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KALEVALA

KALEVALA - PDF Leyapdf.leya.com/2013/Feb/9789722051415_content_hory.pdfto do poema épico que, para se realizar, exige um oponente adequado, uma situa-ção e um motivo. No seu conjunto,

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KALEVALA

KALEVALAELIAS LÖNNROT

Desenhos ROGÉRIO RIBEIRO

Introdução de Seppo Knuuttila

Tradução do finlandêsMERJA DE MATTOS-PARREIRA

ANA ISABEL SOARES

«AS SOMBRAS DOS HERÓIS»1

SEPPO KNUUTTILA

Para o melhor e para o pior, a história mítica é o lugar do passado. O seu «agora» permanente é também o tempo verbal de Kalevala. «Lá», na história mítica, somos aquilo que não conseguimos ser aqui. Este jogo tem sido jogado por todas as gera-ções desde o primeiro Kalevala e cada uma destas gerações tentou sempre quebrar as regras do jogo Kalevala estabelecidas pela anterior. O professor e Conselheiro do Estado E. N. Setälä escreveu, no início dos anos 30 do século XX, que «Kalevala tem sido concebido de modo diferente daquilo que de facto é e talvez por isso a sua importância no passado tenha sido maior do que de outro modo seria.» Sabemos, continua Setälä, «que, na altura da sua publicação, e ainda hoje com frequência, se considera Kalevala uma narrativa de uma idade de ouro, a descrição de uma altura em que as pessoas eram melhores do que hoje em dia e de um tempo em que tinham uma ligação mais próxima à natureza e em que reinava uma harmonia e confiança nos poderes espirituais, e, sobretudo, no poder da palavra» (1932: 12). De facto, tudo isto pode ser lido em Kalevala.

No ano comemorativo dos cento e cinquenta anos do Kalevala Antigo (1985), Yrjö Sepänmaa apresentou algumas das ideias mais comuns sobre Kalevala, que têm sido reiteradas nas várias interpretações da obra. Explicou por que razão o poema épico Kalevala não é um documentário sobre um modo de vida antigo e distante, nem uma ilustração da poesia popular finlandesa – nem sequer uma

colagem dos dois. Resumindo: não é uma obra realista, mas de natureza mítica, e ainda menos é um manual de comportamento ético. Podemos concordar com tudo isto mas, como se sabe, as interpretações e as ilusões erróneas baseiam-se geral-mente na nossa vontade de ver os assuntos de uma determinada maneira e na capa-cidade de ler a ficção como um mundo possível. Tanto o facto de conceber Kalevala «de um modo diferente» como as ilusões interpretativas contêm informação cultu-ral importante – o próprio Elias Lönnrot (1802-1884) se enganou na sua avaliação do significado do poema Kalevala.

A historicidade e o carácter mítico das acções descritas em Kalevala são escolhas interpretativas que de modos múltiplos se alimentam um do outro. Defende-se em muitos ensaios que quanto mais singular fosse o conteúdo dos Cantos e menos fre-quente a referência aos eventos noutras fontes textuais, mais próximas estariam as narrativas dos eventos que realmente aconteceram. Era neste tipo de historicidade que, segundo Zacharias Topelius (1818-1898), residia a fundação da nacionalidade finlandesa, a maneira própria de esta nação ver o mundo, que se cristalizava de modo mais perfeito na mitologia finlandesa. Na sua palestra «Terá a Finlândia uma histó-ria?» (1843), Topelius afirma: «Quanto mais única a mitologia de um povo, mais bem demarcada e excêntrica a sua essência, maior a sua permanência ao longo dos tem-pos» (1905). Topelius referia-se ao Kalevala Antigo de 19352. Na sua singularidade, Kalevala era o testemunho recente de uma mundividência nacional que fortalecia e continua a fortalecer a especificidade do «nosso passado mítico» (Peltonen, 1998: passim), apesar de sobre ele os finlandeses nunca terem chegado a consenso.

SOBRE A CIÊNCIA E A CAPACIDADE DE INTERPRETAR

Um dos muitos tópicos problemáticos em Kalevala é a unidade ou coesão da epopeia. De acordo com as visões mais antigas, a unidade, o todo da epopeia provaria a sua verdadeira e total existência em tempos remotos, que Lönnrot teria conseguido reconstituir no formato original. Quando esta suposta originalidade e coesão se provaram ilusórias, o debate continuou acerca da forma. Nas palavras de Rafael Koskimies, questionava-se se «a obra-prima afinal teria coesão, se seria um todo harmonioso, pressuposto imprescindível nos princípios da estética geral» (1978: 19). Com efeito, não havia sobre o assunto um consenso satisfatório. Daí que, segundo

Koskimies, «se devesse abandonar a ideia de que a forma e o conteúdo de Kalevala seriam esvaziáveis, por razões formalistas, e que, por outras palavras, se teria que salvaguardar a ‘unidade’ da obra» (1978: 19).

O importante neste diálogo pouco frutífero tem sido a valorização da integri-dade e da pureza formal do texto, sublinhadas como características de uma obra que pertence à «Arte Verbal do Património Mundial». Trata-se sem dúvida de uma tenta-tiva de ver o passado como íntegro, uno, como uma era acabada. Segundo Matti Kuusi, ao longo do processo de construção de Kalevala, os recitadores começaram no início do século XI a organizar cantos soltos em cadeias com enredo: «Ao construir a epopeia nacional Kalevala em redor do episódio do Sampo, Elias Lönnrot condu-ziu este processo ao seu apogeu» (Kuusi, 1977: 99, vide Kuusi, 1987). Retoricamente, a unidade do passado nasce das metáforas de quebra, corte e desmembramento; ao demonstrar que já não existe, garante-se nas entrelinhas que o desaparecido uma vez terá existido. Väinö Kaukonen, uma das especialistas do Kalevala, considerava que o poema se constituía como uma unidade «à qual nada pode ser subtraído ou acrescentado senão por grande violência» (Kaukonen, 1988: 45).

A seguir analiso algumas das personagens de Kalevala no âmbito do mundo da epopeia, o modo como têm sido descritas e o que sobre elas se tem dito. Não pretendo defender nem contestar as interpretações anteriores – antes quero considerá-las como ecos da possibilidade de apresentar várias descrições e interpretações artísticas sobre Kalevala, cada uma delas, à sua maneira, verdadeira. Por mais estranhas que sejam, tais interpretações podem esclarecer aspectos da epopeia que para um leitor actual terão significados específicos. Os conceitos-chave na metodologia que segui-rei são a articulação e o contexto. O primeiro consiste em observar de que modo as entidades ligadas ao circuito entre um e outro dão luz a novos sentidos e relações, conduzem a um conflito com o sentido anterior e estilhaçam a caracterização das per-sonagens. O contexto, por seu lado, refere-se a situações nas quais agem tanto as per-sonagens de Kalevala como os seus intérpretes. Deste ponto de vista, o herói é o sujei-to do poema épico que, para se realizar, exige um oponente adequado, uma situa-ção e um motivo. No seu conjunto, estes conduzem a acções heróicas, às quais os inves-tiga-dores e outros receptores atribuem significados diferentes.

A palavra finlandesa sankari (herói) tem pelo menos duas raízes possíveis: poderá ser um empréstimo da palavra sueca sångare, que significa cantor ou bardo (em fin-landês arcaico, cantar significava também a sabedoria, o controlo e o poder sobre os

assuntos); ou será uma nominalização do verbo sangata, que significa atacar, ameaçar, opor (em estoniano, língua próxima do finlandês, o verbo hoje significa também punir). Em ambos os casos o herói (sankari) refere-se a uma actividade que é capaz de causar à sua volta tanto de bom e de apreciável quanto a destruição, a hu-milhação e a intenção de vingança. Väinämöinen, a personagem central da epo-peia, age de acordo com estas duas concepções de herói e, mais ainda, tem de saborear a amargura de uma derrota, de sentir-se vencido.

Quando, na sua tese de doutoramento sobre conceitos de liderança entre alunos do ensino secundário (1997), Mika Aaltonen esboçou o arquétipo de um líder mítico através da personagem de Väinämöinen, baseou-se principalmente nas interpre-tações de Matti Haavio (1950). Assim, Väinämöinen é um homem «que ninguém consegue contestar», um homem que «sempre cumpriu as tarefas mais importantes», que «ensinou o seu povo a fazer barcos e a navegar», «um curandeiro», «capaz de conseguir a melhor colheita da terra lavrada», «um autêntico criador» (Aaltonen, 1997: 83). Aaltonen conclui que estas características de líder competente, atribuídas a Väinämöinen (firme, sábio, de vistas largas, que trabalha para as gerações futuras, velho, omnisciente), descrevem também valores colectivos. Sem dúvida que sim, mas um Väinämöinen assim descrito só em parte corresponde à figura presente no Kalevala e na poesia tradicional finlandesa. Talvez Aaltonen tenha concluído que, sendo a sua investigação sobre a liderança, os outros traços de Väinämöinen que ficam fora desse âmbito não lhe fariam falta. Deste modo, cada produto de uma pes-quisa tem os seus próprios contornos (cf. Anna-Leena Siikala, 1992). Tal como os estudos etnográficos são inevitavelmente uma espécie de mosaicos interpretativos dos seus objectos, filtrados por inúmeras opções (como o ponto de vista, a hierarquia de valores, as classificações, os significados atribuídos, etc.; vide Clifford, 1986: 6-7), assim o Kalevala, consoante as abordagens e interpretações, ganha novos contornos e se transforma numa outra realidade literária. Empiricamente, contudo, Kalevala – e refiro-me aqui ao de 1849 – não é mais nem menos do que uma obra literária, que se compra ou pede emprestada com uma certa garantia de que o seu conteúdo não foi melhorado ou de alguma maneira adulterado.

O MAIOR DOS HERÓIS NA SUA PEQUENEZ

Um dos primeiros investigadores de Kalevala a chamar atenção para o carácter duplo da obra (i.e., para a existência, em simultâneo, de uma unidade estrutural, através do tema do Sampo3, e de uma natureza fragmentária, devida às contradições que atingem tanto o enredo como as personagens) foi o pioneiro Julius Krohn (1885); aliás, poucos têm escrito sobre Kalevala com tanta eloquência como Krohn. Para este autor, Väinämöinen personificava «o pensamento profundo e a qualidade poé-tica tipicamente finlandeses, a tendência finlandesa para a espiritualidade e a con-fiança no poder divino» (1885: 51). Porém, a partir do Canto III, que relata o glorioso feitiço de Väinämöinen contra Joukahainen, começa para Väinämöinen «um longo e desditoso período de difamação e de depressão» (1885: 55): «O pobre homem, desde esse momento, não pode ver uma donzela sem logo lhe pedir a mão. Pede Aino em casamento, depois a filha de Pohjola, duas vezes, e até, no caminho para Pohjola, a irmã de Ilmarinen. É de admirar que não se apaixone pela negra baixinha, a virgem de Tuonela4 que o ajuda na travessia do rio de Tuoni» (1885: 56).

No início do século XX, o folclorista dinamarquês Axel Olrik (1909) formulou os princípios gerais da épica narrativa. A sua teoria é bem conhecida e tem sido até motivo de vários debates. Um dos princípios de Olrik está relacionado com a lei dos opostos e pressupõe que em cada cena narrativa existem apenas duas personagens activas: no palco estão o jovem e o velho, o grande e o pequeno, o sofredor e o orgulhoso, o ser humano e o monstro, o bom e o mau (1965: 134-135). Em vez de princípios, talvez fosse melhor falar de métodos narrativos, através dos quais se constroem e caracterizam as personagens. Estas engendram-se mutuamente quando colocadas sob a influência umas da outras. Lönnrot estava consciente disso quando resumiu o Canto III:

Väinämöinen ganha em conhecimento e fica famoso; 1-20 Joukahainen desafia o saber de Väinämöinen e, como perde o despique, desafia-o para um combate de espadas. Väinämöinen fica irado com a ousadia e enfeitiça Joukahainen, prendendo-o no pântano; 21-330 Enervado dentro do pântano, Joukahainen, promete a Väinämöi-nen a mão da sua irmã; 331-476 Joukahainen segue triste para casa e conta à mãe a desgraça que lhe aconteceu no caminho; A mãe fica encantada com a notícia de que Väinämöinen será seu genro, mas a filha entristece-se e começa a chorar; 525-580.

O Canto III tem sido considerado o episódio-chave de Kalevala, porque nele se en-contram quer vestígios de um poema arcaico sobre a criação do mundo quer traços de um famoso duelo entre sábios (Kuusi, 1959: passim), ou ainda de uma guerra entre o Inverno e o Verão, entre a escuridão e a luz (Setälä, 1932: 384-401). Não comen-to aqui a origem deste Canto; interessa-me antes a encenação do seu conteúdo. Väinämöinen é apresentado como firme, velho e omnisciente; Joukahainen é jo-vem, impaciente, invejoso, desafiador. Os contrastes chocam quando «encaixam varais em varais encaixam, as jugueiras nas jugueiras» (93-94). Väinämöinen pro-põe que o mais jovem lhe abra o caminho; Joukahainen desafia Väinämöinen para um concurso de sabedoria. Começa uma competição desigual. Joukahainen enumera conhecimentos dispersos e desconexos, baseados na mera observação, mas de que desconhece a origem, «assuntos da eternidade» (188). Quando reclama ter partici-pado na criação do mundo, Väinämöinen acusa-o de mentiroso: «Nunca jamais foste visto / quando o mar lavrado foi / o fundo oceano arado, / sulcadas as covas dos peixes, / os abismos lá rasgados» (237-241). Já que se trata de um tipo de sabe-doria baseada na memória, o epíteto «velho» de Väinämöinen refere-se, entre ou-tros sentidos, à profundeza temporal do conhecimento, enquanto a juventude de Joukahainen equivale a uma experiência muito limitada da vida.

Joukahainen promete a Väinämöinen o seu arco, o seu veleiro, o seu cavalo, ouro e prata, as suas terras, em troca da sua liberdade. As promessas não entusiasmam o poderoso sábio. Só já no auge da aflição, «o queixo a lama tocava, / barba o pântano roçava, / boca no lodo, no musgo, / os dentes nos troncos da água» (445-448), é que Joukahainen tem a ideia de oferecer ao velho herói a sua irmã Aino. Então Väinämöinen «suas palavras desfez, / o feitiço desmanchou.» (475-476).

O procedimento moralmente condenável de Väinämöinen (a chantagem e a manipulação de um jovem aflito) não tem sido destacado na literatura sobre Ka-levala. De facto, a crítica propriamente dita tem sido dirigida nomeadamente à op-ção de Joukahainen: só um verdadeiro falhado sacrifica a sua própria irmã. No últi-mo canto (L), o filho recém-nascido de Marjatta acusa Väinämöinen de um acto igual: «Nem tu nunca nesse tempo /ao paul levado foste / quando jovem ainda eras / jovens donzelas mataste / debaixo de ondas profundas, / sobre o mais escuro lodo» (469-474).

Lönnrot deslocou este Canto sobre o feitiço que Väinämöinen lança a Joukahai-nen, que surgia no final do Kalevala Antigo (1835, Canto XXX), para o início do Kalevala

Novo (1849, Canto III). Esta reorganização permitiu contornar as conotações do en-redo anterior, segundo as quais as jovens donzelas contribuíam para um rebaixa-mento das virtudes do herói criador e pioneiro, e o transformavam num velhote mendicante de amor, amnésico e incapaz, num choramingão mentiroso. O lado cómico da corte amorosa de Väinämöinen é especialmente evidente no contexto do humor masculino, caracterizado pela competição e pela humilhação de pessoas prestigiadas. Numa perspectiva feminista, o assunto tem sido tratado de modo con-trário (vd. Sawin, 1989 e Apo, 1995). Väinämöinen regressa aos actos heróicos só depois de ter esquecido as mulheres. Julius Krohn descreveu assim esse processo: «Deixara para trás as suas buscas de felicidade individual; sacrificara a vida inteira, os seus pensamentos e sentimentos todos ao serviço da Pátria. Por isso a Musa da poesia o gratifica, possuindo-o como o seu único herói preferido» (1885: 58).

Os encontros entre Väinämöinen e Ilmarinen merecem atenção ainda quanto à articulação da narrativa. Os dois completam-se um ao outro em todos os aspectos – tal como a teoria e a prática –, excepto enquanto pretendentes rivais. Louhi, que trata Väinämöinen como seu convidado e, ao contrário dele, conversa com boas ma-neiras, prometeu a filha a quem forjasse o Sampo. Já que o próprio Väinämöinen não o conseguiu, prometeu enviar Ilmarinen até à terra de Pohjola. Embora Ilmarinen, nas cenas em que há diálogo, pareça lento e passivo, e alguém fácil de enganar, é entretanto nele que, entre os heróis masculinos de Kalevala, menos se encontram traços de um falhado. Passa por graves perdas (Kullervo, auxiliado pelo gado preda-dor, mata-lhe a mulher), toma decisões erradas (forja para si uma nova mulher de ouro e prata, mas que não tem vida) e é alvo de desdém (rapta a filha mais nova de Pohjola, mas no caminho a donzela injuria-o e chega a ser-lhe infiel; ver Canto XXXVIII, 253-256). Assim, também terminam mal as relações amorosas de Ilmarinen. O fundamental nestes encontros é o facto de esta personagem não ser caracterizada por contraste com nenhuma outra. Nem o facto de Ilmarinen ser um velejador iná-bil, que na tempestade teme pela própria vida, aumenta a coragem dos outros heróis. August Annist escreveu sobre Ilmarinen: «Tal como a descrição de todas as persona-gens que em geral suscitam simpatia, a caracterização de Ilmarinen é difícil». Por um lado, é «limitado, à maneira escandinava», e, ao mesmo tempo, representante de um modelo masculino tipicamente finlandês, cujas realizações correspondentes na vida real se encontram entre os camponeses, os operários, os técnicos, os desportistas e cientistas finlandeses; a lista continua (1944: 163-164).

A par da figura do falhado está sempre uma figura textual superior. No caso de Väinämöinen, a grandeza e a pequenez constroem-se tanto em relação ao objectivo como em relação ao oponente, mas sempre em relação ao outro. Lemminkäinen, por seu lado, talvez por ser a personagem mais complexa de Kalevala, constrói-se sobretudo através de conflitos interiores e de alterações de contextos de situação.

A DESGRAÇA DO GUERREIRO ALEGRE

O Lemminkäinen do Kalevala é uma composição de várias personagens da po-esia popular finlandesa (Kaukamoinen, Ahti Saarelainen, Viini Vuojolainen, o filho de Pätöinen ou Kauppi Lappalainen, entre outras). Segundo Kaarle Krohn, os prin-cipais traços de Lemminkäinen derivam em grande parte de um poema sobre Kaukamoinen (considerado um dos poemas mais conseguidos do folclore finlan-dês). Algumas das características desta personagem são a «ânsia de cerveja, o ser habilidoso, impulsivo, brigão, fortemente atraído pelo sexo feminino e com uma grande capacidade de sedução» (1909: 683). Julius Krohn reuniu uma lista de traços de Lemminkäinen em Kalevala: «Estamos na presença de um fanfarrão, de um aventureiro inconsciente que, apesar das consequências, é tal e qual um rapazinho, lança-se para aqui e para ali, aonde quer que um capricho momentâneo o conduza. Ao mesmo tempo, é um feiticeiro poderoso, quase como um velho sábio Wäinämöi-nen» (sic. 1885: 82). Quando o poema sobre Kaukamoinen e as aventuras de Lem-minkäinen se transferem para a época e o ambiente dos viquingues, o carácter guer-reiro e os desfechos violentos tornam-se aceitáveis.

O carácter aventureiro e romântico de Lemminkäinen, tal como o seu enquadra-mento claramente datado, não deixaram de modo nenhum uma ideia positiva à in-vestigadora americana de orientação feminista Patricia E. Sawin. Ao contrário dos investigadores acima referidos, Sawin verifica que Lönnrot criou uma personagem na qual se reúnem todas as características de um macho agressivo: leviano, sangrento, infiel, bêbado e sexualmente promíscuo. Sawin surpreende-se ao verificar que uma tal personagem tem conseguido a admiração incondicional dos investigadores (masculinos), a ponto de não encontrarem em Lemminkäinen nada de condenável (1990: 53-54). De facto, após as acutilantes afirmações de Sawin, Lemminkäinen e Lönnrot, o seu criador, têm sido objecto de reprovação no campo da investigação feminista.

Na produção crítica sobre Kalevala têm-se desenvolvido, frequente e errada-mente, descrições de indivíduos que justificam as acções das personagens e as suas relações por motivações mentais exteriores ao texto. August Annist, por exemplo, cultiva esta atitude: segundo a sua teoria, «interpretações psicológicas» significam pensar nos objectivos da acção das personagens no seu papel e na descrição do seu estado de espírito. Daí que, apoiando-se na sua teoria sobre as cadeias de articulação, o autor considere Lemminkäinen o herói «psicologicamente mais plástico e realista de Kalevala» (1944: 103). Porém, se observarmos os episódios de Lemminkäinen sem contornos «psicologizantes» e sem juízos sobre o seu carácter, estamos na pre-sença de um esquema de encenação bastante simples, no qual seguimos as viagens da personagem de um palco para outro, as suas acções, fugas e outras partidas.

No poema Kalevala há de facto dois episódios de aventuras de Lemminkäinen. No entanto, a personagem reaparece uma terceira vez, na viagem de roubo do Sampo – mas só em segundo plano, no papel de «terceiro homem». No primeiro destes episódios, Kyllikki, a virgem de Saari, não se deixa conquistar; então ele toma-a à força, atira-a para o trenó e segue viagem. Lemminkäinen promete não tornar à guerra se Kyllikki prometer nunca mais andar pelas ruas da aldeia, e ambos juram fazê-lo. Quando Kyllikki quebra a promessa, Lemminkäinen zanga-se e decide abandoná-la e pedir a mão da dama de Pohjola. Chega a Pohjola e com um feitiço afasta todos os homens da casa de Pohjola; fica apenas um por enfeitiçar, um velho pastor cego. Quando o pastor pergunta por que razão Lemminkäinen não o encantou, Lemminkäinen acusa-o de incesto («Quando eras homem mais novo, / pobre pastor desse gado, / quem tua mãe deu destruíste, / a tua irmã violaste», Canto XII: 487-490) e de sodomia («coxos cavalos tornaste, / potros das éguas esgo-taste / nos pauis, umbigos da terra, / por essas águas de lodo», Canto XII: 491-494). Mais tarde este pastor desprezado, Märkähattu, faz uma espera a Lemminkäinen quando ele chega ao rio e mata-o, lançando uma cana mágica ao seu coração. Das personagens de Kalevala, é Märkähattu a figura que melhor representa tudo que é negativo e mau5.

Depois da primeira viagem a Pohjola começam as adversidades para Lem-minkäinen. Depois de o matar, o pastor corta Lemminkäinen aos bocados com a espada: «Da espada com um golpe só, / fez cinco pedaços do homem, / em oito partes fendeu; / ao rio de Tuonela o lançou, / águas infernais de Manala» (Canto XIV: 448-452). A mãe de Lemminkäinen leva um varapau, vai até aos rápidos do Tuoni e

revolve a água até conseguir juntar todos os pedaços do corpo do filho. A partir destes restos reagrupados restitui Lemminkäinen à vida, com a ajuda de unguen-tos e cânticos mágicos. O herói não se assusta com a sua própria morte; em vez disso, planeia ir de novo à caça do cisne de Tuonela para ficar com a filha de Pohjo-la. Segue-se a disputa do pedido de casamento entre Väinämöinen e Ilmarinen e o casamento de Ilmarinen com a filha de Pohjola. Lemminkäinen, que também competia pela mão da jovem, não é convidado para a boda. Perdedor e humilhado, o pretendente vai à festa mesmo sem convite. Depois de chegar, exige ser servido e bebe o malte de víboras que lhe oferecem. O amo de Pohjola zanga-se quando não vence Lemminkäinen nas suas artes mágicas e insiste em bater-se em duelo. Durante o duelo, Lemminkäinen corta e faz tombar a cabeça do amo de Pohjola: «O crânio do pescoço cortou; / como de um nabo a cabeça / o grão da folha da pa-lha, / as barbatanas do peixe» (Canto XXVII: 381-384). Lemminkäinen apressa-se a fugir de Pohjola, chega a casa e pergunta à mãe onde poderá esconder-se das gen-tes de Pohjola, que diz que se agrupam para guerrear contra si. A mãe aconselha-o a partir para uma ilha para lá de muitos mares, onde também o pai, antigamente, em anos de grande guerra, vivera em paz. Mas também dali é obrigado a fugir: os maridos ciumentos decidiram matá-lo porque «não eram duas em dez, / nem três em cem haveria / donzelas não possuídas, / não desfrutadas viúvas» (Canto XXIX: 243-246). Entretanto, as gentes de Pohjola tinham queimado a sua casa; feliz-mente, a mãe continuava viva. Assim correm as adversidades de Lemminkäinen uma atrás da outra e termina o seu papel de herói na epopeia.

Lemminkäinen parte para combater em Pohjola com o seu companheiro de guerra, Tiera6. Contra os dois, a dama de Pohjola envia Pakkanen7, que lhes con-gela o barco no mar e por pouco congelaria os homens do barco, se Lemminkäinen não o fizesse desistir com fortes encantamentos e feitiços. Lemminkäinen e o com-panheiro avançam sobre o gelo até à costa. Durante muito tempo caminham num estado lastimável, pelos bosques, até que chegam finalmente aos seus lares, Lem-minkäinen à beira da sua mãe. Como já ficou dito, Lemminkäinen também parti-cipa no roubo de Sampo, mas tem aí um papel cómico, como personagem secun-dária e não como herói. Ao tentar matar o lúcio, um peixe gigantesco em cujo lombo o barco fica preso, Lemminkäinen cai à água. Ilmarinen puxa-o pelos cabelos de volta para o barco, regozijando-se e dizendo que «todos para homens são feitos, / todos para barba terem» (Canto XL: 141-142). Quando mais tarde os

amigos fogem de Pohjola com o Sampo no barco (Canto XLII), Lemminkäinen co-meça a cantar. A sua voz esganiçada assusta a cegonha, que acorda as gentes de Pohjola, e logo estes partem na peugada dos ladrões do Sampo, com as conse-quências que o poema dá a conhecer.

Segundo Hans Fromm, as acções de Lemminkäinen e Ilmarinen são descritas de tal maneira que estas figuras perdem materialidade e se convertem «em esquema, numa espécie de figurantes. O mais que lhes podemos chamar são papéis épicos; com muitas reservas poderemos falar de esboços, mas nunca de personagens» (1987: 59). Nos episódios em que aparece Lemminkäinen, repete-se o padrão do orgulho e da queda, que Lönnrot completou com algumas falas humorísticas e peripécias cómicas. Contudo, a complexidade de Lemminkäinen tem produzido interpretações variadas, mesmo alegóricas (vd. Siikala, 1992: 263-267). Annist viu em Lemminkäinen uma fusão de contrastes: amor, luta e morte, «tal como num bago de cereal e em alguns animais, para os quais a concepção por si só significa de imediato a morte» (1944: 78).

No sentido clássico, o mais trágico dos heróis de Kalevala é Kullervo, cujos feitos irredutivelmente conduzem à destruição. Já no ano de 1853, Fr. Cygnaeus considerou que a infelicidade de Kullervo acontece porque «a natureza fez dele um herói, mas o destino rebaixou-o a um escravo» (cit. in Krohn, 1885: 98). O pa-pel dele, então, é fatalista, é a realização de um destino pré-defenido que impede uma actuação autónoma da personagem e lhe exclui a possibilidade de influenciar o fluxo dos acontecimentos. Desta forma, em criança Kullervo escapou a todas as tentativas de assassinato, para que viesse a suceder tudo o que no passado se cantara e escrevera sobre ele. Embora Kullervo e Lemminkäinen – e mesmo Jou-kahainen –, enquanto figuras de compilações de diversos poemas da tradição fin-landesa, sejam funcionalmente próximas (Lemminkäinen mata o amo de Pohjola, Kullervo a filha deste; os três heróis são vingadores), afinam, por assim dizer, por tonalidades diferentes. Ao contrário de Lemminkäinen e de Joukahainen, Kul-lervo não entra em competição, não mede as suas forças ou capacidades contra nenhuma outra personagem. Não é um vencedor nem um falhado.

LOUHI: A POMBA E OUTROS DESTINOS FEMININOS

Muitas das personagens de Kalevala parecem fragmentar-se ao distanciarem-se dos seus traços característicos. Isto sucede com todos os heróis, à excepção de Ilmarinen. Joukahainen, Lemminkäinen e Kullervo emagrecem (ficam planos), transformam-se em meros vingadores; o desenvolvimento dos seus papéis é paralisado. O próprio Väinämöinen acaba por ter que sair do trilho narrativo. Deste mesmo grupo faz parte Louhi, a dama de Pohjola, que está em cena numa posição de superioridade em relação aos pretendentes, no papel de uma negociadora ardilosa sempre pronta a defender os seus interesses. Louhi tem sido tradicionalmente considerada como a personificação de tudo o que é estranho e mau. A. Annist, porém, já nos anos 40 do século XX detectou uma mudança gradual nesta atitude. O autor afirmou que aos poucos Louhi se transforma em mulher má e se torna numa «bruxa velhaca. Tal só acontece depois de ela, devido aos feitos dos seus pretendentes, ter perdido primeiro o marido, depois ambas as filhas e, finalmente, a fonte da felicidade da sua terra, o Sampo. No final da narrativa começam a verificar-se em Louhi, não só traços negativos, mas também características positivas grandiosas» (Annist, 1944: 170). Nas últimas décadas, a personagem de Louhi tem sido recuperada de várias maneiras no panorama cultural finlandês; hoje é uma espécie de padroeira da Sociedade Feminina de Kalevala e o símbolo da Companhia da Joalharia de Kalevala (Kalevala Koru), por exemplo.

Afinal, Louhi é a única mulher da epopeia que combate os homens em pé de igual-dade, umas vezes ganhando outras perdendo. E não tem os traços de uma falhada, salvo no episódio logo a seguir à perda do Sampo, quando lamenta: «Já de mim cai o poder, / já o meu valor baixou: / foi p’ró mar minha riqueza, / o Sampo nas ondas quebrou!» (Canto XLIII: 371-374). Embora Louhi ainda tente abater as gentes da terra de Kaleva com doenças e monstros predadores, vai decaindo do seu lugar de omnipotência.

A última batalha entre as terras de Kaleva e de Pohjola tem como centro a lua e o sol (cf. Cantos XLVII a XLIX). A lua e o sol também tinham descido para ouvir Väinämöinen tocar o kantele [a tradiconal harpa de mesa finlandesa]. A dama de Pohjola aproveita a situação, prende os dois astros e esconde-os dentro da montanha de rochas de Pohjola. Ilmarinen tenta resolver o problema tipicamente à sua maneira, isto é, forjando uma nova lua e um novo sol – mas não os consegue fazer brilhar. Väinämöinen parte para Pohjola à procura das luzes celestiais. Quando os homens de Pohjola lhe contam onde estão os astros, Väinämöinen desafia-os para um combate. Mais uma vez as espadas se

medem e, como a de Väinämöinen é a mais comprida, ganha ele o direito de começar. Assim «como ao nabo um golpe deu, / tais pontas de linho podou / cabeças dos moços de Pohja» (Canto XLIX: 228-230). Mas, como lhe faltam as ferramentas, não consegue liber-tar as luzes do céu. Então regressa a casa para forjar armas que abram a montanha à for-ça. Enquanto Ilmarinen forja as armas, a dama de Pohjola voa, transformada em águia e quer saber o que se passa. O ferreiro responde-lhe que está a forjar uma coleira para prender a Velha de Pohjola na montanha de rochas. Louhi, antes tão corajosa, assusta-se com a ameaça e liberta da montanha a lua e o sol. Da última vez que surge no poema, Louhi aparece em forma de pomba – segundo alguns, despida dos seus poderes mági-cos; segundo outros, na forma simbólica duma mensageira da paz – e revela que «da pedra a lua subiu, / o sol da rocha saiu» (377-378), «Já lá no céu os dois estão, / nos seus lugares anteriores» (391-392).

Vários escritores contemporâneos têm dado atenção ao facto de as mulheres mais importantes (excepto as mães dos heróis) desaparecerem do cenário épico: elas são sim-plesmente abandonadas (Kyllikki), ou assassinadas (a filha de Pohjola que foi obrigada a casar-se com Ilmarinen), quando não põem fim à própria vida (a irmã de Kullervo), ou são transformadas em animais (Aino, a filha mais nova de Pohjola e Louhi). As razões para estas atrocidades têm-se procurado principalmente fora da obra de Kalevala, em contextos construídos através de diversos critérios. Sendo assim, a argumentação tem-se baseado em pontos de partida delimitados; daí que as constatações sejam só parcialmen-te compreensíveis e sempre dentro de uma lógica própria. É bem possível que os desti-nos femininos em Kalevala exprimam uma lógica patriarcal, uma hegemonia masculina misturada com o pensamento do nacional-romantismo do século XIX, a misoginia e o complexo de Édipo de Lönnrot, a ideia de uma mulher construída e demolida pelos mi-tos masculinos sobre o sexo feminino. Mas, por outro lado, a caracterização e as acções destas personagens femininas revelam uma capacidade – não um direito – de auto-determinação, mesmo se as suas acções têm consequências fatais. O essen-cial é que as mulheres não lutam umas contra as outras, nem por causa dos ho-mens nem por outro motivo. Por outro lado ainda, as figuras femininas na epopeia Kalevala nunca são apresentadas como ridículas.

Os materiais mais etnográficos da epopeia Kalevala encontram-se nos Cantos dedi-cados às bodas. Nestes Cantos, Lönnrot inseriu uma pequena biografia mimética, «um conto de bodas», uma história contada na voz de uma velha vagabunda (cf. Canto XXIII: 379-850). Os materiais textuais desta narrativa derivam da poesia lírica do cancioneiro

Kanteletar. A mulher conta como ficou esposa de um homem pobre e insensível e escrava da sogra. Estava em pior posição do que os escravos, passando longos dias a tra-balhar, com pouco que comer. Um dia, lamenta o seu destino quando pensa estar só. Mas, por azar, o marido ouve tudo e dá-se uma cena de violência doméstica. A mulher foge para a casa dos pais, mas só encontra um irmão antipático e uma mãe fria. É então obrigada a sair de casa, a vaguear por aldeias estranhas e a mendigar. Aqui estamos na presença da única figura feminina falhada do Kalevala, se nos concentrarmos só naquilo que é, e não no que sente nem nas razões para o que sente. A «viragem épica» nesta bio-grafia é uma das invenções de Lönnrot: é por mero acaso que o marido ouve os insultos da mulher e daí nasce a razão para a sua (dela) futura condição de sem-abrigo.

Quase numa réplica do Canto anterior, no Canto XXIX (cf. 265-295), um velho mendigo relata como domesticou a sua mulher selvagem e injuriosa: batia-lhe com ramos de bétula, zimbre e amieiro. Segundo a explicação do próprio Lönnrot, a fun-ção do «Canto da nora» era descrever «uma vida conjugal infeliz, porque não é bom mantê-la em segredo». Lönnrot justificava assim as palavras do velho mendigo: «Muitos dos presentes pensam que não é adequado o marido ser brando perante a mulher, por isso esta ideia veio aqui na boca de um velho mendigo» (Kaukonen, 1956: 480).

UMA REALIDADE CONCEBIDA DE MANEIRA DIFERENTE?

Nos estudos contemporâneos sobre Kalevala, a leitura predominante valoriza a simultaneidade de três aspectos: o que o texto constrói (i.e., os nomes, as funções, as acções, os cenários, os episódios, o enredo); de que modo a narrativa, como forma de contar uma história, desprende as personagens da superfície do texto; e, em terceiro lugar, o que as personagens produzem à sua volta. Quando os traços do carácter cons-troem a personagem, ao mesmo tempo conduzem a acções, fundamentam-nas e justi-ficam-nas. Esta conjugação deu origem ao conceito de actante, também designado como função reiterada, que só encontra o seu par correspondente na acção. A quali-dade heróica na epopeia Kalevala delineia-se deste modo, e é assim também que se constrói a personagem do falhado.

Segundo as primeiras interpretações, as personagens mais bem conseguidas e mais «vivas» são entidades autónomas, esboçadas de um modo complexo e, por essa razão,

claramente distinguíveis das suas homólogas. Esta visão, de facto, tem servido como fio condutor para a escrita sobre Kalevala. Os heróis centrais têm sido habitualmente des-critos através dos seus modos de reagir, dos contrastes das repetições e de outras articu-lações diversas, tanto sob o ponto de vista textual como do ponto de vista da narrativa.

No entanto, «o criador mais basilar da coesão narrativa e da coesão textual é o nome próprio» (Rimmon-Keenan, 1991: passim), e à volta do nome próprio é possível conjugar diversas características e episódios. No texto de Kalevala há também um conjunto de actantes unidimensionais sem nome próprio (o pastor, o amo de Pohjola, a filha de Tuoni, o rapaz, as criadas, entre outros). É curioso que Lönnrot não tenha dado nomes às filhas de Pohjola. Na sua tese de doutoramento sobre Väinämöinen (ou melhor, sobre medicina tradicional), menciona o nome da grande paixão de Väinämöinen: a virgem Tuulikki, filha de Tapio. Nem as mães, que desempenham um papel tão importante na linha da narrativa têm direito a nomes próprios. A figura do pai, aliás, quase não tem concretização textual na obra. Esta ausência pode ser inter-pretada como uma atitude negativa, mas também como um modo neutro de ganhar espaço para outras relações de função.

É bem sabido que a ausência da mãe nos contos de fadas tradicionais é padrão recor-rente e parece perpetuar-se nas telenovelas finlandesas contemporâneas, cujos argu-mentistas são maioritariamente mulheres. Por vezes, a ausência pode ser mais significa-tiva do que a presença. Seria então paralelamente legítimo argumentar que, numa epopeia tradicionalmente considerada de ordem masculina, a representatividade infe-riorizada de alguns dos actantes (como mães, por exemplo) ofereceria ao seu destinatário um lugar no palco principal ou até num camarote presidencial?

No cenário épico concretizam-se simultaneamente duas lógicas: a lógica do nível tex-tual e a lógica dos episódios e das histórias que do texto emerge. Quando duas personagens actuam do mesmo lado, fortalecem-se uma à outra; numa relação de disputa, uma forta-lece-se enquanto a outra enfraquece. Esta técnica narrativa fica sempre circunscrita ao palco específico onde o episódio tem lugar. Na viragem para o episódio seguinte, os papéis heróicos (e os seus contrários) podem mudar sem que o que antes se passou afec-te o que agora acontece. As «sombras» cómicas e lastimáveis das personagens são tão in-terpretáveis como a substância e as acções dos heróis. A epopeia oKalevala, na verdade, é também simultaneamente o conjunto das suas abordagens teórico-interpretativas e o conjunto dos modos como tem sido aproveitada.

Notas1 Artigo publicado em KNUUTTILA,

Seppo e PIELA, Ulla (eds.), Kaleva-lan hyvät ja hävyttömät. Luonteet eeppisellä näyttämöllä, Helsinki, SKS, 1999. [Os Bons e os Desavergo-nhados de Kalevala: Personae no Cenário Épico]. Em finlandês, o éti-mo da palavra «sombra» significa a identidade da pessoa: a «sombra» é o «próprio». Esta ideia tem origem na cultura xamã da Sibéria. (N.T.)

2 Existem várias versões distintas de Kalevala compiladas por Elias Lönnrot, entre as quais: Primeiro

Kalevala de 1833, o Kalevala Anti-go de 1835 (que contém trinta Can-tos), Kalevala de 1849 (com cin-quenta Cantos), que é conhecido como a Epopeia Nacional da Fin-lândia, e o Kalevala Escolar de 1862, que contém, além de cinquen-ta Cantos abreviados, um glossário e notas explicativas para os leitores. (N.T.)

3 O Sampo, cuja definição é incerta, é o elemento mais misterioso e dese-jado em Kalevala. Proporciona fe-licidade e prosperidade a quem o possui (vide nota nº 54) (N.T.).

4 Tuonela significa o lugar da morte. Para chegar lá, é preciso atravessar o rio Tuoni. (N.T.)

5 Na pintura de Akseli Gallen-Kallela (1865-1931), fortemente ligada aos cenários e às personagens de Kale-vala, os descendentes de Märkähat-tu são ladrões andróginos que, no Inverno de 1918, durante a Guerra Civil e após a independência da Fin-lândia em 1917, pretendem destruir a pátria finlandesa. (N.T.)

6 Tiera é companheiro de armas de Lemminkäinen. Tal como Lemmin-käinen, é estouvado e também aban-dona uma jovem esposa, a mãe e a família para partir para a guerra, ansioso por combater. (N.T.)

7 Ainda hoje a palavra finlandesa «pak-kanen» designa uma geada muito forte, com temperaturas negativas.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO

MERJA DE MATTOS-PARREIRAANA ISABEL SOARES

O livro que agora se edita é fruto de quatro anos de intenso trabalho de leitura, estudo e conhecimento da epopeia Kalevala. Durante esse tempo, pudemos tomar contacto mais aprofundado com a cultura que originou os poemas, com o que resta das múltiplas tradições que representam e com o seu significado para o mundo finlandês de hoje. Seria demasiado exaustivo – e enfadonho – listar cada uma das dificuldades encontradas ao longo processo, das descobertas feitas, da satisfação de um verso. Porém, consideramos de alguma utilidade referir aspectos que se foram tornando presentes à medida que nos embrenhávamos no texto, nas imagens e nas culturas de Kalevala. Não se trata de informação essencial à compreensão, nem à simples fruição da leitura destes versos – para tal, é claramente dispensável. Mas o seu registo poderá complementar a surpresa, clarificar diferenças e, esperamos, espicaçar curiosidades.

O poema épico Kalevala resulta de uma recolha feita pelo médico Elias Lönn-rot de canções, fórmulas e histórias da tradição oral da zona da Carélia, actual sudeste da Finlândia e sudoeste da Rússia. Uma primeira versão desta recolha foi apresentada em 1833. Em 1849, já depois de uma segunda edição, o poema foi revisto e publicada a terceira versão definitiva – Kalevala de 1849 –, assim conhecida internacionalmente e que serviu de base à presente tradução. Seguimos de perto o texto fixado nessa terceira edição, até no que à separação das estrofes

diz respeito – daí, por exemplo, a inclusão de asteriscos entre determinados cantos ou parcelas de cantos, sem que haja necessariamente alteração de cenário da acção ou de personagens.

O finlandês em que os versos de Kalevala foi fixado no século XIX não corres-pondia com precisão à língua corrente de Lönnrot: trata-se de uma linguagem trabalhada, mudada nos seus aspectos já complexos para uma hibridez poética que sublinha essa complexidade e a torna ao mesmo tempo sedutora e distante. Um dos modos de acentuar tal distância e apelo são os seus profundos traços de iconicidade, a sua relação de proximidade com referentes, mais ou menos simbólicos da cultura finlandesa, visíveis, por exemplo, nas muitas onomatopeias presentes ao longo do texto. A ideia geral desta iconicidade faz com que não se encontrem muitas vezes sentidos exactos transmissíveis através de expressões frásicas claras apenas nas pa-lavras que as constituem, mas em vez disso a valorização permanente dos aspectos sonoros, rítmicos, musicais, do texto.

A linguagem de Kalevala, mais ainda do que o finlandês actual, abunda em palavras onomatopaicas. A dicção desta língua poética, fundada na riqueza musical, rítmica, dos versos, oferece ao leitor uma profusão de sons enraizados nos ruídos da natureza: referências aos elementos naturais, como a trovoada, os ventos, o tropel dos cavalos ou o riscar dos trenós no gelo e na neve, fazem produzir sons que se aproximam das palavras que os designam. Ora, precisamente essa riqueza formal e melódica foi o que se transformou no desafio maior, durante o nosso trabalho de tradução da epopeia para a língua portuguesa. A escassez na língua portuguesa, relativamente ao finlandês, daquele vocabulário de onomatopeias (verbos de som das aves, dos ruídos de instrumentos caseiros, etc), assim como dos verbos de ac-ções comuns (tão comuns como «caminhar» ou «andar») ou de nomes de objectos do dia-a-dia (como o trenó ou o tear, mais as peças que os compõem) dificultou, mas ao mesmo tempo estimulou a procura de correspondentes fórmulas ritmica-mente plenas e narrativamente claras, que dessem conta do fio da acção, da riqueza de cenários e personagens e da complexidade das intrigas, enquanto permitissem ao leitor lusófono uma leitura fluida. Sempre que sentimos necessário, acescenta-mos em nota, no final do livro, informações sobre os nomes próprios e a sua relação com os elementos naturais, a mitologia, ou o contexto do uso actual de uma expres-são em finlandês. Foi também para as notas que remetemos as designações latinas das espécies animais e vegetais referidas no poema, sempre indicadas em itálico. Se

a nossa escolha tiver pecado por menos literal - ou por menos poética -, poderão ali os leitores saber que espécie se refere através de determinado nome; para tal, foram-nos essenciais os dicionários de inglês-finlandês-inglês, organizados por Raija Hurme, Riitta-Leena Malin, Olli Syväoja e Maritta Pesonen.

O finlandês distancia-se ainda do português não apenas por não ser uma língua latina, mas por não integrar sequer a grande família de línguas indo-europeias em que a língua portuguesa se inclui. Na sua origem, é aparentado com línguas do Oriente Próximo (o grupo de línguas Urálicas) – os seus familiares geograficamen-te mais chegados são o estoniano e o húngaro. Este carácter distante está presente ao nível não só do léxico mas, como se disse, de outros aspectos linguísticos rele-vantes. Muitos versos há em que as acções descrtias sucedem sem agentividade humana: o trenó anda, o caminho corre: «correm cavalo e caminho, / o trenó ligei-ro, curta a viagem. / Depressa à aldeia veio: / três caminhos se cruzavam». Estes versos do Canto VIII deixam perceber o carácter animista da cultura xamã presente na epopeia: gramaticalmente, não existe um agente humano expresso e todas as acções, de grande movimento, são protagonizadas, quase de forma automática, pelos elementos ou objectos. Em finlandês, através das declinações casuais (no fin-landês contemporâneo são dezasseis os casos em que um nome ou um adjectivo pode ser declinado), podem construir-se frases completas sem verbo, o que em português dificilmente se consegue – só por si, esta diferença linguística colocaria problemas na transposição entre as duas línguas.

Estes pormenores apenas dão conta das muitas e densas camadas que distan-ciam a cultura e a língua portuguesa do texto finlandês do qual partimos. Talvez se imaginasse, por isso, que o poema agora publicado, pela primeira vez vertido na íntegra de finlandês para português, colocaria dificuldades que impossibilitariam a relação do leitor com aqueles versos, tais personagens e acontecimentos narrados. Mas esses acontecimentos, essas personagens e versos surgem, afinal, com uma fa-miliaridade desconcertante. Os heróis de Kalevala poderiam ser nossos vizinhos, pois se debatem com problemas e em encruzilhadas semelhantes às que desde sempre se registam nas literaturas mais próximas da nossa: o que vem de serem humanos, mais humanos do que divinos, mais frágeis do que valorosos, mais falhados do que perfeitos.

Desde o início, pensamos transpor a aparente lonjura que vai do português ao finlandês juntando ao poema o trabalho de uma outra tradução, a interpretação pic-

tórica dos versos. Para isso, também desde cedo encontramos em Rogério Ribeiro a pessoa justa para essa tarefa: dado o seu contacto com a cultura finlandesa, dada a sua longa experiência de ilustração de poesia, nacional e não só, dado o entusiasmo com que recebeu o desafio e a ele se lançou. Mas a marca da nossa maior falha agiu sobre este outro herói humano e levou-o do mundo da nossa expressão antes de estar com-pleto, perfeito, acabado, o conjunto de imagens que imaginou. A morte de Rogério Ribeiro fez com que sentíssemos frustrada a nossa vontade de perfeição: dos desenhos que acompanham esta edição, raros são os que já considerara finalizados; quase todos têm o tom de esquiço ou de esboço de um pensamento que se quer fixar. Nisso, po-rém, o colocou ao lado do herói central da epopeia finlandesa: fez mostrar o exímio cantor de linhas e cores e exibiu, no mesmo passo, a beleza e a extrema fugacidade do momento do seu cantar. Quisemos dar conta, através da escolha destas imagens (entre as muitas mais preparadas por Rogério Ribeiro), de momentos na narrativa, ou de personagens que, pela insistência com que apareciam entre os seus papéis, se percebe terem cativado a atenção do ilustrador. Esperamos ter feito justiça às vontades que foi desenhando.

Dificilmente teríamos chegado ao fim desta empreitada sem a amizade e o apoio de algumas pessoas. Para que fique registada a nossa gratidão, lembramos aqui a pa-ciência de Paulo Correia e Isabel Cardigos, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira da Universidade do Algarve, o acompanhamento inicial de José Joaquim Dias Marques; as sugestões preciosas e o olhar crítico de Joaquim Manuel Magalhães, o tempo dedi-cado de António M. Feijó e a leitura atenta de Pedro Mexia, a quem demos a ler versões iniciais do poema; a incansável pesquisa e a amizade de Marjatta Luukkonen, Jyrki Näsänen e Salme Jamalainen; a persistência e a fé de Markku e Sirppa Nieminen; e a generosidade de Cisela Björk, Henrique Cayatte e Teresa Ribeiro. Esperamos com esta tradução, trabalho moroso e de amor, agradar a todos eles e aos muitos outros heróis, cada um dos leitores que a vier a conhecer.

Merja de Mattos-Parreira e Ana Isabel SoaresDezembro de 2010

ÍNDICE

CANTO I 41

CANTO II 53

CANTO III 73

CANTO IV 99

CANTO V 121

CANTO VI 133

CANTO VII 147

CANTO VIII 159

CANTO IX 165

CANTO X 175

CANTO XI 185

CANTO XII 193

CANTO XIII 203

CANTO XIV 209

CANTO XV 2 17

CANTO XVI 229

CANTO XVII 237

CANTO XVIII 247

CANTO IXX 259

CANTO XX 269

CANTO XXI 279

CANTO XXII 287

CANTO XXIII 297

CANTO XXIV 31 1

CANTO XXV 321

CANTO XXVI 333

CANTO XXVII 347

CANTO XXVIII 355

CANTO XXIX 361

CANTO XXX 37 1

CANTO XXXI 381

CANTO XXXII 389

CANTO XXXIII 399

CANTO XXXIV 405

CANTO XXXV 9 1 1

CANTO XXXVI 419

CANTO XXXVII 427

CANTO XXXVIII 433

CANTO XXXIX 439

CANTO XL 447

CANTO XLI 453

CANTO XLII 459

CANTO XLIII 469

CANTO XLIV 477

CANTO XLV 483

CANTO XLVI 491

CANTO XLVII 503

CANTO XLVIII 5 1 1

CANTO XLIX 519

CANTO L 543

NOTAS 538

BIBLIOGRAFIA 549

GALERIA DE RETRATOS

Väinämöinen

Mãe de Aino

O jovem Joukahainen

Ilmarinen, o ferreiro

Aino

43

CANTO I

Tem início o poema; 1-102. A virgem do ar desce ao mar 1, e ali, grávida do vento e da água, transforma-se em mãe da água; 103-176. O pato faz o ninho e põe ovo sobre o joelho da mãe da água; 177-212. Os ovos rolam para fora do ninho, quebra-se, e os pedaços dão origem à terra, ao céu, ao Sol, à Lua e às nuvens; 213-244. A mãe da água cria os cabos, as baías e outras margens, lugares profundos e baixos no mar; 245-280. Väinämöinen nasce da mãe da água e voga sobre as ondas durante muito tempo até que finalmente chega a terra, a uma praia; 281-344.

44

A minha mente deseja,o meu pensamento anseiaquer começar a cantar,palavras minhas ditar,cantos familiares derramar,cânticos do povo cantar.Palavras na boca derretemas frases nela escorregamquando a esta língua chegam,nos meus dentes se desfazem. Irmão, ó meu irmão querido,bom companheiro da vida!Vem agora, vem cantar;comigo palavras dizer,ora que nos encontramos,de lugares diferentes vindos!Poucas vezes nos juntamos,tão poucas nos encontramosnestas desoladas terras,tão pobres e tão ao Norte. Junta a tua mão à minha,os dedos entrecruzemosas boas canções a cantar,o melhor ora cantemos,aos queridos que nos ouvem,aos que ora querem saber,os jovens que hoje se erguem,o povo que está a crescer:aquelas palavras mágicas,esses afinados cânticosdo bornal de Väinämöinen2 ,da forja de Ilmarinen,da espada de Kaukomieli 3 ,do arco de Joukahainen,dos campos lavrados a Norte

charnecas de Kalevala. Canções que o meu pai cantavaao talhar o cabo do machado;canções que a mãe ensinavaao passar a lã pelo fuso,eu pequenino no chãoa ver o joelho mexer,pobre babado de leite,sujo de soro, pequeno.Ao Sampo palavras sobravam,a Louhi4 os sortilégios:o Sampo envelheceu nas palavrasLouhi nos sortilégios sumiu,Vipunen nos lais morreu,Lemminkäinen em diabruras. Há ainda outras palavrassão mágicas, da tradição:nos caminhos recolhidas,do meio da urze arrancadas,dos galhos secos puxadas,de árvores novas tiradas,pelo feno afagadas,dessas vielas rasgadas,quando a pastorear seguiacom o gado nas pastagens,na riqueza da turfeira,pequenos montes dourados,atrás da Muurikki negra,da Kimmo de muitas cores. Cantos o frio recitou,a chuva poemas me disse.Canções os ventos trouxeram,outras as ondas do mar.O planar das aves, palavras,frases as copas das árvores.

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Com elas o novelo fiz,arranjadas enrolei.No trenó pus o novelo,no trenel novelo meti;no trenó para casa o levei,no trenel para o celeiro,a um canto ali o deixei,numa caixinha de cobre. Semanas ao frio ficou,por muito tempo o esqueci.Tirarei do frio os cânticos,do gelo as canções extraio,para o lar a caixa levo,sobre o banco a caixa deixo,debaixo da trave mestra,por baixo do belo tectoabro a arca das palavras,começo então a cantar,o novelo a desenrolar,os seus nós desatarei? O canto bom cantarei,canção tão bela que ecoe,de comida do centeioou da cerveja do malte.Se cerveja não houver,o malte não me oferecerem,com magra boca direi,com água só cantareipara a nossa noite alegrar,para a luz do dia honrar,para o prazer de amanhãa manhã que ora começa.

*** Assim foi que ouvi dizer,assim soube recitar:

sozinhas as noites vêm,sós os dias amanhecem;sozinho veio Väinämöinen,o eterno bardo surgiudaquela esbelta prenhadade Ilmatar, sua mãe. Era intacta, filha do ar,linda esbelta da natureza.Muito tempo virgem estevetodo o tempo imaculadanos jardins vastos do ar,nas planuras dos terrenos. Os dias lhe aborreciam,a vida estranhava elapor sempre se saber só, sempre virgem se sabernos jardins vastos do ar,na deserta desolação. Então a virgem desceuaté às ondas baixou,ao dorso forte do mar,o mar aberto, mar amplo.Veio uma rajada forte, do Leste o vento zangado;o mar em espuma se fez,em vagas se levantou. O vento embalou a donzela,a onda a virgem levousobre o dorso azul do mar,naquelas vagas em espuma:até ao ventre soprou,o mar prenhada a deixou. Carregou pesado ventre,ventre cheio, dolorososete séculos carregou,

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CANTO I

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mais de nove gerações;nascimento não se dava,não se desprendia o ser. Rolava a donzela, mãe da água.Nadou para Leste, para Oeste,para Nordeste, para Sul,em todas as praias do ventocom a dor do parto ardente,com grande aflição de ventre;nascimento não se dava,não se desprendia o ser. Então baixinho chorou;assim disse, assim falou:«Coitada de mim, meus dias,pobre deste meu caminho!Eis-me eu aqui chegada: debaixo de vento sempre,pelo vento eu embalada,pelas ondas conduzida,nestas águas assim amplas,no dorso das suas ondas! «Melhor seria que fossesempre donzela do ar,do que rolar eu agoracomo mãe de água rolar:aqui onde estou faz friotremo aqui de sofrimento,enquanto nas ondas vivernestas águas eu rolar. «Ó Ukko5, supremo deus,criador do ar, de tudo!Vem, que preciso de ti,acode, pois és chamado!Liberta a serva da dor,da dor do ventre a mulher!

Acode depressa, vem,mais depressa, que és preciso!

Algum tempo ainda passou,alguns momentos passaram.O pato6 chegou, tal flecha;em seu voo planado veio,lugar para o ninho buscou,um sítio para morar. Voou para Leste, para Oeste,para Nordeste, para Sul,lugar nenhum encontrou,nem mesmo um lugar ruimonde o seu ninho fizesse,um lugar para ficar. Lento planou e planou,pensou, pensou, reflectiu:«Farei no vento o meu lar,nas ondas a minha casa?O vento a derrubará,as ondas o lar levarão.» Eis senão, a mãe da água,eis que a donzela do ar,do mar o joelho ergueu,das vagas o torso subiupara onde o pato estava,o leito onde repousou. Aquele gracioso pato lentamente volteou.Nas águas viu o joelhonas ondas azuis do mar;pensou ver torrão de ervaerva fresca, verdejante. Lento planou e planou,,sobre o joelho pousou.

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Ali o seu ninho fez,seus ovos dourados pôs:seis ovos eram de ouro,o sétimo de ferro era.

Deu em chocar os seus ovoso joelho em aquecer.Chocou um dia, mais outro,terceiro dia chocou. Eis senão, a mãe da água,eis que a donzela do ar,sentiu o fogo a queimar,a pele sentiu arder;pensou que o joelho ardia,que as veias se derretiam. O joelho sacudiu,os seus membros fez tremer:na água os ovos rolaram,nas ondas do mar rolarammil pedaços se fizeram,em pedaços se quebraram. Até ao lodo não foram;na água não se afundaram.Bons esses grãos se fizeram,belos pedaços tornaram:a parte baixa da cascana mãe-terra se tornou;a parte que era de cimao céu altivo formou,a gema, de tão brilhante,o Sol a brilhar ficou, a parte que era da claradeu como a Lua em luzir;todas as cores daquele ovoestrelas no céu se puseram,

as pintas negras da cascaforam as nuvens no ar.

Ia-se o tempo escoando,iam os anos seguindona luz desse novo Sol,no brilho da nova Lua.Ainda a mãe da água flutua,mãe da água, donzela do ar,nas águas calmas vogando,naquelas ondas etéreas,à frente as águas imóveis,atrás o sereno céu. Já o nono ano avançava,ia no décimo Verão,do mar a cabeça ergueu,sua fronte levantou.Então a ordenar começouas partes que recebeuno dorso calmo do maro mar aberto, mar amplo. Onde ela a mão apontouuma península clareou,onde com o pé pisoupara o peixe grutas cavou;sob a água a respirar,fez o profundo do mar. Daí para terra tornoupraias lisas estendeu;para a terra os pés viroufez as malhas do salmão;na terra a cabeça deitou:as baías desenhou. Para longe da terra nadou,no dorso do mar aberto:

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no meio do mar rochas fez,os baixios aparecerpara naufrágio dos navios,a morte dos marinheiros.

Estavam dispostas as ilhas,no mar os rochedos feitos,erguidos pilares do céu,as terras, os continentes;letras nas rochas inscritas,linhas nas pedras marcadas.Mas Väinämöinen não nasce,o bardo eterno não vem. O velho sábio Väinämöinenanda no ventre da mãe,durante uns trinta Verõesmais outros tantos Invernosali sobre as águas calmas,nas ondas etéreas está. Pensou, pensou, reflectiu:como estar, como viverno seu escuro esconderijo,em casa tão apertadadonde nunca a Lua vê,onde nunca sente o sol. Então disse estas palavras,nesta frase pronunciou:«Lua, ajuda – Sol, liberta,Ursa Maior, sê meu guiapor estas portas estranhas,desconhecidos portões,deste ninho pequenino,de casa tão apertada!Leva à terra o viajante,leva ao ar este teu filho,

para ver a Lua do céu,o esplendor do sol sentir, a Ursa Maior estudar,as estrelas contemplar!»» Como a Lua não ajudounem o Sol o libertou,durante tempo estranhouem sofrimento viveu:um dia, o portão moveucom o anelar sem nome7

num rompante o fecho abriucom o dedo do pé esquerdo,as unhas sobre a soleira,os joelhos na entrada.Dali para o mar deslizou,as ondas com a mão apartou;homem à mercê do mar,entre as ondas o varão. Cinco anos aguardou,cinco anos, depois seis,sete mesmo, uns oito até.Por fim, nas ondas estacounum cabo sem nome parou,num continente sem árvores. Sobre os joelhos se ergueu,só com a ajuda dos braços.A ver a Lua se ergueu,do sol o esplendor sentir,a Ursa Maior estudar,as estrelas contemplar. Nasceu assim Väinämöinen,o valente trovador,da esbelta, da linda prenheda sua mãe, Ilmatar.

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CANTO II

Väinämöinen sobe a uma terra sem árvores e faz com que Sampsa Pellervoinen as plante; 1-42. No início, o carvalho não quer brotar, mas quando é semeado de novo ergue-se da terra e espalha-se pelo mundo inteiro, impedindo com os seus ramos o brilho da Lua e a luz do Sol; 43-110. Um homem pequeno vem do mar e abate o carvalho; a Lua e o Sol podem brilhar; 111-224. Os pássaros cantam nas árvores; a erva, as flores e as bagas crescem na terra; falta apenas que cresça a cevada; 225-236.Väinämöinen encontra sementes de cevada na areia da margem, limpa uma clareira e deixa uma bétula para as aves pousarem; 237-264. A águia está feliz por lhe terem deixado uma árvo-re onde pousar e faz fogo para que Väinämöinen possa limpar a clareira; 265-286. Väinämöinen semeia a ce-vada e pede a bênção do seu crescimento, desejando êxi-to para os tempos futuros.

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Levantou-se Väinämöinenos pés na terra pousouna ilha do meio do mar,sem árvores o continente. Muitos anos lá ficou, ali foi sempre vivendo,numa ilha sem palavras,sem árvores o continente. Pensou, pensou, reflectiu,muito tempo cogitou:quem virá semear a terraQuem sementes lançará? Pellervo8 , o das lavradas,Sampsa, aquele rapazinho,ele a terra semeará,as sementes lançará. Para semear se dobrou,pântanos semeou, terras, semeou clareiras abertasaté rochosos penedos. Pinhais semeou nos montes,de abetos colinas encheu,os mantos de terra com urzeos vales com rebentos de árvores. Nos vales húmidos bétulas,amieiros na terra solta,no chão fresco as cerejeiras,salgueiros9 na fresca terra,em chão sagrado sorveiras10 , chorões11 nos terrenos prenhes, os zimbros12 em terras áridas,os carvalhos nos estuários. Deram as árvores em subir,jovens rebentos ergueram.Abetos de copas floridas,

pinheiros de ramos frondosos.Nos vales húmidos bétulas,amieiros na terra solta,no chão fresco as cerejeiras,os zimbros nas terras áridas,nesses zimbros belas bagas,bagas boas na cerejeira.

O velho sábio Väinämöinen,o seu trabalho foi ver,a sementeira de Sampsa,de Pellervo a tal lavoura.As árvores erguidas viu,jovens rebentos subidos;só o carvalho faltava,era a de Deus sem raízes. Deixou o maldito em sossego13, à sua paz já entregue;ainda três noites esperouo mesmo número de dias. Dali seguiu para o veruma semana passada:não crescera ainda o carvalho,era a de Deus sem raízes. Viu então quatro donzelas,Noivas da água são cinco.Estavam a ceifar a relva,erva nascida do orvalho,no fim do cabo de névoa,da ilha da cerração;o que ceifaram, varreram,tudo com grade limparam. Do mar então veio Tursas14,das ondas o macho se ergueu.As ervas incendiou

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