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Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho
Campus de Marlia
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
KANT E A EPIGNESE
Niege Pavani Rodrigues
Marlia
2014
2
Niege Pavani Rodrigues
KANT E A EPIGNESE
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia da Faculdade
de Filosofia e Cincias UNESP, Campus
de Marlia como parte dos requisitos para
a obteno do ttulo de mestre na rea de
concentrao de Histria da Filosofia,
tica e Filosofia Poltica, linha de
pesquisa Histria da Filosofia.
Orientador: Professor Doutor
Ubirajara Rancan de Azevedo Marques
Agncia financiadora: CAPES
Marlia
2014
3
Rodrigues, Niege Pavani.
R696k Kant e a epignese / Niege Pavani Rodrigues. Marlia,
2014.
77 f. ; 30 cm.
Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Filosofia e Cincias, 2014.
Bibliografia: f. 74-77
Orientador: Ubirajara Rancan de Azevedo Marques.
1. Epignese. 2. Kant, Immanuel, 1724-1804. 3. Filosofia da
natureza. 4. Filosofia alem. I. Ttulo.
CDD 193
4
Niege Pavani Rodrigues
KANT E A EPIGNESE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Filosofia da Faculdade de
Filosofia e Cincias UNESP, Campus de
Marlia como parte dos requisitos para a
obteno do ttulo de mestre em filosofia.
Linha de pesquisa: Histria da Filosofia,
tica e Filosofia Poltica.
Orientador: Professor Doutor Ubirajara
Rancan de Azevedo Marques
Agncia Financiadora: CAPES
Data da defesa: 05/12/2014, s 10 horas.
Membros componentes da Banca Examinadora:
Presidente e Orientador: Professor Doutor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques. UNESP,
campus de Marlia.
Membro Titular: Professor Doutor Mrcio Benchimol de Barros. UNESP, campus de Marlia.
Membro Titular: Professor Doutor Olavo Calbria. UFU Universidade Federal de
Uberlndia.
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Filosofia e Cincias.
UNESP Campus de Marlia
5
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos mais sinceros a todos os amigos e famlia que estiveram
afetuosamente ao meu lado durante este trajeto. Aos meus pais Maria Jos Pavani e
Edison Rodrigues, irmo Edison Rodrigues Junior, sem os quais nenhuma palavra
poderia ter sido escrita. Lembro tambm os queridos Fabiano Souza, Thaisa Reino,
Gabrielle Massela e Thais Bunduki, por todos os momentos em que demos as mos e
nos divertimos. A Oscar Sillmann, por ter sido o melhor dos companheiros.
Lembro tambm com gratido todos os professores do DFil que estiveram presentes em
minha formao acadmica, e do mesmo modo os servidores tcnico-administrativos
por todo servido prestado e amizade cultivada, principalmente Edina Bonini. Reservo
um agradecimento especial aos professores Mrcio Benchimol e Reinaldo Sampaio que
tiveram participao fundamental em minha pesquisa desde a graduao; e, sobretudo o
professor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, pela orientao deste trabalho.
Agradeo tambm a CAPES pelo suporte financeiro a esta pesquisa.
6
RESUMO
A proposta desta dissertao investigar a filosofia de Kant e sua relao com a teoria
da epignese. Considerando-se as declaraes do prprio filsofo feitas no 81 da
Crtica da Faculdade do Juzo, no qual ele defende a teoria da epignese, considerou-se
como valiosa ferramenta analtica avaliar as fontes, relevncia e significado que esta
relao pode ou deve ter em seu sistema filosfico.
PALAVRAS-CHAVE: Kant. Epignese. Pr-formao. Pr-formao genrica.
Organizao Original.
7
ABSTRACT
The goal of this dissertation is investigate Kants philosophy and his relationship beside
the epigenesis theory. Considering his own declarations stand in the 81 of the
Critique of the Power of Judgment, which he defend the epigenesis theory, was
considered as a value analytic tool for survey the sources, the relevance and the
meaning what this relation can might fill in his philosophical system.
KEY-WORDS: Kant. Epigenesis. Preformation. Generic Preformation. Original
Organization.
8
SUMRIO
Introduo ..................................................................................................................... 9
Captulo 1: A Cincia dos Filsofos ............................................................................... 12
1.1 O Novo Esprito Cientfico ....................................................................................... 12
1.2 Embriologia e Teleologia .......................................................................................... 19
Captulo 2: Artificialismo e Gerao dos Organismos ................................................... 19
2.1 Beleza, Ordem e Perfeio na Natureza .................................................................... 22
2.2 A Unidade das Regras da Natureza ........................................................................... 25
2.3 Epignese e Pr-formao em Buffon e Maupertuis ................................................. 28
Captulo 3: O Sistema da Epignese da Razo Pura ................................................... 38
3.1 A Concluso da Deduo Transcendental .............................................................. 38
3.1.1 Epignese e Categorias ........................................................................................... 39
3.1.2 Ambivalncia e identificao de vocabulrio embriolgico na Analtica......... 46
Captulo 4: Pr-formao genrica e o conceito crtico de epignese ........................ 50
4.1 O conceito de organismo ........................................................................................... 50
4.1.1 Mecanismo, teleologia e o mtodo de pesquisa transcendental da
natureza....................................................................................................................................... 58
4.2 Pr-formao genrica e o conceito crtico de epignese ....................................... 64
Consideraes Finais ...................................................................................................... 73
Referncias Bibliogrficas ............................................................................................. 74
9
SIGLAS
Todas as referncias que remetem aos originais de Kant seguem as normas da
Akademie-Ausgabe, disponveis, por exemplo, em:
.
10
INTRODUO
Considerar a relao de Kant com a teoria da gerao dos organismos por
epignese pode configurar tarefa equvoca e, por isso mesmo, de difcil interpretao.
Ser, pois, neste recorte instvel que este texto se instalar, procurando ensaiar a
respeito da fonte, relevncia e significado que esta relao pode ou deve ocupar no
sistema da filosofia crtica kantiana.
De antemo, pormenorizando a identidade da temtica anunciada, cabe dizer que
se escolheu aqui ler os textos de Kant enfocando seus conceitos a partir do j
mencionado subtpico incidente em seu pensamento: as teorias embriolgicas que
explicam a gerao dos corpos organizados seja por gerao espontnea, por pr-
formao ou [a que parece reter maior ateno e apreo do filsofo] por epignese.
Tal elemento secundrio ocorre de modo significativo na composio textual em
trs trechos de obras para este propsito selecionadas; a saber: (i) a Quarta
Considerao da primeira parte do ensaio pr-crtico de 1763-1764 O nico
Argumento Possvel para uma Demonstrao da Existncia de Deus; (ii) o 27 da
Deduo Transcendental da Crtica da Razo Pura [presente na edio B da obra, de
1787]; e, por fim, o mais expressivo trecho, (iii) o 81 que compe a Doutrina do
Mtodo da Faculdade de Juzo Teleolgica da Crtica da Faculdade do Juzo [de
1790].
Em cada um desses trechos ser possvel identificar a presena da influncia das
teorias embriolgicas supracitadas; (i) em sentido indireto, uma vez que Kant alude s
suas teses centrais sem nome-las; (ii) em sentindo metafrico, valendo-se destas para
criar uma figura de correspondncia entre as funes da gerao dos organismos e o uso
das categorias puras do entendimento pelo sujeito transcendental; (iii) em sentido
literal, assimilando alguns dos pressupostos da teoria da epignese em associao
com a especificidade da aplicao do seu conceito transcendental [conformidade a fins]
pelo qual atua a faculdade de julgar reflexionante.
11
Indicado o percurso, tratarei de responder a duas indagaes preliminares ainda
nesta introduo, indagaes estas que foram tomadas como diretrizes da produo
desse texto. A primeira a indicao de quais elementos certificam que a perspectiva
aqui adotada [a de ler Kant em suas entrelinhas e interpret-lo por entre seus temas
secundrios] de fato aperfeioa a compreenso textual de sua obra. Num segundo
momento ser preciso perguntar pelo modo como o filsofo valeu-se dessas teorias,
considerando a especfica aplicao em cada texto, e vislumbrar se nos permitido
conjecturar sobre os traos da opinio que teria deixado Kant por entre seus usos da
linguagem embriolgica.
A base terica que fundamenta as respostas a ambas essas questes encontra-se
na influncia aqui assimilada do mtodo de interpretao designado histria das
fontes, que associa a presena destas aos componentes internos que o compem o texto
filosfico1. Tal escolha metodolgica justifica a linha de leitura aqui adotada, que
pretende, como j apontado, desenvolver ferramentas subsidirias para a anlise da
estrutura do texto de Kant, configurando assim um exerccio ensastico para o
tratamento das obras propriamente citadas no percurso dessa dissertao. Dito isso,
acompanharei a concluso de Hinske quanto escolha por uma historiografia das
fontes, pois:
[...] no es posible comprender a un clsico de la filosofa solamente por
s mismo, sino que es necesario someter a examen tambin las fuentes.
Estas resultaban inmediatamente claras a los contemporneos de um
autor y las referencias se comprendan sin ninguma dificultad, porque se
mova, de forma directa y natural, en un contexto que hoy, para
nosotros, se ha perdido 2.
Com isso pretendo afirmar que possvel responder assertivamente s duas
indagaes postas de modo preliminar logo acima. Isso porque, tal como expressa a
citao acima, clara a expanso promovida por uma metodologia assistente na leitura
estrita do texto filosfico; metodologia essa que em nada deve ser associada a uma
hierarquia dos elementos de composio textual em sentido geral [histrico e material],
mas antes ampliao e preciso das origens do mesmo. Ficar claro no
1 Cf. HINSKE, N. 2004.
2 Id., p. 16.
12
desenvolvimento deste texto que no irei to longe, nem sendo a tanto que o presente
trabalho prope-se. O horizonte, com toda certeza, est na origem, mas, por ora, os
olhos estaro atentos a uma perspectiva de iniciao, a uma arqueologia mais densa,
como quer Hinske.
Nesta tipologia das fontes dos escritos de Kant, concentrar-me-ei somente em
dois tipos, quais sejam: (a) as declaraes redigidas pelo prprio Kant, em que se
podem constatar afirmaes do filsofo com dependncia e relao a outros autores que
tratem de tpicos e teorias biolgicas, e (b) o ambiente filosfico-cientfico em torno do
qual a filosofia kantiana foi elaborada. Como j afirmara Hinske 3, esta , certamente, a
mais delicada e problemtica das fontes a se considerar, dada a no correspondncia dos
relatos feitos por diferentes testemunhas dos fatos considerados. Ainda que se esteja
apenas procurando por termos que apontem para uma grande semelhana do dito por
Kant com relao a outros pensadores, preciso investigar com cuidado quo longe
podem ser levadas tais semelhanas em nossas anlises e concluses. Por esse motivo,
apesar de me valer de relatos e correspondncias de Kant com outros autores, procurarei
ter presente a bibliografia secundria mais expressiva a respeito, a fim de ponderar
concluses possveis em diferentes perspectivas. Contudo, tambm se deve ter em
mente aqui que, apesar da plausibilidade de cada interpretao possvel no tocante aos
cenrios intelectuais que se relacionaram com o pensamento kantiano, o contexto
original [como diz Hinske] se perdeu. Esta maneira de conduzir a leitura aqui
apresentada s colabora, ainda mais, com a pretenso inicial de observao e
considerao dos laos de Kant com seus temas de segunda ordem.
Dito isso, ser preciso, antes de apresentar minhas consideraes sobre cada um
dos excertos j indicados, construir um glossrio, de maneira bastante genrica, de
alguns conceitos embriolgicos contidos nos textos de Kant e tambm uma perspectiva
geral sobre estas teorias que se deve daqui em diante confrontar.
3 Loc. Cit.
13
CAPTULO UM
A CINCIA DOS FILSOFOS 4
Biologia e Filosofia na segunda metade do sculo XVIII
Seguindo a ordem inversa das fontes do texto de Kant que aqui sero utilizadas,
apresentarei um capitulo primeiro que traar em linhas gerais o cenrio cientfico em
que a Biologia 5 do tempo do filsofo se inscrevia. Sendo assim, terei a preocupao de
realar os seguintes itens a fim de auxiliar a construo dos captulos seguintes.
Inicialmente, ser importante ressaltar que Kant vive imerso em uma poca de forte
desenvolvimento duma (i) nova postura cientfica na Europa. Isso nos leva a procurar
pelos elementos principais que possam ser de interesse histrico para este trabalho.
Subsequentemente, esboarei algumas (ii) definies gerais para as teorias da
epignese e da pr-formao.
1.1 O novo esprito cientfico
A mencionada nova postura cientfica resultante de um ambiente desgastado
com o que diz respeito aos mtodos de pesquisa e aplicao das disciplinas biolgicas
no decorrer do sculo XVII. O novo esprito cientfico, como prefere chamar o
historiador Roger6, est intrinsecamente vinculado ao processo de especializao e
individualizao das cincias mdicas, tanto em sua prtica clnica, quanto na
4 Fao aqui aluso direta a uma das partes [Troisime partie: La Science des Philosophies (1746-
1770)] da obra de ROGER, J., 1993.
5 Como bem destaca em nota SANTOS, L. R., 2012, nota 3, p. 20; o termo biologia inexiste at
a segunda metade do prximo sculo [XVIII], muito provavelmente inaugurado por Christoph Hanov, em
obra de 1766, e difundindo-se de modo mais consistente e regular a partir dos primeiros anos de 1800,
com Lamarck [1802] e Treviranus [1802], por exemplo. Vale lembrar que a palavra biologia ou
Biologie no encontrada em nenhum dos escritos de Kant [conforme consulta realizada no software
Kant im Kontext III].
6 Cf. ROGER, J,. 1993, p. 163-ss.
14
investigao terica7. O atraso gerado por sculos de padronizao destes mesmos
procedimentos incita uma reforma, particularmente associada com um forte
questionamento acerca do peso que a f continha na cura e na pesquisa. Nas palavras de
Roger:
Le mdecine du XVIIe sicle franais n'est pas un chercheur, mais un
enseignant orgueilleux de son savoir; et s'il n'a pas d'etudiants
endoctriner, c'est aux malades qu'il expliquera pourquoi ils souffrent
et pourquoi ils meurent. Ce dogmatisme bavard cette assurance
imperturbable, sont la grande plaie de la mdicine du XVIIe sicle 8.
O que ser interessante notar a mudana metodolgica que este esprito
reformista traz consigo. Principalmente porque ser a partir deste momento da histria
que filosofia, fsica e as cincias da vida [abarcadas pela medicina] tero uma linha de
separao mais evidente 9. Este processo de independncia das disciplinas gerou dois
elementos que sero extremamente consonantes com as caractersticas do sculo
seguinte: (a) reconsiderao dos elementos racionais na participao das investigaes
sobre a vida e o corpo 10
; a (b) secularizao dos temas biolgicos, ainda que de modo
lento e progressivo durante os prximos duzentos anos.
Sobre o (a) renascimento da racionalidade na medicina, Roger ressalta o
discurso de Bourdelot nas conferncias de Bureau dAdresse, em meados de 1670, em
favor da completa construo das cincias biolgicas sobre a experincia, alegando ser a
racionalidade o maior inimigo da cincia na busca pela verdade 11
. Das transcries
mantidas destas conferncias, clebre a interveno de um dos membros da Academia
Bourdelot, Polidor, que dizia ser improvvel que tais alegaes fossem verdadeiras, pois
si ms yeux convainquent mon esprit par ce fait si sensible, mon esprit en dement mes
yeux par des raisons encore plus fortes que ce fait nest asseur 12
. Esse seria um dos
primeiros registros na histria da cincia que registra os prximos passos da
7 Ibid., p. 12-13.
8 Ibid., p. 13.
9 Cf. Ibid., p. 48: [...] la nouvelle physique et la nouvelle philosophie libraient-elles la biologie
de ses chines sculaires. Ce que fut, pour les sciences de la vie, la ranon de cette libert, nous le verrons
plus tard, ainsi que les efforts et les progress qui restaient ncessaires. 10
Ibid., p. 46-48. 11
Ibid., p. 47. 12
Discurso de Polidor in LE GALLOIS, P., Conversations de LAcadmie (n 284), p. 93-94 [os
discursos no possuem datao no arquivo] apud ROGER, op. cit., p. 48-49.
15
epistemologia cientfica do sculo seguinte, no qual a razo passa a ter primazia sobre a
experincia.
Quanto (b) secularizao da temtica biolgica, possvel afirmar que ela no
se restringe somente s disciplinas que tratam dos organismos, mas ao pensamento
cientfico-filosfico em geral. Contudo, no caso dos organismos, abandonar o
fundamento desta de sua origem e manuteno significou lanar aos naturalistas um
grande desafio para preencher o espao que a explicao sobrenatural deixara. Este
movimento remete-nos imediatamente s mudanas metodolgicas ocorridas no seio da
medicina (em a), que entre racionalismo e experimentalismo esgotou as fontes daquilo
que a cincia renascentista podia oferecer incipiente biologia 13
.
Como aponta Lebrun 14
, o texto de Kant de 1786, Uso dos Princpios
Teleolgicos em Filosofia, parece ser um documento fiel deste cenrio, em que pensar a
possibilidade de um corpo vivo requer um complemento para sua forma mecnica, sem
recair numa finalidade tecnolgica 15
, aceitando-se, pois, que seres animados e
capacitados para mover-se sejam orientados para um fim [por exemplo: alimentar-se e
esconder-se de um predador], ou, ainda, se nos concentrarmos somente em seres
humanos, que no podemos reduzir nosso comportamento moral e intelectual a um
mero fruto de arranjo mecnico, desprovido de um fundamento de ordem superior.
Diagnosticar a necessidade deste fundamento no ser, nem de longe, a soluo da
questo, mas, em verdade, sua complexificao.
13
Outro elemento a ser considerado o fato que a crescente separao entre as disciplinas, iniciada
no final do sculo XVII, permitiu novas formulaes e definies ontolgicas dos seres vivos, dessa vez
de cunho organicista, substituindo, assim, a rigidez mecanicista da fsica moderna. Cf. RAMOS, M. C.,
2005, p. 79. 14
LEBRUN, 2002, p. 328-329. 15
Aqui Lebrun refere-se ao pensamento de Descartes, em sua analogia do homem-relgio.
16
1.2 Embriologia e teleologia
Dentre todas as questes postas nossa razo quando nos deparamos com um
corpo vivo, a forma pela qual aquele corpo foi possvel talvez a mais intrigante. Por
essa razo, a embriologia foi uma das disciplinas biolgicas mais complexas e
polmicas at meados do sculo XIX 16
. Dentro da embriologia, certo que os
primeiros estgios da formao do embrio oferecem grande material para discusso
entre os cientistas. Quanto ao tpico embrionrio, questo inaugural de toda
investigao a pergunta pela origem destes embries, sua origem e desenvolvimento, e
os fatores que atuariam sobre estes dois ndices embrionrios.
Das inmeras respostas oferecidas a essa questo, encontraremos duas teorias
que sero importantes para o desenvolvimento deste texto, que so as mencionadas
teorias da pr-formao e da epignese. J de incio as duas apresentam uma
significativa divergncia a respeito da origem dos embries. Para a pr-formao, o
conceito de origem deve ser posto completamente de lado. Isso por que a noo de que
uma vida em particular tenha seu incio no embrio equivocada, uma vez que, para
estes estudiosos, a origem de toda forma orgnica individual e geral esteve no ato da
criao divina. Esta uma das formulaes gerais mais clssicas da pr-formao dos
germes e persistiu entre naturalistas e filsofos at o incio do sculo XVIII 17
. Esta
noo encontrada em alguns dos textos de Kant, dos quais parte deles analisarei nos
captulos seguintes 18
.
16
Certamente muito arriscado afirmar que ela ocupou esta posio somente na era moderna.
Ainda que imensos avanos tenham sido realizados em direo pesquisa gentica, diversos detalhes da
teoria dos genes em associao com tpicos das neurocincias permanecem em estgio de discusso e
investigao. Contudo, corrente na histria da epistemologia da biologia demarcar que, a partir dos
primeiros darwinistas genticos [entre 1890 a 1920, com os primeiros esboos dum projeto que unificava
Darwin e Mendel] as discusses de cunho vitalista/animista foram derrotadas [Cf. HUXLEY, 1860;
MAYR, 1998]. 17
Esta verso da pr-formao teve seu ponto alto de desenvolvimento e adeso antes da metade
do sculo XVII, declinando progressivamente medida que encontrou fortes opositores como Harvey e
Descartes, ativistas de um modelo epigenesista chamado animismo das sementes reprodutivas [Cf.
ROGER, 1993, p. 325]. 18
Em Kant, podemos encontrar menes diretas a essa noo preformista do sculo anterior ao seu,
de forma explcita, em diversas passagens da primeira Crtica. Por exemplo, em KANT, 1983, p. 67 [KrV
B 91] germes e disposies [em sentido analgico]; no prprio 27 da Deduo Transcendetal, em
KANT, 1983, p. 99 [KrV B 167], em que descreve a pr-formao como sistema cujo procedimento est
a cargo de um Autor, que implementaria o germe, deixando a cargo da ocasio o desenvolvimento do
mesmo [em sentido analgico]; ou ainda em KANT, 1983, p. 406 [KrV B 862], noutra aplicao da
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Henry_Huxley
17
De modo geral, podemos dizer que a pr-formao believe that the embryo
preexists in some form in either the maternal egg or the male spermatozoon 19
. Ademais, os
conflitos contidos em ambas vertentes ovista e espermista possuam o centro de suas
concepes vinculado ao conceito de encaixamento [embotement], que
compreende que os organismos encontram-se j criados [no esperma ou nos vulos] e
desdobram-se conforme seu desenvolvimento na gestao e na vida externa ao tero. A
palavra encaixamento expressa bem o modo como os investigadores em questo
encaravam os germes da vida: dobrados, em indeterminadas partes, apenas
aguardando o estmulo apropriado para virem a ser. Como afirmar Roger, Le
dveloppement embryonnaire n'tait donc plus une formation, mais un simple
groissement de parties dj existantes 20
; ou seja: a forma dos corpos j est
determinada desde a criao, o que passa por transformaes e desenvolvimento
apenas sua massa, sua constituio interna, que se expande at o limite da maturidade
biolgica.
Por outro lado, e mais central para a compreenso deste trabalho, temos a teoria
da epignese. Diferentemente da pr-formao, aqui se cr em arranjos originais, ou
seja, na criao do orgnico a partir de nenhuma outra estrutura viva previamente
formada. Neste caso, each embryo is newly produced through gradual development
from unorganized material 21
. preciso, portanto, salientar a diferena entre
previamente formada e no organizado. Nesse caso, previamente formada
equivaleria a organizada, caracterstica essa que distingue as duas teorias por sua
localizao temporal na formao orgnica. Se por um lado a pr-formao desenhada
aprioristicamente, num espao idealstico e formal, o organismo, a epignese, em
oposio, estrutura este corpo no espao fsico objeto da experincia humana. A grande
problemtica que motivou os debates em torno desta teoria se concentrou em torno da
definio de desenvolvimento gradual. Certamente a maior parte das formulaes com
que se depara essa expresso recaiu sobre argumentos metafsicos indemonstrveis, tal
palavra germe [em sentido analgico]. Na terceira Crtica, Kant j parece ter em mente o preformismo
tardio de Von Haller [Primae linea physiologiae, 1747] (*), tambm designado pr-formao
individual, e que j d sinais de superao com respeito a pelo menos duas concepes problemticas,
que so a integral dependncia do desenvolvimento do embrio com relao figura divina e a hiptese
homunculista. Dito isso, preciso ter em mente as consideraes de Roger [1993, p. 325-326] e Bowler
[1971, p. 221-222] sobre a necessria distino entre as concepes de pr-existncia e pr-formao que
circulam entre os sculos XVII e XVIII, e o forte pendor de diminuio dos aspectos destas nas cincias. 19
ROE, 1981, p. 1. 20
ROGER, J., 1993, p. 325. 21
ROE, 1981, p. 1.
18
como a sua rival pr-formao. O elemento epigentico que especifica a matria
indiferenciada e torna vivos os seres definido de muitos modos. Uma destas definies
est presente nos escritos de Harvey, que afirma que a gerao is the result of epigenesis
[] and that all its parts are not fashioned simultaneously, but emerge in their due succession
and order 22
.
Como bem observar Roger, a partir da segunda metade do sculo XVII, a
epignese passa a ganhar cada vez mais defensores, alm de sua maior credibilidade em
contraste com as correntes opostas. Apesar da natureza inconclusiva de conceitos como
emergncia e desenvolvimento gradual, a mentalidade cientfica do perodo
encontrava-se apta a admitir a presena de tal fora animista como a causa primeira da
gerao da vida, seu desenvolvimento embrionrio e, tambm, a fora mantenedora da
vida. Abaixo, nas palavras de Roger, compreende-se o modelo explicativo da epignese:
L'pignse n'offre d'ailleurs aucune difficult srieuse quand on
admet qu'une force interne, quelque nom qu'on lui donne, en assure
l'ordre parfait. Cette formation premire des organes se fait donc
d'abord partir de la semence, et avec la seule matire qu'elle
comporte, puis avec le sang menstruel, gnralement considr
comme la nourriture de l'embryon 23
.
Se de um lado tnhamos a pr-formao, buscando justificar-se entre
reconstrues da histria da humanidade, provando quais e quantos embries j se
encontravam contidos nos rgos reprodutivos dos primeiros homem e mulher criados
por Deus, a epignese oferecia um sistema, um modelo descritivo, nos exatos moldes da
futura biologia, de como um processo de transformao ocorre. Aqui temos a matria
qual a vida est em potncia [semente], a nutrio necessria para o desenvolvimento da
potncia [sangue] e a fora formadora capaz de organizar todos os elementos envolvidos
no processo de transformao. Contudo, como destacamos nos pargrafos anteriores, a
dvida e os questionamentos acerca da origem desta fora formadora perdurar.
Na smula apresentada acima, pr-formao e epignese, afora as peculiaridades
de seus pesquisadores e suas consequentes subteorias especficas, sempre voltaram a
22
HARVEY, 1651, p. 336 apud ROE, 1981, p. 3. 23
ROGER, 1993, p.69.
19
estes elementos bsicos. Tambm note que, dada a ancestralidade do tema, pensar a
origem do vivo sempre foi assunto possvel de retroceder-se at pensamentos e ideias
antigas. Pode-se perfeitamente compreender, por exemplo, porque sempre se vinculou a
extraordinariedade da vida imagem de produo intelectual divina do ambiente e seus
seres 24
. Isso ficar evidente no tratamento dado ao texto de Kant que compe o
prximo captulo, texto primordial dos registros do interesse do filsofo pelas
supracitadas teorias da gerao dos organismos, e que analisarei na sequncia.
24
Intrnseco ao conceito de fim presente na reflexo no Naturalismo est o pressuposto dum
artificialismo da Natureza, ou ainda de uma inteligncia que atua sobre as coisas naturais. certo que o
pensamento teleolgico na biologia encontrar suas razes na ideia de um Artfice da Natureza, e
importante lembrar, sobretudo que est ideia no inaugurada na modernidade, mas muito antes dela.
Em fato, podemos remeter esta noo, pelo menos, sabedoria estica, como podemos verificar nas
palavras de Ccero: Esta regularidade das estrelas, esta extraordinria harmonia eterna das trajetrias to
diversas, no posso conceb-las sem uma inteligncia, uma razo e um plano. E j que estes ltimos so
inerentes aos astros, no podemos no contar os astros no nmero dos deuses. No se poderia acreditar
que essas estrelas, ditas fixas, no manifestam a mesma inteligncia e a mesma sabedoria, j que sua
revoluo cotidiana regular e harmoniosa sem que seu curso seja movido pelo ter nem que elas se
prendam ao cu, como se diz frequentemente quando se ignora a fsica [...]. Portanto, a ordem admirvel e
a incrvel regularidade dos corpos celestes, de onde vem a conservao e a sade do universo, no podem
ser pensadas e desprovidas de inteligncia, a menos que ns mesmos sejamos desprovidos dela. [..]. Eis
como Zeno define a natureza: um fogo artfice que procede metodicamente na gerao. Ele pensa, com
efeito, que o especfico da arte criar e engendrar, o que faz a mo humana nas obras de nossas artes, a
natureza o faz com muito mais arte, ela , j o disse, um fogo artfice, o senhor das outras artes. Grifos
meus. [De natura deorum, ~ 45 a.C., II, XXI-XXII apud DUHOT, J-J., 2006, p. 74-75].
20
CAPTULO DOIS
ARTIFICIALISMO E GERAO DOS ORGANISMOS
Naturalismo e Teologia Fsica no ensaio de 1763-1764
O ensaio O nico Argumento Possvel para uma Demonstrao da Existncia
de Deus, de 1763-1764, pensa os argumentos encontrados no mbito da teologia fsica.
Entre suas reflexes, Kant far uma anlise pormenorizada dos componentes dos
referidos argumentos que provariam a existncia divina atravs dos fenmenos e coisas
da natureza, j aplicando a esta anlise certa perspectiva crtica. Por ser um assunto
demasiado obscuro, Kant reconhece que seu trabalho se limitar a somente eliminar as
arestas das questes, e que, ao fim, o que de til pode ele oferecer um mtodo de
avaliao de argumentos que transbordem a legalidade autorizada, o que acaba por
propor um novo esprito filosfico face s doutrinas metafsicas at ento disponveis:
Aquilo que aqui deixo tambm, apenas, o argumento para uma
demonstrao, um instrumento de construo cuidadosamente
reunido, que posto diante dos olhos para o exame do conhecedor,
para ser completado, a partir dos seus elementos utilizveis, segundo
as regras da durabilidade e da convenincia. To pouco como eu
saberei manter aquilo que apresento como sendo a prpria
demonstrao, as anlises dos conceitos que me sirvo no so
demonstraes. Eles so, ao que me parece, notas correctas dos
assuntos de que trato, aptos para, a partir deles, obter explicaes
apropriadas, utilizveis em si mesmos em prol da verdade e da
clareza, mas aguarda ainda a ltima mo do artista para serem
contados entre as definies. H um tempo em que nos atrevemos a
tudo explicar e demonstrar numa cincia como a metafsica, e de novo
um outro tempo em que s com temor e desconfiana nos arriscamos a
tais empreendimentos 25
.
Parece-me razovel elevar a importncia deste ensaio da juventude kantiana,
sobretudo pelo tema em foco e o dilogo com os grandes sistemas metafsicos. Como
destaca Carlos Morujo em seu texto introdutrio sua traduo portuguesa da obra 26
,
25
KANT, 2004, p. 40. 26
Ibid., p. 27-30.
21
Kant encontrar-se- entre dois argumentos teolgicos. O primeiro o cogito cartesiano,
afirmando a existncia divina a partir do prprio conceito de Deus, sendo para Descartes
uma contradio pensar em Deus (um ser todo perfeito) desprovido de existncia (isto
, de perfeio) 27
. Nesta sentena podemos aduzir que a existncia um contedo
apreensvel atravs destes mesmos predicados atribudos a Deus. Ser importante se ater
a este ponto, pois o esforo fundamental de Kant neste ensaio ser justamente refutar tal
noo de existncia predicativa. Corrigir este ponto da tese cartesiana ser figura
persistente nos trabalhos kantianos at sua fase crtica, como pode testemunhar o
terceiro captulo da Dialtica transcendental na Crtica da Razo Pura 28
.
O segundo ponto crtico ser, de certa forma, uma extenso do primeiro, pois se
trata da resposta leibniziana a Descartes. Ser tambm o ponto mais relevante para o
foco da anlise a que me proponho deste ensaio, por exatamente voltar-se a teses
bsicas do pensamento de Leibniz, pontos estes enlaados com pressupostos da teoria
da gerao dos organismos por pr-formao. Destoando de Descartes, Leibniz
responder que o que possvel ou impossvel a Deus [...] tem o seu fundamento no
prprio Deus, como expresso da unidade da sua natureza, mas somente em funo da
sua vontade de criar 29
. Para compreender a afirmao de Leibniz preciso
compreender sua teoria da expresso 30
, sobretudo em seu aspecto teolgico, que
estabelece a equivalncia funcional entre exprimido e expresso, ou seja, Deus como
aquele que exprime sua vontade no mundo criando atravs do fundamento de si prprio
[onipotncia e irrestrita liberdade de criao], e os seus prprios atributos so a
expresso de sua existncia manifesta. Sendo assim, podemos dizer que temos a prova
da existncia de Deus e, por conseguinte, o conhecemos, porque capturamos a
expresso de sua existncia. Ser deste modo que a equivalncia entre um e outro [Deus
e atributos] mantm-se verdadeira. Sendo assim, tal equivalncia torna-se a medida de
toda expresso divina no mundo, que se detecta por ns como atravs da harmonia
universal, que, como nota-se no desenvolvimento do ensaio de toda a obra kantiana,
ser alvo de duras crticas.
Tendo-se em vista motivaes e influncias para a redao deste ensaio pr-
crtico, ser importante tambm que j nesta fase Kant apresente uma clara marcao
27
DESCARTES, 1995, p. 53. 28
KANT, 1980, p. 299-300. 29
Id., 2004, p. 27. Grifo meu. 30
Cf. LACERDA, 2001.
22
entre os limites que separam a experincia e nossos conhecimentos dela extrados,
sendo este pressuposto que o far opor-se s filosofias em questo. Circulando entre tais
questes que surgir o assunto de nosso maior interesse: as referncias ao mundo
orgnico, a especulao acerca da ordem e perfeio da natureza.
Entre anlise e refutao dos contedos dos argumentos cartesianos e
leibnizianos, Kant se posicionar de modo bastante problemtico, sobretudo no que diz
respeito a um dos grandes argumentos de Leibniz para a atuao divina no mundo, a
saber, a aparncia sistemtica pela qual atua a natureza. Destaco aqui a aparncia de
sistema no modo de agir da natureza, pois esta sensao que ela nos causa tem sua
certeza final residente no mesmo lugar das ideias metafsicas muito alm do alcance
de nosso entendimento. Refora-se esta distncia intransponvel ao se destacar a fonte
do questionamento: o conceito de Deus nos conduz a observar os produtos da natureza
como perfeitos em harmonia e beleza. Contudo, pode-se, a partir da leitura das palavras
de Kant neste ensaio, perceber que sua prpria noo sobre a questo no est
clarificada; muito pelo contrrio.
O texto oferece ao leitor um movimento de reflexo inconclusiva quanto ao
assunto, embora o extrato concentrado dele nos leve a perceber uma negao exaustiva
do conceito de uma natureza como produto de uma inteligncia divina. O diagrama que
nos exposto de um dilema entre regras universais, demonstrveis de forma pura e
objetiva, e, num outro lado, noes diretrizes dadas pela razo, que justificam nossa
impresso de continuidade, finalidade e afinidade 31
. O sentimento que uma ofusca a
outra, e, por conseguinte, preciso abdicar de uma delas. Contudo, seria tarefa
demasiado pretenciosa tentar especificar aqui os detalhes midos desta oscilao.
31
Cf. LEBRUN, 2002, p. 212 e seguintes. Nestas pginas Lebrun apresenta uma interessante
considerao sobre as entrelinhas deste ensaio, que indica para o fato de que esta instabilidade entre
aceitar como fundamento para os produtos naturais ou a mecnica ou a teologia fsica [finalismo] ter sua
dissoluo mais adiante no Apndice Dialtica Transcendental, da Crtica da Razo Pura, com a
formulao e diferenciao dos usos constitutivo e regulativo dos conceitos da razo. Regular e compor
ainda no era uma diferena de base para Kant, apenas uma diferena de mtodo, em sentido objetivo e,
por sua vez, ambos os usos seriam aqui uma confuso do entendimento, em se tratando de um conceito
alm-experincia. O que Kant falar, em alguns momentos [e retomar vocabulrio expressivamente
similar na segunda parte da Crtica da Faculdade do Juzo (Cf. 80; 81 etc.)], a noo de
princpios de uso fsico e princpios do uso hiper-fsico, e o conceito de uma natureza atuando segundo ou
atravs de uma racionalidade , neste contexto, definitivamente fundamentada em princpios hiper-fsicos.
Em suma, possvel, em uma arqueologia prudente, definir que neste ensaio de 63-64, que Kant j
apresenta seu perfil crtico ao escapar de duas alternativas fracas: o finalismo ingnuo e o atesmo;
configurando assim, linhas iniciais das ideias que culminaram no texto das Antinomias.
23
Novamente, o que ser feito nas linhas abaixo isolar e contextualizar a presena de
argumentos biolgicos por entre a estrutura textual.
2.1 Beleza, ordem e perfeio na natureza: a crtica teologia natural
Sem dvida, os meios e os efeitos da natureza assombram homens e mulheres
desde o incio dos tempos. E tambm igualmente antiga a percepo humana de que
estes mesmos meios e efeitos espantam exatamente por produzirem ordem, ao invs de
caos, o que seria lgico, se nos limitssemos a pensar esta natureza como livre de um
condutor e artfice. Na citao abaixo, podemos ter um breve registro de como esta
implicao [ordem na natureza e inteligncia superior] permeia toda a mentalidade do
tema na poca de Kant:
[...] a ordem, a beleza e a perfeio em tudo o que possvel
pressupem um ser cujas propriedades, ou estas relaes esto
fundadas, ou em que, pelo menos, as coisas, relativamente a estas
relaes, so possveis como a partir de um fundamento superior. Mas
o ser necessrio o fundamento real suficiente de todos os outros que
so possveis fora dele; em consequncia, deve encontrar-se nele
aquela propriedade atravs da qual, de acordo com estas relaes, tudo
fora dele pode ser efectivo. Mas v-se que o fundamento da
possibilidade externa, da ordem, da beleza e da perfeio no
suficiente na medida em que no pressuposta uma vontade conforme
com o entendimento. Portanto, estas propriedades teriam de ser
atribudas ao ser supremo 32
.
Mais adiante, l-se:
Todos reconhecem que, a despeito de todos os fundamentos da
produo das plantas e rvores, todavia, arranjos de flores e alamedas
s so possveis por meio de um entendimento que os prejecte e por
meio de uma vontade que os leve a cabo. Todo o poder ou fora
32
KANT, 2004, p. 70.
24
produtiva, assim como todos os outros data para a possibilidade, sem
um entendimento, so insuficientes para tornar completa a
possibilidade de tal ordem 33
.
As duas passagens acima so os primeiros registros dentro do ensaio que
direcionam o olhar para as questes da natureza e a observao de seus produtos. Tendo
parte na memria as oscilaes prprias do ensaio e a robusteza dos conceitos de Kant
no que tange ao uso deste tipo de contedo da razo 34
, preciso afirma que se alude
aqui figura do jardineiro divino, quele que por entre ideias belas, harmnicas e
perfeitas expressa sua vontade, a qual atua sobre a matria dispersa, tornando-a, assim,
obra de seu entendimento. Neste caso, parece impossvel conceber a beleza orgnica
sem ter por fundamento um entendimento que os projecte e uma vontade que os leve
a cabo. Fica ento posto que a beleza seja a marca do seu prprio conceito de Deus nas
coisas, impressa na matria rstica e primitiva.
Fica patente que as palavras de Kant indicam o mesmo sentido de direo ao que
foi aqui j assinalado como a teoria da expresso de Leibniz. Sem fazer coro hiptese
da harmonia pr-estabelecida, a questo est sendo apresentada como veculo
problematizador para o grande assunto do ensaio: como aduzir licitamente a existncia
de Deus atravs de seus indcios no mundo? Ou, melhor: como provar um conceito puro
valendo-se de provas empricas? Seria razo suficiente perceber a beleza e a ordem
natural para da concluir a presena de Deus nos bastidores de seu arranjo?
Expressando uma tendncia tpica de sua reflexo, Kant indicar meios-termos
para a soluo do problema metafsico, salientando dificuldades e rotas alternativas para
eventuais consideraes. Como apontei logo na primeira citao deste captulo a
respeito da dificuldade e dos propsitos que o filsofo tem em vista nesse ensaio, v-se
daqui em diante que o esforo ser o de desviar-se da descrena absoluta, e, igualmente,
da teologia natural. Neste sentido, podemos dizer que a presena de uma mentalidade
naturalista, tal qual exercitada pelos cientistas da vida no sculo XVIII, provocam em
Kant o mpeto de averiguar a questo por outras justificativas que no a vontade de
Deus. Tal movimento de transposio temtica secularizar assuntos filosficos, e,
33
Ibid. 34
Cf. nota 40.
25
sobretudo, introduzir novos elementos para convices que j no mais do conta do
esprito filosfico e cientfico na modernidade.
O primeiro contra-argumento que abrir caminho para um pensamento
alternativo ser constatar que no s de beleza e ordem composta a natureza. Ser este
tambm o argumento de contraste a que me aterei daqui em diante. As foras de
desordem e caos esto presentes no mundo natural com a mesma fora que sua
ordenao; portanto, o fundamento da ordem como causa de todo fenmeno natural no
pode ser estendido de modo irrestrito:
[...] a natureza inorgnica, principalmente, fornece muitos elementos
inexpressos de prova de uma unidade necessria na relao de um
fundamento simples com muitas consequncias que convm com ele,
de modo que se induzido a suspeitar que, talvez a onde na natureza
orgnica muita perfeio parece ter por fundamento que a liga j com
muitos outros belos efeitos na sua fecundidade essencial, de modo que
tambm neste reino da natureza poder existir mais unidade necessria
do que aquela que se pensa 35
.
Ademais do debate aqui referido quanto ao conceito de necessidade e
contingncia dos eventos naturais 36
, nota-se que a categorizao dos eventos que
envolvem organismos e foras naturais bastante distinta. Apesar de Kant sinalizar
ainda nesta passagem e em outros diversos momentos, que talvez tenhamos motivos
ainda mais fortes para pressupor a presena de ordem na natureza inorgnica, a dvida
permanecer, e, de certo modo, ser um fator importante nas consideraes do filsofo.
Esta inflexo presente na essncia do vivo e do no vivo ponto-chave para
compreender a noo de finalidade robusta que Kant procura pensar aqui. Segundo
Lebrun, o movimento ser de transposio, realojamento do tema, retirando-o do campo
teolgico para o naturalstico:
[...] essa finalidade aparente no nada mais do que natural: a
dilatao do ar acima da terra firme provoca, durante o dia, um apelo
de ar marinho, mais denso e mais pesado, e a fora desse vento cresce
com a altura do sol; em troca, o ar marinho, esfriando mais
35
KANT, 2004, p. 93. 36
Cf. HUNEMAN, 2008, p. 107 e seguintes.
26
rapidamente durante a noite, sua contrao suscita uma brisa terrestre.
medida que o naturalista reconhece, desse modo, entre as
harmonias naturais, o efeito de leis fsicas, a idia de benevolncia
divina cede lugar de sabedoria da natureza. Assim, a distino
entre Providncia ordinria e extraordinria transposta e no
suprimida 37
.
A evoluo do dilema, como aponta Lebrun, sero os modelos biolgicos que
associaro fsica e gerao orgnica, como de Buffon e de Maupertuis, exemplificados
pelo prprio Kant e dos quais falarei mais adiante. O que se pode sintetizar, por ora,
que Kant tentar reduzir [ou mesmo eliminar] a participao de Deus nas criaes
originais e atuais, permitindo-Lhe participar somente do ato da criao. Sendo assim, a
forte oposio entre regras gerais da matria e finalidade posiciona a investigao da
natureza orgnica e suas causas no meio do caminho, como um saber intermedirio
entre a fsica dos princpios e as cincias positivas, elabora[ndo] o conceito de uma
necessidade ao mesmo tempo arquitetnica e no teolgica, a idia de uma ordem sem
ordenador 38
. Kant estar junto deste meio-termo, ou ao mesmo tentar a se
posicionar.
2.2 A unidade das regras da natureza
Como j foi dito, o ambiente cientfico-filosfico que predominou do fim do
sculo XVII at os primeiros nos do XIX foi secularista, reduzindo a valorizao e
integrao de componentes desticos no interior das teorias em geral. Deste trao
comum ao pensamento moderno preciso, neste contexto, destacar dois subelementos
fundamentais para compreenderem-se as passagens seguintes de Kant e, principalmente,
o perfil dos naturalistas l mencionados. So estes dois elementos conceituais a
tendncia em (i) unificar leis da natureza para justificar um grande nmero de
37
KANT, 2004, p. 38
LEBRUN, 2002, p. 240.
27
fenmenos, e a disseminao de (ii) escolas embriolgicas que fundiam princpios
teolgicos a leis mecnicas em suas teorias sobre a vida.
O primeiro ponto remete-nos imediatamente ao conceito de que a natureza age
segundo um princpio econmico e, portanto, age de modo harmnico. Contudo,
preciso dizer que no sculo de Kant, sobretudo a partir dos escritos do embriologista e
fsico Maupertuis, h outra concepo de natureza econmica que traa conexes fortes
no com Deus, mas com as leis da mecnica 39
. O princpio de mnima ao o
princpio de economia ilustrado e em sintonia com a predominncia da fsica de Newton
como paradigma da epistemologia cientfica.
O princpio de economia postulava que a natureza opera sempre empregando o
menor esforo ou energia possveis para conseguir um dado fim. Coube aos modernos
repensar o significado e o grau de participao deste fim dentro de suas teorias. Este fim
nem sempre carregar conotao teleolgica. No caso de Maupertuis, ser uma
tendncia inclinada a uma lei mecnica, ou seja, a afinidade entre resultados e leis
mecnicas. O debate circunscrever a definio ontolgica dada ao conceito em
questo, sendo que a vertente metafsica defender a realidade do princpio, e a
mecnica a funo heurstica do mesmo, como uma funo do prprio pensamento. Esta
ltima afirmao certamente um ponto demasiadamente polmico entre os
historiadores da biologia; contudo, optei por mant-lo aqui influenciada pelas
consideraes pontuais do historiador Roger 40
.
39
Cf. MARTINS, SILVA, 2007, p. 625-633. 40
Cf. ROGER, 1983, p. 468-487 e p. 492-496. Esta impresso , principalmente, encontrada nas
duas seguintes passagens de Maupertuis; (a) no campo da fsica, em crtica prova newtoniana da
existncia de Deus: [...] et ds lors on ne peut pas dire que cette uniformit soit l'effet ncessaire d'un
choix. Mais il y a plus: l'alternative d'un choix ou d'un hazard extrme n'est fonde que sur l'impuissance
o toit Newton de donner une cause physique de cette uniformit. Pour d'autres Philosophes qui font
mouvoir les plantes dans un fluide qui les emporte [...], l'uniformit de leur cours ne paroit point
inexplicable: elle ne suppose plus ce singulair coup du hazard, et ne prouve pas plus l'existence de Dieu,
que ne feroit tout autre mouvement imprim la matire [Oeuvres, p. 9, 1756, p. 9 apud ROGER, 1983,
p. 470]; e (b) quanto gerao dos animais: Ne pourroit-on pas dire que dans la combinaison fortuite
des productions de la Nature, comme il ny avoit que celles o se trouvoient certains rapports de
convenance , qui pussent subsister, il nest pas merveilleux que cette convenance se trouve dans toutes les
espces qui actuellement existante? Le hazard, diroit-on, avoit produit une multitude innombrable
dindividus; um petit nombre se trouvoit construit de manire que les parties de lanimal pouvoient
satisfaire ses besoins; dans un autre infiniment plus grand, il ny avoit ni convenance, ni ordre: tous ces
derniers ont pri; des animaux sans bouche ne pouvoient pas vivre, dautres qui manquoient dorganes
pour la gnration ne pouvoient pas se perptuer: les seuls qui soient rests sont ceux o se trovoient
lordre el la convenance; & ces espces, que nous voyons aujourdhui, ne sont que la plus petite partie de
ce quun destin aveugle avoit produit [Oeuvres, p. 9, 1756, p. 11-12 apud ROGER, 1983, p. 471].
28
Fazer equivaler o princpio de economia ao procedimento econmico do prprio
pensamento ser elemento precioso da filosofia de Kant em sua fase crtica; contudo,
prudente assinalar que neste ensaio de 1763-1764 ainda questo em formao e
desenvolvimento, e que s ganhar evidncia significativa no Apndice Dialtica
Transcendental, na Crtica da Razo Pura 41
. Ainda sim, notar a presena do
desenvolvimento histrico deste conceito que aparentemente tanto penetrou as reflexes
de Kant, oferece-nos, certamente, um ponto adicional na observao do processo de
passagem das questes postas aqui neste ensaio de juventude e que se alargaram em
suas obras crticas.
Acredito que ser neste sentido que Kant pensar, com cautela, os ndices a ns
dados para concluir uma unidade e simplicidade da atuao das leis naturais sobre a
matria, e, como veremos a seguir, na gerao dos seres orgnicos. Se, por um lado, a
unidade parece evidente na contemplao da natureza, ainda assim preciso refletir,
abstraindo da influncia dos sobressaltos emocionais os meios pelos quais essa unidade
se apresenta na formao dos quadros naturais:
[...] de facto, por meio de uma to particular unificao do mltiplo
atravs de uma regra to proveitosa, [...] ficar-se- surpreendido e,
com razo, espantado. No h tambm nenhum milagre da natureza
que, atravs da beleza e da ordem que nela domina, d mais motivo de
espanto, excepto se as coisas assim acontecerem porque a sua causa
no se pode ver a com tanta clareza, e ento o espanto filho da
ignorncia 42
.
Pode-se compreender que, em alguma medida, eventuais falsos e fantasiosos
julgamentos causada pelo espanto de nossa admirao diante da complexidade das
formas naturais, sua beleza e simplicidade to sublimem e ao mesmo tempo to teis
humanidade. Talvez seja precisamente pela impossibilidade de se negligenciar a
presena do espanto nas observaes do vivo e do natural que se d o tom de prudncia
nas consideraes kantianas neste texto, e ser neste mesmo fluxo de considerao e
distanciamento que o filsofo tratar das propostas interpretativas das cincias da vida
para justificar as foras naturais e os organismos.
41
Cf. SANTOS, 2012, p. 27 e seguintes. 42
KANT, 2004, p. 78.
29
2.3 Epignese e pr-formao: Buffon e Maupertuis
Como procurei apresentar no tpico acima, o fundamento da lei que d azo a to
amplos resultados e usos dos produtos da natureza, conectando beleza e simplicidade,
age segundo um princpio de economia. Alm das complexidades que o prprio Kant
enfrentou para considerar a veracidade deste princpio, podemos apresentar um dos
modos como ele se aplica na reflexo especfica sobre a organizao das espcies
naturais encontradas em nosso mundo, a saber, a ideia de que animais e plantas so
agrupados por afinidade entre gneros. Como se pode notar, esta ideia de organizao ,
em essncia, derivada do princpio de economia, aplicado apenas com relao especfica
aos organismos.
Em diversos momentos do ensaio o princpio unificador ressaltado como
resposta e via reflexiva obrigatria para o tema natureza e seres vivos. Contudo, as
consideraes de Kant levantam outra questo de grande importncia: seria este
princpio da simplicidade e da unificao das causas, por ser ou derivado de uma
inteligncia superior ou ainda como expresso csmica superior das leis universais da
matria, necessrio, e, por isso, toda ordem natural participaria deste mundo como lei,
tal qual a gravidade, por exemplo? Ou, como perguntar o prprio filsofo: esta
harmonia menos estranha, pelo facto de ser necessria? 43
.
Pressupor que na natureza haja uma necessidade em sua ordenao e que esta
necessidade provenha de uma fora especial e independente das propriedades do espao
indicaria tambm ser possvel que ela [ordem especial] participasse tambm de toda
ligao de causa e efeito observada no mundo. O grande problema, assim parece, a
impossibilidade de admitir um mundo em que coexistam duas legislaes igualmente
participativas, e, ao mesmo tempo, concorrentes. Tendo-se uma ordem do mundo e
outra extramundana, estamos impedidos e paralisados de diagnosticar e ajuizar as
causas dos eventos contidos nele, e assim, nenhum conhecimento ser possvel. Se esta
assuno impossvel para uma filosofia j com carter crtico, preciso considerar
com cuidado as concluses possveis de se extrair de um princpio to elstico e
abrangente.
43
Ibid., p. 78.
30
Por outro lado, como ponto de vista alternativo, considerar a natureza como
exclusivamente mecnica, sendo o mundo e sua natureza viva produto duma sequncia
infindvel de eventos originando resultados aleatoriamente causados por uma lei cega
com relao ao efeito esttico e utilitrio, algo igualmente insuficiente como resposta
para a pergunta original do ensaio: como so possveis (i) os produtos naturais, sua
origem, beleza e utilidade; e (ii) como podemos compreender, de maneira reduzida
quanto ao uso do hiperfsico, o modo como ajuizamos a natureza? Em suma, Kant
parece indicar que a dicotomia se estabelece entre uma posio de criao segundo leis
ou segundo fundamentos particulares. No por coincidncia, esta igualmente a
frmula bsica da dicotomia presente entre os defensores das teorias da epignese e da
pr-formao.
Epignese e pr-formao sempre estiveram emaranhadas entre questes
metafsicas clssicas. A oposio entre o artifcio e o necessidade 44
, o acaso e a
adaptao natural 45
circulam em torno da fundamentao do conceito de fim
teleolgico ou no. Contudo, a ideia de um fim, de um arranjo sincrnico para a
humanidade comea sua narrativa com a defesa de uma hiptese igualmente
sobrenatural para o seu comeo. parte todo criacionismo que possa incidir sobre esta
reflexo, Kant delimitar o assunto em busca de uma justificativa que nos oferea um
fundamento de causa para eventos naturais to extraordinrios. Nas palavras de Kant:
Pode-se escolher uma utilidade entre mil; por isso, se se anseia ter por
fundamento uma finalidade, por meio da qual surge, pela primeira
vez, uma disposio na natureza, pode ver-se como necessrio que
haja uma atmosfera. Concedo tambm isto, e nomeio a respirao dos
homens e dos animais como o propsito final desta organizao.
Ento, este ar, de que tinha necessidade para a respirao, d,
simultaneamente, ocasio, atravs das propriedades referidas e mais
nenhumas outras, a uma infinitude de belas consequncias que o
acompanham necessariamente, e que no precisam de ser promovidas
por disposies particulares 46
.
44
Ibid., p. 80. 45
Ibid. 46
Ibid., p. 81. Grifo meu.
31
Note-se novamente o esforo de Kant para reduzir a amplitude da participao
sobrenatural na natureza orgnica. Ainda que possamos, com certo cuidado, considerar
que o incio das coisas tenha se dado a partir de um fundamento conforme a fim, no h
indicao definitiva de que, uma vez criada, a disposio sofra constantes ajustes por
parte do criador. A atuao destas leis, como a fora elstica do ar, possibilitam, de
fato, um sem nmero de tarefas e campanhas de promoo da continuidade dos seres
naturais. Contudo, a mesma ganha carter formal e independente de qualquer fora
suprassensvel na medida em que manifesta sua linearidade e constncia, ou seja, torna-
se lei e, portanto, participa da ordem natural do mundo. Tal observao sobre as leis
naturais e a convenincia que dela tiramos mero exerccio de reflexo que apresenta
com igual fora indcios contrrio: aquilo que faria uma ordenao encontrada a partir
de uma escolha reflectida [...] de acordo com as leis gerais do movimento, e
precisamente o mesmo principium simples da sua utilidade noutro lado produ-la
tambm a esta sem uma nova e particular disposio 47
, ou seja, descartado o espanto
que nos provoca os efeitos que excitam nosso interesse, no se pode negligenciar a
universalidade absoluta da causalidade refletida na experincia.
Atento aos pontos acima, Kant cita Maupertuis a propsito de sua teoria da
atrao 48
:
[...] o Sr. Maupertuis demonstrou que mesmo as leis mais universais,
de acordo com as quais a matria em geral actua, tanto no equilbrio
como por ocasio de um choque, quer a dos corpos elsticos quer a
dos no elsticos, tanto atraco da luz na refraco como na sua
repulsa ao reflectir-se, esto sujeitas a uma lei dominante, de acordo
com a qual observada, constantemente, a maior parcimnia na
aco. Atravs desta descoberta, as aces da matria,
independentemente da grande diversidade que em si possam ter, so
trazidas a uma frmula universal, que exprime uma relao com a
convenincia, a beleza e a harmonia. No obstante, as prprias leis do
movimento so de uma tal natureza que uma matria nunca se deixa
pensar sem elas, e so to necessrias que poderiam tambm ser
47
Ibid., p. 82. 48
A hiptese da atrao qumica, ou atraccionismo em Maupertuis, fruto de um dos seus
primeiros tratados sobre gerao orgnica [Vnus fsica, 1745] e est intrinsecamente vinculada noo
de afinidade entre elementos qumicos [seminais, nesse caso]. Nas palavras de Ramos: A Vnus
fsica contm a primeira teoria da gerao de Maupertuis. Ela pode ser caracterizada, em linhas gerais,
como uma verso moderna da teoria hipocrtica da dupla semente (trataremos desta teoria no prximo
item) reinterpretada luz da qumica newtoniana. O embrio formado a partir da mistura dos lquidos
seminais produzidos pelos dois progenitores que contm partculas gerativas oriundas de todas as partes
corporais. A unio de tais partculas ocorre graas ao de foras especiais de atrao na forma
de afinidades qumicas [RAMOS, 2004, p. 103]. Alm da verso embriolgica, Maupertuis tambm
desenvolveu uma teoria da atrao cosmolgica, encontrada principalmente no Ensaio de Cosmologia
[Cf. MAUPERTUIS, 1751, vol. 1, p. 21].
32
deduzidas com a maior clareza, sem a mais pequena experincia, da
constituio universal e essencial de toda a matria. O penetrante
sbio que se fez meno sentiu imediatamente que, na medida em que
se produz a unidade na infinita multiplicidade do Universo, e uma
ordem na necessidade cega, tem de haver um qualquer princpio
supremo, do qual tudo isto possa receber a sua harmonia e
convenincia. Acreditou, com razo, que uma conexo to universal
nas naturezas mais simples das coisas forneceria um fundamento
muito mais vlido para algum encontrar, com certeza, num ser
originrio perfeito, a ltima causa de tudo o que existe no mutvel,
segundo leis particulares. E, de agora em diante, tudo depende do uso
que a suprema filosofia poderia fazer desta nova e importante
inteleco [...]. 49
Desta expressiva passagem podem-se elucidar alguns pontos valiosos sobre a
interao kantiana com a teoria da epignese. Identificada a fonte textual especfica s
quais Kant se refere 50
, pode-se apontar ao menos um ponto interessante sobre as noes
defendidas por Maupertuis no texto citado, que a influncia de uma cosmologia de
fundamento teleolgico, sobretudo por influncia dos trabalhos de Newton, e,
consequentemente, que esta cosmologia funda-se em conceitos metafsicos [o princpio
de economia, em particular] 51
. preciso lembrar a esta altura que a divergncia
anteriormente apontada entre as concepes de Maupertuis diante de alguns dos
fundamentos cosmolgicos de Newton 52
um ponto nebuloso se o quisermos usar
como ferramenta para a anlise destas passagens. Esta dificuldade interpretativa d-nos
algumas questes e entre as possveis respostas podemos elencar: (a) que Kant s tem
em mente aqui o Ensaio de Cosmologia, texto esse em que Maupertuis ainda no
estabelece seus pontos crticos diante da obra de Newton, ou que (b) tais divergncias
no foram significativamente identificadas por Kant nos possveis textos em que a
teoria da atrao desempenha funo central, ou ainda que (c) Kant no teve acesso ao
texto, mas a leituras secundrias sobre a teoria de Maupertuis.
difcil determinar a posio de Kant diante do trabalho de Maupertuis valendo
apenas das duas passagens acima. O texto, ao mesmo tempo em que acompanha e
49
KANT, 2004, p. 83. 50
Ver nota 60. 51
Nas palavras de Newton: No devemos admitir mais causas das coisas naturais do que as que
so ao mesmo tempo verdadeiras e suficientes para explicar suas aparncias. A esse respeito, os filsofos
dizem que a Natureza no faz nada em vo, e que algo tanto mais em vo quanto menos serve; pois a
Natureza aprecia a simplicidade e no se veste com os luxos das causas suprfluas [Philosophie
naturalis principia mathematica, livro III, regra I]. 52
Ver nota 51.
33
prolonga a reflexo do cientista, tambm destaca a suposta ineficincia da descoberta
para o avano do estudo da fonte original das leis do movimento, ao lembrar o fiasco
do concurso promovido pela Academia de Cincias de Berlim, que teve como motivo a
questo sobre se as leis do movimento so necessrias ou ocasionais 53
. Como
veremos na citao abaixo, o problema da causa original mantm-se como ponto
indeterminado, caracterizando a inconsistncia e at mesmo a no resoluo da questo:
Se a contingncia tomada em sentido real, de modo que consiste na
dependncia do material da possibilidade relativamente a um outro,
visvel que as leis do movimento e as propriedades universais da
matria, que lhe obedecem, devem depender de um grande ser
originrio comum para o funcionamento da ordem e da convenincia.
Pois quem defenderia, diante disso, que num mltiplo extenso, no qual
cada singular tivesse a sua prpria natureza completamente
independente, como que por meio de um estranho acaso tudo se
ajustaria to bem que se combinaria com os outros e se encontraria em
total unidade? Simplesmente, salta claramente aos olhos o facto de
que este princpio comum no teria de ir, meramente, existncia
desta matria e das propriedades que lhe so conferidas, mas sim,
possibilidade de uma matria em geral e a prpria essncia, pois
aquilo que deve preencher um espao, que deve ser capaz de
movimento, do choque e do impulso, no poder ser pensado sob
outras condies diferentes daquelas de que saem, de modo
necessrio, as mencionadas leis. Sobre esta base, v-se que estas leis
do movimento so pura e simplesmente necessrias para a matria,
quer dizer, se a possibilidade da matria pressuposta, contradiz-l ia
agir de acordo com outras leis, o que uma necessidade lgica de tipo
superior [...] 54
.
Ao se compararem as duas extensas passagens, podemos subentender uma
razovel compatibilidade entre os argumentos at aqui desenvolvidos no ensaio de Kant
e o princpio de atrao de Maupertuis. Ao menos para tanto aponta a leitura de Kant de
tal princpio. Em suma, h uma pressuposio comum, em nvel metafsico, que um
conceito geral de matria s possvel se os seus fundamentos de possibilidade
estiverem devidamente instalados numa realidade possvel. Isso implica,
necessariamente, na existncia e atuao original de um ser superior, que, por sua vez,
prov os fundamentos de possibilidade da matria suas leis , de modo tal que eles
sejam sempre conformes com um projeto ordenado e harmonioso. Nesta altura
53
KANT, 2004, p. 83. Grifo meu. 54
Ibid., p. 83-84.
34
alcanamos a forma robusta do conceito de ordem da natureza, que coordenar a linha
argumentativa deste ensaio, daqui em diante. Sendo assim, o conceito de uma ordem
natural em Maupertuis, segundo Kant, nada mais que uma epignese que entrelaa
mecanicidade e inteligncia divina a ltima como fundamento da causa da primeira, e
dentro desta [causalidade mecnica] uma atuao especial no que se refere aos seres
organizados.
Descartada a contingncia da ordem detectada nas leis que movem a matria,
resta-nos observar se toda sorte de coisas est submetida ordem da natureza. Kant
define a pertinncia de algo como naturalmente ordenado da seguinte forma: uma coisa
est submetida ordem da natureza, na medida em que a sua existncia ou a sua
variao esto suficientemente fundamentadas nas foras da natureza 55
. Esta
submisso deve estar condicionada a dois critrios. O primeiro que a fora da natureza
deve ser a causa eficiente da existncia da coisa em questo, e o segundo que a relao
estabelecida entre a coisa e seus efeitos deve ter como fundamento a regra da lei
natural dos efeitos 56
. Isso torna uma coisa, genericamente, um acontecimento natural
da natureza 57
. Nesta classe podemos categorizar praticamente todas as coisas que
conhecemos. Por outro lado, quando algo foi gerado ou por uma causa eficiente que est
fora da natureza, ou ainda por uma lei natural cujo efeito no possui nenhuma relao
com qualquer causa natural, esta coisa pode ser dita um acontecimento sobrenatural 58
.
Destes dois tipos de eventos naturais, somente o de forma sobrenatural requer
uma justificativa adicional. Para exemplificar o tipo de evento que tem em mente, Kant
menciona cidades de moral corrompida que foram atingidas por grandes desastres
naturais, o que descreveria um evento cujos efeitos so absolutamente explicveis do
ponto de vista das foras naturais, mas seu fundamento ou o que direciona a atuao de
tal fora natural no est na prpria natureza, mas fora dela. Neste caso, a fora
sobrenatural teria como fundamento de sua causa a justia divina diante da corrupo
humana. Este seria um modo igualmente conciliador de se preservar a perspectiva
transcendente e mecnica, uma vez que leis so de ordem natural, mas a aplicao delas
seria motivada por uma inteligncia fora do mundo.
55
Ibid., p. 89. 56
Ibid. 57
Ibid. 58
No primeiro caso, eu designo os acontecimentos como sobrenaturais materialiter, no segundo
sobrenaturais formaliter [KANT, 2004, p. 89]. Grifo do autor.
35
Mas a questo ainda no est esgotada, e uma soluo definitiva para ela ainda
est distante. O fato que, tanto no mundo orgnico quanto na natureza inorgnica
apresentam-se relaes a fins to diversos 59
que, pela dimenso formal e lgica dos
conceitos fsicos, elas esgotam nossas possibilidades de reduzir tal mundo e tal natureza
ao mero mecanismo. Uma quantia to ampla de arranjos harmoniosos s pode encontrar
uma unidade suficiente na noo de que h um fundamento supremo que transforma
efeitos de sua vontade e entendimento em lei. Talvez, a esta altura, a nica indicao
satisfatria das consideraes de Kant que preciso encontrar um caminho que
equilibre mecanismo e fundamento hiperfsico, sem, contudo, abraar por completo as
teorias at ento disponveis.
A apreciao da natureza ocorre em duas perspectivas possveis. A primeira d
prioridade ao natural nos eventos; a segunda ao sobrenatural, e neste caso o observador
naturalista tende a interpretar o sobrenatural como a interrupo de uma ordem60
.
Kant classificar esta dificuldade como imaginria 61
, pois a ordem natural, quando
no resultam dela efeitos perfeitos, no possui em si, imediatamente, nenhum
fundamento da primazia, visto que esta ordem natural s pode ser considerada como um
gnero de meio, que no permite nenhuma avaliao prpria, mas apenas da grandeza
dos fins obtidos atravs dele 62
. Neste caso, a maior deficincia do ponto de vista
sobrenatural seria a desconstruo do fluxo temporal dos eventos.
Neste ponto parece que a alternativa indicada pelo filsofo ser a observao
esttica, restringindo ao indecifrvel a complexa pergunta pelo modo de agir da causa
divina, e ater-se com mais delicadeza aos seus contornos e formas: encontraremos
poucas flores que [...] mostrem mais elegncia e proporo, e no se v que aquilo que a
arte pode produzir contenha mais exactido do que os produtos que a natureza
dissemina com profuso sobre a superfcie terrestre 63
. Neste sentido, parece pertinente
reintroduzir a modalidade moderna do princpio de economia, procurando minimizar as
explicaes suprassensveis e atentando-se meramente a seus resultados.
59
Ibid., p. 93. 60
Ibid., p. 95. 61
Ibid. Mais adiante, Kant explica melhor seu ponto: Deus concebeu um mundo na sua vontade,
onde todas as partes, mediante a sua conexo natural, cumpriram a regra do melhor, ento, o mundo seria
digno da sua escolha, no porque o bem consistisse na conexo natural, mas porque atravs desta conexo
natural, sem muitos milagres, alcanar-se-iam, da forma mais justa, os fins mais perfeitos [ibid., p. 96] . 62
Ibid., p. 96-97. 63
Ibid., p. 100-101.
36
A alternativa parece vivel a Kant, assim como, no desenvolvimento do ensaio,
parece natural notar que, ao admitirmos como regra geral a reduzida quantidade de
princpios de que se vale a natureza, dissolvemos o espanto para elev-lo admirao
esttica. Apesar de soar escapista tal direo e fugir em muito a uma soluo para o
problema, creio que esta ser uma orientao fundamental no curso do pensamento
kantiano, sobretudo no que se refere a uma possvel gnese da Crtica da Faculdade do
Juzo 64
.
Contudo, para pensarmos com mais especificidade nos processo de gerao e
desenvolvimento dos seres organizados [plantas e animais], a soluo da apreciao
esttica se complica, e isso de reconhecimento do prprio filsofo, que admite que a
trilha do mecanismo na observao da gerao orgnica ineficiente, sendo, portanto,
preciso abandonar este caminho 65
. Isso porque a estrutura de plantas e animais
mostra uma constituio para a qual as leis gerais e necessrias da natureza so
insuficientes66
. Neste contexto, a necessidade de reclamar por uma lei complementar
parece indispensvel, sobretudo ao se confrontar a expresso da vontade e do nimo em
seres orgnicos. Estas duas caractersticas, por assim dizer, so absolutamente
impossveis como resultados de um esquema de causalidade mecnica.
Se no possvel que o mecanismo desenvolva a vida propriamente dita, tm-se
duas alternativas na tentativa de compreender-se o problema. Uma delas admitir que
(i) todo vivente fosse fruto direto do intelecto divino, ou seja, nascesse de forma
sobrenatural e que to-somente sua permanncia na Terra, num longo espao de tempo,
fosse decorrente de um princpio natural [reproduo]; ou, ainda, que (ii) alguns pares
especficos de indivduos orgnicos [tambm admitidos como gerados imediatamente
por Deus] tornaram-se capazes, em algum ponto da Histria da Natureza, de criar novos
exemplares originais a partir de si mesmos. Kant observa que ambos os modelos
apresentam dificuldades para seus defensores, de modo que ele prprio no se inclina
para nenhum deles, limitando-se to-somente a apreciar o peso dos argumentos,
enquanto argumentos metafsicos 67
; neste grupo de argumentos metafsicos
encontram-se as prprias teorias da epignese e da pr-formao, vistas pelo filsofo
como esforos indemonstrveis:
64
Cf. HUNEMANN, 2008, p. 84; 107; 165. 65
Ibid., p. 101. 66
Ibid., p. 101. 67
Ibid., p. 101.
37
Como, por exemplo, pode uma rvore, por uma constituio interna
mecnica, ser capaz de compor e elaborar os sucos nutritivos, de
modo que surja no gomo da folha ou na sua semente qualquer coisa
que contivesse uma rvore semelhante em ponto pequeno, ou da qual,
todavia, uma rvore pudesse surgir, o que, de maneira alguma se
pode compreender segundo os nossos conhecimentos. As formas
interiores de Sr. Buffon, e os elementos de matria orgnica que se
sucedem das suas reminiscncias, de acordo com as leis do desejo e da
averso, segundo opinio do Sr. Maupertuis, so, ou to
incompreensveis como a prpria coisa, ou muito arbitrariamente
pensadas. Simplesmente, sem nos voltarmos para semelhantes teorias,
seremos obrigados, por isso, a defender a outra tese que to
arbitrria como estas, a saber, a tese segundo a qual os indivduos tm
uma origem sobrenatural [...] 68
.
Vejamos brevemente do que tratam as noes levantadas por Kant na citao
acima. No caso de Buffon, sua teoria embriolgica 69
traava a participao de alguns
elementos de base na gerao, quais sejam: as molculas orgnicas, as foras
penetrantes e as formas interiores [ou moldes interiores]70
, que expressariam os
fundamentos de separao entre o mundo orgnico e inorgnico, como, por exemplo, a
capacidade de crescer e replicar-se a si prprio [reproduo]. Os moldes interiores so a
capacidade dos organismos em organizar a matria primordial da vida, diferenciando-a,
assim, da matria bruta inorgnica. Os moldes interiores, conjuntamente com uma fora
penetrante que teria como funo fundir e moldar as mais distintas molculas orgnicas
presentes no processo de formao consiste em uma das mais fundamentais bases do
preformismo moderno. O molde , por definio, o germe que vem a ser graas
atuao desta fora 71
.
O outro fundamento citado, a lei do desejo e averso em Maupertuis,
caracteristicamente epigenesista. Aqui temos uma nova dificuldade com respeito
identificao das fontes de Kant. Isso porque h fases de aprimoramento do conceito
pelo cientista francs bastantes distinto entre si. A primeira fonte possvel est na Vnus
Fsica, e ainda est mais prxima da fsica da atrao de Newton; e a segunda estaria j
no Sistema da Natureza, e nessa fase teramos uma teoria mais robusta e distanciada do
68
Ibid., p. 102. 69
A noo de moldes interiores encontra-se propriamente desenvolvida na Histria dos animais,
publicada em 1749 no segundo volume da Histria natural de Buffon. Disponvel em: <
www.buffon.cnrs.fr/ice/ice_book_detail-fr-text-koyre_buffon-buffon_hn-2-1.html>. Acesso em: 70
Cf. ROGER, 1989, p. 178; RAMOS, 2004, p. 118. 71
RAMOS, p. 119 e seguintes.
38
mecanicismo 72
. Sendo, mais uma vez, dificultada a identificao precisa da referncia,
consideraremos como modelagem bsica a lei de Maupertuis, salientando eventuais
dificuldades assumidas ao adotar-se a verso da Vnus, que coincide com noo de uma
teoria da atrao j explanada anteriormente 73
.
A opinio de Kant a respeito da epignese e da pr-formao tem caracterstica
de ponderamento e avaliao 74
. Contudo, somando-se ao fato de que no esta a
pretenso deste texto, oriento a finalizao das anlises aqui estabelecidas a partir da
recomendao de Lebrun 75
, que sugere cuidado na leitura do ensaio Argumento, pois
conceitos aqui utilizados [como ordem artstica] so mero recurso artificioso do
discurso, sem relao objetiva com a prpria natureza fsica ou com as estruturas
subjetivas do sujeito transcendental, encontradas mais adiante na fase crtica.
E, finalmente, as concluses possveis de se extrair das leituras e anlises
realizadas enfatizam o interesse do tema para Kant, a presena deste no seio de suas
reflexes de formao nos textos da juventude e, sobretudo, a sinalizada e
revolucionria caracterstica do filsofo em exercitar o pensamento em caminhos do
meio, sem pender para sistemas filosficos e cientficos que j sinalizam insuficincias
e fragilidades.
72
Essa nova concepo da fsica da atrao qumica orientada pelo princpio de inteligncia
seminal, que, nas palavras de Ramos, ora aproxima ora afasta as partes orgnicas de modo a estabelecer
as necessrias preferncias que essas partes devero exibir ao combinarem-se para a adequada
estruturao do embrio. Uma vez produzida a estrutura, a inteligncia atuar como memria gentica
que perpetua a forma prpria da espcie ao longo das geraes. A posio correta que cada parte ocupa no
todo orgnico pode ser retomada graas lembrana que a partcula guarda da posio que ocupava no
organismo. Com tais ideias, Maupertuis elaborou um sistema natural sobre a gerao que poderia superar
os problemas dos sistemas anteriores, fundamentalmente o sistema dos antigos, de Harvey, de Descartes e
o da preexistncia-embutimento dos germes, lembrando que dos dois primeiros Maupertuis aproveita
muitos elementos para sua teoria. Seu sistema explicaria no apenas a reproduo ordinria (sexuada)
como os modos assexuados ainda embaraosos na Vnus fsica, a saber, a regenerao e a partenognese -
a primeira dispensa a mistura dos lquidos seminais e a segunda refora a verso ovista da preexistncia.
[RAMOS, 2009, p. 465] 73
Ver notas 51 e 60. 74
Em Huneman [2008, p. 219-234], por exemplo, encontramos a tese que j neste ensaio de 1763-
1764 haveria a presena de uma doutrina da finalidade [conformidade a fins], que viria a sofisticar-se na
terceira Crtica, supostamente j introduzida no texto de 1755 [Histria Geral da Natureza e Teoria do
Cu]. 75
LEBRUN, 2002, p. 336.
39
CAPTULO TRS
O SISTEMA DA EPIGNESE DA RAZO PURA
As Analogias Teleolgico-Biolgicas
A interao de Kant com as teorias embriolgicas na Crtica da Razo Pura,
como tambm em toda sua obra, certamente, a mais inconclusiva e de difcil diagnstico
de todas as outras referncias aqui trabalhadas. A justificativa para tamanha
nebulosidade se d justamente pelo fato de o filsofo us-las no em senso estrito, mas
enquanto analogias e recurso metodolgico para utilizar uma suposta finalidade formal
e subjetiva da natureza na reflexo acerca da unidade sistemtica em geral. No 27
da Deduo Transcendental, em particular, Kant associa duas representaes distintas
a fim de melhor apresentar os fundamentos de uma delas [a (ii)], quais sejam, (i) teorias
sobre a origem das espcies orgnicas na natureza e a (ii) conexo entre sujeito e objeto,
como tambm a projeo do conceito de fim como condio de possibilidade da
experincia em geral.
Neste excerto se encontra o primeiro uso em obras oficiais das expresses
epignese, pr-formao e generatio aequivoca [gerao espontnea] 76
, o que
torna sua validade imediata, sobretudo se se est procura de registros fidedignos das
referncias do filsofo com relao embriologia moderna.
3.1 A concluso da Deduo Transcendental
No 27 da Crtica da Razo Pura, os resultados extrados da deduo
transcendental dos conceitos puros do entendimento so analogicamente expostos por
Kant a partir de trs diferentes teorias embriolgicas. Tais analogias podem ser lidas a
partir de duas perspectivas complementares: a de (i) precisar o significado ali atribudo
76
Na segunda edio [B] de 1787. Cf. MARQUES, 2012, p.333 e seguintes.
40
s teorias cientficas utilizadas e a de (ii) assinalar a pertinncia das mesmas para os
conceitos filosficos presentes no pargrafo.
Dito isso, parece pertinente orientar a leitura do 27 a partir de uma expresso
nela contida, sistema da epignese da Razo Pura, por nela encontrar-se o ponto de
equilbrio entre os conceitos funcionalmente equivalentes da (a) teoria da gerao dos
organismos por epignese e a (b) constituio das categorias do entendimento. De
antemo, porm, preciso anunciar que no se pormenorizaro as nuances que
compem o debate sobre a origem das categorias, to presentes em uma larga gama de
intrpretes kantianos. A limitao inevitvel aqui posta ao tema desta dissertao
permitir-me- apenas indicar alguns elementos do tpico, atendo-me estritamente ao
que venha a se entrelaar com a epignese.
3.1.1 Epignese e categorias
O fundo argumentativo deste 27 dirige-se para reiterao da dependncia
entre pensar e conhecer demonstrada previamente no 22 valendo-se da estrutura
pura contida no sujeito pensante-conhecedor, somada matria da experincia. Nesta
interdependncia, far-se- necessria a correspondncia em esfera transcendental entre
intuies e conceitos; ou seja: tem-se de lidar com a conformao entre intuies
sensveis e categorias. A questo a ser respondida (i) qual ser o elemento conectivo
entre umas e outras, e (ii) como se dar o procedimento para uma tal conexo.
O desenvolvimento da argumentao de Kant, no mbito desse contexto, para
responder questo envolver as analogias biolgicas, utilizando as teorias da
epignese, da pr-formao e da gerao espontnea como equivalentes em termos da
funo de alguns conceitos-base em face destas teorias biolgicas que surgiram no
decorrer do pargrafo. A equivalncia metafrica desenvolvida por Kant para o exame
das alternativas metafsicas apresentadas e refutadas ilustra um dos dilogos mais
importantes entre a filosofia kantiana e as filosofias modernas precedentes.
41
Sendo o 27 intitulado: Resultado dessa deduo dos conceitos do
entendimento, Kant logo em suas primeiras linhas retoma algumas distines
fundamentais da Analtica, como pensar e conhecer, sendo que, em tal caso, um
distingue-se do outro to-somente quanto dependncia junto intuio, e,
consequentemente, a expanso e alcance da formao de suas representaes e
contedo. Se, por um lado, o pensamento no est restrito pela sensibilidade, com o
conhecimento d-se o oposto, para que assim seja possvel determinar o contedo do
objeto representado. Deste modo, o conhecimento de todo objeto pensado s possvel
se duas faculdades compuserem o seu contedo: sensi