Jung_Freud o Amor, o Pai, a Religião e a Sexualidade

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    SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA ANALTICA

    CURSO PARA FORMAO DE ANALISTA

    LUIS FERNANDO NIERI DE TOLEDO SOARES

    JUNG, FREUD, O AMOR, O PAI,

    A RELIGIO E A SEXUALIDADE

    SO PAULO

    2011

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    LUIS FERNANDO NIERI DE TOLEDO SOARES

    JUNG, FREUD, O AMOR, O PAI,

    A RELIGIO E A SEXUALIDADE

    Monografia apresentada no curso de formao para

    analista Sociedade Brasileira de Psicologia

    Analtica. Curso de formao para analista para a

    sua concluso.

    Orientao: Dr. Tito R. de Albuquerque Cavalcanti

    SO PAULO

    2011

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    LUIS FERNANDO NIERI DE TOLEDO SOARES

    JUNG, FREUD, O AMOR, O PAI,

    A RELIGIO E A SEXUALIDADE

    Monografia apresentada no curso de formao para

    analista Sociedade Brasileira de Psicologia

    Analtica. Curso de formao para analista para a

    sua concluso.

    Data da defesa:

    BANCA EXAMINADORA

    Renata Barboza Ferraz ______________________________________________

    Brenda Gottlieb ______________________________________________

    Raquel Maria Porto Montellano ______________________________________________

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    Ao meu pai, cuja falta ainda dolorosa. Homem ntegro, amoroso,

    correto e justo. Que tanto carinho me deu, de quem herdei minha

    sensibilidade e habilidade musical. Ensinou-me a ser honesto

    comigo mesmo. Que mesmo em seu silncio discreto deixou marca

    profunda em minha personalidade e tocou a vida de incontveis

    almas. Saudades meu pai, saudades...

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    Agradecimentos

    Mais do que agradecer eu gostaria de homenagear algumas pessoas que simplesmente

    foram vitais em meu processo. No apenas para a realizao desse trabalho, mas para essa

    passagem que estou realizando em minha vida. Comeo meu agradecimento pela

    oportunidade que tive de participar desse processo de formao na Sociedade Brasileira de

    Psicologia Analtica. Foi caro, foi duro, mas valeu cada centavo e cada gota de suor gastos.

    Embora agradecer nosso orientador j esteja implcito na manufatura de qualquer trabalho,

    quero agradecer ao Tito, por sua pacincia em esperar que meu processo se realizasse e pela

    confiana de que eu conseguiria fazer essa travessia. Agradeo a meu analista Roberto

    Gambini pela amizade, pelo carinho com que trata minhas questes e por me ajudar a

    encontrar coragem para que eu cumprisse meus desgnios. Por ter acreditado em meu

    pensamento e ter me ensinado a amar minha imperfeio. Agradeo tambm aos meus

    irmos/amigos Glauco, Luis Paulo e Fernando que agentaram tanta ausncia nestes ltimos

    anos e continuam amigos.

    Agradeo ainda aos meus irmos, Jlio e Ana Paula, por serem modelos, por seremamigos, pelo amor que, apesar da distncia fsica, trocamos sempre. A minha me, pela

    personalidade forte, pela perseverana, pelo carinho e pelo amor que sempre nos dedicou.

    Agradeo do fundo de meu corao minha mulher Iara Patarra de Toledo Soares,

    porque sem voc esse trabalho no existiria. Por tua generosidade em compartilhar, em

    escutar, em contar comigo, em ser minha namorada, companheira e amiga. E por tua

    delicadeza feminina que tanto me ensinou e ainda por amar a minha imperfeio. Agradeo a

    meus filhos Henrique e Rodrigo, cujos abraos, os beijos, as brincadeiras e mal-criaes metrouxeram tantas vezes de volta ao mundo real. Cujo amor me traz eixo e sentido, quando

    estes se perdem.

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    "... Ningum pode fazer histria se no quiser arriscar a prpria pele, levando

    at o fim a experincia de sua prpria vida, e deixar bem claro que sua vida no

    uma continuao do passado, mas um novo comeo. Continuar uma tarefa que

    at os animais so capazes de fazer, mas comear, inovar a nica prerrogativa

    do homem que o coloca acima dos animais. (JUNG, 1927 A, par. 268)

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    Resumo

    O presente trabalho tem como objetivo o entendimento da relao de Jung com o tema

    sexualidade. Baseado na impresso de que este foi negligenciado em sua obra e de que tal fatopoderia ter suas razes ligadas a seu relacionamento com Freud. Lano luz sobre a

    correspondncia completa entre Freud e Jung, e sobre tudo o que Jung escreveu sobre

    sexualidade, para, dessa forma, examinar este relacionamento tanto do ponto de vista do amor

    que se desenvolveu entre nossos queridos mestres como da relao fraternal que ali se

    constelou. Esse dois caminhos desembocam no rompimento da relao que deixa suas

    conseqncias na obra de Jung, que so examinadas explorando-se aquilo que Jung escreve

    sobre o tema sexualidade antes e depois deste evento.

    PALAVRAS CHAVE: Jung; Freud; Sexualidade; Correspondncia; Pai; Amor; Paixo.

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    Abstract

    This paper aims at understanding the relation between Jung and sexuality, based upon

    the impression that such topic was neglected in his work due to his relationship with Freud.

    Their full correspondence is examined, as well as everything Jung wrote about sexuality, so as

    to analyze this relationship both in terms of the love that arose between these masters, and the

    fraternal bond therein established. Both paths led to the breakup of this relationship, whose

    consequences were reflected in Jungs production and are studied here through the

    exploration of his writings on sexuality before and after such event.

    Keywords: Jung; Freud; Sexuality; Correspondence; Father, Love, Passion

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    Sumrio

    Introduo .......................................................................................................................... 9

    1. Jung, Freud e o Amor .................................................................................................. 14

    2. Jung, Freud e o Pai .................................................................................................. 27

    3. A Discrdia e a Separao ...................................................................................... 54

    4. A sexualidade e a Religio ...................................................................................... 87

    5. Consideraes Finais ................................................................................................ 105

    Referncias Bibliogrficas ................................................................................................ 107

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    Introduo

    "... devemos alegrar-nos pelo fato de haver pessoas que tm a coragem do exagero e da

    unilateralidade. a estas pessoas que devemos as descobertas cientficas. Lamentamos apenas que

    cada um defenda apaixonadamente sua unilateralidade. As teor ias ci entf icas so apenas sugestes de

    como se poderiam considerar as coisas." (JUNG, 1912, par. 241)

    No h como negar a importncia psicolgica da sexualidade. De qualquer ngulo que

    olhemos, ela se mostra presente em nosso cotidiano. Difcil passar um dia inteiro sem que elacruze nosso pensamento. Seja porque somos bombardeados com informaes e estmulos

    nesse sentido, seja porque nossos hormnios no nos deixam em paz. Fato que vivemos

    numa sociedade que valoriza a sexualidade, se preocupa com a mesma e lhe d um grande

    valor. Livros e mais livros foram escritos a respeito dela, peas de teatro foram encenadas,

    filmes foram produzidos, teorias psicolgicas, baseadas exclusivamente nela, foram criadas.

    Entretanto, o assunto parece nunca se esgotar. como se a sexualidade se recusasse a ser

    encarcerada, como se ela no coubesse em nenhuma das caixas onde tentamos p-la.

    Segundo Timothy Taylor, um arquelogo evolucionista britnico, tornamo-nos

    humanos, como hoje nos conhecemos, atravs do que ele chama de seleo sexual. Essa teoria

    diz que no foi a sobrevivncia do mais apto, ou do mais forte, que selecionou as

    caractersticas que hoje possumos, pois isso no faria sentido do ponto de vista

    evolucionrio. Temos uma cabea muito grande e um canal de parto muito pequeno para

    sermos viveis do ponto de vista biolgico. Ainda por cima, nascemos muito imaturos e

    necessitamos de um tempo demasiadamente grande de cuidados ps parto. Ele defende a

    teoria de que essa escolha se deu por atrao e desejo sexuais. Atravs daquilo que se tornou

    belo aos olhos de nossos ancestrais mais longnquos. Nesse mesmo texto ele traa nosso

    passado sexual, desde os tempos maios remotos, at o aparecimento do homo sapiens e nossa

    cultura. Mostra, atravs de fartos exemplos, o quanto somo influenciados pela sexualidade,

    cujas manifestaes remontam aos primrdios do aparecimento da cultura, juntamente com a

    religio.

    Como tambm sou humano, interesso-me pela sexualidade. Dessa forma, queria

    escrever sobre o assunto, pois percebia que muito poderia ser dito sobre a sexualidade,

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    cruzando-a com todos os conceitos psicolgicos desenvolvidos por Jung. Conforme fui

    pensando no assunto e vivendo coisas em minha vida, fui percebendo, por exemplo, o quanto

    o Animus e a Anima interferem no relacionamento sexual. Por vezes atrapalhando, impedindo

    o mesmo, e em outras ajudando o encontro. Percebi que a sombra tambm pode se manifestar

    atravs da sexualidade assim como tambm podemos vivenciar nossa religiosidade atravs

    dela. Entretanto, essas eram apenas conjecturas a respeito desse vasto assunto. Eu precisava

    saber, inicialmente, o que Jung havia escrito sobre esse tema. Dessa forma, comecei a

    pesquisar tudo o que Jung havia escrito sobre sexualidade e organizei esses escritos por data

    de publicao. Conforme fui lendo o que encontrava em sua obra, fui ficando bastante

    intrigado com o fato de o prprio Jung no haver explorado esse rico material em

    profundidade. Encontrei reflexes muito interessantes em seus escritos, mas o material eraescasso e sensivelmente menos explorado do que outros temas sobre os quais Jung se

    debruou. Isso me animou a dar continuidade a meu trabalho, pois percebi o quanto este

    poderia ser indito. Entretanto, precisava comear por algum lugar e verifiquei que o volume

    do que me propus a fazer era demasiado grande. Decidi que eu deveria encontrar um

    fundamento histrico para falar sobre sexualidade, sem enveredar pela psicanlise, pois isso

    no era o que eu desejava. Foi assim que entrei em contato com o supracitado trabalho de

    Timothy Taylor.

    Para mim era muito fcil ter intuies e ideias, essas me vinham facilmente e eu as

    tinha da mesma maneira como as esquecia. Meu grande desafio era conseguir usar minha

    criatividade a servio de minha vontade de produzir algo concreto. Quando comecei a

    escrever encontrei muitas dificuldades. Fui percebendo que a tarefa que tinha pela frente era

    mais complicada do que eu poderia imaginar. No conseguia passar aquilo que surgia em mim

    para o papel. Fui anotando, a partir de ento, todas as minhas intuies e pensamentos num

    caderno, mas mesmo assim no conseguia escrever uma linha sequer de meu trabalho. Num

    determinado momento, lendo o livro de Taylor, comecei a escrever, como se algo se tivesse

    destravado e, assim, um captulo inteiro sobre a histria da sexualidade surgiu diante de meus

    olhos. Entretanto, no conseguia ficar feliz com meu trabalho, e tudo me parecia muito pouco

    interessante ou mal escrito.

    Este foi um momento delicado, pois tive a impresso de que aquilo que j era difcil

    antes, ficou ainda pior. Como se minha criatividade houvesse desaparecido, me abandonado e

    eu no consegui escrever mais nada. Estava sendo demasiadamente crtico comigo mesmo,

    sabia desse fato, mas nada podia fazer a respeito a no ser ficar com essa dificuldade,

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    trabalhando-a em mim, tanto em minha anlise pessoal como nos momento em que me

    dedicava monografia. Fui gradativamente percebendo que havia encontrado um muro,

    parecia que minha criatividade havia se esgotado e que ali era o "fim da linha". Em um

    exerccio de imaginao ativa vi que, atrs do muro, existia um jardim, um jardim cheio de

    canteiros onde se podia ver vrios "amores perfeitos". Essa flor, em italiano tambm

    conhecida como "viola del pensiero", ou "viola do pensamento" em portugus. Claro que,

    naquele momento, eu ainda no tinha conhecimento desse fato. Entretanto, o mais interessante

    de tudo isso era que meu maior receio em relao ao meu processo criativo era o de sucumbir

    ao desejo de abandon-lo.

    Vou contar-lhes o porqu de meu receio. Quando "decidi" ser psiclogo, aos 16 anos

    de idade, tambm me apaixonei pelo piano. No que essas duas paixes estivessem ligadas,

    muito ao contrrio, eram, naquele momento, paixes muito distintas em minha alma. Comecei

    a me dedicar com muito afinco ao estudo do piano, pois j sabia que era "velho" caso quisesse

    seguir como pianista profissional. Percebi, dessa forma, que tinha muita facilidade para o

    piano e era considerado como algum com uma musicalidade e sensibilidade acima da mdia.

    Entretanto, em meu primeiro recital pblico, percebi que estava muito nervoso e com muito

    medo de errar. Ali j se manifestava uma autocrtica bastante severa. No momento em que eu

    executava uma linda valsa de Chopin, conhecida como "Valsa do Adeus", fui acometido por

    uma falta de memria completa, no conseguindo completar a msica, por mais que tentasse

    recome-la. Dessa maneira, por uma absoluta falta de conscincia do que estava fazendo,

    abandonei a possibilidade de me apresentar em pblico tocando piano. No queria ter que

    passar por aquela experincia novamente. Mas, como nada gratuito no processo da vida,

    acabei por desenvolver uma averso s aparies pblicas de qualquer espcie, embora eu

    tenha at me aventurado a dar algumas poucas aulas sobre psicologia. No era um lugar

    confortvel para mim. Por isso eu sabia que corria o mesmo risco com esse trabalho, pois

    escrever uma monografia no deixa de ser uma exposio de nossa criatividade e

    sensibilidade. Assim, apresentava-se um grande desafio minha frente, o de ser capaz de

    reparar meu passado ao mesmo tempo de escrever um trabalho que tinha a ver comigo e com

    meu processo psquico mais profundo. Era como se eu tivesse que cumprir a tarefa do

    pensamento, tocar o instrumento do pensamento em pblico para depois poder fazer outras

    coisas com minha sensibilidade/criatividade. Para juntar todos os smbolos aqui apresentados,

    minha tarefa consistia em conseguir ser capaz de amar a imperfeio de meu pensamento,"amor perfeito"="viola do pensamento".

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    Neste momento, entretanto, eu ainda no fazia idia do que estava por vir. Pois eu

    ainda no havia entrado, de fato, em contato com as dificuldades e com as tormentas que so

    peculiares dos processos psquicos profundos. Foi-me sugerido que lesse as cartas entre Freud

    e Jung, pois a hiptese que me surgiu, neste momento, foi a de que Jung no havia escrito

    sobre sexualidade por conta de seu relacionamento com Freud. Li a correspondncia completa

    em poucas semanas, pois o material ali presente me fazia um enorme sentido, e era como se

    eu estivesse penetrando no psiquismo de Jung. Eu torcia, ficava bravo com Freud, com

    Bleuler, at com o prprio Jung, enfim, lia a correspondncia como se fosse um romance

    muito apaixonante. Emocionando-me e me entregando minha sensibilidade. Apesar de j ter

    uma idia do que escrever, ainda no conseguia faz-lo. Foi neste momento que tive um

    sonho, ao acordar me lembrava apenas de uma voz de mulher que me dizia as seguintespalavras: "Jung e Freud, o amor, o pai, a religio e a sexualidade". Percebi, arrepiado, que a

    Anima me havia soprado os captulos de minha monografia. Algum do lado de l,

    finalmente, me ajudava.

    Comecei a escrever e resolvi, tambm, no ler nada a respeito da correspondncia,

    pois queria estar livre para deixar que minhas impresses a respeito da mesma pudessem

    surgir. Em dois meses consegui escrever o texto completo. Mas foi neste ponto que as aflies

    do processo verdadeiramente comearam, pois junto com o processo de escrita ocorreu um

    mergulho em minhas questes que ali estavam sendo trabalhadas. Aps uma reviso do texto

    realizada por trs pessoas distintas, no sentido de me ajudarem com questes de ordem

    prtica, como erros de digitao, de portugus, etc, percebi numa segunda leitura de meu

    texto, algum tempo depois, que havia julgamentos a respeito de Jung que agora j me

    pareciam absolutamente excessivos. Era como se um pai terrvel houvesse despertado dentro

    de mim e, no exato momento em que o vi atuando sobre Jung, ele voltou-se contra mim. Bem

    verdade que, olhando para trs, ele estava o tempo todo me acompanhando de perto, pois sob

    seu olhar vigilante, severo e crtico eu j havia desistido do piano por conta do evento que

    comentei h pouco. Tambm havia quase desistido de terminar a monografia. O mais

    interessante que, mesmo sob o ataque desse pai terrvel, outro lado de minha personalidade

    veio tona com muita fora. A msica veio cobrar seu lugar em minha vida. Vi-me com uma

    disposio de retomar o estudo do piano, que j h alguns anos no era levado a srio. Assim

    se deu meu encontro com a viola do pensamento, quando consegui toc-la com um mnimo de

    destreza, minha relao com meu amado piano fora libertada. O mais interessante que eutinha muita dificuldade em ler partituras, coisa que tambm est vagarosamente se

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    transformando. Assim consegui nessa segunda leitura de meu trabalho ser mais

    condescendente em meus julgamentos para com Jung, pois percebi que todos ns temos

    nossos processos, e que Jung no deixava de ser tambm um ser humano, com tudo de bom e

    ruim que isso encerra.

    Meu processo de elaborao do complexo paterno ainda no acabou, assim como a

    integrao da anima tambm vem sendo trabalhada e assim ser, provavelmente, para o resto

    de minha vida. De qualquer forma sinto-me mais prximo do caminho que me levar para

    onde tenho de ir. O processo psquico interminvel e estou disposto a viv-lo at o fim, de

    minha vida, claro!

    Vou agora falar um pouco a respeito do texto que nos espera. Como ele fruto desseprofundo processo de reflexo, ele tem todas as caractersticas que lhe so peculiares.

    Trabalho meu texto com duas vertentes paralelas que desembocam num determinado lugar.

    Vou trabalhando atravs da correspondncia tanto a paixo/amor que acontece entre Freud e

    Jung, como a relao parental que ali se constri. De forma que, nos captulos denominados

    "Jung, Freud e o amor" e "Jung Freud e o pai", encontraremos diversas citaes repetidas. Isso

    proposital, no sentido de que olharemos para aquilo que foi escrito atravs desses dois

    ngulos distintos. Dessa maneira construo um caminho duplo que nos levar at orompimento entre ambos, que o terceiro captulo. Nesse momento fao uma amarrao entre

    os dois primeiros captulos, mostrando como tanto a relao parental como o apaixonamento

    desembocaram no rompimento da relao. E, assim, no ltimo captulo, discorro sobre aquilo

    que acredito serem as conseqncias dessa relao na obra de Jung.

    Dessa maneira, estou agora a descobrir meu jardim repleto de "violas do pensamento"

    e estou imensamente grato obrigao de escrever esse trabalho, apesar de todo o desconforto

    psquico e at fsico que me causou. Sinto que estou agora mais inteiro e mais prximo de

    meu Eu maior do que antes. Gostaria de ter sido capaz de realizar todo esse processo num

    espao de tempo mais curto, mas percebi, na pele, que os processos psquicos levam o tempo

    que lhes necessrio. Minha inteno, agora, a de me por ao trabalho de cultivar minhas

    flores desse jardim e ser capaz de compartilh-las com todos vocs, seja na msica ou no

    pensamento.

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    1. Jung, Freud e o Amor

    "A ausncia diminui as paixes pequenas e

    aumenta as grandes, porque o vento apaga velas

    e ventila um incndio." (Franois de La

    Rochefoucauld)

    Neste primeiro captulo vou falar da relao apaixonada que aconteceu entre Freud e

    Jung, e da importncia dessa na vida de Jung. Para tanto ser necessrio um mergulho

    profundo na troca de cartas realizadas pelos dois gnios da psicologia. Essa correspondncia

    dura aproximadamente 7 anos. Entretanto, a primeira carta de 11 de abril de 1906,

    endereada a Jung em agradecimento ao envio de seus trabalhos para que Freud os apreciasse,

    e a ltima, de 20 de abril de 1914, a carta de comunicao do desligamento de Jung da

    presidncia da sociedade de psicanlise. Embora o espao temporal entre a primeira e a ltima

    carta seja de oito anos, vou considerar que essa correspondncia termina em 6 de janeiro de

    1913 quando Jung aceita o desejo de Freud de abandonar suas relaes pessoais.

    Mas, entre o fim e o comeo muita histria se passou. Vamos ento ver, do ponto de

    vista amoroso, como aconteceu essa trgica histria entre os dois. Sim, houve amor entre eles,

    muito amor. Amor fraterno e amor parental, o qual ser abordado com mais profundidade no

    prximo captulo, e doses macias de apaixonamento e suas perigosas e respectivas projees.

    Chamo de perigosas as projees, pois o apaixonamento causa uma cegueira

    psicolgica em quem por ela est afetado. Cegueira essa que faz com que o apaixonado vejaaquilo que deseja ou que precisa ver em seu objeto de paixo. Essas coisas vistas so o que

    chamamos de projeo. A projeo, no caso da paixo, perigosa porque ela pode iludir os

    parceiros de um relacionamento, no permitindo que estes se percebam mutuamente como

    humanos. Isso perigoso, pois invariavelmente acaba em uma desiluso na qual

    necessariamente ocorrer um processo de confronto com a realidade do outro, o que nem

    sempre belo e lisonjeiro. Quanto maior a idealizao tanto maior ser a decepo decorrente

    do confronto com a realidade. Por outro lado, h tambm o aspecto positivo da paixo, pois

    exatamente em sua mais ardente manifestao que encontramos, ao menos em potencial, a

    possibilidade do relacionamento mais rico em termos de aquisio de conscincia. Essa

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    paixo, que funciona como aquela palha, ou aqueles galhos finos que colocamos na base de

    uma fogueira, tem a funo de acender um fogo, que apesar de parecer mais quente no incio

    to mais eficaz quanto o tempo que conseguimos mant-lo aceso. No estou, de forma

    alguma, fazendo apologia da paixo como o expoente mximo do amor, ao contrrio, ela

    apenas e exclusivamente a ignio de algo muito trabalhoso, ardiloso e imensamente

    recompensador que o amor. Transformar uma ardente paixo em amor , entretanto, uma

    das mais complicadas e exigentes tarefas psquicas de que j tive a oportunidade de vivenciar.

    Esse processo , provavelmente, eterno e requer doses macias de humildade e capacidade de

    reflexo. Isso sem falar em uma, muito desejvel, dose de conscincia de si prprio.

    Ao se ler a correspondncia entre eles, uma das coisas que salta aos olhos

    exatamente o que eu estava falando agora pouco. Ou seja, que eles se apaixonaram um pelo

    outro, perdidamente. Pode ser que a paixo por eles vivida no tenha sido ertica no sentido

    de uma relao de cunho sexual, embora o tema mais abordado pelos dois naquele momento

    de suas vidas tenha sido o da sexualidade. O grau de idealizao que os dois nutriram um pelo

    outro levou a uma trgica e, naquelas condies, inevitvel separao.

    Mas o apaixonamento entre eles no aconteceu de imediato. Freud j gozava de certa

    fama quando Jung entra em contato com seu trabalho. Parece-me natural que o jovem mdicoidealizasse algum da envergadura de Freud, um homem 19 anos mais velho do que ele, j

    com uma clnica slida e que, embora rejeitado pela comunidade cientfica, tinha ideias que

    Jung julgava geniais. Embora o movimento psicanaltico ainda engatinhasse nessa poca,

    Freud j havia publicado alguns livros e o que mais chamou a ateno de Jung foi A

    Interpretao dos Sonhos com o qual entrara em contato j em 1900, segundo consta em sua

    to polmica "autobiografia" "Memrias, Sonhos e Reflexes".

    apenas em 1906 que os dois comeam efetivamente um contato mais estreito. Essa

    troca de cartas se inicia por iniciativa de Jung que mandou para Freud seus Estudos de

    Diagnstico de Associao escrito em 1903. Este trabalho j fazia uso das ideias da

    psicanlise de forma consistente, e com aluso fonte de onde saram. Neste primeiro contato

    com Jung, Freud parece ter percebido a genialidade do mesmo, e parece ter se interessado em

    comear uma troca mais estreita com Jung. Seis meses depois desse primeiro contato, Freud

    manda para Jung uma coletnea de estudos breves a qual Jung agradece com o envio de uma

    carta para Freud.

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    As confisses desse amor comeam vagarosamente, tendo incio com um desejo de

    Freud de que Jung seja seu sucessor. Isto aparece explicitamente escrito pela primeira vez em

    uma carta de Freud de 14 de abril de 1907, curiosamente quase exatamente um ano aps o

    incio oficial da correspondncia entre eles. Nesta carta diz Freud: ...A propsito do outro

    assunto, devo igualmente saud-lo como meu sucessor... (20F, p. 70)1. Nas cartas

    subseqentes Jung vai fazendo uma srie de perguntas sobre a teoria de Freud, e os dois vo

    discutindo seus pontos de concordncia e discordncia. At que, com o nascimento da paixo,

    as discordncias vo dando lugar a uma parceria irrefletida, onde os dois se complementam

    perfeitamente como engrenagens numa mquina de propaganda da psicanlise.

    Aqui vai um exemplo de como foram se dissipando as diferenas entre eles e do

    quanto Jung foi se apagando para se tornar o querido de Freud. Em 24 de maio de 1907 Jung

    escreve Freud:

    "...No raro tenho de me transportar ao tempo anterior reforma de meu pensamento psicolgico para

    reexperimentar as acusaes feitas ento contra o senhor. Simplesmente no as posso compreender

    mais. Meu pensamento de outrora parece-me no s intelectualmente incompleto e errneo, como

    tambm, o que pior, moralmente inferior, j que agora deixa a impresso de ser uma imensa

    desonestidade em relao a mim mesmo..." (26J, p. 84)

    Neste trecho Jung parece estar completamente fascinado por Freud e sua teoria e isso

    vai se tornar cada vez mais evidente com o passar do tempo. Em minha opinio eles entram

    num relacionamento narcisista complementar, se que precisamos dar um nome para isso.

    Mas os dois acreditam serem os mais inteligentes e interessantes seres que habitam a terra,

    cercados por bestas e ignorantes completos.

    Mas ainda, antes disso, o apaixonamento entre eles vai crescendo e Freud vai

    seduzindo Jung com a "terra prometida". Em sua resposta de 26 de maio de 1907 carta de

    Jung do dia 24, Freud escreve o seguinte: "... verdade que para ns nada do que ele (seu

    livro "Grdiva" a que Jung rasga elogios desmesurados a respeito) diz novo, mas acredito

    que nos habilite a desfrutar de nossas riquezas..." (27F, p. 87). Se por um lado vemos nessa

    passagem certa seduo por parte de Freud, ao final da mesma vem uma honesta declarao

    onde Freud escreve: "...Espero que seu chefe se restabelea logo e seu trabalho ento

    diminua. Quando os intervalos se prolongam, sinto muita a falta de suas cartas... " (idem).

    1 Adotei este mtodo de referncia para facilitar o acesso integra das cartas aqui transcritas, entre

    parnteses, com o nmero da carta e o nmero da pgina onde ela se encontra na traduo para o portugus.

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    Jung por um lado sente a seduo e responde a altura, e nesta prxima seqncia os dois

    entram numa declarada rasgao de seda mtua. Jung escreve a 4 de junho de 1907: "...

    admirvel, em sua ltima carta, a observao de que podemos "desfrutar de nossas riquezas.

    Delicio-me diariamente com suasriquezas e vivo das migalhas que caem da mesa do homem

    rico..." (29J, p. 91). Ao que Freud responde dois dias depois:

    "...Muito me surpreende saber que sou o homem rico de cuja mesa o senhor recolhe as migalhas. Essa

    observao h de se referir a coisas que no so mencionadas em sua carta. Quem me dera que o

    fosse! Sua obra sobre Dem. Pr2., em especial, faz com que eu me sinta muito empobrecido..." (30F, p.

    93).

    Se nessas passagens podemos observar certa pieguice de ambas as partes com pitadas deseduo mtua, podemos tambm observar o que estava se processando no psiquismo de

    ambos. Os dois estavam se apaixonando um pelo outro. Jung estava realmente fascinado com

    a grandeza do sbio Freud, como um filho que olha para seu pai e v um Deus perfeito

    encarnado na terra. Freud por sua vez, tambm fascinado com a inteligncia e a perspiccia de

    Jung, olha para ele como um pai olha para seu filho que mesmo que fosse manco, caolho e

    terrivelmente feio, lhe parece um lindo heri que um dia ser um guerreiro fantstico. Ou seja,

    podemos observar claramente que eles esto mergulhados em projees arquetpicas, umacaracterstica bastante peculiar ao apaixonamento.

    Algum tempo depois vem a primeira declarao mais escancarada do amor de Freud

    por Jung. Em 10 de julho de 1907 Freud escreve:

    "...No gostaria de ficar todo esse tempo sem notcias suas - no estarei de volta antes do fim de

    setembro - pois suas cartas j se tornaram uma necessidade. Hei de, assim, mant-lo a par de

    minhas andanas. Quando o senhor estiver lendo sua conferncia em Amsterdam, espero estar na

    Sicilia. A despeito de todas as distraes, uma parte de meu pensamento estar voltada para l. Espero

    que o senhor conquiste o reconhecimento que deseja e merece; para mim, tambm, isso significa

    muito...Aceite a estima de sempre. E no se esquea, durante a longa ausncia, deste que muito o

    preza, DR FREUD." (36F, p. 107)

    E essa declarao de Freud continua ainda em sua prxima carta a Jung. interessante

    ver que mesmo os dois estando apaixonados um pelo outro, Freud quem primeiro declara

    esse amor. Mas o amor de Jung est latente, prestes a ser exposto da maneira mais

    2Abreviao de Demncia Precoce, como usada por Jung e Freud em sua correspondncia

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    interessante. Segue um trecho da carta de Freud a que me referi acima, de 18 de agosto de

    1907:

    "...Minha personalidade se empobreceu com a interrupo de nossa correspondncia. ainda bemque essa interrupo chega ao fim... Sua palestra em Amsterdam ser um marco na histria e para

    histria, afinal, que em grande parte trabalhamos. O que o senhor chama de o elemento histrico de

    sua personalidade, sua necessidade de impressionar e influenciar pessoas, esse prprio atributo que

    to bem o apresta para ser um mestre e um guia h de vir s claras mesmo que o senhor no faa

    concesses s tendncias de opinio em moda. E desde que tenha injetado seu fermento pessoal, em

    doses ainda mais generosas, na massa efervescente de minhas ideias, j no mais haver diferena

    entre os seus feitos e os meus..." (38F, p. 109)

    Estou falando essencialmente de um amor fraterno, mas como podemos verificarnessas passagens no est isento, nem imune a doses macias de projees de ambos os lados.

    E no dia seguinte Jung responde comeando suas primeiras declaraes de amor Freud.

    "...minha devoo incondicional defesa de suas ideias, bem como minha venerao

    igualmente incondicional de sua personalidade..." (39J, p. 110) Julgo interessante que Jung

    tenha usado a palavra venerao, pois esta palavra da uma dica de que ele tinha algum nvel

    de conscincia a respeito de seu amor por Freud, o que ficar claro mais tarde em uma outra

    passagem. Mas nesta mesma carta ele continua a se declarar e diz: "...sobre o Dr. Abraham.Devo admitir que ele me deixa "enciumado" por se corresponder com o senhor. (perdoe-me a

    franqueza, por mas que isso parea de mau gosto!)..." (idem) Entretanto o mais belo est por

    vir, como eu disse acima. O amor latente de Jung por Freud toma formas bastante confusas

    em sua cabea. Ele tem por Freud uma espcie de adorao, como um menino tem por seu

    pai, que, para o filho, sempre o mais forte, o mais velho, o mais poderoso de todos os

    homens. Embora nessa prxima passagem ele ainda no fale abertamente da maneira como

    sente seu amor por Freud, o que vir um pouco mais adiante, aqui ele se mostra quasedesnudo. Jung diz em 11 de setembro de 1907: "...Desejo externar o agradecimento mais

    sincero por sua carta, que veio na hora exata; fez-me um grande bem sentir que eu no

    lutava apenas por uma descoberta importante, mas tambm por um homem eminente e

    honrado..." (44J, p. 119). As projees esto claramente consteladas e so de importncia

    fundamental para os dois. Como a pouco comentado, quanto maior o grau de idealizao,

    maior a decepo ao nos confrontarmos com a realidade das coisas. Mas nesta mesma carta

    Jung continua, e aqui vem a mais ingnua, e at por isso uma das mais belas declaraes de

    amor de Jung para Freud:

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    "...Devo aproveitar a oportunidade para externar um desejo de h muito acalentado e constantemente

    reprimido: eu gostaria imensamente de possuir uma fotografia sua, no com a aparncia de antes, mas

    tal qual era na ocasio em que o conheci em pessoa. Exprimi esse desejo sua mulher, quando

    estivemos em Viena, mas ao que parece ele foi esquecido. Poderia o senhor atend-lo agora? Ficar- lhe-ia para sempre grato, pois volto repetidamente a sentir que seu retrato me faz falta..." (Idem)

    Freud que no era nem um pouco ingnuo, percebeu a transferncia macia de Jung e

    diz em sua carta seguinte: "...Mas no me superestime, por favor. Sou humano demais para

    merec-lo..." (45F, p. 123). Entretanto, sabemos muito bem o quo saboroso ser recipiente

    de tais projees, pois algo em ns se delicia com esse mel que nos dado em oferenda.

    Sabemos tambm o quo perigoso isso . Mas, de qualquer maneira, Freud acedeu ao desejo

    de Jung e tambm pediu uma fotografia dele para por em sua mesa. Neste momento impressionante ver como os dois realmente esto apaixonados um pelo outro. Assim que Jung

    recebeu o tal retrato, respondeu imediatamente, o que aconteceu a 10 de outubro de 1907:

    "...Meu mais sincero obrigado pela excelente fotografia e a esplndida medalha. Gostei

    imensamente de ambas. Mandar-lhe-ei de imediato um retrato meu, embora essa troca

    parea quase absurda..." (48J, p. 126) Jung no consegue entender o que que Freud v nele,

    tamanha sua embriagus apaixonada. Mas nessa prxima carta, da qual uma parte agora

    transcreverei, vem tona toda a projeo de Jung para Freud. Jung faz uma revelaoarrebatadora de seu amor, e de suas confuses internas em relao figura de Freud. A carta

    de 28 de outubro de 1907 e diz o seguinte:

    "... Na verdade - e preciso um grande esforo para confessar isso - tenho pelo senhor uma

    admirao ilimitada, quer como homem, quer como estudioso, e no lhe voto o menor rancor

    consciente. Decerto no aqui que reside a origem do meu complexo de auto-preservao

    (referindo-se a sua demora em responder Freud, que por vezes incomodava este ltimo) ; mas

    d-se que a maneira como o venero tem algo do carter de um embevecimento "religioso". Se bem que

    a coisa realmente no me aflija, ainda a considero repulsiva e ridcula devido a seu inegvel fundo

    ertico. Esse sentimento abominvel provm do fato de eu ter sido vtima, quando garoto, de um assalto

    sexual praticado por um homem a quem adorara antes. Mesmo em Viena as observaes das senhoras

    ("enfin Seuls" etc.) me deixavam doente, embora a razo disso, na poca, no me fosse clara.

    Esse sentimento do qual ainda no me livrei por completo, molesta-me consideravelmente. Outra de

    suas manifestaes que acho que o discernimento psicolgico torna absolutamente desagradveis as

    relaes com colegas com uma forte transferncia para mim. Tenho portanto medo de sua conf iana.

    E tambm tenho medo de que o senhor reaja de igual moto quando lhe falo de meus problemas

    ntimos... Penso que lhe devo essa explicao, embora preferisse no d-la..." (49J, p. 129)

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    A resposta de Freud quase como um balde de gua fria nessas questes to intensas e

    confusas s quais tanto atormentavam Jung. Talvez no pudesse ser diferente, afinal como

    lidar com um colega que nos escreve uma carta com tal contedo? Podemos olhar para a

    questo de Jung achar que seu sentimento tinha inegvel um fundo ertico sob outra

    perspectiva. Em minha opinio esse sentimento tem uma profunda relao com o complexo

    paterno. Ao amor do filho pelo pai, que passa por uma grande confuso de desejos e

    sentimentos. Se observarmos do ponto de vista desse amor parental, a sim podemos falar de

    um fundo ertico no entendimento que hoje temos do que ertico, ou seja, daquilo que est

    relacionado com Eros, com o amor. Assim, no poderia nem deveria ser motivo de vergonha

    ou repulsa. Aqui, o que vou considerar a imensa carga de idealizaes que existe na relao

    dos dois, tanto de Jung para Freud como o reverso. A resposta de Freud endereada Jung a15 de novembro de 1907 diz o seguinte a respeito de toda essa dramtica confisso:

    "...O que diz de seus progressos interiores tranqilizador; uma transferncia de base religiosa,

    a meu ver, seria absolutamente funesta e s poderia terminar em apostasia, graas universal

    tendncia humana de se ater a sucessivas reimpresses dos clichs que ns trazermos no ntimo.

    Farei o possvel para lhe mostrar que no estou talhado para ser um objeto de adorao..." (52F, p.

    132)

    A ttulo de curiosidade, o que ser que Freud queria dizer com "...clichs que ns

    trazemos no ntimo.". Me parece que o conceito de arqutipo estava brotando na conscincia

    daqueles que estudavam psicologia. De qualquer forma, a resposta de Freud para Jung, como

    disse acima esse balde de gua fria no calor entusiasmado de Jung. A transferncia de base

    religiosa inerente relao que est se construindo entre os dois e sem dvida uma das

    grandes evidncias da macia projeo necessria para tanto. Uma vez que apostasia o

    abandono de uma f religiosa ou culto institucionalizado, parece-me que Freud est sendo um

    pouco radical quando afirma que essa projeo s poderia terminar dessa forma. S terminaria

    em apostasia caso ele tratasse sua teoria como se fosse uma doutrina religiosa e seus

    discpulos como se fossem crentes. Entretanto, como veremos, no parece ser toa a acusao

    de Jung neste sentido, ou mesmo o temor de Freud em relao apostasia.

    Em alguns momentos eles se comportavam de maneira que seria possvel entender a

    confuso de Jung em relao seus sentimento. Neste prximo trecho Jung comporta-se

    como uma menina apaixonada por seu professor de ginstica. Ele diz:

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    "...Tenho um pecado a confessar: mandei ampliar sua fotografia. Ficou maravilhosa. E alguns de

    nossos amigos adquiriram cpias. O senhor j fez assim sem ingresso, queira ou no queira, em muitos

    gabinetes tranqilos!..." (65J, p. 147)

    Uma vez que esse amor/paixo constelou-se, temos que a relao dos dois foi sendo

    recheada daquilo que as relaes apaixonadas o so: mal entendidos, um desespero mtuo em

    fazer a relao "dar certo", ou seja, que ela no se desequilibre e sofra quebras muito

    profundas. Como sabemos, esse um esforo vo, pois no h ainda humano que pise ou

    tenha pisado na terra que tenha sido bem sucedido em manter um relacionamento apaixonado.

    Mas, todos tentamos no nos decepcionar. Dessa maneira, vou mostrar a seguir trechos das

    cartas onde esses "mal entendidos" vo acontecendo e quantas chances eles tiveram de

    transformar o relacionamento numa relao mais verdadeira e no conseguiram, o que a meu

    ver culminou no rompimento desastroso entre eles. Freud escreve em 14 de abril de 1908:

    ...Tenho na mesa trs de seus estudos. O primeiro, o que fez em colaborao com Bleuler,

    desagrada-me pelas hesitaes que contm, a importncia que d opinio de E. Meyer; o

    segundo voc me proibiu de falar, a palestra de Amsterdam, de h muito esperada; o terceiro, que

    vem a ser o terceiro nmero de meus Ar tigos de Psicologia Aplicada, de fato um prodgio, com a

    resoluo, a clareza que o caracterizam e uma linguagem que, como convm a esse pensar to lmpido,

    deliciosamente bela e provocante. Com a audcia o senhor aqui proclama a etiologia psquica dasdesordens psquicas, da qual, nos outros trabalhos, se retri!..." (82F, p. 167-68)

    Jung, que parece um pouco susceptvel a crticas, recebe essa carta de Freud com

    relutncia. Ele mesmo admite que pode ter feito inferncias a respeito do que Freud escreveu.

    Ele diz: "...Sua ltima carta me deixou intranqilo. Li muito nas entrelinhas. Estou certo de

    que chegaramos a um entendimento bsico, se pelo menos eu pudesse conversar com o

    senhor. A escrita um pobre substituto da fala..." (83J, p. 168) E em seguida ele d

    explicaes a respeito de seus trs artigos, at que na palestra de Amsterdam Jung mostra

    novamente seu esprito inovador e corajoso, contrapondo-se em relao ao pensamento de

    Freud. Jung escreve:

    "...A histeria infantil deve escapar formula que se aplica aos adultos, para os quais a

    puberdade tem um papel de realce. foroso que, para a histeria infantil se estabelea uma

    formula especificamente modificada. Tudo o mais que escrevi me foi ditado pela conscincia. No sou

    de fato um propagandista; apenas detesto todas as formas de supresso e injustia. Estou ansioso para

    saber de meus erros, espero aprender com eles..." (83J, p. 168)

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    Quando digo que eles queriam se manter como amigos e correspondentes, a quase

    qualquer custo, o fao baseado em algumas cartas por eles trocadas, dentre estas podemos

    incluir a resposta de Freud a essa carta de Jung. Seja pelo apaixonamento declarado dos dois,

    seja porque eles se necessitavam mutuamente. O fato que eles faziam um enorme esforo,

    ao menos at certo ponto da relao, em manterem-se alinhados. Freud escreve em 19 de abril

    de 1908:

    "...O sentimento, quando spero, no deve ser alimentado. Se fui impertinente, e o demonstrei,

    muito provvel que a etiologia - no caso - seja somtica e no psicognica... devo ressaltar que no

    estou em absoluto zangado com o senhor... o contraste entre ele (Content os the Psychoses - de Jung) e

    um manuscrito de seu rival berlinense (A.) (Abraham) que h de constituir meu quarto nmero, firme

    no apoio, verdade, mas com a grande falha de no ter exatamente aquela centelha a mais... Apenassua opinio sobre a histeria infantil me pareceu incorreta... Meu hbito afinal nunca foi reprovar suas

    discordncias parciais, mas sim extrair contentamento do que de aprovao me concede... At agora,

    como sabe, ningum viu essa outra histeria, essa outra Dem. Pr., etc. Se um caso no fiel ao tipo,

    nada se sabe sobre ele. Estou certo de que fundamentalmente o senhor concorda comigo. Pronto.

    Agora j confessei a amplitude do meu fanatismo e ouso ter a esperana de que a injria a seus

    sentimentos no sobreviva ao intervalo que nos separa de nosso encontro em Salzburg (primeiro

    congresso de psicanlise)..." (84F, p. 170)

    Freud claramente recuou, em parte, vendo o quanto Jung se melindrou com seus

    comentrios. Vrios exemplos como esse podem ser recolhidos da correspondncia, e ilustram

    maravilhosamente o padro da relao que foi se estabelecendo entre os dois. Embora Freud

    tenha recuado em suas crticas, quando pede perdo por sua impertinncia, ele acaba

    declarando para Jung o quanto sua teoria preciosa para ele. No a toa que Jung fica com a

    impresso de que Freud lidava com sua teoria como se fosse um dogma, afinal o prprio

    Freud quase chega a declarar isso textualmente quando diz da amplitude de seu fanatismo..

    Parece-me que a rusgas iam aparecendo entre os dois com o passar do tempo e com os

    caminhos dos estudos dos dois. Mas esses desentendimentos acabavam se dissipando

    completamente quando eles se encontravam pessoalmente. Ao menos nos dois primeiros

    encontros, que tinham para ambos uma aura numinosa. Dessa maneira, a paixo se reforava

    com o encontro. Neste sentido parece mesmo um relacionamento amoroso conjugal

    distncia. Neste tipo de relacionamento o calor da paixo se mantm por muito mais tempo do

    que naqueles onde a rotina do dia a dia tende a apagar qualquer fogo que exista entre o casal.

    Vejam, digo "tende", pois no impossvel manter o fogo aceso, ao menos o sexual, mas para

    se manter um casamento aquecido h de se trabalhar muito contra a mar da vida.

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    Assim os dois mantiveram sua paixo por quase seis anos. Entretanto, as rachaduras

    comearam a ser percebidas muito tempo antes disso. Mas, para ilustrar o que os encontros

    deles causavam em ambos, vou citar trechos de suas cartas trocadas aps esses encontros.

    Como vnhamos falando, eles haviam se desentendido sobre questes tericas, Jung havia se

    magoado com a crtica de Freud. Vejam essa carta de Jung de 30 de abril, um dia aps o

    trmino do congresso de psicanlise. Ele diz, numa provvel aluso primeira frase da carta

    de Freud de 19 de abril supracitada:

    "... No que tange aos sentimentos, eis que ainda estou sob o resplandecente impacto de sua palestra, a

    meus olhos a prpria perfeio. Tudo o mais foi s para encher o tempo, no passou de uma

    palavreado estril nas trevas da inanidade..." (86J, p. 173)

    Mas, nessa mesma carta, referindo-se provavelmente comparao que Freud faz na mesma

    carta de 19 de abril entre o trabalho de Abraham e o de Jung, ele continua: "...No sou apenas

    um seguidor fiel, tenho sempre um pouquinho a mais a fazer... " (86J, p. 173). Mas, como

    percebemos na carta de Freud, esse pouquinho a mais dificilmente era aceito ou acatado, ou

    at mesmo considerado pelo pai da psicanlise. Especialmente quando esse pouquinho a mais

    no corroborava a ideias de Freud. Mas, nem um, nem o outro, mudaram suas forma de agir

    frente psicologia e a psique humana. O apaixonamento prolongou a relao entre eles,encobrindo essas diferenas de maneira magistral. Apesar de todas as provas contrrias,

    vejam o quanto Freud no conseguia aceitar que Jung um dia cresceria e se tornaria, sob sua

    perspectiva, uma verdadeira ameaa a ele. Freud escreve em 03 de maio de 1908:

    "...tenho plena certeza que, tendo se afastado de mim alguns passos, o senhor h de encontrar o

    caminho de volta e ento seguir comigo mais longe. No posso dar razo para essa certeza;

    provavelmente ela brota de um sentimento que tenho quando olho para o senhor...".(87F, p. 174)

    Apesar de parecer arrogante, tenho vontade de dizer a Freud: "Caro Freud, esse sentimento

    que lhe brota ao olhar para Jung chamado desejo, um desejo ardente de que o filho prdigo

    siga os seus passos". Outro exemplo desse reforo do encontro entre os dois pode ser

    claramente visto na carta de Freud de 15 de outubro de 1908, aps terem se encontrado em

    Zurique de 18 a 21 de setembro do mesmo ano: "...meu querido amigo e herdeiro, Os dias to

    auspiciosos que juntos passamos em Zurique deixaram-me num excepcional bom humor..."

    (110F, p. 199) e na carta resposta de Jung: "...Sua visita me fez um bem to grande que j

    estou firmemente resolvido, caso as circunstncias o permitam, a visit-lo rapidamente em

    Viena na primavera que vem..." (111J, p. 200). Parece que eles queriam tanto manter a

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    relao deles que faziam grande esforo para fingir que as diferenas no estavam

    aparecendo, ou at mesmo que elas no existiam.

    Afinal, a paixo e suas conseqentes projees estavam devidamente instaladas, issofica claro, muito claro nos trechos supracitados das cartas de Jung. E nos trechos de Freud

    isso tambm fica evidente. O que naturalmente os dois no conseguiram perceber era o quanto

    essa paixo e esse relacionamento poderiam tornar-se complicados. Mesmo com todo o

    empenho dos dois em manter uma certa estabilidade entre eles. O relacionamento dos dois

    encontra certo equilbrio, com Jung seguindo como um ativista da causa Freudiana e, desta

    forma, sendo visto como o filho preferido e o prncipe herdeiro. Mas, alm de paixo e

    projees, havia entre eles um verdadeiro relacionamento de admirao mtua. Isso no pode

    ser negado, pois assim estaramos negando o valor da genialidade desses dois grandes

    homens. Isso perceptvel especialmente quando eles falam um a respeito do trabalho

    intelectual do outro, ao menos quando eles concordavam com o que o outro havia escrito.

    Vemos, por exemplo, numa carta de 27 de janeiro de 1908, endereada a Jung por Freud:

    "...Caro amigo e colega Nem me venha com gracejos sobre seus sentiments! Seu texto

    fascinante, lamento no o ter ao meu lado para dar-lhe um aperto, no, mais de um aperto demo.

    Esprito do meu esprito, posso dizer com orgulho..." (66F, p. 147)

    Um aspecto da correspondncia que me chamou profundamente a ateno, foi o

    gradual aprofundamento do tratamento de Freud para Jung, Esse comea chamando-o de

    "caro colega", passa a cham-lo de "caro amigo e colega" depois vira "caro amigoe chega

    at mesmo a design-lo como "Meu querido amigo e herdeiro". Ao passo que Jung chamou

    Freud simplesmente por "caro professor Freud" imprimindo, dessa maneira, uma distncia

    mais fria. Apesar de toda sua paixo por Freud.

    Como no poderia ser diferente, chegamos ao momento onde os problemas comeam,

    pois aps trs anos de correspondncias, alguns encontros e congressos, a paixo vai cedendo

    e a verdade do outro se impem como uma dura e crua imagem que dificulta a projeo

    promovida pela paixo. Vou usar, a ttulo de ilustrao, a questo dos intervalos na escrita de

    Jung, o que parece sempre ter incomodado Freud. Esse incmodo comea a ser pontuado de

    maneira suave, como uma falta que ele sentia das cartas de Jung. Por outro lado, os intervalos

    de Jung na escrita das cartas vo se alongando com o tempo. O primeiro momento em que

    essa questo aparece em 24 de maio de 1907, com um intervalo de 11 dias, pois sua carta

    anterior havia sido escrita a 13 de maio. Como, para esse aumento no intervalo, Jung

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    desculpa-se responsabilizando seu excesso de trabalho por conta da ausncia de Bleuler,

    Freud escreve em 26 de maio daquele ano: ...Espero que seu chefe se restabelea logo e seu

    trabalho ento diminua. Quando os intervalos se prolongam, sinto muita falta de suas

    cartas...(27F, p. 90). Num segundo intervalo de mesmo tamanho, 11 dias, Freud escreve um

    ano depois em 29 de maio de 1908: ...Apesar de muito impaciente durante a longa espera de

    sua carta (ao sintomtica: rasguei um pedao dela ao abri-la), dei-me a explicao certa

    para seu silncio (o envolvimento de Jung no trabalho com Gross)...(96F, p. 183). Veja que

    nesta passagem Freud nem fala abertamente da raiva e da insegurana que os intervalos lhe

    causam. Ele apenas diz a respeito de sua ao sintomtica, como que dizendo que est com

    raiva sim. Mas a situao vai piorando com o tempo, pois Jung quase que cronicamente deixa

    Freud a espera de suas cartas.

    Essa situao chega a um primeiro pico a 11 de novembro de 1909 onde numa carta a

    Jung, Freud revela todo o seu descontentamento com aquilo que acredita ser uma preguia, ou

    uma falta de interesse de Jung em manter uma correspondncia mais freqente. Freud

    escreve:

    "...Por certo no muito gentil de sua parte manter-me 25 dias espera de resposta (de 14 e out. a 8

    de nov.; fiz as contas por presumir um intervalo a moda de Fliess de 23 dias, mas de novo no confere)- como se a presteza e extenso de minha ltima carta o tivessem assustado um pouco. No me cabe

    importun-lo, se o senhor no experimenta a necessidade de se corresponder a intervalos mais curtos.

    , porm, inevitvel que eu me submeta ao meu prprio ritmo e, no mximo, posso assumir um

    compromisso, o de s botar no correio domingo essa carta que escrevo hoje..." (160F, p. 280)

    Justia seja feita Freud, pois ele j havia alertado Jung a respeito de seu "complexo

    Fliess". Em 9 de maro do mesmo ano ele escreve a Jung:

    "...Muito obrigado por seu telegrama e pela carta, que (o telegrama surtiu efeito) puseram fim minha ansiedade. Evidentemente ainda tenho uma hiperestesia traumtica no que se refere ao

    declnio de correspondncia. Lembro-me bem de onde ela surge (Fliess) e no gostaria de repetir a

    experincia sem esperar por isto..." (134F, p. 235)

    O que talvez nenhum dos dois estivesse consciente de que o que havia produzido

    tanto tempo de intervalo na correspondncia de Jung era exatamente aquilo que levaria ao

    desentendimento entre os dois. Os estudos de Jung sobre mitologia e arqueologia. Jung

    escreve em 8 de novembro de 1909 para Freud:

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    "...Um dos motivos que me levaram a deixar de escrever por tanto tempo foi que passei minhas noites

    imerso na histria dos smbolos, i. e., na mitologia e na arqueologia. Andei lendo Herdoto, onde achei

    coisas maravilhosas (p. ex., livro II, culto de Papremis)3. Agora estou lendo os 4 volumes do velho

    Creuzer, nos quais h uma mina de material. Todo o meu interesse pela arqueologia (latente h anos)voltou de novo a se manifestar. Aqui se encontram fontes valiosas para a fundamentao filogentica

    da teoria da neurose..." (159J, p. 279)

    A partir daqui vai nascendo paulatinamente a distncia que um dia separar os dois

    gnios da psicologia. Jung vai se aprofundando em seus estudos de mitologia e, cada vez

    mais, se desviando da teoria unilateralmente sexual de Freud. Jung, a despeito de qualquer

    paixo pela figura de Freud ou qualquer projeo que tenha feito em relao ao mesmo, vai

    descobrindo sua prpria verdade. Verdade essa que ao invs de se somar numa colaboraomtua, detona uma relao amorosa e de amizade entre os dois homens em questo.

    interessante perceber como, ao menos at aqui, as duas vises sobre a psique humana no so

    excludentes, mas assim se tornaram na histria da Psicologia Analtica e na Psicanlise.

    Assim, neste fogo ardente e espetacular, ambos mantiveram-se inconscientes de suas

    verdadeiras naturezas e diferenas. Eles no podiam se enxergar como diferentes, pois isso

    desembocaria na queda das projees e no desapaixonamento mtuo. Poderia, tambm,

    promover o desenrolar dessa histria de outra forma. Entretanto, essas diferenas, sem luz,

    nem conscincia, foram aprofundando secretamente as rachaduras da relao que culminaram

    numa separao inevitvel e dramtica, que arrasta suas conseqncias at nossos dias.

    3Que seria usado em seu livro Transformaes e Smbolos da libido que um marco do rompimento entre

    eles.

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    2. Jung, Freud e o Pai

    "Acreditar que basta ter filhos para ser um pai

    to absurdo quanto acreditar que basta ter

    instrumentos para ser msico." (Mansour

    Chalita)

    Outro aspecto marcante no relacionamento entre Freud e Jung foi o sempre presente

    complexo paterno. Este foi o aspecto que me pareceu ser um dos pontos mais cegos deste

    relacionamento. No tanto pela falta de conscincia, pois os dois pareciam saber dessa

    projeo, mas pela incompetncia em lidar com as conseqncias dessa projeo. Fica a

    impresso de como se ambos quisessem manter essa projeo, e assim esta se manteve por

    muito tempo, cobrando seu preo ao final.

    Filhos crescem e pais envelhecem, filhos superam os pais e os pais ou aceitam essa

    verdade ou tentam anular e destruir o filho. Em poucas palavras, isso resumiria

    simploriamente essa relao que, temos de admitir, por demais complicada para podermos

    resumi-la em poucas palavras. Essa relao certamente no exclusiva de pais e filhos

    biolgicos, ela pode estabelecer-se entre dois homens de diferentes idades onde um se

    coloque numa posio inicialmente inferior e o outro na posio oposta. Digo inicialmente

    inferior, pois se a relao for suficientemente duradoura, essa posio certamente ser

    invertida. Claro que no podemos deixar de assinalar que mesmo envelhecendo e se tornando

    mais frgil do que o jovem filho, o pai ainda tem a seu favor a sabedoria, mas para chegar a

    essa sabedoria ele certamente teve de abrir mo do poder, da juventude. Teve de abrir mo do

    ganhar sempre mais e mais, para poder se abrir para a outra parte da vida, aquela em que

    descemos para voltarmos de onde viemos, mesmo que com uma conscincia aumentada.

    Nossa cultura ocidental, que cada vez mais valoriza o jovem e belo, em nada facilita esse

    caminho para a maturidade. Mas independente da cultura, da poca ou dos pais e filhos em

    questo, o perigo do devoramento, o medo de ser superado e a necessidade de superar fazem

    parte dessa relao em sua fundao. Todos esses aspectos esto em questo quando se trata

    de uma relao que enveredou para os moldes parentais.

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    desse ponto de vista que, agora, olharemos para o relacionamento entre Jung e

    Freud, pois ao ler as cartas trocadas por eles, impossvel no enxergar que a relao tomou

    esse rumo. At eles prprios admitiam isso um para o outro. Porm, assim como o

    apaixonamento que se construiu entre eles, a dade pai e filho tambm foi instalando-se

    vagarosamente.

    Ela aparece inicialmente como uma necessidade de aprovao em ambos os lados.

    Jung queria ser aceito como "pupilo" e Freud queria que Jung acreditasse cegamente em suas

    teorias psquicas. Freud deixa isso claro logo no comeo da srie de cartas. Ele escreve a 7 e

    outubro de 1906:

    "...Seus escritos j me haviam sugerido que sua aceitao de minha psicologia no se estende a todosos meus pontos de vista sobre a histeria e o problema da sexualidade, mas me atrevo esperar que, com

    o passar dos anos, o senhor chegue muito mais perto de mim do que julga possvel atualmente... " (3F,

    p. 45.)

    Por parte de Jung isso aparece claramente na carta posterior ao aparecimento do

    prefcio de "A Psicologia da Demncia Precoce" escrito por Jung em julho de 1906, portanto,

    antes deles comearem uma correspondncia mais assdua, pois apesar de j existir uma carta

    de Freud para Jung anterior a julho, eles s comearam efetivamente a trocar

    correspondncias a partir 5 de outubro de 1906. Neste prefcio diz Jung:

    "...Fazer .justia a FREUD no significa, como muitos temem, sujeitar-se incondicionalmente a um

    dogma; bastante possvel manter um julgamento independente. Se admito, por exemplo, os

    mecanismos complexos dos sonhos e da histeria, no significa, de forma alguma, que atribuo ao

    trauma sexual da juventude uma significao exclusiva, como FREUD parece fazer; muito menos que

    eu coloque a sexualidade em primeiro plano, acima de tudo, ou lhe confira universalidade psicolgica

    que, como parece, postulada por FREUD, pela impresso do papel poderoso que a sexualidade

    desempenha na psique."(JUNG, 1906 A, p. XIV)

    Na carta a Freud de 29 de dezembro de 1906 ele escreve se desculpando pelo seu prefcio e

    pelo contedo de seu livro:

    "...Com toda sinceridade lamento que seja eu, justamente eu, quem lhe causa um aborrecimento.

    Compreendo muito bem que o senhor s possa estar insatisfeito com meu livro j que ele por demais

    implacvel ao tratar de suas pesquisas. Tenho perfeita conscincia disso... No momento atual,

    infelizmente, a se incluem certa reserva e a insinuao de um julgamento independente em relao ssuas pesquisas... As reformulaes especficas de seus enfoques procedem do fato de no haver entre

    ns uma concordncia absoluta quanto a certos pontos. E talvez isso se deva a que: I. o material de que

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    disponho totalmente diferente do seu. Trabalho em condies extremamente difceis, quase sempre

    com pacientes insanos sem instruo, e ainda por cima com as evidncias invulgarmente ardilosas da

    Demncia Precoce. II. minha educao, meu ambiente e minhas premissas cientficas so radicalmente

    diferentes dos seus. III. minha experincia comparada sua mnima. IV. quer em quantidade, quer em

    qualidade de talento psicanaltico, a balana pende distintamente em seu favor. V. h de pesar muito na

    balana a ausncia de contato pessoal com o senhor, uma falha lamentvel em minha formao

    preparatria... Mas no se deixe levar pela impr esso de que estou l oucamente disposto a

    diferenciar-me do senhor pela maior divergncia de opinio possvel. F alo das coisas como as

    compreendo e como as julgo certas. Qualquer diferenciao, de resto, chegaria tarde, posto que

    as sumidades da psiquiatria j me deram por perdido..." (9J. p. 52)

    Neste trecho possvel perceber que alm de um pedido de desculpas, tambm est

    colocada uma esperana de Jung, a de que ele consiga encontrar em Freud algum que lhepermita exercer a sua to amada liberdade intelectual. Isso fica claro especialmente na parte

    por mim destacada. Liberdade essa que lhe foi imposta, segundo ele prprio, por Deus. Essa

    liberdade que ele tanto desejou encontrar em seu pai verdadeiro e no conseguiu. Fico com

    impresso de que uma das coisas que Jung mais procurou nessa sua primeira metade da vida

    foi um pai que se adequasse s suas necessidades intelectuais. Algum que fosse to corajoso,

    destemido e capaz de seguir os desgnios psquicos como ele. O prprio Freud d a entender

    que tem essa qualidade quando escreve em sua primeira carta dirigida a Jung que: "...Confio emque o senhor venha a estar, mu itas vezes, em condies de me apoiar , mas aceitar ei tambm, de bom grado,

    quai squer retif icaes de sua par te...". (1F, p. 41). Fato que essa sua colocao acaba caindo

    como uma luva nessa necessidade de Jung.

    Uma das fontes que temos a disposio em relao a como foi a relao de Jung com

    seu pai o polmico "Memrias Sonhos e Reflexes". Acredita-se que a parte em que ele fala

    de sua primeira infncia seja a que menos sofreu modificaes e censuras por parte da

    organizadora da obra Aniella Jaff. Assim sendo, extrairei dessa obra algumas informaesimportantes a respeito de como Jung via seu pai pessoal. Ele diz:

    "...Fizera a experincia que meu pai no tinha tentado - cumprira a vontade de Deus, qual ele se

    opunha pelas melhores razes, e pela f profunda. Por isso nunca vivera o milagre da graa que cura e

    que torna tudo compreensvel. Tomara por regra de conduta os mandamentos da Bblia, acreditando

    em Deus como a Bblia exige e como seus pais o haviam ensinado..." (JUNG, 1961, p. 48)

    Percebemos que Jung no tinha seu pai exatamente em alta conta, muito pelo

    contrrio, via-o como um homem fraco e limitado. Um homem que no havia tido a coragem

    que ele teve de seguir seus desgnios, de "cumprir a vontade de Deus". Embora o que talvez

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    Jung no tenha percebido que seu pai era to obstinado quanto ele, o que aparentemente

    mudava era apenas o que eles perseguiam. Um perseguia a verdade por detrs das aparncias

    enquanto o outro seguia cegamente sua f. O prprio Jung confessa que sua lida era perseguir

    a vontade de Deus "... sem o que seria uma presa da loucura..." (JUNG, 1961, p. 48). Ainda

    numa outra passagem do livro referido acima encontramos o seguinte:

    "...Mais tarde, aos dezoito anos, mantive inmeras discusses com meu pai, sempre com a

    secreta esperana de faz-lo sentir algo da graa maravilhosamente eficaz e ajud-lo em seus

    conflitos de conscincia. Estava convencido de que, se ele cumprisse a vontade de Deus, tudo se

    resolveria da melhor maneira possvel. Infelizmente nossas discusses jamais chegavam a uma

    soluo satisfatria. Elas o irritavam e entristeciam. "Pois bem - costumava dizer - voc s quer

    pensar. Mas no isso que importa; o importante crer." E eu pensava: no, preciso experimentar esaber; a acrescentava: "d-me essa f." Ele se erguia e ao afastar-se encolhia os ombros, resignado."

    (JUNG, 1961, p. 50)

    Obviamente estamos lidando com o pai que Jung via e no seu pai concreto, pois tudo

    que podemos perceber de nossos pais no passam de lembranas pouco confiveis do ponto

    de vista concreto, mas que fornecem uma enorme quantidade de informaes a respeito de

    como a imagem paterna se desenvolveu em ns. Assim sendo, Jung estava falando de seu pai

    internalizado. Esse era um sujeito um pouco complicado, e que gostaria de ser mais corajoso.Ao menos podemos pensar que Jung desejava ardentemente ter um pai mais audacioso do que

    o que ele viu em seu pai. Com isso tudo quero dizer que ele possua um complexo paterno que

    se apresentava dessa forma, como uma vontade de ter um pai mais competente, mais

    masculino no sentido de ter fora para enfrentar os perigos da vida psquica e da vida

    concreta. Jung via em seu pai um menino que no conseguiu transgredir aquilo que seus pais

    o ensinaram como sendo o certo, um menino que ficava a merc do Pai todo poderoso.

    Levando isso em considerao podemos perceber claramente o quanto Freud se

    apresentava como uma figura interessante para Jung. Era um homem mais velho, mais culto,

    mais proeminente que seu pai. Ao mesmo tempo era algum que havia tido a coragem de

    seguir seu desgnio, pois frente suas descobertas foi capaz de enfrentar toda uma

    comunidade cientfica em nome da "verdade". Algum que fora capaz de seguir sua

    iluminao, de seguir a vontade de Deus. Mesmo que isso no seja toda a verdade psquica de

    Freud muito provvel que Jung tenha mesmo visto Freud sob este ngulo. O que sabemos

    que quando Jung entra em contato com as ideias de Freud algo nele se constela, pois ele

    possua ideiasparecidasainda em forma de embrio.

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    Mas voltando para o relacionamento dos dois, o que temos que uma relao parental

    foi se constelando entre eles. Primeiro de forma bastante sutil, como um pedido quase

    imperceptvel por parte de Freud, que na carta de 1 de janeiro de 1907 responde ao pedido de

    desculpas de Jung a respeito de seu prefcio e livro. Freud diz: "...Mas peo-lhe que nada

    sacrifique de essencial ao tato pedaggico, afabilidade, e que no se desvie muito de mim,

    quando na realidade est to perto, pois se o fizer poderemos um dia ser jogados um contra o

    outro..." (11F, p. 57) Para mim esse trecho tem quase um tom de ameaa. A resposta de Jung

    a esse pedido de Freud que me deixou intrigado, pois aqui ele mostra o quanto pode ser

    desobediente como filho. Mas, para que Freud percebesse isso seria necessrio que soubesse o

    final da histria. Jung escreve uma semana depois: "... Mas fique tranqilo a esse respeito:

    nunca abandonarei qualquer parte de sua teoria que me seja essencial, j que estou muitocomprometido com ela..." (12J, p. 58) A mim parece que ele j falava com seu pai, dizendo,

    "se aquilo que voc acha que certo eu tambm achar, ento lhe serei obediente sem

    problema, mas caso isso no acontea, ai a conversa ser outra."

    No comeo de maro de 1907, Jung conhece Freud pessoalmente. Eles passam 13

    horas conversando quase sem interrupo. Esse encontro parece ter sido bastante mobilizador

    para Jung. Pois, apenas depois de quase um ms de intervalo ele consegue escrever uma carta

    a Freud, contando um pouco do que est se passando em seu ntimo.

    "...Sem dvida alguma o senhor h de ter tirado suas concluses do prolongamento de meu tempo de

    reao. Tive uma forte resistncia em escrever, pois at recentemente me incomodava o tumulto dos

    complexos despertados em Viena. S agora as coisas se acalmaram um pouco e assim espero ser capaz

    de escrever-lhe uma carta mais ou menos sensata..." (17J, p. 63)

    Para mim fica claro que especialmente dois complexos estavam se constelando; o

    complexo do pai, como dito acima, e um complexo ertico. E isso ser confessado peloprprio Jung mais adiante, como vimos no captulo anterior. Do lado de Freud ao se ler sua

    resposta Jung fica claro que a constelao de uma relao parental estava ocorrendo para

    ambos, e no apenas em Jung, pois Freud comea a entrar nesse papel exatamente como

    manda o figurino. Uma semana depois da carta de Jung Freud escreve:

    "... para me sentir mais vontade ao lhe falar que uso um papel diferente. Sua visita foi

    sobremodo prazerosa e gratificante; gostaria de repetir por escrito vrias coisas que lhe confiei

    verbalmente, em particular que o senhor me encheu de confiana em relao ao futuro, que agora medou conta de ser to substituvel quanto qualquer outro e que no poderia desejar ningum melhor do

    que o senhor, tal como o conheci, para continuar e completar a minha obra. Estou certo de que no

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    abandonar essa obra, pois j se aprofundou muito nela e com seus prprios olhos pde ver como

    belo, amplo e excitante o nosso tema..." (18F, p. 65)

    Talvez seja esse o maior desejo de um pai, que seu filho siga seus passos. Esse um

    desejo arquetpico que foge ao controle egico e s com muito esforo e trabalho que

    podemos respeitar a individualidade de nossos filhos. Esse desejo especialmente perigoso,

    pois estando sob o domnio de uma representao arquetpica e se exercendo pela autoridade

    paterna, pode realmente designar o futuro dos filhos. Futuro que no pertence ao filho, mas ao

    desejo e o sonho do pai, futuro que trar nada alm de dissabor para esse filho, caso esse seja

    minimamente diferenciado do pai que o tiraniza. A esse respeito Jung diz:

    "...Se este poder estivesse realmente em nossas mos, ou sujeito nossa vontade, ficaramos toesmagados pela responsabilidade que ningum, em s conscincia, ainda ousaria ter filhos. Mas o

    poder do arqutipo [paterno] no controlado por ns; ns que estamos disposio dele num

    grau que nem suspeitamos..." (JUNG, 1909, par. 729)

    Entretanto, quanto maior o grau de conscincia do pai, maior sua responsabilidade,

    quanto menor sua conscincia, maior o risco de escravizar seu filho naqueles passos que ele

    julga melhor. A esse respeito Jung escreve:

    "...Os pais que criticam qualquer manifestao de independncia emocional de seus filhos, que mimam

    suas filhas com erotismo camuflado e tirania sentimental, que tutelam seus filhos forando-os a

    determinada profisso e a um casamento "conveniente"; as mes que, j no bero, excitam seus filhos

    com exagerado carinho, que os transformam depois em bonecos escravos e, ao final, estragam a vida

    amorosa deles por cimes: todos eles, em princpio... no sabem o que esto fazendo; no sabem que,

    sucumbindo compulso, eles a passam aos filhos tornando-os escravos dos pais e do inconsciente.

    Esse filhos continuaro vivendo por longo tempo na esteira dos pais, mesmo que estes j tenham

    falecido..." (JUNG, 1909, par. 730)

    Vale dizer que esses textos, apesar de revisados em 1948, foram concebidos durante a

    relao com Freud, onde ele claramente estava elaborando o complexo paterno. Enfim, o pai

    Freud fez de tudo para manter seu filho Jung, nos trilhos estreitos daquilo que ele considerava

    certo e vlido.

    Um pouco mais adiante no tempo, Freud escreve a Jung um comovente relato da

    importncia de Jung em sua vida. nesse ponto que eu creio ter se instalado completamente a

    relao pai/filho na relao dos dois. Freud escreve:

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    "... eu gostaria de estar com o senhor agora, satisfeito por no mais me ver sozinho e falando-lhe, se

    precisasse de encorajamento, dos longos anos de minha solido honrada mas penosa que comeou

    depois que olhei de relance o mundo novo, falando-lhe da indiferena e incompreenso dos meus

    amigos mais ntimos, dos momentos terrveis em que eu chegava a pensar que estava no caminhoerrado e imaginava como ainda tornar til minha famlia minha vida desorientada, do lento

    crescimento de minha convico, que se agarrou interpretao de sonhos como a um rochedo num

    mar tempestuoso, e da serena certeza que se apossou de mim e me mandou esperar at que uma voz na

    multido desconhecida respondesse minha. Essa voz foi sua; pois sei agora que tambm Bleuler veio

    a mim por seu intermdio. Obrigado por isso, e no deixe que o que quer que seja abale sua confiana,

    o senhor h de testemunhar o nosso triunfo e tomar parte nele..." (42F, p. 118)

    Tenho a ntida impresso de que Freud escreveu isso sob a influncia do sentimento

    despertado pelo arqutipo do pai. Ele escreve ao filho que est longe, enfrentando grandes

    batalhas, importantes batalhas, contando-lhe o grande heri que ele tambm j foi um dia.

    Agradecendo a existncia do filho que d sentido vida do pai. Pois antes da voz que o ecoa

    na multido desconhecida ele apenas se agarrava a um rochedo em meio a um mar

    tempestuoso. Agradece a esse filho que ser parte dele, que dever seguir seus passos e levar

    a obra do pai para a imortalidade. No vou entrar nos mritos pessoais de Freud, pois esse no

    assunto de meu interesse, mas quero com esse trecho mostrar com que fora estava se

    deflagrando a relao parental entre eles. A partir daqui Jung realmente entra nesse jogo epassa a ser o filho prdigo, que defende a ideias de seu pai Heri como um grande guerreiro,

    frente ao mal que os ataca. Jung responde essa linda carta da seguinte forma: "...desejo

    externar o agradecimento mais sincero por sua carta, que veio na hora exata; fez-me um

    grande bem sentir que eu no lutava apenas por uma descoberta importante, mas tambm

    por um homem eminente e honrado..." (44J, p. 119)

    muito interessante perceber aqui o quanto Jung j admira Freud por sua coragem, e o

    quanto Jung a valoriza. Coragem que Jung tanto desejou encontrar em seu pai pessoal e no

    conseguiu. Coragem essa que, na verdade, quem possua mesmo era o prprio Jung. No que

    Freud no a tivesse, mas como homem mais velho e cansado, precisou ancorar-se em mares

    mais calmos, pois j no tinha mais a energia necessria para continuar. Procurava, dessa

    forma, um substituto, um filho herdeiro. Jung por sua vez encaixava-se perfeitamente nesse

    papel, mesmo porque queria desesperadamente um pai que pudesse respeitar, uma pessoa que

    fosse maior do que ele e a quem pudesse prestar homenagem. Uma figura paterna respeitvel

    do ponto de vista de Jung tinha de ter necessariamente a sua coragem interna para entrar no

    mar revolto, soltar-se do rochedo da interpretao dos sonhos e lanar-se a novas descobertas

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    psquicas. Jung no sabia que no ntimo Freud procurava apenas um fiel seguidor de suas

    brilhantes ideias, ele acreditava que Freud seria capaz de segui-lo em sua impetuosidade

    frente ao inconsciente.

    Como comentado anteriormente, uma das questes que afligia Freud e da qual

    freqentemente queixava-se com Jung, dizia respeito aos longos intervalos de

    correspondncia a que ele ficava exposto. Isso tem uma explicao razovel. Freud alude

    sua relao com Fliess, que apagou-se com a diminuio da correspondncia entre eles. Por

    outro lado, a vontade de ouvir notcias e a necessidade de estar perto deixam Freud aflito

    quanto a saber se Jung sente o mesmo que ele. Desse ponto de vista esse amor/paixo que se

    constela entre os dois tm traos claramente parentais, pois Freud quer no apenas controlar,

    mas sente prazer em estar perto do "filho" Jung. Este, por sua vez quer a liberdade tanto

    criativa como de no precisar ficar dando satisfaes o tempo inteiro a seu "pai" Freud.

    Nesse trecho a seguir encontramos uma impressionante declarao tanto de amor,

    quanto de admirao de um filho por seu pai. Jung diz, como se fosse uma criana muito

    pequena, toda a sua venerao pela figura de Freud:

    "... Na verdade - e preciso um grande esforo para confessar isso - tenho pelo senhor uma

    admi rao i l imitada, quer como homem, quer como estudi oso, e no lhe voto o menor rancor

    consciente. Decerto no aqui que reside a origem do meu complexo de autopreservao ;mas d-se

    quea maneira como o venero tem algo do carter de um embevecimento " reli gioso"..." (49J, p.

    128)

    Mas na carta seguinte Jung conta um sonho que teve com Freud que vale a pena ser

    comentado, pois por um lado me parece ser compensatrio e por outro creio ser um aviso de

    que aquilo que estava esperando e projetando em Freud no seria realizado, ou no era a

    verdade psquica de Freud. O sonho o seguinte: "...Sonhei t-lo visto como um velho fraco,

    muito fraco, que ia andando a meu lado..." (50J, p. 129-130) Penso que esse sonho pode ser

    compensatrio no sentido de que tamanha admirao que Jung tem por Freud precisaria ser

    um pouco controlada, ou colocada num sentido mais restrito e real, afinal o prprio Jung

    que nos ensina sobre o sentido compensatrio do inconsciente. Jung estava to fascinado por

    Freud que precisava v-lo como um velho e fraco homem que ao seu lado caminhava, pois na

    verdade ele o via como o mais poderoso e inteligente dos homens que habitavam a terra. O

    prprio Jung parece perceber esse sentido do sonho, pois em sua carta ele diz: "... O sonho

    tranqiliza minha mente acerca de sua +++ periculosidade!..." (50J, p. 130)

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    Freud no incio de 1908 j considera Jung declaradamente como uma espcie de filho

    intelectual. Comentando um texto deste, escreve: "...Seu texto fascinante, lamento apenas

    no o ter a meu lado para dar-lhe um aperto, no, mais de um aperto de mo. Esprito do

    meu esprito, posso dizer com orgulho..." (66F, p. 147). por volta desse tempo que Freud

    passa a chamar Jung de "caro amigo" na saudao de suas cartas. A esse detalhe Jung

    responde de forma surpreendente, pois prope que eles encarem sua relao de uma maneira

    diferente. Jung escreve a 20 de fevereiro de 1908:

    "...Agradeo-lhe do fundo do corao essa prova de confiana. A imerecida honra de sua

    amizade um dos pontos altos de minha vida que no consigo expressar com palavras. A

    referncia a Fliess - decerto no acidental - e seu relacionamento com ele impelem-se a solicitar

    que me permita desfrutar de sua amizade noutros termos, no como se fosse amizade entre iguais,mas

    sim entre pai e fi lho. Essa distncia me parece adequada e natural. E j por si a meu ver ela

    confere um cunho que haveri a de preveni r mal-entendidos e capacitar duas pessoas teimosas a

    existir lado a lado num relacionamento fcil e livre de tenses..." (72J, p. 154)

    Mal sabe Jung o quanto se engana ao acreditar que a relao entre pai e filho mais

    fcil e livre de tenses do que um relacionamento entre amigos, entre iguais. Talvez o que

    Jung quisesse propor nesse caso seria colocar-se abaixo de Freud para que este no se sentisse

    ameaado por ele, deixando bem claro a diferena entre eles e a falta de poder de Jung. Talvezporque ele j pressentisse a verdadeira natureza de Freud, um pai que, tomado por questes de

    poder e de uma necessidade de ser sempre admirado, tenta manter seus filhos infantilizados

    devorando-os, prendendo-os em seu ventre intelectual.

    De qualquer maneira, Jung continua sendo um fiel seguidor, perdendo aparentemente

    qualquer capacidade de reflexo prpria. Digo aparentemente, pois se assim o fosse de fato,

    eles no teriam rompido. Entretanto, nesse momento do relacionamento era assim que a coisa

    se apresentava, tnhamos um Jung completamente fascinado por Freud e sua teoria. A ponto

    do primeiro escrever o seguinte a 24 de maio de 1907:

    "...No raro tenho de me transportar ao tempo anterior reforma de meu pensamento psicolgico

    para reexperimentar a acusaes feitas, ento, contra o senhor. Simplesmente no as posso

    compreender mais. Meu pensamento de outrora parece-me no s intelectualmente incompleto e

    errneo, como tambm, o que pior, moralmente inferior, j que agora deixa a impresso de ser uma

    imensa desonestidade em relao a mim mesmo..." (26J, p. 84)

    Esse trecho pouco anterior carta na qual ele propem a amizade tipo "pai e filho", mas

    ilustra bem o quanto Jung foi-se afastando de suas verdades vagarosamente e foi adotando

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    aquilo que "papai" achava certo. Claro que isso tem um tempo de vida muito efmero, pois

    todo filho um dia adolesce e acaba jogando na cara do pai seus piores defeitos. Entretanto,

    isso s vir tona e ficar disposio da conscincia no momento da separao entre eles.

    Pois at l a relao dos dois andou "de vento em popa". Mas obviamente no sem alguns

    percalos causados pelo grau de atuao dos complexos envolvidos. Em 14 de abril de 1908

    Freud escreve a Jung:

    "...Tenho mesa trs de seus estudos. O primeiro, o que fez em colaborao com Bleuler, desagrada-

    me pelas hesitaes que contm, a importncia que d opinio de E. Meyer; do segundo o senhor me

    proibiu de falar, a palestra de Amsterdam, de h muito esperada; o terceiro, que vem a ser o terceiro

    nmero de meus Ar tigos sobre Psicologia Apl icada, de fato um prodgio, com a resoluo, a clareza

    que o caracterizam e uma linguagem que, como convm a esse pensar to lmpido, deliciosamentebela e provocante... Espero encontrar um momento em Salzburg para uma conversa a ss com o senhor

    sobre parania. Trate de se apresentar em plena forma..." (82F, p. 167, 168)

    A essa carta Jung estranhamente responde da seguinte forma:

    "...Sua ltima carta me deixou intranqilo. Li muito nas entrelinhas. Estou certo de que chegaramos a

    um entendimento bsico, se pelo menos eu pudesse conversar com o senhor. A escrita um pobre

    substituto da fala. Tentarei oferecer, no entanto, umas explicaes algo incoerentes.

    1. Palestra para leigos. O objetivo era tornar o pblico cnscio das conexes psicolgicas... No havia

    razo para falar da etiologia verdadeira.

    2. Etiologia da Dem. Prec. Aqui a inteno foi definir nossa concepo da etiologia. Por falta de

    experincia analtica Bleuler ressalta o lado orgnico, eu o outro...

    3. Palestra de Amsterdam. Fiz aqui um mau trabalho, sou o primeiro a admitir. Mas mesmo assim

    aceitarei de bom grado qualquer crtica. um contra-censo que o tenha proibido de falar a respeito!

    Eu s tenho a aprender com suas crticas...

    Tudo o mais que escrevi me foi ditado pela conscincia. No sou de fato um propagandista; apenas

    detesto todas as formas de supresso e injustia. Estou ansioso para saber de meus erros, espero

    aprender com eles..." (83J, p. 168, 169)

    Essas duas cartas, 82F e 83J valem pena serem lidas em sua ntegra. Frente ao que foi

    escrito por Freud, a reao de Jung foi completamente despropositada. Fico com uma forte

    impresso de que a resposta de Jung foi ditada por um complexo. A meu ver, nada do que

    Freud escreve, tirando as passagens que escolhi para ilustrar a carta, poderiam ter provocadotamanha fria, quase incontrolvel, por parte de Jung. O que me parece ficar absolutamente

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    claro nessa passagem que se trata, sim, de uma atuao complexa por parte de Jung. Ele

    estava possudo quando escreveu sua resposta e estava possudo por um complexo muito

    especfico, o complexo do pai terrvel, que neste caso projetou-se por completo na figura de

    Freud. Parece-me clara aqui a volpia com que este complexo se movimenta no interior da

    psique de Jung. Parece-me muito pouco o que Freud escreveu para o tamanho da resposta de

    Jung.

    Jung tinha, claramente, um pai terrvel atuando em seu interior, isso se manifesta

    desde muito cedo em sua vida. Em suas memrias Jung conta que, quando tinha 12 anos de

    idade, um incidente na volta da escola fez com que ele comeasse a se aproveitar da situao

    para no freqent-la e para no mais assumir suas responsabilidades para com a sua vida.

    Passou, como ele mesmo diz, a gastar seu tempo "... flanando, lendo, colecionando e

    brincando.". (JUNG, 1961, p. 41) Mas uma certa m conscincia o perseguia, pois como ele

    tambm diz: "... nem por isso era mais feliz; pelo contrrio, tinha como que a obscura

    conscincia de fugir de mim mesmo... deplorava, no ntimo, as preocupaes de meus pais,

    que haviam consultado vrios mdicos...". (JUNG, 1961, p. 41) Vemos aqui que, mesmo

    obscura, ele j possua uma conscincia daquilo que era certo e errado e sabia que estava a

    fazer algo deplorvel. escutando uma conversa de seu pai com um amigo que ele, de

    repente, se d conta do que realmente est acontecendo. Ele descreve essa conversa da

    seguinte forma: "..."E seu filho como vai?" meu pai respondeu: "ah, uma histria penosa!

    Os mdicos ignoram o que ele tem. Falaram em epilepsia: seria terrvel se f