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E D I T O R I A L ÓRGÃO DA FUNDAÇÃO CHRISTIANO ROSA DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PIQUETE, JULHO/2014 - ANO XVII - N o 210 O ESTAFETA Recentemente, a TV Vanguarda apre- sentou programa em que, com belas ima- gens, mostrava o município de Piquete. O “Link Vanguarda” exaltou as belezas naturais da cidade, o jongo, o tropei- rismo etc. Sempre que Piquete tem opor- tunidade de ser visto pela televisão, agu- ça-se a curiosidade dos telespectadores pelas belas paisagens mantiqueiras. O programa, bem editado, mereceria todos os créditos não fosse um equívo- co histórico: mal assessorada, a jovem repórter associou erroneamente a origem do nome do município a um piquete de cavalaria das tropas comandadas pelo Duque de Caxias quando da Revolução Liberal de 1842. Uma placa, afixada em 1958 a uma pedra à Rua do Piquete, re- força esse erro histórico, uma vez que o referido piquete nunca existiu. Já há mui- to tempo são conhecidos documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo que apresentam os “maços de po- pulação”, ou o recenseamento da Vila de Lorena. Nesses documentos, já em 1828 aparece citado o “Bairro do Pique- te”. Portanto, Piquete já era Piquete an- tes de 1842. Óbvio, então, que a origem do nome não tem relação com um imagi- nário piquete de cavalarianos de Caxias. Conhecer a história da cidade é de fundamental importância para seus mo- radores. Hoje, cada vez mais, valoriza- se a história local, que resgata a autoestima quando desnuda seu passa- do histórico e dá novo sentido à ques- tão de pertencimento. A importância da aprendizagem da história, dimensionada entre o local e o global, reside na possibilidade de o alu- no, nas escolas, se perceber e se posicionar como sujeito dentro dos pro- cessos sociais. O vocábulo “história”, de origem grega, significa informação, conhecimento, pesquisa. Muito cedo se incorporou às línguas românicas atra- vés do latim, passando a designar a ci- ência que interpreta, no tempo, os even- tos e acontecimentos da vida dos po- vos, dos homens e das ideias. Para atin- gir seus objetivos, busca as fontes, vai aos documentos, julga sua autenticida- de e recorre a ciências outras capazes de a subsidiar e auxiliar. Pode-se citar, entre tantas, a geografia, a sociologia, a etnografia, a genealogia e a filosofia – esta última indiscutivelmente a base em que se assentam as disciplinas huma- nas. Dentro dessas coordenadas de se- riedade científica é que, há algum tem- po, pesquisadores interessados na his- tória de nosso município desmistificaram o conteúdo do marco colocado à Rua do Piquete. Alguns, por ignorância, no entanto, insistem em divulgá-lo. Foto Andréia Marcondes Cada vez mais tornam-se necessárias ações voltadas para a preservação do patrimônio cultural das comunidades, valo- rizando seu passado e a memória coletiva das cidades, não somente na arquitetura, mas em diversas áreas do conhecimento humano. Piquete surgiu num espaço de domínio da Mata Atlântica de maneira espontânea, cresceu às margens de um caminho para Minas, onde foram erguidos ranchos e pousos. O tropeirismo no Brasil teve início no século 18 e se prolongou até o século 20, mais precisamente até a década de 60, quan- do o tropeiro foi, aos poucos, substituído pelos caminhões. O ciclo do muar consoli- dou-se com o ciclo do ouro e o aparecimen- to de uma nova camada social, com as pro- fissões de ferreiro, celeiro, funileiro, doma- dor, latoeiro, trançador, bruaqueiro e outros mais. A transformação socioeconômica foi intensa e os pequenos pontos de comércio e as pousadas fizeram surgir inúmeras cida- des. Piquete surgiu ainda no século 18, quan- do os primeiros ranchos foram erguidos. A riqueza cultural do tropeirismo enrai- zou-se na região, de tal maneira que, nos dias de hoje, torna-se necessária a preser- vação desse patrimônio, ainda presente e forte na região da Mantiqueira. Com o cres- cimento das cidades, houve progressiva perda e descaracterização de seu patrimônio histórico, com empobrecimento de marcos referenciais para a comunidade. Com isso e com o crescimento do turismo como opção de desenvolvimento das pequenas cidades, somos levados a refletir sobre a necessida- de de cuidar não apenas do patrimônio construído, mas também do ambiental, vi- sando à qualidade de vida dos moradores. O turismo é um dos mais expressivos fenômenos dos últimos anos, constituindo- se uma das grandes e mais significativas atividades humanas em nível internacional. Objetiva a interação entre os povos, envol- ve o deslocamento temporário de pessoas, abrange as dimensões econômica, social e cultural. A cultura torna singulares os sujei- tos. Assim, o patrimônio enquanto expres- são cultural determina os costumes, a polí- tica, os interesses econômicos e sociais de um povo e as características do lugar e tem sua importância como expressão da cultura e da identidade de uma localidade. O conhecimento e a valorização dos bens culturais contribuem para o despertar da cidadania e reforçam a noção de que eles expressam a história e a tradição local e re- gional. O patrimônio arquitetônico demons- tra, ainda, os traços culturais de um grupo. Voltando-se para Piquete, é preciso que passemos a valorizar nosso patrimônio cul- tural. O tropeirismo ainda está ligado ao modo de ser e de viver de pessoas da re- gião. Uma cultura diferenciada das demais se estabeleceu. Isso levou, em 1979, à cria- ção da Festa do Tropeiro, uma homenagem a esses corajosos comerciantes, mensagei- ros, desbravadores do Brasil e plantadores de cidade. Tropeiros, plantadores de cidades... Tropas nas ruas de Piquete, em 2010. O conhecimento e a valorização dos bens culturais contribuem para o despertar da cidadania e reforçam a noção de que eles expressam a história e a tradição local e regional.

JULHO 2014

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Edição nº 210, de julho de 2014, do informativo O ESTAFETA, órgão da Fundação Christiano Rosa, de Piquete/SP

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Page 1: JULHO 2014

E D I T O R I A L

ÓRGÃO DA FUNDAÇÃO CHRISTIANO ROSA

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PIQUETE, JULHO/2014 - ANO XVII - No 210

O ESTAFETA

Recentemente, a TV Vanguarda apre-sentou programa em que, com belas ima-gens, mostrava o município de Piquete.O “Link Vanguarda” exaltou as belezasnaturais da cidade, o jongo, o tropei-rismo etc. Sempre que Piquete tem opor-tunidade de ser visto pela televisão, agu-ça-se a curiosidade dos telespectadorespelas belas paisagens mantiqueiras.

O programa, bem editado, mereceriatodos os créditos não fosse um equívo-co histórico: mal assessorada, a jovemrepórter associou erroneamente a origemdo nome do município a um piquete decavalaria das tropas comandadas peloDuque de Caxias quando da RevoluçãoLiberal de 1842. Uma placa, afixada em1958 a uma pedra à Rua do Piquete, re-força esse erro histórico, uma vez que oreferido piquete nunca existiu. Já há mui-to tempo são conhecidos documentosdo Arquivo Público do Estado de SãoPaulo que apresentam os “maços de po-pulação”, ou o recenseamento da Vilade Lorena. Nesses documentos, já em1828 aparece citado o “Bairro do Pique-te”. Portanto, Piquete já era Piquete an-tes de 1842. Óbvio, então, que a origemdo nome não tem relação com um imagi-nário piquete de cavalarianos de Caxias.

Conhecer a história da cidade é defundamental importância para seus mo-radores. Hoje, cada vez mais, valoriza-se a história local, que resgata aautoestima quando desnuda seu passa-do histórico e dá novo sentido à ques-tão de pertencimento.

A importância da aprendizagem dahistória, dimensionada entre o local e oglobal, reside na possibilidade de o alu-no, nas escolas, se perceber e seposicionar como sujeito dentro dos pro-cessos sociais. O vocábulo “história”,de origem grega, significa informação,conhecimento, pesquisa. Muito cedo seincorporou às línguas românicas atra-vés do latim, passando a designar a ci-ência que interpreta, no tempo, os even-tos e acontecimentos da vida dos po-vos, dos homens e das ideias. Para atin-gir seus objetivos, busca as fontes, vaiaos documentos, julga sua autenticida-de e recorre a ciências outras capazesde a subsidiar e auxiliar. Pode-se citar,entre tantas, a geografia, a sociologia, aetnografia, a genealogia e a filosofia –esta última indiscutivelmente a base emque se assentam as disciplinas huma-nas. Dentro dessas coordenadas de se-riedade científica é que, há algum tem-po, pesquisadores interessados na his-tória de nosso município desmistificaramo conteúdo do marco colocado à Ruado Piquete. Alguns, por ignorância, noentanto, insistem em divulgá-lo.

Foto Andréia Marcondes

Cada vez mais tornam-se necessáriasações voltadas para a preservação dopatrimônio cultural das comunidades, valo-rizando seu passado e a memória coletivadas cidades, não somente na arquitetura,mas em diversas áreas do conhecimentohumano.

Piquete surgiu num espaço de domínioda Mata Atlântica de maneira espontânea,cresceu às margens de um caminho paraMinas, onde foram erguidos ranchos epousos. O tropeirismo no Brasil teve iníciono século 18 e se prolongou até o século 20,mais precisamente até a década de 60, quan-do o tropeiro foi, aos poucos, substituídopelos caminhões. O ciclo do muar consoli-dou-se com o ciclo do ouro e o aparecimen-to de uma nova camada social, com as pro-fissões de ferreiro, celeiro, funileiro, doma-dor, latoeiro, trançador, bruaqueiro e outrosmais. A transformação socioeconômica foiintensa e os pequenos pontos de comércioe as pousadas fizeram surgir inúmeras cida-des. Piquete surgiu ainda no século 18, quan-do os primeiros ranchos foram erguidos.

A riqueza cultural do tropeirismo enrai-zou-se na região, de tal maneira que, nosdias de hoje, torna-se necessária a preser-vação desse patrimônio, ainda presente eforte na região da Mantiqueira. Com o cres-cimento das cidades, houve progressivaperda e descaracterização de seu patrimôniohistórico, com empobrecimento de marcosreferenciais para a comunidade. Com isso ecom o crescimento do turismo como opção

de desenvolvimento das pequenas cidades,somos levados a refletir sobre a necessida-de de cuidar não apenas do patrimônioconstruído, mas também do ambiental, vi-sando à qualidade de vida dos moradores.

O turismo é um dos mais expressivosfenômenos dos últimos anos, constituindo-se uma das grandes e mais significativasatividades humanas em nível internacional.Objetiva a interação entre os povos, envol-ve o deslocamento temporário de pessoas,abrange as dimensões econômica, social ecultural. A cultura torna singulares os sujei-tos. Assim, o patrimônio enquanto expres-são cultural determina os costumes, a polí-tica, os interesses econômicos e sociais deum povo e as características do lugar e temsua importância como expressão da culturae da identidade de uma localidade.

O conhecimento e a valorização dosbens culturais contribuem para o despertarda cidadania e reforçam a noção de que elesexpressam a história e a tradição local e re-gional. O patrimônio arquitetônico demons-tra, ainda, os traços culturais de um grupo.

Voltando-se para Piquete, é preciso quepassemos a valorizar nosso patrimônio cul-tural. O tropeirismo ainda está ligado aomodo de ser e de viver de pessoas da re-gião. Uma cultura diferenciada das demaisse estabeleceu. Isso levou, em 1979, à cria-ção da Festa do Tropeiro, uma homenagema esses corajosos comerciantes, mensagei-ros, desbravadores do Brasil e plantadoresde cidade.

Tropeiros, plantadores de cidades...

Tropas nas ruas de Piquete, em 2010. O conhecimento e a valorização dos bens culturais contribuempara o despertar da cidadania e reforçam a noção de que eles expressam a história e a tradição local eregional.

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Página 2 Piquete, julho de 2014

A Redação não se responsabiliza pelos artigos assinados.

Diretor Geral:Antônio Carlos Monteiro Chaves

Jornalista Responsável:Rosi Masiero - Mtd-20.925-86Revisor: Francisco Máximo Ferreira NettoRedação:Rua Coronel Pederneiras, 204

Tels.: (12) 3156-1192 / 3156-1207Correspondência:Caixa Postal no 10 - Piquete SP

Editoração: Marcos R. Rodrigues Ramos

Tiragem: 1000 exemplares

O ESTAFETA

Fundado em fevereiro / 1997

Fotos Arquivo Pró-Memória

Correndo os olhos pela área urbana dePiquete, observa-se que grande parte dasconstruções de valor arquitetônico da cida-de foi construída pela FPV. Muitas dessasobras tornaram-se referência na região peloseu aspecto singular e suntuoso.

Não há na região cidade que conte comedificações como o pórtico artisticamenteadornado que dá acesso à Praça Duque deCaxias ou edifícios grandiosos como o CineEstrela do Norte, o Ginásio Duque de Caxiase o Hospital da FPV. Essas e muitas outrasobras como escolas, quartel, vilas operári-as, estações ferroviárias enriquecem a pai-sagem urbana piquetense e são símbolosde uma época e guardiãs de memórias e fa-tos históricos da comunidade.

Foi nas décadas de 1930 e 1940 que aFábrica de Piquete passou por significativodesenvolvimento, com repercussão em todoo município. Houve expansão da planta fa-bril com a edificação de novas unidades e acontratação de centenas de operários.

A despeito dos programas realizados poressa indústria, que se expandiu e se moder-nizou naquele período, a maquinaria empre-gada, por mais automática que fosse, nãodispensava o elemento humano. A adminis-tração não se descuidou, portanto, desseimprescindível elemento – o operário. Erameles que asseguravam uma boa produção.Precisavam, portanto, de certo trato, con-forto e, especialmente, segurança para suasfamílias. Garantia-se, assim, que, despreo-cupados das necessidades da vida fora dafábrica, os operários se dedicassem commaior afinco à suas atividades.

Numa cidade carente de recursos comoPiquete, os efeitos positivos da assistênciasocial sobre o equilíbrio geral da produçãofabril não podiam ser aquilatados. Pode-se,no entanto, imaginar o que representariapara uma indústria perigosa, em que operá-rios lidavam com nitroglicerina, ácidos e di-

versos tipos de pólvora ao mesmo tempoque se preocupavam com dificuldades dehabitação, matrículas escolares dos filhos,falta de assistência médica, dentária, alimen-tar e de recreação. Essas preocupações, semdúvida, favoreceriam descuidos com conse-quências imprevisíveis. Numa situaçãocomo essa, não apenas o funcionário teria oseu rendimento diminuído, mas, principal-mente, colocaria em risco constante suavida, a de seus companheiros e as instala-ções fabris.

Felizmente, após a criação do CentroSocial da Fábrica, os problemas menciona-dos foram superados. Por meio de seus di-versos departamentos como o de Assistên-cia à Saúde e os de Assistência Material,Educacional, Recreativo, Pessoal e Esporti-vo, passou-se a se assegurar a todos os ser-vidores, civis e militares, assistência com-pleta às suas necessidades. Os efeitos po-sitivos dessa assistência se refletiram numdos pontos vitais da Fábrica – a segurançano trabalho.

As primeiras obras sociais criadas naFábrica não foram organizadas segundo umplanejamento. Surgiram por força natural dascontingências de Piquete, que não dispu-nha de condições de conforto e, distandovinte quilômetros de Lorena, fazia com queo pessoal que aqui trabalhava confinado emmontanhas e com toda sorte de dificulda-des não procurasse se fixar no município.Assim, para evitar o êxodo dos servidores,a Fábrica foi, aos poucos, edificando casas,criando escolas, cinema, armazém, farmáciaetc. Posteriormente, as obras sociais foramregulamentadas e passaram a constituir oCentro Social.

Bem estruturado, com os devidos funci-onários, foram criados: Departamento deAssistência Material (D.A.M.), que compre-endia armazém reembolsável geral, padaria,torrefação e moagem de café, matadouro e

açougue, granja, refeitório, loja de fazendase armarinhos, e alfaiataria; Departamento deAssistência à Saúde (D.A.S.), formado porhospital, maternidade, posto de puericultu-ra, gabinete odontológico e farmácia; De-partamento de Assistência Educacional(D.A.E), com as escolas Normal, Pré-primá-rio e Primário, Admissão, Ginásio Noturno,escolas Industrial Masculina e Feminina, Gi-násio Diurno, Colégio (Científico). O Depar-tamento de Assistência Educacional aindamantinha um parque zoológico, no qual fun-cionava o Jardim da Infância; Departamen-to Recreativo (D.R), que compreendia asobras destinadas à recreação, cada uma comchefia independente: além do Círculo Mili-tar da Estrela, havia os grêmios recreativosGeneral Carneiro, privativo de subtenentes,sargentos e mestres, e o Duque de Caxias,destinado aos cabos, soldados e operários.O Grêmio General Carneiro ocupava partedo Cine Estrela e o Grêmio Duque de Caxiaso grande ginásio de esportes. Além das vi-las residências, havia, também, o RecreioSão Caetano, mais conhecido como “Onça”,no alto da Mantiqueira, uma ampla fazendade propriedade da Fábrica.

O Departamento Social da Fábrica

Imagem - Memória

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O ESTAFETA

GENTE DA CIDADEGENTE DA CIDADE

Página 3Piquete, julho de 2014

Dona Nela Laurentino Gonçalves Dias Jr.

Diplomacia hipócrita

D. Nela estava em plena atividade nobazar dos Vicentinos quando iniciamos aconversa. Nenhuma palavra sobre si. A pre-ocupação era explicar a necessidade de an-gariar recursos para o Asilo de São Vicentede Paulo, instituição em que é voluntária hámais de trinta anos. “Estamos num períododifícil. Há dívidas a serem pagas e as doa-ções, apesar de muitas, vêm diminuindo...”,afirma enquanto caminhamos em direção àsua casa.

É possível afirmar que muitos se surpre-enderão ao saber que Dona Nela tem pornome de batismo Manoelina Batista PaivaFerreira. Personagem conhecida em nossacidade pela família numerosa de que faz par-te, pelos anos em que teve um bar na Praçada Bandeira, onde preparava deliciosos sal-gados, D. Nela se tornou seu “nome ofici-al”...

D. Nela nasceu em Bicas, Minas Gerais,onde os pais, José de Freitas Paiva e GabrielaBatista Paiva, moravam, em 11 de maio de1931. “Completei 83 anos em maio e só te-nho de agradecer a Deus pela saúde perfei-ta: deito-me feliz à noite para descansar dasatividades diárias... Elas me dão forças paraviver”, afirma. Do dia a dia constam dar ca-rinho e atenção aos filhos ou aos netos ebisnetos que estão sempre em sua casa, sejapara “pedir a bênção” ou para que deles tomeconta durante o trabalho dos pais.

Tendo estudado somente até o primá-rio, D. Nela diz que não se lembra bem daépoca do Grupo Escolar do Piquete. Afir-ma, porém, que achava lindo o prédio daescola, localizado em frente à atual IgrejaMetodista. Cita, ainda, a mestra LeonorGuimarães: “Ela nos dava aula de religião.Grande professora”... Com cerca de trezeanos, foi para o Rio de Janeiro fazer com-panhia a uma tia cujo filho havia ido para aGuerra: “Lembro-me bem do desfile de ji-pes e caminhões militares que levou meuprimo enquanto minha tia chorava à jane-la”... No Rio ficou até pouco depois do tér-mino do conflito mundial, quando do re-torno do primo. “Apesar da guerra, foi umtempo bom... Morávamos em uma casaenorme, junto com outra senhora com trêsfilhas... Às noites eram de muitas conver-sas, tricô... Éramos uma família”, conta.

Ao retornar a Piquete, logo conheceuJoaquim Ferreira, soldado de Barretos queservia no Contigente da FPV. Com ele secasou em 20/01/1949. Cita saudosa e compalavras carinhosas o marido: “Um homemmuito bom. Com ele construí uma família

grande e unida”. Joaquim Ferreira trabalhoupor muitos anos no Departamento Pessoalda Fábrica Presidente Vargas e D. Nela con-ta, orgulhosa, que até hoje agradecem a elapelo apoio que dele receberam para come-çar trabalhar naquela indústria. “Fico felizde saber que meu marido contribuiu para afelicidade de muitas famílias”, diz, com osolhos marejados.

D. Nela teve sete filhos e criou três so-brinhas. Hoje são dezesseis netos e 14 bis-netos. Sua casa sempre esteve aberta parareceber familiares. “Quando uma sobrinhaperdeu os pais, convidei-a para passar al-guns dias aqui em Piquete. Ela já está aquihá mais de 25 anos...”, conta, bem humo-rada... É impressionante o carinho com queD. Nela fala da imensa família, a começarpelo pai, casado por três vezes: “Considerotodos como irmãos, tenham sido de sangueou dos outros casamentos de meu pai. Éra-mos uma grande família”. Essa considera-ção ficou evidente quando citou, aborreci-da, a morte recente de um desses irmãos porparte de pai.

“Agradeço a Deus todos os dias pelavida que tenho. Foram muitas as dificulda-des, mas superei-as todas com muito traba-lho e amor”, afirma, altiva.

Num mundo em que o egocentrismo, aganância e a busca pelo sucesso próprio sesobressaem, pessoas como D. Nela, que

doam sua vida à família e aobem-fazer ao próximo são in-dispensáveis. “Precisamos devoluntários para o Asilo SãoVicente de Paulo. Tenho saú-de e doo todo meu tempo dis-ponível, mas é preciso maiscolaboradores”: esta é a prin-cipal preocupação de D.Nela. Que mais pessoas co-nheçam o Asilo São Vicentede Paula e sigam o exemplode voluntários que lá atuam.Essas pessoas, assim com D.Nela, se sentirão mais feli-zes, mais realizadas ao per-ceberem que a maior rique-za do ser humano é se doarpara ajudar o próximo.

Define-se diplomacia como a prática debem conduzir as relações exteriores de umEstado. No dia a dia, entende-se como di-plomático quem gerencia problemas visan-do a solucioná-los da melhor forma paratodos os lados. Já a hipocrisia está relaci-onada com o fingimento, com a falsidade.

Não consigo vislumbrar nada além dehipocrisia nas análises de “crises” no Bra-sil e no mundo. Potencializadas pelo as-queroso advento do “politicamente corre-to”, as respostas de partidários de envol-vidos em escândalos, por mais evidentesque sejam as provas, são respostas hipó-critas que a mídia tenta fazer soarem diplo-máticas. Em nosso Brasil, a essas respos-tas alia-se, ainda, o trabalho de advoga-dos especialistas, conhecedores dos me-andros de nossa “multi-interpretável” le-gislação, fazendo com que reine a desfa-çatez em nossa imprensa.

Sobram escândalos em nosso país eno mundo. Sobram corruptos. E, se sobramcorruptos, sobram corruptores. Pegos emflagrante, negam o inegável. E a imprensa,refém de interesses escusos, tem que lan-çar mão de todo um dicionário para notici-ar aquilo que se resumiria, por exemplo, a:“bandido pego roubando dinheiro públi-co”. Nossa justiça não permite que umpolítico pego com dinheiro na cueca sejachamado de ladrão. Nossa justiça não pren-de um presidente que assume, em entre-vista pública e oficial, que seu partidomantém caixa-dois. Um parlamentar con-denado mantém seus vencimentos e o di-reito de ser tratado por “excelência”. Dita-dores renomados, políticos populistas einescrupulosos merecem reverências ain-da que flagrantemente agentes destruí-dores de povos e culturas...

Não dá mais! Não dá mais para aguen-tar a desfaçatez em relação ao nitidamenteerrado. Não dá mais para aceitar a mortede inocentes em função da hipocrisia di-plomática que grassa no mundo. Por queaceitar ditadores? Por que aceitar déspo-tas travestidos em líderes? Sim... Está cla-ro que interesses econômicos regem os mo-vimentos nesse sentido. Não dá mais, po-rém, para alguém que deseja “apenas” vi-ver bem e fazer o bem, ter que aceitar guer-ras brutais, tragédias e todo tipo de injus-tiças enquanto a ONU e seus “poderosos”fingem diplomacia em seus dispendiosose inúteis encontros, em suas reuniõesmidiáticas e em apertos de mãos que serepelem visivelmente.

Um mundo em paz não deveria signifi-car sociedades atreladas à hipocrisia nasrelações. Viver bem deveria ser o resulta-do de discursos e ações que visem efeti-vamente ao bem-estar dos povos. A diplo-macia deveria resolver conflitos encon-trando pontos em comum. Por várias ve-zes já me disse admirador do papa Fran-cisco. Acredito, porém, que ele tambémseja tolhido pela hipócrita diplomacia mun-dial. Objetivo e direto como parece ser,penso que ele sofra por não poder ir adi-ante em sua gana de justiça e de paz. Hoje,não acredito mais na diplomacia. Preocu-pa-me essa conclusão, mas nunca estevetão clara em minha mente a assertiva “sequeres a paz, prepara-te para a guerra”.

Capela de São Vicente de Paulo

na Vila Vicentina

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O ESTAFETA Piquete, julho de 2014Página 4

Valeparaibana de Cachoeira Paulista, aprofessora Ruth Guimarães desenvolveu,além de importantes aulas elucidativas egerminadoras, um considerávelconjunto de obras temáticas liga-da ao Vale do Paraíba do Sul.

Deixou-nos recentemente (fi-nal de maio de 2014). Uma sentidalacuna lamentada, porém, vivi-ficada pela extensa obra.

Em “Bio-bibliografia” sobreRuth, apresentada por José LuizPasin, ela é apresentada comoRuth Guimarães Botelho, nascidaem Cachoeira Paulista, no dia 13de junho de 1920, em sítio do avômaterno, o português José Bote-lho, guarda-chaves da Estrada deFerro Central do Brasil. Os pais fo-ram Cristino Guimarães e MariaBotelho. Depois dos cursos básico e secun-dário, formada como professora primária fezo curso superior em Letras Clássicas na Fa-culdade de Filosofia, Ciências e Letras daUniversidade de São Paulo. Acrescentououtros cursos, como o da Escola de ArteDramática e de Folclore e Literatura Populardirigido por Mário de Andrade.

Ruth possui rica bibliografia com obrasnotáveis, entre as quais se destaca “ÁguaFunda”, romance ambientado no universorural valeparaibano, grande sucesso de pú-blico e crítica, tendo sido seu primeiro livro,logo seguido por “Filhos do Medo”, porta-dor de ampla pesquisa folclórica sobre asmanifestações demoníacas. Cultivadora doimaginário da população regional valepa-raibana, a autora desenvolveu ainda impor-tante pesquisa em torno da Saga de PedroMalazarte com o título de “Calidoscópio”,edição de 2006. Essa obra fundamental so-bre a região em apreço começa por localizara Bacia do Paraíba do Sul desde Santa Isa-bel, em São Paulo, até Barra do Piraí, no Riode Janeiro, e fletindo para todo o sul deMinas. Obra fonte sobre a região e os habi-tantes, os quais ela descreve pelas ativida-des, algumas já perdidas à medida que ma-tas são derrubadas, a poluição aumenta, aterra se empobrece e as necessidades deconservação, preservação e sustenta-bilidade aumentam. O crescimento da pro-dução industrial e o uso do meio ambienteextrapolam os índices das análises à busca

Memória de Ruth Guimarãesde soluções para os problemas da continui-dade de projetos com vistas a atender asnecessidades básicas do povo. Um povo

etnicamente, folcloricamente e linguis-ticamente dotado de riqueza cultural muitoexpressiva e uma “pobreza de doer”. Porisso, a entrada da modernidade e do pro-gresso industrial provoca uma ruptura queRuth incessantemente pesquisa e sobre aqual publica trabalhos, quer artigos para re-vistas e jornais, peças para o teatro e livros,sem deixar de respeitar a herança do passa-do e os mitos de identificação. Daí oMalazarte, “que frequenta o céu e o inferno,ele, o estradeiro, o andarilho, o raposo, osenvergonho”, como a própria autora sali-enta no prefácio. A preciosidade e a profun-didade da obra requerem leitura atenta. Afamília de Pedro é por ela analisada paramostrar que o caçula de três irmãos (os quaisse diferenciavam quanto à herança pater-na), o Pedro, somente herdou uma portaimprestável, que acabou jogando fora pelasandanças no mundo. Segundo palavras daautora, Pedro saiu para nunca mais e paraser “solitário, faminto, insubordinado”, nãotendo sequer uma pedra para pousar a ca-beça, “esse apóstolo do universo”. Diz elaque Pedro nunca sentiu remorso e “quandonegocia o que é seu, vende fumaça e menti-ra”. E assim, “Malazarte, vendedor de ilu-sões, vende o que tem: nada”. No caminhodo símbolo, lá vai Pedro Malazarte isentode escrúpulos e de preocupação, com hon-ra. Ganha dinheiro “com mutretas”. E Ruthdesfila comparações com figuras literáriasde grandes autores: “não morre, nem enve-

lhece”. O estudo de Ruth é rico em citaçõesa partir de obras clássicas, demonstrandoinvejável erudição. Colocando um herói

medievo em pleno século XX,para mostrar a vitória das artima-nhas. E Ruth chega a colocar emparalelo Malazarte e Macunaíma.“Malazarte é um Macunaíma”. Echega aos gregos antigos, entreos quais o herói se chama“politros”, homem de muitas ma-nhas. Ardilosos, matreiros, men-tirosos, sem escrúpulos, essessão seus modelos. Para confir-mar o ideal do fraco, para tirarvantagem.

Pesquisadora incansável eatenta, Ruth Guimarães aprofun-da a análise sobre o mito Mala-zarte e seus significados, encon-

trando semelhanças deles com os outrospersonagens mágicos do mesmo tipo emoutros países da América Latina.

Mostra como o riso é o identificador domundo malazartiano, arma do oprimido, dodesvalido, do escravo. Mito necessário paraprovocar o riso e afastar a tristeza.

E a autora aprofunda as explicações efaz de sua obra preciosa lição de conheci-mento. Argumenta que Malazarte tira van-tagem de toda desvantagem para nos pro-vocar a curiosidade e o interesse emconhecê-lo melhor.

Ruth nos convida ao exercício da leitu-ra. As obras de Ruth nos fazem pensar ereconhecer nossas origens. “Bruxa bondo-sa e milagreira” no dizer da professora e es-critora Olga de Sá, transforma, como um sig-no gritante, as narrativas em obra educativano Vale do Paraíba, onde “sapos e venenosde cobra” passam por Ruth como um caldode cultura e amor que bebemos na conchade suas mãos.

Professora de muitas escolas, em dife-rentes níveis, Ruth, acadêmica da Acade-mia Paulista de Letras e de academias regio-nais, soube, enfim, transmitir seus ricosensinamentos. Um modelo pragmático.

Leiam Ruth Guimarães. Apreciem seusbelos trabalhos. Cultivem o conhecimentoque ela nos transmite com entusiasmo egrande empenho.

Dóli de Castro Ferreira

“Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E, na infinita possibilidade

de lugares, na infinita possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares coincidiram.

E deu-se o encontro”.Rubem Alves

Foto Rita Elisa Seda

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O ESTAFETA Página 5Piquete, julho de 2014

Entre as décadas de 1930 e 1950, Pique-te passou por um surto de crescimento edesenvolvimento sem precedentes. Deve-se esse fato a um vasto projeto de expansãoda Fábrica de Pólvora instalada no municí-pio e a um ambicioso programa social volta-do para o operariado e suas famílias – que,direta ou indiretamente, se estendeu a to-dos os munícipes. Foram os anos de sonhodos piquetenses.

Com a modernização e as ampliações daFábrica houve necessidade de contrataçãode mão de obra. Consequentemente, eranecessária a qualificação dessa mão de obra,o que foi resolvido com a criação de escolasindustriais. Surgia, então, o DepartamentoEducacional, composto por esses e outrosdiversos cursos. Paralelamente, a Fábricanão se descuidou dos investimentos emsaúde, moradia, esportes e lazer. A cidadeganhava ares de cidade: um planejamentourbano até então desconhecido foi traçadoe edificado pela Fábrica. Todos esses traba-lhos aconteceram graças aos lucros aufe-ridos com a Secção Comercial da Fábrica e àvisão empreendedora de grandes militarescientes do crônico problema econômico domunicípio. A cidade deve muito a esses ad-ministradores e à sua visão humanística dotrabalho.

A Seção Comercial da Fábrica foi criadapelo decreto 19.706, de 14 de fevereiro de1931, publicado no Diário Oficial de 13 dejunho daquele ano. Internamente, foi oficia-lizada por meio de seu Boletim Interno de 1ºde Julho de 1931.

Com a inauguração da Seção Comercial,a Fábrica pôde realizar parte das aspiraçõesde quase todos os seus diretores – a de veraproveitados mais racionalmente os gran-des recursos de que dispunha o estabeleci-mento para uma grande produção em tempode paz. Ao mesmo tempo, emancipava-se aadministração dos velhos moldes burocrá-ticos, tão perniciosos ao rendimento do tra-balho nas repartições oficiais.

Particularmente no que se referia à dire-toria do coronel José Pompeu Cavalcante

de Albuquerque (1929 / 1935), duas foramas principais razões que a levaram, já haviaalgum tempo, a pleitear junto ao governofederal o estabelecimento do regime que seefetivou nas determinações do decreto de14 de fevereiro de 1931: a) a redução dasdespesas orçamentárias, para colaborar como governo na diminuição das despesas pú-blicas; b) a manutenção do pessoal extranu-merário, imprescindível à eficiência da Fá-brica e ameaçado de dispensa em massa emconsequência da crise econômico-financei-ra por que passava o país.

Foi, portanto, em boa hora que o gover-no entendeu que mais valia procurar recur-sos na produção do que na redução do tra-balho: em 1º de setembro daquele mesmoano de 1931, foi instalado no Rio de Janeiro,então capital federal, o escritório da SeçãoComercial da Fábrica, bem como, anexo aomesmo, um depósito destinado a armazenaros produtos químicos oriundos de Piquete.

A produção da Fábrica merecia desta-que no país. Em nota de seu gabinete, oMinistro da Guerra tornou pública a agra-dável impressão que recebeu ao visitar, na“Feira de Amostras”, no Rio de Janeiro, osmostruários do estabelecimento de Pique-te. O presidente do governo provisório, Ge-túlio Vargas, em discurso intitulado “Explo-ração Comercial das Indústrias Militares” epronunciado a 3 de outubro de 1931 noTheatro Municipal do Rio de Janeiro,enfatizava: “(...) A aplicação do decreto nº19.200, que permitiu a exploração comercialdas indústrias militares, vem tendo salutarinfluência no próprio desenvolvimento des-ses estabelecimentos do Exército e em be-nefício da sua maior expansão. A venda ob-tida com a oferta dos seus produtos ao co-mércio já se vai tornando apreciável. Partedela destina-se com o fim determinado. AFábrica de Pólvora sem Fumaça, em Pique-te, e a Fábrica de Pólvora da Estrela, cujosartefatos são francamente disputados nosdiferentes comerciais do país, prometemauspiciosos resultados financeiros que serefletirão, necessariamente, em economia

para o Tesouro”.Em 28 de março de 1935, o coronel José

Pompeu de Albuquerque Cavalcânti deixa-va o cargo de Diretor da Fábrica de Pólvorasem Fumaça de Piquete. Durante o espaçode tempo de quase seis anos em que estevena direção desse estabelecimento, entreoutras várias ações bem sucedidas, coubea ele a criação e organização da Seção Co-mercial. Graças a essa Seção, a Fábrica pas-saria a vender às indústrias brasileiras queestavam nascendo o excedente de sua pro-dução, especialmente os ácidos. Os rendi-mentos da Seção Comercial não constituí-am verbas federais e a Fábrica pôde, comelas, executar gigantesco trabalho nos cam-pos social, de saúde e educacional.

Devem-se ao empenho do Coronel Go-mes Carneiro, substituto de Pompeu Caval-cânti, e, mais tarde, ao Coronel WaldemarBrito de Aquino, as grandes obras sociaisvoltadas para o operariado – moradias, vi-las com residências confortáveis, um pe-queno hospital, sede de clubes recreativos,igrejas, cinema, campos de esportes. Agrande contribuição, todavia, foi no cam-po da educação, que recebeu escolasprofissionalizantes, nos moldes do SENAI,permitindo qualificação e especialização demão de obra para as oficinas da Fábrica. Avisão do chefe da Divisão de Construções,o então Major José Pompeu Monte, permi-tiu organizar, com o apoio do coronelAquino, um “Aprendizado Industrial”, em1942. A partir dessa ideia luminosa, umcomplexo educacional sem precedentes, re-ferência em todo o país, foi edificado, for-mando gerações de piquetenses.

A Seção Comercial prestou à Fábricaessenciais serviços pelos recursos que pos-sibilitaram à Diretoria melhor desempenharsuas tarefas. Não fosse o auxílio dessa Se-ção, a Fábrica não teria conseguido mantersua vasta estrutura social, nem cobrir as de-ficiências das verbas orçamentárias ou cus-tear a totalidade das despesas com cons-truções e reparos de oficinas e outros pavi-lhões.

A Seção Comercial da FPV

Posto de PuericulturaJardim da InfânciaPadaria da FPV

Armazém Reembolsável Vila Duque Dep. de Assistência Material (DAM)

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O ESTAFETA

Edival da Silva Castro

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Crônicas Pitorescas

Palmyro Masiero

Debate de gerações...

A tríade do terno

Acesse na internet, leia edivulgue o informativo

“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”“O ESTAFETA”

www.issuu.com/oestafeta

Na maioria das vezes, a gente joga umnovo ângulo de visão, um outro ponto defuga na perspectiva do que vem como umreforço íntimo diante da imponderabilidade.A questão não vem apenas a ser uma espé-cie de comodismo de aceitação, mas virapara a jocosidade que carrega no seu bojopelo menos duas características principais:uma de vingança e outra de lenitivo ante acontestação do irremediável. O garotão devinte anos foi visitar o avô octogenário e,no debate de duas épocas, a conversa nosdá o convencimento do exórdio desta crô-nica.

– Então, vozão... Oitenta anos nas cos-tas, hein?!

– E não estou de jogar fora, meu meni-no...

– É... Vô, desculpe-me, mas o senhor ain-da sabe o que é ser jovem? – perguntaçãoalgo dubitativa de intenção, impregnada deentrelinhas...

– Não duvide! Fui jovem muito mais tem-po do que você é.

– Concordo, vô.– Um a zero pra cá. Mas e você, meu

menino, sabe alguma coisa sobre a velhice?– Isola, vô. Não sei e nem quero saber.– Vai enjaular o tempo?– Vai demorar muito pra chegar lá...– É o que você pensa... Voltando ao seu

interesse, podemos concluir que eu sei mui-to mais sobre a juventude do que você so-bre a velhice.

– Falou...– Está vendo?! Dois a zero pra mim.– Tem muita coisa que faço que o se-

nhor já não pode mais.– Depende do seu ponto de vista.– Como assim?– Diga-me uma coisa que não posso fa-

zer...

– Deixa ver... Hum... Nadar!– Logicamente você está pensando em

água e em um corpo musculando nela. Nes-ta condição não tenho grandes possibilida-de. Mas, se nadar de outra forma, posso sercampeão no que você não é nem aprendiz...

– Como nadar fora da água?– Nadar através do tempo na lembrança

dos meus feitos. Tenho um espaço de se-tenta anos para recompor a história que hojevocê estuda e que dela participei.

– Peraí, vô... O senhor está comparandoo ato de fazer com o de ter feito.

– Três a zero pro vô.– Mas como?!– Vivo duas vezes o mesmo ato: o de já o

ter praticado e outro de relembrar como ofiz. E como foram atos de muitos anos, vocêestá nadando muito atrás no que tem arememorar. Fui claro?

– O senhor está fazendo da lembrançaum ato efetivo. Assim não vale...

– A lembrança é palpável porque é o re-sumo de acertos e erros.

– Esse papo tá ficando careta. O senhortá me enrolando.

– Que é isso, meu menino... Aceite naesportiva o três a zero pro vô.

– Não sou ligado nessa de recordações.Mas, diga-me: o senhor não sente nostalgiaem pensar que jamais voltará a ser jovem?

– Você é ruim de jogo. Quatro a zero parao coroa aqui.

– Ah, não! Essa o senhor não pode ven-cer.

– Já marquei no placar. Você, sim, temuma preocupação... Eu não.

– Que preocupação?– A de ficar velho.– E o senhor?– Somente a de não saber se vou ficar

mais velho...

Faz muitos anos que não vou a um baile.Nos dias de hoje, acho que nem saberia

enfrentar um salão de baile – como me trajar,o tipo de músicas, com quem dançar e comodançar...

Lá longe, quase perdidos no tempo, ossalões decorados uniam-se às fantásticasorquestras que entoavam músicas divinas...E tudo tocava o coração...

– Por favor, dá-me o prazer destacontradança?

A mão esquerda dele segurava a mãodireita dela. A mão direita dele envolvia acintura dela. A mão esquerda dela tocavasuavemente o ombro direito dele.

Os pares entrelaçados deslizavam pelosalão num ritmo suave, terno e envolvente.

A voz maviosa do cantor embalava oscasais. Quando havia flerte, os rostos secolavam, os suores misturavam-se e opoema da música era sussurrado ao ouvido.Às vezes, os cabelos desgrenhados delaagitavam nossas emoções.

As damas, com vestidos decotados,afloravam as costas nuas, sapatos altos,colares e brincos... Enfeitiçavam o salão.

Os cavalheiros, de terno, mangas dacamisa com abotoaduras, gravata comprendedor na lapela, um lenço dobrado àmoda, resplandeciam o salão.

O baile transmitia doce ar de felicidade.Os cuba-libres, hi-fis e gins-tônicas

embeveciam o enlevo dos casais.Moon River, Fascination, La Barca, Dó-

Ré-Mi, Fim de Caso… Músicas que o cantorentoava com o coração. Lá de cima, eleapreciava os casais dançarem enamorados;uns dizendo coisas a meia voz, outrosmudos, volteando...

Abotoaduras, prendedor de gravata e umlenço na lapela – a tríade do terno.

O sucesso advinha de cada um...

A Fundação Christiano

Rosa parabeniza Adelina

Marcondes Bangoim e Valéria

Rodrigues Alves pelo

lançamento dos livros

“Retalhos - Na Simplicidade

da Vida” e “A Casa

Encantada”, respectivamente.

Publicações de piquetenses...

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O ESTAFETAPiquete, julho de 2014 Página 7

Na roda das efemérides, tivemos acelebração de Corpus Christi a 19 de junhode 2014. Efeméride próxima à comemoraçãode nossos 123 anos de vida emancipadapoliticamente para constituir a autonomiamunicipal em território designado pelogoverno paulista de Américo Brasiliense(PRP = Partido Republicano Paulista) paraa Câmara da Vila de Lorena. E desta,desligado, o antigo Bairro do Piquetepassou a se registrar nas normasrepublicanas do poder tripartido:Executivo, Legislativo e Judiciário, comoVila Vieira do Piquete. E seguir seu destinocomo município pobre de grandesdificuldades. “Pobreza de doer”, diria RuthGuimarães, a autora cachoeirense, nossavizinha, e admirada pelos grandes mestrese autores da Literatura, de trabalho degrande apuro e magistério de inestimávelvalor.

Pois bem. O tempo somou experiênciase acontecimentos. A maioria católicaseguiu os ritos e os cerimoniais dereferência. Assim é a procissão de CorpusChristi, uma das mais concorridas pelopovo. A celebração de Corpus Christi é ada Eucaristia. Segue-se após Pentecostes,50 dias após a Páscoa, num domingo,seguido por outro dedicado à SantíssimaTrindade, para marcar na quinta-feiraseguinte o evento máximo da glorificaçãodo Corpo de Cristo, após se desligar davida terrena e deixar seu Corpo e Sanguetransformados em pão e sangue vivos,porque santos. Festa móvel, portanto, écelebração constituída a partir da SantaCeia na Quinta-Feira Santa do tríduosubsequente à Quaresma e anunciador daPáscoa.

Em Corpus Christi enfatiza-se oalimento que fora concedido aosdiaspóricos judeus liderados por Moiséspor 40 anos na busca da Terra Prometida –o maná, que, santificado por Deus, feztornar as pedras áridas do deserto em pãoe água. Revivificado o povo eleito, parafazer esperar o Messias.

E Este, chegado, viver humanamente,sofrer e morrer em sacrifício. Mas, deixandoo pão do Corpo e o Sangue vivos. Paraprometer a eternidade da vida para os quecreem e celebram, no alimento sagrado, apromessa principal da cristandade – asalvação eternizada pelo grande perdão.

E, enquanto nas arenas esportivasferviam as torcidas nos jogos da CopaMundial de Futebol, as procissões deCorpus Christi cumpriam seus rituaissagrados e as igrejas católicas oficiavamcelebrações eucarísticas em diferentesidiomas, num igual congraçamentomundial.

Corpus Christi

Nota: a expressão “diaspóricos” para opovo judeu, saído do exílio, com Moisés à frente,

vem de diáspora, nome dado ao êxodo de pes-soas de uma terra de nascimento a outra deescolha para a sobrevivência.

Os diaspóricos angustiam-se nos exílios.Os piquetenses diaspóricos que buscaram ou-tras terras sonham em voltar, nem que seja no

ato final, para mergulhar para sempre na ter-ra que os viu nascer.

Dóli de Castro FerreiraHá muito somos bombardeados com

mapas e figuras que nos acusam pela de-vastação da Mata Atlântica. Temos, portan-to, consciência da área do estado de SãoPaulo que perdeu sua cobertura natural.Entenda-se da mesma forma a área recobertapelo Cerrado.

O Código Florestal está aí apontando odedo para os nossos desmandos.

Falta-nos, agora, um código para a mi-neração. Não se trata apenas da extração deareia, saibro e pedras para construção, cal-çamento e decoração.

As águas subterrâneas respondem aoMinistério de Minas e Energia e temos mui-to que aprender no que toca às zonas derecarga dos aquíferos paulistas.

Dizem que a internet rasgou o véu queescondia o Conhecimento.

Então vamos aproveitar para aprender afazer licitação; a diminuir a margem de errona atribuição de preço às obras públicas; acalcular salários que propiciem uma vidadigna e sem sobressaltos ao trabalhador.Vamos aprender tudo sobre destinação dolixo, sobre esgotamento sanitário e drena-gem pluvial; sobre lançamento de gases tó-xicos e material particulado; sobre produ-ção de ruído acima do que o ouvido huma-no pode suportar.

E há o conhecimento que decide do des-tino das aglomerações humanas – a capta-ção, armazenamento e tratamento da água.

São Paulo é um estado de perfil defini-do. De porte médio, encontra-se totalmenteocupado por uma população amiga do tra-balho.

Brasileiros de todos os recantos o paísou estrangeiros de todas as latitudes e lon-gitudes – quem vem para São Paulo vempara trabalhar, vem para progredir.

Empenha-se agora o estado em aperfei-çoar a administração. Estamos acompanhan-do o esforço para implantar as esferas me-tropolitanas.

É como se um drone atravessasse o es-tado e registrasse os paulistas em ativida-de: implantação de florestas, agropecuária,indústria, mineiração, pesca, atividades por-tuárias e de infraestrutura, produção de ener-gia.

Com registros pormenorizados, as uni-versidades públicas estaduais podem ir parasuas pranchetas e projetar o desenvolvimen-to paulista para a próxima geração – duasdécadas.

Estabelecido o Plano Piloto toda a co-munidade paulista deve ser chamada a opi-nar para que se estabeleça o que é melhorpara o estado e para o Brasil, nos termos dolema “Pro Brasilia fiant eximia”.

A extensão universitária será sempre degrande importância registrando as ativida-des de cada região, suas facilidades e em-

pecilhos e que tipos de empregos são ne-cessários, como deve ser feito o aperfeiçoa-mento da mão de obra, que cursosprofissionalizantes devem ser criados.

Passando do desejável ao possível, –muitas vezes a comunidade paulista é po-dada por crises internas e externas – vamosao que é importante: descentralizar a admi-nistração com a criação de Distritos Admi-nistrativos – um para cada região.

Implantado o Judiciário e criada a Dele-gacia de Educação, Cultura e Esporte, pelomenos um escritório de cada Secretaria Es-tadual dever ser anexado.

É a esta altura que a nova estrutura co-meça a funcionar.

– Como dar ao cidadão o caminho maisfácil até à Justiça?

– Como oferecer a melhor escola à in-fância e a juventude?

– Como dar impulso às atividades prin-cipais de cada fração do estado?

– Em cada fração, qual a melhor desti-nação do lixo: reciclagem, compostagem ouprodução de energia?

– Onde colocar a Unidade Hospitalar demaior porte – facilidade no trânsito, estaci-onamento para ambulâncias, heliponto, am-biente sem poluição de qualquer natureza?

– Onde implantar um Parque Aquático,um Conjunto de Pistas de Atletismo, umComplexo para Esportes de Quadra?

– Onde criar um curso de pós-gradua-ção para a formação de treinadores e juízesesportivos?

– Como demonstrar aos agropecuaristasas vantagens das cooperativas, da associa-ção ou da integração em cada caso?

– Como implantar conjuntos de indús-trias com ligação direta com bairros habita-dos por trabalhadores?

– Como proporcionar ao trabalhador umamoradia digna?

– Como orientar a atividade florestal pararecuperar áreas degradadas; ou criar unida-des de proteção ao redor dos aeroportos;ou criar uma área de transição entre unida-des poluidoras e bairros residenciais?

– Como estabelecer providências decompensação para que o IBAMA nãoembargue obras importantes como as doporto de São Sebastião?

– Como criar centros de arte multiplican-do unidades de elite como o Conservatóriode Tatuí?

– Enquanto planeja São Paulo trabalha.E vai obter bons resultados.

E você, paulista, pode ajudar votandoconscientemente, escolhendo representan-tes competentes que, no Congresso Nacio-nal se lembrem de que estão a serviço doestado de São Paulo.

Abigayl Lea da Silva

Com os olhos em São Paulo

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Com a descoberta do ouro nas chama-das “minas gerais”, a região da Serra daMantiqueira passou a ser interessante apartir do século 18, por ser caminho para osgarimpos. O Vale do Paraíba tornou-se umcorredor inevitável no transporte de bensda região litorânea para o interior e de esco-amento dos produtos da mineração para osportos marítimos, com destino a Portugal.

Inúmeros foram os povoados surgidosnos caminhos do ouro. Com a ocupaçãohumana crescente, veio a degradaçãoambiental, e a floresta atlântica, que cobriaessas terras foi sendo devastada. Esgota-ram-se as minas e no refluxo dos moradoresda região de garimpo, muitas famíliasretornaram para o Vale do Paraíba. A urbani-zação desordenada e a agricultura substitu-íram a vegetação nativa comprometendo ain-da mais os ecossistemas. A Mata Atlânticafoi sendo seriamente comprometida. A cul-tura do café implementada no Vale concor-reu para que mais e mais florestas fossemdesmatadas. Em pouco tempo, as terras seenfraqueceram e o café migrou para outra

região, empobrecendo as cidades. Não ha-via, até então, preocupação com o meioambiente.

Com a difusão, em nível mundial, daconsciência preservacionista e o reconhe-cimento da importância da Mata Atlântica,surgiu e vem crescendo um movimento parasua preservação. Paralelamente a esse mo-vimento, nos últimos anos o ecoturismo vemganhando espaço, de maneira que são mui-tos os que procuram a região da Mantiqueirapara percorrer trilhas e caminhar em contatocom a natureza, observar pássaros e regis-trar diferentes aspectos da paisagem.

Piquete oferece múltiplas opções paraquem busca tranquilidade e contato com anatureza; é alternativa para quem deseja fu-gir da rotina estressante das grandes cida-des. Aliadas às belezas naturais, são muitasas atividades culturais da região.

O turismo tornou-se uma opção econô-mica para as pequenas cidades. No entan-to, para seu desenvolvimento é preciso queseus moradores se adaptem a esse novomercado. São necessários cuidados e adap-

tação para receber bem os turistas, exigen-tes por natureza. A preocupação com o meioambiente e com a qualidade do que será ofe-recido deve ser priorizada. Não bastam cor-tesia e simpatia como atrativos. É precisoque a cidade e os moradores que recebem ovisitante demonstrem reais preocupação ecuidados com a natureza. É no período deinverno que muitos procuram a região ser-rana. Algumas cidades, já há algum tempo,vêm se preocupando em recebê-los. Essamaior movimentação de turistas fez com queos destinos turísticos se transformassem.Essas transformações são evidenciadas nosatrativos, sejam eles naturais, culturais ounos serviços oferecidos nos setores de hos-pedagem, alimentação, entretenimento, ati-vidades comercias e, ainda, na infraestruturavoltada para o atendimento aos visitantes.Nova conscientização deve ser formada. Po-tencial, a região de Piquete tem em abun-dância. É preciso, porém, que tanto os seto-res público quanto o privado se desenvol-vam e, de forma integrada, efetivem açõespara que o turismo aconteça.

Turismo requer estrutura e conscientização

Tem sido comum ouvir: Deus é um só! Éuma frase muito usada na tentativa de ame-nizar conflitos religiosos. Mesmo dentro docatolicismo tradicional, porém, há múltiplasconcepções sobre a divindade. Um católi-co mais tradicional, por exemplo, tem ideiasmuito diferentes das de um católico pro-gressista ou um carismático, que possui aexperiência pentecostal como base de seuuniverso religioso. As concepções variama ponto de algumas serem contrarias às ou-tras – isso em âmbito católico. Quando to-mamos contato com um universo religiosomais amplo, a diversidade do significadoda palavra Deus se multiplica na mesmaproporção em que ampliamos o olhar. Háconceitos imiscíveis e potencialmenteconflituosos.

Gosto muito de um livro de Darcy Ri-beiro intitulado “O Processo Civilizatório”,escrito em Montevidéu em 1968. O texto éum brilhante estudo sobre a evoluçãosociocultural nos últimos dez milênios. Éfantástico como o autor traz à luz o nexoexistente entre o processo de evolução dassociedades humanas e o desenvolvimentodas concepções religiosas acerca das di-vindades. Para Darcy Ribeiro, as divinda-des são concebidas pelos grupos huma-nos em consonância com as necessidadestemporais. O homem mais primitivo que ain-da não conhecia técnicas de agricultura enão havia domesticado animais dependiada coleta de vegetais e da caçada de ani-mais disponíveis na natureza. Nesse cos-

Deus é um só?mos primitivo, as divindades estavam maisligadas aos fenômenos naturais. A naturezaprovedora era totalmente controlada pelosdeuses, aos quais se devia agradar comoferendas e sacrifícios. Há cerca de 10 milanos, o homem passou a plantar as semen-tes que colhia e a criar animais para o con-sumo. Houve importante avanço no proces-so civilizatório. Os grupos humanos foramse sedentarizando e se tornando mais den-sos. Com o controle da agricultura e a capa-cidade de criar animais, ficaram mais inde-pendentes da natureza e dos deuses que acontrolavam. O crescimento dos grupos hu-manos, porém, gerou outro desafio: organi-zar a convivência. Nessa sociedade seden-tária, o papel das divindades já não era tan-to o de controlar a natureza, já domada pelohomem, mas legislar. Os deuses se tornaramas fontes das regras para a convivência.

Há 7 mil anos ocorreu um fato muito im-portante: o homem aprendeu a irrigar suaslavouras. Por meio de dutos ainda rudimen-tares, a água começou a ser levada para oslugares de plantio. Isso deixou os gruposhumanos menos à mercê dos ciclos das chu-vas, aumentando a produtividade de alimen-tos, tanto para os homens quanto para osanimais domésticos, que, nesse tempo, jáeram utilizados nos serviços, além de faze-rem parte da dieta alimentar. Nesse contex-to, as sociedades humanas se avolumaramaté que se tornassem verdadeiros impérios.As divindades, então, eram concebidascomo as mantenedoras do sistema social,

da ordem pública. A sociedade que haviase tornado mais complexa necessitava deum princípio ordenador. Dos deuses vinhaa legitimação das leis e dos soberanos. Tem-plos foram construídos para dar visibilida-de à presença ordenadora dos deuses. Nes-ses templos, sacerdotes tornaram-se olhos,ouvidos e bocas das divindades.

O domínio da metalurgia promoveu umatransformação no mundo e também nas re-ligiões. Há 3 mil anos a utilização do metaltornou as sociedades ainda mais produti-vas e ampliou a capacidade bélica dos po-vos. O expansionismo e a necessidade dese defender converteram-se em elementosde sobrevivência. Nesse momento, os deu-ses tornam-se guerreiros, verdadeiros ge-nerais à frente de suas tropas. Nesses con-flitos muitos prisioneiros de guerra, homense mulheres subjugados, povos inteiros,foram reduzidos à condição de escraviza-dos. A partir da necessidade desses espo-liados nasceu a concepção de divindadepeculiar da tradição da Bíblia – Deus é li-bertador dos escravos.

Acho essa abordagem de Darcy Ribei-ro excepcional. Há tantas concepções dedivindades quanto há necessidades huma-nas. Num contexto de pluralismo religioso,aproximar-se das diversas perspectivas re-ligiosas ajuda-nos a compreender a com-plexidade da constituição de nossa socie-dade e a encontrar caminhos para satisfa-zer suas demandas.

Pe. Fabrício Beckmann