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1 VII Colóquio Internacional Marx e Engels Karl Marx e os Paradoxos da Riqueza Abstrata Dr. Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA/CNPq) GT1 A obra teórica de Marx Desde o Primeiro Capítulo do Livro I d’O Capital, mais precisamente desde o Terceiro Item, que o ilustre renano procura demonstrar que a forma dinheiro emerge como um desdobramento necessário da forma mercadoria, em condições de disseminação e intensificação do intercâmbio mercantil. Ali Marx se jacta da primazia no desvendamento do enigma da forma dinheiro da seguinte maneira: Toda pessoa sabe, ainda que não saiba mais do que isso, que as mercadorias possuem uma forma comum de valor, que contrasta de maneira muito marcante com a heterogeneidade das formas naturais que apresentam seus valores de uso a forma dinheiro. Aqui cabe, no entanto, realizar o que não foi jamais tentado pela economia burguesa, isto é, comprovar a gênese desta forma dinheiro, ou seja, acompanhar o desenvolvimento da expressão de valor contida na relação de valor das mercadorias, de sua forma mais simples e sem brilho até a ofuscante forma dinheiro. Com isto desaparece o enigma do dinheiro (MARX, 1983, Livro I, Vol. 1, p. 54). Grosso modo, parece claro que o cerne do imenso projeto de crítica da economia política, que se inicia em 1844 e o acompanha até a morte, em 1883, é o desvendamento do enigma da riqueza abstrata. Marx inicia tanto a Zur Kritik de 1859, quanto O Capital (em todas as suas versões), pelo questionamento da riqueza burguesa. Dela, em sua forma de manifestação mais elementar (a mercadoria), desentranha seus dois atributos constitutivos: ser, simultaneamente, concreta (valor de uso) e abstrata (valor). Ao primeiro atributo não postula obstáculos à intelecção, porém, quanto ao segundo, paradoxalmente e ao mesmo tempo, objetivo e extrassensorial, Marx o apresenta, por isso mesmo, com um caráter intrinsecamente enigmático, que se transporta potencializado em suas sucessivas hipóstases, sob as formas de mercadoria, dinheiro ou capital (às quais, por esta razão denomino de tríade fetichóide). Assim, o valor, que é uma propriedade puramente social dos produtos do trabalho humano, cuja natureza, no entanto, permanece velada às inspeções ordinárias dos agentes imersos no torvelinho das relações que o configuram, só pode ser explicitado através do exame crítico de seu

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VII Colóquio Internacional Marx e Engels

Karl Marx e os Paradoxos da Riqueza Abstrata

Dr. Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA/CNPq)

GT1 – A obra teórica de Marx

Desde o Primeiro Capítulo do Livro I d’O Capital, mais precisamente desde o

Terceiro Item, que o ilustre renano procura demonstrar que a forma dinheiro emerge

como um desdobramento necessário da forma mercadoria, em condições de

disseminação e intensificação do intercâmbio mercantil. Ali Marx se jacta da primazia

no desvendamento do enigma da forma dinheiro da seguinte maneira:

Toda pessoa sabe, ainda que não saiba mais do que isso, que as

mercadorias possuem uma forma comum de valor, que contrasta de maneira

muito marcante com a heterogeneidade das formas naturais que apresentam seus

valores de uso — a forma dinheiro. Aqui cabe, no entanto, realizar o que não foi

jamais tentado pela economia burguesa, isto é, comprovar a gênese desta forma

dinheiro, ou seja, acompanhar o desenvolvimento da expressão de valor contida

na relação de valor das mercadorias, de sua forma mais simples e sem brilho até

a ofuscante forma dinheiro. Com isto desaparece o enigma do dinheiro (MARX,

1983, Livro I, Vol. 1, p. 54).

Grosso modo, parece claro que o cerne do imenso projeto de crítica da economia

política, que se inicia em 1844 e o acompanha até a morte, em 1883, é o desvendamento

do enigma da riqueza abstrata. Marx inicia tanto a Zur Kritik de 1859, quanto O

Capital (em todas as suas versões), pelo questionamento da riqueza burguesa. Dela, em

sua forma de manifestação mais elementar (a mercadoria), desentranha seus dois

atributos constitutivos: ser, simultaneamente, concreta (valor de uso) e abstrata (valor).

Ao primeiro atributo não postula obstáculos à intelecção, porém, quanto ao segundo,

paradoxalmente e ao mesmo tempo, objetivo e extrassensorial, Marx o apresenta, por

isso mesmo, com um caráter intrinsecamente enigmático, que se transporta

potencializado em suas sucessivas hipóstases, sob as formas de mercadoria, dinheiro

ou capital (às quais, por esta razão denomino de tríade fetichóide). Assim, o valor, que

é uma propriedade puramente social dos produtos do trabalho humano, cuja natureza, no

entanto, permanece velada às inspeções ordinárias dos agentes imersos no torvelinho

das relações que o configuram, só pode ser explicitado através do exame crítico de seu

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próprio movimento de constituição prática. Por isso, a arquitetura argumentativa d’O

Capital, em suas duas primeiras seções, reconstrói, no plano lógico, isto é, de forma

condensada, o próprio processo real, configurando uma história categorial do capital.

O processo de valorização do valor [Verwertung des Werts], ou seja, a forma

capital, objeto da obra magna, só pode ser explicitada pela decomposição dos atributos

constitutivos da forma mercadoria, figura originada no simples escambo e que, com a

disseminação do intercâmbio (e a correlata intensificação na divisão do trabalho),

desdobra-se na forma dinheiro e, posteriormente, na forma capital.

A forma valor do produto do trabalho é a forma mais abstrata, contudo

também a forma mais geral do mundo burguês de produção, que por meio disso

se caracteriza como uma espécie particular de produção social e, com isso, ao

mesmo tempo historicamente. Se, no entanto, for vista de maneira errônea como

a forma natural eterna da produção social, deixa-se também necessariamente de

ver o específico da forma valor, portanto da forma mercadoria, de modo mais

desenvolvido da forma dinheiro, da forma capital etc. Encontra-se por isso entre

economistas, que concordam inteiramente com a medida da grandeza de valor

por meio do tempo de trabalho, os mais contraditórios e confusos conceitos de

dinheiro, isto é, da figura terminada do equivalente geral (Idem, ibidem, p. 76,

nota 32).

Na mercadoria-dinheiro [Geldware] o valor de uso encontra-se reduplicado,

porquanto à sua forma natural acopla-se uma permanente disposição para expressar em

si (forma de equivalente) as formas relativas de valor das demais mercadorias, ou seja,

das mercadorias profanas [profane Waren]. Com isso, a utilidade precípua da

mercadoria-dinheiro (enquanto figura consumada do equivalente geral) passa a ser

apenas esta capacidade de refletir em si o valor das outras mercadorias, nelas

expressando, simetricamente, o próprio, porém, colocando, por isso, entre parênteses

sua utilidade natural, passando, enquanto dinheiro, a ser, tão somente, a pura

representação da forma valor, cujo valor de uso peculiar (pelo menos, temporariamente)

esfuma-se completamente (daí que senhas de papel ou impulsos elétricos possam

representar, sem peias, dinheiro, que pode ser apenas contante, sem ser mais sonante!).

Ou seja, a forma dinheiro enquanto tal está completamente infensa à inspeção sensorial.

Com a configuração da forma dinheiro a tensão constitutiva da forma

mercadoria se exterioriza, lógica e historicamente, em primeiro lugar, na circulação

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simples, cuja expressão sintética consiste na seguinte fórmula: M−D−M1. Nela, a

primazia recai sobre a utilidade, servindo o dinheiro apenas como facilitador do

intercâmbio. Este processo, relativamente benfazejo, é aquele ao qual se refere

Aristóteles em seu elogio à nómisma como facilitadora das trocas e conforme à

eudaimonia (ARISTÓTELES, 1973a, Livro V, Cap. 5, pp. 1230-1232 [1132b/1133b]).

Contudo, a filosofia peripatética, antecipando a crítica da economia política, condena,

como crematística, a inversão da fórmula, que retira a satisfação das apetências

humanas da berlinda e a substitui pela valorização como finalidade em si2. Em outras

palavras, a primazia da riqueza concreta é substituída pela da riqueza abstrata, que é a

forma precipuamente burguesa da riqueza. Na forma capital tal relevo da riqueza

abstrata assume uma feição paroxística, constituindo uma figura processual, que se

desenvolve motu proprio, como um sujeito automático [ein automatisches Subjeckt],

cuja fórmula geral, de modo conciso, pode ser expressa da seguinte maneira: D-M-D’,

onde D’=D+∆D. Esta outra maneira de exteriorização da tensão constitutiva da forma

mercadoria confere a preeminência, não mais à satisfação das apetências humanas, mas

à própria riqueza abstrata enquanto tal3.

O dinheiro é a expressão pura desta forma da riqueza, enquanto cristalização do

trabalho abstrato, ou seja, enquanto substância do valor. Mesmo nas mercadorias-

dinheiro, que ainda podem retroceder às funções das mercadorias profanas, uma vez que

são também materializações de trabalhos concretos, úteis, destinados à satisfação de

apetências humanas, a utilidade precípua passa a ser aquela de espelhar a forma relativa

de valor das demais mercadorias, colocando entre parênteses, pelo menos pelo tempo

em que atuem como dinheiro, sua utilidade natural. O sal com que eram pagos os

legionários romanos, por exemplo, só extemporaneamente servia para temperar sua

própria comida... Sem embargo, a disseminação e intensificação do intercâmbio

1 M→ mercadoria; D→ dinheiro 2 O risco de desagregação social, inclusive pela desigualdade que enseja, como seria dolorosamente

constatado pelos modernos, é fomentado pelo desenvolvimento da forma dinheiro, o que foi advertido

pelas melhores inteligências do Mundo Antigo. Por isso, segundo Marx "Platão, em sua República,

pretende conservar à força o dinheiro como simples meio de circulação e medida, porém impedindo que

se converta em dinheiro como tal. Daí que Aristóteles considere a forma da circulação, M–D–M, na qual o dinheiro só funciona enquanto moeda e medida, em um movimento que ele chama econômico, como

um movimento natural e racional, fustigando, em troca, como antinatural, como contrário a seus fins, a

forma D–M–D, a forma crematística" (MARX,1985, Tomo II, p. 445). 3 O paradoxo que encerra esta reviravolta, que confere a primazia à riqueza abstrata, foi advertido por

Aristóteles da seguinte forma: “[...] um homem bem-provido de dinheiro pode amiúde ver-se desprovido

das coisas mais imprescindíveis para a subsistência, apesar de que é absurdo que a riqueza seja de tal

classe ou espécie que um homem possa estar muito bem-provido dela e, não obstante, possa morrer de

fome, como o célebre Midas da lenda, quando, devido à insaciável cobiça de sua precação, todos os

manjares que se lhe serviam convertiam-se em ouro” (ARISTÓTELES, 1973b, p.1421 [1257b]).

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mercantil, ao configurar a forma dinheiro, como desdobramento da forma mercadoria,

implica sua manifestação sob a forma preço, enquanto determinação da forma valor.

Destarte, “A expressão de valor [Wertausdruck] de uma mercadoria em ouro — x da

mercadoria A = y da mercadoria monetária [Geldware] — é sua forma de dinheiro ou

seu preço [ist ihre Geldform oder ihr Preis]” (MARX, 1983, Livro I, Vol. 1, p. 87)4.

A forma preço é a determinação da forma valor no processo prático, efetuada

através da relação de compra e venda, que, no entanto, supõe, primariamente, uma

igualação apenas imaginária ou ideal.

O preço ou a forma monetária [Geldform] das mercadorias, como sua

forma valor em geral, é distinta de sua forma corpórea real e tangível, uma

forma somente ideal ou imaginária. [...] O guardião das mercadorias tem, por

isso, de meter sua língua na cabeça delas ou pendurar nelas pedaços de papel

para comunicar seus preços ao mundo exterior. Como a expressão dos valores

das mercadorias em ouro é ideal, aplica-se nessa operação também somente

ouro ideal ou imaginário. Cada guardião de mercadoria sabe que ainda está

longe de dourar suas mercadorias, quando dá a seu valor a forma preço ou

forma ouro imaginária e que nele não precisa de nenhuma migalha de ouro real

para avaliar, em ouro, milhões de valores mercantis. Em sua função de medida

de valor, o dinheiro serve, portanto, como dinheiro apenas imaginário ou ideal

[als nur vorgestelltes oder ideelles Geld] (Idem, ibidem, p. 88).

Este movimento de determinação prática da forma valor, através da forma preço,

permite o descolamento e a incongruência entre uma e outra, episódio relativamente

frequente e conforme à experiência quotidiana dos agentes evolvidos nos processos de

compra e venda. O aspecto mais saliente deste desdobramento é que o caráter necessário

da forma valor torna-se contingente em sua manifestação sob a forma preço. Nas

palavras de Marx:

Com a transformação da grandeza de valor em preço, essa relação

necessária aparece como relação de troca de uma mercadoria com a mercadoria

monetária [Geldware], que existe fora dela. Mas nessa relação pode expressar-

se tanto a grandeza de valor da mercadoria como o mais ou menos em que, sob

dadas circunstâncias, ela é alienável. A possibilidade de uma incongruência

quantitativa entre o preço e a grandeza de valor é, portanto, inerente, à própria

forma preço. [...] A forma preço, porém, não só admite a possibilidade de

4 Apesar de que a opção dos tradutores por verter Geldware pela expressão “mercadoria monetária” seja

estilisticamente mais elegante, a expressão dinheiro-mercadoria, além de mais fiel ao original, evitaria

qualquer ambiguidade, inclusive uma eventual confusão entre dinheiro [Geld] e moeda [Münze].

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incongruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre

grandeza de valor e sua própria expressão monetária [zwishen der Wertgröβe

und ihrem eignen Geldausdruck zu], embora dinheiro seja apenas a forma valor

das mercadorias. Coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como por

exemplo consciência, honra, etc., podem ser postas à venda por dinheiro pelos

seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria.

Por isso, uma coisa pode, formalmente, ter um preço, sem ter um valor. A

expressão de preço torna-se aqui imaginária, como certas grandezas da

matemática. Por outro lado, a forma imaginária de preço [die imaginäre

Preisform], como, por exemplo, o preço da terra não cultivada, que não tem

valor, pois nela não está objetivado trabalho humano, pode encerrar uma relação

real de valor ou uma relação derivada dela (Idem, ibidem, pp. 92-93).

Contudo, os processos de intensificação e disseminação do intercâmbio também

propiciaram a emergência das moedas como manifestações da forma dinheiro. Nelas,

em substituição ao dinheiro-mercadoria, em um princípio só distinguível pela chancela

de uma autoridade considerada idônea (como, por exemplo, os templos das deusas da

fecundidade)5, uma vez que o metal precioso podia ser comum a ambos, abria-se o

caminho para o abandono definitivo do valor de uso natural, ainda presente no dinheiro-

mercadoria ou nas moedas cunhadas em metal nobre, capazes ainda de satisfazer a

alguma apetência humana que se originasse em sua forma natural se fossem fundidas e

recebessem a forma útil almejada. As moedas tornam-se os modos de expressão mais

adequados para a forma preço que, com elas, sofre um processo progressivo de

desmaterialização. Assim, nas palavras de Marx:

Da função do dinheiro como meio circulante surge sua figura de moeda.

A fração de peso do ouro, representada pelo preço ou nome monetário das

mercadorias, tem de defrontar-se com estas na circulação sob a forma de uma

peça de ouro de igual denominação ou moeda. Assim como a fixação do padrão

dos preços, a cunhagem é incumbência do Estado. [...] Moedas de ouro e barras

de ouro diferenciam-se originalmente apenas pela gravação, e o ouro é

suscetível de passar constantemente de uma forma à outra. Mas o caminho para

deixar de ser moeda é, ao mesmo tempo, a marcha ao cadinho. Pois, na

circulação, as moedas de ouro se desgastam, uma mais, a outra menos. O título

de ouro e a substância de ouro, o conteúdo nominal e o conteúdo real começam

seu processo de dissociação. Moedas de ouro da mesma denominação assumem

5 A própria etimologia da palavra moeda guarda a reminiscência desta origem, já que era no templo de

Juno Moneta que se produzia o numerário romano, porém, Juno Lucina velava pelas parturientes...

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valor desigual, por terem pesos diferentes. [...] Se o próprio curso do dinheiro

dissocia o conteúdo real do conteúdo nominal da moeda, sua existência metálica

de sua existência funcional, ele já contém latentemente a possibilidade de

substituir o dinheiro metálico em sua função de moeda por senhas de outro

material ou por símbolos. [...] Coisas relativamente sem valor, bilhetes de papel,

podem portanto funcionar, em seu lugar, como moeda. Nas senhas metálicas de

dinheiro, o caráter puramente simbólico ainda está em certa medida oculto. Na

moeda papel revela-se plenamente. Como se vê, ce n’est pas que le premier pas

que coûte (Idem, ibidem, pp. 107-108).

Com efeito, à esteira das senhas de papel pode-se, também, sem maiores

dificuldades, admitir senhas magnéticas ou expressões monetárias virtuais. Isto é

possível porque, na forma dinheiro, e, em consequência, em sua expressão monetária,

sua utilidade se resume à capacidade de refletir as formas relativas de valor das

mercadorias profanas, ou seja, uma determinação puramente quantitativa desta

qualidade social peculiar dos produtos do trabalho humano. No ensejo, seria oportuno

acrescentar a observação de Marx de que “[...] do mesmo modo que a verdadeira moeda

papel origina-se da função do dinheiro como meio circulante, o dinheiro de crédito

possui sua raiz naturalmente desenvolvida na função do dinheiro como meio de

pagamento” (Idem, ibidem, p. 108). Daí para a análise do capital fictício efetuada no

Livro III o passo é grande, embora dado em estrada já razoavelmente bem pavimentada.

O dinheiro de crédito, estreitamente associado à atividade bancária, introduz a

possibilidade da criação de dinheiro e capital fictícios. Destarte, por esta razão Marx

afirma que

Na medida em que o Banco emite notas, que não são cobertas pela reserva

metálica guardada em seus cofres, ele cria signos de valor que constituem para

ele não apenas meios de circulação, mas também capital adicional, ainda que

fictício [fiktives Kapital], no valor nominal destas notas sem cobertura. E esse

capital adicional proporciona-lhe um lucro adicional (Idem, ibidem, Livro III,

Vol. 2, p.69)6.

Na época de Marx o padrão ouro vigia a tal ponto que o insigne renano não teve

pejo em iniciar o Terceiro Capítulo do Livro I, onde trata da forma dinheiro, com a

seguinte assertiva: “A fim de simplificar, pressuponho sempre neste escrito o ouro como

a mercadoria monetária [Geldware]” (Idem, ibidem, Livro I, Vol. 1 p. 87). Este fato,

sem embargo, não impediu que Marx vislumbrasse a possibilidade de configuração das

6 Os sublinhados são meus (MCBM).

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senhas de dinheiro. A determinação do valor em preço e sua expressão sob a forma de

moeda [Münze], permitiu a extensão do valor além do seu âmbito estrito. A forma preço

se espraia além do domínio do trabalho abstrato, incidindo sobre a propriedade

fundiária, por exemplo, que não é produto do trabalho humano e a moeda não é mais,

como na forma dinheiro (sobretudo enquanto dinheiro-mercadoria [Geldware]), o

desdobramento necessário da forma mercadoria, mas assume um caráter

convencionado, podendo expressar valor, sem, contudo, conter trabalho abstrato. O

trânsito da riqueza abstrata à riqueza fictícia, ápice de sua emancipação com relação à

riqueza concreta na qual se origina, teve como escalões necessários as formas moeda e

preço.

Para Marx o trabalho abstrato, ou diretamente social, é a substância do valor,

vale dizer, o pedestal sobre o qual se erige a riqueza abstrata. No entanto, seus

desdobramentos ulteriores através da forma dinheiro, expressa em moeda, e da

determinação da forma valor em preço, podem tender uma ponte no vazio: a riqueza

fictícia não é mais cristalização de trabalho abstrato, pois só o contém como referência

etiológica. O compromisso da riqueza fictícia com a riqueza concreta, da qual

dependem os indivíduos humanos para subsistir, é ainda mais tenso e remoto que o da

riqueza abstrata, inclusive porque sua capacidade exponencial de desconchavo se

amplifica e se potencializa. Ademais, por sua própria natureza a riqueza fictícia é um

convite ao desenvolvimento de expedientes de valorização do valor meramente

fraudulentos7. As possibilidades de eclosão de crises que enseja são, portanto, ainda

mais dramáticas e explosivas.

7 A atualidade do exame de Marx também se corrobora em passagens como a seguinte: “À primeira vista,

a crise toda se apresenta portanto apenas como crise de crédito e crise monetária. E de fato trata-se apenas da convertibilidade das letras em dinheiro. Mas essas letras representam em sua maioria compras e

vendas reais, cuja extensão, que ultrapassa de longe as necessidades sociais, está, em última instância, na

base de toda crise. Ao lado disso, entretanto, uma enorme quantidade dessas letras representa negócios

meramente fraudulentos que agora vêm à luz do dia e estouram; além de especulações feitas com capital

alheio, mas fracassadas; e, finalmente, capitais-mercadorias desvalorizados ou até invendáveis ou

refluxos que jamais podem entrar. Todo esse sistema artificial de expansão forçada do processo de

reprodução não pode naturalmente ser curado pelo fato de um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra,

dar a todos os caloteiros, em seu papel, o capital que lhes falta [...]” (Idem, ibidem, Livro III, Vol. 2, p.

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Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES, Ética Nicomaquea, In Obras, Madri, Aguilar, 1973a.

ARISTÓTELES, Política, In ídem, 1973b.

MARX, Karl, O Capital: crítica da economia política, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MARX, Karl, Marx, Lineamientos Fundamentales para la Crítica de la Economía

Política 1857-1856 [Grundrisse], México: Fondo de Cultura Económica, 1985.