Upload
vanhanh
View
222
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
www.ufjf.br/eticaefilosofia
Jlio Maria Fonseca Chebli Reitor
Marcos Vincio Chein Feres Vice-Reitor
Instituto de Cincias Humanas
Altemir Jos Gonalves Barbosa Diretor
Ricardo Tavares Zaidan Vice-diretor
Departamento de Filosofia
Juarez Gomes Sofiste Chefe de Departamento
Mrio Jos dos Santos Coordenador do Curso
Antnio Henrique Campolina Martins Diretor da Revista
Faculdade de Direito
Aline Arajo Passos Diretora
Raquel Bellini de Oliveira Salles Vice-diretora
Denis Franco Silva Coordenador do PPG em Direito e Inovao
Vicente Riccio Neto Vice-coordenador do PPG em Direito e Inovao
Comisso executiva
ISSN: 1414-3917
Antonio Henrique Campolina Martins Editor
Marcos Vinicio Chein Feres Co-Editor
Clinger Cleir Silva Bernardes Editorao Eletrnica
Camila Fonseca de Oliveira Calderano Secretria
Conselho Editorial
Antonio Cota Maral (UFMG)
Bruno Amaro Lacerda (UFJF)
Gustavo Arja Castaon (UFJF)
Jos Henrique Santos (UFMG)
Luciano Caldas Camerino (UFJF)
Luciano Donizetti da Silva (UFJF)
Manoela Roland Carneiro (UFJF)
Nathalie Barbosa de La Cadena (UFJF)
Pedro Henrique Barros Geraldo (Universidade de Montpellier)
Paulo Afonso Arajo (UFJF)
Ricardo Vlez Rodrguez (UFJF)
Roberto Markenson (UFPB)
Ronaldo Duarte da Silva (UFJF)
Thereza Calvet de Magalhes (UFMG)
Wolfram Hogrebe (Universidade de Bonn)
www.ufjf.br/eticaefilosofia
Editorial
Pedro Calixto F. Filho
1
Credere et Intellegere, A articulao f-inteleco como fundamento da
ascenso intelectual no De Libero arbtrio
Roberto Carlos Pignatari
6
Estudo comparativo das obras de Franois Decret e Pio de Luis sobre o
Maniquesmo
Humberto Schubert Coelho
44
A beleza ontolgica na cosmologia filosfica de Santo Agostinho
Ricardo E. Brando
54
Plotinus in Magistro? A Antropologia Tricotmica e Dual da Regula Magistri
Antnio Henrique Campolina Martins
74
A Estrutura da Sensao na cognio sensvel em Santo Agostinho
Ricardo E. Brando
92
Sexualidade e Gnero no Pensamento Filosfico Cristo: Breve comparao
entre concepes naturalistas e personalistas
Luciano Caldas Camerino
105
A Fundamentao da Antropologia Agostiniana no De Trinitate
Fbio Dalpra
118
As provas da arte retrica: thos, pthos, logos nas Confisses de Agostinho de
Hipona
Ricardo Reali Taurisano
129
A tica como Articulao da Bondade e da Vontade do Humano e do Divino
no Pensamento de Agostinho
Pedro Calixto F. Filho
176
1
Aurelius Augustinus Hipponensis (354-430), mais
conhecido como Santo Agostinho, foi um dos mais importantes
tericos da antiguidade tardia. Obviamente, o pensamento cristo
no comea com o bispo de Hipona. Toda a patrstica que o
precedeu possui sua grandeza prpria. Porm, nestes sculos
atormentados que foram os IV e V depois da emergncia de
Constantinopla, saque de Roma... algo novo comea ser tecido
no prprio seio da teologia crist, a saber: o dilogo intenso e
profundo com a filosofia grega. Agostinho toma conscincia de
que a entrada do Deus relevado na cena da filosofia altera
radicalmente as categorias oriundas da filosofia grega e vice-
versa. Esse frtil dilogo vai transformar profundamente o
pensamento ocidental no que diz respeito a Deus e ao homem
exigindo que o pensamento filosfico elabore uma nova
cosmologia, uma nova antropologia e, consequentemente, uma
nova tica.
Essas transformaes vo marcar profundamente o
Ocidental, pois a filosofia agostiniana ser fonte de inspirao de
muitos dos grandes espritos medievais, modernos e
contemporneos. Este volume da Revista de tica e Filosofia
Poltica da UFJF, dedicado inteiramente a Agostinho, o
resultado de um esforo para reunir artigos inditos que desvelam
a novidade e amplitude da filosofia agostiniana.
Este frtil dilogo entre filosofia e teologia torna-se
visvel no artigo Credere et Intellegere, A articulao f-
inteleco como fundamento da ascenso intelectual no De
Libero arbtrio, onde Roberto Carlos Pignatari demonstra que a
2
teologia racional de Agostinho nos dilogos de Cassciaco-Roma
determinada pela polaridade credere-intellegere enquanto
articulao necessria para a ascenso do conhecimento humano.
na simultaneidade deste binmio que se mostrar o essencial da
concepo agostiniana do conhecimento. Todo conhecimento
prvio assentido in credere enseja sua consumao in intellegere.
F e razo esto longe de se opor, elas so complementares.
essa complementaridade que faz de Agostinho o primeiro grande
filsofo latino.
notrio que suas interrogaes filosficas foram
profundamente marcadas pelo maniquesmo. Humberto Schubert
Coelho, em seu estudo comparativo das obras de Franois Decret
e Pio de Luis sobre o Maniquesmo nos apresenta o quadro geral
da filosofia maniquesta. Este estudo de suma importncia para
a compreenso da atitude agostiniana face ao Maniquesmo. Ele
nos revela que a guerra ideolgica contra os maniqueus, como
outras tantas que Agostinho travou, no o tornaram o melhor
expositor de suas doutrinas. Alm disso, as respostas dos
maniqueus sugerem que Agostinho desconhece os mistrios mais
profundos do credo professado por eles. No entanto, o
Maniquesmo marcou profundamente o pensamento de
Agostinho, principalmente no que concerne as interrogaes
propriamente filosficas que o bispo de Hipona desenvolver
mais tarde: a questo metafsica e tica da origem do mal um
exemplo palpvel dessa influncia.
Porm, uma primeira ruptura para com o Maniquesmo se
d graas influncia neoplatnica no que diz respeito filosofia
da natureza. Em A beleza ontolgica na cosmologia filosfica de
Santo Agostinho, Ricardo E. Brando procura mostrar que, contra
os maniqueus, Agostinho defende a tese de que o cosmos
necessariamente belo: um Deus perfeitssimo, no poderia criar
um mundo imperfeito, mal e desprovido de beleza. Portanto, o
3
mundo por natureza bom e belo. E sua beleza nada mais que
um convide elevao.
Essa ruptura para com o Maniquesmo no que diz respeito
problemtica da origem do mal seria incompreensvel sem a
influncia do pensamento neoplatnico, mais precisamente, a
filosofia de Plotino. Em seu artigo Plotinus in Magistro?A
Antropologia Tricotmica e Dual da Regula Magistri, Antnio
Henrique Campolina Martins efetua um estudo minucioso da
terminologia antropolgica (anima, corpus, spiritus)
demonstrando o quanto a ruptura para com o dualismo platnico
alma e corpo efetuada no pensamento plotiniano est presente na
Regula Magistri, e um elemento capital para a elaborao do
conceito de liberdade que constitui o cerne do pensamento tico
de Agostinho.
Prosseguindo a pesquisa do prof. Antnio Campolina,
Ricardo E. Brando em sua contribuio A Estrutura da Sensao
na cognio sensvel em Santo Agostinho, demonstra que as
instncias, corpo e alma, esto imbricadas e cooperam de maneira
harmoniosa e necessria para produzir o conhecimento sensvel.
O corpo no mais um obstculo, mas sim condio necessria
para o conhecimento. A estrutura complexa da sensao se revela
aqui como ateno da alma para com o corpo, ateno esta que
tem como finalidade tirar a si mesma do estado de ignorncia.
Malgrado esta revalorizao da sensibilidade, em alguns
aspectos ligados corporeidade, Agostinho, como todo grande
filsofo, permanece um pensador de seu tempo e sua influncia
se perpetuar durante sculos. Em sua contribuio Sexualidade
e Gnero no Pensamento Filosfico Cristo: Breve comparao
entre concepes naturalistas e personalistas, Luciano Caldas
Camerino faz uma anlise de grande pertinncia para nossa
atualidade da questo da sexualidade e do gnero no pensamento
filosfico cristo. Ele demonstra que nosso filsofo e os que por
4
ele foram posteriormente influenciados, Toms de Aquino em
particular, tiveram da sexualidade e do gnero uma viso
naturalista restringindo a sexualidade reproduo. Esta viso
perdurou at o sculo XX, isto , at a emergncia do
Personalismo tico Cristo.
Porm, as grandes inovaes de Agostinho se do no
campo do discurso e da Antropologia. Dois artigos foram
consagrados a estas problemticas: Fbio Dalpra, em A
Fundamentao da Antropologia Agostiniana no De
TRINITATE, se apoiando sobre esta obra de maturidade procura
discutir os diferentes conceitos que fundamentam a estrutura
antropolgica do tratado trinitrio de Agostinho. Depreende-se de
suas anlises que a antropologia agostiniana se define por seu
carter dinmico do ser humano. Sua viso preconiza a busca
cognoscitiva, volitiva e racional do fundamento da existncia.
Trata-se de um movimento dramtico de efetivao da existncia.
Em sntese, como afirma F. Dalpra em sua concluso, a imagem
trinitria composta pela memria, inteligncia e vontade conflui
no ato decisivo de aproximao ou afastamento de Deus (ad
Deum ou ab Deo), e precisamente na convergncia de tais
conceitos que se estabelece a estrutura de seu modelo
antropolgico.
Ricardo Reali Taurisano em seu estudo aprofundado
intitulado As provas da arte retrica: thos, pthos, logos nas
Confisses de Agostinho de Hipona, procura mostrar atravs da
anlise desta trade que a finalidade da retrica no discurso
agostiniano transcende as funes clssicas, como construo de
carter, manipulao das paixes ou simples ornamento do
discurso visando exclusivamente a persuao e a agonstica. Para
evidenciar a originalidade de Agostinho Ricardo R. Taurisano
efetua uma anlise minuciosa da Retrica de Aristteles. Os
elementos retricos no discurso Agostiniano assumem novas
5
funes: purificao, incitao do desejo e, sobretudo, elevao,
o que o leva a concluir que sua finalidade eminentemente
propedutica e filosfica.
Enfim, como concluso deste volume da Revista de tica
e Filosofia Poltica da Universidade Federal de Juiz de Fora,
Pedro Calixto F. Filho, em sua contribuio A tica como
Articulao da Bondade e da Vontade do Humano e do Divino no
Pensamento de Agostinho, procura mostrar que a filosofia prtica
de Agostinho inteiramente predeterminada pela articulao da
ideia de bondade tanto ontolgica quando tica, pois a criao
pensada como efuso do bem absoluto. Neste sentido, o ser e o
bem, a existncia e a bondade so inseparveis. o bem que
penetra o mago das criaturas e determina nelas o desejo de ser e
de durar. Malgrado a finitude, implicando o mal como privao,
a existncia um bem e a morte necessria harmonia do todo.
A verdadeira e nica fonte do mal a vontade humana. Ela
necessria, pois na impossibilidade do mal moral o homem seria
privado de seu bem mais precioso que a liberdade.
Pedro Calixto F. Filho
6
A articulao f-inteleco como fundamento da ascenso intelectual no
De libero arbitrio II, i,1 - ii,6
Roberto Carlos Pignatari
RESUMO - Nosso objetivo visa apontar para a localizao determinante, no contexto
das assim chamadas provas da existncia de Deus presentes no perodo dos dilogos de
Cassicaco-Roma, da polaridade credere-intellegere enquanto articulao primeira e ensejante
da exposio relativa ascenso do conhecimento humano, levada a efeito por Agostinho no
livro II do De libero arbitrio, igualmente um tpico reiterativo na fase inicial (De quantitate
animae xxxiii, 70 xxxvi, 81; De ordine II, x, 25-37; De uera religione, xxix, 52 xxxv, 67),
bem como nas composies intermdias (Confessiones VII, xv-xviii; IX, x); e ainda nos
grandes tratados dogmticos (De trinitate XII, i, 1 iv, 4; XV, i, 1 ii, 3). Intentamos expor
como a polaridade f-inteleco, contemplando a postura ctica da suspenso do juzo
cognitivo partilhada por Evdio (De libero arbitrio II, ii, 5ss), qualifica a ambos os polos do
binmio como assentados em relao de referncia recproca, vale dizer: na simultaneidade
prpria aos polos binomiais, que se mostrar como essencial ao desenvolvimento da viso
agostiniana do conhecimento, matizando a articulao como atitude principial para a feitura
cognitiva da realidade, consubstanciada, em nosso texto-base, no itinerrio intelectual, via
universo, quele cujo conhecimento prvio no dado assentido in credere enseja sua
consumao in intellegere.
PALAVRAS-CHAVE: Agostinho, conhecimento, f, razo, crena.
ABSTRACT The purpose of this paper is to determinate, in the context of the Proofs
of the existence of God in the period of the dialogues Cassiciacum-Rome, the polarity credere-
intellegere as first articulation to pushing forward human knowledge in De Libero Arbitrio,
(De quantitate animae xxxiii, 70 xxxvi, 81; De ordine II, x, 25-37; De uera religione, xxix, 52
xxxv); The same thing is verified in the middle works (Confessiones VII, xv-xviii; IX, x) and
the major dogmatic treaties (De Trinitate XII, i, 1 iv, 4; XV, i, 1 ii, 3). Contemplating the
skeptical posture of the suspension of the cognitive judgement shared by Evodius (De libero
arbitrio II, ii, 5ss), our intention is to show that faith and intellection are autofounding because
of a mutual reference. It is in this simultaneity that develops the clearly Augustinian concept of
the knowledge. In the progressing of the ignorance to the knowledge, the most important is not
the one side of the binomial, faith-intellection or credere-intellegere, but there articulation:
what is granted in credere comes true in intellegere.
KEYWORDS: Augustin, knowledge, faith, reason, belief.
7
1) Introduo
Por vezes tomada como tpico emblemtico da herana da tradio platnica presente
no pensamento de Agostinho, a ascenso do conhecimento humano a Deus, nos dilogos de
incio, frequentemente analisada de modo isolado, de forma destacada em relao ao corpo
textual no qual se encontra inserida, e tendo como pano-de-fundo unicamente seus paralelos
naquela tradio, sobretudo o plotiniano1. Se a evidncia do arcabouo traditivo grego se impe,
at mesmo pela admisso do prprio autor, nem por isso a referida anlise deveria estar
circunscrita a tal herana assumida, ou mesmo restrita a uma comparao com os paralelos
referidos. A ascensionalidade em Agostinho possui princpio e finalidade prprios, que lhe
permitem certamente lanar mo do desenvolvimento neoplatnico j tornado corrente ento,
porm com o fito de compor ponto de superao da f crist em relao ao pensamento grego,
em que este como que realizado, em suas grandes teses e propsitos, naquela2. Objetivamos,
no presente estudo, expor como Agostinho situa o momento primordial, mesmo fundante, da
ascenso intelectual na articulao credere-intellegere, a qual ir determinar, a partir de sua
polaridade, o interim a ser percorrido pela inteleco da realidade criatural, em ratificao e
ajudicao do conhecimento assentido no (e pelo) ato de crer. Para tanto, tentaremos apresentar,
num primeiro momento, elementos introdutrios para anlise do itinerrio ascensional
agostiniano, tecendo breve panorama histrico para, em seguida, tentar ilustrar seu carter
1 Mesmo estudos referenciais da bibliografia agostiniana, ainda que com reservas ou ressalvas, partilham de tal
abordagem, como verificamos na notao de Gilson: ... Agostinho [...] leu [...] Sobre as trs substncias principais
(Enada V, 1, sobretudo caps. 1-7) [...] Esse tratado de Plotino tambm um itinerrio da alma para Deus atravs
do interior, que santo Agostinho soube refazer de modo cristo, mas do qual em nada alterou o platonismo
essencial. - GILSON, 2007: 47-48; ou no juzo categrico de Karl Rahner: A ascenso a Deus por mais que
se queira cristianizada concebida por Agostinho, tambm na maturidade, em estreita dependncia do
neoplatonismo RAHNER, K.; e VILLER, M. Ascetica e mstica nella patrstica, Brescia: Queriniana, 1991, p.
250. Vide ainda BRACHTENDORF, 2008: 135-138 (no obstante um como que reexame posterior - cf. nota
seguinte); OLIVEIRA E SILVA, 2007: 138. 2 Com relao ao carter ascensional da itinerncia intelectual no pensamento agostiniano, dentre os inmeros
estudos e alm das obras citadas na nota 1, a anlise de Johannes Brachtendorf, tendo por base os tratados
agostinianos sobre o Evangelho segundo Joo, apresenta a ascensionalidade hierarquizante num sentido que
visualizamos mais prprio ao intento amplo no qual se encontra situada, indicando que Agostinho, em tais
comentrios, explicates the relationship of philosophy and Christian Faith by assumying, modifying and
augmenting Platos image of ascent. According to Augustine, we do not have to rise up from a cave into the light
of day as Plato imagines; rather, we have to scale a mountain from the plains. BRACHTENDORF, J.
Augustine on the Glory and the Limits of Philosophy in CARY, P; DOODY, J.; and PAFFENROTH, K. (eds.)
Augustine and Philosophy, Maryland (UK): Lexington Books, 2010, p. 5-6 (o artigo compreende as p. 3-21 do
compndio). Cf. ainda: MANDOUZE, A. Saint Augustin: l`aventure de la raison et de la grace, Paris: Institut
de tudes Augustiniennes, 1968, p. 283-287; CAYR, F. La contemplation augustinienne, Paris: Descle de
Brower, 1954, p. 31-44.
8
decorrente, qual seja, visualiz-lo como atividade essencial e teleolgica da alma, ao mesmo
tempo como o resultado de sua abertura e predisposio volitiva inteleco do dado advindo
da f. Passaremos em seguida discusso inicial do Livro II, na qual tentaremos exposio
esquemtica da articulao da relao polar entre o ato de crer e a inteleco, elaborada aps o
vcuo cognitivo surgido em decorrncia da suspenso judicativa efetuada por Evdio, e da
qual resultar a postulao da trade axial esse-uiuere-intellegere, como afirmao primordial
do ser, conjuntamente ao emergir de sua inteleco, enquanto dado primeiro do conhecimento
relativo certeza indubitvel da existncia de quem questiona o existir [II, i, 1- ii, 6].
Perodo de Cassicaco/Roma: dilogos de incio
Uma breve rememorao acerca do trajeto agostiniano no perodo em Cassicaco/Milo
e, mais propriamente, na estadia em Roma, alm de permitir a devida insero contextual, bem
como a verificao de seu devido locus na obra geral do autor, possibilitar visualizao
adequada para uma fase da reflexo agostiniana que se revelar como sendo a de
estabelecimento dos postulados axiais (ou verdades de princpio), aos quais Agostinho ir se
referir e reportar de forma permanente, para seus voos intelectuais maiores e mais densos3. So
os dilogos do perodo Cassicaco/Roma que articulam os pontos de sustentao da viso
agostiniana da realidade, em cujo centro se encontra j o vislumbre da interioridade, enquanto
presena perene e atemporal da verdade a ser assentida, reconhecida e inteligida em sua
inteireza4. A estadia em Cassicaco deu-se de pronto aps sua adeso plena (e j adulto) f e
Igreja, mas primordialmente no contexto imediato de culminncia do trajeto intelectual de
Agostinho, pontuando termo ao processo de busca do conhecimento da verdade e, como tal,
evocando uma retomada em sntese de todo o percurso at ento efetivado. Nesse sentido, a f
crist caracteriza o coroamento responsivo e conclusivo de um caminho que fora trilhado a
3 Para anlise inicial a respeito, vide HARRISON, 2006: 20-33; DUPONT, A. Continuity or Discontinuity in
Augustine? in Ars Disputandi [http://ArsDisputandi.org.], volume 08 (2008), p. 67-79; um sumrio da discusso
(at o incio dos anos 2000) em BOUTON-TOUBOULIC, A.-I. Lapproche philosophique de loeuvre
dAugustin au miroir de la R.E.A. in Revue dtudes augustiniennes et patristiques, vol. 50 (2004), p. 326-
329; cf. ainda BRACHTENDORF, 2008: 147ss; vide igualmente nos grandes ensaios biogrficos: BROWN, 2012:
141-156; e LANCEL, 1999: 117-145; e ainda na breve biografia de VIGINI, 2012: 47-71. 4 Vide o artigo programtico de Moacyr NOVAES Filho: Interioridade e inspeo do esprito na filosofia
agostiniana in Analytica, Revista de Filosofia do IFCS-UFRJ, volume 07/01 (2003), p. 97-112.; cf. ainda
GUARDINI, R. La conversin de Aurlio Agustn, Bilbao: Descle De Brouwer, 2013, p. 35-43; VAZ, H.C.L. A
metafsica da interioridade Santo Agostinho in ID. Ontologia e Histria Escritos de Filosofia VI, 2
edio, So Paulo: Loyola, 2001, p. 84-85; OLIVEIRA E SILVA, 2007: 139-140.
9
partir das doutrinas maniquestas e do ceticismo5, mas com empuxo definitivo dado pelo
neoplatonismo6, no qual Agostinho identifica a composio articulada de verdades centrais que
foram, afinal, vislumbradas e atingidas pelos gregos pagos7. O trabalho de Charles Boyer
exps a postura por assim dizer epitmica a respeito da evoluo e possveis sedimentaes em
etapas, do pensamento agostiniano, em que aponta para a preponderncia do posicionamento
cristo de Agostinho desde o perodo de Cassicaco, a partir do qual opera com seletividade o
elenco de ideias que visualiza como concordes ao cristianismo [BOYER, 1920: 193-195]. O
posicionamento de Goulven Madec, por sua vez, tem se tornado referencial quanto postulao,
desde os escritos inicias agostinianos, de um ncleo doutrinal em contnua expanso e
elucidao [MADEC, 2001: 241-255]8. Em seu estudo sobre as Confessionum, Johannes
Brachtendorf [2008: 148] sumariza a discusso histrica a respeito da relao entre cristianismo
e neoplatonismo neste perodo, referenciando-se na postura assumida por Pierre Courcelle em
sua obra clssica sobre o texto de Agostinho, qual seja, a de relacion-los em uma unidade
sinttica. Restando evidente a impossibilidade, no mbito de nosso presente artigo, do avano
e esmiuamento no estudo das posturas dos autores, to-somente delineamos nossa perspectiva
no sentido da proximidade com a tese de Madec a respeito, no lastro do entendimento de um
continuum permeante a todas as etapas da filosofia agostinina, tomando a fase inicial (e portanto
5 Na introduo que preparou sua traduo do De quantitate animae, Riccardo Ferri nota que ele constitui, ao
lado do De moribus ecclesiae catholicae e do livro I do De libero arbitrio., uma trade contendo uma forte carga
antimaniquia (em particular com relao a temticas de interpretao da Escritura, da moral, da incorporeidade
da alma e do mal) FERRI, R. Introduzione in La grandezza dellanima De quantitate animae, Palermo:
Officina di Studi Medievale, 2004, p. 8. 6 Dentro do escopo introdutrio de nosso texto, relembremos o esquema histrico-temtico no qual Henri Marrou
condensa a obra agostiniana: a) perodo de 386 a 400 d.C.: polmica antimaniqueia/filsofo da essncia; b) de
400 a 412: polmica antidonatista/doutor da Igreja; c) de 412 a 430: polmica antipelagiana/campeo da
graa (inserindo, aqui, o telogo da histria contra os pagos) MARROU, Henri-Irne Saint Augustin et
laugustinisme, Paris: ditions du Seuil, 2003, p. 44-45 (obra originalmente publicada em 1955). Evidentemente
um esquema extremado, nas prprias palavras de Marrou, que em seguida tratar de esmiu-lo e nuan-lo,
caracterizando os primeiros dilogos de Agostinho como tendo sido escritos dentro do seu novo ideal de
neoplatonismo cristo, no qual a polmica [...] dirigida contra o ceticismo da Nova Academia na mesma
medida que dirigida contra o pessimismo maniqueu (p. 45). 7 De uera religione iii, 3-4; iii, 5 iv, 7. Vide a respeito o artigo de Gouveln MADEC Si Plato uiueret...
(Augustin De uera religione, 3.3) in Noplatonisme Mlanges offerts Jean Trouillard, Le Cahiers de
Fontenay no. 19/22, Paris, 1981, p. 231-248. 8 Cf. os trabalhos de Harrison, Dupont e Bouton-Touboulic mencionados na nota 3. Em seu artigo sobre o period
inicial, Michael Foley postula com inciso que uma das principais fontes filosficas para o perodo de Cassicaco-
Roma a obra de Ccero: ..., the hunt for Plotinus or Porphyrys footprints has all but overshadowed Augustines
indebtedness to another thinker praised in those same pages as the savior of Rome and the Latin father of
philosophy: Marcus Tullius Cicero. FOLEY, M. P. Cicero, Augustine, and the Philosophical Roots of the
Cassiciacum Dialogues in Revue de tudes Augustiniennes, 45 (1999), Paris, p. 51.
10
os dilogos compostos em tal perodo) como portando, para alm das notas oriundas do
estoicismo romano, o acento neoplatnico, entendido em sua relao de vetor plenificao da
doutrina crist, ou mesmo como identidade de essncia e de propsitos entre o pensamento
plotiniano/porfiriano e o cristianismo9, contendo este, entretanto, aquele em culminncia de
aperfeioamento e realizao10; aps o que poderemos, afinal, situar nosso texto de base quanto
articulao nuclear credere-intellegere como fundamento do perfazimento e itinerncia
intelectual da realidade.
O traado panormico do contexto que envolve a composio dos dilogos de incio
permite-nos trazer ao relevo uma leitura em paralelo dos trechos nos quais Agostinho expe a
ascenso intelectual para Deus11 j na forma esquemtica e normativa quanto atuao da
ratio12, apontando para a itinerncia da alma em culminncia no absoluto, atravs dos graus de
inteleco da realidade. Por sua vez, a possibilidade da sinopse permite-nos a percepo de que
a temtica da ascenso intelectual compe preocupao de primeira ordem no perodo de
Cassicaco-Roma, em que a presena da filosofia neoplatnica , como j o notamos,
9 Urs von Balthasar acentua categoricamente que o neoplatonismo e o cristianismo apresentam-se em unssono
aos olhos de Agostinho: a forma filosfica e a doutrina crist que ele recolheu e estruturou, justamente nesta
forma filosfica. Seus primeiros escritos do testemunho, com igual fora, de uma e de outra. VON
BALTHASAR, H.U. Gloria: una esttica teolgica, volume 2, Madrid: Ediciones Encuentro, 1986, p. 98. Antes,
Von Balthasar pontuara que ... j nos escritos de Cassicaco se reconhece Agostinho como absolutamente cristo
e crente, e, como demonstrou Courcelle, Agostinho conheceu Plotino nas pregaes milanesas de Ambrsio, e em
suas relaes com o sacerdote Simpliciano, que era cristo neoplatnico. Idem, ibidem. 10 [Carol] Harrison coaduna-se tese de Goulven Madec e outros, os quais sustentam que conceitos posteriores
de Agostinho, em teologia, estavam [desde] sempre presentes, in nucleo, nos escritos iniciais. DUPONT, A.,
op.cit., p. 68. Cf. HARRISON, 2008: 8-19. As grandes biografias igualmente pontuam neste sentido: Como quer
que fosse, Agostinho sempre vivera suficientemente inserido na esfera do cristinanismo para que sua imaginao
fosse captada tanto por um apstolo quanto por uma sbio pago: para ele, ambos eram vigi magni, os Grandes
Homens de seu passado curiosamente misto. [...] Com efeito, era um convertido entusistico Filosofia, mas
essa Filosofia j deixara de ser um platonismo independente. Fora fortalecida, de maneira sumamente
individual, pelos ensinamentos mais sombrios de So Paulo e, num nvel muito mais profundo, passara a se
identificar com a religio entranhada em nossos ossos na infncia ou seja, com a slida devoo catlica de
Mnica. BROWN, 2012: 123-127; LANCEL, 1999: 130-132; cf. BLZQUEZ, 2012: 34-46; vide ainda:
FATTAL, M. Plotin chez Augustin, Paris: L`Harmattan, 2006, p. 11-75 (sobretudo, para nosso presente estudo,
as p. 19-32); GUITTON, J. Le Temps et l`Eternit chez Plotin et Saint Augustin, 3. diton, Paris: Vrin, 2004, p.
136-151 (obra original de 1933). 11 Cf. KERSTING, Wolfgang Noli Foras Ire, In Te Ipsum Rede - Augustinus ber die Seele in JTEMANN,
Gerd; SONTAG, Michael; WULF, Christoph (Hs.) Die Seele: Ihre Geschichte im Abendland, Gttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht GmbH & Co., 2005, p. 59. Kersting pontua, a exemplo de vrios autores, a posio
deste perodo - sobretudo a do De quantitate animae - como especificamente neoplatnica (p. 61), o que, como j
o notamos nas observaes e notas precedentes, embora formalmente correto, resulta-nos como materialmente
impreciso, visto que a ascenso anmica exposta nos dilogos em questo ostentar trao inequvoca e
essencialmente distinto, quanto ao aspecto teleolgico do itinerrio intelectual. 12 De ordine II, x, 25-27; De quantitate animae xxxiii, 70 xxxvi, 81; De libero arbitrio II, iii, 7 xii, 34.
11
confessadamente manifesta e poderosa13. Torna-se claro, pois, que o itinerrio ascensional
tpico central do pensamento plotiniano, enquanto processo/retorno (converso) da alma do/ao
Uno14 perfaz ponto de embate e superao do pensamento agostiniano para com sua herana
greco-romana, vale dizer: assimilao depurativa da filosofia neoplatnica15. Neste mbito, a
possibilidade de leitura em paralelo evidencia uma postura uniforme, por parte de Agostinho,
na qual a receptividade de uma herana capital da tradio platnica ocorre em uma
refundamentao essencial de seu escopo e, sobretudo, de sua funcionalidade, traada no vis
fundamentalmente teleolgico caracterstico de antropologia, ancorado precisamente como
exposto no De libero arbitrio - no eixo de sustentao institudo pela polaridade crer-inteligir.
Nesta visualizao necessariamente sumria, os dilogos agostinianos apresentam um
como que eixo motriz: a preocupao em refutar, com suas prprias armas (ou seja, pela
racionalidade discursiva), os postulados cticos e maniquestas que intentavam divergncia no
que diz respeito ao cerne da f crist, mais propriamente a relao soteriolgica entre a
confessionalidade interior e o Deus absoluto16, estabelecida como dialgica e racional enquanto
espao de investigao e percepo dos vestgios divinos nos graus ascensionados
intelectualmente pela alma, em sua busca primordial e ratificadora do Deus conhecido pela f17.
Nesse sentido, o crer no dado revelado/escriturstico perfaz ato de f in confessio, por sua vez
vivenciado na relao dialogal com Deus perpassada pela ratio, estabelecida na mens18. Os
13 Cf. Confessiones VII, ix. Vide ainda De uera religione iii, 3-4. 14 Cf. Enadas I, 6ss; IV, 8ss; V, 1, 3-5; 9,2; etc. 15 Com vistas discusso ampla e exaustiva sobre as relaes entre a herana filosfica greco-romana e o
desenvolvimento do pensamento agostiniano, alm das obras j citadas de Boyer, Madec e Harrison (vide notas 3,
8 e 10), bem como as de Fattal e Guitton (nota 10), remetemos novamente ao volume organizado por Phillip Cary
mencionado na nota 2, sobretudo para os artigos de Brachtendorf (p. 3-21) e de Frederick Van Fleteren (p. 23-40). 16 Cf. BROWN, 2012: 126-127. Vide as notas 17 e 18. 17 Acerca da relao entre a confessionalidade e o exerccio da razo enquanto programa filosfico, no contexto
dos escritos iniciais agostinianos, vide DOUCET, 2004: 29-32. No mesmo sentido, Von Balthasar observa: O
carter dialgico (das Confessionum) no anula a legitiimidade do monlogo (Soliloquia) e, por consequncia,
o pensamento no pode reduzir-se pura e simplesmente a um colquio, pelo mero fato de que Deus no um
partner finito, mas sim o pressuposto ontolgico (interior intimo meo) da atuao pessoal do pensamento - VON
BALTHASAR, H.U. Glria: una esttica teolgica, op.cit., p. 111. 18 Philotheus Boehner observa que Agostinho trabalha com o duplo matiz de confessio: 1) expor-se enquanto alma
pensante; e 2) dispor-se enquanto corao crente, ou seja: os aspectos intitulados pelos comentadores de
autobiogrfico e teolgico, respectivamente [cf. BOEHNER-GILSON, 1988: 140]. Ressalte-se que, como se
pode verificar pelo desenvolvimento ratificador presente nas obras de maturidade, a confessio manifestada e
realizada na entrega conducente e na atitude ouvinte presena de Deus: confesso porque invoco; invoco porque
creio Que eu Vos procure, Senhor, invocando-Vos; e que Vos invoque, crendo em Vs [...] Senhor, invoca-Vos
a f que me destes [Confessiones I, i; vide ainda I, v]. A circularidade de tal atitude, por si mesma decorrente da
articulao maior f-inteleco, desvela o fio condutor de todo o pensamento metafsico agostiniano [acerca da
qual a tese de Daniel Napier oferece-nos um exaustivo quadro referencial, embora situe, contrariamente nossa
12
postulados da nova academia e do maniquesmo contrastam de modo frontal com tal base de
f, na medida em que, para a primeira, inexiste o que se possa ter e crer por verdade absoluta a
superar a disperso e a contraditoriedade do sensvel19; bem como, para o segundo, o dado
corpreo e material compe realidade inexcedvel, limite insupervel para o pensar, e postulado
como princpio ontolgico da realidade criatural, em contraposio ao princpio espiritual que
atua em permanente oposio quele.20 Ante tal quadro, torna-se imperativo lanar luz a
respeito da 1) existncia da verdade, bem como da possibilidade de se atingi-la; 2) quanto a seu
locus originrio e prprio, qual seja, a mens em exerccio atravs da ratio, atualizada no
princpio anmico e consubstanciada na interioridade enquanto perenidade ontolgica principial
(a qual, nos dilogos em questo, sobretudo no De libero arbitrio, e aps a suspenso judicativa
e pretensamente absoluta do conhecimento21, opera de forma autnoma, a partir do dado
primeiro do esse contingente, rumo ao esse absoluto22); e 3) do estabelecimento de seu
fundamento na relao com o eterno e absoluto, para o que afigura-se ento, como propsito
deliberativo e programtico, o rastreamento da atividade intelectiva perfazendo itinerrio da
presente tentativa, a alma circular agostiniana como herdeira direta da formulao plotiniana da processo e
retorno da alma ao uno, bem como da atemporalidade essencial das almas individuais, em razo de sua origem no
Uno - NAPIER, D. From the Circular Soul to the Cracked Self: a genetic historiography of Augustines
anthropology from Cassiciacum to the Confessions, tese de doutorado, Universidade Livre de Amsterdam, 2010,
p. 41-56; trabalho revisado e republicado sob o ttulo En route to the Confessions, Leuven: Peeters, 2013
(http://dare.ubvu.vu.nl/bitstream/handle/1871/16368/dissertation.pdf)]. Vide a respeito, ainda, as anlises
fundamentais de UCCIANI, 1998: 43-59; e MARION, 2008: 29-40. De resto, a confessio o prprio instanciar-
se da interioridade enquanto locus originrio da verdade, o que, para Agostinho, equivale ao locus Dei por
excelncia. Por seu turno, Moacyr Novaes Filho trabalha a especificidade do papel inquiridor, e contrapontual
postura platnica, da confessio em sua vivncia como correlatio uma cosmologia interiorizante - NOVAES,
2007: 167-172. Mais adiante, ao tratar especificamente do sentido hierarquizante presente nas descries dos
itinerrios da alma (os quais classifica como escalonamentos), Novaes sublinha que tal sentido obedece ao
princpio de subordinao, ostentado sobretudo na relao entre o conhecimento sensvel e a racionalidade, cuja
superioridade, face aos sentidos externos e interno, consiste na sua capacidade de pensar a si mesma, de voltar-
se para si. [...] vetor interiorizante. A progresso da hierarquia, alm de ascendente, pode ser apresentada tambm
como interiorizante. [...] ao ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta
trajetria: [...] NOVAES, 2007: 189-190; vide ainda seu artigo mencionado nota 4. 19 Vide nota 47 adiante. 20 Nossa caracterizao do princpio estrutural do maniquesmo tem por base a exposio que dele nos oferece
Justo GONZALEZ em Uma Histria do Pensamento Cristo volume 2: De Agostinho s vsperas da Reforma,
traduzida a partir da segunda edio inglesa de 1987, So Paulo: Cultura Crist, 2004, p. 17-20, com ampla
indicao bibliogrfica. Cf. o verbete de COYLE, J. K. Mans, Maniquesmo in FITZGERALD, A. D. (dir.)
Diccionario de San Agustn (San Agustn a travs del tiempo), traduccin de Constantitno Ruiz-
Garrido, Burgos: Editorial Monte Carmelo, 2001, p. 831-838 (sobretudo p. 832-835). Vide ainda os sumrios
doutrinais fornecidos por BROWN, 2012: 57-70; e LANCEL, 1999: 64-67. 21 De libero arbitrio II, ii,5 22 De libero arbitrio II, iii,7
http://dare.ubvu.vu.nl/bitstream/handle/1871/16368/dissertation.pdf
13
atuao da razo em relao ao limitado e imperfeito, evidenciando sua origem e fundamento
em Deus23.
Em tal escopo, a ascenso da alma passa a ser visualizada como plenificao e/ou
consumao do universo inteligido em cada nvel de seu perfazimento, e na culminncia da
atividade anmico-racional, perfazendo como que um mosaico sumarizante (no sentido de um
todo harmnico e esteticamente ordenado na justeza de suas partes) do real na grandeza
(quantitate) da anima em sua adorao ante o Deus absoluto24, compondo seu percurso
cognitivo em cada passo julgado e moderado pelo conhecimento atravs da ratio, na
simultaneidade advinda da dinmica interiorizante/exteriorizante.25 Nesse sentido, o ensejo do
percurso itinerante da ratio, por parte da articulao polar credere-intellegere, clarifica, no
trecho preambular do De libero arbitrio II, i, 1 ii, 6, em que medida Agostinho entende a
antecipao e imediao de tal relao como absolutamente necessrias para 1) a superao dos
dilemas ctico (suspenso do juzo cognitivo) e materialista (realidade criatural tomada como
princpio ontolgico), bem como para 2) elucidar o papel e a finalidade do exerccio da razo,
entendidos finalmente, na simultaneidade originria ensejada pelo binmio polar, como
concretizao em ato da relao fundacional Vere Esse absoluto e eterno realidade criatural
temporal, na feitura inteligvel desta como presentificao significativa da primeira. Assim,
verifiquemos como, na abertura do livro II do De libero arbitrio, Agostinho estrutura a
discusso com Evdio de modo a proporcionar, aps a breve retomada da digresso acerca da
23 Pois, na verdade, assim como a alma toda a vida do corpo, do mesmo modo toda vida bem-aventurada da
alma Deus. Enquanto vamos executando esse trabalho at o levarmos sua hora de perfeita realizao, estamos
ainda a caminho. E j que nos concedido gozar desses bens verdadeiros e seguros, embora sejam como espcie
de lampejos em nossa viagem ainda tenebrosa, observa se no seria o que a Escritura diz sobre a Sabedoria,
referindo-se sua conduta em relao queles que a amam, que vm a seu encontro e a procuram. Com efeito,
est dito: Ela se mostrar a eles, jubilosamente, nos caminhos e ir a seu encontro, com toda a solicitude (Sb
6,16). Efetivamente, em qualquer lugar onde olhares, a sabedoria te fala pelos vestgios que imprimiu em todas
as suas obras. De libero arbitrio II, xvi, 41; cf. ainda II, xvi, 43-44. Vide KREMER, Patrick J. The
psychological proof for the existence of God developed by Saint Augustine, Chicago: Loyola University, 1948,
p. 13-14; PLAMONDON, Paul La preuve augustinienne de lexistence de Dieu, Facult de Philosophie de
lUniversit de Ottawa, 1957, p. 04-06. 24 Ouviu sobre a fora e o poder da alma. E num breve resumo: ainda confessando que a alma humana no o
mesmo que Deus, temos que deduzir que nada criado est mais perto de Deus. [...] Este o nico Deus que a alma
deve adorar, sem dele dizer nada falso ou menos verdadeiro. Aquele que a alma adora como Deus, tem que ser
necessariamente considerado por ela como superior ao esprito humano. Nem a terra imensa, nem o oceano, nem
as estrelas ou a lua, nem o sol, nada absolutamente do que podemos ver ou tocar deve ser entendido como superior
alma [...] A razo nos convence de que todas estas coisas so inferiores a qualquer alma [...] Somente a Deus
devemos adorar como nico autor de todas as coisas, e tambm da alma. De quantitate animae xxxiv, 77-78. 25 Vide, alm do trecho do De quantitate animae citado na nota anterior, as passagens em De libero arbitrio II,
ii, 2-7; e De ordine II, i, 2-5. Cf. ainda NOVAES, 2007: 171.
14
vontade e do livre-arbtrio, o surgimento da articulao em pauta, evidenciando seus polos
como imediao do itinerrio da mente (antecipado na predisposio ao intellegere) rumo a
Deus (antecipado no assentimento do credere).
2) A vontade e o livre juzo
O problema da funcionalidade exercida pelo livre-arbtrio, no quadro das relaes entre
o Deus criador e o ser humano, marca propositadamente o incio do livro II do De libero
arbitrio. caracterstico da retrica dialogal de Agostinho a mxima explicitao da questo
em curso, em culminncia conceitual, como pontuao instaurativa de nova etapa no
desenvolvimento da discusso. Tais explicitaes levam a termo a conversao conduzida at
ento, convergindo para a elucidao dos conceitos em jogo e instaurando novo mbito de
discusso. Estas pontuaes tpicas ostentam atuaes de intervenincia na costura de um
todo dialogal e estruturado, atravs das quais deve-se rumar e atingir uma meta doutrinria
assentida ou suposta (inuentio) ao incio do dilogo26. Pressupomos, como perspectiva ampla
de anlise, que, tendo por mbito de incio o par formado por a) um questionamento
fundamental e de princpio (quaestio), acerca de um postulado ora celebrizado por correntes
filosficas j em curso, ora aceito pela f; e b) uma asseverao, ou mesmo colocao assertiva,
tomada por ponto indiscutvel no contexto da discusso prestes a se instalar (inuentio) questo
e assero fundamentais, a disputatio instaurada e se desenvolve com base nas recorrncias
de explicitaes do par inicial, o que, em ltima anlise, decorre da prpria concepo
agostiniana das relaes sabedoria humana e f crist, a qual parte do dado aceito e crido na f
fundante, para sua ratificao via questionamento e disputa argumentativa. A retrica
agostiniana ostenta, pois, seu carter instrumental como decorrncia direta do plano doutrinrio
26 A sucesso tpica e, mais precisamente, o locus e o ordenamento sequencial que ocupam, no interior da
composio retrica agostiniana, os elementos da quaestio, disputatio e inuentio, perfazem parte considervel do
estudo de Alfonso Rincn GONZLEZ, Signo y lenguaje en San Agustn, Bogot: Centro Editorial/UNC, 1992
(especificamente, no contexto de nosso artigo, as p. 99-117). Vide ainda o estudo de Grald ANTONI La prire
chez Saint Augustin: d`une philosophie du language la thologie du Verbe, Paris: Vrin, 1997, p. 17-36. Antoni
desenvolve exposio sistemtica acerca da concepo agostiniana da linguagem, em que os caracteres de
antecipao e simultaneidade, sobre os quais temos centrado nosso presente texto, revelam-se fundamentais
teoria dos signos em Agostinho (p. 37-56). Os estudos mais recentes de Emmanuel Bermon [2001: 304-311] e
Vincent Giraud [2013: 277-303], entre outros, igualmente tangenciam tais aspectos (vide, a respeito do ensaio de
Giraud, a nota 58 adiante).
15
e conceitual: a instituio do binmio quaestio-inuentio instaura a disputatio como exerccio
do intellegere da mens, que ir se concretizar e consumar, no curso da discusso, no itinerrio
ascensional rumo a Deus27. Assim, a problematizao agudizada acerca do papel desempenhado
pelo livre-arbtrio nas economias soteriolgica e das relaes ser humano/Deus, explicita a
incongruncia entre a vontade humana boa havendo sido criada por Deus e o mal desejado
pela mesma vontade. Porm, a agudizao no visa unicamente explicitar a discusso em curso,
mas avanar at o esclarecimento da soluo para um problema pressuposto em todo o dilogo:
conciliar a ordem criatural boa feita por Deus, com a experincia da presena do mal nesta
mesma ordem.
Ev. Se possvel, explica-me agora a razo pela qual Deus concedeu ao homem o
livre-arbtrio da vontade, j que, caso no o houvesse recebido, o homem certamente
no teria podido pecar.
Ag. Logo, j para ti uma certeza bem definida haver Deus concedido ao homem
esse dom, o qual supes no deva ter sido dado? [De libero arbitrio II, i, 1-2]28
A explanao do argumento principia pela petio de explicitao, ou seja, pela extrao
de pressupostos implcitos e aceitos at ento pela discusso em curso. O ato de peticionar
composto em dois tempos: 1) remisso do todo em jogo, e discutido at o momento (concesso,
por parte de Deus, do livre-arbtrio ao ser humano); e 2) anteposio de seu par oposto (negao
da concesso, com a hipottica consequncia imediata). Assim, o pedido de Evdio intenta a
extrao das razes internas s pressuposies relacionais que polarizaram a discusso: Deus e
ser humano. O elemento intermdio livre-arbtrio ostenta neste ponto tipologia ambivalente,
ou mesmo ambgua pura e simples: no se supe como logicamente possvel a atribuio de
liberdade plena atributo prprio do Criador criatura. Porm, se esta o exerce de fato,
evidente que lhe foi possibilitado somente por concesso do Criador:
Pois, se verdade que o homem em si seja certo bem [aluso ao pressuposto discutido
e estabelecido na primeira discusso livro I], e que no poderia agir bem, a no ser
querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual no poderia proceder
dessa maneira. Com efeito, no pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade
27 Tal o plano geral dos escritos agostinianos do perodo Cassicaco/Milo/Roma: De libero arbitrio II, i, 1 ii,
6; De quantitate animae, iii, 3ss; 28 Ev. Iam, si fieri potest, explica mihi quare dederit deus homini liberum uoluntatis arbitrium: quaod utique si
non accepisset, peccare non posset. - Aug. Iam enim certum tibi atque cognitum est, deum dedisse homini hoc,
quod dari debuisse non putas? As citaes do De libero arbitrio em nosso artigo so remissivas traduo de Nair
de Assis Oliveira, So Paulo: Paulus, 4. edio, 2004, adaptando-se a vertncia quando nos pareceu necessrio
e/ou prefervel.
16
tambm para pecar, que preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa
inteno. [De libero arbitrio II, i, 3]29
Cabe ressaltar, termos sumrios, que a articulao ostentada neste ponto revela-se como
proposio do fundamento de todo o decurso seguinte do dilogo. Trata-se de momento
determinante para o que podemos conceituar como autntica expositio Dei agostiniana, no
sentido de se expor como a atuao criacional de Deus - expressa no carter donativo da
liberdade e volio humanas, atravs das quais o homem age e se realiza de modo prprio
enquanto ser criado - pode ser entendida sem os pressupostos excludentes da f, na decorrncia
das solues angariadas na discusso. Tal exposio terminar por se revelar como o verdadeiro
corao da obra em seu todo, na qual Agostinho ir explicitar como a discusso nela encontra
seu transfundo, vale dizer: sua origem ontolgica e sua performao teleolgica, na medida em
que a discusso conducente de todo o De libero arbitrio tem por mote e esteio a relao criatural
Deus-ser humano em bases ontolgicas e epistmicas. A explicitao e ampliao conducente
se d mediante a instaurao, na abertura do Livro II, de novo mbito no dilogo, ampliando-o
de maneira a permitir a postulao acerca do livre-arbtrio, antevisto na funo de ato executor
da temporalidade anmica, na qual a atividade racional, por sua vez, ir se perfazer enquanto
feitura cognitiva da realidade30 (ancorada, segundo lemos em De quantitate animae v, 931, na
atitude primordial da imaginatio), no escopo amplo da assim chamada prova da existncia de
Deus trabalhada no De libero arbitrio32. Nesse sentido, possvel visualizar a composio
textual agostiniana como um duplo movimento em simetria: 1) disputatio recursiva e/ou
remissiva (enquanto retomada) quaestio at ento desenvolvida as paixes e tematizao da
uoluntas no mbito geral da discusso sobre a atuao divina e a livre responsabilidade humana
29 Aug. Si enim homo aliquod bonum est et non posset, nisi cum uellet, recte facere, debuit habere liueram
uoluntatem, sine qua recte facere non posset. Non enim quia per illam etiam peccatur, ad hoc eam deum dedisse
credendum est. 30 Num primeiro momento, Agostinho apresenta o livre-arbtrio ou a vontade livre, como a faculdade que o
esprito possui de se determinar a agir, lanar-se a viver, [...] A razo no se posiciona em oposio vontade,
como a parte terica da alma, dado que ela prpria uma potncia ativa, conhecedora. [...] A vontade a
faculdade de fazer prevalecer um desejo [superior] sobre outro [inferior], por um consentimento que vem a ser,
por sua vez, averso e/ou converso em relao ao bem desejado. [...] Nesse sentido, Agostinho afirma que nossa
liberdade consiste em nos submetermos esta Verdade perdida pela vontade pervertida (De libero arbtrio II,
13,27). MICHON, Cyrille. Le libre arbitre in CARON, M. (dir.) Saint Augustin Les Cahiers dHistoire de
la Philosophie, Paris: ditions du Cerf, 2009, p. 309. 31 Aug. Cur ergo, cum tam paruo spatio sit anima quam corpus est eius, tam magnae in ea possunt exprimi
imagines, ut et urbes, et latitudo terrarum, et quaeque alia ingentia apud se possit immaginari? 32 Cf. GILSON, 2007: 46-53.
17
- Livro I do De libero arbitrio33), pela qual se reporta, em retroao, atuao anmica como
ponto de partida; e 2) expositio prospectiva, pela qual se lana exposio do itinerrio de
ascenso do conhecimento humano a Deus, pelo perfazimento da realidade temporal no instante
atuante da ratio, atravs dos seus momentos de iudicare e moderare o dado conhecido pela
mens [II, v, 12ss]34. Na interseco do duplo movimento, a inuentio instaurativa e pressuposta
por todo o dilogo. Em suma, a anlise do passo retrico perpassado na estrutura textual
permite-nos a percepo de que Agostinho, dentro da tradio platnica de submisso da techn
ao t ont (da ars ao ens), faz valer a retrica como ordenamento discursivo de apresentao
da ordem ontolgica. Tal qual Plato nos dilogos de maturidade35, onde a forma de exposio
da dialtica ascensional terminava por revelar a forma ontolgica da realidade, assim Agostinho
expe a ontologia subjacente s relaes Deus/ser humano precisamente na forma da retrica
dialogal, na qual o passo subsequente da quaestio remissivo ao pressuposto da inuentio
presente por todo o dilogo: a autorictas outorgada pelo Criador enseja, como mbito de sua
33 De libero arbitrio I, xi, 21. Cf. BERMON, E. A teoria das paixes em santo Agostinho in BESNIER, B.;
MOREAU, P-F.; e RENAULT, L. (orgs.) As paixes antigas e medievais, So Paulo: Loyola, 2008, p. 202-206.
Em certo sentido, pode-se qualificar todo ato de f e de conhecimento como volitivo, na medida em que a confiana
e a cognio compem, respectivamente, expresses do desejo e de abertura do esprito busca de sabedoria, o
que pode ser exemplificado, por analogia, no exerccio do ato amoroso enquanto componente de ambas as
disposies da alma: Lamour ne constitue pas une volont comme les autres, seulement spcifie par un objectif
et une modalit particuliers, mais la seule valentior voluntas, la seule volont vraiment forte, en fait la seule
volont pouvant vouloir effectivement ce quelle sait devoir vouloir [MARION, 2008: 251]. Vide ainda
BOULNOIS, Oliver. Augustin, la faiblesse et la volont in DE LIBERA, A. (ed.) Aprs la mtaphysique:
Augustin? Actes du coloque inaugural de lInstitut dtudes Mdivales de lInstitut Catholique de Paris, 25
juin 2010, Paris: Vrin, 2013, p. 51-77. 34 No passo em questo, Evdio responde a Agostinho que o sentido interior exerce as funes de juiz e moderador
em relao aos sentidos externos, princpio que se mostrar como sendo o sentido prprio da atuao da ratio a
cada instante componente do percurso ascensional da realidade. Para Agostinho, [...] a percepo sempre uma
sntese de forma inteligvel e experincia sensvel que pressupe um ato de vontade individual. [...] tambm
possvel reconhecer, no ato de vontade que constitui as percepes a cada instante, uma figura ou uma imitao
do ato divino que constitui o mundo a partir da eternidade. [...] Mas todo instante, como ato de uma vontade livre,
inicia uma srie temporal sem ter uma causa anterior necessria (cf. o Livro II do De libero arbitrio). E todo
instante, enquanto unio do presente da memria, presente da ateno e presente da esperana, contm em si o
tempo como um todo, e portanto uma figura da eternidade. - MAMM, Lorenzo. STILLAE TEMPORIS
Interpretao de uma passagem das Confisses, XI, 2 in PALACIOS, Pelayo M. (org.) Tempo e Razo
1.600 anos das Confisses de Agostinho, So Paulo: Loyola, 2002, p. 61. 35 A dialtica do conhecimento, ensejada pela prpria dialogicidade socrtica, instanciada nos dilogos de
maturidade de Plato enquanto mtodo prprio da filosofia, tomando os polos instaurativos sensvel-inteligvel,
herdados dos dilogos iniciais, como ilustrativos da estratificao na qual se situa o conhecimento humano,
remetendo sua atividade percorrncia da decorrente gradao em que est disposto o ser e a verdade das coisas
e do mundo: Le lien entre dialectique et dialogue est donc tout sauf extrieur et contingent: en um sens, la
dialectique est la condition de possibilite de tout dialogue vritable, pour autant que celui-ci ne se rduise pas
une confrontation dopinions, cst--dire de monologues. DELCOMMINETTE, S. Devenir de la dialectique
in DIXSAUT, M., CASTEL-BOUCHOUCHI, A. e KVORKIAN, G. Lectures de Platon, Paris: Ellipses dition
M., 2013, p. 44.
18
prpria vivncia e aceitao, o instanciar-se da racionalidade, pela qual validada e ratificada
atravs do prprio ato libertrio (fundante) do julgamento racional, na medida em que a ratio,
autnoma em seu exerccio, fundamenta sua prpria atuao e independncia, superando todo
condicionamento imposto pela realidade sensvel, permitindo transpor e perfazer,
cognitivamente (intellegere), toda a realidade criatural. Assim, podemos concluir que
Agostinho faz valer seu aparato e preparo de mestre retrico como instrumentos a servio do
contedo da f crist, terminando por estatuir papel diferenciado arte discursiva, espcie de
retrica prpria, de moldagem e forma especificamente crists36: no mais a persuaso
pretendida estabelecida anteriormente ao contedo argumentado, mas o assentimento em f
fundamenta e condiciona o discurso a se apresentar, enquanto exerccio autonomamente
ratificador do dado advindo do credere (ou da pstis bblica), no qual a rusticidade do dado
escriturstico como que restaurada para uma nova expresso, ampliada e consumada no
discurso que se instaura a partir do inteligir a quaestio de princpio37. Vale notar, por fim, que
no contexto de nosso presente artigo, importa-nos ainda, mais detida e internamente ao texto,
observar como a agudizao de abertura ir conduzir exposio da ascensionalidade do
conhecimento humano nas sees 3 a 7, via estabelecimento do binmio credere-intellegere.
Com efeito, o precisar o locus da uoluntas dentro da atuao humana, conduz Agostinho ao
delineamento da ordo rerum, a qual por sua vez o leva exposio e contemplao do summus
ens, movimento este estruturado pela polaridade f-razo.
Centralidade divina argumentativa [De libero arbitrio II, i, 1 - ii, 4]
A pergunta de incio feita por Evdio apresenta duplo movimento, no qual a solicitao
de elucidao (explica mihi) seguida pelo seu oposto: caso no ocorresse o fato originrio
do qual se pede explicao (utique si), no haveria a ao ou consequncia oposta origem: o
pecado. A articulao do questionamento instaurativo do Livro II assenta-se, pois, no polo
binomial ao-divina/ao humana, lanando-se na explicitao de nova quaestio atravs da
remisso implcita da discusso percorrida at ento: 1) se temos por certo, aps toda a
36 Cf. TRAP, A. San Agustn in DI BERARDINO, A. PATROLOGIA - vol. III: La edad de oro de la literatura
patrstica latina, Madrid: B.A.C., 1981 (5 impresin: mayo de 2007), p. 488. 37 MORESCHINI e NORELLI [2009: 175] notam que somente a partir do sculo IV, com Jernimo e Agostinho,
haver um amadurecimento acerca do entendimento do dado escriturstico em sua tipologia literria, no qual os
autores, respeitando a verdade de seus contedos, sabem tambm utilizar as categorias retricas empregadas
pelos pagos para ampliar a qualidade literria dos textos sagrados.
19
discusso do Livro I, que possumos livre-arbtrio, dom concedido pela ao de Deus, mas causa
formal do pecado, ento 2) como explicar a ao humana resultante, possibilitada unicamente
pela ao divina originria, ao mesmo tempo que contrria a ela? O desdobramento da
apresentao da questo instaurativa mostra que a polaridade condiciona a conduo da
discusso:
Ag. Tambm me recordo de termos chegado evidncia a respeito desse ponto. Mas,
no momento, eu te pergunto o seguinte: esse dom que certamente possumos e pelo
qual pecamos, sabes que foi Deus quem no-lo concedeu?
Ev. Na minha opinio, ningum seno ele, pois por ele que existimos. E dele que
merecemos receber o castigo ou a recompensa, ao pecar ou ao proceder bem. [Idem,
II, i, 1]38 A interrogao interposta por Agostinho remete o fio condutor do questionamento, em
recorrncia, origem divina da ao humana, recentralizando e instituindo o carter teocntrico
de toda a discusso: a moralidade remonta, instncia ltima, ao ser divino pelo qual somos e
agimos. Mas a centralidade de Deus questionada por Agostinho remete ao dado primordial da
autorictas, e visa no se deter de maneira unicamente remissiva e pontual, como que meramente
aludindo causa formal da moralidade humana Deus - e sim saber e elucidar o agir de Deus
como fonte da conduta humana. Temos o dado do credere que aponta para a origem divina,
porm Agostinho interroga no propriamente sobre a posse ou a notitia deste dado, mas acerca
do experimentoar e conhecer esse dado: deum nobis dedisse scias. No se trata de um saber
cujo estatuto esteja situado em contraposio ao da f, tampouco em seu aprofundamento ou
superposio (como uma sua evoluo), mas sim um desejo em excelncia e excedncia
recorrentes para com seu dado primordial assentido em f, em plenificao ratificadora.
Tentemos precisar o estatuto funcional de scire, dentro da epistemologia agostiniana
exposta neste passo do texto, para alm da disposio intelectiva da f cristalizada como matiz
primeiro do pensamento, celebrizada no mote crede ut intelligas (que Agostinho ir expor logo
adiante). A utilizao de scire se d, propriamente, como o equacionamento da nova quaestio
de abertura do livro II. Em certo sentido, ele traduz e elucida a nova questo, ao funcionar como
meio de atuao entre os polos componentes do binmio a que nos referimos. A relao entre
o agir divino e a ao humana no costura sua tessitura como justaposio de partes
independentes entre si, mas sim como reflexo de feitura recproca entre um e outro. Com efeito,
38 Aug. Ego quoque nemini iam nobis id factum esse perspicuum. Sed nunc interrogaui utrum hoc quod nos habere,
et quo nos peccare manifestum est, deum nobis dedisse scias. - Ev. Nullum alium puto. Ab ipso enim sumus; et
siue peccantes, siue recte facientes, ab illo poenam meremur aut praemium.
20
uma observao quanto ao locus ocupado por scire no contexto agostiniano, ir permitir
explorao privilegiada daquilo que pode ser considerado o fio estrutural e recorrente de toda
a obra de Agostinho: a simultaneidade interposta entre credere e intellegere. Se a celebrizao
do mote latinizado, alusivo verso que a Septuaginta oferece de Isaias 7,939, tornou lugar-
comum a articulao entre a religio e a filosofia no interior do pensamento agostiniano,
terminou entretanto por fixar, com conciso nica, o sentido de sua atitude de base e princpio
(crer e entender), embora tenha, de certa forma, lhe empobrecido o alcance, precisamente ao
determinar-lhe vetorialidade (crer para entender). O mote tem, efetivamente, a funo
propedutica de balizar o direcionamento vital de sua filosofia, porm sua conciso encontra-
se fundamentada na interrecorrncia entre os polos do binmio anteriormente referido: ao
divina e ato humano, Deus criador e atitude volitiva humana. No escopo teolgico de seu
iderio, Agostinho expe o binmio criao-volio no mbito das relaes entre graa e
liberdade. O exerccio desta ltima, enquanto bem manifesto, s pode ter sua origem na
primeira, pois todo bem procede e de Deus [De libero arbitrio II, i, 1]40. Ora, precisamente
este simul entre ao divina a possibilitar o ato humano, o qual por sua vez quela remete e
busca, caracteriza todo o movimento de composio e exposio da argumentao discursiva
dos passos neste preciso momento de nosso texto. A presena primordial de Deus, cuja
ocorrncia postulada, neste passo do dilogo, no credere enquanto dado recepcionado de per
si (a autorictas presente na resposta de Evdio, mas sub iudice da ao ratificadora da mens a
partir de II, ii, 7), amplifica a alma, em sua atividade racional e espiritual (notica), da
sensibilidade material ao sentido interior, na precisa convergncia amplitude racional que
Agostinho expe em De quantitate animae v, 9ss. Nesse sentido, scire configura o movimento
prprio da simultaneidade estruturante da filosofia de Agostinho: desejo saber (e confiar em)
acerca do que j disponho e/ou me dado, do qual j sou notificado e pelo qual sou movido a
busc-lo. Tal acepo nos parece explicitada por James Wetzel quando, em seu guia
introdutrio ao pensamento de Agostinho, faz notar que fundamentalmente, para Agostinho,
no chegamos verdade; a verdade chega a ns e nos abarca em nosso lugar de internamento
39 A parte final do verso traz: [Septuaginta - Id est Vetus
Testamentum graece iuxta LXX interpretes, edidit Alfred Rahlfs (Duo volumina in uno), Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979; vide igualmente www.bibelwissenschaft.de/de/online-bibeln/septuaginta-
lxx/lesen-im-bibeltext]: e se no acreditarem, ento no compreendero. 40 Ev. [...] omne bonum ex deo esse....
http://www.bibelwissenschaft.de/de/online-bibeln/septuaginta-lxx/lesen-im-bibeltexthttp://www.bibelwissenschaft.de/de/online-bibeln/septuaginta-lxx/lesen-im-bibeltext
21
corporal. [2011: 89]. Mais adiante ainda, Wetzel trata de detalhar as relaes entre a aspirao
por sabedoria e o desejo mais profundo da alma scire e uoluntas em termos mais
quantitativos que qualitativos, com a precisa nuana que esta acepo ocupa na antropologia
anmica dos dilogos agostinianos, notadamente no De quantitate animae: qualificao da
vontade em sua abertura essencial, deve corresponder simultaneamente a quantificao da
sabedoria em sua infinitude: Aberto o que um desejo finito por sabedoria infinita tem de ser
[2011: 90-91], o que resulta na intimidade interior, na qual o datum da presena divina ocorre:
a) inicialmente, na autorictas que preside o ato de f; e b) em decorrncia, e ensejado pelo dado
de f, ocorre igualmente na percorrncia do delineamento ascensional do universo, pela ao
ratificadora e judicativa da mens. Assim, temos a biunivocidade, ou mais propriamente: a
simultaneidade caracterstica e estruturante de toda a filosofia de Agostinho, no qual a utilizao
de scire, neste momento de nosso texto [II, ii, 5], permite adentrar como passo inicial, e de
sinalizao diretiva, conduo do percurso discursivo culminante no itinerrio ascensional da
alma, exposto na seo seguinte.
Em contnuo, a resposta de Evdio retroage a questo aos termos de sua prpria
fundamentao: inquirio acerca de sua cincia sobre o carter donativo (dedisse) do livre-
arbtrio, responde com o remontar, por primeiro, a quaestio ao plano criacional/ontolgico, para
evidenciar a decorrncia antropolgica e moral da discusso acerca da uoluntas. Com tal passo,
a resposta de Evdio extrai, junto teocentralidade da pergunta de Agostinho, o seu aspecto
fundante, para evidenciar que a elucidao acerca da liberdade de uso do arbtrio humano
advm da exposio do carter decorrente de tal teocentralidade. Observamos, assim, que a
tessitura prpria do dilogo, bem como sua apresentao, constituem-se segundo o movimento
mesmo da simultaneidade essencial agostiniana: a um questionamento acerca de aspectos
humanos - no caso, a liberdade do juzo e arbtrio morais ocorrer primeiramente um como
que passo-de-volta, ou o sentido retrocessante/recorrente, para remontar a questo em seu
aspecto ontolgico e de princpio (espcie de arquiteologia). Para se explicar como agimos
rumo ao Bem supremo, deve-se antes remontar ao prprio Bem supremo, na circularidade
prpria que o elucida como o dado primordial. E, analogamente, quando Agostinho devolve a
quaestio repisando a inquirio de seu scire acerca da origem divina do livre-arbtrio, Evdio
uma vez mais apresenta o argumento da recorrncia minimum-maximum:
22
Ag. Mas o que eu desejo saber se compreendes com evidncia esse ltimo ponto.
Ou se, levado pelo argumento da autoridade, crs de bom grado, ainda que sem claro
entendimento.
Ev. Na verdade, devo afirmar que, sobre esse ponto, eu aceitei-o primeiramente dcil
autoridade. Mas o que poderia haver de mais verdadeiro do que as seguintes
asseres: tudo o que bom procede de Deus. E tudo o que justo bom. Ora, existe
algo mais justo do que o castigo advir aos pecadores, e a recompensa aos que
procedem bem? Donde a concluso: Deus que atribui o infortnio aos pecadores e
a felicidade aos que praticam o bem. [II, i, 1]41 A resposta exercita a remisso do mnimo ao mximo: pergunta se h convico, de
sua parte, acerca da origem divina do livre-arbtrio enquanto dom (e bno, por conseguinte),
Evdio apresenta o argumento da autoridade baseado, por assim dizer, no em incognitum
credo, mas elucidando sua vetorialidade: Deus - bem - justia - moral; a qual, por sua vez,
ostenta explicitamente sua instituio teo-teleolgica. Ao resolver a quaestio no remont-la a
Deus, Evdio na verdade dissolve-a no imediato da postulao da origem divina do bem (ou ao
carter donativo do libre-arbtrio, como dom) enquanto datum primordial, notitia qual a ratio
exercitar sua funo de moderao-conduo e, sobretudo, sua adjudicao (julgamento), pela
qual todo dado apresentado ao intelecto submetido sua ratificao42. Tal postulao fora o
ponto de partida, tal como ora perfaz o apontamento final. Longe de eclipsar as verdades
intermdias contidas na srie argumentativa, esta imediaticidade de postulado as traz ao lume,
fazendo com que se revelem e se constituam como inteleco da inuentio de incio. O imediato
se mostra, aqui, como constituinte das possibilidades de mediaes intelectuais do contedo
doutrinrio crido (imediato e institudo), sendo que no somente as mediaes qualificam e
inteleccionam o dado crido de incio, mas so em realidade possibilitadas e impulsionadas por
ele. o postulado doutrinrio (contedo assentido in credere, na f imediatizada pelo dado
primeiro da autorictas) que enseja (no sentido de solicitar e/ou encaminhar ao) o
entendimento/mediao da razo, enquanto solcito (necessitado) de sua adjudicao via
ratificao. Enfim, a imediaticidade do dado crido a inuentio de intervenincia do dilogo
apresenta-se como a prpria simultaneidade agostiniana: no h prioridade ou primordialidade
sobreposta de uma sobre a outra credere e intellegere mas em realidade instituem-se num
41 Aug. Hoc quoque utrum liquido noueris, an auctoritate commotus libenter etiam incognitum credas, cupio
scire. - Ev. Auctoritati quidem me primum de hac re credidisse confirmo. Sed quid uerius quam omne bonum ex
deo esse, et omne iustum bonum esse, et peccantibus poenam recteque facientibus praemium iustum esse? Ex quo
conficitur a deo affici, et peccantes miseria, et recte facientes beatitate. 42 Vide a nota 34.
23
s saber imediato, cuja discursividade no tempo constitui a inteleco ascencional do universo
criado pela scientia dei.
Precisamente a relao de decorrncia entre a imediata postulao e/ou remisso ao
dado do contedo crido, por um lado; e sua mediao construda pela inteleco argumentativa
que a penetra (discerne), que impede a composio argumentativa exposta at ento, de se
qualificar e se estabelecer como construto puramente teolgico. Credere (atitude intelectiva de
assentimento perante a autorictas, que enseja sua prpria ratificao, ou seja: institui e/ou
instaura sua racionalidade) no se impe como involuntrio, mas sim como desejado e buscado
de incio, imediatamente. Por sua vez, scire apresenta a busca j dada e concretizada na
interioridade confessante, porm levada a efeito, em seu discernimento e penetrao, atravs da
ratio atuante na inteleco mediada pela exterioridade43. O contedo crido e o ato de inteligir
do-se, pois, no mbito de instituio da atualidade anmica da interioridade44, e de constituio
da receptividade perceptiva da exterioridade na simultaneidade do scire e da scientia na
feitura cognitiva da realidade in totum. O delineamento em continuidade de nosso dilogo
tecido como extrao e consecuo deste simul fundamental que estrutura o pensamento
agostiniano aqui exposto. Face ao direcionamento da quaestio moral ao postulado, por parte de
Evdio, da origem divina do livre exerccio da uoluntas, Agostinho evidencia que este
posicionamento pede a colocao do questionamento em termos radicais:
Ag. Nada tenho a opor. Mas apresento-te esta outra questo: Como sabes que
existimos por virmos de Deus? Isso de fato no o que acabas de explicar, mas sim
que dele nos vem o merecer, seja o castigo, seja a recompensa. [II, i, 2]45
43 A progresso da hierarquia (nos itinerrios intelectuais descritos nos dilogos do perodo inicial), alm de
ascendente, pode ser apresentada tambm como interiorizante. [...] o esprito humano, ao investigar o mundo e
ser levado ao seu criador, encontra a si mesmo como momento privilegiado desta trajetria [...] Se nele (no
conjunto da criao) est impressa a sabedoria divina, o princpio ordenador, nele se comear a busca. A partir
da, a ateno volta-se para o homem interior, lugar privilegiado do reconhecimento da presena divina.
Reconhecimento, bem entendido, pois no se deve esperar que o homem apreenda completamente o que Deus:
as pretenses do esforo confessional so de certo modo inalcancveis. NOVAES, 2007: 190 (cf. ainda p. 168-
169); vide DOUCET, 2004: 21-22; vide ainda: RATZINGER, J. Originalit et tradition dans le concept
augustinien de confessio in CARON, M. (dir.) Les Cahiers dHistoire de la Philosophie - Saint Augustin,
Paris: ditions du Cerf, 2009, p. 20-21; OLIVEIRA, Manfredo A. O Ocidente enquanto encontro entre a
metafsica da natureza e a metafsica da liberdade: o exemplo de Agostinho in FELTES, Helosa Pedroso
M. F. e ZILLES, Urbano (orgs.) Filosofia: dilogo de horizontes, Caxias do Sul: Educs/Porto Alegre: Edipucrs,
2001, pp. 221-235. 44 ..., a alma deve atingir inicialmente a sua intimidade, o grau mais elevado de interioridade, antes que o homem
seja capaz de derramar sua alma acima de si mesmo. [...] Desta forma, Agostinho estabelece a natureza congnere
do conhecimento de si e da busca de Deus, desde que aquele seja subordinado a esta, no regime de interioridade.
NOVAES, M. Interioridade e inspeo do esprito na filosofia agostiniana, op.cit., p. 106 45 Aug. Nihil resisto: sed quaero illud alterum, quomodo noueris nos ab ipso esse. Neque enim hoc nunc, sed ab
ipso nos uel poenam, uel praemium mereri explicasti.
24
A inquirio apresentada ilustra que, se a formulao de uma dada questo enseja, em
sua prpria exposio, determinada solutio (nela mesma contida enquanto inuentio de
princpio), esta por sua vez enseja sua radicalizao rumo fonte da disputatio. Assim, a
sequncia inuentio-quaestio-solutio se d, no de forma sucessiva ou processual/progressiva,
mas sim de forma retrocessiva/recorrente: retorna-se, a cada nova exposio da quaestio
(esmiuada e radicalizada, por sua vez, a cada novo passo da disputatio), ao ponto originrio
que, afinal, Evdio tratara logo de supor: a origem divina da ao humana. Agostinho trata
ento de evidenciar que, se no h o que retorquir a tal postulado do credere origem divina -
igualmente h que se avanar na questo at o esgotamento da inuentio nela contida: a
postulao da origem divina da ao humana implica em questionar, mais amplamente - e,
portanto, para alm da moral - se a prpria existncia procede de Deus. Mostra-se, assim, que
o postulado acerca da fonte divina para a moral humana contm, em si, a inuentio da ontologia
fundamental que sua prpria assero acarreta: a origem divina da existncia. A resposta
agostiniana ir mais e mais evidenciar que a inuentio trazida por tal assero contm e
apresenta, imediata e simultaneamente, sua prpria quaestio j ensejada em mxima amplitude
e solutio: a existncia devida a Deus, cuja existncia, por sua vez, atestada pela realidade.
Eis, maximamente ilustrada, a simultaneidade agostiniana recorrente e perene, na qual o passo
seguinte no somente suposto pelo anterior, mas at mesmo por ele ensejado e, por assim
dizer, solicitado. neste escopo da postulao da origem divina, ensejante da ontologia e
cosmologia fundamentais, que se dar a descrio do itinerrio ascensional levada adiante por
Agostinho a partir de II, iii, 7, cujo movimento perpassante assenta-se pontualmente nesta
precisa excelncia e/ou excedncia entre os passos intragraduais componentes da ascenso
intelectual. Antes porm, avancemos na solutio trazida baila pela amplitude da quaestio
movente do dilogo, ensejada pela inuentio do contedo assertivo crido.
No obstante responda de forma direta, ainda que parcialmente, questo de Agostinho,
o responso de Evdio composto tendo por eixo a recorrncia ao dado primordial assentido no
ato de crer, o qual afirma a procedncia divina de todo bem existente. O trecho final contempla
diretamente a inquirio agostiniana ao trazer que
25
Ev. [...] todo bem procede de Deus. Isso nos faz compreender que o homem tambm
procede de Deus. Porque o prprio homem, enquanto homem, certo bem, pois tem
a possibilidade, quando o quer, de viver retamente. [II, i, 2]46
Novamente, a recorrncia ao elemento primeiro, atravs do passo argumentativo
retrocedente ao fundamento divino, leva Evdio a reiterar a argumentao analgica do
maximum referenciando o minimum: dado que Deus o bem maior e origem de todo outro bem,
tem-se de imediato que o ser humano, enquanto tal e vivendo retamente, (tambm ele) um
bem manifesto e, portanto, procedente de Deus. Esta composio, por sua vez, engendrar a
continuidade da discusso argumentativa at a exaurio do dado postulado pela autoridade da
f, condicionando o desenvolvimento do dilogo s teses nele implcitas. A estruturao
dialogal da questo de princpio ensejar, por seu turno e no nterim do responso de Agostinho,
o duplo movimento deste seu exaurir-se [II, i, 3]47.
Equacionada desta forma, a questo de origem, segundo Agostinho, j se pe (plane
si) solucionada (soluta est), visto ser evidente sua decorrncia interna: sendo Deus o bem
originrio da realidade, tudo o mais estar resolvido, de plano, neste dado primeiro, pois sua
postulao de princpio implica a presena dos demais postulados: 1) a livre vontade (libera
uoluntas) do ser humano para querer a retitude (por conseguinte, tambm a justia); e 2)
precisamente a liberdade inerente vontade e ao arbtrio, como evidncia da inautoria divina
de seu mau uso, pois o contrrio implicaria que a vontade no essencialmente livre, deixando
de se constituir num quaerere. Mostra-se assim, pontuado neste momento e articulado de
maneira concisa dentro do construto epistemolgico que Agostinho leva a termo, o preciso
papel da livre vontade, enquanto dom divino: motus decisrio prprio e princpio de ao,
votado realizao da retido [ou do correto proceder/agir (recte facere)], cuja condio
justamente a liberdade pressuposta ao seu exerccio.
Detenhamo-nos nesta preciso do locus por Agostinho reservado vontade livre dentro
da discusso em curso; por sua vez conduzida, neste momento, at a pressuposio divina do
seu aspecto donativo, bem como relativo ao humana deliberada. Retomemos: para se
constituir num quaerere, o agir humano deve possuir, em condio prvia (sine qua), a vontade
essencialmente livre (debuit habere liberam uoluntatem). Por seu turno, a ao humana (facere)
46 Ev. [...], omne bonum ex deo esse, etiam hominem ex deo esse intellegi potest. Homo enim ipse in quantum homo
est, aliquod bonum est quia recte uiuere cum uult potest. 47 Vide nota 29.
26
jamais poder ser qualificada como boa (recte), se no for almejada como tal (nisi cum uellet).
E, instncia ltima, a bondade ontologicamente divina (omne bonum ex deo esse II, i, 2).
Evidencia-se, assim, que a exaurio (e sua resoluo) da quaestio atravs da recorrncia a seu
dado principial (ex deo) deu-se, no pela imposio da autorictas (credere) de princpio (ainda
que esta lhe seja recorrente, maneira de uma fonte permanente e permeante a todo o
desenvolvimento da questo em disputa), mas sim unicamente mediante a discusso em torno
da ao humana e de sua realizao correta (tendo, certo e ainda, o dado anteposto da
autorictas como seu fio de percurso e recorrncia: Deus existe; e todo bem vem de Deus).
Unicamente no mbito do embate racional que ocorre a remisso do questionamento ao seu
fundamento perene: a correta feitura e a boa realizao, por parte do ser humano, da finalidade
proposta por Deus. Neste decurso, a liberdade, explicitada no quaerere fundamental da vontade
humana, institui-se como uma espcie de instncia executora da justia e da bondade divinas,
medida que o bom proceder (feitura e realizao) se d to-somente a partir da boa vontade.
A deliberao humana est, assim, situada em referncia tica teleolgica da ordo rerum:
pela fundamental deciso em querer proceder/feiturar, no ato livre da ratio atravs do
intellegere, a realidade em seu propsito bom - ou por sua rejeio que posso definir e
evidenciar ser a vontade humana essencialmente livre. A liberdade da vontade revela-se como
constituda pela presena inalienvel da possibilidade de querer proceder ao (facere), em
consonncia a um propsito de antemo reconhecido como bom48. Este duplo evidenciar-se
bondade reconhecida; e (em consequncia) pressuposta, manifestando a liberdade de quer-la
e feitur-la ser determinante para a exposio do itinerrio da mens rumo ao absoluto e
divino, que Agostinho ir proceder adiante, posto que a ordo rerum manifesta a presena divina
na feitura cognitiva do universo; o que, por reverso, possibilita vontade humana, via ordo
cognoscendi, a presena do espao deliberativo para - cognitiva, moral e justamente -
feiturar/proceder a realidade. A continuidade do responso agostiniano reafirma a relao de
decorrncia e de interdependncia entre justia e liberdade:
Ag. H, pois, uma razo suficiente para [a vontade livre] ter sido dada, j que sem ela
o homem no poderia viver retamente. Ora, que ela tenha sido concedida para esse
fim, pode-se compreender logo, pela nica considerao que se algum se servir dela
48 Cyrille Michon explana que, da mesma forma como emprestou ao termo liberdade duas fundamentais acepes
(poltica e metafsica), Agostinho houve por bem igualmente distinguir entre a vontade como faculdade; e como
exerccio desta faculdade [...] Agostinho fala do uso desta faculdade, por oposio sua possesso. MICHON,
C. Le libre arbitre in CARON, M. (dir.) Les Cahiers dHistoire de la Philosophie Saint Augustin, Paris:
ditions du Cerf, 2009, p. 309.
27
para pecar, recairo sobre ele os castigos da parte de Deus. Ora, seria isso uma
injustia, se a vontade livre fosse dada no somente para se viver retamente, mas
igualmente para se pecar. Na verdade, como poderia ser castigado, com justia, aquele
que se servisse de sua vontade para o fim mesmo para o qual ela lhe fora dada? [II, i,
3]49
Uma colocao se faz notar de pronto, na argumentao interposta por Agostinho: a
recepo intelectual do dado justificativo tomada por imediata (uel hinc intellegi potest). Tal
justificativa ilustra que a relao de decorrncia interna entre os elementos de uma disputatio
argumentativa, no quadro da epistemologia agostiniana aqui exposto, apresenta-se de forma
imediata e abarcando-os em simul. As relaes de decorrncia no esto dispostas em estruturas
sequenciais de uma ordenao que se eleva hierarquicamente, bem como temporalmente
construda, mas simultaneamente se dispem a um s instante portanto, imediatamente - ao
esprito, ante o qual sero ento mediatizadas na convergncia sequncia temporal pela
ratio50, ainda que esta, em sua feitura intelectiva e temporal, detenha-se passo a passo nos
estgios decorrentes e consequentes do discurso argumentativo (dialtico).
No prosseguimento do responso, uma vez mais Agostinho repassa a relao de
decorrncia entre justia e liberdade, visto que o ato humano somente se torna meritrio se
praticado no mbito do desejado livremente pela vontade. A aplicao da justia (uindicatur)
est em relao direta com a possibilidade de escolha entre usar a vontade para o bem, ou para
recus-lo. A segunda hiptese incorrer em penalizao, pressupondo-se que a uoluntas no foi
49 Aug. Satis ergo causae est cur dari debuerit, quoniam sine illa homo recte non potest uiuere. Ad hoc autem
datam uel hinc intellegi potest, quia si quis ea usus fuerit ad peccandum, diuinitus in eum uindicatur. Quod iniuste
fieret, si non solum ut recte uiuerentur, sed etiam ut peccaretur, libera esset uoluntas data. Quod enim iuste
uindicaretur in eum, qui ad hanc rem usus esset uoluntate, ad quam rem data est? 50 A simultaneidade das relaes decorrentes - e sua imediaticidade ao esprito - parece compor trao epistmico
caracterstico do perodo Cassicaco/Milo: Quaremimus quippe de animae potentia, et fieri potest ut haec omnia
simul agat, ... [De quantitate animae xxxv, 79], com a devida ressalva, no nterim do itinerrio ascensional do
conhecimento, acerca da sua deteno e convergncia (inter)mediao racional: ... , sed id solum sibi agere
uideatur quod agit cum difficultate, aut certe cum timore. Agit enim hoc multo quam caetera attentior (Idem);
Intuitus ergo et considerans uniuersam creaturam, quicumque iter agit ad sapientiam, sentit sapientiam in uia se
sibi ostendere hilariter, et in omni prouidentia occurrere sibi: et tanto alacrius ardescit uiam istam peragere,
quanto et ipsa uia per illam pulchra est, ad quam exaestuat peruenire [De libero arbitrio II, xvii, 45]; cf. ainda
De immortalitate animae viii, 14. A respeito da funcionalidade de tal caracterstica, Gilson comenta, no mbito
das descries da itinerncia anmica racional enquanto provas da existncia de Deus, no interior do pensamento
agostiniano: No se pode negar que sua doutrina contenha todos os elementos necessrios para uma prova deste
gnero [...] No obstante, algumas vezes [Agostinho] se exprime de tal maneira que a simples viso da ordem do
mundo parece equivaler a uma prova imediata da existncia de Deus. [...] De fato, sua demonstrao da existncia
de Deus uma longa meditao na qual cada etapa deve ser percorrida segundo a ordem e seu tempo [...]; mas
uma vez que se tenha encontrado a meta, o pensamento no est obrigado a se deter nela. Ao voltar para trs, o
pensamento constata que j poderia ter descoberto a meta de cada uma dessas etapas, mas que isso descoberto
depois de, tendo-as atravessado, t-las completado. - GILSON, 2007: 47 e 49.
28
dada ao ser humano para tal fim, o que configura a deliberao em no querer o bem (por sua
vez j conhecido). A liberdade tem por base o conhecimento do bem como dado, para sua
escolha ou eventual recusa. Por conseguinte, medida que todo ato humano decorre de ato
deliberativo de sua vontade, elucida-se em reiterao, a par da perenidade judicativa envolvida
na atitude humana como um todo, o dado fundamental sobre o qual se apoia a uoluntas, a saber:
que omne bonum ex Deo esse. A livre uoluntas, pois, somente pode ser exercida humanamente
sobre o escopo do dado tico