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KANT E A RELIGIÃO NOS LIMITES DA RAZÃO Compilado pelo Prof. Helder Salvador

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KANT E A RELIGIÃO NOS LIMITES DA

RAZÃOCompilado pelo Prof. Helder

Salvador

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Kant não apenas desconstrói a religião, mas também elabora uma tal concepção que permaneça dentro dos limites da simples razão.

Em outros termos, o filósofo de Königsberg quer uma religião natural, sendo sua fundamentação dada não no transcendente, mas na própria razão.

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Embora Deus seja um postulado fundamental, os deveres só possuem valor moral quando estão fundados no sujeito mesmo e não em algo heterônomo.

Desta forma, a religião racional ou subjetivamente considerada é o conhecimento de todos nossos deveres como se fossem mandamentos divinos.

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A proposta kantiana não é acabar com a religião revelada, pelo contrário, quer revesti-la com caráter racional. O próprio filósofo admitirá que uma religião revelada deve poder conduzir a religião racional.

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Kant é mau entendido quando se pensa que ele destruiu a metafísica e, por conseguinte, a própria religião. Isso é completamente sem fundamento. Kant não destrói a metafísica, e a religião sempre foi uma de suas preocupações. Seu intento é colocar cada qual em seu devido lugar em um sistema racional transcendental.

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Os problemas de Deus, alma e liberdade, contudo, são insolúveis e não concernem ao âmbito teórico da razão, gerando, nesse âmbito, mais confusão – antinomias – do que soluções. Esses conceitos não podem ser tidos como fenômenos, pois esse, para ser conhecido, precisa ser dado à sensação.

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Ora, como ter experiência empírica de Deus, alma e liberdade? Isso, para o filósofo, é impossível. Desta forma, ele diz: “tive, pois, de suprir o saber para encontrar lugar para a crença (Glauben)” (KrV BXXX). Tais conceitos, portanto, serão abordados na esfera prática da razão. O conceito de Deus, bem como os outros, pertencem ao âmbito moral.

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É importante enfatizar que duas posturas complementares e bem definidas que podem ser vistas em Kant com relação à religião:

[I] faz uma crítica dura ao modelo religioso-dogmático, no qual o homem, além de receber os deveres de forma heterônoma, barganha com Deus para adquirir uma vida melhor pós-morte;[II] elabora uma teologia moral, na qual a religião não é dada como alheia ao sujeito, mas nele mesmo. Essa sua nova postura gerou, em sua época, descontentamento do soberano.

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Depois de publicar a obra Religion innerhalb der Grenzen der blo en Vernunft em 1794 (texto na íntegra), é publicada em 1º de outubro do mesmo ano, uma ordem do gabinete de Frederico Guilherme II (1786-1797), assinada por Wöller, dizendo que o filósofo “usou de sua filosofia para deformar e degradar as doutrinas capitas e fundamentais da Sagrada Escritura e do Cristianismo”, sobretudo na Religion e em outros textos menores. O edito ordena que deste momento em diante Kant se abstenha de ensinar tais ideias, caso contrário, se “persistires em ser refratário, tereis de esperar infalivelmente medidas desagradáveis” (widrigenfalls Ihr Euch, bei forgesetzter Reniteng, unfehlbar unangenehmer Verfugungen zu gewärtigen hat:Streit A5).

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Segundo Pannenberg, o momento histórico que Kant viveu e ministrou aulas, os assuntos religiosos eram interesse do Estado e diziam respeito à teologia. Contudo, logo após a morte de Frederico Guilherme II (1790), Kant volta a tratar de religião na sua obra – publicada no mesmo ano da morte do rei – der Streit der Fakultäten.

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Kant, no autêntico espírito da Aufklärung, quer que os indivíduos saiam da menoridade (Unmundigkeit) culpada. A palavra alemã Aufklärung é frequentemente traduzida por Iluminismo ou ilustração. No entanto, é preferível traduzir por esclarecimento, pois o termo Aufklärung não se restringe a uma determinada época, pelo contrário, é uma tarefa sempre constante e aberta. Sair da menoridade, portanto, é tarefa presente e também futura.

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Com isso em perspectiva, o filósofo faz a dura afirmação de que a “tutela religiosa, além de ser a mais prejudicial, é também a mais desonrosa de todas”. Coloca Kant, portanto, a religião no projeto de sua filosofia crítica.

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No prefácio à primeira edição da KrV, ele esboça claramente essa ideia:

A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas, então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame (KrV AXI).

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Assim como em todo o projeto kantiano a razão se mostra a faculdade superior capaz de orientar a busca de forma a priori – condições de possibilidade –, da mesma forma [Kant] não recorrerá à experiência para fundar a verdadeira religião. É uma religião nos limites da razão que, consequentemente, se organiza dentro do todo da arquitetônica da razão pura. No prólogo à segunda edição da Religion, Kant argumenta sobre o título da obra. Segundo ele, nota-se que a religião revelada pode compreender em si a religião racional, ao passo que essa última não pode conter o conteúdo histórico da primeira.

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Aquela – religião revelada – é uma esfera mais ampla da fé, enquanto que a religião racional é mais estrita, um círculo dentro de outro. O filósofo, diz Kant, pode ser o mestre da razão e por trabalhar com conceitos a priori, deve-se manter no círculo mais estreito – religião natural. Em seguida, o filósofo de Königsberg enfatiza que o caminho contrário pode tentar ser realizado, isto é, a partir de qualquer revelação, considerando-a como um sistema histórico, no qual conceitos morais só estão presentes de modo fragmentário, ver se esse não levará para o mesmo sistema racional puro da religião, em um nível moral-prático.

“Se assim é, pode-se dizer que, entre a razão e a Escritura, existe não só compatibilidade, mas também harmonia, de modo que quem segue uma não deixará de coincidir com a outra” (Religion AXXII-XXIII).

Sem dúvida, Kant está em constante diálogo com o Cristianismo. Pode-se ousar a dizer que a religião racional é uma reconstrução do Cristianismo sobre argumentos racionais a priori.

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Já na KrV (A825/B853ss), há uma contraposição entre fé puramente doutrinal e uma fé moral. Critica, por conseguinte, todas as provas teóricas da existência de Deus até chegar a um “conhecimento” filosófico de Deus que se funda na moralidade – fé moral. Assim como a História e o Direito asseveram a esperança da liberdade externa, a Religião indaga somente em relação à liberdade interna, a moralidade ou virtude. Desta forma, Kant propõe um modelo de perfeição moral [Deus], pois, sendo o homem racional e sensível, a luta do bem e do mal é vivenciada no seio da liberdade.

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No início do prólogo à primeira edição da Religion, o filósofo é objetivo ao afirmar que a moral, enquanto fundada no conceito do homem como ser livre que pela razão vincula a si leis incondicionadas, não precisa da ideia de outro ser acima dele para conhecer seu dever, nem de outro móbil diferente da própria lei para observar (cf. Religion AIII). Por conseguinte, a moral não precisa de modo algum da religião, porque se basta a si própria em virtude da razão prática (cf. Religion AIII-IV). Kant demonstra que a razão prática basta por si só para determinar o agir, e que não há necessidade de recorrer a um fundamento heterônomo-transcendente para fundamentar a ação. Ele também esclarece que a razão prática não necessita nenhum fim como direção de seu agir. Sua determinação é autônoma porque determina a intenção – o querer mesmo – e não é influenciada por contingências.

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Entretanto, Kant admitirá a necessidade de um fim. Eis como ele o entende:

Embora a moral não precise, em prol de si própria, de nenhuma representação de fim que tivesse de proceder a determinação da vontade, pode ser que mesmo assim tenha uma referência necessária a um tal fim, a saber, não como ao fundamento, mas como às necessárias consequências das máximas que são adotadas em conformidade com as leis. Pois sem qualquer relação de fim não pode ter lugar no homem nenhuma determinação da vontade, já que tal determinação não pode dar-se sem algum efeito, suja representação tem de se poder admitir, senão como fundamento de determinação do arbítrio e como fim prévio no propósito, decerto como consequência da determinação do arbítrio pela lei em ordem a um fim (finis in consequentiam veniens) (Religion AV-VI).

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Sem este fim, o arbítrio sabe como agir, mas não sabe para onde tem de agir. Este fim não é objeto de uma inclinação subjetiva, pelo contrário, é um fim objetivo dado pela razão. Da moral, portanto, resulta um fim, uma ideia de um objeto que contém em si a condição formal de todos os fins, ou seja, a ideia do bem supremo no mundo. Deve-se supor, como condição de possibilidade do bem supremo, um ser superior, moral, santíssimo e onipotente, único capaz de reunir os dois elementos desse bem supremo (moralidade e felicidade). É importante aqui dizer que tal ideia deriva da moral e não constitui seu fundamento (cf. Religion AVIII).

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Segundo Kant, que todos devam fazer para si do supremo bem possível no mundo o fim último, resulta um juízo sintético a priori prático, porque é uma proposição que vai além dos conceitos de deveres no mundo e acrescenta uma consequência sua que não está contida na lei moral e, portanto, não pode se desenvolver analiticamente a partir dela. Essa ideia de fim, de acordo com a arguição kantiana, é o resultado da limitação do homem, qual seja, a de buscar em toda a ação o resultado. Neste fim – bem supremo – o homem busca algo para amar (lieben), mesmo sendo proposto pela simples razão. Assim, a estreita observância da lei moral se deve pensar como causa da produção do supremo bem como fim, mesmo que a capacidade humana não é apta o bastante para efetivar no mundo a felicidade em consonância com a dignidade de ser feliz – moral. Devido a isso, há necessidade de se postular um ser moral onipotente como soberano no mundo, no qual tal consonância ocorre. Deus é um postulado, ou seja, não é objeto da razão teoria ou da ciência.

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• “A pura fé racional nunca pode transformar-se num saber através de todos os dados naturais da razão e da experiência, porque o fundamento de ter por verdadeiro é aqui simplesmente subjetivo, a saber, é uma exigência da razão (e, enquanto houver homens, existira sempre) pressupor, mas não demonstrar a existência de um ser supremo”. (KANT, I. Was heisst: sich im Denken orientieren? Herausgegeben von Wilhelm Weischedel. Werke in zwölf Bänden. Band. V. Frankfurt: Suhrkamp, 1968. A319. Tradução da obra em português: KANT, I.O que significa orienter-se no pensamento? Trad. Artur Morão. In: KANT, I. À paz perpetua e outros opúsculos Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995). Doravante wDo).

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Disso se conclui que a “moral conduz inevitavelmente à religião, pela qual se estende, fora do homem, à ideia de um legislador moral poderoso, em cuja vontade é o fim último o que ao mesmo tempo pode e dever ser o fim último do homem” (Religion AX-XI). Consequentemente, “a religião (subjetivamente considerada) é o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos” (Religion B230/A216).

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Essa definição é ainda mais refinada e conclusiva na KpV: Dessa maneira a lei moral conduz, mediante o conceito de

sumo bem enquanto objeto e fim terminal da razão prática pura, à religião, quer dizer, ao conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos, não enquanto sanções, isto é, decretos arbitrários, por si próprios contingentes, de uma vontade estranha e, sim, enquanto leis essenciais de cada vontade livre por si mesmo, mas que apesar disso têm que ser consideradas mandamentos do Ser Supremo, porque somente de uma vontade moralmente perfeita (santa e benévola), ao mesmo tempo onipotente, podemos esperar alcançar o sumo bem que a lei moral torna dever pôr como objeto de nosso esforço e, portanto, esperar alcançá-lo mediante concordância com essa vontade. (KANT, I. Kritik der praktischen Vernunft. Herausgegeben von Wilhelm Weischedel. Werke in zwölf Bänden. Band. VII. Frankfurt: Suhrkamp, 1968. A223. Tradução da obra em português: KANT, I. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002.)

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Essa “teologia moral” (KrV B842) ou “ética-teologia” não é mais transcendente, mas imanente, dentro dos limites estabelecidos pela razão prática. Consoante Höffe, Deus “não é nem de longe um objeto do saber, do conhecimento objetivo, mas da esperança, certamente não de uma esperança exaltada, mas de uma esperança fundada filosoficamente”.

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Ainda seguindo a argumentação de Höffe, essa estabelece que o postulado da existência de Deus está fundado sobre quatro pressupostos: • [I] o homem moral merece ser feliz; • [II] a moralidade não garante felicidade

proporcionalmente; • [III] somente sai dessa trama uma esperança que adjudica

a felicidade devida; • [IV] tal poder adjudicador só é encontrado em um ser que

[a] é onisciente (jamais se engana sobre o merecimento da felicidade),

[b] que é onipotente (efetua sempre a adjudicação proporcional à felicidade) e

[c] é santo (persegue imutavelmente a adjudicação).

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Kant pretende, pois, engendrar uma religião subjetivamente considerada, embora objetivamente natural. É uma religião racional na qual se conhece de antemão o que é dever, antes de qualquer “mandamento divino”. É racional no sentido de não precisar ir além do homem mesmo para encontrar o mandamento do agir. Por outro lado, aquela religião que se deve previamente saber que algo é um mandamento divino para reconhecê-lo como dever é a religião heterônoma.

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Nesta última, a vontade é determinada por contingencialidades, não possuindo, consequentemente, valor moral. A religião racional pode também ser chamada racionalista, e, em virtude do título, deve, por si mesma, manter-se dentro dos limites do discernimento humano (cf. Religion B232/218). O racionalista ou naturalista não negará, nem discutirá a possibilidade interna de uma revelação, muito menos a necessidade de uma revelação como meio divino para a introdução da verdadeira religião. Isso compete ao sobrenaturalista em matéria de fé (Supernaturalisten in Glaubenssachen).

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Contudo, vale destacar, como já se mencionou anteriormente, que uma religião pode ser a natural e igualmente a revelada, se essa última estivesse constituída de tal modo que os homens, pelo uso de sua razão, teriam podido e devido chegar a ela por si próprios, porém sem chegar tão cedo como se exige.

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Consoante Kant, uma religião revelada pode ser sábia e muito proveitosa em certa época e em certo lugar, mas de tal modo que doravante – por tal religião já estar aí e ser publicamente conhecida – cada indivíduo consiga convencer-se da verdade por si mesmo e pela sua própria razão (cf. Religion B233/A219). Na leitura da Religion, há fortes indícios para afirmar que nem todas as religiões reveladas conduzem à religião natural, antes, algumas tratam seus adeptos como crianças que precisam de “guias”. Essa é a religião fortemente combatida por Kant.

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A fé estatutária, como chama o filósofo, além de não ser universal (por estar restrita a um povo), está a serviço de Deus e faz dela a complacência divina do homem. É uma suposta veneração de Deus pela qual se age justamente contra o culto verdadeiro por Ele exigido. Implícito está aqui que o homem bajula-se a si mesmo, pensando que Deus o fará eternamente feliz sem tornar-se um homem melhor; ou ainda, que Deus faça dele um homem melhor sem que esse faça mais do que suplicar-lhe (cf. Religion B61-2/A567-8).

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Com isso, Kant adota o seguinte princípio, e diz que ele não precisa de demonstração alguma: “tudo o que o homem, além de uma boa conduta, imagina poder ainda fazer para se tornar agradável a Deus é simples ilusão religiosa e pseudo-serviço de Deus” (Religion B260/A245). A fé em proposições que o não erudito não pode fundamentar pela razão, nem pela Escritura se transforma em dever absoluto (fides imperata), e seria elevada ao estatuto de uma fé que beatifica como culto servil. Kant enfatiza que este último modo de “fé” (se é que pode ser dita fé!) transforma o serviço da igreja (ministerium) numa dominação (Beherrschung) sobre os seus membros (imperium), embora, para ocultar tal imprudência, se sirvam do modesto título de servidores (Religion B251/A237).

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Religião que conduz seus adeptos com cabresto, mostrando qual é o verdadeiro agir para ganhar o reino de Deus (barganhar-feilschen) é heterônoma e falsa. Com isso, vê-se que a religião racional está dando suporte à pedra de toque de todo o edifício kantiano, qual seja, a liberdade. Kant pretende, portanto, mediante a crítica às falsas religiões, incutir o livre pensar nos indivíduos, mais precisamente, o livre pensar da e sobre a religião.

Pensar por si mesmo “significa procurar em si próprio (na sua própria razão) a suprema pedra de toque da verdade; e a máxima de pensar sempre por si mesmo é Aufklärung (esclarecimento)” (wDo A330).

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No texto escrito dois anos antes (1784), Kant havia definido Aufklärung: “O esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade que ele próprio é culpado. Tem coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Esclarecimento” (Aufklärung ist der Ausgang des Menschen aus seiner selbst verschuldeten Unmundigkeit. Habe Mut, dich deines eigenen Verstandes zu bedienen! Ist also Wahlspruch der Aufklärung: Aufkl A481).

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Ora, a religião racional pura somente emergirá se o projeto da Aufklärung tiver sucesso. Tal religião inovadora – subjetivamente considerada – necessita incondicionavelmente da autonomia dos indivíduos, pois a religião, como foi afirmado, surge da moral. A ideia que perpassa essa arguição é a seguinte: somente pode haver uma religião verdadeira sendo que essa não pode contradizer a razão. Há, portanto, a necessidade de erigir o Reino de Deus. Mas tal asserção é absurda se aos homens cabe o dever de instituir tal reino. O próprio Deus tem que ser seu autor.

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“Como, porém, não sabemos imediatamente o que Deus faz para exibir na realidade efetiva a ideia de seu reino, de que encontramos em nós a determinação moral para ser cidadãos e súditos, embora saibamos decerto o que temos de fazer para de um modo adequado nos tornarmos membros seus, tal ideia – tenha ela sido despertada no gênero humano e feita pública pela razão ou mediante a Escritura – ligar-nos-á em vista do ordenamento de uma Igreja, de cuja constituição é, no último caso, autor o próprio Deus enquanto fundador, mas de cuja organização os autores são em todos os casos os homens, membros e cidadãos livres deste reino; pois os que no meio deles, de acordo com esta organização, superintendem os negócios públicos dela constituem a sua administração enquanto servidores da Igreja, do mesmo modo que todos os demais formam uma associação submetida às suas leis, a congregação” (Religion B229/A215).

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Assim, a religião racional pura concede lugar à ideia de uma Igreja invisível, na qual os membros recebem imediatamente (sem mediação) as ordens do supremo legislador. A religião racional terá como servidores – não funcionários – todos os homens de bom pensamento, só que em tal medida não poderão chamar-se servidores de uma igreja visível. A Igreja é subjetivamente entendida; cada indivíduo é Igreja.

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Por fim, segundo a leitura de Höffe, Kant parte de uma possível unidade entre teologia filosófica e teologia bíblica. Ele, guiado pela hipótese de uma concordância entre revelação e simples razão, consegue uma interpretação nova de históricas bíblicas, que é impressionante não só filosófica, mas também teologicamente. Entende-se, então, por essa hermenêutica kantiana, as asserções fundamentais da bíblia como sentenças morais que se referem a natureza humana (boa e má). Em última análise, a religião cristã reveste-se de caráter racional, mesmo que seja tida, primeiramente, como revelada.