sublimar para, no momento próprio, sem hesitação, os colocar ao serviço do bem público, na grandiosa tarefa de libertação das gentes, cuja dependência se fixava na laguna. Qual cavaleiro medieval investiu contra o «dragão» engaiolado entre o areal e as serranias, abrindo-lhe o caminho para que se escapulisse para as profundezas em busca de Neptuno, pai e deus dos mares, senhor dos oceanos, ordenador das ondas que podem afogar o mundo, como quase esteve para acontecer em Lisboa no dia em que todos-os-santos estavam distraídos com as louvaminhas, nem ao menos Santa Bárbara, ou até São Cristóvão, ficaram no banco das urgências, de serviço.

O Senado de Aveiro, quis manifestar de modo inequívoco a sua gratidão ao capitão-mor, pelos relevantes serviços prestados, não só a

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Aveiro como a toda a região, e, para isso, não hesitará em lhe outorgar o epíteto glorioso de «Pai da Pátria».

O contentamento, o elogio exaltado de Sousa Ribeiro, exabun-dante em adjectivos em obséquio de paga de tributo, estendeu-se, pois, aos mais diversos pontos da região. E foram demonstrados de vários modos. Quase se poderia repetir, aqui, o verso heróico endeca-silabo de obséquio a D. Gabriel de Lencastre aquando da sua posse como duque de Aveiro (1732), festa de que, por sinal, foi seu principal promotor e pagante Manuel de Sousa Ribeiro da Sylveira:104

De S. Miguel na Igreja tudo páraMas não pára o estrondo dos clamoresQue o concavo metal forma sonoros, Nem o dos vivas com que os ares rompem.

Foram muitos, vindos de muitos lados, os panegíricos eloquen-tes de retórica embriagada, encavalitada em métrica poética, épica, a relatar o feito como se tratasse duma redenção pátria.

Não deixaremos de aqui referir uns sonetos que nos vieram pa-rar às mãos,105 entregues ao então Prior de Ílhavo, João Martins dos Santos106 e que este divulgou. Deles disse o Prior João M. Santos que a gloriosa acção e feliz êxito della felicitou ao dito Cavalleyro e à dita Villa (Aveiro) um nosso freguês (…) com o envio de dois sonetos:

104 Que, como referido, era pai de João Sousa Ribeiro da Sylveira.

105 O Prof. António Maria Lopes atribuiu a autoria dos sonetos ao reverendo Sebastião Pacheco Varela.

106 Este prior foi quem construiu a actual Igreja Paroquial de Ílhavo. Servo da Igreja que cuidava mais dos seus negócios que da cura das almas que tinha a seu cargo, João M. Santos foi o segundo pároco a ser provido por sua majestade D. José I, para a Igreja de Matriz da Vila de Ílhavo (carta de 17 de Junho de 1755). Homem de negócios (principalmente no comércio de bacalhau) era detentor de grande fortuna, parte da qual foi juntar-se à dos Maia Vizinhos, pois um filho destes casou com uma sua sobrinha que criou. Mais tarde o referido Maia Vizinho veio a ocupar o cargo de capitão-mor de Ílhavo (já no Séc. XIX).

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SOnetO i

Nesta acção, que não teve semelhante, Sousa Invicto, em Pays tão indigente, O Renome alcançais claro e excelente, De Redemptor da Pátria Naufragante.

Ella estando já quasi agonizante, Em poder do inimigo, o mais valente, Dezalojando-o activo, em continente, Vitoriosa se vio, e vós triunfante.

Um glorioso Padrão para tal victóriaVos levante; onde inscrito o Nome vossoPossa eterno ficar na memoria.

E eu (pois com a minha pena a mais nam possoEstender pelo Mundo a vossa glória)Non plus ultra gravára em tal colosso.

O autor do soneto enaltece, com eloquência laudativa, o herói. E propõe a execução de um padrão para que, erguido em local de nobreza assinalável, viesse perdurar o feito na memória da história. Feito que ele-ge como coisa incomparável non plus ultra. Sugere ainda, a inserção na lápide do seguinte elegíaco: o chefe, o líder indiscutível, o primeiro das suas gentes, o mais amigo no coração e na compreensão das suas gentes.

O povo adorava aquele homem austero, imponente na figura de cavaleiro decidido e perseverante, disciplinado — e disciplina-dor — mas, simultaneamente, homem bom, senhor de uma enorme indulgência para com os mais fracos e desprotegidos. Pouco dado à lisonja, João Sousa Ribeiro era um homem culto, temperado no gesto, medindo com um sentido diplomático, actos e palavras, na defesa ar-

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dorosa e convicta das suas ideias.107 Tal não significava não estar atento e receptivo a analisar proposições colocadas pelos interlocutores do momento, como referiremos.

Foi exactamente assim que sucedeu aquando da sua participa-ção interessada, franca e leal, no grupo técnico que a coroa viria a de-signar para estudar a fixação definitiva da barra, depois de constatado que a manutenção da aberta na Vagueira colocava diversos problemas insanáveis para a manter operacional. No fim último de permitir um movimento permanente e continuado de embarcações, assumindo um papel preponderante, fulcral, na dinamização da economia da região.

J. Sousa Ribeiro será glorificado em nova apostrophe, em um novo canto:

SOnetO ii

Ditoso Aveyro meu; quam diferenteTe vês agora, do que já te viste:Honte afllito te vias todo triste, Hoje ufano te vês todo contente

Do cornígero108 Vouga a brava enchenteTe insultava a que o Braço hoje resisteDo Capitão Mayor;em que consisteO deixares de lutar já descontente.

107 Assim sucedeu quando com Manuel da Maia, engenheiro chefe do reino, discutiu a melhor posição para a abertura definitiva da Barra de Aveiro.

108 Cornigero — O Vouga era conhecido por VACCA (em latim). E na Eneida, lib. 8, Virgílio disse: Corniger Hesperidum fluvius regnator aquarum.

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Hum Ribeyro caudal dos mais possantesTe consegue esta dita:oh quem Te deraMuytos destes Ribeyros similhantes!Alcançaste no Inverno a Primavera!

Tu Aveyro serás como eras dantes, E o Ribeyro Mayor do que antes era

Sobre João Sousa Ribeiro pronunciou-se aquele que viria a abrir a barra definitiva, em 1808, Luís Gomes de Carvalho, que afirmou ser Sousa Ribeiro um homem benemérito (…) digno dos maiores elogios e mere-cedor de que o seu nome seja conservado na lembrança dos seus compatriotas.

Fig. 15 – Carta Náutica desde Viana ao Cabo Mondego (1584/85).

6.3. «Certificação» da obra

Sobre o valor, significado e dimensão da obra, foram, à data, passados «certificados» pelas entidades locais, relevando não só a

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grandiosidade da empresa como a importância da mesma na resolu-ção da situação de catástrofe, até aí vivida.

Atentemos na curiosidade de alguns desses «atestados».O Dr. Miguel Pereira Castro Padrão, Juiz de Fora de Aveiro, descre-

ve nos seguintes termos o «feito» levado a cabo por João Sousa Ribeiro:

(…) e outro simattesto que mandando examinar por trêes pilotos a nova Barra em que se converteo a vala, que abrio o dito Capitão Mor por causa do grande impulso de agoa que havia no rio, depozerão (…) que a examinaram por três dias sucessivos, e que tinha então duzentos e outo braças de largura, e que atando duas varas de barco (…) tinham de comprimento trinta e seis palmos, e que metendo-as pelo mar na Barra, acompanhando-as o braço pelo mar abaixo athé ao ombro, no que acrescem três palmos, não acharão fundo senão em huma parte em que acharão aos trinta palmos (…).

Já a Meza do Sal de Aveiro descrevia assim o portentoso acontecimento:

Gama Manuel Rodrigus Tavares cavaleiro profeço da Ordem de Cristo, escrivão da Meza, e direitos do salnesta Alfandega da villa de Aveiro (…) attesto em como pelo mo-tivo de se arear a Barra que havia nessa dita villa e das mui-tas inundações de ágoas, que havia, que havia na falta das vazantesdas ditas ágoas, se puzerão as Marinhas do Rio des-ta mesma Villa quazi infrutíferas (…) e como a abertura da vala, ou nova barra, que o suplicante João de Souza Ribeira brio se dezalagaram as ditas ágoas (…) as quais marinhas era a melhor fazendae a mais rendosa (…).

Por sua vez o Juiz da Alfândega, Joaquim Branco Osório, ao

ter-lhe sido solicitada informação sobre «a data da vinda do ultimo

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navio a Aveiro e qual o número dos que agora entravam» depois de aberta a nova Barra, passa a responder que:

A última embarcação teria demandado o porto de Aveiro em onze de Agosto de mil, setecentos e cincoenta e três, pela Barra Velha, e que mais nenhum teria entrado. Mais atesta que desde vinte e nove de Março de mil setecentos e sin-coenta e oito thé outo de Fevrereiro do prezente ano, entrarão neste Porto trinta embarcações com carga de sardinha, duas com carga de Ferro, e duas em lastro de areia e huma com carga de figo e passa do Algarve, no total de trinta e cinco, as quais pagaram todos os direitos a S. Magestade Fidelíssima.

Foram muitos outros, provindos de várias entidades, os elo-gios contidos nos «atestados» com a finalidade de transmitir, à coroa, o agradecimento das instituições locais pelo esforço e altruísmo de Sousa Ribeiro «que, colocados ao serviço de toda a economia da re-gião, acabaram com os dias negros da penúria, da miséria e da morte, provocados pelas águas salobras e inquinadas, pútridas, da laguna», como se refere num desses documentos da época.

Por isso o Senado da Câmara de Aveiro, em 17 de Dezembro de 1757, envia ao capitão-mor a seguinte missiva:

Aveiro, 28 de Março de 1759

Senhor: capitão-mor João de Sousa Ribeiro de Sylveira:

Tendo-se compadecido desta Villa a Divina Mizericórdia, pela livra da grande cheya que a ununda-va, por meio da pessoa de V. Me que com genezoridade sem igual, à custa de despeza que parece que não cabia em for-ças de pessoa alguma particular, abriu huma vala para dar expedição às ágoas deste rio para o mar, a qual vala vemos convertida em huma espaçosa Barra, por meyo da qual não

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só nos livrámos em quarenta e outo oras da innudação , que tanto opremia este Povo , e opremiria por muitos mezes, mas esperamos muitas prosperidades por meyo da fraqueza da navegação e Comércio, nos pareceo que da justiça devíamos como cabeça do Povo desta Villa, e seu distrito, tributar a VMe os agradecimentos devidos. E como não pode ser por outro meyo, pois no lo embaraça a sua grande izenção, seja pelo da confição que fazemos sempre, de que V. me. foi o Redemptor da nossa pressão, dos nossos damnos. e de tantas infelicidades, e infortúnios, que vexarão a esta villa, e que pela franqueza, que nos deu para a navegação e e Comércio, nos felicitou e a todos os das comarcas circunvezinhas, pois a todos rezulta o mayorbem e utilidade. A grandeza encompa-rável da Magestade Fidelíssima; a quem não pode deixar de se fazer patente huma acção tam heróica , nam pode deixar de a remunerar, pois he digna do mayor louvor e premio. Nós nos regozijaremos de que seja muito atendido do nosso Soberano.

Hum heróe a quem desejamos e devemos erigir está-tuas para perpetuar o seu nome para a posteridade pois só elle soube ganhar huma Praça evitando lhe as ruínas, e sem offensa dos seus moradores antes conseguindo-lhe todo o seu bem. Em sinal pois do nosso perpétuo agradecimento, acei-te Vme. o sacrificio que lhe fazemos dos nossos corações que sempre lhe tributarão os mais ardentes affectos e lhe farão huma rendida sujeiçam das nossas vontades para tudo que for agrado de V. Me que Deo guarde muitos annos. Aveiro em Câmara onze de Dezembro de mil setecentos e cincoenta e sete (assinaturas do Juiz de Fora, vereadores e procurador).

O sucesso de Sousa Ribeiro merecia a pretensão, unanimemen-te subscrita de a coroa recompensar o redentor de tantos danos e tantas infelicidades.

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O Senado não só indicava a sua majestade a justiça que se im-punha na recompensa de uma acção tão «heróica» — no saber e no altruísmo — como entendia ser a maior paga, o perpetuar a imagem de Sousa Ribeiro numa estátua a erguer numa praça (teria sido discu-tido, à época, erigi-la na praça do Terreiro).

A notícia da abertura da Barra será notificada na Gazeta de Lisboa, inserida no n.º 44 (com data de 20 Dezembro do referido ano). Rezava assim:

(…) Já para evitar as ordinárias calamidades, tinha entrado no projecto de lhe aplicar o remédio Joam de Sousa Ribeiro, Cavaleiro da Ordem de Crifto, natiural defta Villa, e Capitão mor de Ilhavo, determinando abrir hua vàla, q deffe expedição às correntes, que as caufavão;e pediu a S. Mag. fideliffima a faculdade de a poder abrir;oferecendo-fe a fazer efta obra à fua cufta, e fer o Director della;e haven-dolhe concedido efta graça, em 27 de Janeiro defte anno de 1757, logo em 3 de Fevereiro lhe veyo dar principio com 80 juntas de Boys e 200 homens, pagando-lhes pontualmente mais do que nas fuas terras ganhavão. Confeguiu fazella em fete femanas;não quis abrilla logo de todo até ao Mar;mas para q fe não entupiffe com as areyas fufentou de ambas as bandas com eftacadas (…) no dia 8 do corrente , em q a Igreja celebra a fefta da Conceição (…) mandou picar a vala por feu filho(…) o que fez com tão feliz fuceffo, q em 48 horas de tempo fe viu a Villa livre de inundação (…) o Senado da Camara querendo moftrarfe agrdecido (…) escre-veu uma carta ao mefmo capitam mor, dandolhe o epíteto de Pae da Patria.

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7. João Sousa Ribeiro e a «Casa do terreiro»

Fig. 16 – Vista Panorâmica, século xviii, onde se regista a casa de João Sousa Ribeiro.

Pela consulta de referências das grandes casas do Terreiro das Carmelitas, é nossa convicção que João Sousa Ribeiro da Sylveira her-dara de seu pai, a casa senhorial, instalada no mesmo local (ou redon-dezas) onde hoje se situa o edifício do Governo Civil. Amaro Neves109 refere que teria sido Manuel Sousa Ribeiro a construir no referido local uma soberba casa senhorial. Qual Manuel Sousa Ribeiro, importa dilucidar. Avô ou neto? O neto, certamente, pois sabemos que o filho de João Sousa Ribeiro, Manoel Sousa Ribeiro (que tinha o mesmo nome do Avô), anteriormente referido, sucedeu ao pai no cargo de Juiz da Alfandega de Aveiro. E foi este, pois, quem terá edificado, sobre restos de muralha110 e da casa senhorial que fora de seu pai, aquele pa-lacete. Por morte de Manuel Sousa Ribeiro a casa teria sido ocupada pela filha mais nova de Sousa Ribeiro, Inês Silveira de Magalhães,111

109 Neves, Amaro: Aveiro, História e Arte, ed. Aderave, Aveiro, 1984, p. 104.

110 Até 1759 as muralhas de Aveiro, obra magnífica de D. Pedro, filho de D. João I, esta-riam ainda muito bem conservadas.

111 Esta D. Inês era casada com João Sousa Pizarro, que dá nome à rua fronteira ao antigo edifício do Governo Civil.

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e posteriormente por sua filha Benedita Sousa Pizarro que viria a ser Baronesa de Almeidinha. E depois pelo seu filho, primeiro Visconde de Almeidinha, para o que teria obtido, no dizer de Rangel de Quadros,112 especial concessão para sua remodelação. Este palacete, já na posse do primeiro Visconde de Almeidinha,113 viria a ser completamente des-truído pelo fogo, em 24 de Junho de 1872.

Fig. 17 – J. Carlos Amaral Osório, primeiro Visconde de Almeidinha.

Tinha dentro das suas paredes um recheio extraordinário, de onde se destacava mobiliário riquíssimo e um conteúdo impressio-nante de obras de arte de grande valor.

112 Quadros, Rangel: Aveiro – Apontamentos Históricos, ed. CM Aveiro, 2009.

113 J. Sousa Ribeiro pertenceu à estirpe daqueles aveirenses que, mais tarde, na primeira metade do século xix, estiveram no alvor das lutas liberais cujo rastilho foi aceso, aqui, em Aveiro. Precisamente nessas lutas se empenhará um seu descendente, o capitão dos Dragões, João Carlos do Amaral Osório e Sousa, comandante do «Batalhão de Ílhavo e Aveiro» que se foi juntar aos Setembristas do Porto aquando do pronunciamento, no Minho, do movimento revolucionário da «Maria da Fonte». Este João Carlos era filho da D. Benedita Sousa Pizarro, neta de Sousa Ribeiro, casada com o primeiro Barão de Almeidinha.

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Fig. 18 – Palácio do Visconde de Almeidinha, Aveiro.

De facto, quando em 20 de Abril de 1773 é passada, a Manoel Sousa Ribeiro, a carta de familiar do Santo Ofício, refere-se ser aquele filho de João Sousa Ribeiro da «Casa do Terreiro». Aliás, como em toda outra documentação o mesmo é referido como o proprietário do palacete do Terreiro114. Assim é para nós claro que Manoel Sousa Ribeiro, que su-cedeu a seu pai no cargo de Juiz da Alfândega, foi quem teria feito obras de monta sobre a casa que teria sido habitação do seu progenitor.115 E o facto de uma outra filha de João Sousa Ribeiro, Rosa Silveira Magalhães, solteira, ser conhecida como a Rosa do Terreiro, mais reforça a nossa tese.

Fig. 19 – Projecto do edifício para as repartições distritais

(e onde viria a estar instalado o Governo Civil).

114 Ver Cerqueira, Eduardo em «Algumas Notas sobre o Edifício do Governo Civil», Aveiro e Seu Distrito n.º30, Junho 1982.

115 A gravura embora de muito pouco rigor, deixa contudo perceber que o paço de JSR, tinha já um primeiro andar.

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Permanece, assim, em nós, a ideia que do feito, como era natu-ral à época, acabariam por advir recompensas a João Sousa Ribeiro (e a seus descendentes). O valor dispendido na abertura da Barra, intei-ramente suportado a expensas suas até conclusão dos trabalhos, deve-ria ter-se aproximado dos 40 000 ducados. Para termos uma ideia do quanto este valor representaria, poderemos dizer que se situaria entre cinco a oito vezes, o valor do total dos impostos recolhidos, em Aveiro e no seu termo. Simplesmente notável, impensável de ser transporta-do para os dias de hoje…

E as recompensas chegariam: João Sousa Ribeiro seria no-meado116 (assim o refere o livro manuscrito)117 Juiz Proprietário da Alfândega de Aveiro, o que lhe trará enormes réditos engrossando a já sua valiosa casa. Uma das de maior relevo da região e, até, do país.

Fig. 20 – Palácio do Visconde de Almeidinha, Mangualde.

8. Pontapé de saída para a abertura definitiva da nova barra.

A «nova» barra, na Vagueira, trouxe inegáveis esperanças. São, no mínimo, confusos os números que nos indicam a recuperação do movimento marítimo que a sua abertura terá acarretado. Em O Porto

116 Neves, Ferreira, em ADA n.º 138 de 1969

117 Este livro serve para nelle se transladarem, e copearem todos os titullos pertencentes ao senhor João de Sousa Ribeiro da Silveyra, e à sua casa. Idem, p.82.

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de Aveiro, Rocha e Cunha refere que:118 de 1745 a 1750 não há entradas de navios, em 1750 entrou um, deste ano até 1760 não há entrado algu-ma. Inês Amorim em Aveiro e a sua Provedoria,119 p. 365 e 366, «mos-tra mapas de movimentos de 1760 a 1764 (?) de um número muito interessante expressos em «contos de sal». Estes movimentos foram recolhidos, exclusivamente, para o transporte de Sal.»

Ora, na época, o Juiz da Alfândega, como já referido, atesta (e quem o poderia fazer melhor?!) que «desde vinte e nove de Março de 1758 até oito de Fevereiro de 1759 entraram trinta embarcações (com carga de sardinha, cargas de ferro, e lastro de areia, e uma com carga de figo e passa do Algarve, que por todo fazem 35!» — todos pagan-do os devidos impostos a sua majestade.

E mais: o Juízo do Almoxarifado de Aveiro confirma este movi-mento (e parece, assim, vir corrigir as opiniões acima referidas) quan-do, na sua atestação, afirma: «com grande desvelo, zelo, e utilidade geral daí resultando no avultado Serviço de S. Mag. Fidelíssima, e em aumento das rendas reais como sucedeu nas destes Almoxarifados». Sabemos que a Barra, em 1758, estava em óptimas condições. E que, em 1864, era ainda praticável.120

No sentido de esclarecer algumas das dúvidas suscitadas pelos documentos citados, acima, reproduzimos original de parte do con-trato do encabeçamento de sisas da Alfândega do porto de Aveiro, celebrado em 14 de Setembro de 1759:

118 Cunha, Rocha: O Porto de Aveiro, conferência de 5 de Maio de 1925 realizada na sede da associação dos Engenheiros Civis Portugueses.

119 Amorim, Inês: Aveiro e a sua Provedoria no Séc. XVIII (1690-1814), ed. CCRC, 1997.

120 Ver p. 157.

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Fig. 21 – Documento Encabeçamento das Sisas, 1759.

O que atesta o funcionamento da Barra, pois havia licitantes para o encabeçamento, sinal do seu funcionamento e rendimento, que justificava a licitação entre vários interessados.

A barra era contudo muito instável, criando problemas à en-trada de navios de alto bordo. Isso mesmo se percebe no documento

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reproduzido abaixo em que o comerciante da vila, João Ferreira de Sousa, solicita melhorias para permitir a entrada de três navios de baca-lhau. Dado a escassez de meios para tal fim, é feito um acordo entre o referido comerciante e a Câmara «para que aquele adiantasse as verbas para as obras, sendo essas despesas abatidas nos impostos que haveria de pagar na Alfândega».

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Fig. 22, 23, 24 – Pedido para fazer obras na Barra.

O próprio Sousa Ribeiro cedo percebeu que haveria, de um modo urgente, a necessidade de tomar decisões no sentido de não deixar ir por água abaixo todo o esforço dispendido, havendo por isso

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que decidir entre: fazer obras e manter a Barra que abriu (para isso fa-zendo um plano de intervenção de sustentação do canal), ou proceder a um estudo profundo com a colaboração de técnicos referenciados, no sentido de estudar outras soluções definitivas.

Sousa Ribeiro não hesita. E seguro do feito e conhecedor do que era necessário fazer para não deixar perder o que tão esforçada-mente tinha alcançado, apresenta-se em Lisboa a solicitar reunião ao todo poderoso Sebastião José de Carvalho e Mello.

Este, conforme era seu timbre, rapidamente percebeu o que ti-nha a fazer. E de imediato, sem tergiversar, despachou no sentido «de quatro engenheiros marcharem, sem demora, para Aveiro, sem limites de verba» para cumprimento da missão de que eram encarregues: o estudo da situação da Barra e um relatório com propostas para o que melhor se entendesse fazer para a manter praticável, ou procurar al-ternativa. O importante, essencial, dentro dos planos económicos de desenvolvimento que Pombal tinha para o país, era a necessidade de, a todo o custo, manter o Porto de Aveiro a funcionar, como anterior-mente referimos em detalhe E logo foram mandatados dois sargen-tos-mores de Infantaria (engenheiros), um francês, François Hyacinte Polchet, e outro português, Francisco Xavier do Rêgo, e com eles os seus adjuntos, Adam Venceslau Hetochoffs e Louis d’Alincourt.

Será Xavier do Rego quem, em 22 de Setembro de 1758, des-creve o regueirão como tendo vinte braças de largura e que se trans-formaria numa barra de 247 braças, embora à data da visita esta se apresentasse já reduzida para 137 braças. E com grande parte de secos à vista, o que reduziria a sua largura útil para pouco mais que quarenta braças navegáveis.

E assim propõe tapar o canal (o braço da ria) que ia até à barra velha de Mira (aliás também já em tempos sugerido por João Sousa Ribeiro) e iniciar sem demora trabalhos para consolidação da Barra da Vagueira, conforme proposta do engenheiro Polchet (AHMOP).

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Fig. 25 – Projecto de Polchet para tornar permanente a barra de Sousa Ribeiro.

Já Hetochoffs é de opinião que, fossem quais fossem os traba-lhos, a barra aberta por João Sousa Ribeiro seria praticamente impos-sível de manter.

A estadia desta equipa, assessorada pelo prático (o próprio Sousa Ribeiro conforme determinara Pombal), manter-se-á em Aveiro até Janeiro de 1759, produzindo um excelente trabalho de cartografia da ria Aveiro, sempre acompanhados e elucidados por João Sousa Ribeiro.

Fig. 26 – Carta da ria de Aveiro (F. Polchet e L. d’Alincour, 1759).

Os trabalhos são vultuosos e vêm dar uma achega preciosa ao his-torial da Laguna, pois trata-se da primeira e mais antiga representação

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cartográfica da Ria de Aveiro, utilizando para isso os conhecimentos técnicos, disponíveis, à época. São patentes nas representações, não só a Barra aberta por João Sousa Ribeiro, mas também o local onde Mardel, anteriormente, tinha proposto a ligação ao mar.

Na referida representação (acima no canto superior esquerdo) descreve-se a posição exacta do local de abertura da Barra da Vagueira:

A antiga Barra estava distante duas légoas da que agora há, e desta a N.ª S.ª do Bom Sucesso vão quatro légoas e duas légoas e meya athé à Villa de Ovar. Tinha a nova barra de largura no mez de Julho de 1758 , 172 braças, e em 20 de Stbrº do mesmo ano 250 braças; e em 10 de Dezembro do mesmo ano 400 braças.

Aveiro, 6 de Janeiro de 1759

O engenheiro Polchet que restará em Aveiro, até 1759, dando continuidade aos seus trabalhos cartográficos, concluirá que o (seu) projecto de tapar o canal da barra velha (que iria para Mira), e consoli-dar o canal aberto por JSR, era extraordinariamente oneroso. Resolve por isso, estudar a possibilidade de abrir um canal no areal de S. Jacinto. Mas Polchet apercebe-se rapidamente, que não só esta opção seria muito arriscada, como para além disso, muito onerosa (aliás esta terá sido, exactamente, a percepção de João Sousa Ribeiro, quando teria encarado essa hipótese).121 Pombal acolhe as sugestões que lhe foram transmitidas pelo grupo de trabalho e submete-as à apreciação do en-genheiro mor do Reino, Manuel da Maia, insistindo na importância e urgência de concretizar aquilo que no entender do categorizado enge-nheiro fosse o melhor para resolver o problema,o qual pede um tempo de reflexão para encontrar a melhor solução. Só a 18 de Maio desse ano (1759) Manuel da Maia dará o seu parecer. Logo no intróito afir-

121 Não pode deixar de ser espantoso o conhecimento de Sousa Ribeiro. As suas observa-ções foram posteriormente ratificadas pelos especialistas que estudaram a nova Barra.

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ma não se poder com total segurança afirmar qual seria a melhor solução. Ambas as soluções apresentadas eram muito dispendiosas, pelo que foi de opinião que os engenheiros se deveriam manter no local, continuando a estudar até se munirem de dados que permitissem ter a certeza que a solução a avançar seria totalmente eficaz.

Sousa Ribeiro foi, ele também, convidado a dar a sua opinião (o que demonstra o alto apreço que merecia a Pombal e a Manuel da Maia, que lhe sublinha os conhecimentos técnicos). Sousa Ribeiro tem o parecer pronto em 18 de Abril do referido ano, que reza como abaixo transcrevemos:

Como Sua Magestade Fidelíssima pela sua real bene-volência foy servido mandar-me ouvir, sobre a obra da bar-ra de Aveiro, que actualmente existe, e que para utilidade da Real coroa, e bem publico, abri a expenças próprias, S. Mag. de me fez a honra de mandar-me participar as Ordens Régias, e que na conformidade dellas a todas as conferências que se fizessem sobre a dita barra, e Ryo de Aveiro, na pre-sença do Dezembargador Manuel Gonçalves de Miranda, dous sargentos mors Enginheiros, e seos adjuntos todos os no-meados por S. Mag. de; e para eu informar os ditos Sargentos Mores interpondo com elles o meu parecer, e os meyos que devyão conduzir para a mesma obra.

Entrei com os ditos Ministros na diligência e em toda ella fuy inseparável delles, dando-lhes a conhecer todo o Ryo de Aveiro thé o ancoradouro, onde costumão hir dar fundo as embarcações; e não só se fez medição da largura, e altura do dito Ryo, e se observou a qualidade do fundo delle, por onde podem navegar as embarcações que entrarem pella dita barra, mas também se fez exame nelle, não só em todo o ca-nal, mas fora delle thé aonde o mar faz o seu dever, e ao mes-mo passo que em todos os dias se hia continuando naquella diligência, fuy apontando várias circunstâncias que me pa-receo devião ser lembradas aos ditos Enginheiros, não só para

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milhor ordenarem os planos que S. Mag. de lhes mandou fazer, mas para poderem formar os seus projectos a fim de se fazer permanente aquela barra que eu abry em distância de duas legoas assima da chamada barra.

Hé certo que a cauza que esta teve para se intupir com áreas, não acontesserá à barra que eu abry , porque o arear-se a barra velha, foy porque a lagoa da Villa de Mira, que dista da barra velha perto de duas legoas, dezaguava grande abundância de ágoas principalmente nos Invernos por entre lombas de áreas, e estas forão cahindo de travez para o Ryo que hia para a dita barra velha, com que forão emfraque-cendo a corrente das ágoas que vinhão do dilatado Ryo de Aveiro , de que resultou o arear-se a dita barra velha.

E como eu abry a barra nova bem fronteira a sua boca a hun forte que se acha arruinado, e em terra firme da banda da Villa de Vagos, e desde o dito cítio costeando thé as chamadas quintas da Gafanha, onde as divide o Canal do ryo que vay para Aveiro, não há o menor receyo de se intupir todo aquelle Ryo, por não haver correntes de ágoas por entre lombas de área que dezaguem nella de travez.

Também adverty aos ditos Enginheiros que me paressia conveniente tapar-se o Ryo que hia desde a barra nova que eu abry, para à banda da barra velha, porque supposto este se achava em parte tapado, e agora o está de todas as ágoas que se introduzirão pella nova barra dentro na cheya, não fazião mais effeito do que levantaram naquella distância de duas légoas thé a barra velha, e reputar-se o Ryo morto sem sahida, e por isso ágoa perdida; e prejudicial, porque emfran-quessia a corrente que hé o mais essencial conservatório para as barras, tanto para a sahida das ágoas, como entrada das mesmas correndo só por hum canal, porém discory que como não tinha saído as ágoas que alteavão para o dito Ryo, elle por sy se havia de tapar, e para ellese havião de arumar as ágoas, e as áreas que a corrente do Ryo do mar, vay comendo, e assim

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sussedeu, com utilidade mayor do que se esperava, porque não só se acha actualmente tapada a serventia do Ryo em quazi dobrada largura, e fundo do que tinha quando foy examina-do, e por isso mais funda, actualmente a barra nova em forma que tendo naqquella ocasiam o Ryo muito bastante largura para qualquer embarcação que entrasse na barra nova, poder no dito Ryo voltar e dar por davante muito à vontade, agora com mayor razão, por ter o dito Ryo quazi dobrada largura, e fundo, e ainda muito mayor do que tinha quando foy exami-nado, por conta da grande corrente com que se acha.

Hé certo que eu dei princípio à abertura da barra nova em o mez de Fevereiro de 1757, e só me paresseu con-veniente em 8 de Dezembro do dito ano fazer rompimento das ágoas que então havia naquelle dilatado Ryo para o mar com a felicidade de ficar tudo dezalagado em 48 horas thé o mez de Setembro do anno seguinte em que fuy assistir com os enginheiros na sobredita.

Manuel da Maia ainda tentou convencer Sousa Ribeiro a fazer as obras propostas na Barra da Vagueira, e de novo, à sua custa! No re-latório enviado a Pombal (na mesma data em que emite o seu parecer, 18 de Maio de 1759), comenta o quanto Sousa Ribeiro «se sentiria» se não fosse mantida a Barra por ele aberta». Pelo que Manuel da Maia propõe a Sebastião José a solução de João Sousa Ribeiro «fazer as obras sendo-lhe consignado uma parte dos rendimentos da Alfândega» (para si e seus descendentes).

De imediato, Pombal entrega a Sousa Ribeiro a propriedade de Juiz da Alfandega.122 Dessa propriedade adviriam para o capitão-mor grossas recompensas, pois durante a sua vida, a Barra por ele aberta

122 Esta nomeação de Sousa Ribeiro para Juiz da Alfândega não está completamente esclare-cida. Teria sido a nomeação feita ainda em vida de Rangel de Quadros, por decisão unilateral de Pombal? Ou teria sido após a morte deste? E referimos esta dúvida por uma certa animosidade que a partir daí parece (?) patente na família Rangel de Quadros contra os Sousa Ribeiro.

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reatou a demanda do porto de Aveiro, dando o acesso a muitos na-vios (só em 1765 houve trinta e seis embarcações entradas em Aveiro). Deste modo, permitiu o interesse dos grandes negociantes de enca-beçamento de sisas, acarretando excelente rendimento à Alfândega e, concomitantemente, ao seu proprietário (o juiz). No arrendamento de 1 de Janeiro de 1759, no ponto 11, podia ler-se: com a condição que dos dittos duzentos mil réis se mandarão pôr ou concertar os três páos como de antes havia na barra (…).123

Contudo, em 1768 reconhecem-se que os esforços para manter a Barra em boas condições são em vão. O que ao princípio parecia uma solução duradoura é desmentido pela volubilidade do cordão arenoso do litoral que se mostra de novo descarinhoso. O assoreamen-to não pára de crescer. E dentro em pouco a barra tornar-se-á impra-ticável, exigindo intervenção muito mais ampla e complexa, entre a qual o corte (e controlo) das águas do canal de Mira. Cessa, por isso, o movimento portuário. E, claro, já não é conseguida «arrematação» no referido ano.

Sousa Ribeiro virá a falecer em 15 de Novembro de 1772.E só quando Pombal é afastado (Viradeira) é que será nomea-

da, por D. Maria I, uma nova comissão com o fim de estudar nova implantação da ligação da laguna ao mar, chefiada pelo engenheiro Elsden. O plano deste, que consistia na construção de um molhe apoiado no extremo norte do ilhote do Forte Novo, lançado sobre a duna na direcção de sudoeste não terá concretização. De igual modo os planos de Jacob Severim (1774, acta de 4. 05), de José Iseppi (1780) e os de Valleré (1788) não foram por diante.

Em 1791 a barra fechou, não só de novo, mas completamente. Os cais da Ribeira e do Côjo ficaram inacessíveis. Foram tentadas vá-rias soluções (algumas privadas) com abertura de um regueirão frente a S. Jacinto, mantido em simultâneo com o de Mira.

123 ADA, Vol. I p. 225.

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Custoso, porque iniciado e depois abandonado, seria o falhanço do plano aprovado por Estevão Cabral de abrir um regueirão ao sul da Capela da Senhora das Areias.

E só quando nomeados (1802) o coronel Reynaldo Oudinot e o engenheiro Luís Gomes de Carvalho, com a finalidade de procederem a novos estudos, se iniciaria, em definitivo, a concretização há tanto esperada, e por isso inadiável por mais tempo, da fixação da barra. Oudinot pouco tempo se demoraria em Aveiro. E será Luís Gomes de Carvalho quem concluirá que a escolha do melhor local para fixar a barra terá de ser, para ter êxito, algures, situado no paralelo das gafa-nhas, ao norte da posição que tinha aquando do início da sua primeira crise notável (1575).

Do desenvolvimento e aperfeiçoamento do plano original, de Oudinot e Luís de Carvalho, continuado e concretizado por este último foi, em 1808, aberta a nova barra do Porto de Aveiro, no local aonde se mantém até aos dias de hoje. Curiosamente as descrições da finalização dos trabalhos e as peripécias do momento de abertura (o rasgo na areia feito por Luís Gomes de Carvalho) repetem os gestos e a exaltação do acto cometido, meio século antes, por João Sousa Ribeiro.

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caPítulo ii

Onde se descrevem os grandes serviços prestados pelo capitão-mor joão sousa ribeiro na elevação de aveiro a

cidade

1. Casa ducal de Aveiro

A casa Ducal de Aveiro124 foi uma concessão de D. Manuel I a seu primo, o Senhor D. Jorge, filho bastardo de El-rei D. João II. Este desejaria que D. Jorge, nascido em 1481 e criado desde a idade dos três anos, com todas as honras, em Aveiro, sob os cuidados de sua tia, a Princesa Santa Joana, viesse a ser eleito seu sucessor, futuro Rei de Portugal (apesar da sua bastardia). Essa ideia e vontade mais se arreiga-riam no espírito do rei, após o trágico acidente que vitimou o herdeiro natural, D. Afonso (12 Julho 1491), que na data teria então dezasseis anos. Antes mesmo do passamento de sua irmã, Santa Joana (12 Maio de 1490), já o rei — que por D. Jorge tinha fortíssimo sentimento pa-ternal — pediria à rainha D. Leonor, a vinda do seu filho bastardo para a corte. D. Leonor, ainda e sempre enciumada com o romance do rei com D. Ana de Mendonça (mãe de D. Jorge), acabaria, depois de uma fortíssima pressão e insistência de D. João II, por consentir e rece-ber D. Jorge. Só que, aquando da morte do Príncipe Afonso, D. João, certamente perturbado e receoso que algo pudesse vir a acontecer ao seu outro filho, retirou D. Jorge da guarda de D. Leonor, entregando-o a João de Almeida, Conde de Abrantes. D. Leonor nunca mais perdoaria o gesto a D. João e, por isso, na hora de anuir a que o bastardo assumis-

124 Neves, Ferreira: A Casa e Ducado de Aveiro, Sua Origem, Evolução e Extinção – ADA, Vol. XXXVIII, p. 161.

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se a coroa em lugar do enfezado D. Manuel, a rainha, tenaz, obcecada, enérgica e decididamente dura, tomou uma posição hostil contrariando tudo o que se referisse a D. Jorge. Para isso aliou-se à nobreza, levando D. João II a fazer o seu testamento (29 de Setembro de 1495). Nele, D. João protegia D. Jorge sob o ponto de vista económico, deixando-lhe as terras outrora pertença de seu tio-avô, D. Pedro. Foram contudo preci-sos cinco anos para que depois da morte do rei D. João, o seu sucessor, D. Manuel confirmasse o testamento do seu antecessor (27 de Maio de 1500), e mesmo assim, eximindo-se à obrigatoriedade, inscrita no mesmo, de casar a sua filha com D. Jorge.125 Temeroso que este lhe rou-basse a coroa. E ainda hesitaria muito, antes de lhe conceder o título de Mestre de S. Tiago e Avis (e duque de Coimbra),126 com o que D. Jorge passaria a ser o homem mais poderoso do reino. Entre as terras que vie-ram parar à posse de D. Jorge, encontrava-se a villa de Aveiro.

Dado que Aveiro e redondezas (Ílhavo incluído) tinham dona-tário, D. Jorge teve que esperar que as mesmas vagassem e só em 4 de Agosto de 1515, assume a posse plena das mesmas. Embora a «Casa de Aveiro» (património) já estar integrada no ducado de Coimbra, o duca-do de Aveiro (título nobiliárquico) só será instituído, em 1547, por D. João III, e apesar de D. Jorge ser ainda vivo, o titulo foi logo entregue a seu filho, D. João de Lencastre, que foi, assim, o primeiro Duque de Aveiro. Os filhos de D. Jorge teriam tomado o apelido de Lencastre, em homenagem a sua avó, D. Filipa de Lencastre.

125 D. Jorge viria a casar-se com D. Brites (Beatriz) de Vilhena, filha do chanceler do Reino D. Álvaro de Portugal.

126 D. Jorge ficou possuidor de uma casa que ombreava com a Casa de Bragança. E, ao longo da história, alguns duques de Aveiro pensaram assumir a coroa.

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Fig. 27 – Palacete do Duque de Aveiro, Azeitão.

Só que o filho deste, de seu nome D. Jorge de Lencastre (segundo Duque de Aveiro e segundo Marquês de Torres Novas) viria a falecer na batalha de Alcácer-Quibir, na campanha africana de D. Sebastião. Antes de partir na expedição, este D. Jorge teria feito testamento, em Setúbal, em que formulou o pedido expresso a D. Sebastião de, em caso de sua morte, o ducado passasse para a posse de sua filha, D. Juliana de Lencastre.127 Morto D. Jorge de Lencastre durante a campanha, será atri-bulado o cumprimento do seu testamento. Porque não só D. Sebastião viria, também ele, a falecer na campanha de África (não podendo, por-tanto, cumprir o pedido), como ter-se-á levantado o problema do re-ferido testamento ser totalmente contrário à disposição da cedência do Ducado, feita por D. Manuel ao bastardo D. Jorge, que referia taxati-vamente (…) e não suceda ninhua fêmea descendente das filhas do dito duque em quanto y ouver baroins (…). E virá a ser o rei D. Filipe I quem ultrapassará a questão da dispensa da Lei Mental, fazendo a entrega do Ducado de Aveiro, a D. Juliana, em 7 de Dezembro de 1581.

O facto é que, ultrapassada esta disposição, dispensada a re-ferida lei, no futuro esta questão deixará de se colocar, não sendo

127 Teriam sido feitas referências, aquando da expedição, a uma paixão de D. Sebastião por D. Juliana, de todo improvável (mais conveniente, excepcionalmente vantajosa para a coroa), pois D. Sebastião, na altura, teria 24 anos e D. Juliana apenas nove.

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impedimento para fêmeas terem herdado a casa de Aveiro, sobrepondo-se à existência de varões descendentes do primeiro donatário128.

À referida D. Juliana129 seguiu-se seu neto,130 D. Raimundo, após sentença pleiteada por impugnação de seu tio, D. Afonso de Lencastre. D. Raimundo veio, assim, a ser o quarto Duque de Aveiro. Terá tido vida atribulada pois, apesar de honrarias e favores recebidos, virá a manter relações difíceis com a corte, por entender que a morte de D. João IV seria uma boa ocasião de restaurar a dinastia espanhola, podendo ele, o Duque de Aveiro, vir a ocupar o cargo de vice-rei. Tais ideias e ambições fizeram com que saísse do país para conjurar contra a monarquia portuguesa, servindo-se da promessa de futura atribuição de cargos para quando fosse Rei de Portugal. Sentenciado, foi «execu-tado em estátua» (simbolicamente) em Lisboa, em 16 de Outubro de 1663.131 E a Casa de Aveiro entrará de novo na posse da coroa.

Faziam parte dos bens da referida Casa, nessa data, a Vila de Montemor, Pereira, Abiul, Penela, Lousã, Aveiro, Segadães, Ricardães, Brunhido, Casal de Álvaro, Bolfiar, Águeda, Torres-Novas, Barreiro, Sesimbra, Torrão, Ferreira, Castro Verde, Santiago do Cacém, Sines e Samora Correia, todas com as suas rendas, pertenças, ofícios e padroado das suas igrejas.132

Por estar vago, apresentaram-se desde logo a candidatar-se ao Ducado:

O Autor: João da Silva, segundo Marquês de Gouveia

128 ADA, Vol. XXXVIII, p. 166.

129 O filho desta, D. Jorge, morreria cedo, sendo a sua mãe viva à data, pelo que não che-gou a ser o quarto Duque de Aveiro.

130 Porque seu filho, também de nome D. Jorge de Lencastre, primeiro Duque de Torres Vedras, viria a falecer em 1632, antes de sua mãe (1660) a qual, por isso, não chegaria a usar o título.

131 Perpetrando uma pretensa invasão, D. Raimundo ataca, em Junho de 1766, o Forte de Peniche com uma esquadra (?) de quinze navios, na altura guarnecido por uma força de 30 soldados.

132 Livro de Registos da Câmara de Aveiro, fl. 104, v.

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E os

Recorrentes:

1) D. Pedro de Lencastre (eclesiástico).2) D. Madalena de Lencastre, Condessa de Faro, irmã de D.

Pedro.3) D. José Luís de Lencastre, terceiro Conde de Figueiró.4) D. Maria Guadalupe de Lencastre, irmã do quarto duque,

D. Raimundo.5) D. António de Lencastre, filho do terceiro Duque D. Álvaro,

irmão de D. Pedro de Lencastre.

A sentença viria a ser favorável a D. Pedro, cuja tomada de posse foi realizada em 22 de Junho 1668. Aqui cabe dizer que este D. Pedro, referido como um eclesiástico, terá sido nomeado arcebispo titular de Sida e inquisidor geral de Portugal133 pelo príncipe regente D. Pedro.134 Pela morte de D. Pedro Lencastre — que não deixaria descendentes — a casa Ducal voltou, assim, e de novo, à posse da coroa.

Logo que a paz se voltou a instituir entre Portugal e Espanha, a irmã de D. Raimundo (quarto Duque de Aveiro), D. Maria Guadalupe de Lencastre, que residia refugiada na corte espanhola e teria já in-tentado (no tempo de D. Pedro) requerer que lhe fosse concedido o Ducado, entende chegada a sua hora de fruir, definitivamente, de tão grandiosa e grossa abastança.

É que, logo após a celebração da paz entre as duas nações vizi-nhas135, foi inserido nas «Capitulações das Pazes», o perdão para as deser-ções e declaradas como não existindo devendo, assim, serem restituídas as

133 Barreira, Manuel, «O Ducado e a Casa de Aveiro», inserido em A História de Aveiro – Síntese e Perspectivas, ed. CM Aveiro, 2009, p.127.

134 Estes cargos ser-lhe-iam confirmados pelo Papa Clemente X.

135 Em 13 de Fevereiro de 1668.

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fazendas aos vassalos desertores a quem, por via desse crime, tivessem sido confiscados bens. E ainda perdoadas todas as condenações. Perante tão lato e incisivo indulto, D. Maria Guadalupe, perseverante, antevê a possibilidade de obter a casa de Aveiro, tentando o merecimento régio.

E após a morte de D. Pedro, quinto duque, tal viria a acontecer, entregue que foi a D. Guadalupe o ducado. Seria assim D. Guadalupe, a sexta Duquesa de Aveiro, se lhe não tivesse sido exigido como condi-ção de usufruto do título e dos bens, regressar a Portugal, e aqui residir. D. Guadalupe bem o desejou e intentou fazer. Só que se defrontou com a oposição do marido,136 que não esteve pelos ajustes do regresso e foi em Madrid que a morte a veio encontrar. Antes, porém, D. Guadalupe de Lencastre terá feito escritura de doação da casa Ducal ao seu segundo filho, D. Gabriel Ponce de Léon de Lencastre, separando, assim, em definitivo, as posses tidas em Espanha, das do Ducado de Aveiro.

Teria ou não, o tal Ponce de Lencastre, direito ao Ducado? Ferreira Neves137 elucida o facto informando-nos que esse direito teria sido contestado por D. Maria de Lencastre, segunda neta de D. Juliana, terceira duquesa. Mas logo apareceram cinco oponentes: D. Martinho Mascarenhas, terceiro marquês de Gouveia, D. Pedro de Lencastre, quinto Conde de Vila-Nova de Portimão, (descendente de D. Luís de Lencastre), D. Rodrigo de Lencastre, comendador mor de Coruche (ir-mão de D. Pedro de Lencastre), D. Agostinho de Lencastre (filho de Afonso de Lencastre). E claro, D. Gabriel de Lencastre Ponce de Léon, atrás referido

O pleito teve como vencedor D. Gabriel de Lencastre na condi-ção de este se estabelecer em Portugal.

D. Gabriel virá para Portugal em 1732, fixando-se em Lisboa e Azeitão. A posse de Aveiro fez-se na pessoa do seu procurador, Dr. António de Sande Machado, em 7 de Julho de 1732, no meio de gran-des festejos.

136 Este facto levaria à separação (total) do casal.

137 Neves, Ferreira, ADA.

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Morreu o duque solteiro. Por sua vontade quis ser sepultado no Convento de Jesus, em Aveiro.

Sem descendência directa, de novo e uma vez mais, a «Casa de Aveiro» regressaria à coroa, à espera que novos candidatos pleiteassem tão choruda e lucrosa fazenda.

Teria direito ao Ducado D. João Mascarenhas, primeiro filho de D. Martinho de Mascarenhas, terceiro marquês de Gouveia.

E aqui entroncamos este pequeno desvio na história de João Sousa Ribeiro. O leitor depressa concluirá porque nos desviámos do nosso fim último. Pretendemos com esta breve e sintética descrição do Ducado de Aveiro, introduzir o seu próximo (e último) Duque de Aveiro, D. José de Mascarenhas e Lencastre, que iria ser figura central de mais um momento critico da história de Aveiro. Na sequência do mesmo, uma vez mais se revelariam importantes e relevantes, os ser-viços prestados por João Sousa Ribeiro, à ainda, Vila. As privilegiadas relações mantidas na Corte, como atrás descrito, e em particular com Sebastião José, iriam ser determinantes para o êxito da nova missão de que foi encarregue.

Vejamos os factos:D. José de Mascarenhas, irmão de D. João de Mascarenhas, e se-

gundo filho de D. Martinho de Mascarenhas, terceiro Conde de Gouveia, como era norma, estaria predestinado a seguir a prática eclesiástica.

Mas uma outra razão ocorrida com seu irmão, o referido D. João de Mascarenhas, fidalgo que já casado se endoidou138 por bonita mulher (D. Maria de Penha, casada com um fidalgo da Casa d’ Almada), a pon-to de fugir para fora do país, levando com ele o objecto da sua paixão, iria desviá-lo desse caminho. Este acontecimento mudaria radicalmen-te o curso do destino previsto para D. José. O crime (?) cometido pelo D. João era, à época, muito grave. Sujeito a punição exemplar (não o perder-se de amores — maleita essa habitual e muito comum, bem

138 D. Maria Penha de Mendonça, casada com o mestre sala da corte de D. João V, foi a ra-zão do desvario, com ela fugindo para Espanha. (Quadros, Rangel de, Aveiro – Apontamentos Históricos, ant. cit., p. 386.

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tolerada — mas a fuga às suas responsabilidades familiares) com con-sequências gravosas que só com o desterro se poderia expiar, obrigou de imediato a renúncia à «sua Casa».

A sentença do Tribunal atribuiria, por tal razão, a Casa de Aveiro (e só esta, apenas…) ao seu irmão D. José (Junho de 1749·) que se ti-nha apressado a requerê-la139). E referimos apenas a «Casa», pois que a concessão outorgada, retiraria ao rol dos bens incluídos na mesma, os bens pertencentes às Ordens (Comenda de S. Tiago).

Foi Botelho de Eça Teles, quem, em nome de D. José de Mascarenhas tomaria posse da «Casa de Aveiro» (pois que aquele ain-da não teria sido nomeado duque). E seria o rei, D. José I quem, em Outubro de 1755, viria a investi-lo no ducado, ainda que com a limi-tação de validade de apenas em sua vida (retirando o juro e herdade).

Este D. José de Mascarenhas140 (apesar da sua pequenez) era ex-cessivamente ambicioso, altivo e muito soberbo.141 Pelas riquezas ines-peradamente alcançadas, ufanava-se nos salões nobres, com espavento mal tolerado, que da sua posição ao trono apenas ia um degrau. Era um assumido litigante, senhor de uma grande presunção. Figura emproada, desagradável e desdenhosa, que iria consumar a ruína da sua casta.

Mascarenhas não só pretendia o Ducado em dádiva perpétua, de juro e herdade, como ambicionava a posse das comendas de título ecle-siástico (S. Tiago), não incorporadas nos bens do Ducado. Pretendia, ainda, casar o seu filho, D. Martinho, Marquês de Gouveia, com a irmã do Duque do Cadaval, D. Margarida Caetana. Juntando as duas casas, a família Mascarenhas ficaria com a casa mais opulenta do país.

139 Apareceu a pleitear a posse, D. António de Lencastre Ponce de Leon, Duque de Banhos, Espanha.

140 Este D. José de Mascarenhas tinha relações e protecção, especiais, provindas do rei, pois sua mãe tinha sido aia deste.

141 Nenhum homem manifestou jamais tanto orgulho, altivez, e arrogância; a sua nova grandeza o preocupava a ponto de se julgar superior às leis, imaginando que estas seriam insuficientes para puni-lo, qualquer que fosse o crime que cometesse. Cormatin, Pierre: A Administração do Marquês de Pombal, 4.ª ed., Junho 2010, ed. Bonecos Rebeldes, p. 209.

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A Corte viria a inviabilizar esta e outras pretensões de desmesurado protagonismo do seu autor.

E D. José Mascarenhas passaria, por tal motivo, a destilar ódio sa-nhudo, bilioso, principalmente vertido sobre Sebastião José, a quem acu-sava de ser a figura malévola, réproba e invejosa, que influenciava o rei na sanha contra a alta nobreza fidalga.142 Juntava o ódio ao Ministro, com a ira contra o rei. Atribuía, o «Aveiro», o mau despacho das suas pretensões à malevolência do ministro, e não menos, à fraqueza do soberano.

Ligado aos Távoras por via de sua mulher, irmã da Marquesa de Távora, estas duas famílias ver-se-iam acusadas de terem sido as res-ponsáveis pela consumação do atentado regicida perpetrado contra D. José I. Este, apenas acompanhado pelo fiel e confidente Pedro Teixeira, regressava, incógnito, de uma noite de amor (3 de Setembro de 1758), dardejada com a adúltera, mulher muito bela, D. Teresa de Távora, ca-sada com Luís Bernardo, um dos herdeiros dos Távoras. A caleche que conduzia o rei por volta das onze horas (da noite) descia a calçada do Galvão em direcção ao palácio, quando surgiram das casas da «Quinta do Meio», três cavaleiros embuçados, descarregando as clavinas sobre o condutor e passageiros, ferindo o rei no ombro e nádega.

Fig. 28 – Atentado a D. José I.

142 «Manuscrito Mentira Manifesta – Vita di Seb., Giuseppe de Carvalho e Mello», tomo ii, p. 15.

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O acontecimento foi de imediato utilizado por Sebastião José para desferir mais um golpe na luta contra a alta nobreza. Num ápice, foi constituído o Tribunal Supremo da Inconfidência — especifica-mente criado para julgar o crime de conspiração contra a sagrada pessoa de el-rei — onde se incluíam os secretários de Estado, que decretaria, rapidamente, perante provas convincentes (?), a morte no patíbulo de Belém, dos responsáveis. O principal executor e instigador, o Duque de Aveiro, foi condenado a ser conduzido com baraço e pregão, à Praça, e aí a ser, no cadafalso, rompido vivo e queimado, sendo as suas cinzas pos-teriormente lançadas ao mar. À Marquesa de Távora, D. Leonor, seria concedido o privilégio (?) de ser a primeira das vítimas, decapitada no cimo do patíbulo. Seguiram-se seus filhos, José e Luís Bernardo, e logo depois o marquês, Francisco Assis de Távora, antigo vice-rei da Índia. Começada a cena brutal cerca das sete horas da manhã, a mesma só viria a terminar pelas quatro horas da tarde. Para lá das figuras referi-das, muitos outros, próximos e até alguns dos seus criados sofreriam da mesma sorte, objecto da mesma sanha vingativa, de uma crueldade inaudita, desumana e desproporcionada.

Fig. 29 – Execução do Duque de Aveiro. Era dia de suplício no reino, festa das

mais belas (?) e das mais concorridas em assistência.

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O som do sino tangendo nas torres das igrejas anunciava logo de madrugada o acontecimento. O povo era convidado a assistir à ma-tança, evolado no estupor que lhe perpassava no olhar com que fixava os requintes de desumana violência, parecendo exultar com o aten-tado ao carácter humano. Para não perder pormenor dos requintes bárbaros e hediondos, as gentes acotovelavam-se nas ruas procurando disputar lugar proeminente no terreiro do patíbulo, para de perto es-piolhar o sofrimento atroz dos condenados. As janelas povoavam-se de lindas e bem trajadas mulheres que em gáudio parlatório comen-tavam os passantes. Frades tenebrosamente encapuzados, orgulho-sos, com a «presa» bem ferrada pelo baraço, caminhavam à frente do cortejo. A fidalguia servia de beleguins aos desgraçados conduzidos ao patíbulo. O rei e rainha, e séquito, de traje a rigor, desciam das carru-agens douradas guiadas pelos sotas, de fartas e farfalhudas cabeleiras brancas (que muito impressionavam a multidão), subindo à tribuna de onde poderiam seguir, o sanguinolento episódio, o justo castigo divino. Neste tipo de festa (?) o estupor levava o «homem» aos limites da imbecilidade desprezível.

O Duque de Aveiro foi o primeiro a ser colocado na roda, os-sos quebrados à marreta, esquartejado com requintes de ferocidade inaudita. Aos supliciados, num acto de feroz e desapiedada, bárbara e inaudita atrocidade, eram mostrados antes da execução, em paté-tica e arrepiante indignidade, para gáudio da multidão exultante, os instrumentos e a metodologia do suplício a que iriam ser sujeitos. E cruelmente obrigados a assistir a todas as ferocidades cometidas sobre os seus antecessores no acto, ouvindo o uivo estridente do seu atroz e prolongado sofrimento.

2. Aveiro e os acontecimentos

Na vila de Aveiro temeu-se pelas consequências do acontecimen-to em que se envolvera o «seu» duque (distante, que certamente nunca terá visitado a vila, apenas recebendo os seus proventos por via dos seus

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oficiais e magistrados particulares). Acusado de tentativa de regicídio na ideia de imaginar poder vir a ser, por morte do soberano, o mais sério candidato à coroa. Rapidamente, por ordem régia de 12 de Janeiro de 1759, foram incorporados todos os bens e propriedades do ducado, na coroa Real, incluindo os da Casa de Aveiro. E arrasados todos os edifícios ne-les contidos, salgado o seu chão para que ali nada mais tivesse vida. Em data anterior, 16 de Dezembro de 1758, foi determinado serem suspensos os magistrados oficiais postos pelo Duque de Aveiro, ordem que em Aveiro viria a ter cumprimento em 28 do mês referido.

Fig. 30 – O símbolo do «chão salgado».

Todos os funcionários do Duque em Aveiro foram, na data re-ferida e no seguimento do decreto, destituídos dos seus cargos, embo-ra logo passassem a funcionários reais.

Temeu-se uma qualquer retaliação sobre a vila (e até gentes), a exemplo do acontecido em data não muito anterior, no episódio dos motins da sublevação do Porto (1757), aquando do decreto que criou a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto-Douro. Em que, por consequência da alteração da ordem pública, foram presas e julga-das 478 pessoas. Neste episódio, na sequência da oposição às pretensões da coroa, geraram-se tumultos de rua, levando a que fossem julgados e condenados à morte o Juiz do Povo e mais vinte homens e cinco mulhe-res. Aos restantes, a uns coube o degredo e mais levemente, a outros, o

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açoite em praça pública. E foi-se ainda mais longe:143 a população da cidade do Porto seria acusada do crime de omissão por não ter reagido e, por isso, castigada com aboletamento144 para lá da extinção da «Casa dos Vinte e Quatro Mesteres».145 Atentando nesse facto, em Aveiro, te-meu-se o pior. E precavendo-se contra essa possibilidade, os maiores da Vila, o clero, os religiosos dos conventos, militares e muito povo — to-dos! — acorreram 146, no dia em que se festejava os Santos Reis (6 de Janeiro de 1759), à capela de S. Miguel, onde, prostrados de joelhos frente ao pároco dessa Igreja Matriz, Frei Paulo Pedro Ferreira, que em-punhava o livro dos Santos Evangelhos, afirmaram não desejar ter como donatário o homem que havia atentado contra a vida do seu rei e senhor, ao tempo em que juravam fidelidade e obediência ao rei e até, dar a vida, se preciso fosse, em defesa da sua real pessoa. Abjurou-se, com evidência, o crime, aplaudindo-se o castigo sobre os traidores — que maior deveria ter sido — e, como remate, cantou-se reverenciado, declamado e im-plorativo Te Deum, em acção de graças pelas rápidas melhoras de Sua Majestade Fidelíssima, el-rei D. José I. Seguiu-se uma solene procissão, em que foi glorificado o «Senhor Sacramentado». Recolhida a procissão, as forças militares fizeram ouvir disparos de saudação. O que a muitos pareceu ser um claro aviso. O acto de repúdio terá sido de tal forma ve-emente que correu a notícia (nunca documentalmente confirmada) de, na referida reunião, se ter sugerido, em desquite pelo acto do duque, a conveniência de mudar o nome de Aveiro147 para «Nova-Bragança».

143 Este tipo de castigo era o que Aveiro temia, de facto.

144 Castigo que obrigava a população do Porto a acolher em suas casas os militares dos regimentos necessários para impor a ordem pública, dar-lhes alimentação e contribuir para o pagamento das suas soldadas.

145 História de Portugal, vol. vi, dirigida por Damião Peres, Portucalense Editora, p. 210.

146 Quadros, Rangel, Aveiro – Apontamentos Manuscritos, tomo vii.

147 De facto D. José Mascarenhas, após o acto regicida, foi sempre referenciado como o «Aveiro», pelo que esta evocação logo originaria uma associação emocional negativa.

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O certo é que a coroa não manifestou qualquer atitude da qual se pudesse inferir pretender desencadear acção de retaliação sobre a Vila e suas gentes. A coroa estava preocupada, isso sim, em destruir a alta nobreza que se apresentava disposta a tudo, acreditando mesmo que Carvalho só cairia «por morte do Rei». E que por esse motivo, mo-via um ataque cerrado ao primeiro-ministro, o fidalgote da Província. Era este o modo depreciativo como Pombal era tratado pelos aristo-cratas. Pretendia esta casta, que se habituara a viver na dependência de benesses provindas da Corte, destruir aquele a quem acusavam de ser feroz e entranhável o seu ódio (…) urdindo uma fantasiosa conjuração para sua destruição.

E se já se ouviam vozes a enaltecer Pombal pela organização económica do país, tarefa grandiosa a que se votara, com pulso, talento, lucidez, audácia e energia, numa notável actividade de um espírito ilumi-nado, que cedo o impôs como um notável estadista, era também comum ouvir-se nos salões, que o referido Pombal pretendia substituir essa alta burguesia por uma outra burguesia industrial e comercial,148 uma classe média burguesa. Que fosse capaz de fomentar a produção interna e desenvolver os negócios, pondo de lado a ideia de viver das rendas e dos privilégios conseguidos na Corte. Ou do ouro e diamantes dos brasis que muitos julgavam para sempre inexauríveis.

A alta nobreza foi acusada de conspirar, em conluio com a Companhia de Jesus, que aspirava continuar a ser detentora do privi-légio de governar os negócios do Brasil. Que Pombal pretendia rega-nhar para a coroa. Para se opor a tal pretensão, encontrara a fidalguia «de sangue», aliado de tomo na Ordem encabeçada pelo velho e per-turbado, o devaneado Gabriel Malagrida.149

148 «Na liberdade existe a alma do comércio», lia-se no preâmbulo do decreto de 17 de Agosto de 1758.

149 Malagrida, septuagenário, de saúde mental muito precária, combalido e afogado no misticismo, foi taxado de heresiarca, blasfemo desvairado. Pelos inquisidores foi o réu padre Malagrida declarado «por convicto no crime de heresia, por seguir, defender proposições, e doutrinas, opostas aos grandes dogmas que nos propõe e ensina a Santa madre igreja». Grande

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Pombal estaria, pois, pouco preocupado com o eventual castigo a Aveiro. O que ele pretendeu desde logo, foi aproveitar o atentado, ligando a sua urdidura e execução, às mais importantes casas fidalgas e à Companhia de Jesus, e, desse modo, destruir os dois importantes em-pecilhos, que considerava como os principais estorvos para a sua acção reformadora. Carvalho não vacilou em aproveitar a ocasião soberana. Primeiro, rapidamente, levou ao cadafalso a fidalguia arrogante — o braço da execução regicida — acusando-a de pretender, com a morte do rei, entregar o trono ao Duque de Aveiro. Logo depois urdiu uma teia, a que não faltou o confronto com a Santa Sé, para se libertar dos je-suítas — acusados de instigadores influentes — que expulsou do país e do império, justificando-se perante o Núncio, que assim procedera para os libertar da ira da população. Deste modo, Pombal não só declarava que todos os jesuítas eram cúmplices, não apenas os seus dirigentes ou aqueles que estavam no país que foram desnaturalizados, mas todos os membros da corporação. Deste modo baniria de todo o território nacio-nal a instituição, não apenas os que exerciam no território continental.

Aveiro, suas gentes, ou eventuais conluios aqui existentes, foram rapidamente excluídos das preocupações justiceiras pombalinas, se é que chegaram a ser equacionados, ou fugazmente incluídos.

Percebe-se assim que Pombal, sabendo a inexistência de qualquer ligação afectiva do Duque de Aveiro às gentes da vila, tivesse a sagaci-dade suficiente de não ofender a terra e os seus moradores, conhecendo suficientemente a dramática crise económica por que passavam.

De facto, convenhamos, seria para as gentes de Aveiro indife-rente pagar ao duque, ou pagar à coroa. A Casa e o ducado de Aveiro eram, sem dúvida, duas das três maiores instituições do país, sem que tal facto acarretasse para a vila e seus habitantes qualquer tipo de benefício, ou sinecura. Os titulares do Ducado, salvo uma ou outra

inimigo de Pombal desde o Terramoto, acusando — o de ter sido o provocador da ira divina. Em 20 de Setembro de 1761, saiu em auto de fé «para ser levado pelas ruas da cidade, com bara-ço e pregão ao patíbulo, e aí queimado».

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raríssima excepção, nunca pousaram — nem sequer no dia em que tomavam posse do senhorio — em Aveiro.

E quanto a benefícios feitos na vila, por sua ordenança ou as-sumpção, poucos ou nenhuns se conhecem (à excepção do primeiro duque que teria contribuído para a Fonte dos Amores150). Nem pois para tomar posse do ducado, esses titulares se dignavam visitar estas terras que acreditavam ser pestilentas, encharcadas de águas salobras, fétidas, de má fama para a saúde. Para o encargo cerimonial de posse, nome-avam os seus representantes. Os quais com pompa e circunstância, na Matriz ou no Convento das Carmelitas, tomavam simbolicamente nas suas mãos a «chave» da villa, mostrando-se ao povo «como se o dito Senhorio tivesse momentaneamente encarnado» no recebedor.

Garantidamente não haveria, pois, nenhuma ligação do fami-gerado duque às gentes de Aveiro que justificasse qualquer tipo de castigo. Aliás, como referimos acima, seriam até duvidosas as razões porque lhe fora parar às mãos, o ducado.

Era pois de toda a conveniência fazer chegar a Belém todos estes propósitos e garantir um total alheamento das gentes de Aveiro aos factos, e a certeza da fidelidade reservada ao seu rei.

E para que essa informação chegasse à coroa com elevado grau de fidedignidade e convencimento, não deixaria de ser de importância fundamental, ou até decisiva, a escolha sobre quem recairia o encargo de transmitir a mensagem. Ora a proximidade nos «tratos» mantidos nos últimos anos por João Sousa Ribeiro com a coroa, no empenho de se encontrar solução para o estabelecimento de um porto de mar com boas acessibilidades, capaz de relançar a economia da região (outrora rica e atraente para as populações e estrangeiros) numa nova etapa de progresso sustentado, «tratos» que tiveram êxito absoluto, tornou des-de logo fácil, porque unânime, a escolha do mensageiro.

150 Só foi poupado, em Aveiro, o brasão que encimava esta Fonte (antiga Fonte da Benespera, 1559).

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3. elevação da Vila de Aveiro a cidade

Sousa Ribeiro era pois visita assídua da corte, já o afirmámos anteriormente. Homem muito considerado pela autenticidade posta nos seus actos e pela seriedade que neles punha, e pela rectidão com que cumpria todos os tratos em que se via envolvido. Nele, as gentes de Aveiro na reunião magna anteriormente referida de 6 de Janeiro de 1759,151 decidiram depositar o encargo de apresentar «garantias» ao rei da sua inequívoca lealdade. E, decerto, assim procedeu João Sousa Ribeiro. Que recebido na Corte garantiria e fez saber, a total inexis-tência de «colaboração» com o do Duque de Aveiro152 no miserável e cobarde acto a que acrescentaria, para que dúvidas não subsistissem, ser tal personagem praticamente desconhecida na vila, sem voz nem interferência — antes no total alheamento — nos problemas que afligiam a população. Bem poderia João Sousa Ribeiro garantir que, certamente, nenhum dos seus habitantes alguma vez teria visto — e muito menos tivera tratos — com o referido D. José de Mascarenhas, que precisamente o rei, D. José, teria nomeado Duque de Aveiro.

E em onze de Abril de 1759, no seguimento das informações prestadas e por decisão régia — assinado pelo ministro do rei-no — é dado a conhecer o Alvará que eleva a Villa de Aveiro a cida-de, assim rezando:

151 Rangel de Quadros refere (Apontamentos Históricos) que terá sido no dia 13 que em reunião da Câmara se terá lavrado a acta de protesto do que se havia dito na reunião do dia 6.

152 O facto de João Sousa Ribeiro da Silveyra e seu pai Manuel, terem sido testemunhas no acto de posse de D. Gabriel, enquanto que, depois, no de D. José de Mascarenhas não terem sequer comparecido, leva-nos a pressupor que aquela subida de Mascarenhas ao ducado não terá sido do agrado dos Silveyra.

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D. José, por graça de Deus, Rey de Portugal

Faz saber aos que este Alvará virem que conciderando Eu a situação natural, Povoação e circunstâncias que con-correm na villa de Aveiro e nos seus Habitantes e folgando pelos dittos respeitos, e por outros que inclinarão a minha Real Benignidade de lhes fazer honra e mercê, Hey por bem e me pras que a dita villa de Aveiro do dia da publicação deste em diante fique erecta em Cidade e que tal seja deno-minada e haja todos os privilégios e liberdades de que devem gozar e gozam as outra Cidades deste Reyno, concorrendo com ellas em todos os actos públicos e uzando os Cidadões da mesma cidade de todas as distinções e preheminencias de que uzão os de todas as outras cidades. Pello que mando a todos os Tribunaes, Menisterios, Offeciais e Pessoas a quem esta for mostrada que daqui em diante hajãoa sobredita Villa de Aveiro por Cidade, e assim a nomeyem e lhe guardem e a seus Cidadãos e Moradores delllas, sem irem contra el-les em parte ou em todo porque assim é minha vontade e mercê. E quero e mando que este meu Alvará se cumpra e guarde inteiramente como nelle se contem, sem duvida, ou embargo algume por firmeza de tudo o que dito he ordeno a Mesa do Desembargo do Paçolhe mande pasar carta em dous exemplares que serão por mim assinados passados pela Chancellaria e sellados com sello pendente della, a saber um delles para se gurdar no Archivo da cidade para seu titulo, outro para se remeter á Torre do Tombo. E para que venha notícia de todas mando ao Desembargador do Paço Manuel Gomes de Carvalho, do meu conselhoe Chanceler mor destes meus Reinos que faça estampar a dita Carta logo que pas-sar pela Chancellaria, e envie cópias della aos Tribunaes e Menistros a quem se costumão remeter as minhas leys para se observarem.

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Dada no Palácio de Nossa Senhorada Ajuda aos onze de Abril de mil setecentos e sincoenta e nove — Rey — Sebastião de Carvalho e Mello

Fig. 31 – Assinatura do Marquês de Pombal.

Aveiro era então, finalmente, cidade.O regozijo foi enorme. Não só se reconhecia o magnânimo ges-

to do rei, como se agradecia ter-se liberto a vila e a sua população de toda e qualquer retaliação pelo acto tenebroso do seu donatário.

Mas se alegria e regozijo eram muitos, nova preocupação as-solou e ensombrou o acontecimento. Era comum nestes actos de ganho de alforria citadina, o pagamento à coroa de direitos pela graça concedida.

Aveiro tinha os cofres exaustos, vazios, à espera de melhores dias, pois só ainda há pouco renascera a esperança de uma nova promessa de tempos bem-aventurados. Só recentemente a barra viria permitir o movimento dos barcos, incentivando as trocas comerciais; a activida-de salina recomeçara, e a fauna piscícola tinha de novo renascido no interior lagunar. Mas era, ainda, escasso o tempo para que a economia se refizesse de um período calamitoso permitindo amealhar no cofre camarário pitadas de impostos que se vissem, valor ao menos suficien-te para paga de tamanha honraria concedida.

Para analisar o impasse, a governança da «nova cidade», a nobre-za local, o clero e demais importantes, reuniram-se, tendo o Juiz de Fora proposto:

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(…)Que S. Mag. tinha feito por sua real grandeza a esta villa a mercê

de a authorizar com o nome e titolo de cidade, e q. põe esta graça era pre-ciso que algum cidadão filho da mesma terra beijasse a mão a S. Mag. em nome da Camara, Nobreza e Povo, e por todas as pessoas abaixo asignadas foy votado unanimemente q. visto se achar na Corte João Sousa Ribeyro da Silveir.ªcavaleiro professo na Ordem de Crhisto, e cap. mór de Ílhavo, que várias vezes foi vereador nesta villa podia com menos demora cumprir essa acção; muitº principalmente, porq. ainda que lá não estivera, lhe de-via ser commetida pelo sumo zelo, e desembolço com q. por meio da Barra, que abrio livrou a toda esta terrade tantos dannos, e ruínas; e que p. haver de fazer a dita acção lhe escrevesse a Câmara huma carta , rogando lhe que a quizesse cumprir, e executar; e também ser zellante Procurador da mesma villa rogando a S. Mag. pelos interesses da mesma.

E por não haver mais q. fazer mandarão encerrar este termo, o qual eu João Egaz de Bulhões e Sousa escrevi por empedimento do escrivão da Câmara, que o sobscreve.

André Botto Deça Telles escrivão da Câmara o sobscrevi.

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Fig. 32 – Acta da CMA de 1 de Junho de 1759.153

Rubricam o termo o presidente Castro Padrão e os vereado-res Diogo Luiz Rangel Perestrelo de Quadros, Luiz Manuel de Sousa

153 Livro de actas da CMA, p. 39, V.

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Ribeiro Brandão, João Egaz Bulhões e Sousa e o procurador da Câmara António da Costa e Silva.

Assinam vários.Mais: na referida reunião foi abordado um assunto de enorme

importância, o qual era o de saber e decidir onde ir buscar dinheiro para suportar os encargos que a elevação a cidade acarretaria. Vejamos o que sobre o assunto os maiorais da terra alvitraram:

(…)E logo no mesmo dia mez, e anno asima declarado (1 de Junho

de 1759) se propoz em Câmara perante as pessoas asima asignadas que abaixo se hão de asignar de onde havia de sair o dinheyro pª se paga-rem os novos direitos da graça feita a esta villa de ser cidade, cazo, que S. Mag. não nos haja de perdoar como se espera da sua real grandeza, e clemência, e por todos foy votado q. como se achavam alguns depósitos antiguos de dinheyros pertencentes a esta villa os quaes estavão quazi perdidos se puzessem promptos, demandando-se os Depositários delles pª que os tivessem promptos, ou se removessem pª outra mão segura, e abonada, porq. estando promptos se poderia pedir a S . Mag. pro-vizão pª delles sahir a dita despeza, e aplicar-se o restante, ou a bem do lançamento das cizas, ou pª obras públicas; e para que se zellasse a dita arrecadação nomearão todos por seus plenos Procuradores cum libra aos senhores Doutores Manoel de Freitas Rodrigues, e João de Figueyredo, e o Sr. Antonio da Silveyra Ribeiro a cada hum delles in solidum e q. na ditta clausulla não se comprehenda alguma precisa em direito pª o pleno poder de procurador a havião por expressada , e de tudo mandarão fazer este termo q. asignarão, e eu João Egaz: digo q. asignarão e declararão outro sim , que iguais poderes davam ao actual Procurador da Câmara, e aos q. o forem de futuro pªq. todos, e cada humpor si podessem, requerer em juízo , ou fora delle tudo o q. fizesse a bem da dita arecadação pª o q. lhes davão os poderes necessários de

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tudo mandarão fazer este termo; e eu João Egaz de Bulhões e Sousa o escrevi por empedimento do escrivão actual.

André Borro d‘Eça Telles-Escrivão da Câmara o subscrevi.(Assinaturas, como no anterior documento).154

A João Sousa Ribeiro serão, assim, cometidas mais duas gran-diosas tarefas. É certo que a sua presença na coroa (habitual como referimos anteriormente) facilitava e apressava o desempenho e seguro o resultado da missão diplomática. A nobreza, o clero, o povo, era certo, só confiavam na sua personalidade para a obtenção de êxito da missão porquanto João Sousa Ribeiro era figura ímpar do distrito, reconhecido «Pai da Pátria» pelas populações que libertara da miséria e a quem proporcionara nova promessa de vida. Senhor de uma pro-bidade moral, material e ética, que o Marquês — personagem que decidiria sobre a matéria — certamente apreciava e valorava.

Sousa Ribeiro não perde tempo para dar corpo à incumbência que lhe fora remetida. E aos vinte e nove dias do mês de Setembro de mil setecentos e cinquenta e nove, na casa da Câmara onde se en-contravam os maiores de Aveiro e Povo, João de Sousa Ribeiro daria conhecimento do resultado da missão que fora incumbido, exibindo a proclamação real de isentar a novel cidade do pagamento de taxas habitualmente devidas por outorga de tamanha honraria.

(…) e logo sendo prezentes na mesma Câmera a Nobreza , e muito Povo desta villa, que forão avisados para ay se acharem, disse João Sousa Ribeiro da Siveyra, Cavaleiro Professo da Ordem de Christo, e cap. mor de Ílhavo, que elle estando na Corte em Lisboa, recebera huma carta da camera desta villa, na qual lhe incumbio, que como cidadão, e na-tural da mesma villa, beijasse a mão de S. Mag. em nome da

154 Livro de actas da CMA, p. 40, V.

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Camera, Nobreza e Povo pela grande mercê, que lhe fizera por alvará de onze de Abril de mil setecentos e cincoente e nove annos, de que considerando a situação natural povoa-ção , e circunstâncias que concorrem na villa de Aveiro e nos seus habitantes, e folgando pelos ditos respeitos , e por outros, que inclinarão a sua real benignidade de lhe fazer honra , e mercê, havia por bem de erigir em Cidadões e Moradores e que assim a nomeassem, e lhe guardassem a seus cidadões, e Moradores della, todos os privilégios , franquezas e liber-dades que tem as outras cidades deste reino, e os cidadões e moradores dellas, sem hirem contra elles em parte , ou em todo, porque assim era a sua vontade mercê, ordenando no mesmo alvará que sepassasse carta em dois diferentes exem-plares, asignados pelo mesmo senhor, passsados pela chan-cellaria, e sellados com o sello pendente della, para que hum delles se guardasse no Arquivo da mesma cidade, e o outro se remetese á Torre do Tombo. E que na mesma carta sobredita lhe incumbira também a mesma Camara que suplicasse a S. Mag. que perdoasse os novos direitos, que se deviam pa-gar pela declarada graça, visto ser feita pelo mesmo Senhor, por grandeza sua e sem suyplica desta villa;e que executando huma, e outra coisa , que a Camara lhe incumbira , e roga-ra, beijara a mão de S. Mag. e do mesmo senhor, obtivera a mercê de se perdoarem os novos direitos como se via na carta, que no mencionado alvarás e mandava passar, p. se guar-dar no Arquivo desta terra;a qual carta apresentou dada aos vinte e nove do mês de Julho de mil setecentos e cincoente e nove, assinada por S. Mag. que D. guarde e passada pela Chancellaria e sellada como selllo pendente:e agradecendo a Camera ao dito João Sousa Ribeiro da Silvera o grande zellho com que se tinha portado na execução do que lhe in-cumbio na certeza que o desempenharia sendo rogado; pois sem o ser o tinha movido o seu zello e amor por esta pátria a abrir a nova barra dela com summo desembolço seu, só a

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fim de livrar dos grandes danos, que lhe causara o tapar-se a barra antiga, foi cumprida a carta régia. E logo levantando-se em pé todos os assistentes foi lida em voz alta pelo Porteiro desta cidade; e nela se houve por publicada dita carta régia; e se determinou que houvessem luminárias três noites, que principiam hoje, e os mais sinais de alegria que se tinham encarregado ao vereador mais moço, , como Juiz da Festa. E que em acção de graças, e por preces pela saúde de D. José I que Deus Guarde, que esta, e outras muitas mercês tinha feito a esta cidade, se fizessem as festas da Igreja e procissão , que se tinha ordenado, e disposto para o dia de hoje destina-do para a publicação da erecção desta terra em Cidade;e de mandaram fazer este termo. E eu André Botto Deça Telles, escrivão da Câmara o fiz escrever e subscrevi

Assinam: Miguel Pereira Padrão Castro Padrão, Diogo Luís Rangel de Quadros, João Egas Bulhões e António da Costa.155

Rezava o referido Termo de Elevação de Aveiro:

155 Livro de actas da CMA, p. 60.

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Fig. 33, 34, 35 – Termo de elevação a cidade da vila de Aveiro (entregue a João

Sousa Ribeiro).

A Gazeta de Lisboa, de Outubro de 1759, dava conta dos acon-tecimentos, inserindo circunstanciada notícia da graça concedida por sua majestade, elevando a vila de Aveiro a cidade, como se reproduz em seguida:

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Fig. 36, 37 – «Gazeta de Lisboa», Outubro de 1759.

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conclusão

Por tudo quanto expusemos e comentámos acima, aqui chega-dos perturba-nos o não descortinar das razões porque esta figura, das mais notáveis da História de Aveiro e região, ilustre benemérito na dádiva — tanto material como no pundonor — com que se bateu pela resolução dos graves problemas que afligiam os seus conterrâneos, ter sido rapidamente esquecida pelo tempo.

Se é certo que tudo é o que somos, e que assim o deveria ser nos tempos que se seguirão ao desaparecimento físico do personagem. Mesmo que na diversidade de opiniões seja mais ou menos desbota-da a figura (ou exaltada em excesso), é difícil apagar o rasto de uma figura tão polifacetada, desassossegada, consciente da necessidade de intervir perante uma certa inconsciência colectiva, angustiada perante o sofrimento dos indefesos. E que age — de um modo talentoso e enérgico, motivado tão-somente por uma inquebrantável vontade de ser útil à grei.

Estranho, é pois o facto de, depois de se terem feito ouvir (in-cluso nos púlpitos da Santa Igreja) as maiores e mais troantes elegias e encómios, ao acto de João Sousa Ribeiro, considerado de grande «uti-lidade» (benefícios) para a Real Coroa e bem público», que lhe valeu o crisma de «Pai da Pátria» atribuído pelas populações ribeirinhas, tal não tenha sido concretizado, objecto de perpetuação para memória futura. Ora, a verdade é que as populações, em uníssono, chegaram, como referimos, a reclamar o erigir estátuas suas (não uma, mas várias, distribuídas pelas vilas da região lagunar) com o fito de lembrar aos vindouros o (seu) exemplo de dedicação e altruísmo, cantados em po-emas que correram por toda a região a dar conta do feito. Vertido em hiperbólicas, épicas, sublimes e grandiloquentes, frásis. Verdadeiros epicédios feitos em vida, de deificação da personagem, à boa maneira do século xviii.

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Mas facto é que nem Aveiro lhe foi condigna, nem foi apro-priadamente perpetuado, simplesmente o seu nome no toponímico de uma qualquer das suas praças ou de uma simples tabuleta em uma qualquer das suas muitas artérias.156 Ílhavo, que serviu como ilustre capitão-mor e onde deixou a maior «casa» apalaçada da hoje cidade, onde hoje está instalada a Biblioteca Municipal — à espera de patro-no — nada tem de registo, material ou imaterial, que relembre o seu grande capitão.

Tentámos por todos os meios decifrar o mistério desta ausência confrangedora.

Colocamos aqui, depois de não termos encontrado razões cer-tas, absolutas, algumas hipóteses.

Como primeira hipótese surge a relação próxima de Sousa Ribeiro com o Marquês e da queda deste aquando da «Viradeira» 157 (4 de Março de 1777). Sousa Ribeiro, como dissemos, terá falecido em 1772. Assim, os tempos pós Pombal terão sido de «bota-abaixo» da sua figura e de quantos lhe teriam sido próximos, como é vulgar suceder em tempos de infantil volubilidade. Portugal continuava, ain-da, fanático. O iluminismo era tão-somente muito ténue. E aquilo que era «o povo» estava ainda, só e apenas, a surgir de entre as trevas substituindo a plebe inconsciente da sua qualidade de cidadania. Por isso esses tempos subsequentes terão sido pouco propícios a preservar na memória aqueles que terão sido os exemplos da nova classe pro-prietária e mercantil que se propôs fazer um país igual aos da Europa. A queda de Pombal terá sido tão fanaticamente fragorosa como terá sido o seu exaltamento, por vezes excessivo. E só passados cem anos,

156 Na rua que corria em frente à sua «casa do Terreiro», actual Governo Civil, uma tabule-ta refere a rua Cap. João Sousa Pizarro, como viu, casado com a filha mais nova de João Sousa Ribeiro, Inês Magalhães.

157 A maneira conflituosa como em períodos deste tipo se fazem apagar os antigos valores, mostram a intenção e má fé dos novos mandantes. Ao fim e ao cabo são apenas alterações sociais sem autenticidade.

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em1882, a sua figura entrará definitivamente para o livro dos grandes deste país, como uma das suas figuras mais iluminadas.

É pois uma das hipóteses possíveis, tendo contra ela a posição de destaque que o seu descendente (primeiro Visconde de Almeidinha) terá tido aquando das lutas liberais. João Carlos Amaral, filho da neta de João Sousa Ribeiro, D. Benedita, honrou, e de que maneira, o nome do seu antepassado. Mas certo é, ter sido, ele também esquecido no vínculo da memória aveirense.

Uma outra hipótese que enunciamos terá sido a proeminência da família Rangel de Quadros e as possíveis más relações de alguns dos seus membros com Sousa Ribeiro.

Não se pode esquecer que Rangel de Quadros fazia parte dos grandes de Aveiro que não aceitaram o desafio de Sousa Ribeiro para que os «maiores» da Vila suportassem com os seus cabedais a obra da abertura da Barra.

E Rangel de Quadros será mesmo substituído por Sousa Ribeiro como juiz proprietário da Alfândega de Aveiro.

Com alguma curiosidade anotamos o facto de um descen-dente daquele, José Reinaldo Rangel de Quadros Oudinot, nos seus Apontamentos Históricos,158 obra de valor inquestionável para Aveiro, apenas e por razões de menor interesse tenha citado Sousa Ribeiro, relegando-o para lugar secundário no historial de Aveiro (pp. 375, 376 e 501), o que não deixa de nos deixar perplexos. A preponderância, política económica e social desta família já destacada no século xvi po-derá ter estado na razão do apagamento do nome de Sousa Ribeiro.159

Outra e derradeira hipótese — e talvez a mais pertinente por-que muito comum — pode basear-se na costumada ingratidão de-pois de passado o momento da exultante glória. A História tem ten-dência a esquecer e negar factos certos, sendo, por vezes, encaminhada

158 Quadros Oudinot: Aveiro – Apontamentos Históricos, ed. CMA, 2009.

159 Se bem que não desconheçamos que uns laços de parentesco tenham ligado as duas famílias.

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por veredas do erro ou da ilusão. Com registo certo, os reis na sua vã glória, ou os santos com o seu halo celestial provindo da crença. Por vezes, na sombra, ficam os que foram grandes, mas por despeito ou outro acidente de percurso ficam sem direito a consagração depois da morte, ainda que em vida tenham sentido o jus do agradecimento co-lectivo daqueles a quem devolveram a esperança sem a qual não existe sentido para a vida.

Terá pois, sido, João Sousa Ribeiro, esquecido por um olvido inconsciente daqueles que, como diz Heine, «depois das grandes tra-gédias, acabam sempre por se assoar», numa aclara alusão à inconsci-ência universal da humanidade (?).

Leva-se o defunto ao cemitério e parece que na volta se esqueceu, já, a dimensão do seu exemplo.

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João sousa ribEiro EM datas

1200 Data em que o cordão de areias do litoral chega à Torreira (actual)

1318 Primeira representação, conhecida, do litoral português

1445 Escritura de doação de D. Jorge, a frei Álvaro Camelo, da ilha da Testada

1490 Maio 12 Data em que D. Jorge deixa Aveiro e vai para a corte

1491 Julho Data da morte do príncipe herdeiro D. Afonso

1495 Setembro 29 Testamento de D. João II a favor de seu filho D. Jorge

1500 Data em que o cordão de areias já se encontrava em frente da actual S. Jacinto

1500 Maio 27Confirmação por D. Manuel I do testamento de D. João II, a favor de D. Jorge

1515 Já referenciada, nesta data, a ilha do Monte Farinha «contra a foz»

1524 D. Jorge de Lencastre cede a ilha do Posso a Simão Henriques

1536 O Papa Paulo III institui o Tribunal da Santa Inquisição a pedido de D. João III

1547 Concessão do titulo nobiliárquico do Ducado de Aveiro, por D. João III, ao filho de D. Jorge Lencastre

1548 Referido nesta data estar a barra situada perto da actual Costa-Nova (a sul)

1549 Data em que é já referida a capela da Sr.ª das Areias

1563 Outubro 16D. Raimundo, quarto Duque de Aveiro, será executado em estátua, porque ausente do país

1581 Dezembro 7 Entrega do Ducado de Aveiro a D. Juliana

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1643 A barra situa-se na actual Vagueira

1643 Data gravada numa placa, encontrada nas escavações que dizia «Rei de Portugal D. João IV»

1668 Junho 22 D. Pedro de Lencastre toma posse do ducado

1685 A barra situa-se, nesta data, no local conhecido por Quinta do Inglês

1685 Refere-se que em 1650, existiriam 5700 a 6000 habitantes na villa de Aveiro

1686 A villa de Aveiro declara-se incapacitada de pagar o cabeção das sisas (5000 cruzados)

1699 Abril 1 Nascimento de João Sousa Ribeiro

1699 Abril 13 Nascimento de Sebastião José de Carvalho e Mello

1700 Nascimento do irmão de João Sousa Ribeiro, Francisco

1706 Início do reinado de D. João V

1711 Domingos André, avô de JSR, afora à Irmandade do Santíssimo, terras e outros

1720 Fundação da Academia Real da História Portuguesa

1721 Memórias Paroquiais de Ílhavo

1726 Nesta data a barra situava-se junto a Mira

1727 Abril 26 JSR é elevado a Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo

1732 Novembro 20 Nomeação do Grupo de Familiares do Santo Ofício

1732 Julho 7 D. Gabriel de Lencastre toma posse do Ducado

1736 A ilha do Posso vai parar à posse de Aires de Sá e Mello e sua mulher

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1737 JSR adquire a Aires de Sá 7/8 da ilha do Posso

1739 JSR adquire o restante 1/8 da ilha do Posso

1741 Janeiro 26Informação de Sebastião José, enviada de Londres, informando fim da proibição de exportação de cereais

1742 Abril 26 JSR é nomeado Familiar do Santo Ofício

1743 JSR casa com D. Brites Joana da Silveira

1749 É atribuída a «Casa de Aveiro» a D. José Mascarenhas

1750 Criação das ordenanças por D. Sebastião

1751 Maio 20Provisão à Villa de Aveiro de dous reais em cada coartilho de vinho e dous em cada arratel de carne

1752 Decisão de Pombal de enviar Carlos Mardel para estudar plano para abertura da barra

1755 Novembro 1 Terramoto de Lisboa

1755 Julho 10Abertura do comércio do Brasil a nacionais

1755 Junho 11D. José I dá posse do padroado da Igreja de Ílhavo, ao prior João dos Santos

1755 10 D. José I investe D. José de Mascarenhas Duque de Aveiro

1757 Janeiro 27D. José I autoriza JSR a iniciar os trabalhos de abertura da barra

1757 Dezembro 8 Data da abertura da barra, na Vagueira, por JSR

1757 Dezembro 17 O Senado de Aveiro envia carta a JSR, agradecendo o seu feito

1757 Dezembro 20 A «Gazeta de Lisboa» dá notícia do feito de JSR

1757 Sublevação e motim na cidade do Porto

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1758 Fevereiro 1 Lei que determina a construção de s faróis na costa portuguesa

1758 Abril 30 As Memórias Paroquiais de Ovar referem a abertura da barra

1758 Maio 20 D. José I isenta os habitantes de Aveiro de pagar dupla sisa

1758 Maio 14 Festejos em Aveiro, em regozijo pela abertura da barra

1758 Nesta data noticia-se «as boas condições em que se encontrava a barra»

1758 Setembro 22 Xavier do Rego faz descrição da situação da barra

1758 Setembro 3 Tentativa de regicídio contra D. José I

1758 Dezembro 16Suspensão dos magistrados oficiais «postos» pelo Duque de Aveiro

1759 Concessão da liberdade para os índios

1759 Pombal decreta a constituição de um grupo técnico para estudar a consolidação da barra, no qual inclui JSR

1759 Maio 28Carta enviada por JSR a Pombal dando-lhe conta dos trabalhos

1759 Setembro 14Celebrado o contrato de encabeçamento das sisas da Alfândega de Aveiro

1759 Data da cartografia da ria de Aveiro executada por F. Polchet e L. Alincourt

1759 Maio 18Parecer de Manuel da Maia sobre as obras a levar a cabo para sustentabilidade da barra

1759 Abril 18 Parecer de JSR sobre a pretensão de se consolidarem as obras

1759 Janeiro 12Ordem de incorporação de todos os bens e propriedade do ducado na Coroa Real

1759 Janeiro 6O povo, ordens, clero e nobreza dirigem-se à Igreja de S.Miguel jurar fidelidade a D. José I

1759 Abril 11 Data da elevação de Aveiro a cidade

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1759 Outubro 6A Gazeta de Lisboa dava conta do acontecimento da subida de Aveiro a cidade.

1760 Criação do Erário Régio

1761 Setembro 20 Auto de fé do jesuíta Malagrida

1768 Data em que se reconhece ser impossível manter a barra na Vagueira

1770 Criação de duzentas unidades manufactureiras

1772 Novembro 15 Falecimento de JSR

1773 Abertura de 40 escolas secundárias e 200 escolas primárias

1773 Maio 20Passada carta de Familiar do Santo Ofício a Manoel Sousa Ribeiro (filho de JSR)

1774 Maio 4 Plano de Jacob Severim para abrir nova barra

1777 Março 4 Deposição do Marquês de Pombal (Viradeira)

1780 Reconhecida a existência de 30 000 cavaleiros na Ordem de Cristo

1780 Plano de Iseppi para abrir nova barra

1788 Plano de Valleré para abrir nova barra

1802 Nomeação de Reynaldo Oudinot para estudar solução para nova barra

1808 Abril 3 Abertura da barra actual

1835 Março 21Data em que foram definidas novas demarcações para o litoral entre Ovar e Mira

1839 Abril 17Estendido a todo o distrito o imposto do Real de Vinho para as obras da barra

1855 Março 5Nomeação de João Carlos Osório de Amaral e Sousa a«Par do Reino»

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1855 Setembro 28Nomeação de João Carlos Osório de Amaral e Sousa de «Grande de Portugal»

1865 Carta de nomeação de João Carlos Osório de Amaral e Sousa, primeiro Visconde de Almeidinha

1872 Junho 24 O Palácio do Terreiro é consumido pelo fogo

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índicE

PóRTICO ................................................................ 7

CAPÍTULO I ...........................................................11

CAPÍTULO II ....................................................... 125

CONCLUSãO ...................................................... 155

JOãO SOUSA RIBEIRO EM DATAS ................ 159

BIBLIOGRAFIA .................................................. 165

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PuBliCAçõeS editAdAS

· Nas Rotas dos Bacalhaus

· Ílhavo – Ensaio Monográfico do Séc. X ao Séc. XX

· O Labareda

· Costa-Nova – 200 Anos de História e Tradição

· Guilhermino Ramalheira – O Discurso da Paixão

· Ângelo Ramalheira – O rigor científico numa personalidade de eleição

· Alexandre da Conceição – Poeta da Terra Absurda

· A Terra da Lâmpada Vols. I, II, III, IV e V

· Embarcações que tiveram berço na Laguna - Arquitectura Naval Lagunar

[email protected]

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Romance

Relatirio – M.A.CorreiaZelda I – Ana Isabel NevesO quadro – João Mendes LealAfinal onde está Deus – José Alberto JaneiroA conspiração mercuriana – Artur Guilherme Carvalho e Carlos Manuel AzinheiraO crime de uma sábia – Agostinho Borges GomesEsse tal mundo – Luis RiosSem Certezas – José Calheiros CunhaCamarada Choco – António Miguel Brochado de MirandaChocolate Não Amargo – Fernando Cunha AraujoAs Damas dos Cipestres – Vanda Novais e Isabel VilarinhoComeçar Pelo Intervalo – José Alberto SilvaPela Rua do Sonho – Adélia PiresA Doce Flor do Hibisco – Maria do Pilar FigueiredoGoor - Crónica de Feaglar II – Pedro VenturaVida Curta – A.S.CoutoMedo de ser mais feliz ainda – Maria Luísa Piteira de BarrosEstórias em Vão – António Pedro MoreiraAo Encontro do General – Ana RodriguesUma Vida em Segredo – Isabel GonçalvesNo Fundo dos Teus Olhos – Mónica MarquesO Enjaulado – Fernando DadimO Outono da alma – Lagoas da SilvaPais Desumanos – Maria Alice Antunes Mendes GouveiaPedra dura – Vera Lúcia da Rocha RibeiroO renascer da Aurora – Estrela Estanislau RodriguesO Terceiro Prémio – Armando AlmeidaJá é Tarde há Muito Tempo – Enrico-Maria ParodiA Onze de Setembro – Virgílio SaraivaCamarada Choco 2 – António Miguel Brochado de MirandaO Conto Interrompido – Virgílio Silveira MachadoVento de Emoções – Andreia AndradeO Sabor da Marmelada Fresca – Fernando Mascarenhas Império Terra - O Príncipio – Paulo FonsecaDo Alto das Ameias – Idalécio CaçãoO Crime de Cerejeiro – Joaquim SarmentoA Queda do Malhado – Agostinho NunesO Nariz do Mundo – José da Costa OliveiraGrito – Lígia BastosKazumbi – Helena LeoteUm Tango Duas Vidas – João Nogueira DiasNa Terra do Comandante Guélas – António Miguel Brochado de MirandaOs Lírios da Vida – Adnilo Lotus de CarmimA Fazenda Maldita – FandeDebaixo do Tapete – Carlos Mateus

A Última Mensagem – Leal Coutinho O Drama de Sofia – Luís AbisagueSofia e o Sonho – Hermínio Subtil Serra Fantasmas de Uma Revolução – António Sá GuéPara Além da Carne – Bruno Abel OliveiraPelas Tuas Mãos – Ana AndradeO Velho e a Elena Romena – José Matos GuitaCaminhos de Jasmim e Rosa-Chá – Helena GuimarãesDiversas Formas de Amar – Maria Alice GouveiaMetro Quadrado – Fernando CartolaOutras Histórias – Paulo Frederico GonçalvesAs Fronteiras do Absurdo – Lagoas da SilvaEm Nome do Pai, do Filho e… – Virgílio SaraivaA Montra das Vidas Errantes – Miguel Santos TeixeiraA Mulher Lobo que vestia cor-de-rosa – Carlos EdgarO Cavaleiro de Napoleão - A Batalha de Wagram – Duarte Pacheco de SouzaMontes e Fontes – Maria Pilar do Figueiredo A Casa das Heras – Inês SilvaO Gravador da Morte – Sara BonvalleNão Há Dois Caminhos Iguais – Aline SantosSonhos de Um Homem – Andreia AndradeNão Morras Até ao Verão – Manuel DiasPorque a Vida Não É Um Conto de Fadas – Isabel PinhoCafeína – Fernando Mascarenhas Lucidez de Pensamento – João M. Brito SousaUma Geração à Procura do Caminho – António CardalInstantes Inquietos – Pedro MorgadoHotel das Pedrinhas – Jardim FernandesVidas Desencontradas – Marta AmadoAscenção e Queda – Maria Fátima SoaresO Eco da Vida – Maria EstevesDespedimo-nos então… – Maria IdalinaViagem ao fundo do coração – Júlia SantiagoSentimentos Perigosos – Miguel AreiasO Cuco – Alda GonzagaA Rosa que te dei – Nuno Gonçalo BritoConflito e Retaliação – Maria Fátima SoaresMistério em Connellsville – Beatriz Neves BarrocaShadow - O Confronto – Joana Miguel FerreiraSempre te Esperarei – Adilson SantanaPretérito Imperfeito – Patrícia PrataD. Luísa Francisca de Gusmão Medina Sidónia - Rainha de Portugal – Maria do Pilar VasconcelosNo Outro Lado da Vida – Agostinho Borges GomesO Primeiro Português no Tibete – Hélder TrincheirasNuvens Cinzentas de Maio – Álvaro Góis

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