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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CAMPUS ARAPIRACA
UNIDADE EDUCACIONAL PALMEIRA DOS ÍNDIOS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Jôsy Alves Rocha
INTERVENÇÕES PSICOSSOCIAIS NO PROCESSO IDENTITÁRIO DE
MULHERES NEGRAS RURAIS DA COMUNIDADE AKANNI: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA
Palmeira dos Índios
2018
Jôsy Alves Rocha
INTERVENÇÕES PSICOSSOCIAIS NO PROCESSO IDENTITÁRIO DE
MULHERES NEGRAS RURAIS DA COMUNIDADE AKANNI: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA
Monografia realizada pela aluna Jôsy Alves
Rocha, como requisito para obtenção do título de
formação em Psicologia, orientada pela Profª
Drª. Flávia Regina Guedes Ribeiro.
Palmeira dos Índios
2018
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Unidade Palmeira dos Índios
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Kassandra Kallyna Nunes de Souza (CRB-4: 1844)
R672i Rocha, Josy Alves.
Intervenções psicossociais no processo indenitário de mulheres negras
ruais da comunidade akanni: um relato de experiência/ Josy Alves Rocha,
2019.
45 f.
Orientadora: Flávia Regina Guedes.
Monografia (Graduação em Psicologia) – Universidade Federal de
Alagoas. Campus Arapiraca. Unidade Educacional de Palmeira dos Índios.
Palmeira dos Índios, 2018.
Bibliografia: f. 68 – 70
1. Psicologia. 2. Mulher negra. 3. Negros – Brasil – Identidade racial. I.
Guedes, Flávia Regina. II. Título.
CDU: 159.9
AGRADECIMENTOS
Este trabalho encerra um ciclo muito importante em minha vida, de grandes
aprendizagens, mas, sobretudo de muita perseverança. Em nada foi fácil! Porém, os
motivos para agradecer são a tradução dos motivos pelos quais cheguei até aqui.
Agradeço a Deus, a quem eu recorria em orações.
Agradeço a meu pai Jorge Rocha (in memorian) pelas lágrimas que
derramou de felicidade a me ver passar no vestibular, mas que tão pouco pôde me
acompanhar nessa trajetória.
À minha mãe Gilvanda, que sempre foi meu sustentáculo e por não ter me
permitido desistir diante dos obstáculos.
Aos meus irmãos, Geisy, Joyce e Jordan que sempre foram e sempre serão
minhas melhores companhias. E a meu sobrinho Jorginho, “a alegria da casa”.
Aos meus avós Loló e Olímpia, Tio Tiêde, Tia Tielma, Tia Zelma e Tia Jó, os
quais acreditaram em mim e não mediram esforços para me ajudar.
À minha prima Laís que me acolheu em sua casa por tanto tempo e me
ofereceu seu apoio e sua presença quando por tantas vezes precisei.
Às amigas de estrada, curso, projeto e em breve de profissão Andressa
Goes, Katianne da Hora, Andaíza Pascoal e Ivone Santos. Sucesso, meninas!
À professora e orientadora Flávia Ribeiro que me acompanhou em diversos
projetos, estágio e nesta monografia e por seu comprometimento profissional e
pessoal com a Psicologia e para com aqueles que necessitam desta.
Aos demais professores e colegas do Curso de Psicologia da UFAL –
Unidade Palmeira dos Índios pelas contribuições dadas e afetividades desenvolvidas
ao longo do curso.
Por fim, agradeço ao meu esposo Eder Melo, por ter sido nesta jornada um
companheiro inestimável, que me motiva a buscar sempre mais, que compreende
minhas ausências nos dias de estudo e me segura nos dias de aflição.
À comunidade Akanni pela recepção e acolhimento da equipe extensionista
e principalmente pelos conhecimentos e histórias de vida compartilhadas.
Por todos vocês e por todos aqueles a quem terei a missão de tornar a vida
mais amena selo meu compromisso com a Psicologia.
A todos meu “MUITO OBRIGADA”!
As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da servidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.
(Thiago de Mello)
RESUMO
Este trabalho de conclusão de curso apresenta a experiência do projeto de extensão desenvolvido em uma comunidade negra rural que tinha como objetivo realizar intervenções psicossociais no processo identitário de mulheres negras, a fim de desenvolver possibilidades de vivencias reflexivas e educativas que propiciassem a essas mulheres o empoderamento no processo de reconhecimento de suas identidades como mulheres negras rurais. Este projeto foi realizado por uma equipe de quatro alunas do Curso de Psicologia da UFAL – Unidade Palmeira dos Ìndios, na comunidade Akanni, localizada na cidade de Santana do Ipanema, estado de Alagoas. O projeto foi desenvolvido através de oficina vivencias e dialógicas, que valorizava as memórias sociais e afetivas do grupo de mulheres participantes e teve como embasamento teórico metodológico a Psicologia Social, a partir do estudo da produção de sentidos na perspectiva das práticas discursivas apresentada pelo Construcionismo Social. Nesta monografia utilizamos os diários de campo desenvolvidos no projeto como material para análise, a partir dos quais definimos três aspectos a serem apresentados: a história da comunidade enquanto percepção de território identitário; as cantigas de trabalho enquanto registro histórico-cultural e a “mulher negra” enquanto categoria de enfrentamento ao racismo e machismo na sociedade atual. Para chegarmos em tal análise nos desdobramos sobre os conceitos de raça e gênero, culminando inevitavelmente com as discussões apontadas pelo feminismo negro. Perpassamos pela constituição das comunidades negras rurais no Brasil, superando o conceito de quilombo, o compreendendo numa concepção ressemantizada, identificando-o como remanescentes de quilombo.
Palavras-chave: Identidade. Mulheres Negras. Sentidos. Quilombo.
ABSTRACT
This dissertation presents the experience of the extension project developed in a rural black community that had as objective to carry out psychosocial interventions in the identity process of black women in order to develop possibilities of reflective and educative experiences that would give these women the empowerment in the process of recognizing their identities as rural black women. This project was carried out by a team of four students from the Psychology Course of UFAL - Palmeira dos Índios Unit, in the Akanni community, located in the city of Santana do Ipanema, Alagoas state. The project was developed through workshops and dialogical experiences, which valued the social and affective memories of the group of women participants and was based on methodological Social Psychology, from the study of the production of meanings in the perspective of discursive practices presented by Social Constructionism . In this monograph we use the field diaries developed in the project as material for analysis, from which we define three aspects to be presented: the history of the community as a perception of identity territory; the songs of work as a historical-cultural record and the "black woman" as a category of coping with racism and machismo in today's society. In order to arrive at such an analysis, we deploy on the concepts of race and gender, culminating inevitably with the discussions pointed out by black feminism. We went through the constitution of the rural black communities in Brazil, surpassing the concept of quilombo, understanding it in a resemantized conception, identifying it as remnants of quilombo.
Key words: Identity. Black Women. Senses. Quilombo.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 08
2 IDENTIDADE NEGRA: DIMENSÕES CONSTITUINTES 10
2.1 Relações Raciais no Brasil: Uma breve discussão 13
2.2 Relações de gênero e a mulher negra 18
2.3 Contextualizando as comunidades negras rurais no Brasil e a
Comunidade Akanni
24
3 O CONSTRUCIONISMO SOCIAL E O DIÁRIO DE CAMPO COMO
UMA PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA
31
3.1 Psicologia Social e o Construcionismo 31
3.2 Diário de Campo: uma proposta teórico-metodológica 38
4 RELATOS DA EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO
AKANNI
43
4.1 Conhecendo a comunidade 44
4.2 Cantigas de Trabalho 50
4.3 Ser mulher negra 59
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 65
REFERÊNCIAS 67
8
1 INTRODUÇÃO
Esta monografia foi inspirada no projeto de extensão “Intervenções
psicossociais no processo identitário de mulheres negras rurais” realizado por quatro
alunas do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas - Unidade
Educacional Palmeira dos Índios, o qual tinha como objetivo realizar oficinas
vivenciais e dialógicas com mulheres em uma comunidade negra rural no sentido de
fazê-las ressignificar e produzir novos sentidos acerca do seu pertencimento
identitário étnico-racial. A escolha deste projeto como tema da monografia se deu a
partir de minha identificação pessoal com os temas trabalhados, bem como pela
sensação de que o material colhido continua a nos fornecer, a cada releitura, novos
olhares e percepções acerca da comunidade.
O referido projeto foi desenvolvido pelas alunas Jôsy Alves Rocha, Andressa
Santos de Goes, Katianne da Hora Moreira e Andaíza Pascoal dos Santos e
orientado pela professora Drª. Flávia Regina Guedes Ribeiro. Para a realização
deste, optamos por uma comunidade negra situada na cidade de Santana do
Ipanema – AL, pela proximidade com a residência das alunas extensionistas. Assim,
entramos em contato com a Secretaria de Agricultura deste município, a qual indicou
a comunidade, bem como mediou a inserção da equipe na comunidade.
Akanni1 é uma comunidade negra rural, localizada no município de Santana
do Ipanema, situada no médio sertão alagoano. É uma comunidade matrilinear que
tem como líder familiar e comunitária a senhora aqui identificada como Dona Rosa.
Alcançamos 16 participantes para nosso projeto, as quais são mulheres com faixa
etária entre 16 e 70 anos, com raras participações de homens da comunidade. Ao
todo foram realizados 22 encontros na comunidade. Contudo, apresentamos e
analisamos neste trabalho apenas 08 encontros que suscitaram as questões mais
relevantes dentro dos objetivos deste trabalho.
A proposta desta monografia é, portanto, apresentar um levantamento dos
elementos constitutivos da identidade psicossocial de mulheres negras,
compreendendo como estes elementos manifestam-se em suas vivências
1 Nome fictício da comunidade, escolhido para este trabalho pelo seu significado: Akanni tem origem
iorubá e significa "encontro frutuoso; o nosso encontro traz poder". Por Joyce Melo. Disponível em: https://correionago.com.br/portal/cartorio-pode-rejeitar-nome-de-origem-africana. Acessado em 21 de outubro de 2018.
9
cotidianas. Na concepção que adotamos de identidade, esta se configura como um
processo amplo que envolve dimensões pessoais e sociais que se constrói no tempo
histórico e que se afirma no sentido de pertencimento que evocamos em referência
ao nosso grupo de pertencimento.
Em sua estrutura dividimos este trabalho em três capítulos. No primeiro
fazemos uma exposição de como tem caminhado nas últimas décadas os conceitos
de raça e gênero, o que culmina inevitavelmente com as discussões apontadas pelo
feminismo negro.
Fazemos ainda um apanhado da formação das comunidades negras rurais
no Brasil, perpassando pelo conceito de quilombo ressemantizado, a fim de
desconstruir do imaginário social a visão do quilombo enquanto agrupamento de
escravos em fuga e de um espaço em desordem, passando a entender estas
comunidades a partir de uma nova forma de organização social que configura-se
como um espaço de resistência e sobrevivência coletiva, passando a ser chamada
de Remanescentes de Quilombo.
No segundo capítulo, abordamos a Psicologia Social, enquanto estudo da
produção de sentidos e a análise das Práticas Discursivas, associada à perspectiva
Construcionista. Adotamos esta abordagem por valorizarmos o conhecimento que as
pessoas têm da realidade e por esta remeter, através das práticas discursivas, aos
momentos de ressignificação, de rupturas e de produção de sentidos. Apresentamos
também o Diário de Campo como nosso instrumento de pesquisa, apontando os
limites e possibilidades do uso deste.
Por fim, no terceiro capítulo trazemos os Diários de Campo produzidos nos
encontros do projeto de extensão supracitado, bem como fazemos alguns
apontamentos acerca de três elementos emergidos destes diários: A história da
comunidade enquanto percepção de território identitário; as cantigas de trabalho
enquanto registro histórico-cultural e a “mulher negra” enquanto categoria de
enfrentamento ao racismo e machismo na sociedade atual.
Por fim, faremos algumas considerações finais sobre este trabalho, expondo
nossas reflexões diante de todo este percurso.
10
2 IDENTIDADE NEGRA: DIMENSÕES CONSTITUINTES
“Você pode ascender socialmente,
ter salário bom e sair da periferia,
mas não esqueça que você é negro.
Senão, alguém vai te lembrar da
maneira mais perversa possível. Por
isso, assuma sua negritude”.
(Vovô do Ilê2)
Identidade é um termo utilizado para referir-se a subjetividade de alguém em
sua demonstração de pertencimento a um lugar, uma cultura ou grupo específico. É
um conceito importante ao se tratar de referências culturais de um determinado
grupo e se manifesta nas mais diversas práticas, como a linguagem, rituais,
culinária, religiosidade, etc. Portanto, “a identidade não é algo inato. Ela se refere a
um modo de ser no mundo e com os outros”. (GOMES, 2005, p. 41)
A identidade pode ainda ser compreendida como uma tomada de
consciência da ocupação de um determinado espaço social que precisa ser
reivindicado, defendido. Portanto, é um termo comumente utilizado por povos
negligenciados como forma de visibilidade social. “Dessa forma, a ênfase na
identidade resulta, também, na ênfase da diferença. Ao mesmo tempo em que a
busca da identidade por parte de um grupo social evoca a diferença deste em
relação à sociedade ou ao governo ou a outro grupo e instituição [...]”. (GOMES,
2005, p. 41)
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por sua vez, define identidade coletiva pela referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados. Trata-se, portanto, de uma identidade em termos étnicos, de uma existência coletiva em consolidação, que se fundamenta em uma autoconsciência identitária, cujas demandas por direitos se revelam por meio da organização social e política, que tem no território uma de suas formas mais expressivas de afirmação. (MARQUES; GOMES, 2013, p. 143)
Assim, este capítulo propõe-se a compreender os aspectos que compõem a
identidade dos povos “remanescentes de quilombo”, considerando o percurso
histórico de seus antepassados nas terras brasileiras.
Na construção da sociedade brasileira, coube aos negros escravos a contribuição nos trabalhos mais duros, como nas lavouras, nos canaviais, na busca do ouro e, após a abolição, mesmo na condição de libertos, com o preconceito presente, continuou a luta pela sobrevivência através de
2 fundador do primeiro bloco afro da Bahia.
11
trabalhos de ganhos e sem alguns direitos em relação à vida política e pública, não podendo votar e exercer cargos como deputado, juiz, delegado de polícia, magistrado, bispo e outros semelhantes.(SILVA; SOARES, 2011, p. 109)
O processo de constituição da identidade negra será aqui analisado
considerando identidade como um processo amplo que envolve dimensões pessoais
e sociais que se constrói no tempo histórico. Como afirma Gomes (2005, p. 42),
“reconhecer-se numa identidade supõe, portanto, responder afirmativamente a uma
interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de
referência”. Desta forma, precisamos compreender as dimensões que produzem os
sentidos de pertencimento a um determinado grupo.
Neste capítulo discutimos como as concepções de Gênero e Raça
subsidiam o processo identitário das mulheres negras no Brasil, em especial, das
remanescentes de quilombos e, posteriormente, faremos um resgate histórico da
formação das comunidades negras desde a época da escravidão até os dias atuais.
O capítulo organiza-se em volta de três questões centrais: 1) como a
concepção ou as concepções de raça, nos vários recortes temporais, influenciou a
exploração da mão de obra de negros inicialmente trazidos da África, no período
conhecido como “escravidão”, “escravismo” e/ou “escravatura”; e como, mesmo
após a abolição da escravatura, continuou a estigmatizar e marginalizar milhares de
pessoas em nome de um “racismo científico”, estereotipando as pessoas pelas suas
diferenças físicas, como a cor da pele, tipo de cabelo, etc. 2) como as relações de
Gênero, construídas social e historicamente, tem situado a mulher negra dentro de
uma categoria objetificada e estigmatizada duplamente, pela cor e sexo. 3) como as
comunidades negras se constituíram social e culturalmente ao longo dos tempos,
apresentando seus modos de resistência e de enfrentamento aos estigmas sociais,
a partir do processo de ressemantização e os direitos constitucionais ao território
ocupado. Cada questão é tratada em um subitem e consideramos, mais
especificamente, os estudos que abordam o papel da mulher nessa construção
histórica.
A discussão acerca dos conceitos que iremos apresentar se faz necessária
para compreendermos como o contexto social compõe um dos elementos do
processo identitário de um determinado grupo étnico, e como tem sido difícil
estabelecer um discurso coerente ao se referir ao pensamento racial no Brasil.
Assim, nos alerta Silva e Soares (2011, p. 100)
12
É obvio que uma reflexão acerca do tempo histórico e do momento no qual
esses conceitos foram pensados se faz necessária, como seres diretamente
influenciados pelo contexto, entendemos que a discussão acerca de uma
atitude, mentalidade ou forma de tratar o outro jamais deve se desgarrar
das amarras do tempo-espaço.
Segundo Gomes (2005, p. 43) “para entender a construção da identidade
negra no Brasil é importante também considera-la não somente na sua dimensão
subjetiva e simbólica, mas sobretudo no seu sentido político”, como sendo uma
“tomada de consciência de um segmento étnico racial excluído da participação na
sociedade, para a qual contribuiu economicamente, com trabalho gratuito como
escravo, e também culturalmente, em todos os tempos na história do Brasil”
(MUNANGA apud GOMES, 2005, p. 43)
As transformações conceituais que pensam o negro e a sua experiência no
continente americano são intensas, mesmo nas palavras mais comuns
dirigidas aos não-brancos, pretos ou pardos. Por exemplo, a simples
palavra “Negro” ganha um sentido preciso político e, mais que tudo,
ideológico, reúne todos os homens [e mulheres] que se afirmam
culturalmente com as raízes afro, e, mais ainda, agrupam aqueles que
sofreram e se identificam com a experiência negra vivida, mesmo fora da
África. (SILVA; SOARES, 2011, p. 105)
Os discursos de resistência e afirmação também são elementos fortemente
interligados a construção da identidade negra, como veremos nos próximos
subitens. Desse modo, duas importantes contribuições desses discursos são
apontadas a seguir: primeiramente, a construção de uma identidade negra, baseada
nos discursos de resistência, oferece a possibilidade de luta contra os processos de
aculturação e discriminação, como também possibilita um resgate das culturas
originalmente africanas (ou pelo menos parte dela); e, em segundo lugar, a busca
por uma identidade se junta a luta por uma sociedade mais democrática e igualitária
e “sem nenhuma disposição de servir às maquinações dos fascistas e dos falsos
democratas”. (SILVA e SOARES, 2011, p.108)
Nosso desafio com este capítulo é, portanto, compreender como se está
reelaborando as identidades negras na atualidade, a partir das trilhas percorridas
pelos conceitos de raça e gênero e de como as comunidades negras rurais vem se
constituindo frente às influencias externas, compreendendo-as dentro da perspectiva
do quilombo ressemantizado.
13
2.1 Relações Raciais no Brasil: Uma breve discussão
O tráfico de negras e negros africanos escravizados para trabalhar nos
canaviais brasileiros significou uma série de “anulações” da cultura/identidade
destes povos. A dominação do homem branco sobre o homem negro durante o
período escravagista não se limitou à esfera da força física, mas se propôs, também,
à criação de uma armadura ideológica com o objetivo de submeter os escravos aos
seus interesses comerciais.
Todo o percurso de captura, dominação, venda de homens, mulheres e
crianças escravizados, a lógica de trabalho escravo (obediência e submissão), e
mesmo o período após a abolição da escravatura é permeado por ritos e discursos
de esquecimento, abandono e negação da cultura negra originalmente africana. A
ancestralidade das religiões, dos costumes, línguas e etnias africanas são
difamadas em nome de uma cultura “branca”, cristã.
A exemplo destes ritos, Sousa et al (2011) diz que
No antigo Reino de Benin, as pessoas capturadas para embarcar nos navios negreiros eram obrigadas a dar voltas em torno da Árvore do Esquecimento. As mulheres, por cumularem mais memória, davam nove voltas, enquanto os homens a rodeavam sete vezes. No imaginário colonial, cumprir esse ritual era apagar a memória, era esquecer valores e crenças, era romper laços de identidade materiais e afetivos, e, acima de tudo, era perder a sabedoria herdada dos ancestrais. (p. 61, grifo do autor)
Outro exemplo para Turci (2010), são os relatos sobre a enorme felicidade
dos escravos ao aportarem no Brasil que era interpretado na época como se os
africanos estivessem alegres por se libertarem da vida pagã africana ao chegar ao
mundo cristão americano, quando estes apenas comemoravam o fim de uma
viagem longa e sofrida em navios que mantinham péssimas condições de higiene,
aonde muitos negros adoeciam e morriam.
Estes ritos e discursos possibilitavam aos homens brancos objetificar o
homem negro como uma mercadoria que faz parte do processo produtivo, negando-
lhes a rememoração de seus processos culturais diversificados, advindos de uma
África povoada por diversas etnias. Impedindo o homem escravizado de possuir
direitos básicos, impedindo-os de qualquer tipo de organização e resistência. Assim,
como diz Artur Ramos (1979, p.183 apud Silva e Souza, 2011, p.101) “para o branco
senhor, não havia povos negros diversos, mas apenas o negro escravo”. Toda essa
14
conjuntura levou a construção do termo raça, contrapondo a superioridade da raça
ariana, como a raça pura e a raça negra como uma espécie inferior, amaldiçoada.
O conceito de raça teve sua origem através de uma fundamentação biológica, dentro do paradigma da raça inferior e raça superior, reforçando através dos estudos e pesquisas de diversos cientistas, entre eles o cientista brasileiro Nina Rodrigues. A chamada ciência da época beneficiou um grupo de dominadores (minoria) em detrimento dos dominados (maioria), época em que os negros viviam ameaçados sob as ordens e a chibata do dominador. (SILVA; SOUZA, 2011, p. 102).
Nina Rodrigues foi herdeiro das influências do Conde de Gobineau (1816-
1882) no que ficou conhecido como Racismo Científico. O qual “reforça através de
pesquisas de medição do crânio que o povo negro seria uma espécie humana
inferior e que a mistura racial no Brasil levaria ao desaparecimento da população”
(SILVA e SOUZA, 2011 p. 102). Nesse sentido, a cor da pele passa no século XVIII
a ser utilizada como critério para fundamentar e dividir as populações humanas. Não
obstante com o passar do tempo, a cor da pele deixa de ser considerada critério
suficiente para determinar a raça, dessa forma, a partir do século XIX, são
acrescidos critérios de ordem morfológicas, tais como, a forma do nariz, dos lábios,
do queixo, do formato do crânio, o ângulo facial, etc.
Nesse contexto, Guimarães (2008, p. 64) questiona “O que é raça?” ao que
ele mesmo responde “depende. Realmente depende de se estamos falando em
termos científicos ou de uma categoria do mundo real. Essa palavra raça tem pelo
menos dois sentidos analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela
sociologia”.
A biologia e a antropologia física criaram a ideia de raças humanas, ou seja, a ideia de que a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, tal como o mundo animal, e de que tal divisão estaria associada ao desenvolvimento diferencial de valores morais, de dotes psíquicos e intelectuais entre seres humanos. Para ser sincero, isso foi ciência por certo tempo e só depois virou pseudociência. O que chamamos modernamente de racismo não existiria sem essa ideia que divide os seres humanos em raças, em subespécies, cada qual com suas qualidades. (GUIMARÃES, 2008, p. 64)
No entanto, como alerta Nogueira et al (2008, p. 04) “o conceito de raça
quando aplicado a humanidade causa inúmeras polêmicas, porque a área biológica
comprovou que as diferenças genéticas entre os seres humanos são mínimas, por
isso não se admite mais que a humanidade é constituída por raças”. A ciência nunca
conseguiu comprovar a ligação entre certa característica biológica e um
comportamento social, entre raça e desempenho físico e por aí em diante.
15
(MUNANGA, 2003). Contudo, ficou construída uma simbologia no inconsciente
coletivo que perpassa gerações e ainda mantém força no tempo atual.
Assim, Guimarães (2008, p. 65) garante que “as raças são, cientificamente,
uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da Sociologia ou
das Ciências Sociais, que trata das identidades sociais. Estamos assim, no campo
da cultura, e da cultura simbólica”. BRASIL (2004), apud Nogueira (2008)
complementa dizendo que o termo raça
tem uma conotação política e é utilizado com frequência nas relações sociais brasileiras para informar como determinadas características físicas, como cor da pele, tipo de cabelo, entre outras influenciam, interferem e até mesmo determina o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira. (p. 04).
Neste sentido, a compreensão de raça para a Sociologia corrobora com a
perspectiva de compreensão da identidade social desses sujeitos. Portanto, negar a
existência da “raça” seria negar todos os conflitos sociais vivenciados decorrentes
da cor da pele. Raças, no sentido sociológico, seria, assim, “discursos sobre a
origem de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços
fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicos, etc., pelo sangue
(conceito fundamental para entender raças e certas essências)” (GUIMARÃES,
2008, p. 65)
Ocorre no Brasil a partir dos a nos 1950, o que vem a ser chamado de mito
da democracia racial, onde a partir da suposta negação da existência de raças
humanas, sugere-se que todos os homens brancos ou negros possuem os mesmos
direitos, como se as pessoas negras já tivessem sido devidamente integradas a
nação brasileira. Assim, “a palavra de ordem que encontramos era a seguinte: a cor
é apenas um acidente. Somos todos brasileiros e por um acidente temos diferentes
cores; cor não é uma coisa importante, “raça”, então, nem se fala, esta não existe,
quem fala em raça é racista” (GUIMARÃES, 2008, p. 72).
O pensamento de democracia racial ganhou força com os escritos de
Gilberto Freyre, onde “essa democracia social seria basicamente um modo diferente
de colonizar que significou miscigenar-se, igualar-se, integrar os culturalmente
inferiores, absorver sua cultura, dar-lhes chances reais de mobilidade social no
mundo branco” (GUIMARÃES, 2008, p.74). Essas ideias ganharam, de 1940 a 1960,
a conotação de um ideal político de convivência igualitária entre brancos e negros.
16
Contudo, quanto a este pensamento, Florestan Fernandes (1965) apud
Guimarães (2008, p. 75) nos alerta que
essa democracia racial seria apenas um discurso de dominação política, não expressava mais nem um ideal, nem algo que existisse efetivamente, seria usado apenas para desmobilizar a comunidade negra; como um discurso de dominação, seria puramente simbólico, sua outra face seria justamente o preconceito racial e a discriminação dos negros.
Em fins dos anos 1970, no contexto dos movimentos nacionais pela
democratização política, surge, o Movimento Negro Unificado (MNU). O qual procura
dar uma nova perspectiva aos estudos das desigualdades raciais no Brasil.
o Movimento Negro Unificado e os teóricos que defendiam a causa, ressignificaram o conceito de raça como uma construção social forjada nas tensas relações entre brancos, negros e indígenas. Muitas vezes simulados como harmoniosos, não tinha relação com o conceito biológico de raça cunhado no século XIX, e que hoje está superado. (NOGUEIRA et al, 2008, p. 04)
Os grupos de militância e cientistas sociais, em especial, no Brasil, ainda
hoje tem adotado o termo “raça” ou “raça negra” como “discurso de resistência,
afirmação e positivação do grupo com a mesma palavra pela qual era ridicularizado
e diminuído” (SILVA e SOARES, 2011, p. 106)
Esse conceito chave apresenta o elemento de luta contra um sistema, sociedade ou grupos que, historicamente, mantém essas populações desprivilegiadas ou desfavorecidas em detrimento de outros grupos. Tais grupos, não necessariamente, pensam raça de maneira biológica, mas de maneira sociopolítica. Utilizar esse conceito dessa forma demonstra uma postura política de grupos que, conhecendo o passado ardil e sofrido, levantam-se contra um sistema que historicamente os desprivilegiou, e também os seus descendentes e antepassados. (SILVA; SOARES, 2011, p. 106)
Gadea (2013) nos alerta para os riscos da pretensa democracia racial no
Brasil, quando nos anos seguintes após esse discurso era perceptível as
desigualdades a que eram submetidos brancos e negros, colocando o negro sempre
em situação de desvantagem, quase sem possibilidade de ascensão social. Essa
“desvantagem social” virou sinônimo de luta e pôs em cheque a lógica desse
discurso igualitário.
Enquanto, para alguns, as condições materiais de existência poderiam ser melhoradas num esquema emanado desse projeto de “democracia racial”, podendo-se, dessa forma, anular eventuais desigualdades herdadas, pode-se, perceber que a negação de uma identidade particular e a desigualdade aludida estão relacionadas a fatores mais subjetivos, próprios da questão racial: o preconceito, o estigma e a impossibilidade de uma construção discursiva própria. (GADEA, 2013, p. 566)
17
Esse discurso de neutralidade quanto à existência de desigualdades entre
“raças” impediu que políticas públicas de ações afirmativas fossem criadas a fim de
diminuir o distanciamento a que as pessoas negras foram submetidas ao longo
destes anos de uma condição de vida favorável.
Lamentavelmente, o racismo em nossa sociedade se dá de um modo muito especial: ele se afirma através da sua própria negação. Por isso dizemos que vivemos no Brasil um racismo ambíguo, o qual se apresenta, muito diferente de outros contextos onde esse fenômeno também acontece. O racismo no Brasil é alicerçado em uma constante contradição. A sociedade brasileira sempre negou insistentemente a existência de racismo e do preconceito racial mas no entanto as pesquisas atestam que, no cotidiano, nas relações de gênero, no mercado de trabalho, na educação básica e na universidade os negros ainda são discriminados e vivem uma situação de profunda desigualdade racial quando comparados com outros segmentos étnicos-raciais do país. (GOMES, 2005, p. 46)
Sem a percepção do espaço que foi relegado ao negro durante toda a
história do Brasil, como sendo o espaço de excluído, do sem emprego, sem saúde,
sem escolaridade, sem expressão cultural e religiosa, entre outros índices de
vulnerabilidade, como a violência, desordem, falta de saneamento básico e higiene,
abriu-se espaço para uma cultura de preconceito racial. E assim, “quanto mais a
sociedade, a escola e o poder público negam a lamentável existência do racismo
entre nós, mais o racismo existente no Brasil vai se propagando e invadindo as
mentalidades, as subjetividades e as condições sociais dos negros”. (GOMES, 2005,
p.47)
Em contrapartida, o Movimento Negro vem insistentemente na luta por
políticas de ações afirmativas que oportunizem negros e negras assumirem papeis
sociais nos mais diversos setores da sociedade. Uma das conquistas alcançadas foi
a Lei 12.990 que reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos
concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no
âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas,
das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
(BRASIL, 2014)
Neste sentido, a política de cotas não atribui privilégios as pessoas negras,
como conclamam os adeptos da pretensa teoria de democracia racial, ao contrário,
busca-se evidenciar que os verdadeiros privilegiados são as pessoas brancas que
nasceram e cresceram em um contexto de significativas oportunidades e, por isso,
detentores das principais vagas em escolas, concursos, empresas, etc. “Insistamos
que não há nada de emancipatório na apologia do mérito e do desempenho
18
individual, pois enaltecer a falsa ideia de isonomia num sistema segregador é criar
uma conivência com as diversas situações de injustiça racial” (MIRANDA, 2017,
p.10). Contudo, é importante compreender que o sistema de cotas é uma política
provisória, compensatória da dívida ética brasileira para com o povo negro, que
poderão num contexto futuro alcançar a construção real de identidades políticas na
sociedade brasileira.
2.2 Relações de gênero e a mulher negra
Para compreendermos o papel social desempenhado pelas mulheres negras
no Brasil, mais especificamente ao tratarmos da construção da identidade social de
um determinado grupo de mulheres negras, torna-se necessário também
compreender os espaços e características atribuídas a estas mulheres, ao
analisarmos que para além da cor, a diferenciação entre homens e mulheres
também as delegaram uma diferenciação social, sendo o sexo determinante de
experiências desiguais e ainda mais opressoras para as mulheres negras.
As relações de gênero instituídas em nossa sociedade são fundamentais
para a compreensão das identidades grupais. Assim, homens e mulheres
apresentam comportamentos previamente definidos no grupo como certos ou
errados, como atribuídos especificamente a homens ou mulheres e muito
dificilmente permitido a ambos. A exemplo destes comportamentos podemos citar a
imposição da mulher à vida doméstica, à castidade, a não participação na política, à
falta de liberdade sexual e o não poderio sobre seu próprio corpo, a obrigação de
gerar e cuidar dos filhos, enquanto aos homens são delegadas funções superiores
na sociedade, são educados para ordenar, são permissivos, libertos. Possuem o
direito de ir e vir quando e para onde quiserem. Estes comportamentos, atitudes,
formas de ser e pensar são na maioria das vezes transmitidos e naturalizados
através das gerações, a esse respeito, exemplifica Fernandes:
O espírito foi associado aos homens, vistos como seres completos, inteligentes, produtos da criação divina. As mulheres foram vinculadas ao corpo, ao emocional, à natureza e entendidas como uma produção do homem, portanto, humana, imperfeita e incompleta. Se o homem representa a essência da humanidade e da capacidade cognitiva, a mulher representa o ser inferior, conectado ao Eros, destinado às posições secundárias da sociedade. (2016, p. 693)
19
Dentro da categoria de gênero teremos duas vertentes para análise, a
primeira que discute o surgimento do conceito de gênero, que segundo Santos et al
(2016, p. 590), “se construiu a partir da experiência de opressão e discriminação das
mulheres e do desejo de relações sociais emancipatórias, livres de dominação,
discriminação e exclusão”. E, a segunda vertente que trata, mais especificamente,
do feminismo negro que traz um ponto de vista autodefinido e coletivo sobre a
feminilidade negra.
Assim, para nos debruçarmos sobre a categoria de gênero, vamos
historicizar o surgimento deste conceito e em que ele contribui na compreensão e
recriação da história das mulheres e do feminismo, ou como veremos, da relação
entre homens e mulheres.
A distinção entre sexo e gênero foi feita de forma pioneira por Money e Hampson (1955) e Stoller (1968), diante da impossibilidade de classificar determinados sujeitos como machos e fêmeas a partir do dimorfismo sexual, devido à ausência de uma clara demarcação dos caracteres sexuais secundários ou por problemas de caráter cromossômico ou hormonal que afetavam a diferença sexual. (SANTOS et al, 2016, 591-592).
Entendendo, portanto, que biologicamente não ficou determinada uma
diferenciação entre homens e mulheres, o feminismo reformulou a discussão dos
espaços que eram atribuídos socialmente as mulheres como fruto de uma relação
de poder. O desafio seria agora fazer a diferenciação entre os aspectos biológicos e
culturais e retirar as mulheres de um determinismo biológico que as delegavam a um
segundo plano nas relações sociais, culturais, políticas, econômicas, etc. Essas
diferenças sociais e culturais entre homens e mulheres seriam o reflexo de relações
desiguais de poder no campo da vida pública e privada.
Ao considerar o sexo um construto a explicar, em vez de factor explicativo, o conceito de género correspondia, no plano teórico, ao propósito de colocar a questão das diferenças entre os sexos na agenda da investigação social, retirando-a do domínio da biologia, e orientava a sua análise para as condições históricas e sociais de produção das crenças e dos saberes sobre os sexos e de legitimação das divisões sociais baseadas no sexo. (AMANCIO, 2003, p. 687)
O surgimento das discussões sobre gênero trouxe à tona uma rede de
relações sociais marcadas pela desigualdade que vivia oculta ou ignorada das ações
políticas e reflexões teóricas. A partir de então, as ciências sociais se propuseram a
uma nova fase de investigação numa perspectiva crítica e em diversas áreas de
estudo científico, inclusive na Psicologia. No Brasil, a Psicologia Social conseguiu
apropriar-se do discurso de gênero, ao contrário da Psicologia empreendida em
20
outros países, que mantinha um cunho mais individualista e que gerou críticas das
feministas que evidenciaram a existência de elementos patriarcais nesta ciência.
Essa talvez seja uma das explicações do porquê, no Brasil, não encontramos uma psicologia social feminista, já que a psicologia social que se buscou construir a partir da crise e que se tornou objeto de uma associação específica – a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) – foi relativamente receptiva à articulação com as perspectivas de gênero. (SANTOS et al, 2016, p. 591)
Umas das primeiras conquistas do movimento feminista e das reflexões
teóricas do sexismo foi o princípio de igualdade de direitos entre homens e mulheres
instituído pela Organização das Nações Unidas – ONU, na Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
O princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres, que a Carta das Nações Unidas, aprovada em 1945, em São Francisco, já referia, veio a ser contemplado, em diversos domínios, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, três anos depois. Mas foi preciso esperar ainda trinta e um anos, até à aprovação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em 1979, para que, mais do que afirmar, se definissem meios e objectivos para a implementação da igualdade (AMANCIO, 2003, 668, grifo do autor).
Nesta época ganharam notoriedade os escritos de Simone de Beauvoir, que
apesar de não usar o conceito de gênero, já apontava para a superação das
desigualdades entre homens e mulheres, sendo uma importante propulsora do
movimento feminista. Para ela, “a experiência de ser mulher não é algo que vem do
nascimento ou da natureza, mas refere-se a um processo de construção e busca
desnaturalizar a diferença de lugares e espaços ocupados pelas mulheres
socialmente”. (SANTOS et al, 2016, p. 592)
No entanto, foi apenas em meados dos anos 1980 que a discussão de
gênero ganhou fôlego e entrou para as principais agendas políticas mundiais,
inclusive no Brasil. Foi neste período que Joan Scott, em seu artigo intitulado
Gênero: uma categoria útil para análise histórica, nos deu uma das principais
contribuições ao se referir ao conceito de gênero.
Primeiramente, Scott (1989) explica que o uso da terminologia de gênero
apenas substitui o termo mulher, para que ainda que se esteja contando a história
de subalternidade das mulheres, não as identifique e assim, a parte lesada continue
“invisível”, não constituindo uma ameaça crítica a essa discussão. Contudo, ainda
segundo Scott (1989, p. 07) “isso é só um aspecto. “Gênero”, como substituto de
“mulheres”, é igualmente utilizado para sugerir que a informação a respeito das
21
mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica no
estudo do outro”.
Para Scott, (1989, p. 07) “o gênero é igualmente utilizado para designar as
relações sociais entre os sexos”, conceito que rejeita as justificativas biológicas.
Para ela, o termo gênero se torna, também, “uma maneira de indicar as
“construções sociais” – a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis
próprios aos homens e às mulheres”. Seria, assim, uma forma de se referir à
construção social das identidades subjetivas de homens e mulheres.
Em ultima análise, Scott faz uma crítica ao fato de a compreensão do termo
gênero como sendo um construto social não conseguir (ou não ter conseguido até
então) mudar tecnicamente os paradigmas e comportamentos do patriarcado:
Mesmo se nesse uso o termo “gênero” afirma que as relações entre os sexos são sociais, ele não diz nada sobre as razões pelas quais essas relações são construídas como são; ele não diz como elas funcionam ou como elas mudam. No seu uso descritivo o “gênero” é portanto um conceito associado ao estudo das coisas relativas às mulheres. O “gênero” é um novo tema, novo campo de pesquisas históricas, mas ele não tem a força de análise suficiente para interrogar (e mudar) os paradigmas históricos existentes. (1989, p. 08)
Outra crítica que os estudos sobre gênero recebeu e que nos interessa
fundamentalmente nesta pesquisa é sobre como esses estudos excluíram outros
coletivos de mulheres que sofrem duplamente os efeitos da opressão masculina e
social. Como é o exemplo das mulheres negras, asiáticas, mulçumanas, indígenas,
entre outras. Embora, reconheça-se que as discussões iniciadas tenham aberto
espaço de análise das situações de opressões vividas por estes outros coletivos.
O feminismo que se desenvolveu nos anos 1980 e 1990 segue desafiando os paradigmas unitários de gênero desenvolvidos por feministas brancas e de classe média nos anos 1960 e 1970, já que a decepção com os modelos e os discursos dessas feministas fez com que outros coletivos de mulheres utilizassem suas próprias experiências de opressão, exclusão, discriminação e violência para desenvolver formas próprias de trabalhar com as noções de gênero e feminismo (CALDWELL, 2000 apud SANTOS, 2016).
Danubia de Andrade Fernandes, em seu texto O gênero negro: apontamentos
sobre gênero, feminismo e negritude (2016), faz um levantamento de autores que
tentaram compreender as relações de gênero que envolvem as mulheres negras.
Nesse estudo, Fernandes analisa os escritos de bell hooks3, uma escritora negra
3 O nome bell hooks será escrito em letras minúsculas nesta monografia porque é desta maneira que
a ativista norte-americana Gloria Jean Watkins se apresenta. Ela desconsidera as diferenças entre os
22
que enaltece a necessidade do surgimento do feminismo negro para defender as
peculiaridades das experiências de opressão vividas especificamente pelas
mulheres negras. Assim, Fernandes (2016) cita bell hooks (1995) ao referir que
se à mulher, de modo geral, recai a pecha de não ser “apropriada” para o trabalho intelectual por sua proximidade com a natureza, que remete ao caótico, misterioso e incontrolável, isto se acentua na mulher negra, porque aos negros, também de modo generalizante, se atribuem características negativas como irracionalidade e primitivismo. (p. 694)
A inferiorização dos povos negros foi necessária na época da escravidão
para justificar a exploração destes como mão de obra escrava. Como vimos no
tópico anterior, estes foram destituídos de traços culturais e identitários, foram
segregados e duramente impedidos de organização social. Por estes processos de
aculturação, foi dado ao homem e a mulher negra o status de seres inferiores, quase
animalescos. Ao homem negro foi dada a responsabilidade do trabalho pesado, as
mulheres tiveram seus corpos objetificados, destituídos de mente. “Segundo hooks
(1995), o sistema colonial desumaniza o corpo da mulher negra para garantir que ele
reproduza, pelas gestações sucessivas, o próprio sistema de exploração
escravagista”. (FERNANDES, 2016, p.696)
Além disto, foram realizados estudos nos corpos das mulheres negras, como
aferição do tamanho da genitália, nádegas, seios, etc., a fim de demonstrar uma
hipersexualidade que não havia na mulher branca, transformando as mulheres
negras em símbolos sexuais, a mercê do apetite sexual dos homens brancos.
Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado (hooks, 1995, p. 469 apud FERNANDES, 2016, p.696).
Mesmo com a abolição da escravatura e com as comprovações científicas
de que não existem diferenças entre pessoas que justifiquem a segregação destes
em raças humanas, os processos de inferiorização de pessoas negras e da
hipersexualização das mulheres negras continuaram a acontecer, como resquício
subjetivo impetrados no inconsciente coletivo.
Continuando o ciclo de exploração, o sistema capitalista produziu
intencionalmente um quadro de inferiorização e estigmatização de pessoas no intuito
de explorar este sujeito considerado de segunda classe. Os estereótipos que
substantivos comuns e os nomes próprios, ressaltando a construção social das identidades. Neste sentido, hooks adota é o nome de sua bisavó materna.(FERNANDES, 2016, p. 694)
23
discriminam, rebaixam, agridem e violentam grupos minoritários de pessoas
parecem nunca regredirem, por mais que os processos educativos e de
sociabilidade evoluam. Deste modo, negras e negros, bem como mulheres de
diversas etnias e outros grupos minoritários, como índios, LGBTQIA, etc. são
destinados às funções mais precárias do processo produtivo das sociedades. Com
isso, o capitalismo reifica as supostas diferenças e incompletudes destes grupos
para segrega-los e perpetuar um ciclo de exploração que sustenta o próprio sistema
de produção.
Na contramão desse sistema de segregação ganham força os movimentos
negro e feminista, inicialmente nos Estados Unidos, e por volta da década de 1980,
no Brasil. Contudo, as mulheres negras passaram a não se sentirem representadas
por estes movimentos, a medida que eram subjugadas dentro do próprio movimento.
No movimento negro, pleiteava-se a igualdade racial, buscava-se a equiparação do
homem negro ao branco, porém ao assemelhar-se ao homem branco, o homem
negro persistia no direito de oprimir suas mulheres. Assim, as mulheres negras eram
pressionadas a aceitar uma posição secundária no movimento negro, já que a luta
por igualdade racial não tinha como bandeira o rompimento dos direitos
estabelecidos no sistema patriarcal. (FERNANDES, 2016)
Já no movimento feminista, existia uma série de bandeiras que excluía as
mulheres negras. Como por exemplo, as mulheres brancas lutavam pelo direito de
trabalhar, enquanto as negras trabalham em condições ainda quase de escravidão.
As mulheres brancas lutavam por liberdade sexual, enquanto as negras tinham seus
corpos hipersexualizados, objetificados e abusados, entre outras bandeiras que
geravam lutas contraditórias, além de haver atitudes racistas dentro do próprio
movimento.
No movimento feminista norte-americano, bell hooks (1982) denuncia a presença de práticas racistas que tinham origem no sistema patriarcal e escravocrata. Segundo suas pesquisas, boa parte das mulheres brancas envolvidas na luta abolicionista nos Estados Unidos, em meados do século XIX, lutou “em causa própria”. Elas queriam encerrar as relações adúlteras de seus maridos com as escravas – relações estas que consideravam ultrajantes e indignas para si próprias e não necessariamente para as mulheres negras. A mulher branca não estabeleceu vínculos de solidariedade com a mulher negra escravizada nas situações de violência ou estupro, por exemplo. Ao contrário, o machismo e o racismo construíram uma relação de profunda ojeriza à mulher negra que se estende pelo século XX. (FERNANDES, 2016, p. 697 - 698)
As mulheres negras integrantes destes movimentos perceberam que suas
necessidades não podiam ser atendidas por estes movimentos, além do que o
24
movimento feminista iniciado nos Estados Unidos propunham pautas que entravam
em conflito com os valores e costumes das mulheres negras.
Em primeira instância, havia um entendimento de que se tratava de um movimento contra os homens, orquestrado por militantes lésbicas. Neste cenário, as mulheres negras não queriam enfrentar os homens, muito menos ser associadas à homossexualidade, então, distanciaram-se do movimento feminista. Além disso, nas comunidades negras, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, em um contexto de poucas oportunidades profissionais e de grandes dificuldades financeiras, existia um sentimento de proteção da família e de valorização da maternidade. (FERNANDES, 2016, 698)
Neste contexto, as mulheres negras se viram na necessidade de lutar contra
uma pauta infinita de reivindicações e que se reconstrói a todo momento, atendendo
as suas necessidades, bem como caminhando para um entrelaçamento com as
pautas feministas das mulheres brancas, no que bell hooks chama de sorority ou
sisterhood. Que seria
ultrapassar a barreira que o racismo impõe à solidariedade entre as mulheres, pois além das diferenças raciais, o pertencimento social constitui uma das grandes fontes de divisão política entre as mulheres e tanto as questões de classe quanto as de raça são tratadas no movimento feminista como questões individuais, quando deveriam ser pensadas na dimensão da sociedade. (FERNANDES, 2016, p. 703)
Desta forma, concluímos que a luta das mulheres negras contra o racismo e
suas manifestações através do preconceito e da discriminação racial e contra as
contradições presentes na relação entre os gêneros tem feito progressos notáveis
no campo dos direitos sociais e humanos. Contudo, ainda é preciso avançar muito
no sentido de fazer este discurso alcançar todos os grupos de mulheres negras do
país. São diversas comunidades remanescentes de quilombos que sobrevivem às
margens da sociedade e que ainda não possuem acesso a essas práticas
discursivas que possibilitam a apropriação de uma identidade social negra.
2.3 Contextualizando as comunidades negras rurais no Brasil e a Comunidade
Akanni
As primeiras comunidades negras surgiram na época da escravidão como
local de refúgio de negros e negras que fugiam das fazendas onde eram
escravizados. Essas comunidades denominadas de Quilombo formaram-se nos
cantos mais recônditos do país, simbolizando a resistência de um povo contra o
25
regime escravocrata e a luta pela preservação da cultura originalmente africana. Os
Quilombos mantinham uma forma de ocupação territorial e organização social
própria, o que garantiu a esses grupos sua identidade étnica e cultural.
Além da fuga das fazendas, outras situações favoreceram a constituição destes grupos, tais como: compra de terras por famílias alforriadas, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados a senhores ou ao Estado, permanência nas terras depois do abandono pelos proprietários, acordos feitos entre escravos e senhores, entre outros fatos (ALMEIDA, 1998 apud SANTOS; SILVA, 2014, p. 1.050).
Um dos principais Quilombos de que se tem notícia é o Quilombo dos
Palmares, situado na Serra da Barriga em União dos Palmares – AL, e que, segundo
Santana (2012) “foi o maior e mais perigoso dos quilombos”. Porém, ao se buscar
referenciais sobre a historiografia deste, nota-se que
não há produção sobre Palmares escrita por seus habitantes, os documentos produzidos foram escritos por autoridades que estavam diretamente a serviço da coroa portuguesa. Devido a isso, os textos enalteciam o governador Pedro de Almeida e sua vitória sobre Palmares. (SANTANA, 2012, p. 04)
Sabe-se, porém, que o Quilombo dos Palmares surgiu a partir da fuga de 40
escravos de um engenho próximo a costa alagoana em direção a mata fechada. O
nome Palmares acredita-se que venha da existência de muitas palmeiras na região
onde se instalaram. Apesar do local de difícil acesso o quilombo não estava tão
isolado como podemos imaginar, sabemos que eles tinham uma enorme penetração
e comunicatividade nas áreas urbanas. “As notícias dos quilombos corriam
facilmente para as áreas onde haviam ainda escravizados e vice-versa. A existência
dos quilombos, esta promessa de vida livre, estimulavam aqueles que ainda
estavam sofrendo no cativeiro” (ARAÚJO, 2015, p. 09).
A maioria dos escravos trabalhava alimentando o ciclo do açúcar, seja na
plantação ou extração da cana, nos engenhos ou carregando os navios para a
importação do produto; as mulheres negras eram encarregadas do trabalho
doméstico, parteiras, não raro também trabalhavam como escravas sexuais ou como
amas-de-leite e como cuidadoras das crianças dos seus senhores.
Mesmo após a abolição da escravatura que ocorreu em 1888, os quilombos
continuaram com a mesma organização social de quando ainda eram escravos
fugitivos, pois não houve uma real inserção desses povos na sociedade brasileira,
ficando o negro sempre marginalizado das relações sociais. Assim, Oliveira (2013),
pontua dois aspectos a serem considerados na formação das comunidades negras
26
rurais no Brasil. A primeira é que a abolição colocou “na condição de libertos todos
os negros mantidos até então como escravos, mas não lhes garantiu as formas de
aquisição de terras e condições de trabalho que propiciassem a preservação,
cidadania e subsistência dos mesmos”. (p. 143). Isso fez com que a grande maioria
de negros ex-escravos mantivessem a mesma relação de subalternidade com seus
senhores, como prestadores de serviços, normalmente como meeiros, situação em
que a divisão da produção não era feita de forma equitativa. O segundo aspecto diz
respeito a
[...] substituição dos escravos pelo braço europeu e a impossibilidade legal de se tornarem proprietários de terras acirrou, em muitos casos, as formas de resistência que, desde muito tempo, já vinham sendo utilizadas pelos escravos como a estratégia de contestação da situação de desigualdade social a que estavam expostos e que, no período, foram definidas como “banditismo”: fugas, formação de quilombos, rebeliões de escravos, etc.(ibid., p. 143)
Assim, para os negros explorados e marginalizados, o quilombo seguia
como símbolo de resistência, no qual viam a possibilidade de se reproduzirem e se
manterem física, social e culturalmente face a um sistema reprodutor da cultura
escravista. Por mais de dois séculos essas comunidades constituídas em quilombos
buscam por seus direitos e pela garantia de seus territórios.
Para os quilombolas, a terra adquire um particular significado, já que se constitui como instrumento que mantém a coesão social do grupo, permitindo a sua reprodução, como também a preservação da cultura, dos valores e do modo particular de vida dentro das comunidades. (NASCIMENTO et al, 2016, p. 433)
Desse modo, a posse das terras tornou-se o objetivo maior de luta das
comunidades negras rurais. Para tanto, o conceito de identidade tornou-se
necessário para o reconhecimento das comunidades agora chamadas de
“remanescentes de quilombos”. Essa luta foi empreitada por lideranças negras em
todo o país, através do Movimento Negro e concomitante às discussões para a
promulgação da Constituição de 1988. Esta garantiu o direito à propriedade para
essas populações através do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) que afirma:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Posteriormente, o decreto presidencial 4.887/2003 regulamenta o procedimento para “Identificação, Reconhecimento, Delimitação, Demarcação e Titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos”. (MARQUES; GOMES, 2013, p.137)
27
O reconhecimento do direito ao território no qual as comunidades negras
desenvolvem seus modos de fazer e viver tem sido garantido em diversas
Constituições na América Latina. No entanto, levaram décadas de lutas para a
garantia do direito constitucional e ainda demanda uma série de ações para a sua
total efetivação.
A questão do direito de grupos quilombolas à sua territorialidade permaneceu não tematizado no espaço público geral desde a abolição da escravidão (1888) até a Constituição Federal de 1988. Isso levou a um déficit no reconhecimento dos direitos e a uma demanda acumulada para a
efetivação dos direitos à territorialidade dos quilombolas. (MARQUES;
GOMES, 2013, p.137)
O reconhecimento e a titulação das terras ocupadas por comunidades
remanescentes de quilombos têm como objetivo garantir a preservação de valores
culturais e históricos relativos à contribuição do negro no processo de formação do
povo brasileiro. Entretanto, diante do critério de identificação quanto a ser
quilombola, a luta pela terra assumiu uma nova dimensão e direcionamento, uma
vez que a reivindicação deixou de ser apenas de camponeses negros e passou a
ser de remanescentes quilombolas. Essa mudança exigiu amplas iniciativas dos
órgãos responsáveis e dos próprios membros das comunidades, que passam por
um processo de adaptação e reelaboração histórica e identitária, com a finalidade
exclusiva de garantia de posse do território.
Por força do Decreto n. 4.887, de 2003, o Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA) é o órgão responsável, na esfera federal, pela
titulação dos territórios quilombolas. Analisando se o sítio eletrônico desse
instituto, observa-se que foram emitidos 154 títulos, regularizando
1.007.827,8730 hectares em benefício de 127 territórios, 217 comunidades
e 113.145 famílias quilombolas2. Há, ainda, junto ao INCRA, 1.290
processos em aberto em todas as superintendências regionais, à exceção
de Roraima, Marabá-PA e Acre, além de demandas que ainda não foram
formalmente submetidas. (NASCIMENTO et al, 2016, p. 433)
Com efeito, Souza (2008 apud Nascimento 2016) afirma que a Constituição
de 1988 representa um divisor de águas ao incorporar em seu conteúdo o
reconhecimento de que o Brasil é um Estado pluriétnico e de que há outras
percepções e usos da terra para além da lógica de terra privada e o direito à
manutenção da cultura e dos costumes dos povos aqui viventes. É, inclusive, a
relação desses povos com as terras ocupadas, nas quais há a difusão de sua
cultura, seus modos de criar, fazer e viver critério hábil para defini-la como
quilombola.
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Compreendendo quilombo enquanto um conceito que remete a um tempo
histórico específico, que assim está impregnado no imaginário social e que precisa
ser superado, surge a categoria de “remanescente de quilombo” como uma reflexão
científica a partir de uma luta política por direitos na atualidade e que se supõe está
em um processo de construção.
Portanto, para que se desenvolva uma análise mais adequada do termo é
necessário trabalhar com a categoria já em seu significado ressemantizado, pois
permite aos grupos que se autoidentificam como “remanescentes de quilombo” ou
quilombola uma efetiva participação na vida política e pública, como sujeitos de
direito; e se afirma com isso a diversidade histórica e a especificidade de cada
grupo.
Mas, nesta perspectiva, o que significa os chamados remanescentes de
quilombo, ou quilombolas? Almeida (2002) apud Marques e Gomes (2013) diz que
Trata-se de um fenômeno sociológico que se caracteriza por: (1) identidade e território indissociáveis; (2) processos sociais e políticos específicos que permitiram aos grupos uma autonomia; e (3) territorialidade específica, cortada pelo vetor étnico no qual grupos sociais específicos buscam ser reconhecidos. Portanto, corresponde uma afirmação a um só tempo étnica e política. (p. 141)
Os negros e negras autoreconhecidos como quilombolas não precisam
necessariamente apresentar alguma relação com o que historicamente se conhece
como quilombo. Os remanescentes de quilombos são grupos sociais que se
mobilizam ou são mobilizados por organizações sociais, políticas, religiosas,
sindicais etc. em torno do autorreconhecimento como um grupo étnico específico e,
consequentemente, busca-se a manutenção ou a reconquista da posse definitiva de
sua territorialidade. Marques e Gomes (2013) dizem que eles podem apresentar
todas ou algumas das seguintes características:
definição de um etnônimo, rituais ou religiosidades compartilhadas, origem ou ancestrais em comum, vínculo territorial longo, relações de parentesco generalizado, laços de simpatia, relações com a escravidão e, principalmente, uma ligação umbilical com seu território. (p.142)
O quilombo ressemantizado é um rompimento com as ideias e percepções
historicamente cristalizadas e que, através de seus agentes, como as lideranças das
próprias comunidades rurais, Movimentos Negros, ongs, etc., buscam assegurar
seus direitos constitucionais. Para isso, os remanescentes de quilombos
precisam se impor como um coletivo étnico, e, para isso, não mais importa o arcabouço “jurídico-formal historicamente cristalizado” a despeito dos
29
quilombos, que existira na estrutura jurídica colonial e imperial (sempre com características restritivas e punitivas) e se encontrava ausente do campo jurídico republicano até a promulgação da Constituição de 1988. (ibid., p. 142)
O conceito anteriormente utilizado pela Fundação Cultural Palmares (FCP),
até aproximadamente meados dos anos de 1990, que compreendia o quilombo por
qualidades culturais substantivas e por sua história de lutas passadas, bem como
unidade guerreira e autossuficiente, não mais satisfazia aos anseios criados pelo
dispositivo constitucional. Com a redefinição do termo quilombo, a nova sematologia
retira o acento da atribuição formal e das pré-concepções e passa a considerar a
categoria remanescentes de quilombo como um autorreconhecimento por parte dos
atores sociais envolvidos. (MARQUES; GOMES, 2013)
O atual conceito de quilombo difere fundamentalmente do que representava no transcorrer do regime escravocrata, e mesmo quase um século após a abolição da escravidão. O que antes era uma categoria vinculada à criminalidade, à marginalidade e ao banditismo é hoje considerado, de acordo com a perspectiva antropológica mais recente, entre outros elementos, como um ente vivo e dinâmico, “um lócus de produção simbólica” sujeito a mudanças culturais. (ibid., 2013, p. 143)
Neste contexto, em que a garantia dos direitos constitucionais se exime de
uma necessidade de associação das comunidades com os antigos quilombos e se
dispõe a compreendê-las dentro de um conceito ressemantizado, urge os trabalhos
dos movimentos sociais, ongs e universidades no sentido de estabelecer o
sentimento de pertencimento a um grupo étnico específico nestas comunidades com
o objetivo de facilitar o processo de reconhecimento da identidade negra quilombola.
Foi dentro dessa perspectiva que elaboramos e reelaboramos os trabalhos
do projeto de extensão na comunidade Akanni.
Akanni é uma comunidade negra rural, localizada no município de Santana
do Ipanema – AL. Não encontramos registros sobre sua fundação ou história,
porém, colhemos informações durante a realização dos encontros. A comunidade é
formada por membros de uma mesma família, os quais receberam as terras que
hoje possuem de heranças de seus pais ou familiares, porém os moradores não
sabem informar como seus pais adquiram as terras.
O principal meio de subsistência da comunidade foi por muito tempo a
agricultura. Havia as plantações de feijão e milho como ocorre tradicionalmente nas
famílias desta região, como também haviam as plantações de macaxeira, que eram
utilizadas para fazer farinha e arroz. Nessa época, algumas famílias também
30
utilizavam da confecção de balaios de cipó para a sua renda e os mais velhos
ensinavam para os mais novos esse ofício.
Os moradores mais antigos contam que trabalhavam na agricultura desde
criança junto dos seus pais e que tinham apenas dois dias livres para ir à escola.
Nestes dias precisavam se banhar no Rio Ipanema4, que passa perto da
comunidade, quando este ainda tinha águas limpas.
Por muito tempo, todas as casas da comunidade eram feitas de “taipa”, um
tipo de construção de casas que utilizava madeira e barro. Contudo, há pouco mais
de uma década os moradores fizeram um abaixo-assinado e conseguiram um
projeto da prefeitura para a construção de casas de alvenaria.
Sobre atividades culturais, existiu o reisado, mazurca (valsa), bolero e forró,
porém, estas práticas estão quase extintas, assim como a capoeira, que era tradição
nas noites após o dia de trabalho na lavoura. As comemorações que ainda perduram
são quadrilha junina, Natal e Ano Novo.
4 A nascente do rio Ipanema se situa no município de Pesqueira-AL. Seu curso percorre parte dos
estados de Pernambuco (aproximadamente 139 km) e Alagoas, na direção nortesul, até desaguar no rio São Francisco.
31
3 O CONSTRUCIONISMO SOCIAL E O DIÁRIO DE CAMPO COMO UMA
PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA
“Não quero constranger-me a nada Na redação das minhas memórias.
Não instaurei nelas uma ordem nem um sistema. Anotarei tudo
o que me vier à lembrança”. (Dóstoiévski em Memórias do Subsolo)
Para a realização deste trabalho nos valemos do suporte teórico da
Psicologia Social, a partir da perspectiva do Construcionismo Social e da abordagem
das Práticas Discursivas. Como método, utilizamos o Diário de Campo produzido a
partir das oficinas vivenciais desenvolvidas ao longo do projeto de extensão na
comunidade Akanni.
Este capítulo está dividido em dois subitens. No primeiro abordamos a
Psicologia Social, enquanto estudo da produção de sentidos a partir da análise das
Práticas Discursivas, associada à perspectiva Construcionista como uma corrente
voltada ao estudo da linguagem; no segundo subitem, iremos descrever o Diário de
Campo como um instrumento de pesquisa, apontando os limites e possibilidades do
uso deste método.
3.1 A Psicologia Social e o Construcionismo
Analisamos neste subitem como o estudo da Produção de Sentidos e da
análise das Práticas Discursivas estão situadas dentro da Psicologia Social e
afiliadas à perspectiva Construcionista. Não pretendendo, assim, fazer uma análise
histórica da Psicologia Social ou do Construcionismo.
Para fundamentarmos nosso trabalho, utilizamos os estudo de Mary Jane P.
Spink e Rose Mary Frezza, no texto “PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE
SENTIDOS: a perspectiva da Psicologia Social” (2000), as quais buscam responder
a pergunta: “como damos sentido ao mundo em que vivemos”, compreendendo que
“a expressão dar sentido ao mundo nem sempre fez parte do projeto da disciplina”
(SPINK e FREZZA, p. 18, grifo do autor).
Segundo as autoras, apenas no final dos anos 1950 e na década de 1960
começou um movimento reacionista frente ao paradigma dominante de fazer ciência
32
em Psicologia Social, “impulsionada inicialmente em duas direções: a valorização da
observação dos comportamentos em situações naturais e o estudo de
comportamentos em seu ambiente natural” (ibid., p. 20)
Inevitavelmente, sair do laboratório implicava aceitar a visão do outro, o que levou a uma revalorização do estudo dos processos sociais – inspirada, por exemplo no trabalho de Erving Goffman sobre dramaturgia, e de Serge Moscovici sobre o conhecimento do senso comum. Tratava-se, antes de mais nada, de uma virada metodológica, que reagia contra a psicologia de laboratório. (SPINK e FREZZA, 2000, p. 18).
Assim, nos anos 1970 e 1980 surgem diversas obras, tanto na Europa
quanto na América Latina que focalizam a naturalização e despolitização da
Psicologia e adquirem uma conotação singular por serem reflexões feitas a partir do
ponto de vista dos dominados. E é, portanto, neste contexto histórico, segundo as
autoras supracitadas, que se apoia a proposta de estudo da produção de sentidos
por meio das Práticas Discursivas.
Neste sentido, surge o relacionamento da Psicologia Social com
Construcionismo, a partir da valorização da linguagem como uma expressão do
pensamento, ou mais ainda, como uma ação social de sujeitos históricos e culturais.
A perspectiva construcionista é resultante de três movimentos: na filosofia, como reação ao representacionismo; na sociologia do conhecimento, como desconstrução da retórica da verdade; e na Política, como busca por empowerment dos grupos socialmente marginalizados (SPINK; FREZZA 2004, p. 23, grifo do autor).
As autoras, no entanto, focalizam o construcionismo a partir da Psicologia
Social e da Sociologia do conhecimento, apoiando-se em quatro autores, Peter
Berger e Thomas Luckman, Kenneth Gergen e Tomáz Ibáñez, os quais utilizam a
expressão construção social para falar da ação, e construcionismo para referir-se à
abordagem teórica. Lembrando que a opção por essa nomenclatura decorre da
própria percepção de individuo enquanto uma construção social.
Berger e Luckman (1966/67 citados por Spink e Frezza, 2000) são os
principais autores dentro da Sociologia do Conhecimento que fazem uma crítica com
relação à compreensão intelectualista do conhecimento que o restringe ao
pensamento teórico, pois, para eles, “nessa dimensão não se leva em conta o
conhecimento que as pessoas têm da realidade, ou seja o conhecimento do senso
comum”. Assim, “é precisamente este conhecimento que constitui o tecido de
significados sem o qual nenhuma sociedade poderia existir” (BERGER; LUCKMAN,
1966/67, p. 30).
33
No âmbito da Psicologia Social, o Construcionismo enfoca aspectos da vida
cotidiana, partindo do momento da interação entre os sujeitos por onde se dão os
processos de Produção de Sentidos. Spink e Frezza (2000) ao falar sobre o artigo
de Kenneth Gergen, intitulado American Psychologist, vêm explicitar a função do
que se estuda na abordagem, citando Gergen: “A investigação sócio-construcionista
preocupa-se sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as
pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em
que vivem.” (GERGEN 1985, apud SPINK; FREZZA, 2000, p. 26).
Torna-se necessário abdicar de uma visão representacionista do
conhecimento, a qual segundo Rorty (1979/1994) tem como pressuposto a
concepção de mente como espelho da natureza. E, assim, “adotar a concepção de
que o conhecimento não é uma coisa que as pessoas possuem em suas cabeças, e
sim algo que constroem juntas” (SPINK; FREZZA, 2000, p. 27).
A perspectiva Construcionista exige um esforço de desconstrução de noções
arraigadas na nossa cultura, onde através do processo de reflexão possibilitasse
uma desfamiliarização com os conceitos adquiridos. A desfamiliarização é um
conceito preferencialmente adotado por Spink e Frezza (2000) para se remeter ao
termo desconstrução, segundo as autoras “[...] para referir-se ao trabalho necessário
de reflexão que possibilita uma desfamiliarização com construções conceituais que
se transformaram em crenças e, enquanto tais, colocam-se como grandes
obstáculos para que outras possam ser construídas.” As autoras adotam a
nomenclatura desfamiliarizar por considerar difícil algo já construído ser
desconstruído. Spink e Frezza (2000, p. 27) acreditam que: “Criamos espaços, sim,
para novas construções, mas as anteriores ficam impregnadas nos artefatos da
cultura, constituindo o acervo de repertórios interpretativos disponíveis para dar
sentido ao mundo.”. Assim, deve-se evitar conceber os fenômenos de forma
naturalizada, ou seja, demasiadamente comum, tal qual eles são ou sempre
aparentaram ser.
Para falar desses esforços de desfamiliarização nos apoiaremos nos escritos de Tomás Ibáñez, psicólogo social da Universidade Autônoma de Barcelona. Utilizaremos mais especificamente um texto publicado em 1994, no qual Ibáñez aborda quatro temáticas que estão no cerne do realismo fundante da retórica da ciência na modernidade: a dualidade sujeito-objeto, a concepção representacionista do conhecimento, a retórica da verdade e o cérebro como instância produtora de conhecimento. (SPINK; FREZZA, 2000, p. 27).
34
A dualidade sujeito-objeto encontra-se sustentada sobre três posturas,
conforme Spink e Frezza (2000). No empirismo, que acredita que o conhecimento
encontra-se no objeto; no idealismo, que admite que o conhecimento não pode ser
acessado pelo objeto, mas sim pelo sujeito; e no interacionismo, que afirma que o
conhecimento é produzido somente a partir da interação entre o sujeito e o objeto.
Entretanto faz-se necessário a superação destas posturas, pois para o
Construcionismo “tanto o sujeito como o objeto são construções sócio-históricas que
precisam ser problematizadas e desfamiliarizadas. Acatar essa afirmação,
entretanto, implica problematizar a noção de realidade.” (SPINK; FREZZA, 2000, p.
28). Isto quer dizer que só aprendemos os objetos que nos apresentam a partir de
nossas categorias, convenções, práticas, linguagem, de nossos processos de
objetificação.
Com relação à concepção representacionista do conhecimento a nova
postura implica assumir que o conhecimento não é algo fruto de uma representação
externa ao sujeito ou objeto.
Se os objetos da natureza são constituídos por nossas categorias, se essas categorias são artefatos humanos, produtos de interações historicamente situadas, então a hegemonia dos sistemas de categorias depende das vicissitudes dos processos sociais e não da validade interna de seus constructos (SPINK; FREZZA, 2004, p. 28).
Esta superação sobre a concepção representacionista do conhecimento
busca, além de superar a dicotomia sujeito-objeto citada anteriormente que
dissemina a concentração do conhecimento em algo, questionar a representação de
um conhecimento por si só, tal como se apresente, sem ao menos problematizar o
seu processo de formulação e os momento em que este foi assumido nas interações
sociais.
A crítica à retórica da verdade se funda na concepção de que não há uma
verdade absoluta. A verdade, portanto, baseia-se nas nossas convenções, embora
estas não sejam menos impositivas. Segundo Ibáñez, se os critérios de verdade são
estabelecidos socialmente, não há, portanto, nada que seja verdade no sentido
estrito da palavra (1994). No entanto, o mesmo não sugere que vivamos em mundo
sem verdades, apenas que a construamos a partir de convenções pautadas na
coerência, utilidade e moralidade, remetida aos valores éticos, mas relativas a nós
mesmos.
35
Por fim, a concepção do cérebro como a instância produtora do
conhecimento, afirma que o cérebro é a via única da existência do pensamento por
meio do qual se dá o conhecimento, a perspectiva de Ibáñez vem colocar que a
própria existência do pensamento não se dá somente pela substância ou pelo
aparato biológico, mas na interface entre o cérebro e a sociedade. Segundo Spink e
Frezza (2000, p. 30): “O conhecimento é contingente, também, às ferramentas
disponíveis – como, por exemplo, a própria estrutura linguística –, as quais são
produções sociais [...] seria uma redução dizer que o pensamento é produto apenas
das práticas sociais”.
A abordagem construcionista, contudo, tende a ser ignorada ou amplamente
contestada, tendo como alvo de contestação o relativismo e o reducionismo
linguístico. Sobre o relativismo a critica é de que “toda e qualquer crença sobre um
dado tópico é igualmente aceitável” (SPINK; FREZZA, 2000, p. 31).
[...] esse relativismo histórico e cultural só se torna claro numa perspectiva de análise de “tempo longo”. No cotidiano de nossas vidas, somos de fato, produtos de nossa época e não escapamos das convenções, das ordens morais e das estruturas de legitimação. A pesquisa construcionista é, portanto, um convite a examinar essas convenções e entendê-las como regras socialmente construídas e historicamente localizadas. É um convite a aguçar a nossa imaginação e a participar ativamente dos processos de transformação social (2000, p. 32).
A crítica ao reducionismo linguístico decorre da importância dada à
linguagem e por compreender que o objeto se dá por meio do processo de
construção linguístico-conceitual, entretanto isso não significa que tudo se reduza à
linguagem e seja de origem linguística. Quer dizer apenas que o construcionismo
reconhece a centralidade da linguagem nos processos de objetivação que
constituem a base da sociedade de humanos (SPINK; FREZZA, 2000, p. 33).
Sob a luz do construcionismo enquanto abordagem teórico-metodológica,
faz-se necessário compreender o que significa produzir sentidos no cotidiano. Assim
alguns conceitos se fazem primordiais para apreendermos a produção de sentidos
através da análise das práticas discursivas.
De acordo com Spink e Medrado (2000, p. 41)
o sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta.
36
Para estes autores, a produção de sentidos não pode ser uma atividade
congnitiva intra-individual, nem a mera reprodução de modelos predeterminados.
Para eles, a produção de sentidos “é uma prática social, dialógica, que implica a
linguagem em uso” (ibid., p.42), sendo considerada, portanto, um fenômeno
sociolinguístico. “[...] uma vez que o uso da linguagem sustenta as práticas sociais
geradoras de sentido [...]”
Cabe-nos, portanto, fazer uma diferenciação entre as terminologias
discurso e práticas discursivas, utilizadas em diferentes níveis de análise. O
discurso demonstra uma tendência à permanência, ou como para Davis e Harré
(1990 apud SPINK; MEDRADO, 2000, p. 43) o discurso refere “ao uso
institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo linguístico” na
definição de Mikhail Bakhtin (1929/1995) os discursos são “peculiares a um estrato
específico da sociedade – uma profissão, um grupo etário, etc. – num determinado
contexto, em um determinado momento histórico”. Ou seja, os discursos são
conceitos institucionalizados, estáveis, que buscam coerência com o contexto.
Contudo, Spink e Medrado (2000, p. 45) comentam que “usualmente, é pela
ruptura com o habitual que se torna possível dar visibilidade aos sentidos”. Assim,
surge o conceito de práticas discursivas, como linguagem em ação.
O conceito de práticas discursivas remete por sua vez, aos momentos de ressignificação, de rupturas, de produção de sentidos, ou seja, corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade [...] isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas. (SPINK; MEDRADO, 2000, p. 45)
As práticas discursivas apresentam três elementos constitutivos. São eles:
os enunciados, as vozes e os repertórios interpretativos. Bakhtin (1995) descreve o
processo de interanimação dialógica que se processa numa conversação a partir
dos conceitos de vozes e enunciados. Os enunciados seriam, assim, o conteúdo que
foi dirigido a outra pessoa, e estas pessoas – locutor e interlocutor – presentes ou
presentificados no diálogo seriam as vozes. Ainda para Bakhtin (1994 apud SPINK;
MEDRADO, 2000, p. 46) os enunciados são “expressões (palavras e sentenças)
articuladas em ações situadas, que associados à noção de vozes, adquirem seu
caráter social”.
Dessa forma, inclusive o pensamento é dialógico: nele habitam falantes e ouvintes que interanimam mutuamente e orientam a produção de sentidos e enunciados. [...] A compreensão dos sentidos é sempre um confronto entre
inúmeras vozes. (SPINK; MEDRADO, 2000, p. 46)
37
Os autores supracitados reforçam que o sentido decorre do uso que
fazemos dos repertórios interpretativos de que dispomos. Ao falarmos algo
utilizamos um sistema de linguagem preexistente, a partir do qual nos posicionamos.
Ou como nas palavras deles:
Os repertórios interpretativos são, em linhas gerais, as unidades de construção das práticas discursivas – o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem – que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo por parâmetro o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais específicos ou speech genres. (SPINK; MEDRADO, 2000, p. 46)
Um outro conceito que nos interessa na abordagem construcionista diz
respeito ao conceito de pessoa. “Com o conceito de pessoa, estamos buscando
enfatizar nosso foco sobre a dialogia, em vez de privilegiar a individualidade ou a
condição de sujeito”. (SPINK; MEDRADO, 2000, p. 54)
O uso do termo pessoa decorre também de uma fuga a termos dicotômicos,
como sujeito-objeto e indivíduo-sociedade. Assim, Cuggenberger (1987) diz só ser
possível pensar em pessoas a partir da sua relação com o mundo.
[...] a relação humana apresenta uma amostra do caráter misterioso da pessoa, visto que esta não pode ser apreendida por meio de noções objetivas e objetiváveis. [...] é verdade que a pessoa, quando quer fazer-se conhecer, deve voltar-se ao outro. (CUGGENBERGER, 1987 apud SPINK; MEDRADO, 2000, p. 55)
Essa definição de pessoa vem a calhar diante dos objetivos do
construcionismo por estar inserida em um processo dialógico, de trocas simbólicas e
que a noção de práticas discursivas compreendem como um constante processo de
interanimação dialógica. Esse entendimento nos leva a perceber as práticas
discursivas como constitutiva das construções identitárias.
Como destacam Davies e Harré (1990) quem somos? é, pois, sempre uma pergunta aberta com respostas mutáveis, que dependem das posições disponíveis nas nossas práticas discursivas. Dentro dessas práticas, é preciso entender as histórias por meio das quais produzimos sentidos em nossas vidas, os nossos processos de socialização que possibilitam a construção de narrativas coerentes em torno de eixos comuns, [...] (SPINK; MEDRADO, 2000, p. 56)
Portanto, a partir dos conceitos aqui definidos entendemos a proposta do
Construcionismo Social e das Práticas Discursivas como uma ferramenta a favor da
transformação da ordem social a partir do exercício de produção dos sentidos do
cotidiano, contemplando, assim os objetivos da nossa intervenção durante a
38
realização do projeto de extensão na comunidade Akanni, bem como nos auxiliaram
na análise dos dados obtidos.
3.2 Diário de Campo: uma proposta teórico-metodológica
À medida que escolhemos o relato da experiência do projeto de extensão
realizado na comunidade Akanni como objeto deste Trabalho de Conclusão de
Curso, obriguei-me a instituir os diários de campo como instrumento de pesquisa. No
entanto, a adoção desse instrumento requer algumas considerações no intento de
compreender quais as suas possibilidades e limites na execução da pesquisa, bem
como requer situá-lo no âmbito das práticas discursivas anteriormente discutidas.
Os diários que apresentamos neste trabalho foram produzidos a partir da
nossa experiência na realização das oficinas vivenciais que realizamos
semanalmente na comunidade em questão, onde foram impressos os relatos –
transcritos na íntegra ou não –, impressões e afetações da equipe de extensionistas.
Diante desta situação, em que as narrativas se fundem com os olhares das
pesquisadoras, iremos tentar compreender como os diários se constituíram como
instrumento de pesquisa em seu tempo longo, a partir do que Medrado, Spink, e
Méllo colocam em seu texto Diários como atuantes em nossas pesquisas: narrativas
ficcionais implicadas, publicado em 2014.
Inicialmente, os autores citados já evidenciam que o Diário de Campo é “um
importante parceiro de pesquisa” (p. 273), mas que muitas vezes são tratados como
sobras que não sabemos como encaixar em nossas pesquisas, concebendo que o
mesmo recebe distintas atribuições em diferentes pesquisas. Contudo, a
conceituação do diário se faz basicamente compreendendo-o como “anotações
pessoais sobre acontecimentos marcantes ou sobre experiências do dia a dia”
(MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 273).
A origem do diário remonta a tempos antigos para uso pessoal e
costumeiramente para inscrições de cunho íntimo e/ou secreto e mantidos em locais
seguros ou trancados a chave. Hess (2006) o inscreve no movimento de “escrita
implicada”, no qual se inserem as memórias, os escritos autobiográficos, os diários
pessoais, as correspondências, etc. A utilização dos diários para fins de pesquisa
teve sua maior expressão no romantismo do século XVIII, em livros como As
confissões de Jean Jacques Rousseau.
39
Alguns desses diários tornaram-se testemunhos preciosos de eventos sociais. É o caso do diário de Samuel Pepys, funcionário público inglês do século XVII, que produziu seus escritos durante dez anos, a partir de janeiro de 1666. Nesse período, relatou em detalhe a epidemia de cólera de 1665 (conhecida como “A grande praga) e o incêndio de Londres, em 1666. A publicação desses diários é considerada de imenso valor histórico. (MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 274)
Encontramos ainda a utilização do diário para fins de registros náuticos,
aonde eram anotadas as informações sobre o percurso no navio. A esse tipo de
registro foi dado o nome de diário de bordo, expressão que veio ser consolidada a
partir do século XVII. Ressalta-se que este tipo de anotação tornou-se fundamental
para a descoberta e exploração de novos mundos, a exemplo da chegada dos
portugueses ao Brasil. Nos diários de bordo eram inscritos não somente aspectos
técnicos da viagem, mas também descreviam as condições e hábitos dos povos
encontrados.
As cartas ou correspondências também se tornaram uma espécie de diário
por se configurarem em conteúdo a ser analisado para a compreensão de fatos
políticos ou do cotidiano de outras épocas e lugares.
Contudo, já por volta do século XX e através dos estudos antropológicos é
que os diários de campo começaram a ser discutidos no contexto da metodologia de
pesquisa. Isto quer dizer que “a etnografia propriamente dita só teve inicio quando
pesquisadores se deslocaram para fazer a pesquisa por eles próprios. Isso ocorreu
na virada do século XX, tendo como importantes figuras Franz Boas e Bronislaw
Malinowski” (LAPLATINE, 1988 apud MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 276).
Compreendendo a origem do diário enquanto instrumento de pesquisa
científica, passamos a compreendê-lo enquanto uma modalidade de práticas
discursivas. Isto quer dizer que os diários ultrapassam a posição de meros escritos
compilados, passando a ser um tipo de linguagem em ação, que assume “nas vidas
de quem escreve e de quem lê muito mais do que uma simples relação entre
linguagem e ação [...] eles se constituem em ações que, portanto, produzem efeitos,
mobilizam afetos, são atuantes em jogo” (MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p.
277).
Medrado, Spink e Méllo (2014), propõe que os instrumentos utilizados na
coleta de dados, tais como: máquina fotográfica, filmadora, caderno de anotações,
sejam considerados como participantes da pesquisa. Assim, eles tratam os diários
de campo como atuantes. Pois, como dito com suas palavras “com ele e nele a
40
pesquisa começa a ter certa fluidez, à medida que o pesquisador dialoga com esse
diário, construindo relatos, dúvidas, impressões que produzem o que chamamos de
pesquisa” (p. 278)
O diário consegue fundir as palavras e as coisas, à medida que as acolhe em suas páginas. E cada vez que tais páginas são abertas, abrem-se fluxos de possibilidades de comentários; abrem-se para o inédito. O diário permite a impressão de notas (como na música) já ouvidas ou conhecidas, mas que serão montadas de outra forma produzindo certa “composição” (como as conclusões de uma pesquisa). (MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 278).
Os autores supracitados sugerem um rompimento à dicotomia sujeito x
objeto, deixando de lado a visão deste objeto enquanto algo inerte, limitado e
indeterminado, mas o remetendo a uma cadeia de relações que a pesquisa está
proporcionando. Méllo (2006) reforça que as análises devem ganhar forças nas
vozes que agenciam e criam os acontecimentos pesquisados. Não se trata,
portanto, do registro de “mera informação”, mas da produção de intensidades,
materializadas em conceitos (mesmo se sejam registros de imagens, sons, ou
“meras observações” [...] (MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 279).
Nesse aspecto, nos colocamos diante de uma questão importante. Como
poderíamos expressar em termos mais apropriados o ato de produzir diários?
Registrar? Anotar? Inscrever?
Registrar” vem do Latim regerère, que significa “repor, tornar a trazer; ajuntar, reunir”. Tais concepções parecem estar fortemente arraigadas a um modo de produzir (e falar sobre) ciência que nos remete a uma visão do conhecimento como espelho da natureza. (RORTY, 1994 apud MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 280).
Para estes autores, o termo registrar pressupõe um acontecimento anterior a
chegada do pesquisador, o qual colheu as informações para posteriormente
organizá-las. Já o termo “anotações” sugere escapar dessa percepção etimológica.
“As primeiras referências ao verbo “anotar”, segundo Houaiss (2001), são do século
XV, do latim adnòto (annòto), as, ávi, átum, áre, que significa simplesmente “fazer
observações, tomar nota, observar, designar” (ibid, p. 280). Para os autores, esta
formulação aproxima-se mais do que conceituamos como o ato de produzir o diário,
pois sugere uma observação de algo que está em andamento. Neste mesmo sentido
surge o termo “inscrever” que segundo Houaiss (2001 apud MEDRADO; SPINK;
MÉLLO, 2014, p. 281) “é datado do século XIX e vem do latim inscríbo, is, psi, ptum,
bère, que significa “escrever em; marcar, assinalar”. Tal expressão parece enfatizar
o ato interventivo do pesquisador na produção dessas anotações”. Contudo, não
41
existe uma regra para estes termos, ficando a critério do pesquisador. O que se quer
evidenciar é que na prática o ato de produzir o diário seja mais que uma mera
reprodução de fatos, que possibilite ou inaugure a partir deste, novas formas de
pensar sobre.
O ato de produzir diários, portanto, não assume a responsabilidade de dar
conta de toda a completude das experiências de pesquisa nem se propõe a uma
fidedignidade dos relatos (como trechos de falas, descrições de espaços,
vestimentas, etc). Deixou assim, de ser uma tentativa de aproximação à realidade do
outro. Clifford Geertz (1989) diz que as anotações em pesquisa passaram a ser
compreendidas como interpretações de segunda mão, pois para ele, somente um
nativo faz a interpretação em primeira mão. Para ele,
o que produzimos são, portanto, narrativas ficcionais, compreendidas não como falseamento da realidade, mas como produção, construção: “Ficções no sentido de que são „algo construído‟, „algo modelado‟ – o sentido original de fictio [que em latim significa formação, criação] – não que sejam falsas, não fatuais ou apenas experimentos de pensamento” (GEERTZ, 1989, p. 26).
Nossas anotações, nessa compreensão, são um conjunto de fragmentos
que serão posteriormente organizados em uma narrativa, em que neste percurso
alguns elementos podem ser acrescidos ou suprimidos, sob o pretexto de uma
melhor organização textual, transformando o ato de produzir o diário por si mesmo
um processo de construção discursiva, que resultará em uma produção de sentidos
sob a égide da verdade.
Essa discussão é potencializada no debate sobre observação “no” cotidiano proposto por Mary Jane Spink (2007), a partir do qual reafirma-se o lugar do/a pesquisador/a como partícipe da ação observada, uma vez que, como bem destaca a autora: “[...] fazemos parte do fluxo de ações; somos parte dessa comunidade e compartimos de normas e expectativas que nos permitem pressupor uma compreensão compartilhada dessas interações” (MEDRADO; SPINK; MÉLLO, 2014, p. 284, grifo nosso).
A produção do diário de campo assume entre os diversos pesquisadores três
elementos essenciais. São eles as falas, o contexto e a dinâmica nas relações entre
os interlocutores. Esses elementos não estão necessariamente presente em todos
os diários ou podem estar presente com maior ou menor ênfase a depender do
campo-tema da pesquisa. O que sugere-se dentro da concepção de Medrado, Spink
e Méllo (2014) é que os pesquisadores posicionem-se nesse escrita, “anotando, com
pouca ou nenhuma reserva, suas opiniões, impressões, incômodos, enfim
„afetações‟ produzidas no encontro com os interlocutores” (p. 286). Como salienta
42
Lisboa (2013, p. 24) “a interpretação não está somente no momento de análise do
diário de campo, mas antes mesmo – na própria escrita do diário”. Para esta autora,
a primeira escrita dialoga mais com os acontecimentos vividos, enquanto que uma
segunda análise da narrativa traria um aspecto mais formal, acompanhado de um
aporte cientifico.
Acredito que a melhor definição de diário enquanto instrumento de pesquisa
e motivo pelo qual nos reforça a escolha deste para um Trabalho de Conclusão de
Curso, como mais uma produção advinda de um projeto de extensão (que não se
esgotou por si mesmo) e continua a gerar frutos é o que Medrado, Spink e Méllo nos
oferece:
Um “arquivo vivo” que nasce cada vez que se abre para nova escrita ou nova leitura. Existe e se faz no tempo, na promessa cotidiana de vivência cúmplice e solidária (tornando as pesquisas menos solitárias), resultando em algo que não se limita às condições de sua produção, nem à sua suposta autoria original. (2014, p. 291)
Diante desta concepção, supomos com nossos registros oferecer à
Comunidade Akanni um arquivo-vivo, apropriando-se do termo utilizado pelos
autores supracitados, para constantes reentrâncias em suas próprias produções, ou
melhor dizendo, naquilo que produzimos juntos – comunidade e pesquisadoras –
através de suas rememorações, de nossos instigamentos, de suas e nossas
afetações.
43
4 RELATOS DA EXPERIÊNCIA DO PROJETO DE EXTENSÃO AKANNI
“Eu mesmo valorizo a minha cor, o povo diz quando uma morena
passa na rua: Eita pedaço de morena!”.
Cecí Moradora da comunidade Akanni
Neste capítulo apresentamos os relatos da experiência do projeto de
extensão “Intervenções psicossociais no processo identitário de mulheres negras
rurais”, desenvolvido por quatro alunas extensionistas do Curso de Psicologia da
Universidade Federal de Alagoas – Unidade Palmeira dos Índios, realizado na
comunidade Akanni. O projeto teve como objetivo promover espaços de
conversação dialógica que considerassem o processo de identificação das mulheres
da comunidade para que elas pudessem rever sua memória social e afetiva
construindo novos significados para a discriminação sofrida e à marginalização dela
decorrente e, assim, ressignificar e produzir novos sentidos acerca do seu
pertencimento identitário étnico-racial. 5
Ao todo foram realizados 22 encontros na comunidade. Contudo,
apresentamos e analisamos neste trabalho apenas 08 encontros que suscitaram as
questões mais relevantes dentro dos objetivos deste trabalho.
Os encontros relatados atendem a três aspectos fundamentais do processo
de constituição identitária de um determinado grupo, os quais formarão os três
subitens a seguir: 1) A compreensão do território enquanto espaço de preservação e
sobrevivência do grupo, buscada através da rememoração de suas histórias de vida
e de seus antepassados; 2) As cantigas de trabalho enquanto registro histórico-
cultural e disparador de elementos identitários; e 3) A “mulher negra” enquanto
categoria de enfrentamento ao racismo e machismo na sociedade atual.
Em cada subitem são descritos os Diários de Campo produzidos em conjunto
pela equipe extensionista, seguidos de reflexão teórica e impressões pessoais de
nossa autoria sobre as experiências do projeto.
5 Ressaltamos que este trabalho já foi publicado e este capítulo é uma versão readaptada da
publicação original. RIBEIRO, Flávia Regina Guedes; GOES, Andressa Santos; MOREIRA; Katiane da Hora; ROCHA, Jôsy Alves. Intervenções psicossociais no processo identitário de mulheres negras rurais. In: SILVA; Jeferson Santos da et el. Cabeça preta: pesquisas sobre a questão racial em Alagoas. Instituto do Negro de Alagoas (INEG) – Belo Horizonte: Nadyala, 2017 Cap. 05. Pág. 107 a 124.
44
4.1 Conhecendo a comunidade
O primeiro encontro realizado na comunidade teve como objetivo conhecer
as histórias de vida das mulheres moradoras da comunidade e rememorar a origem
do território. Também tivemos como objetivo favorecer a criação de vínculos e uma
maior interação entre as participantes e as facilitadoras do processo grupal. Esse
encontro foi dividido em três momentos. No primeiro momento nos apresentamos
enquanto estudantes do curso de Psicologia da UFAL – Unidade Palmeira dos
Índios; apresentamos a pesquisa/projeto e explicamos o que é Psicologia e qual o
seu papel diante das questões sociais e negociamos com as participantes os dias e
horários dos próximos encontros.
No segundo momento realizamos a dinâmica “Emboladão” para favorecer a
formação de vínculos e a interação do grupo. E no terceiro momento pedimos que
cada uma das participantes falasse sobre a sua vida, tentando resgatar a história e a
relação de cada uma delas com a comunidade. Nesse momento também
participamos partilhando as nossas histórias de vida. Trabalhamos com elas através
da escuta e do acolhimento ao sentimento de pertencimento identitário.
Neste primeiro encontro estavam presentes inicialmente 07 pessoas, e na
metade do encontro chegaram mais duas. Dessas 09 pessoas, 02 eram homens,
mas estes ficaram apenas observando e não participaram ativamente do grupo.
Começamos o momento falando o quanto estávamos felizes em estar realizando
este projeto com eles e naquela comunidade, e agradecemos por eles estarem
dispostos a nos receber e trabalhar conosco. Apresentamos-nos enquanto
estudantes de Psicologia, e também expomos o que estamos esperando da
realização deste projeto. Logo após pedimos para que elas se apresentassem. A
mais velha do grupo começou dizendo seu nome, Rosa P.B., e acrescentou: “Estou
muito feliz em estar participando deste trabalho com vocês (sic)”. As outras
preferiram só dizer o nome: Elisa, Angelica, Cecí, Francisca e Joana (nomes
fictícios). Então lançamos a pergunta: O que vocês acham que é um psicólogo?
Para podermos esclarecer quaisquer dúvidas em relação a esse profissional e a sua
atuação. No primeiro momento elas disseram que não sabiam. Dona Rosa até disse
que a única pessoa que saberia dizer era a Francisca, por ela ser graduada. Então
foi quando tentamos ajudá-las a responder dizendo para elas falarem o que pensam
45
quando ouvem a palavra: psicólogo. A Cecí começou dizendo que achava que era
um médico. Francisca disse: “São pessoas capacitadas para ajudar pessoas com
dificuldades (sic)”. Depois das respostas delas, tentamos explicar de forma simples,
para que todas entendessem o que faz esse profissional. Antes de terminarmos,
Dona Rosa, disse que agora estava entendendo direito e que estava gostando de
tudo que estávamos falando, e até arriscou uma explicação, “São pessoas para dar
força a gente quando estamos com problemas (sic)”. Logo após este momento,
explicamos a elas os objetivos do projeto e como queremos trabalhar com elas
durante este período. Dissemos que estaremos sempre dispostas, e que se alguma
delas precisarem estaremos sempre à disposição para ouvi-las. Dona Rosa ficou
emocionada e disse, “Durante esse ano vou precisar muito de um psicólogo. Com
uma palavra amiga a gente vai pra frente (sic)”. E ainda acrescentou: “Estou aqui
conversando com vocês, e já me dá vontade de chorar (sic)”. Acolhemos Dona Rosa
e fechamos este primeiro momento. Passamos então para o segundo momento, a
dinâmica. Logo Elisa manifestou-se dizendo que nunca gostou das dinâmicas que
faziam na escola, e que se não gostasse não iria participar. Dissemos que elas
estariam à vontade para decidir se iriam ou não participar, mas que elas iriam gostar
muito. Então todas decidiram participar. Fizemos a dinâmica “emboladão”, tentamos
adaptar o objetivo da dinâmica com a realidade delas e no fim todas aplaudiram e os
comentários foram ótimos. Elisa fez uma comentário importante para nós: “se todas
as dinâmicas forem assim, sempre vou participar (sic)”. Então passamos para o
terceiro momento, em que todas teriam que contar suas histórias de vida.
Percebemos que umas tem mais facilidade em falar abertamente do que outras.
Francisca foi quem começou, dizendo que é natural de Santana e nasceu lá mesmo
no Sítio Akanni. É casada, tem dois filhos, se formou em pedagogia na antiga Escola
Superior do Sertão – ESSER, que hoje é a Universidade Estadual de Alagoas –
UNEAL e é professora da Educação Infantil. Angélica disse que é de Santana,
solteira e tem 52 anos. Nasceu lá na comunidade. Cecí tem 36 anos, está há 08
anos casada e tem três filhos. Em suas falas pudemos perceber que ela torce muito
para os filhos terem um bom futuro. Elisa nasceu na comunidade e sempre morou lá.
Tem dois filhos, um de 09 e outro de 15 anos. Joana disse que tem 6 filhos, mas não
quis falar mais. A dona Rosa tem 66 anos, teve 12 filhos, mas 06 morreram,
emocionada referiu-se aos filhos assim: “são tudo na minha vida, meus filhos (sic)”.
Disse ser mais velha que o marido 13 anos e sobre seu relacionamento com ele
46
descreveu assim: “É meu tudo. Meu marido, meu pai, minha mãe, meu amigo (sic)”.
Descreveu sua vida dizendo: “Minha vida para mim foi tudo. Sofri muito, mas valeu a
pena (sic)”. Depois que elas falaram, nós também contamos as nossas histórias de
vida. Encerramos o encontro dizendo o quanto estávamos felizes com o encontro e
os resultados de hoje.
Ao final do encontro pudemos avaliar o que o momento foi muito acolhedor,
pois fomos bem recebidas pela comunidade e não encontramos nenhum entrave ou
dificuldade para a realização do grupo. Embora não tenhamos conseguido conhecer
a história da comunidade por meio das falas das participantes nesse primeiro
momento, nós conseguimos formar um vínculo com a comunidade.
Para o segundo encontro, tivemos como objetivo resgatar a origem e história
da comunidade; Fortalecer a identidade do grupo e contribuir para a formação da
consciência de sujeito histórico da comunidade. Para esse encontro planejamos dois
momentos. No primeiro momento faríamos o acolhimento e a organização de uma
roda de conversa aonde seriam resgatadas histórias da comunidade através da
associação de ideias e palavras-chaves registradas nas falas das mulheres no
primeiro encontro. Por exemplo: balaios, origem da terra, Rio Ipanema, nome da
comunidade, etc. No segundo momento realizaríamos uma oficina de produção de
uma linha do tempo, tentando relacionar a história de vida dos participantes do
grupo com história da comunidade. Durante toda a atividade a equipe esteve atenta
para registrar o máximo de informações sobre a origem e história comunidade, pois
compreendemos que na confecção da linha do tempo não seria possível expor todos
os dados levantados na roda de conversa. Ao final, proporíamos aos participantes
se manifestar sobre o significado da atividade, a equipe também poderia se
manifestar em relação ao aprendizado adquirido com as histórias de vida e da
comunidade.
A partir desse planejamento nos organizamos para manter a nossa
pontualidade do horário de chegada à comunidade para não desestimular as
participantes. Dessa forma, chegamos à comunidade no horário combinado, mas
assim como acontecera no 1º encontro, ficamos esperando as mulheres chegarem.
Ficamos esperando cerca de 30 minutos e enquanto todas não chegavam
aproveitamos para perguntar a quem ia chegando como elas passaram a semana.
Dona Rosa trouxe uma queixa que acabou afetando o grupo, ela relatou que
procurou um banco para fazer um empréstimo e chegando lá descobriu que fizeram
47
três empréstimos no nome dela e já estava sendo descontado na sua aposentadoria.
Nós tentamos apontar algumas soluções como procurar um advogado ou uma
defensoria pública, já que o banco não se prontificou em apurar o caso. Ela disse
que estava bastante arrasada com o acontecido, mas que estava tentando melhorar
o ânimo. Durante a fala de Dona Rosa, as outras participantes também se
manifestaram com exemplos e outros casos que elas conheciam e se mostraram
indignadas. Após o acolhimento à situação de D. Rosa, começamos esclarecendo
que o grupo não precisava ser necessariamente apenas com mulheres e seria
interessante, caso elas se sentissem à vontade, que os homens também
participassem, principalmente o marido de Dona Rosa, o Tião, pois ele tem um papel
importante na comunidade e é bastante articulador. Depois demos início à proposta
do encontro explicando o que pretendíamos e a importância da participação ativa
delas. Abrimos a fala perguntando para o grupo como eles chegaram à comunidade,
qual a origem da terra e como era antigamente – até onde suas memórias fossem
capaz de chegar; Dona Rosa foi a primeira a contar sobre como era a comunidade,
ela relatou que “a terra é tudo de herança, eu herdei da minha mãe e mãe herdou do
pai (...) é tudo de uma família só (sic)”. Tião disse que não sabiam ao certo a origem
da terra, sabia que na comunidade tiveram terras que foram herdadas e outras que
foram invadidas. E acrescentaram que não sabiam como os pais adquiriram as
terras. Dona Rosa falou que na época da mãe dela as pessoas viviam da agricultura,
ela deu o exemplo de plantações de macaxeira que era utilizada para fazer farinha,
e arroz. Nessa época algumas famílias também utilizavam da confecção de balaios
de cipó para a sua renda, e os mais velhos ensinavam para os mais novos como
eram feitos. A família de dona Rosa não trabalhou com balaios. Dona Rosa cresceu
na roça, como ela coloca em uma de suas falas: “Comecei a trabalhar com dez anos
até cinquenta e cinco. Me criei na enxada e criei meus filhos na enxada (sic)”. E
acrescentou: “A vida da gente é na roça (sic)”. Ela ainda falou: “Eu trabalhava três
dias segunda, terça e quarta, e quinta e sexta ia para a escola (sic)”. Todos também
falaram sobre o rio Ipanema, e em suas falas sempre diziam que era limpo, era até
utilizado para tomar banho, como Angélica ressalta: “Quando eu era criança ia tomar
banho lá antes de ir para a escola (sic)”. Antigamente todas as casas da
comunidade eram feitas de taipa, só há 11 anos atrás, segundo Tião, depois de um
abaixo assinado que fizeram, conseguiram um projeto da prefeitura para a
construção de casas de alvenaria. Francisca disse que só lembrava que as terras
48
foram herdadas. Disse também que ela ia para a roça e ficava lá até a hora de ir
para a escola. Angélica falou: “Meus pais e meus avós viviam da agricultura.
Trabalhavam na roça (sic)”. Dona Arlinda, a mãe de Tião, começou a morar lá com
doze anos de idade. “Aqui cresci, aqui me casei (sic)”. Os pais delas nasceram e se
criaram na comunidade. Joana falou: “Usei o „Panema‟ para tomar banho (sic)”.
Perguntamos se na comunidade tinha festas com danças culturais. Dona Rosa foi a
primeira a se manifestar, dizendo que tinha o reisado, e que achava mito bonito. Ela
disse: “Só podia assistir as outras meninas dançando reisado, pois a minha mãe não
me deixava dançar (sic)”. Ela também deu o exemplo de outras danças, como:
mazuca (valsa), bolero e forro. Disseram que as únicas festas que acontecem lá
são: quadrilha, natal e ano novo. Falaram que antigamente tinha capoeira e
demonstraram gostar muito, como em uma das falas de dona Rosa: “Trabalhávamos
o dia todinho na enxada, chegávamos em casa para tomar banho e íamos dançar
berimbau a noite toda (sic)”. Depois dos relatos propomos a confecção da linha do
tempo em uma cartolina, distribuímos revistas entre elas e pedimos que elas
recortassem figuras e imagens que retratassem a história da comunidade. Enquanto
elas iam procurando as imagens, nós íamos preparando o painel e construímos
todas juntas a linha do tempo.
Na avaliação que o grupo fez do encontro, consideramos que o mesmo foi
produtivo, apesar da queixa trazida por D. Rosa. Essa queixa serviu para notarmos o
quão é forte o vínculo entre elas dentro da comunidade, pois todas se sentiram
afetadas com o problema de D. Rosa. No início elas ficaram inibidas e distraídas,
mas aos poucos foram se entrosando na proposta e participaram ativamente do
encontro, contando como era a comunidade antigamente e confeccionando a linha
do tempo.
A comunidade Akanni ainda não tem titulação de comunidade remanescente
de quilombo e seus moradores tampouco conheciam, a época da realização do
projeto, a importância deste título, principalmente no tocante ao acesso a direitos
constitucionais. Narravam apenas que aqueles “pedaços de terra” foram herança de
seus pais que herdaram dos pais deles e assim por diante, entre alguns breves
relatos de que algumas famílias adquiram terras por meio de invasões.
No entanto, assim como as terras, os modos de vida são perpetuados e
repassados por gerações, embora alguns costumes tenham se perdido com o
passar do tempo e sob a influência das mídias. O conceito de vida em comunidade
49
ainda é fortemente preservado, pois vemos uma tendência à permanência na
mesma família e no mesmo território. Poucas pessoas saem definitivamente da
comunidade, bem como poucas pessoas adentram o território deles.
Não queremos com isso tratar a comunidade como algo isolado ou à
margem da sociedade, mas enfatizar que como relembra Gomes (2005, p. 41) “[...] a
busca da identidade por parte de um grupo social evoca a diferença deste em
relação à sociedade”. E ainda tomando o conceito de quilombo ressemantizado,
verificamos que cada comunidade constitui-se a partir de suas próprias dinâmicas de
relações sociais, manifestadas através das mais diversas práticas, como a
linguagem, os rituais, a religiosidade, entre outros.
Ao analisarmos os relatos das moradoras da comunidade Akanni
percebemos como as histórias de vida dessas mulheres se entrelaçam com a
pertença ao território e ao trabalho na terra. Relatos como “aqui é tudo uma família
só” e “aqui cresci e aqui me casei (sic)”, nos trazem elementos identitários
fortemente ligados ao lugar de que se fala, como diz Nascimento et al (2016) a terra
adquire particular significado aos quilombolas, por ser o instrumento de coesão do
grupo e de preservação de sua cultura, além de garantir a subsistência do grupo
através da agricultura.
Outro aspecto incumbido nesse conceito de território trata-se do trabalho na
terra. “Me criei na enxada e criei meus filhos na enxada (sic)”, “a vida da gente é na
roça (sic)”. Assim, trabalhar especificamente na terra, para além na necessidade de
subsistência, supõe um modo de ser e estar no mundo, sobre o qual se produz o
sentido de sua existência. O território, portanto, compreendido enquanto espaço
físico e relacional constitui-se como elemento obrigatório de reconhecimento
identitário da comunidade.
Baseado no conceito de território, teórico e juridicamente, têm-se justificado
a necessidade de reconhecimento de uma comunidade negra como sendo
remanescente de quilombo ou quilombola pela luta da posse da terra. Contudo,
enfatizamos a partir dessa experiência que o fortalecimento da identidade étnica
dessas comunidades, a partir de projetos das diversas entidades, como ongs,
instituições de ensino e sindicatos, entre outros, precisam ser instituídas para além
da posse de terras, mas também pelo reconhecimento de seus modos de vida e pela
efetiva participação na vida política e pública, como sujeitos de direitos, afim de
50
desmascarar os preconceitos institucionalizados nos diversos setores de nossa
sociedade.
4.2 Cantigas de Trabalho
O segundo tema despertado durante a realização do projeto e que trouxe
grande afetação a equipe de extensionistas, bem como refere grande significado ao
processo identitário da comunidade, foram as cantigas de trabalho. Essas cantigas
vieram à tona nos relatos sobre o trabalho na terra e ao serem analisadas pela
equipe de extensionista mostrou-se como uma fonte inesgotável de produção
discursiva acerca da comunidade.
As cantigas de trabalho são pequenas rimas entoadas nas lavouras ou
“roça”, termo utilizado pelas integrantes do grupo para definir o trabalho nas
plantações de feijão e milho ou mandioca, que elas trabalharam junto a seus pais e
familiares. As cantigas trouxeram aos relatos apresentados por elas grande carga
emocional, bem como ajudaram no processo de rememoração de aspectos culturais
da comunidade.
Munidas pelo objetivo de desvendar os conteúdos implícitos nestas cantigas
e através destes fortalecer a identidade da comunidade, elaboramos algumas
propostas de atividades para fazer esse resgate histórico e cultural. No primeiro
encontro realizado com o objetivo de desvendar as cantigas de trabalho, propomos
uma roda de conversa para rememoração das cantigas que mais marcaram suas
histórias de vida.
Começamos o encontro explicando a proposta da roda de conversa sobre as
cantigas de trabalho. No início foi difícil, pois só Dona Rosa lembrava das músicas
antigas e mesmo assim, não recordava as músicas por completo. Ela dizia a todo
instante “Ah! Minha fia eu tô velha, num lembro de muita coisa não (sic)”. Mas
insistimos e ela aos poucos foi lembrando alguns versos de cantigas, enquanto ela
cantava bem baixinho, nós íamos anotando a letra. As outras participantes nos
ajudavam memorizando os versos e repetindo para a gente anotar. As mais novas
embora conhecessem poucas cantigas, iam ajudando D. Rosa a recordar alguns
versos. Tivemos muito trabalho com a atividade deste dia, nem todas participaram,
pois não conheciam as cantigas inteiras. Nós dissemos que nós entendíamos que
51
era difícil e lento esse processo de rememorar, então pedimos que elas à medida
que fossem lembrando em casa, fossem anotando para repassar para gente.
Neste encontro não conseguimos resgatar muitas cantigas visto que o
processo de rememoração é lento, porém, foi produtivo pelo fato das mulheres
terem aceitado a proposta.
No próximo encontro tivemos como objetivo a construção de uma cartilha
com as cantigas de trabalho. Esta cartilha seria reproduzida e doada a comunidade
como registro de nossas intervenções e como documento que inscreve um legado
histórico da comunidade.
Neste encontro explicamos mais detalhadamente nosso objetivo com as
cantigas de trabalho e de como o resgate dessas cantigas estão entrelaçadas à
história da comunidade, aos aspectos culturais, a linguagem, as crenças, ao
sentimento de pertença ao território, entre outros. Propomos então, a confecção de
uma cartilha com as cantigas de trabalho que elas se recordam e sugerimos a
rememoração de outras cantigas que não sejam necessariamente de trabalho.
Ao chegarmos à comunidade, D. Rosa estava deitada e Tião estava
trabalhando no terreiro (termo utilizado para designar o espaço de terra ao redor da
casa) e o restante das mulheres estava em suas casas. A neta de D. Rosa, a Danila,
foi chamar o restante das participantes para começarmos o encontro e D. Rosa foi
tomar banho. A falta de uma das extensionistas foi logo notada por elas (o que
evidencia o vínculo com a equipe). Nossa intenção era continuar com a coleta das
cantigas e elaborar a cartilha com as cantigas de trabalho trazidas pelas
participantes. Levamos o CD de cantos de trabalho da Companhia de Teatro Cabelo
de Maria e passamos algumas cantigas, duas delas D. Rosa tinha lembranças sobre
o refrão. Dissemos a elas que duas cantigas daquelas foram cantadas pelas
destaladeiras de fumo de Arapiraca (Grupo de Mulheres Resgata Cantos dos Salões
de Fumo de Arapiraca - AL). Tião afirmou que já tinha as visto cantando. Passamos
também um vídeo em que um grupo de homens dançava a cantiga de trabalho
“Mineiro Pau”, uma das cantigas que D. Rosa e sua família cantavam na época das
colheitas de feijão e milho. Tínhamos pedido para elas, no encontro anterior, que
fossem lembrando de mais cantigas e D. Rosa afirmou que quando foi catar laranja
lembrou-se da cantiga da laranjeira e cantou para gente. Juntas, elas lembraram
mais cantigas, e a gente percebeu que não se limitava apenas às cantigas de
trabalho, mas a cantigas em geral de todo o cotidiano delas. Cogitamos a
52
possibilidade de escrever e aprender todas as cantigas a fim de gravar um disco
também como o da companhia de São Paulo. Sobre isso, D. Rosa afirmou que
dessa forma não iriam esquecer mais das cantigas. Em seguida, com a ajuda delas
nós conseguimos registrar as letras das cantigas e anotá-las em folhas sem pauta
para nós confeccionarmos a cartilha das cantigas da comunidade.
Avaliamos este encontro como mais produtivo que o anterior. No início ainda
tivemos dificuldade, pois havia muita conversa paralela, mas depois conseguimos
direcionar a atenção delas para a atividade proposta e elas começaram a participar
nos ajudando a registrar as letras das cantigas, cantando e soletrando. Notamos que
esse resgate da história oral da comunidade é muito importante, uma vez que ela
consegue aproximar o passado ao presente, aproximar as diferentes gerações.
No terceiro encontro realizado com tema Cantigas de trabalho realizamos
uma oficina com o tema: (Re)significando as cantigas da comunidade. O objetivo foi
trabalhar o fortalecimento da comunidade por meio das cantigas; Identificar e
registrar elementos identitários da mesma; Contribuir para o processo de produção
de significados da comunidade.
A proposta de atividade desse encontro era dividir as cantigas entre as
participantes. Cada uma delas ficaria com uma cantiga e seria responsável pela
leitura da mesma, as outras participantes ouviriam atentas e depois todas teriam que
falar o que a letra da cantiga evoca, o que representa para si, assim como atribuir
um sentido para tal.
Ao chegarmos à comunidade, como de costume, ficamos esperando as
participantes chegarem, como era dia de feira na cidade elas demoraram mais que o
de costume. Esperamos cerca de 40 minutos e resolvemos começar o encontro, por
causa do horário e também por saber que era dia de feira e nem todas iriam poder
estar presente. Iniciamos falando o quanto o trabalho das cantigas da comunidade
nos deixou motivadas e ressaltamos a relevância desse trabalho para a história da
comunidade e para o Estado de Alagoas. Também comentamos com elas o fato de
uma possível submissão do projeto no PROINART, através da permissão delas.
Explicamos para elas qual o objetivo dessa submissão e a importância de cadastrar
o trabalho que estamos realizando na comunidade, dissemos o que elas teriam que
fazer e afirmamos que nós daríamos todo o suporte preciso, então elas nos
autorizaram a submeter o projeto. Depois dos avisos e explicações, demos início à
proposta do encontro, distribuímos as cantigas entre elas e como só estavam
53
presentes 06 participantes nós também ficamos com algumas cantigas. Pedimos
que cada uma fizesse a leitura de sua cantiga e em seguida dissesse qual a
mensagem trazida pela cantiga, o que ela representa e logo em seguida as outras
participantes também falavam sobre essa mesma cantiga. E assim sucessivamente.
A primeira cantiga lida foi Pau Pereiro:
PAU PEREIRO
Pau Pereiro
Pau Pereiro
Pau Pereiro do sertão
Minha mãe me chama feia
Só ela quer ser bonita
Ela é a fita verde e
Eu sou o laço da fita
Em relação à cantiga Pau Pereiro, elas nos relataram que pau pereiro é o
nome de uma árvore típica do sertão e que existe na comunidade, D. Rosa afirmou
que “é um pé de pau que todo tempo está bonita, cheirosa, a folha fica sempre verde
até no tempo da seca (sic)” e ainda que essa árvore não morre e relembra muito a
sua família, as outras participantes nos relataram onde tem um pau pereiro e disse
que tinha um bastante antigo dentro da comunidade, mas um parente delas foi matar
um casa de abelhas e acabou matando a árvore.
A segunda canção lida foi “Cor Morena”:
COR MORENA
Rosa noiva, rosa Açucena
Rosa amarela
Eu só amo a cor morena
Quem não ama a cor morena
Morre cego e não ver andar
A cor morena é a cor
De prata relada
54
Em relação à cantiga Cor Morena percebemos um maior entrosamento das
participantes, D. Rosa a mais velha do grupo nos relatou que “A cor da gente, não
sei hoje minha fia, mas antigamente a cor morena era desprezada, não andava mais
com nós (sic)”. Nós enfatizamos que isso é Racismo, uma prática ainda presente em
nossa sociedade. D. Rosa relatou que “existe até com gente da minha casa, meu
filho mesmo se fosse branco tinha arrumado um emprego num mercadinho, só não
arrumou porque ele é preto (sic)” e nos explicou que o filho se apresentava para
trabalhar nesse mercadinho, mas o dono sempre arrumava uma desculpa e quando
ele menos esperava já tinha outra pessoa (branca) trabalhando lá. D. Rosa com ar
de indignação nos disse “Tem chance pros branco e não tem pra os preto! (sic)”.
Joana assim que D. Rosa terminou de falar, foi logo dizendo “Eu mesmo valorizo a
minha cor, o povo diz quando uma morena passa na rua: - Eita pedaço de morena!
(sic)” e D. Rosa completou “Eu tenho orgulho da minha cor, eu acho bonito todas as
cor, mas Deus me perdoe, mas eu não acho a cor branca bonita não (sic)”, notamos
nessa fala a resistência de D. Rosa frente ao preconceito. D. Rosa nos disse que a
sua família “tem gente de toda cor, é uma mistura (sic)” e nos relatou que existe um
parente bem branquinho e que “não tem quem diga que ele é da família (sic)”, ela
nos disse que ele também deve até negar que seja parente deles. Francisca fez o
seguinte relato: “Quem não gosta da cor morena é o branco! (sic)”. Nessa ocasião D.
Rosa nos trouxe também o relato do preconceito com as mulheres negras que eram
empregadas domésticas e nos relatou um fato importante da história da cidade ao
dizer que “Antigamente não entrava no Tênis (um clube de festas da cidade) nem
negro, nem as empregadas (sic)” e nós aproveitamos para falar também dessa
questão das empregadas, porque em outro encontro Cecí, que não estava presente
hoje, havia nos reclamado sobre o seu emprego de doméstica, e nós lembramos e
relatamos para ela a história real de um filme sobre o preconceito com a mulher
negra e cogitamos a possibilidade de levar este filme para elas assistirem.
Em seguida veio a cantiga Na Peneira:
NA PENEIRA
Eu tava na peneira
Eu tava peneirando
Eu tava no namoro
Eu tava namorando
55
Eu tava no rebolo
Eu tava rebolando
Em relação á cantiga Na Peneira, elas nos relataram que essa cantiga vem
das casas de farinha e que “essa cantiga era boa para namorar (sic)”. D. Rosa
afirmou que, por causa da animação das cantigas “a gente trabalhava que nem
sentia, era moça, rapaz e menino tudo junto na casa de farinha. Passava dia e noite
(sic)”. Na ocasião elas também lembraram do tempo da fartura, no qual os seus pais
estocavam comidas, assim como lembraram também do tempo ruim, o tempo da
fome, no qual eles comiam farinha de carne seca porque não tinha outra coisa para
comer.
A próxima cantiga lida foi Laranjeira:
LARANJEIRA
Laranjeira pequenina
Carregada de fulô
Eu também sou pequenina
Carregada de amor
A flor da laranjeira
É branca e cheira
As meninas vão dizendo que eu sou solteira
Em relação à cantiga Laranjeira elas nos relataram que nesta cantiga é feita
uma comparação entre a menina solteira e a flor da laranjeira “cheirosa e bonita
(sic)”. E que é uma cantiga mais romântica. Nos disseram que existe uma laranjeira
na comunidade, inclusive D. Rosa nos disse que lembrou de mais versos dessa
cantiga quando foi apanhar laranja, mas esqueceu novamente.
A próxima cantiga foi Cananeu:
CANANEU
Cananeu, cananeu
Cananeu Mané Sinhá
A cana aqui é pouca
Não dá para se embriagar
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Cananeu, cananeu
Atirei o lenço branco
Nos ares se despedaçou
Despedaçado se veja
Quem por outra me trocou
Em relação à cantiga Cananeu, elas nos relataram que essa cantiga era
uma “cantiga de bater feijão (sic)”, os homens e as mulheres bebiam para dar
coragem de bater o feijão o dia todo e a noite, nessa ocasião D. Rosa com ar de
saudade disse “Esse tempo era bom! (sic)”. Segundo elas, Cana é um dos nomes
dados a bebidas alcoólicas produzidas a partir do caldo da cana de açúcar.
Em seguida lemos a cantiga Menina:
MENINA
Menina das três meninas
Todas três eu quero bem
Uma mais do que a outra
E a outra mais do que ninguém
Em relação à cantiga Menina, elas nos relataram que essa música tem haver
com o amor materno, D. Rosa afirmou que “uma mãe de família pode ter 10 filhos,
mas o amor é igual para todos (sic)”. As demais concordaram e não quiseram
acrescentar outras interpretações.
Lemos em seguida a cantiga Adeus, Maria José:
ADEUS, MARIA JOSÉ
Adeus Maria José
Adeus Maria José
Apois me diga adeus
Maria José
Eu mandei fazer um vestido pra mulher
Me diga quanto é meia dúzia de botão
Colchete de pressão
Vá na casa de D. Augusta
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Pergunte quanto é que custa
Um cravo branco na mão
Em relação à cantiga de Adeus Maria José, só D. Rosa se expressou sobre
esta cantiga, dizendo que gosta muito porque tem o nome dela e disse que lembrava
muito de um primo já falecido.
Avaliamos este encontro como bastante produtivo, visto que todas elas
participaram de alguma forma, lendo ou expressando o significado das cantigas.
Notamos que elas gostaram do encontro e que tiveram espaço para expressar as
suas opiniões. No fim do encontro recebemos elogios delas com as seguintes
expressões: “Hoje foi bem melhor (sic)” (disse Cícera, uma participante que não
gostava de falar nos primeiros encontros) e “Tá cada dia melhor (sic)”, disse D. Rosa
ao afirmar que ela gosta muito de quando nós fazemos os encontros e disse que a
fazemos falta quando não vamos.
Como podemos perceber a rememoração dessas cantigas nos possibilitou
acessar vários elementos identitários da comunidade. A possibilidade de
ressignificar essas rimas foi um excelente disparador de produções discursiva para
as mulheres participantes. Desse modo, não restringimos os significados do
cotidiano delas a uma realidade extinta e presa a um passado, mas trazendo a
compreensão dessas relações de trabalho anteriores para o presente, como
elemento de luta e resistência. Dentre os principais temas discutidos, tivemos o
racismo, o trabalho na terra e nas casas de farinha, danças típicas, maternidade,
entre outros.
As cantigas mais relacionadas ao trabalho nos “apontam fortes indícios de
um processo de resistência cultural ao árduo trabalho realizado no campo,
sinalizando ainda a prática significativa de manifestações de solidariedade e
divertimento construídas nessa vivência”. (Santos, ano, p. 01) como, por exemplo,
na cantiga Cananeu, que aponta uma origem mais antiga, remetendo ao trabalho
escravo, mas que ao recordar dos dias de trabalho quando entoavam essa rima D.
Rosa foi enfática: “esse tempo era bom! (sic)”. Já em Na Peneira, que remete ao
trabalho nas casas de farinha acompanhadas de irmãos, pais e amigos, as
recordações e afetações são de alegria e festividade.
[...] rememorar os cantos de trabalho, numa perspectiva de entrelaçamento entre festa/trabalho, expõe a acepção do próprio lavrador acerca de sua cultura. O trabalho perpassa toda a sua vivência, constituindo-se como mola
58
propulsora da resistência cotidiana empreendida por esses atores. Assim, os lavradores se reuniam espontaneamente com o intuito de ajudar a um companheiro: surpreendendo, brincando, mas acima de tudo enfrentando a ventura camponesa, em que seu meio de sobrevivência tornava-se, concomitantemente, um instrumento de luta e lazer. (SANTOS, 2006, p.04)
Nesta perspectiva, enfocar as cantigas de trabalho significa, a priori,
evidenciar um costume existente na comunidade, em que a ajuda mútua funcionava
como um dos principais elementos constituintes da interação entre famílias. Embora
não tenham citações dessas falas nos Diários apresentados, nos recordamos de
como a cooperação entre essas as pessoas fazia parte do processo produtivo.
Outra característica que foi possível perceber nos relatos e significados das
cantigas foi a inexistência de conflitos de gênero nas relações do trabalho rural.
Naqueles momentos de lida com a terra homens e mulheres desempenhavam
atribuições semelhantes, embora o mesmo não acontecesse em suas relações
domésticas.
A cantiga Cor Morena nos revelou o peso do preconceito racial vivido pelas
mulheres da comunidade, ao tempo que as levou a ressignificar a beleza de sua cor.
Vemos que no início dos relatos, traziam conteúdos de preconceito e
desvalorização, como em “tem chance pros branco e não tem pra os preto! (sic)”. E
em “[...] meu filho mesmo se fosse branco tinha arrumado um emprego num
mercadinho, só não arrumou porque ele é preto (sic)”. Porém, ao avançarmos na
discussão vimos como o repertório foi sendo modificado. Por exemplo em “eu
mesmo valorizo a minha cor, o povo diz quando uma morena passa na rua: - Eita
pedaço de morena! (sic)” e em “eu tenho orgulho da minha cor, eu acho bonito todas
as cor, mas Deus me perdoe, mas eu não acho a cor branca bonita não (sic)”.
Vale ressaltar, porém, que as cantigas registradas podem apresentar
variações nas letras decorrente da pouca memória das participantes quanto às
cantigas, porém mesmo os fragmentos apresentados correspondem a memória
afetiva que pôde ser acessada no momento.
Os “esquecimentos” das cantigas por parte de alguns depoentes são significativos, na medida em que só faz/fez sentido para alguns cantá-las em época e espaço determinados, pois essa musicalidade constituía-se como parte integrante de um contexto específico, fortemente marcado por momentos de solidariedade, com motivações peculiares. (SANTOS, 2006, p. 04)
Compreendemos, por fim, que estas cantigas, para além de amenizar a
dureza do trabalho ou mesmo cantadas em datas festivas, são acima de tudo a
59
possibilidade que o homem ou mulher negra tem que fazer soar sua voz e assim,
constituir-se em busca de sentidos ou de resistência frente a ordem estabelecida.
4.3 Ser mulher negra
Os diários de campo apresentados neste subitem foram construídos a partir
de encontros que tiveram como objetivo discutir mais explicitamente as questões de
gênero e raça que permeiam os cotidianos das mulheres da comunidade. Assim, as
intervenções realizadas buscaram compreender quais os papeis que são atribuídos
a “mulher negra” na sociedade.
No primeiro encontro levamos como proposta assistir ao filme “Vidas
Cruzadas”, avisamos com antecedência que precisaríamos de uma TV conectada a
um aparelho de DVD. Como várias participantes informaram possuir estes aparelhos
não precisamos levar estes aparelhos conosco e ficou definido que assistiríamos ao
filme na casa da D. Rosa. Contudo, ao chegarmos na comunidade elas ainda não
haviam se reunido e levamos um tempo até conseguirmos conectar o DVD.
Enquanto estávamos organizando o aparelho e o espaço para acolher as
participantes, D. Rosa fez uma fala que nos chamou a atenção ao reforçar o convite
a uma vizinha: "Venha assistir o filme que as meninas trouxeram das 'mulher' negra
quando era mais escrava que hoje! (sic)". Iniciamos a exibição do filme e
percebemos pelos olhares atentos e conversas de canto que as mulheres presentes
estavam se sentindo representadas pelas cenas constantes de racismo e
humilhação. Cecí, ao ver a cena da protagonista que cuida da criança branca em
que menina pergunta por que ela é preta e a mulher negra responde que é preta
porque toma muito café, diz "Eu cuidei de uma menina que não tomava café para
não ficar preta! (sic)". Ao finalizar o filme não pudemos levantar as questões ainda
neste dia, pois o horário estava avançado e precisávamos ir embora. No entanto,
pedimos que elas refletissem sobre a história do filme, sobre como elas se sentiram
ao assistir estas cenas e em quais momentos elas “se viram” no filme.
No próximo encontro nos reunimos com o grupo para debater sobre o filme e
sobre as questões que deixamos para reflexão. Ao chegarmos a casa de D. Rosa
ela estava limpando a casa, nos convidou para entrar e ficamos conversando até
que chegassem as outras mulheres do grupo. Perguntamos como estavam as
60
coisas e ela nos disse que não estava muito bem porque tinha falecido um cunhando
dela. D. Rosa nos relatou que o corpo dele passou a noite inteira na chuva sem que
ninguém pudesse tocá-lo, pois não é permitido que toque em um falecido até que se
conheça a causa de sua morte. Então ela nos contou que estava chateada com o
fato de não poder tocar em seu parente que estava morto, ela afirma “ser errado,
pois ela é da família (sic)”. Logo mais, foram chegando as outras integrantes do
grupo. Estavam presentes: Dona Rosa (Matriarca), Francisca, Dona Arlinda, Joana,
Maria do Rosário, Cecí (Filha de D. Rosa), Danila (Filha de Cecí) e Tião ficava
passando pela sala, de vez em quando, onde nós estávamos. Iniciamos o encontro
perguntando como elas estavam e fazendo o acolhimento inicial. Em seguida,
perguntamos a elas quais foram as passagens do filme “Histórias Cruzadas” que
mais elas consideraram importantes. Cecí foi a primeira a se manifestar, dizendo
que gostou do momento em que a empregada fez o bolo com cocô e deu para a ex-
patroa dela, ela disse que “só presta assim porque tem patrão igualzinho, que
humilha as empregadas (sic)”. Dona Rosa disse que ainda hoje tem gente assim,
que humilha as pessoas negras. Ela nos contou um fato que aconteceu com ela, que
um dia estava no enterro de alguém da família do patrão e ele reclamou porque ela
estava lá. Além disso, ela já havia falado em outro encontro, que na casa de festa
“Tênis Clube Santanense” não era permitido a entrada de negros e empregados e
no filme acontece um fato semelhante, as empregadas também não podiam fazer
isso. Essa passagem foi frisada por Joana e confirmada por Dona Rosa. Cecí mais
uma vez se manifesta, dizendo que no dia do enterro do tio, ela não foi ao trabalho,
como empregada doméstica, mas que mandou recado justificando a falta, pois seu
tio havia falecido. No entanto, quando ela chegou no trabalho, o patrão reclamou
pela falta dela afirmando que “quem morreu morreu, não come mais! Mas que ela
não morreu, precisa comer e por isso deveria ter ido trabalhar! (sic)” então, ela pediu
demissão por ser tratada dessa forma. Ela relata que esperou ele perguntar como
ela está ou entender o momento que ela estava passando, mas infelizmente isso
não aconteceu. Assim, nós fizemos a discussão em cima do preconceito com os
empregados domésticos e sobretudo, os negros. Quando dona Rosa afirma que
ainda hoje isso acontece, nós confirmamos com esse fato que aconteceu com a
Cecí. Joana estava concordando com tudo o que era dito e ria bastante quando
lembrava da cena do filme em que se passa a torta de fezes. Dona Rosa ainda ao
dizer que ainda hoje o preconceito é forte, ela afirma que “eu procuro meu lugar
61
(sic)”, pois se ela chegasse em um lugar que nós estivéssemos, por exemplo, ela
não falaria conosco, justamente por ela ser negra. Afirma não se sentir bem num
lugar onde brancos frequentam. Cecí também concorda com a opinião de Dona
Rosa, ela diz ter vergonha de estar onde brancos estão e conta que um dia almoçou
num restaurante de brancos, mas que estava com vergonha. Elas afirmaram ter
gostado do filme e nós trabalhamos na perspectiva de que os negros são pessoas
com os mesmos direitos, que têm sentimentos, vivem, sofrem, choram, sentem
fome, trabalham, querem ser feliz, enfim, que não importa a cor.
Este encontro foi bastante marcante para a equipe extensionista, pois
percebemos que nossa intervenção não está distante da realidade vivida por elas.
Os casos de racismo que discutimos com elas, não são algo do passado, mas
tendem a se repetir em suas vidas. Um exemplo foi tratarmos da mulher negra no
papel de empregada através do filme que conta a história de humilhações sofridas
por empregadas domésticas negras no momento em que Cecí passa por uma
situação semelhante, tendo até que pedir demissão por ser tratada como escrava.
Percebemos, também, que mesmo em um momento de tristeza e dor, elas fazem
questão de ir para o grupo. Até a mãe do falecido estava lá, foi chamada em casa e
depois voltou, ela disse: “deixa eu lá ver se ainda tem um restinho de reunião (sic)”.
O número de mulheres ainda participando do grupo nos fortalece, pois acreditamos
que isso signifique que elas estão vendo sentido em nosso trabalho.
Para encerrar o bloco de intervenções que pôs a mulher negra em foco,
programamos uma roda de conversa sobre como a mulher negra é representada na
mídia.
A proposta para o encontro foi debater sobre como as mulheres negras se
sentiam representadas pela mídia, no caso, na tv aberta e, sobretudo, como as
essas mães negras se sentiam representadas. D. Rosa começou dizendo que não
sentiu preconceito nas escolas, nem nos hospitais, só sente preconceito racial na
questão relacionada ao emprego para o filho: “Na escola nunca tive problema não
do jeito que eles tratava os brancos, tratava a gente. Comigo mesmo, eu acho só no
emprego, é difícil arrumar um emprego (sic)”. Ela afirma que o filho dela sempre
distribui currículos pelas lojas da cidade, mas que nunca conseguiu um emprego.
Somente agora, está para ser aprovado numa rede de supermercados porque,
segundo ela, tem um primo “dando força lá dentro (sic)”. Sobre ser mãe, D. Rosa
afirma que se sente feliz: “Me sinto feliz, meus fios são tudo nêgo! (sic)” (risadas).
62
Ela prossegue contando um pouco da sua história de ser mãe. Teve 12 filhos, todos
de parto normal e todos nascidos em casa, com ajuda de uma parteira e da sua
mãe, com exceção do último que nasceu no hospital. Ela conta que foi melhor parir
em casa, porque em casa ela tinha a mãe e a parteira do lado, e no hospital, ela
ficava sozinha. Conta que trabalhou, lavou roupa, passou roupa até o dia de ganhar
o bebê, e que, geralmente era muito rápida, “quando a dor chegava o bebê já nascia
logo (sic)”. Inclusive, conta que teve um dia que sentiu as dores e não contou para a
mãe, o bebê nasceu e quando a mãe dela acordou, já foi com o choro da criança!
(todo mundo riu). Sobre ser representada pela mídia, Dona Rosa afirma que nunca
viu nenhum comercial de mãe negra. Francisca conta que teve duas filhas, todas de
parto cesáreo. Conta que nunca sentiu preconceito nas escolas e todo o processo
de gravidez e parto fez na clínica particular. Sobre a mídia, ela afirma que aparecem
poucas pessoas negras na televisão e afirma “Nem aparece! Esse ano eu vi só um
comercia (sic)l”. D. Rosa afirma: “Eu mesmo nunca vi! Eu só tenho uma coisa a dizer
a eles: pro mesmo canto que nós vamos, eles vai! (sic)”. Joana não quis acrescentar
nada à discussão. Angélica disse não ser mãe, mas criou uma sobrinha e se sente
como mãe e comentou com a gente que essa sobrinha tem preconceito com a irmã,
só porque ela é mais morena. Ela disse que não se sente representada pela
televisão e que no programa do “Rodrigo Faro”, só existe uma mulher negra. Em
meio à discussão, nós íamos expressando nossa opinião também. Comentamos
sobre uma reportagem que saiu na internet falando sobre o concurso de miss Bahia,
que não havia nenhuma mulher negra entre as finalistas. Entendemos ser um
absurdo porque a Bahia é um estado com uma população negra muito ampla e com
uma história de resistência muito forte. Elas demonstraram indignação com esse
fato. Voltando ao assunto de ser mãe, Dona Amélia conta que “é muito bom ser mãe
e que os filhos dela são tudo na vida, inclusive que criou um filho bastardo do marido
dela com outra mulher (sic)”. D. Rosa comenta também que “as mulheres negras
são muito „besta‟ porque criam até os filhos dos brancos (sic)”.
Esta intervenção teve um resultado muito bom, pois provocamos
inquietações nas participantes sobre como a mídia tem excluído as pessoas negras
de suas programações. A discussão foi voltada para o aspecto da maternidade, pois
se aproximava da data de comemoração ao dia das mães. Acreditamos que as
participantes sempre olharão para as propagandas e programas televisivos com um
olhar mais atento ao não perceberem-se representadas naquele modelo de família.
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Continuamos a discussão sobre esse tema trabalhando, nos encontros
posteriores, a crônica da escritora Martha Medeiros, intitulada “O Mulherão”, que
aborda aspectos do cotidiano de trabalho e exigências impostas ao papel de mulher
na sociedade.
Após a leitura da crônica, estimulamos a participação das mulheres a partir
de provocações que associavam o conteúdo da crônica com a representação que a
mídia faz das mulheres. D. Rosa foi, mais uma vez, a primeira a se manifestar,
concordando com o posicionamento da autora da crônica e fazendo um
questionamento sobre o comportamento do seu esposo: “Cadê que ele valoriza
quem trabalha para ele todos os dias? (sic)”. Afirmou, ainda, que não gosta de
depender exclusivamente do seu marido, no que diz respeito às questões
financeiras. Comentou que antigamente a mulher não tinha direito a nada, que
“quando se casava, a sala era espaço para o marido e os seus amigos, que o lugar
da mulher era o quarto e a cozinha, não podia estar na sala com os amigos do
marido (sic)”. Além disso, narrou que sempre trabalhou igual ou até mais que um
homem, mas sempre ganhou uma quantia menor por ser mulher.
Francisca nos contou sobre uma experiência de racismo vivenciada no seu
trabalho. Como ela é professora, ela pega carona num micro-ônibus escolar com
algumas crianças. Relatou que certo dia, outra professora (branca) pediu carona ao
motorista desse ônibus e ao sentar-se afirmou: “Abra essas janelas pra sair esse
fedô! (sic)”. Segundo ela, a professora branca fez essa fala porque só havia
estudantes negros, além dela, que também era negra. Referiu que ficou muito
ofendida com esse comentário, que “era muita humilhação em público (sic)”, e que
depois o motorista também afirmou que não gostou, porque sempre transporta
esses estudantes e nunca sentiu mau cheiro neles e que só dava carona a essa
professora porque o carro não é dele, que ele tem obrigação, mas se fosse por
vontade própria não daria a carona. Nos contou ainda que no seu ambiente de
trabalho não se respeita o dia da consciência negra, os demais colegas ficam
“fazendo chacota” a seu respeito: “Ah, se for pra ser assim, eu também vou criar um
dia pra nós brancos pra não trabalhar!” (sic). Ela contou que retruca esse
posicionamento dizendo que “não é assim não, que não é só para não trabalhar,
mas pela simbologia da luta dos negros nesse país”. D. Rosa retoma sua fala
comentando que em alguns cargos mais importantes ainda se têm os homens como
referência e citou o caso da área de direito. Contou que “em Santana, ninguém quer
64
contratar advogada mulher, só Dr. Fulano e Dr. Cicrano, como se mulher não
soubesse defender direito (sic)”.
Os relatos obtidos nestas intervenções nos remetem diretamente as pautas
colocadas pelo feminismo negro. Pois para estas mulheres, a reinvindicação de
direitos difere-se da reinvindicação feita por mulheres brancas. Assim, vamos situar
algumas situações que emergiram nas intervenções e que necessitaram ser
desmistificadas a fim de oferecer as essas mulheres os aparatos para uma contínua
busca por igualdade étnica e de gênero.
O primeiro elemento a ser considerando ao analisarmos os discursos
presentes em nossas intervenções é o fato de que a mulher negra ainda é
submetida a condições de trabalho análogas à escravidão, principalmente no
trabalho como domésticas em casas de famílias brancas. Nestes espaços, mulheres
negras recebem salários infimamente inferiores, aliado a desvalorização da função
de empregada doméstica e das humilhações racistas e de classe sofridas
diariamente por parte daqueles a quem presta o serviço. Essas condições continuam
impondo à mulher negra uma posição de desmerecimento perante à sociedade e
exigindo destas constantes espaços de luta e resistência.
Segundo aspecto que podemos destacar são as diferenças de gênero
colocadas dentro e fora da comunidade. Nas relações internas da comunidade, as
maiores discrepâncias de funções entre homens e mulheres que detectamos nas
falas foram: a tomada de decisão intrafamiliar como sendo de responsabilidade do
homem, inclusive, tendo este domínio sobre o próprio corpo da mulher; o cuidado
com a educação e saúde dos filhos sendo prioritariamente feminino; a lida com a
casa também prioritariamente feminino, mesmo que a mulher também trabalhe fora;
o adultério masculino por vezes presente. Outros aspectos foram citados, porém,
como práticas inexistentes atualmente. Não surgiram citações ou evidências de
violência doméstica.
A maternidade também destacou-se como um forte elemento identitário das
mulheres negras de Akanni. Em todas as intervenções, os relatos sempre voltavam-
se para preocupações com os filhos: como serviços de saúde, escola, emprego,
segurança, enfrentamento ao racismo, etc.
Por fim, reconhecemos que alguns elementos presentes nos discursos
suscitados requerem um trabalho constante de reconhecimento e valorização
65
identitária, como por exemplo, a hesitação delas em frequentarem alguns ambientes
onde supõem não serem aceitas pela discriminação de sua cor.
66
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A nossa inserção na comunidade Akanni nos possibilitou uma série de
percepções e afetações que modificaram substancialmente nossa forma de perceber
o mundo e mais especificamente perceber a vida a partir das vivências de outras
pessoas ou grupo socialmente marginalizados. Quando escolhemos a produção de
sentidos enquanto abordagem teórica para colhermos o conteúdo que as mulheres
participantes do projeto poderiam nos fornecer, talvez não tenhamos nos dado conta
de como nós também reelaborávamos nossos próprios sentidos.
Akanni, não diferenciando-se da realidade de tantas outras comunidades
negras rurais, possui uma organização social própria, com papeis bem definidos e
elementos culturais específicos. Contudo, essa organização difere-se do contexto
geral da sociedade o que causa externamente uma percepção errônea de seus
sujeitos, com julgamentos negativos de suas práticas e vivências. Desta forma,
nosso primeiro desafio foi a desconstrução do que acreditamos ser certo ou errado
em nosso modelo de sociedade para podermos acolher a verdade do outro.
Para a Psicologia, enquanto ciência e profissão, estamos construindo novos
espaços de atuação, visto que esta negligenciou por décadas o trabalho com as
minorias sociais, privilegiando práticas elitistas. Pouco temos nos preocupados com
os processos psicológicos decorrentes de vulnerabilidades impostas a tantos no
decorrer da vida. A Psicologia Social e Comunitária inauguram essa preocupação,
propondo-se a compreender as atividades do psiquismo humano decorrente do
modo de organização social dos sujeitos, oferecendo-lhes acesso a uma prática
psicológica que possivelmente não teriam acesso de outra forma.
Dentro dessa perspectiva, compreendemos que o trabalho realizado na
comunidade, seguido das produções decorrentes deste – a exemplo desta
monografia, constituem-se como práticas psicológicas indispensáveis na formação
do profissional de Psicologia por promover saúde mental ao público atendido através
da ressignificação do seu lugar de pertencimento, da superação do preconceito
étnico, racial e de gênero e do empoderamento.
Acreditamos também que a escolha da abordagem Construcionista justificou
a aplicabilidade das técnicas empreendidas na execução do projeto, bem como
contribuiu para a análise dos diários de campo.
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A produção deste trabalho de conclusão de curso sofreu algumas mudanças
metodológicas ao longo do tempo que foi pensado e construído. À medida que
vamos adaptando os objetivos e metodologias a serem utilizadas em uma pesquisa,
percebemos o quão vastas podem ser as análises sobre um mesmo objeto.
Esta releitura da intervenção realizada na comunidade Akanni não foi
esgotada, como acredito que nenhum estudo sobre os sentidos que se dá a algo
não podem ser esgotados. Contudo, tanto na execução do projeto como na
produção deste texto, supomos ter alcançado nossos objetivos e, sobretudo,
acreditamos ter possibilitado a comunidade enxergar um lugar de afirmação e
pertencimento de sua identidade negra.
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