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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X JUSTIÇA DE GÊNERO: ESTUDO DE CASO SOBRE CONFLITOS FAMILIARES JUDICIALIZADOS EM PORTO ALEGRE/RS Fabiane Simioni 1 Resumo: A partir do pressuposto da presença e da invisibilidade, nas sociedades contemporâneas, de assimetrias de gênero, esse trabalho se pergunta sobre o modo como são percebidas, mitigadas ou consolidadas as desigualdades entre mulheres e homens, particularmente em conflitos familiares judicializados, em uma vara de família, em Porto Alegre/RS. As reflexões e os dados empíricos apresentados são originários da minha tese de doutorado em direito (UFRGS/2015). A metodologia de pesquisa combinou diferentes técnicas de coleta de dados empíricos com tratamento qualitativo, a fim de compreender os resultados desencadeados pelas interações proporcionadas pelo sistema de justiça, particularmente concretizadas pelas práticas e representações dos sujeitos envolvidos em conflitos familiares judicializados. Através da análise dos dados obtidos em trabalho de campo, destaco a inter-relação entre a parcialidade androcêntrica do direito e a cultura da violência contra as mulheres, como um vetor para compreender as diferentes percepções de profissionais e profanos, a partir do estudo de casos em uma vara de família, em Porto Alegre/RS. As mulheres, em um contexto de julgamento moral de suas escolhas e condutas sexuais, experimentam um sentimento de injustiça ou de privação de direitos. Essa percepção é ainda mais aguda quando as narrativas e denúncias de violência doméstica e familiar contra as mulheres são ignoradas pelos agentes jurídicos nos processos que tramitam nas varas de família. Palavras-chave: Justiça de gênero; Estudo de caso; Violência doméstica Introdução Esse trabalho propõe um conjunto de perguntas e de novas respostas provisórias para as conexões entre os estudos de gênero e o campo jurídico, a partir da influência de perspectivas feministas críticas da teoria do direito. Minha hipótese é de que a cultura da violência contra as mulheres, evidenciada nos dados dessa pesquisa, é atualizada permanentemente por representações sociais e práticas de justiça influenciadas por elementos materiais e simbólicos que nomeiam aquilo que as teóricas feministas chamam de parcialidade androcêntrica do direito. Na tentativa de encontrar pontes entre o que os “profissionais”’ dizem o que é o direito e o que os “profanos” buscam no direito (BOURDIEU, 2010), busquei identi ficar e contextualizar algumas das sensibilidades jurídicas presentes nas práticas de justiça no campo do direito de família, na medida em que essas sensibilidades referem-se aos sentidos atribuídos às vivências familiares tanto por agentes jurídicos quanto por usuárias e usuários, como uma maneira específica de representar a (in)justiça e o direito. 1 Doutora em Direito (UFRGS). Professora adjunta no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande Campus Santa Vitória do Palmar Brasil. Presidenta do Conselho Diretor da Themis Gênero, Justiça e Direitos Humanos (2015-2017). Contato: [email protected].

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

JUSTIÇA DE GÊNERO: ESTUDO DE CASO SOBRE CONFLITOS

FAMILIARES JUDICIALIZADOS EM PORTO ALEGRE/RS

Fabiane Simioni1

Resumo: A partir do pressuposto da presença e da invisibilidade, nas sociedades contemporâneas,

de assimetrias de gênero, esse trabalho se pergunta sobre o modo como são percebidas, mitigadas

ou consolidadas as desigualdades entre mulheres e homens, particularmente em conflitos familiares

judicializados, em uma vara de família, em Porto Alegre/RS. As reflexões e os dados empíricos

apresentados são originários da minha tese de doutorado em direito (UFRGS/2015). A metodologia

de pesquisa combinou diferentes técnicas de coleta de dados empíricos com tratamento qualitativo,

a fim de compreender os resultados desencadeados pelas interações proporcionadas pelo sistema de

justiça, particularmente concretizadas pelas práticas e representações dos sujeitos envolvidos em

conflitos familiares judicializados. Através da análise dos dados obtidos em trabalho de campo,

destaco a inter-relação entre a parcialidade androcêntrica do direito e a cultura da violência contra

as mulheres, como um vetor para compreender as diferentes percepções de profissionais e profanos,

a partir do estudo de casos em uma vara de família, em Porto Alegre/RS. As mulheres, em um

contexto de julgamento moral de suas escolhas e condutas sexuais, experimentam um sentimento de

injustiça ou de privação de direitos. Essa percepção é ainda mais aguda quando as narrativas e

denúncias de violência doméstica e familiar contra as mulheres são ignoradas pelos agentes

jurídicos nos processos que tramitam nas varas de família.

Palavras-chave: Justiça de gênero; Estudo de caso; Violência doméstica

Introdução

Esse trabalho propõe um conjunto de perguntas e de novas respostas provisórias para as

conexões entre os estudos de gênero e o campo jurídico, a partir da influência de perspectivas

feministas críticas da teoria do direito. Minha hipótese é de que a cultura da violência contra as

mulheres, evidenciada nos dados dessa pesquisa, é atualizada permanentemente por representações

sociais e práticas de justiça influenciadas por elementos materiais e simbólicos que nomeiam aquilo

que as teóricas feministas chamam de parcialidade androcêntrica do direito.

Na tentativa de encontrar pontes entre o que os “profissionais”’ dizem o que é o direito e o

que os “profanos” buscam no direito (BOURDIEU, 2010), busquei identificar e contextualizar

algumas das sensibilidades jurídicas presentes nas práticas de justiça no campo do direito de

família, na medida em que essas sensibilidades referem-se aos sentidos atribuídos às vivências

familiares tanto por agentes jurídicos quanto por usuárias e usuários, como uma maneira específica

de representar a (in)justiça e o direito.

1 Doutora em Direito (UFRGS). Professora adjunta no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio

Grande – Campus Santa Vitória do Palmar – Brasil. Presidenta do Conselho Diretor da Themis – Gênero, Justiça e

Direitos Humanos (2015-2017). Contato: [email protected].

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Em geral, quando são discutidas questões sobre o comportamento sexual ou sobre a

responsabilidade para com as filhas e filhos, as mulheres sempre afirmam, seja entre as pares, seja

diante dos agentes jurídicos, que não há geração espontânea, que elas não fizeram suas filhas e

filhos sozinhas. Entretanto, a cobrança recai duplamente sobre as mulheres, pois são cobradas pelo

seu ajustamento imperfeito a um ideal de feminilidade/maternidade hegemônica, como também pela

ausência ou pela inadequação do seu ex-parceiro, calcada em uma versão de masculinidade pouco

comprometida com a parentalidade.

As mulheres, nesse contexto de julgamento moral de suas escolhas e condutas sexuais,

experimentam um sentimento de injustiça ou de privação de direitos. Essa percepção é ainda mais

aguda quando as narrativas e denúncias de violência doméstica e familiar contra as mulheres são

ignoradas pelos agentes jurídicos nos processos que tramitam nas varas de família.

A multiplicidade dos conflitos em matéria de direito de família mostra que a separação entre

as competências materiais (civil e penal) só faz sentido para a organização do Poder Judiciário e não

para as usuárias e usuários. A competência híbrida dos Juizados Especializados de Violência

Doméstica contra a Mulher (JEVDM) para matérias de direito de família e de direito penal estava

fundada nas experiências de revitimização e de violência institucional a que as mulheres em

situação de violência doméstica eram submetidas quando em distintos processos (um de natureza

cível ou outro, penal), obtinham, não raras vezes, provimentos jurisdicionais contraditórios. A

promessa de uma Justiça de Gênero2, reivindicada pelos movimentos sociais de mulheres e

feminista, apontada em diversos instrumentos normativos internacionais de direitos humanos e

positivada pela Lei Maria da Penha influencia o modo pelo qual as demandas em varas de família

poderiam ser compreendidas pelos diferentes agentes jurídicos. Entretanto, se, de um lado, as

relações sociais de gênero alcançaram status acadêmico em diversas áreas do conhecimento, por

outro, essas análises pouco repercutem na doutrina e nas práticas de justiça em contexto brasileiro.

Para compreender essas dinâmicas presentes no campo do direito, esse artigo está dividido

em três partes. A primeira irá apresentar uma síntese dos aportes dos estudos de gênero, desde a

perspectiva feminista crítica, para os conflitos familiares judicializados. A segunda, irá analisar

duas situações ocorridas durante o trabalho de observação do campo: a primeira registra o

“sacrifício” das mulheres para superarem situações de violência doméstica, em nome do exercício

2 O Informe da ONU Mulheres (2011) apresenta algumas recomendações para a realização da Justiça de Gênero: a) a

necessidade de capacitação dos juízes e juízas para que passem a considerar a perspectiva de gênero em suas práticas e

elaboração de sentenças e b) a busca pelo aumento do acesso das mulheres aos tribunais e às comissões de verdade

durante e depois de um conflito.

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da parentalidade de seus ex-agressores. A segunda situação se refere ao personagem de “homem

trabalhador” frequentemente associado pelos agentes jurídicos aos sujeitos de classes sociais menos

privilegiadas em termos econômicos. Por fim, proponho uma interpretação para as desigualdades

entre mulheres e homens, a partir da marca androcêntrica do campo jurídico. Por fim,

1. As mulheres nas varas de família

A condição pós-moderna do direito possibilita o reconhecimento da diversidade de vivências

familiares da contemporaneidade, não havendo mais espaço para um modelo de família universal,

considerado único, hermético, estanque e intocável. Nesse sentido, é questionável a noção de

“evolução” da família patriarcal para a nuclear burguesa, na medida em que dá margem para a

produção de classificações, de estereótipos e desigualdades.

A figura da mulher-mãe-pobre é culpabilizada e considerada incompetente para o exercício

da parentalidade feminina (BRITO & AYRES, 2004)3. O evolucionismo, como escola

epistemológica, está menos superada do que se supõe, no campo jurídico. Está refletido no direito

de família quando determina um modelo a partir do qual cada situação-problema (em um conflito

judicializado) poderá ser analisada, ordenada e classificada, conforme sua marginalidade ou

proximidade do padrão legitimado de família.

Esse desencontro entre o que diz a literatura sobre o “novo” direito de família e as práticas

classificatórias, tão comuns, no campo jurídico, produz uma série de estereótipos em relação às

mulheres. O primeiro deles é o de que o direito de família é uma área essencialmente de mulheres.

Essa afirmação comporta uma multiplicidade de sentidos. É um campo jurídico em que

numericamente as mulheres são maioria: quanto à autoria das demandas; quanto à presença de

assessoras jurídicas, de defensoras públicas, de promotoras de justiça, elas são maioria. Entretanto,

essa maioria está submetida a um jogo desigual de status e de poder nas relações sociais e

profissionais.

Em termos quantitativos, a verificação da proporção entre demandantes (autores em um

processo judicial) e demandados (réus) em uma vara de família e sucessões, de um foro regional de

Porto Alegre/RS, revela que as mulheres (mães, madrastas, avós, tias, irmãs) são autoras em 63,3%

dos casos, o que evidencia que as práticas de justiça, em direito de família, lidam com um público

3 Heilborn (1997) explica que o termo “parentalidade” é um neologismo técnico para suprir a falta de uma palavra em

português correspondente a parenthood na língua inglesa. Assim, parentalidade diz respeito ao pai e à mãe

(HEILBORN, 1997, p. 69) e não ao estatuto de conjugalidade dos sujeitos. A parentalidade adjetivada, no sentido que

utilizo neste trabalho, como feminina ou masculina, pretende marcar as diferenças e as inter-relações construídas

socialmente sobre os modos pelos quais mulheres e homens exercem a maternidade e a paternidade.

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demandante majoritariamente feminino. Na pesquisa de Zarias (2008) também foi constatada a

predominância das mulheres como demandantes no campo de direito de família, sendo os processos

de pensão alimentícia e o de execução os mais recorrentes na maioria das varas de família e

sucessões na cidade de São Paulo/SP.

Da mesma forma, na minha pesquisa de campo, essa presença é evidenciada pelos agentes

jurídicos entrevistados4. Todos os agentes convergiram no sentido de apontarem o protagonismo

das mulheres nesse campo do direito. Há a percepção, entre os entrevistados, de que as mulheres,

em geral, ficam com as filhas e filhos sem o apoio dos ex-companheiros.

O paradoxo que se estabelece é o de que a maternidade, simbólica e culturamente, tem sido

construída sob um viés solitário, como registrado nas recentes pesquisas sobre as tendências

demográficas no Brasil que atestam o crescimento das famílias monoparentais femininas5. De outra

parte, a parentalidade no masculino permanece individualmente optativa, uma escolha autônoma, ou

ainda periférica, em diferentes contextos socioeconômicos.

Não obstante vários estudos indicarem a transformação do modelo tradicional de

paternidade e um maior envolvimento dos homens nas esferas doméstica e parental, entre grupos de

classe média, parece consensual a constatação de que persistem assimetrias de gênero e mecanismos

de (re)produção de definições tradicionais do papel do pai e da mãe pelas quais a paternidade tende

a ser mais periférica, menos requisitada para os homens do que a maternidade para as mulheres.

Nesse contexto de aumento de famílias monoparentais femininas, seja voluntária ou não, e

de diferenciação no estatuto da parentalidade feminina e masculina, as mulheres acionam mais o

sistema de justiça e, em especial, as varas de família, como autoras em processos judiciais.

Uma agente jurídica entrevistada pondera que se houvesse uma paternidade responsável,

com maior presença dos pais na vida dos filhos, diminuiriam as demandas por alimentos e execução

de alimentos. Essa postura dos homens é qualificada como passiva: “Os homens, em geral, são mais

passivos. São raros os casos em que o homem demanda a visitação. Normalmente, são as mulheres

4 Designo por agentes jurídicos as pessoas que compõem o sistema de justiça, com diferentes inserções nas carreiras

jurídicas: advogadas e advogados, defensoras e defensores públicos, juízas e juízes, representantes do Ministério

Público, servidoras e servidores, estagiárias e estagiários de direito. Na minha pesquisa de campo foram entrevistados 6

(seis) agentes jurídicos, sendo 2 (dois) homens (juízes) e 4 (quatro) mulheres (duas defensoras públicas e duas

promotoras de justiça). Todos esses agentes atuaram no 1º ou no 2º juizado da vara de família e sucessões de um foro

regional de Porto Alegre/RS. Suas idades variam entre 38 e 55 anos e todos eram brancos. 5 O crescimento das famílias monoparentais femininas redunda no aumento da chefia feminina das unidades

domésticas. A proporção de arranjos do tipo casal com e sem filhos chefiados por mulher passou de 0,8% em 1992 para

12,1% em 2011 (IPEA, 2012). Em todo o Brasil, o comportamento sócio-demográfico do conjunto da população

apresenta as mesmas características de redução do tamanho da família, crescimento do número de famílias chefiadas

por mulheres, novos arranjos familiares e envelhecimento da população (MORAES, 2011, p. 412).

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que reclamam quando não há visitação. São poucos os homens que querem realmente exercer a

paternidade”.

Sobre as diferenças entre o comportamento de mulheres e homens, uma agente afirma que a

mulher tem uma carga de responsabilidade maior: “Elas ficam com a guarda dos filhos e a pensão,

na maior parte das vezes, é simbólica, mas elas não fogem dos problemas, dão um jeito”. Outro

agente avalia que as mulheres, durante as audiências, são mais estressadas, sustentam uma postura

mais litigante, porque ficam com a responsabilidade exclusiva pelas filhas e filhos: “É natural, elas

chegam reivindicando mais que os homens. São raras as situações de homens com a guarda”.

Outra entrevistada classifica as mulheres como “mais briguentas”: “São mulheres que trabalham

muito, se viram sozinhas para dar conta dos filhos. Elas são mais briguentas, seguram toda a

responsabilidade, muito mais que os homens. Mas não dá pra deixar bater-boca”.

Considerando o perfil socioeconômico das usuárias, a maior precariedade das condições

materiais de subsistência das mulheres chefes de família corroborara o dado de que elas são as

principais demandantes de pensão alimentícia, nesse estudo de caso, em uma região periférica da

cidade de Porto Alegre/RS.

Se as mulheres são as principais demandantes, não deveria causar surpresa a exposição de

relatos de violência doméstica e intrafamiliar nas audiências e nos processos que tramitam em varas

de família. O que chama a atenção são os diferentes sentidos atribuídos as medidas protetivas de

urgência, deferidas no âmbito do JEVDM, nos termos da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), em

favor das mulheres, autoras de demandas em uma vara de família.

2. O “sacrifício” das mulheres e o personagem do “homem trabalhador”

Para as mulheres, a medida protetiva de urgência deveria, em tese, garantir a intervenção do

Estado e a restrição de alguns direitos dos ex-companheiros, incluindo-se a proibição de

aproximação e contato com a ofendida, extensiva aos familiares, conforme o §3º, do artigo 19, da

Lei Maria da Penha (LAVIGNE & PERLINGEIRO, 2011).

De outro modo, para os agentes jurídicos, no contexto das práticas de justiça observadas em

trabalho de campo, o exercício do direito de visitas, enquanto direito de crianças e adolescentes, não

poderia ser obstaculizado, ainda que houvesse uma medida protetiva de urgência em uma situação

de conflitualidade doméstica e intrafamiliar. Embora o “direito de visitas não seja sagrado, nem

indisponível, nem absoluto” (LEITE, 2005, p. 172), os agentes jurídicos reivindicam a necessidade

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de superação da ruptura traumática do laço conjugal para privilegiar a relação paterno-filial. Nessas

situações, são recorrentes os aconselhamentos no sentido de que a “escolha” pelo pai é da mulher!

Essa lógica se assemelha a ideia de proteção do vínculo conjugal e de coesão formal das

famílias, em detrimento dos interesses e da dignidade individual das mulheres e dos filhos, em

nome da paz doméstica6, tão cara à família burguesa matrimonializada do século XIX. De acordo

com Tepedino (2004, p. 398), “o sacrifício individual, em todas as hipóteses, era largamente

compensado, na ótica do sistema, pela preservação da célula mater da sociedade, instituição

essencial à ordem pública e modelada sob o paradigma patriarcal”.

Nesse sentido, o “sacrifício” das mulheres agredidas em garantir o direito de visitas dos ex-

companheiros agressores obedece ao rito de preservação de um certo modelo de família. A fórmula

do “interesse superior da criança” aparece como mais um reforço ao conteúdo do papel materno,

pois as mulheres-mães devem superar individualmente a violência doméstica e colaborar para a

manutenção da parentalidade masculina.

O paradoxo é que de um lado, o discurso dominante na doutrina se afirma no sentido de que

a “nova família” afirmada pela Constituição Federal de 1988, pautada pelo afeto, solidariedade e

cooperação não admite a ingerência do Estado, sobretudo no que se refere à intimidade de seus

membros (PEREIRA, 2005; OLIVEIRA, 2002; MONTEIRO, 2004). Por outro, quando o Estado,

através do sistema de justiça, é chamado a intervir na violação dos direitos das mulheres em

situação de violência doméstica e intrafamiliar, as práticas de justiça em direito de família

relativizam essa intervenção para, mais uma vez, reforçar a ideia de que algumas famílias, em geral

a de grupos populares, necessitam ser “normalizadas”, no sentido de retomarem uma adequada

funcionalidade, que tem por parâmetro a família nuclear burguesa. Patrice Schuch (2009, p. 245)

chama a atenção para algumas práticas do sistema de justiça, relacionadas aos conflitos envolvendo

adolescentes, que centradas em um modelo de família que privilegia os vínculos emocionais entre

pais e filhos, próprios dos sistemas de valores de camadas médias e altas da população brasileira,

nem sempre são adequadas às dinâmicas de grupos populares.

6 Aqui, é interessante a retomada da ideia de “paz doméstica” na Campanha Nacional da Justiça pela Paz em Casa,

protagonizada pela atual presidenta do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha. Em suas

palavras, trata-se de uma campanha de mobilização nacional pela resolução de casos de violência doméstica realizada

através de ações de intensificação do julgamento de homicídios de mulheres por razões de gênero (feminicídio), além

de ampliação do número de audiências nas varas e juizados que tratam da matéria. Disponível em

http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/77532-ministra-do-stf-encerra-da-campanha-justica-pela-paz-em-casa-no-rio.

Acesso em 24 jul 2016. Na mesma linha, surge nas mídias convencionais e nos sites de alguns tribunais brasileiros

notícias sobre o uso de “terapias alternativas” em processos judiciais em varas de família. Ver:

http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83766-constelacao-familiar-ajuda-humanizar-praticas-de-conciliacao-no-judiciario-2.

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O alcance e os limites das medidas protetivas em uma situação de conflitualidade doméstica

gerava dúvidas entre as usuárias do sistema de justiça: havia, no mínimo, um conflito de interesses

entre a mulher com a medida protetiva de urgência e o direito de convivência das crianças com os

pais. Se de um lado, as mulheres não pretendiam ter contato com os agressores, por outro, os

magistrados que presidiam as audiências naquela vara de família entendiam que a medida protetiva

não impedia o direito de visitas dos pais. Podemos supor que há uma divergência na compreensão

dos efeitos das medidas protetivas de urgência para filhas e filhos, quando são abordadas em varas

não especializadas de violência doméstica.

Essa divergência é derivada da ambiguidade com que o tema é tratado no Juizado

Especializado de Violência Doméstica contra a Mulher (JEVDM), em Porto Alegre, uma vez que

mesmo sendo a regulamentação de visitas matéria de sua competência, remeteu-se, conforme

observado durante o trabalho de campo, para a vara de família e sucessões a decisão dessa e outras

situações de natureza cíveis. Essa situação é recorrente nos estudos sobre a implementação da Lei

Maria da Penha, em que o Poder Judiciário processa de forma independente as ações criminais e

cíveis (PASINATO, 2010).

Trago uma situação observada durante a pesquisa de campo que, acredito, ilustra o pouco

impacto dos estudos de gênero no campo jurídico, bem como a divergência com relação às

competências de uma vara de família e de um Juizado Especializado de Violência Doméstica

(JEVDM).

Tratava-se de uma audiência em uma ação de alimentos. A autora e o demandado são jovens

adultos, com 20 e poucos anos, são brancos e ambos contam com assessoria jurídica privada. A

autora refere que o avô materno paga o plano de saúde e a escola, que a filha faz uso de medicação

para asma, toma leite especial porque tem intolerância à lactose. Mãe e filha estão morando em

Florianópolis na residência da avó materna.

O advogado da autora refere que não há vínculo entre o casal e que ela tem uma medida

protetiva da Lei Maria da Penha, mas o convívio com a criança é bom. O juiz afirma que os avós

sempre contribuem quando convivem com a criança, mas isso é excepcional, não é obrigação deles.

O advogado do requerido oferta uma pensão de R$ 250,00. A representante do Ministério Público

explica que o valor da pensão leva em conta as necessidades da criança e as possibilidades do pai de

pagá-la. A autora pergunta se o valor poderia ser maior se ele tivesse um trabalho fixo e afirma: “O

valor, esse dinheiro, é da filha, não é pra mim. Notícia dele eu não quero, não quero nada com

ele”.

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O juiz explica que guarda, alimentos e visitas sempre podem mudar. O juiz termina sua fala

e a autora revela: “Vou ser bem clara e verdadeira, quem ajudava eram os pais dele, a menina

ficava com os pais dele para a gente sair e ir para as festas, eu confio nos pais dele. No dia do

aniversário da filha ele não ligou. Ele esteve quatro vezes internado em clínica. Batia em mim. A

menina não conhece o pai direito”. O juiz comenta, enquanto a mulher enxuga as lágrimas: “Esse é

o pai que a senhora escolheu para sua filha. Não deve ter sido tão ruim”.

O advogado do requerido, se dirigindo a autora, explica: “A gente tem que pensar na

menina. O passado do que ocorreu com vocês tem que ser apagado”. Ela responde: “Não dá para

apagar, tem marcas que não se apagam”. O juiz explica que a medida protetiva de proibição de

contato não se aplica às visitas aos filhos. O advogado do requerido desabafa: “A prerrogativa é da

mulher na vara da violência doméstica. A palavra da mulher tem peso maior”. O juiz pergunta se

seria possível visitas quinzenais, nos finais de semana: “Vocês vão ter que se acertar e os alimentos

atrasados serão pagos em duas vezes. Pode ser assim?”.

A autora questiona a possibilidade de a menina querer ficam com o pai no dia da visita. “Ele

nunca quis saber dela. Eu fiz a filha sozinha. Eu sei muito bem como tu é. Fala e não cumpre. A

menina não conhece o pai. Não tenho confiança nenhuma nele. Tá na hora de tu crescer, tá mais

do que na hora”. O juiz responde que se a mãe tiver fato concreto contra o pai tem que trazer.

“Vocês têm que pegar confiança. A senhora vai ver que com a convivência vai melhorar. Os avós

paternos vão junto fazer a visita”. O advogado do pai afirma: “Nós não podemos criar barreiras.

Ele está demonstrando publicamente que quer ficar com a menina, que quer ter convívio. Vai dar

tudo certo”. O juiz, se dirigindo ao requerido, diz: “Fala para os teus pais que foi feito acordo na

ação de visitas [os avós paternos também ajuizaram uma ação de visitas]. O senhor faz tudo

certinho, no horário, avisa, liga. Tem que ter bom senso. Tudo bem? Vai dar tudo certo, se fizer as

coisas certas”.

O demandado apenas faz um gesto com a cabeça, concordando com os termos do acordo.

Sai da sala de audiência sem proferir uma única palavra. Depois que todos se retiram do lugar, a

representante do Ministério Público declara: “Vem pra brigar, esqueceu que foi ela que escolheu”.

A cena aqui reproduzida evidencia, de formas distintas, isto é, com medidas diferenciadas

quando se trata de mulheres e de homens, a noção de escolha individual. A partir de uma

compreensão que desvincula as opções e as preferências individuais dos seus contextos particulares,

das normas morais e das posições sociais, se define o horizonte de possibilidades disponíveis,

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segundo o registro daquilo que é prescrito aos sujeitos de acordo os marcadores sociais que

conformam um determinado script social.

A argumentação do juiz, da promotora de justiça e do advogado do demandado enfatiza o

aspecto da responsabilidade do pai com relação a sua filha, e que essa responsabilidade se estende

ao longo do processo de desenvolvimento da criança, concretizada, não somente, pelo apoio

material, mas também pelo convívio efetivo entre ambos, por isso toda a insistência, durante a

audiência, para organizar um cronograma de convivência entre pai e filha. Dessa forma, quando

essa responsabilidade é arbitrariamente negligenciada, cria-se um “problema” para o Poder

Judiciário que reitera a sobrevalorização do parentesco biológico como argumento fundante para

manutenção das conexões parentais e para o exercício da parentalidade masculina.

Como refere Biroli (2013, p. 82), as escolhas são uma consequência de padrões e valores

sociais que os definem como produtos de sua inserção em um contexto de relações sociais

concretas. Desse modo, a autonomia e a autodeterminação são tão livres dos sistemas de controle

estruturais e intersubjetivos quanto podem ser as escolhas em uma sociedade hierárquica e desigual

como a brasileira. A desigualdade e a hierarquia sociais, no Brasil, contribuem para o descompasso

entre a pretensão normativa de pluralismo e a seletividade limitadora no acesso à legitimidade

social. Conclui a autora (2013, p. 82) que o fato de as escolhas serem socialmente constituídas e

motivadas não significa, no entanto, que os indivíduos não tenham preferências e que estas não

tenham impacto na definição das suas vidas. Significa que são feitas em meio a pressões,

interpelações e constrangimentos que não são necessariamente percebidos como tal.

Na cena narrada há uma culpabilização da mulher pela “escolha” do pai de sua filha. Trata-

se de uma reprovação da conduta sexual da mulher, apoiada no dado de que a mulher quando exerce

sua sexualidade deve também prever que se houver algum “problema”, ou seja, uma gravidez não

planejada, o parceiro que até então tinha um papel exclusivamente sexual, talvez temporário,

também poderá vir a ser o pai, não só genitor, de sua filha ou filho. Dessa forma, se uma mulher

tem relações sexuais com um homem que, no decorrer do tempo não se mostrou um “bom pai”, não

exerceu adequadamente as funções parentais, o erro, expresso em forma de culpa, é dela que

escolheu um parceiro que não serviu adequadamente para a função parental.

Nesse caso, a moral vigente para a conduta sexual da mulher não é a mesma para a do

homem: ambos são responsáveis pelo produto de suas escolhas, ao mesmo tempo em que suas

capacidades de agência, de resistência ou de subversão igualmente são diferenciadas, em termos de

gênero. (ORTNER, 2007). Essa diferenciação funciona, tanto no caso da mulher que é censurada

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por sua “sexualidade problemática”, da qual decorre uma gravidez não planejada, quanto em

relação aos homens por sua “incapacidade econômica”, por não cumprir com o papel de provedor.

A partir dos dados coletados na pesquisa de campo (documental, de observação de

audiências e entrevistas com agentes jurídicos), observei que a reprovabilidade dos agentes

jurídicos em relação aos homens quanto ao não cumprimento da obrigação alimentar era muito

enfatizada em determinadas circunstâncias. Em determinados casos, a defesa dos direitos das

crianças era mais aguda: quando a prole era excessivamente numerosa ou, quando, a estética e o

estilo de vida, não eram compatíveis com o ideal de honra compartilhado entre os agentes jurídicos

de “homem respeitável e trabalhador”.

Em uma audiência de conciliação, o requerido, um homem negro, aproximadamente 40

anos, recebendo benefício previdenciário de auxílio doença, tenta negociar o valor da pensão

alimentícia, como em quase todas as audiências que observei. Ocorre que são dez crianças, com

idades variadas, de três mães diferentes, sendo que duas, em procedimentos próprios, estavam nesta

audiência conjunta tratando da pensão de suas filhas e filhos. As mulheres referiam o trabalho

doméstico informal como principal fonte de subsistência.

O juiz, se dirigindo ao homem, afirma: “Não tem poder de barganha. Isso é muito sério.

Tem que se sacrificar porque não foi responsável. O senhor tá ralado. Tem que fazer bicos para

sustentar todos eles”. Seu advogado pondera que ele não pode fazer “bicos” porque poderá perder o

benefício previdenciário se voltar a exercer qualquer tipo de atividade. O juiz aconselha: “Tem que

se precaver. Sai mais barato fazer vasectomia’. O homem responde: “O Gelson fez e deu problema.

Coitado do negão”7. Os demais agentes jurídicos reforçam o mesmo apelo, inclusive o próprio

advogado do homem-réu.

Interessante observar que o exercício da sexualidade masculina eventualmente se torna um

“problema”, como na situação descrita anteriormente. Nesse caso, a advertência para a realização de

uma esterilização voluntária foi recorrente e unânime entre os agentes jurídicos, dada a precariedade

de recursos materiais para gerenciar o volume das necessidades básicas materiais das crianças. O

que observei é que o exercício da sexualidade do homem não sofre um julgamento de reprovação

moral, em si, se comparado com o das mulheres. O foco do problema, na percepção dos agentes

jurídicos, não é a sexualidade, e sim a incapacidade econômica.

Essas duas situações observadas no trabalho de campo evidenciam a ausência de qualquer

percepção de uma Justiça de Gênero nas práticas de justiça naquela vara de família, em foro

7 O nome é fictício para preservar a identidade do usuário.

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regional da periferia de Porto Alegre/RS. É necessário registrar que meu argumento sobre a pouca

influência e adesão aos fundamentos de Justiça de Gênero não estão deslocados das principais

críticas dirigidas ao campo jurídico sobre sua seletividade em termos de classe, de raça/etnia, de

orientação sexual e de pertencimento religioso. Nesse sentido, essas evidencias apenas reforçam a

denúncia da parcialidade androcêntrica do direito apontada pelas principais correntes críticas

feministas.

3. A perspectiva androcêntrica do direito

Para ilustrar a potência da parcialidade androcêntrica do direito utilizei alguns casos

observados durante o meu trabalho de campo em uma vara de família e sucessões, de um foro

regional da periferia de Porto Alegre/RS.

A perspectiva androcêntrica do direito pressupõe uma concepção liberal do campo jurídico,

em que as ideias de objetividade, racionalidade e universalidade são tomadas a partir do sujeito

clássico de direitos e obrigações: homem, branco, adulto, heterossexual, adulto,

consumidor/provedor (FACIO, 1999). Dessa forma, as práticas de justiça são concretizadas

historicamente a partir de regras informais que determinam quem, quando e como se tem acesso à

justiça e que direitos cada um tem.

O androcentrismo no direito, de acordo com Rosa Maria Rodrigues de Oliveira (2002, p.

101), forjado em bases filosóficas desde a Antiguidade Clássica, é uma forma particular de ver o

mundo exclusivamente a partir de valores masculinos, proporcionando, dessa forma, um caráter

naturalizado e com pretensão de validade científica a uma opção ideológica. Se a ideia de

patriarcado, como uma forma social, política e econômica de distribuição desigual e hierárquica de

poder, oportunidades e bens entre homens e mulheres, não tem uma compreensão uniforme nas

teorias feministas, Rosa de Oliveira (2002, p. 102) refere que há consenso quanto à influência da

razão androcêntrica sobre as ciências, em geral, e sobre o direito, em especial.

Na Modernidade, Rosa de Oliveira (2002, p. 109) refere que nem os ideais de igualdade,

liberdade e dignidade, próprios desse período, foram fortes o suficiente para resistirem ao impacto

da cultura androcêntrica sobre o campo jurídico. Para a autora, quando Kant, na sua obra “Doutrina

do Direito” (1797), reafirma a prevalência da autoridade masculina pela posse jurídica de uma

mulher, de uma criança ou de um escravo, como bens de alguém, ele não estaria atentando contra o

princípio da igualdade, porque a igualdade é derivada da superioridade de gênero, admitida como

natural com relação às mulheres.

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Na contemporaneidade, encontramos os reflexos do androcentrismo na noção de igualdade

formal (perante a lei). De acordo com Alda Facio (1992), embora as legislações domésticas tenham

acompanhado os influxos internacionais de reconhecimento e proteção dos direitos humanos das

mulheres, a partir da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as

Mulheres (CEDAW, 1979), no sentido de que as leis em geral tenderam ao reconhecimento da

igualdade entre mulheres e homens, é preciso atentar para que seus efeitos não resultem em

discriminação contra as mulheres. Uma lei que trata homens e mulheres exatamente iguais, mas

com resultados que menosprezam ou anulam o gozo do exercício dos direitos humanos das

mulheres, será uma lei discriminatória (FACIO, 1992, p. 17).

Dessa forma, a discriminação não se vincula somente à redação de uma lei, ao componente

formal-substantivo do direito, porque seria considerar o direito a partir de uma ideia muito

restritiva. Se, ao contrário, o conceito do direito for ampliado, incluindo outros componentes

(estrutural e político-cultural) poderíamos afirmar que há discriminação mesmo quando a redação

de uma lei seja aparentemente neutra, porque sua interpretação e aplicação podem ser

discriminatórias (FACIO, 1992, p. 60).

A distinção metodológica que Facio (1992) realiza entre elementos formais-substantivos,

estruturais e político-culturais do direito nos permite compreender os diferentes mecanismos pelos

quais a Justiça de Gênero ainda não está incorporada nas práticas de justiça, no contexto brasileiro.

Os dados do trabalho de campo, anteriormente examinados sob os enfoques da cultura da violência

contra as mulheres e dos estereótipos designados para a parentalidade no feminino e no masculino,

evidenciam muito o desconhecimento e a ambiguidade a respeito das implicações das hierarquias e

sobreposições de desigualdades estruturais, materiais e interseccionais de gênero, classe e étnico-

racial, entre outas.

De um lado, o ordenamento jurídico brasileiro (elemento formal-substantivo) há muito

incorporou o paradigma da igualdade, partir da Constituição Federal de 1988. Por outro, as

representações sociais e práticas de justiça entre agentes jurídicos, no campo dos conflitos

familiares judicializados, tendem a reforçar a parcialidade androcêntrica quando se negligencia e se

ignora as narrativas das mulheres em situação de violência doméstica (elementos estruturais e

político-culturais). Da mesma forma que esse androcentrismo é reificado quando se impõe um

modelo de parentalidade masculina fundada no ideal de “homem honesto e trabalhador”.

O reforço à parcialidade androcêntrica no direito atinge as mulheres, mas também os

homens, de modos distintos e com efeitos perversos desiguais. É por isso que a crítica feminista aos

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marcos normativos do direito é saudada porque denuncia a violência simbólica de práticas que

explicitam uma noção pobre de neutralidade como fundamento para o paradigma da igualdade

formal. Trata-se de um reducionismo inerente e constitutivo do campo jurídico que tem como um de

seus efeitos a produção de modos de diferenciação e de desigualdade entre os sujeitos que se

adequam ou não a um forjado arbítrio cultural e ideológico, pretensamente neutro e universal.

Considerações finais

As demandas de reconhecimento das diferenças (de gênero, de raça/etnia, de sexo, de

orientação sexual, de classe, de pertencimento religioso, de origem territorial, das deficiências) se

inserem em um contexto de ruptura com processos globais e locais de invisibilização e exclusão

social e cultural. Essas demandas, de diferentes formas, são pasteurizadas quando batem às portas

do sistema de justiça.

Desde a minha perspectiva, refletir sobre Justiça de Gênero e cultura da violência contra as

mulheres é uma estratégia que pretende visibilizar as formas pelas quais as contingências e a

multiplicidade de questões dos sujeitos são impactadas por representações e práticas de justiça

seletivas e informadas a partir de uma parcialidade androcêntrica do direito.

A exigência acrítica de subsunção das regras gerais e abstratas aos fatos vivenciados por

usuárias e usuários vai ao encontro de uma compreensão pouco atenta às conflitualidades das

relações sociais tomadas como um “problema exclusivamente de ordem social” para o sistema de

justiça.

As noções de justiça/direito e igualdade, nesse contexto, tornam-se essencializadas, um

padrão universal pouco permeável as especificidades de cada conflitualidade e, deliberadamente

neutras quanto às desigualdades de poder, entre mulheres e homens. As contingências, no sentido

de uma singularidade dada pelas circunstâncias de cada relação jurídico-social, são negligenciadas

ou desconsideradas e, portanto, universalizam o tratamento dos conflitos sob a pretensão da

neutralidade universal e da igualdade formal.

De um lado, o ordenamento jurídico reconhece a igualdade formal de mulheres e homens,

por outro não se problematiza a mútua construção dos privilégios dos homens e da marginalização

das mulheres, sob diferentes aspectos e com distintos impactos quando observada a sobreposição de

desigualdades interseccionadas de raça/etnia, classe, orientação sexual, pertencimento religioso etc.

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O que procurei demonstrar é que esse paradoxo expresso no campo jurídico impõe o

reconhecimento de que o direito é permeado por uma parcialidade androcêntrica que negligencia, ao

mesmo tempo que reproduz, a cultura da violência contra as mulheres.

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2008.

Gender Justice: a case study of the lawsuits in Family Court in Porto Alegre / RS, Brazil

Abstract: Based on the presumption of the presence and invisibility, in contemporary societies, of

gender asymmetries, this work asks about how the inequalities between women and men are

perceived, mitigated or consolidated, particularly in the Family Court, in the periphery of Porto

Alegre / RS, Brazil. The reflections and empirical data presented come from my doctoral thesis in

law (PPGDir / UFRGS / 2015). The research methodology combined different techniques of

empirical data collection with qualitative treatment in order to understand the results triggered by

the interactions provided by the legal system, particularly concretized by the practices and

representations of the legal agents and users in legal matters involving families. Through the

analysis of the data gotten in field work, I highlight the interrelation between the androcentric bias

of the right and the culture of violence against women, as a vector to understand the different

perceptions of professionals and profane, from the study of case in the Family Court, in Porto

Alegre /RS, Brazil. The women, in a context of moral judgment of its choices and sexual behaviors,

try a feeling of injustice or privation of rights. This perception is still more acute when the

narratives and denunciations of domestic violence against women are ignored by legal agents in the

lawsuits in Family Court. The multiplicity of conflicts over family law shows that the separation of

material competences (civil and criminal) only makes sense for the organization of the judiciary and

not for users of the legal system.

Keywords: Gender justice; Case study; Domestic violence