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Keila Grinberg e Hebe Mattos

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Publicado pela Secretaria de Relações Internacionais do Partido dos Traba-lhadores – Brasil – www.pt.org.br

Iole Iliada Lopes – Secretária de Relações Internacionais do PT

Coordenação: Beluce Bellucci

Diagramação: Sandra Luiz Alves

Equipe da Secretaria:Edma Valquer ([email protected]); Fábio El-Khouri ([email protected]); Wilma dosReis ([email protected]); Valter Pomar – Membro da Direção Nacional e Se-cretário Executivo do Foro de São Paulo (pomar.valter @gmail.com).

PARTIDO DOS TRABALHADORES – Integrantes da CEN para o biênio 2010/2014Comissão Executiva Nacional (CEN) – (Direito a voto e voz)Rui Falcão – Presidente; José Guimarães – Vice-presidente; Fátima Bezer-ra – Vice-presidente; Elói Pietá – Secretário Geral; João Vaccari Neto – Secre-tário de Finanças; Paulo Frateschi – Secretária de Organização; André Vargas –Secretário de Comunicação; Renato Simões – Secretário de MovimentosPopulares; Jorge Coelho – Secretário de Mobilização; Carlos Henrique Ára-be – Secretário de Formação Política; Geraldo Magela – Secretário de AssuntosInstitucionais; Iole Ilíada Lopes – Secretária de Relações Internacio-nais; Humberto Costa – Líder do PT no Senado; Paulo Teixeira – Líder do PTna Câmara; Maria do Carmo Lara – Vogal; Benedita da Silva – Vogal; MarienePantoja – Vogal; Arlete Sampaio – Vogal; Virgílio Guimarães – Vogal; FátimaCleide – Vogal

Membros observadores da CEN – (Direito a voz sem direito a voto)João Felício – Secretário Sindical Nacional; Valdemir Rodrigues Pascoal –Secretário Nacional da Juventude; Edmilson Souza – Secretário Nacional deCultura; Júlio Barbosa – Secretário Nacional de Meio Ambiente e Desenvol-vimento; Laisy Moliére – Secretária Nacional de Mulheres; Cida Abreu – Secre-tária Nacional de Combate ao Racismo; Elvino Bohn Gass – Secretário Nacio-nal Agrário

São Paulo – Rua Silveira Martins, no 132, Centro, CEP 01019-000São Paulo-SP, Brasil. E-mail: [email protected] – Tel. (+5511) 3243-1377

Fax (+5511) 3243-1359.Brasília – SCS Quadra 2 – Bloco C – no 256 – Edifício Toufic

CEP 70302-000 – Brasília-DF, Brasil. Tel. (+5561) 3213-1373/1423

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Índice

Apresentação ....................................................5

Escravidão e tráfico de escravizados ..................7

Referências bibliográficas ................................48

As autoras ......................................................49

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O tráfico transatlântico de escravos e o desenvolvimento do capitalismo mercantil

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Apresentação

O continente africano sempre teve importância ímpar para oPartido dos Trabalhadores. Mas foi somente após o início daadministração Lula, com o incremento das relações governa-mentais, que o PT acentuou práticas com o continente paraalém das definições de princípios. Assim, já foram realizadosseminários e palestras no âmbito das Relações Internacionaissobre a temática, como agora esta edição de uma coleção espe-cífica sobre a África que a Secretaria de Relações Internacionaisdefiniu preparar e encarregou-me da coordenação.

Iniciada com o texto já editado Por que África? de BeluceBellucci e Luiz Carlos Fabbri, a coleção inclui Cadernos especí-ficos sobre os seguintes temas:

O Islã na África, de Maria do Carmo Ibiapina de Menezes; O tráfico transatlântico de escravos e o desenvolvimento

do capitalismo mercantil, de Luiz Carlos Fabbri; Escravidão e tráfico de escravizados, de Keila Grinberg e

Hebe Mattos. África no século XIX. O fim do tráfico e o início do colo-

nialismo, de Philippe Lamy. A Ocupação Colonial da África. Da Conferência de Berlim

à Primeira Guerra Mundial, de Philippe Lamy. A exploração colonial na África, de Beluce Bellucci e

Philippe Lamy

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África do Sul: Ocupação e apartheid, de Pablo de RezendeSaturnino Braga.

Finalmente, trará ainda ao debate assuntos contemporâneossobre a África, como as ideologias de emancipação, os processosde independência, a modernização, a experiência socialista, asrelações Brasil x África, e a atual conjuntura político-econômi-ca.

Esta Coleção foi pensada para ser útil aos militantes e ativis-tas sociais, para permitir o conhecimento sobre o continenteafricano, a discussão e a formulação de políticas comuns, demaneira a aproximar conscientemente os nossos povos, supe-rando as lacunas do passado e ampliando caminhos para alémdas nossas origens comuns.

Beluce Bellucci

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Escravidão e tráfico de escravizados

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1. Escravidão, redes comerciais e o tráfico atlântico

1.1. Escravidão e comércio deescravizados nas sociedades africanasNa Europa do início da idade moderna, a escravidão era

uma instituição de difusão restrita, mas ainda existente. Asguerras entre cristãos e mouros na Península Ibérica e no norteda África produziam cativos dos dois lados em luta. Atravésdos árabes, escravos negros chegavam ao Mediterrâneo aindano final da Idade Média. Por isso, quando os portugueses che-garam à costa atlântica da África no século XV em busca deouro, não ficara surpresos quando se depararam com a existên-cia de escravos nas várias sociedades africanas. Não tiveramdificuldades também em participar do mercado já estabelecidode cativos, vendendo-os entre as diferentes sociedades africanasda costa e levando outros tantos para Portugal.

Cristãos, mouros e as diferentes sociedades da Áfricasubsaariana, consideradas pagãs pelas duas grandes religiõesmonoteístas, conheciam e toleravam a escravidão e o comérciode cativos antes das dramáticas transformações determinadaspelo desenvolvimento da economia de plantation nas Américas.

Apesar disso, a presença da escravidão nas sociedades da Áfricanegra antes do tráfico atlântico é tema pouco conhecido de um

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público mais amplo, mesmo com o número crescente de estu-dos sobre o assunto. Na África, como em todas as sociedadesque conheceram a instituição da escravidão, o escravo era umapropriedade, sujeito a tratamento violento e à exploração pro-dutiva e sexual, considerado como um estrangeiro na socieda-de onde era cativo.

As formas de escravidão existentes até então na África, sejanas sociedades muçulmanas seja nas sociedades tradicionais,eram, entretanto, diferentes do regime de trabalho escravo criadopelos europeus, após o estabelecimento das primeiras plantationsde açúcar pelos portugueses nas ilhas do Atlântico e depois nasAméricas.

O estabelecimento do tráfico atlântico de escravos, responsá-vel pela migração forçada de no mínimo 11 milhões de africa-nos para o continente americano, provocou uma modificaçãoradical na organização da escravidão africana. Ao mesmo tem-po, possibilitou a criação da escravidão moderna nas Américas.

1.2. Parentesco e escravidãoUma das principais características das sociedades africanas

ao sul do Saara era a configuração de estruturas sociais funda-mentadas na etnia e nos laços de dependência, entre os quaisfiguravam o parentesco e a escravidão. A comunidade era oprincipal elemento de garantia da coesão social: elementos queameaçassem a harmonia ou rompessem com a lealdade ao seugrupo de parentesco podiam ser expulsos e, conseqüentemen-te, escravizados.

Os escravos eram obtidos de várias maneiras: através do apri-sionamento de “estrangeiros”, em guerras, seqüestros ou com-pra, tanto de indivíduos expulsos de suas comunidades – acu-

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sados de praticar feitiçaria, por exemplo – quanto de membrosde comunidades cuja sobrevivência estava ameaçada pela fome;ou através de sanções aplicadas a membros da própria comuni-dade de origem por crimes cometidos, como adultério e assas-sinato, e pelo não pagamento de dívidas.

De qualquer forma, não importando qual fosse a forma deescravização, os cativos sempre eram transformados em estran-geiros, sendo excluídos de seus grupos de parentesco originais esendo incorporados à sua nova condição de dependentes. Em-bora os escravos não tivessem estabilidade nas comunidadesque os aprisionaram, podiam tornar-se parte das comunidadesnas quais eram inseridos, podendo participar da estrutura fa-miliar e exercer funções econômicas.

1.3. A escravidão de linhagemPelo fato de os escravos poderem tornar-se parte das comu-

nidades, tanta importância era dada às mulheres cativas. Asescravas se inseriam na vida doméstica com mais facilidade doque os homens – por isso, valiam mais, em caso de comerciali-zação – e ainda produziam novos escravos para a comunidade.Em muitos casos, os filhos das escravas eram libertados e a mãerecebia a liberdade quando seu senhor morria. As crianças tam-bém eram valorizadas pela mesma razão: como eram adquiri-das ainda novas, adaptavam-se facilmente às estruturas de pa-rentesco da linhagem de seus senhores.

Ao ser inserido em uma linhagem, o escravo “adotado” eratido como “filho” do senhor, embora não fosse consideradofilho de verdade. Dependendo do tipo de relação que estabele-cesse com seu senhor, o escravo podia ser bem tratado, chegan-do mesmo a ter alguma possibilidade de mobilidade social.

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De fato, esta era a principal característica da escravidão namaioria das sociedades da África pré-colonial, a escravidão do-méstica ou de linhagem: ela era fundamentada na relação extre-mamente pessoal entre senhor e escravo, da qual derivava todaa inserção social deste último. O escravo era basicamente umdependente do senhor; podia servir como mercadoria, ser tro-cado ou vendido, exercer funções produtivas – trabalhar comoagricultor, mineiro, carregador, artesão –, mas, em essência, erauma fonte de prestígio social e poder político para seu senhor.

1.4. O comércio de escravos africanose a expansão islâmica na ÁfricaO comércio de escravos não era essencial ao funcionamento

das sociedades africanas até o século VIII; foi aos poucos ga-nhando importância com a expansão islâmica no norte da África,na Península Ibérica e na costa do Índico. A partir de então,escravos africanos passaram a ser incorporados às comunidadesmuçulmanas, onde eram usados em serviços militares e admi-nistrativos, além das funções domésticas descritas anteriormente.

Nas sociedades islâmicas, a escravidão era concebida comouma forma legítima de converter os não-muçulmanos; como,neste período, praticamente não havia muçulmanos ao sul doSaara, a África negra se tornou fonte importante de escravospara o mundo islâmico. A conversão ao islamismo, a partir doséculo XIII, de povos e reinos africanos na região do Sael e daSavana, em geral ligados às grandes rotas do comérciotransaariano, acentuaria este processo.

A demanda dos mercados escravistas do Mediterrâneo e oestabelecimento de rotas comerciais internacionais por merca-dores árabes, que, além de comercializarem escravos, os utiliza-

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vam como carregadores de outros produtos, como ouro e mar-fim, contribuíram para animar a produção de escravos na Áfri-ca: foi nestas circunstâncias que algumas sociedades começa-ram a se especializar na captura de cativos para negociá-los,formando reinos centralizados.

1.5. Escravidão africana e centralização políticaAlguns historiadores argumentam que, já que as sociedades

africanas não conheciam a propriedade privada da terra, foijustamente a escravidão que teria propiciado a acumulação debens materiais e de prestígio por parte das elites destes reinos,provendo os recursos materiais e demográficos necessários paraa centralização política. Para a formação destes reinos, tambémteria sido fundamental a autoridade do rei, que precisava fazercom que as pessoas abandonassem a lealdade a seus grupos deorigem para se incorporar às suas cortes, atuando como do-mésticos, artífices ou mercenários.

O emprego de cativos africanos nas redes de comércio inter-nacional aumentou o seu uso militar e administrativo, bemcomo o seu uso produtivo pelas aristocracias que se formavamnos reinos centralizados que controlavam as grandes rotas docomércio transaariano. Na maior parte dos casos, porém, mes-mo na África muçulmana, a escravidão doméstica, especial-mente de mulheres, continuou a ser preponderante; embora osescravos fossem comercializados em escala antes inexistente, namaioria dos casos suas funções nas sociedades onde passaram aser inseridos pouco se alteraram.

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1.6. A transformação da escravidãoafricana: o tráfico atlânticoEsta situação, no entanto, não perduraria por muito tempo.

Tudo começou a mudar em 1483, quando o navegador portu-guês Diogo Cão aportou na foz do rio Zaire, reino do Congo.A partir de então, com o crescimento e a expansão do tráficoatlântico, as formas de utilização da escravidão até então prati-cadas sofreriam uma lenta mas radical transformação: de umaforma de dependência pessoal, a escravidão passaria a ser, nasAméricas, um sistema no qual o trabalho escravo ocupava ocentro da atividade produtiva.

Na África, as disputas pelo controle do novo mercado deescravos acentuariam as tendências à dispersão política e à dife-renciação social no continente. Até 1600, cerca de 409.000escravos sairiam das costas africanas em direção às ilhas do Atlân-tico e às Américas. Embora holandeses, franceses, ingleses eespanhóis tenham estabelecido relações comerciais com socie-dades africanas, do século XV a meados do XVII quem efetiva-mente dominou o comércio com a costa ocidental africana fo-ram os portugueses. Eles foram os responsáveis pelo estabeleci-mento de um padrão de relação entre os europeus e os africa-nos que orientaria os contatos entre ambos até o fim do tráficoatlântico de escravos.

1.7. A chegada dos portugueses ao Reino do CongoQuando os portugueses chegaram ao Reino do Congo e ali

começaram a estabelecer relações diplomáticas, políticas e co-merciais, já encontraram grandes mercados regionais, onde erafeita troca de produtos como sal, metais, tecidos e derivados deanimais, e onde havia um sistema monetário, cuja unidade

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básica eram conchas (nzimbu), coletadas na ilha de Luanda.Nesta época, a escravidão já era uma instituição importante naregião: com a busca por metais preciosos – o grande interessedos portugueses no século XVI, para além dos escravos – e como aumento do comércio de exportação, o interesse por escravostambém sofreu grande incremento, já que era possível usar mãode obra escrava na mineração e na própria produção em maiorescala de sal, mercadorias agrícolas e manufaturadas.

O estreitamento das relações entre os congoleses e os portu-gueses teve como efeito inicial, na África, a intensificação dastrocas comerciais regionais e internacionais, provocando o au-mento da importância do comércio no próprio reino do Congo.Embora, no início, muitos dos comerciantes envolvidos nasnovas redes comerciais fossem congoleses, com o tempo o co-mércio passou a ser controlado tanto por holandeses quantopor portugueses que habitavam a região de São Tomé.

Ao mesmo tempo, a aliança com os portugueses acentuou acapacidade do reino do Congo em adquirir escravos, vendidospara os portugueses ou utilizados para suplementar a produçãointerna. Os portugueses utilizavam os escravos africanos inici-almente em serviços domésticos; em menor escala, eles eramusados nos trabalhos agrícolas. Com a expansão da produçãoagrícola nas ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde, no entan-to, a partir da segunda metade do século XV, a utilização dotrabalho de escravos africanos tornou-se indispensável, já quehavia carência de qualquer outro tipo de mão-de-obra.

1.8. Os negócios entre portuguesese africanos no século XVIOs negócios entre portugueses e africanos eram regulados

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por monopólios reais, exercidos por meio de concessões e privi-légios obtidos por determinados comerciantes. No lado africa-no, especificamente, o sucesso da empreitada comercial depen-dia da capacidade dos líderes locais em produzir dependentes –portanto, em produzir escravos. Como, no início, a demandapor cativos era pequena (se comparada com o período posteri-or, evidentemente), reis e chefes tribais supriam as necessida-des apenas com a venda dos criminosos de seus grupos, querepresentavam perda demográfica insignificante.

O comércio, no entanto, floresceu ao longo do século XVI.O aumento nas demandas por escravos provocou o aprofunda-mento dos interesses portugueses na África ocidental; além depassarem a importar escravos também da região do Benin, aCoroa portuguesa começou a se interessar pela região ao sul doCongo, na época habitada por vários reinos independentes, dosquais o mais importante era o Ndongo (seus habitantes, emespecial o rei, eram conhecidos como ngola, de onde vem, maistarde, a denominação Angola para a região).

O estabelecimento de relações comerciais com os portugueses,que traziam mercadorias desconhecidas naquela região da África,trouxe poder e prestígio aos líderes locais envolvidos nas ativida-des do tráfico. Assim, e também por meio de guerras, eles conse-guiram expandir seus territórios e aldeias, deixando, inclusive, dedepender tanto do reino do Congo, a quem antes pagavam tri-butos. Embora os principais portos portugueses na África no sé-culo XVI fossem os de Mpinda (na foz do rio Zaire) e Loango(um pouco ao norte), dominados por comerciantes de São Tomé,a região de Ndongo despontava como mercado promissor.

De fato, o novo processo de produção de escravos na regiãodo Ndongo tomou proporções tais que, logo, ele passaria a con-correr com o tráfico mantido pelos portugueses com o Congo.

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Não foi por outro motivo que, ao longo do século XVI, osportugueses tentaram de várias formas estabelecer relações di-plomáticas com os povos da região de Luanda. Além de procu-rar minas de ouro e prata – depois de terem recebido colares deprata de um embaixador de Luanda no início do século, fica-ram convencidos da existência de metais preciosos no interior–, os portugueses estavam interessados em garantir a continui-dade do trabalho escravo africano na produção do açúcar quese desenvolvia nas ilhas atlânticas e também em sua colônia naAmérica.

2. Atlântico, açúcar e escravos

2.1. A origem das plantações de cana-de–açúcar: São ToméAs plantações de cana-de-açúcar se deslocaram durante o

século XVI das ilhas do Atlântico para o arquipélago de SãoTomé, e dali foram para a costa brasileira e depois para as An-tilhas, no século XVII, dando origem ao sistema responsávelpelo deslocamento forçado de milhões de africanos para asAméricas.

No século XVI, a produção açucareira portuguesa em SãoTomé desenvolveu-se em propriedades que reuniam por vezesmais de cem escravos. Estes escravos, além de trabalharem noscampos de cana-de-açúcar, também produziam suas própriasprovisões; embora muitas vezes vivessem em cabanas com suasfamílias, acabaram, mais tarde, sendo acomodados em barra-cões, prefigurando o sistema que, ao final, se consolidou nasAméricas.

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2.2. De São Tomé ao BrasilPor que, de São Tomé, as plantações de cana-de-açúcar não

se deslocaram para a Costa da África, mas, em vez disso, dirigi-ram-se para o Brasil, na outra margem do Atlântico? É precisodestacar que, por todo o período de vigência do tráfico atlânti-co, o abastecimento de escravos para os mercadores europeusfoi basicamente dependente de estruturas comerciais e políti-cas controladas por elites africanas.

As tentativas de evangelização e penetração política no con-tinente, com a exceção parcial do estabelecimento de uma co-lônia portuguesa no litoral da atual Angola no século XVII,nunca conseguiram se afastar do modelo de feitorias fortificadasno litoral, tributárias de comerciantes e autoridades africanas.Mesmo os chamados “lançados”, em geral portugueses, que sefixavam em diversos pontos do litoral africano e formaram amaioria dos habitantes das ilhas de Cabo Verde e São Tomé noséculo XVI, casavam-se com filhas das aristocracias locais eestabeleciam fortes relações com as autoridades africanas quecontrolavam os portos vizinhos, formando comunidades luso-africanas que tenderam a uma ação comercial independentedas diretrizes das metrópoles européias.

Até pelo menos meados do século XVII a África não apre-sentava desvantagens tecnológicas evidentes em relação aospaíses europeus com os quais mantinha contatos comerciaisregulares. Do mesmo modo, o conhecido choque bacteriológi-co desfavorável aos nativos americanos, que provocou uma ver-dadeira catástrofe demográfica naquele continente, se invertiana África. Ali, eram os europeus que morriam.

A impossibilidade da evangelização em massa dos africanosna África foi um dos argumentos defendidos pelos jesuítas por-

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tugueses para justificar a continuidade da venda de escravosafricanos para as Américas durante o século XVII; como escra-vos, eles seriam evangelizados na América cristã e, ao mesmotempo, serviriam para proteger os nativos americanos, que seconvertiam ao cristianismo, de destino semelhante.

Por fim, a importação de africanos criou um fluxo atlântico decapitais, passível de ser monopolizado pela Coroa, enquanto asatividades de apresamento indígena se configuravam como umnegócio interno ao espaço colonial, dependente de guerras deapresamento que se realizavam cada vez mais longe das regiõesexportadoras. Não foi à toa que, em finais do século XVII, Portu-gal proibiu legalmente a escravização indígena, a não ser por guerrajusta, enquanto intensificava sua participação no tráfico atlântico,com a consolidação de sua presença colonial em Angola.

Dentro deste quadro, para bem entender a escravidão ame-ricana é preciso conhecer também as estruturas internas às so-ciedades africanas que foram capazes de fornecer, de forma re-gular e ininterrupta, um número crescente, e de proporções atéentão desconhecidas na história, de braços escravos para as eco-nomias escravistas montadas no outro lado do Atlântico.

2.3. A oferta de escravos africanosÀ época da abertura do tráfico atlântico de escravos, a África

ao sul do Saara fornecia em média 5.000 escravos por ano paraas rotas do comércio transaariano para a África do Norte, nasquais se comerciava ouro, sal e escravos, entre outros produtos,o que resultou em um total de cerca de 550.000 escravos ex-portados ao longo do século XVI.

O primeiro século e meio de comércio de escravos europeuna costa da África, entre 1450 e 1600, envolveria um volume

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um pouco menor, porém comparável, de cativos, num total de409.000 escravos adquiridos pelos mercadores europeus. A partirde então, o tráfico europeu cresceria em progressão geométricaaté o século XVIII, com profundo impacto nas estruturas eco-nômicas e políticas que garantiam a oferta de escravos no inte-rior do continente africano.

O tráfico era um negócio, uma grande empresa comercialque envolvia agentes comerciais europeus e africanos; depen-dia, porém, da violência política que sancionava a possibilida-de da produção de cativos na África e a legalidade da escravi-dão nas Américas. Nas sociedades européias do início da épocamoderna ou nas sociedades africanas do mesmo período não étarefa fácil separar analiticamente os fatores econômicos dospolíticos e religiosos com eles imbricados.

O aumento da capacidade de produção de cativos na Áfricadependeu basicamente da guerra e, portanto, de razões de Es-tado. Cada vez mais, porém, o poderio dos Estados africanosda costa se baseava em sua capacidade de controlar as rotas dotráfico em seu território e na proteção dos seus habitantes dasexpedições de apresamento de comerciantes e reinos vizinhos,fazendo recuar para o interior do continente a fronteira dasrazias e apresamentos.

Por outro lado, as disputas pelo controle dos portos e feirasde venda de escravos criava rivalidades crescentes e levava osEstados africanos à guerra. De todo modo, disputas sucessórias,rivalidades entre linhagens e grupos étnicos ou conflitos religi-osos possuíam lógica própria que também levavam à guerra, eesta sempre produzia escravos. Nestes casos, a guerra teria quese fazer de modo a não comprometer o funcionamento dosportos negreiros e a estrutura de comércio que transportava oscativos no interior do continente africano.

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2.4. Guerras na África centro-ocidental: o CongoA África centro-ocidental, que englobava a costa africana

desde Cabinda e Loango até Angola, foi a responsável por cer-ca de 3/4 dos escravos exportados para a América até finais doséculo XVII. Já acompanhamos a importância do reino doCongo como principal fornecedor de escravos para São Tomé eo Atlântico no século XVI. No século seguinte, foram três osprincipais fatores que fizeram a região continuar como a maiorfornecedora de escravos para as Américas.

Desde o século XVI, repetidos conflitos sucessórios levaramà guerra civil no reino do Congo, convertido ao cristianismono século anterior e que até então monopolizava o comércio deescravos na região. O aumento da procura européia, e não ape-nas portuguesa, pela aquisição de escravos a serem levados di-retamente para a América comprometeu o complexo Mpinda–São Tomé antes prevalecente. A nobreza congolesa, mergulha-da em conflitos sucessórios, mostrava-se mais preocupada emincorporar escravos às suas propriedades agrícolas, na capitalSão Salvador e no distrito de Mbanza Sônio, do que em garan-tir o comércio estatal.

Apesar do reino do Congo continuar a participar do comér-cio de escravos, do qual fora o principal fornecedor no séculoXVI, a partir do século XVII a insegurança interna devida aosconstantes conflitos sucessórios e à quebra das relações devassalagem com os reinos tributários ao manicongo (rei doCongo) acabou por resultar na desagregação do reino e na guerracivil aberta na segunda metade do século XVII.

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2.5. Guerras na África centro-ocidental: AngolaParalelamente, a intensificação da demanda de escravos na

América e a busca de minas de prata nas terras do Ndongolevaram os portugueses à criação da colônia de São Paulo deLuanda, a partir da qual começaram a enviar expedições aointerior, ainda em busca de minas de prata e, na falta destas, dacaptura de escravos, passando a se envolver diretamente nosconflitos políticos da região.

A política portuguesa no Ndongo procurava aproveitar-sedos conflitos sucessórios e entre linhagens para converter e tu-telar o Ngola (Angola), esvaziando-lhe o poder e enraizando apresença portuguesa em Angola. A ocupação portuguesa dolitoral do Ndongo, com a fundação de São Paulo de Luandaem 1576, envolveu portugueses, luso-africanos, luso-brasilei-ros e diversos aliados das linhagens africanas em luta, por todoo século XVII, em uma série de guerras conhecidas como guer-ras angolanas.

A política portuguesa alimentou as rivalidades étnicas esucessórias entre os antigos vassalos do reino do Congo, derro-tado na batalha de Ambuíla, em 1665. Apesar disto, os portu-gueses permaneceram confinados no litoral em torno de Luan-da e no corredor comercial ao longo do rio Cuanza, dependen-do de alianças políticas com os reinos africanos do interior parao controle do tráfico de escravos.

Estes reinos do interior, a leste de Luanda, formaram-se apartir da expansão dos grupos de guerra imbangala na áreaonde tradicionalmente viviam os ambundos. A origem dosimbangala, chamados jagas pelos portugueses, é controversa,mas sabe-se que eram grupos originalmente compostos porhomens, que viviam em acampamentos militarizados, chama-

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dos quilombos, formados a partir da aliança entre jovens guer-reiros que negavam as estruturas tradicionais de parentesco e asupremacia dos anciãos, prevalecentes entre as comunidadesambundo. Recrutavam seus membros a partir da escravizaçãoe da iniciação como soldados de meninos não-circuncidados.Em sua expansão, as mulheres que não tomavam como esposase os homens adultos capturados eram vendidos aos portugue-ses e holandeses.

Reza a lenda que matavam os filhos das mulheres que toma-vam como esposas, que eram antropófagos e que utilizavam nocorpo um ungüento de gordura humana, formado a partir domassacre de crianças, que os tornava invencíveis em batalha.

Alguns autores consideram que as referências à prática doassassinato das crianças nascidas nas comunidades imbangalarelatam, de fato, práticas rituais, que sinalizavam o rompimen-to com os laços de parentesco e com a linhagem, que caracteri-zava o grupo. De fato, os imbangala conseguiram se sobreporàs regiões ambundos; boa parte dos reinos sob seu controleforam transformados em ambundo-imbangala, como o reinode Matamba, da famosa rainha Njinga ou Jinga, nascidaambundo, irmã do Ngola do Ndongo.

2.6. O caso da rainha NjingaA rainha Njinga havia sido regente de seu sobrinho, o qual

assassinou para assumir o poder. Governou Matamba e o querestava do Ndongo fora do controle português adotando cos-tumes de ambos os grupos, mas sob formas de governoimbangalas (prevalência do conselho militar sobre as linhagens).

Boa parte dos autores considera que Njinga tornou-se im-bangala devido a acusações de ilegitimidade de sua pretensão

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ao trono do Ndongo por parte das linhagens e facções oponen-tes. Mesmo que não houvesse nenhuma tradição nos dois gru-pos que justificasse a ascensão de uma mulher ao poder, o sis-tema de eleição por pares militares dos imbangala era mais abertoe foi essencial para a legitimação de Njinga, que participavadiretamente das batalhas, vestia-se de homem e vestia de mu-lher seus vários concubinos.

Em seu longo reinado, Njinga opôs-se a maior parte do tem-po à hegemonia portuguesa em Luanda, aliando-se aos holande-ses, de quem se tornou fornecedora preferencial de escravos. De-pois dela, o reino de Matamba, chamado do “Ndongo e Matamba”até meados do século XVIII, teve várias rainhas. Depois de seureinado, Njinga passou a ser associada à luta contra a domina-ção portuguesa, tornando-se símbolo de resistência.

Sob os senhores de guerra congoleses, portugueses, ambundosou imbangalas foi produzida a maioria dos escravos africanosexportados para as Américas até o século XVII. No final doperíodo, os imbangalas de Matamba e Cassanje controlavamde fato as rotas do tráfico que vinham do interior e mantinhamo controle dos negócios de importação e exportação, revenden-do em suas feiras aos portugueses e holandeses.

2.7. A concorrência europeia com os portuguesesOs portugueses insistiam para que os chefes africanos não

comerciassem com os outros europeus, a quem consideravampiratas. Mas seus apelos não eram ouvidos nem mesmo pelascomunidades luso-africanas espalhadas pelo longo litoral. Aconcorrência de holandeses, ingleses e franceses, desde cedopresente, se intensificou com a montagem de seus sistemas deengenhos de açúcar nas Antilhas, dependentes do trabalho es-

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cravo africano, ao longo do século XVII. Nesta época, os fortese feitorias europeus, de diferentes bandeiras, se multiplicarampelo litoral africano.

2.8. Conflitos entre holandeses e portuguesesOs conflitos entre holandeses e portugueses se desdobraram

dos dois lados do Atlântico, na disputa pelos engenhos e suasfontes de trabalho. Os flamengos tomaram dos portugueses,em 1637, o forte de São Jorge da Mina, com tropas trazidas dePernambuco, que antes haviam tomado aos mesmos portugue-ses. Também barcos e tropas vindos do Recife expulsaram tem-porariamente os portugueses de Luanda, Benguela e São Tomé,em 1641.

Na costa da África, os holandeses aliaram-se a líderes africa-nos inimigos dos portugueses, entre eles a conhecida rainhaNjinga, para tirar-lhes posições no tráfico e garantir suas posi-ções em São Tomé e Luanda. Também a posterior recuperaçãode Angola pelos portugueses foi feita por tropas vindas do Bra-sil, que incluíam veteranos da libertação de Pernambuco, lide-radas pelo novo governador português em Luanda, SalvadorCorreia de Sá e Benevides, antes governador no Rio de Janeiro.

A consolidação da presença portuguesa em Angola e no Brasilnão diminuiu a presença das embarcações holandesas em Cabindae Loango, ao norte, e, de resto, em toda a costa africana. Tambémfranceses e ingleses se fizeram presentes e disputaram espaço nopromissor comércio de escravos da costa africana.

Apesar da dependência dos europeus de mercadores e auto-ridades locais, algumas áreas de influência que então se estabe-leceram acabaram por se tornar a ponte para a penetração eu-ropéia no continente quando da partilha colonial da África, no

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final do século XIX. No final do século XVII, o tráfico francêsse fazia mais presente na foz do Senegal, os portugueses manti-nham-se firmes em Cacheu e Bissau, além de Angola, e os in-gleses expulsaram os portugueses da embocadura do Gâmbia.

2.9. O tráfico na África centro-ocidentalNo século XVIII, a maior parte do tráfico português conti-

nuou a se concentrar ao sul da África centro-ocidental, em ge-ral português apenas no nome, pois a ligação bilateral Rio deJaneiro-Luanda tendeu a predominar. Na mesma época, o co-mércio triangular de navios franceses, ingleses e holandeses tor-nou-se predominante na parte norte da região, onde se con-centravam os portos em torno da foz do rio Zaire, na Baía deLoango, Malemba e Cabinda, controlados por elites comer-ciais africanas que tenderam a substituir os antigos Estadoscentralizados no controle dos portos negreiros.

Se política e negócios são dificilmente separáveis na lógica –européia ou africana – que gerou o tráfico atlântico de escra-vos, o século XVIII fez cada vez mais predominante o carátermercantil do sistema que a partir dele se montou. Também nacosta ocidental, primeira fornecedora de escravos para os euro-peus, o comércio de cativos transformou as relações políticas eacentuou as desigualdades sociais nos antigos Estados da área.

O comércio de longa distância na África era antigo e envol-via outros produtos além de escravos, como o ouro – que atraiuos europeus para a costa africana –, o sal e a noz-de-cola, entreoutros. De todo modo, a intensificação sem precedentes docomércio de escravos, no século XVIII, potencializou a inte-gração comercial entre as várias regiões africanas, quase namesma medida em que se multiplicaram os conflitos políticos.

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2.10. O papel das elites africanasEm troca dos escravos capturados, as elites africanas que

monopolizavam os circuitos de venda dos cativos recebiam doseuropeus diversos itens de valor monetário nos mercados afri-canos (como a concha de caurin, alguns têxteis da Índia – osguinéus –, moedas de prata, fios de cobre); armas e cavalospara seus exércitos (as espingardas e mosquetes fornecidos porcomerciantes ingleses eram um dos principais itens do comér-cio na costa ocidental africana na primeira metade do séculoXVIII) e bens suntuários para o consumo das elites africanas,como tecidos europeus, assim como o tabaco e a cachaça (co-nhecida como giribita) produzidos no Brasil.

A oferta de escravos continuava, entretanto, a depender lar-gamente de fatores extra-econômicos, relativamente indepen-dentes do desejo de produzir cativos. A guerra entre Estadoscontinuaria a ser uma das principais fontes do tráfico. Do mes-mo modo, a intensificação da punição com escravização de fei-ticeiros, criminosos e outros acusados de comportamentosdesviantes ou nocivos às comunidades manter-se-ia como fon-te privilegiada da oferta de cativos.

A intensificação do comércio tornaria, entretanto, cada vezmais disseminados os seqüestros e razias em pequena escala,conduzidos por pequenos grupos com o fim exclusivo de pro-duzir cativos e vendê-los. Além disso, e principalmente, fariasurgir Estados centralizados especializados em guerras de raziae escravização em larga escala das populações vizinhas. A açãodesses Estados produziria, em alguns casos, um impactodemográfico significativo nas regiões sob ataque.

A tendência ao longo do século XVIII, entretanto, foi deestender cada vez mais para o interior as áreas afetadas pelas

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atividades predatórias dos predadores de escravos, estabilizan-do a situação de anarquia em algumas regiões, mas fazendo asfronteiras das atividades negreiras se expandir por quase toda aÁfrica Ocidental e Central, até o Oceano Índico.

2.11. Os mercados de escravosna África centro-ocidentalNo final do século XVII, duas diferentes redes de mercados

de escravos tinham se estabelecido na África centro-ocidental.A primeira tinha centro nos portos em torno da foz do rioZaire e a outra era dominada pelo tráfico português-brasileiro,em Luanda e Benguela.

Ao longo do século XVIII, ambas as redes aumentaram aintensidade das atividades negreiras e expandiram o tamanhodas áreas envolvidas. As redes tinham seu centro nos portos dacosta onde os escravos eram vendidos para os comerciantes eu-ropeus. Os portos estavam ligados por estradas a feiras no inte-rior, em geral controladas por Estados especializados na produ-ção de cativos, que eram comprados por representantes doscomerciantes dos portos para serem levados ao litoral.

Ao longo das estradas, caravanas de mercadores atuavamcomprando produtos locais e escravos – entre condenados nostribunais locais, escravizados por dívida ou simplesmente se-qüestrados por grupos de salteadores – enquanto vendiam mer-cadorias trazidas de longa distância, da Europa, da África doNorte ou de regiões no interior da África subsaariana. Ao fimdas rotas de comércio, abria-se a fronteira da escravização, umaárea mergulhada na guerra e na anarquia na qual atuavam osagentes de Estados especializados na produção em massa decativos.

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2.12. Fronteiras da escravizaçãona África centro-ocidentalNos século XVII, Matamba e Caçanje foram os principais

Estados do interior a desempenhar o papel de produtores decativos e a controlar as feiras de revenda dos mesmos. Os ho-landeses dependiam de Matamba, da rainha Njinga, quandoocuparam Luanda. Com a volta dos portugueses a Luanda,Caçanje se tornou o principal fornecedor. Sua feira era mono-pólio do Estado e procurava controlar a ação dos representan-tes dos comerciantes portugueses, os pombeiros. Havia, entre-tanto, outros centros. O planalto Ovibundo, ao sul de Luanda,tornou-se também um importante fornecedor, com feiras pró-prias, no século XVIII.

Neste mesmo século, enquanto os reinos imbangalas conso-lidavam seu controle das feiras do interior e sua capacidade decobrar tributos em escravos dos povos sob seu domínio, tam-bém diminuíam sua capacidade de oferta de cativos. As fron-teiras da escravização caminhavam, entretanto, mais para ointerior, dando origem a novos Estados produtores de cativos.

Desde o final do século XVII, uma série de guerras na ÁfricaCentral deu origem à consolidação de novos Estados, sendo osmais importantes, Luba, Lunda, Cazembe e Lozi. A formaçãodesses Estados atendeu a dinâmicas políticas internas aos gruposenvolvidos e não se produziu em função da expansão das necessi-dades do tráfico. Apesar disso, eles atenderam à demanda cres-cente de escravos e se especializaram no seu fornecimento.

O centro comercial de Lunda era o distrito real, chamadoMussumba, onde a exportação de escravos era organizada pelorei. Lunda funcionava como uma espécie de confederação deEstados e os escravos e demais mercadorias eram fornecidos

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pelos reinos associados. O movimento de mercadorias era or-ganizado por funcionários reais que se consideravam parentes,a partir de um sistema de trocas de presentes.

2.13. O impacto do aumento da demanda de escravosDe forma geral, o impacto do incremento da demanda de

escravos determinada pela presença europeia na costa centro-ocidental africana provocou importantes mudanças socioeco-nômicas na área. O cultivo de produtos agrícolas trazidos daAmérica, como o milho e a mandioca, ao longo das estradas eem torno das cidades se generalizou, muitas vezes utilizandoforça de trabalho escrava. A divisão de trabalho entre regiões egrupos étnicos se aperfeiçoou, gerando maior eficiência produ-tiva na região como um todo.

Por outro lado, a desigualdade social se acentuou em quasetodas as áreas. Além dos escravos tradicionalmente incorpora-dos às estruturas produtiva, administrativa, militar e domésti-ca das sociedades tradicionais, formava-se uma massa de cati-vos, amontoados nos barracões das feiras e portos de embar-que, à espera de ser vendidos para além-mar.

Apesar dos milhões de africanos transportados para as Amé-ricas, as mulheres em idade produtiva tendiam a ser incorpora-das às estruturas de linhagem, de forma que a população daregião manteve um relativo crescimento no período. Apesardisso, aquelas regiões mais afetadas pelas atividades próprias dachamada fronteira da escravização conheceram verdadeiros de-sastres demográficos.

2.14. A expansão portuguesa na África ocidentalToda a costa da África Ocidental era genericamente desig-

nada Guiné nos séculos XV e XVI. Após a tomada de Ceuta

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aos mouros, em 1515, navios portugueses começaram a explo-rar a Senegâmbia e a Alta Guiné, em busca do “ouro da guiné”,que antes chegava à Europa através do Mediterrâneo, atraves-sando o Saara.

Desde logo, o comércio de escravos tornou-se uma impor-tante fonte de financiamento para as expedições. Ao chegaremà costa da Senegâmbia e às ilhas de Cabo Verde, os mercadoresportugueses estabeleceram contatos e alianças políticas com aspopulações locais, enquanto as primeiras comunidades de “lan-çados” se enraizavam na região.

Em 1470, os portugueses chegaram à chamada Costa daMina, onde ergueram a fortaleza ou Castelo de São Jorge daMina, estabelecendo um padrão de presença européia na costa,depois seguido pelos demais países europeus que estabeleceri-am feitorias fortificadas na região. Como visto, os holandesestomariam São Jorge da Mina aos portugueses, em 1637. Noséculo XV, o Castelo de São Jorge da Mina foi importanteentreposto de fornecimento de escravos para as plantações deaçúcar portuguesas nas ilhas da Madeira.

Com a chegada dos portugueses ao Congo e a conversão domanicongo ao catolicismo, em finais do século XV, as princi-pais correntes do tráfico se deslocariam para a região Congo-Angola, mas o tráfico na costa ocidental continuaria a ser pra-ticado, intensificando-se a partir do século XVII. No séculoXVIII, as várias regiões da costa ocidental em seu conjuntoultrapassaram a região Congo-Angola no fornecimento de es-cravos para o tráfico atlântico, respondendo por 62, 2% dototal das exportações no período.

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2.15. O tráfico de escravos na África ocidentalA Senegâmbia e a Alta Guiné foram as primeiras áreas da

costa ocidental a serem incorporadas ao tráfico atlântico de ca-tivos. Mantiveram-se como importantes regiões de fornecimentode escravos para o mercado atlântico nos séculos XVI e XVII,quando portugueses, franceses e ingleses ali disputaram posi-ções e estabeleceram feitorias fortificadas; comunidades de“lançados” portugueses, franceses e ingleses se fixaram na re-gião e se africanizaram.

Ao final do período, o tráfico francês tendeu a predominarna foz do Senegal, com o controle da ilha de Saint Louis e oestabelecimento de comunidades afro-francesas. A presençainglesa se fazia predominante na Gâmbia e também na regiãode Serra Leoa na segunda metade do século XVIII, deslocandoas comunidades luso-africanas ali inicialmente estabelecidas.Na Alta Guiné, o tráfico português foi predominante em CaboVerde e Cacheu até o século XVII, e as comunidades luso-africanas continuaram ali atuando por todo o século XVIII.

A região como um todo declinou em importância para otráfico atlântico ao longo do século XVIII e a presença dosnavios europeus nos portos da área sempre se manteve estrita-mente dependente de alianças com grupos e mercadores locais.Após o século XVII, comerciantes muçulmanos monopoliza-ram boa parte do fornecimento de escravos na área.

2.16. O comércio muçulmanode escravos na África ocidentalO comércio muçulmano foi responsável por 40% dos escra-

vos exportados da África sul-saariana entre 1500 e 1800. Amaioria desses escravos foi exportada através do Saara, do Mar

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Vermelho e do Oceano Índico, e apenas 10% deles se dirigi-ram para o comércio atlântico. As guerras de fragmentaçãopolítica predominaram na África sul-saariana muçulmana nosséculos XVII e XVIII e responderam pela maior parte do tráfi-co da Senegâmbia e da Alta Guiné no século XVIII.

Guerras entre Estados muçulmanos e não muçulmanos,guerras entre governos nominalmente muçulmanos e guerrassantas islâmicas contra governos estabelecidos consideradosinfiéis foram responsáveis pela maioria dos escravos exportadospor estas áreas desde o século XVII. As guerras santas ligadasao estabelecimento e expansão das novas teocracias islâmicasde Futa Bondu, Futa Toro e Futa Jalom responderam pelamaioria dos escravos exportados dessas regiões no século XVIII.

Fatores religiosos também determinariam a produção de es-cravos na baia de Biafra. Ali, as condenações judiciais, o nãopagamento de penhores e as condenações religiosas eram as prin-cipais fontes de escravização. Apesar da existência de importan-tes centros comerciais, não se formaram Estados centralizadosna região. As rotas comerciais eram controladas pelas redes co-merciais dos aros, povo que se expandiu na região desde mea-dos do século XVII e controlava o oráculo de Ibnukpabi, emArochukwu (Arochuku ou Aro-Okigbo), que administrava jus-tiça e arbitrava os conflitos das diversas aldeias e dos vários gru-pos de parentesco da área. As condenações do oráculo foramresponsáveis pela transferência de milhares de escravos para osnavios, em geral ingleses, que esperavam nos portos do litoral.

2.17. Guerras por escravos na África ocidentalApesar disso, a maioria dos escravos produzidos na costa

ocidental, no século XVIII, foi capturada em guerras levadas a

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cabo pelos Estados centralizados em expansão na região. A par-tir da segunda metade do século XVII, estas guerras transfor-maram o Golfo do Benin na “Costa dos Escravos”. Este mesmopadrão determinou também um vigoroso incremento do tráfi-co negreiro na região vizinha, chamada Costa da Mina, a partirdas disputas entre os vários Estados acãs pelo controle das rotasde suprimento do ouro, da noz-de-cola e de escravos. Quatrograndes Estados atuariam em ambas as regiões no século XVIII,mas nem todos se envolveram no comércio de escravos.

O primeiro e mais antigo deles, o reino do Benin, a oeste dodelta do Níger, conheceu o auge do seu poder no século XVI,quando também mantinha contatos regulares com navios e mis-sionários europeus. Desde 1516, entretanto, as autoridades lo-cais passaram a restringir, até proibir completamente, o tráfico deescravos homens para o Atlântico, proibição que se manteve atéfinais do século XVII. O reino manteve um comércio ativo comos europeus – de pimenta, marfim e panos da costa, entre outrosprodutos – mas ficou fora do comércio de escravos.

No século XVIII, os obás do Benin suspenderam a proibi-ção, mas o comércio negreiro permaneceu pequeno na região,pois os preços dos escravos eram mais altos nos portos sob con-trole do reino e os europeus tinham outras fontes mais promis-soras de fornecimento. O reino do Benin manteve-se comoEstado independente até a expansão colonial européia em fi-nais do século XIX, tornando-se o melhor exemplo da depen-dência dos europeus das decisões dos fornecedores africanospara o desenvolvimento do tráfico na região.

Por outro lado, o reino do Daomé (atual República do Benin)fez do comércio de escravos o principal suporte de sua expan-são. A formação de Estados centralizados entre os povos aja foi

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relativamente tardia e quase sempre ligada ao controle dos por-tos de embarque de escravos. O reino de Alada (onde ficava oporto de Ajudá ou Uidá) foi fundado em 1575 e logo se tornouo principal exportador de escravos da baía do Benin. O reinodo Daomé se desenvolveu no interior da mesma região, comointermediário no tráfico e fornecedor de escravos para a costa e,dali, se propôs a controlar também a região costeira em provei-to do Estado, conquistando Alada. O reino do Daomé se man-teria como fornecedor de escravos para o comércio atlântico atéas primeiras décadas do século XIX. Os traficantes de Salvador,na Bahia, tinham nos portos do Daomé sua principal base decomércio na costa da África.

No mesmo período, ao norte do país Ioruba, baseado empoderosa cavalaria, o reino de Oió começou sua expansão parao sul, formando o Império Oió, a partir da conquista de umasérie de outros reinos de língua iorubá. As guerras provenientesda expansão de Oió forneceram milhares de escravos ao tráfico.A expansão de Oió chegou até o litoral, obrigando o Daomé apagar tributos, porém mantendo sua integridade.

A partir da metade do século XVIII, Oió se envolveria dire-tamente no fornecimento de escravos para o tráfico atlântico,escoando sua produção preferencialmente por Porto Novo eLagos. Este envolvimento foi um dos principais fatores a atuarna crise e posterior desagregação do império no século XIX,quando sucumbiu à expansão da guerra santa (jihad) de Usumandan Fodio, vindo do país Haussa, ao norte.

Por fim, já na Costa da Mina, os conflitos entre Estados acãsacabariam dando origem ao Estado Axante, que unificou ospovos acãs em um único reino e passou a controlar em proveitopróprio o comércio do ouro, da noz-de-cola e também de es-

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cravos pelo porto de Acra. A contínua expansão de Axante emdireção ao norte devastou a região e produziu centenas de mi-lhares de escravos exportados pela Costa da Mina entre 1700 e1750. As exportações de Axante dependiam diretamente de suascampanhas militares, que se mantiveram por todo o séculoXVIII. O pico dessas exportações se fez em 1780 e 1790, quandoda tentativa de ocupar a costa Fante, contígua ao reino.

2.18. As consequências das guerraspor escravos na África ocidentalAs guerras continuadas entre Estados da região forneceram

milhões de escravos para as plantações da América sem fazerrecuar inteiramente as fronteiras da escravização. Mesmo as-sim, não chegou a haver um despovoamento na região, por umlado porque a progressiva centralização de Axante e do impérioOió resguardava parte da população; por outro, em razão daretenção da maioria das mulheres na região e, por fim, peloconstante acréscimo de escravos aos reinos do litoral, trazidosdo interior.

A intensificação do tráfico de escravos não desestruturara ascaracterísticas das sociedades tradicionais. Agravara, é fato, asdesigualdades sociais entre elites militares e aristocráticas e oscamponeses em geral, porém estas não eram inexistentes antesdo tráfico atlântico. Até o século XVIII, os usos militar, ritualou reprodutivo dos escravos continuaram predominantes nassociedades africanas, apesar da importância deles em algumasatividades produtivas, como a mineração e a produção de ali-mentos nos centros comerciais, religiosos ou administrativos.

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3. Relações Brasil-África e o fim da escravidão

3.1. A face africana da história brasileiraAs condições de uso do trabalho escravo nas Américas seri-

am muito diferentes daquelas existentes na África. Na Américase construiriam sociedades totalmente dependentes da explora-ção do trabalho escravo. Mesmo assim, é preciso ter em menteque estas sociedades foram em grande parte construídas porescravos africanos e que, de algum modo, suas crenças, modosde vida, hábitos e costumes marcaram a história das novas so-ciedades coloniais.

Não se trata simplesmente de enfatizar as heranças culturaisafricanas, em geral bastante conhecidas, sejam religiosas ouartísticas, mas de destacar a face africana da história do Brasilcolonial e oitocentista.

Muito se tem escrito sobre a violência do tráfico e sua capa-cidade de desenraizamento e desestruturação cultural das po-pulações escravizadas. Algumas fontes coloniais dão conta deque os senhores preferiam reunir escravos de origem diferenci-ada para evitar revolta e rebeliões. Apesar disso, a oferta deescravos era em grande parte decidida na África e frequente-mente reunia pessoas de línguas e costumes semelhantes.

No Brasil, em especial, a escravidão foi por quase todo otempo literalmente africana, ou seja, a maioria dos escravos nacolônia portuguesa havia nascido na África. A desigualdade entreos sexos, em grande parte uma determinação da oferta africanaque retinha a maioria das cativas na própria África, bem comoum maior acesso à alforria de mulheres e escravos nascidos noBrasil tornavam as plantações dependentes da contínua chega-da de novos escravos vindos dos mercados de cativos da África.

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3.2. Agentes da escravização na África e no BrasilDurante todo o período do tráfico, muitos dos agentes que

atuavam nas costas brasileiras também agiam no lado africano.No século XVII, Salvador Correa de Sá foi governador no Riode Janeiro e em Angola. André Vidal de Negreiros lutou contraos holandeses em Pernambuco e depois contra os congolesesnas chamadas guerras angolanas. Alguns de seus soldados índi-os devem ter sobrevivido e deixado descendência na África cen-tro-ocidental.

A recíproca é verdadeira. Alguns dos nobres cristãos de rei-nos africanos, feitos prisioneiros nessas guerras, foram degre-dados para o Brasil, como homens livres, não há mais notíciasde suas trajetórias. Outros tantos para lá foram enviados comoescravos.

3.3. Ki-lombo, quilomboE não parece coincidência que o termo quilombo, nome dos

acampamentos militarizados dos imbangala que produziam comsuas guerras a maioria dos escravos remetidos ao Brasil, tenhaaparecido pela primeira vez nas fontes coloniais exatamente nesteperíodo, para designar mocambos ou acampamentos de escra-vos fugidos, mas especialmente o quilombo de Palmares.

Afinal, a estrutura imbangala fornecia um modelo de orga-nização social entre “escravos”, que rejeitava a necessidade dalinhagem e do parentesco como fonte de organização social.Segundo Stuart Schwartz, “a criação de uma organização socialbaseada em associação gerava riscos. Os habitantes do Ki-lom-bo [imbangala] incorriam em especial perigo espiritual, umavez que lhes faltava a linhagem normal de ancestrais que pu-dessem interceder por eles junto aos deuses. Assim, uma figura

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fundamental no Ki-lombo era o nganga a zumba, um sacerdotecuja especialidade era lidar com o espírito dos mortos”.

O Ganga Zumba de Palmares, o rei que teria feito um acor-do com os portugueses, depois rompido por estes, e que porisso teria sofrido uma revolta no quilombo, sendo deposto porseu sobrinho Zumbi, “era provavelmente o detentor desse car-go, que não era de fato um nome próprio, mas um título”.(Schwartz, 2001: 252-253)

Isto não fazia de Palmares uma reinvenção de estruturas afri-canas. Escravos nascidos no Brasil, populações indígenas e afri-canos de diferentes origens se misturavam no quilombo. Mas apresença de lideranças imbangala entre os quilombolas não podeser descartada.

3.4. As trocas culturais entre os escravizadosNo mundo africano, as guerras, migrações e trocas comerciais

estavam presentes no dia a dia de muitos dos escravizados, deforma que o aprendizado do outro e as trocas culturais entre dife-rentes grupos étnicos iniciaram-se na própria África. Na regiãoCongo-Angola, o catolicismo se fazia presente como elementocultural desde o século XV. O catolicismo africano marcou astrajetórias de conversão dos escravos africanos no Brasil. As co-nhecidas festas de coroação do rei Congo ritualizariam aspectosda história africana no dia a dia das populações coloniais.

Por outro lado, as referências aos portos de origem dos trafi-cados se transformariam em marcas de identificação que seri-am incorporadas pelos africanos escravizados. As denomina-ções “minas” e “angolas”, numa referência ampla às duas gran-des áreas de fornecimento do tráfico, determinariam, também,sociabilidades distintas nas irmandades religiosas dos homens

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pretos, nas quais os provenientes das duas áreas estariam quasesempre separados, bem como escolhas matrimoniais e outrosaspectos da vida associativa de escravos e libertos no mundocolonial.

Obviamente, nessas grandes áreas, eram imensas as diferen-ças e enormes os ódios e rivalidades entre os escravizados. Noséculo XVIII, o reino do Daomé era escravizador contumazdos povos makis, mas também daomeanos foram escravizados.Na condição de escravidão, as proximidades oriundas das in-tensas trocas comerciais, bem como das próprias guerras queproduziam os escravos em cada uma das áreas, não eliminavamrivalidades, mas faziam os escravizados descobrirem aliançasimpossíveis e impensáveis na própria África.

3.5. O caso da revolta malê na BahiaÉ novamente Stuart Schwartz que chama atenção para o

caráter africano do ciclo de insurreições escravas que eclodiu naBahia de finais do século XVIII até o chamado “levante dosmalês” [escravos muçulmanos], em Salvador, em 1835. Nele,os escravos nascidos no Brasil quase não participaram. A aqui-sição em massa de escravos pelos comerciantes baianos na costaocidental da África, capturados entre soldados dos exércitos emluta na região, muitos deles muçulmanos e alfabetizados, semostraram realmente explosiva.

Não é a toa que, após a revolta, muitos africanos libertosforam deportados da Bahia. Outros fretaram navios e decidi-ram voltar por conta própria. Estabeleceram-se em Lagos, etambém no antigo reino do Daomé, atual República do Benin,onde até hoje são conhecidos como “brasileiros”, com seus so-brenomes portugueses, celebrações do carnaval e do bumba-

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meu-boi. Misturaram-se com as comunidades de luso-africa-nos e de descendentes de comerciantes baianos ali radicadas.Transformaram a experiência de seus antepassados no Brasilem um novo referencial étnico na volta à África.

O tronco lingüístico comum entre as diversas línguas faladasna África centro-ocidental, as chamadas línguas bantas, come-çou a ser descoberto pelos lingüistas europeus a partir de obser-vações de Rugendas, no século XIX, sobre os escravos africanosde diversos povos daquela região que encontrou no Brasil. Apósa extinção do tráfico, todos se tornaram, finalmente, “africa-nos”. A África, de certa forma, foi inventada na América.

3.6. A pressão pelo fim do tráfico de escravosNo início do século XIX, o tráfico de seres humanos na Áfri-

ca tinha assumido proporções gigantescas: era a maior migra-ção humana de que se tinha notícia até então. Além das regiõesda costa ocidental e centro-ocidental, o tráfico também afetavaconsideravelmente a África Oriental. Por conta da crescenteprocura por cativos empreendida por traficantes brasileiros ecubanos, mas também por causa das grandes secas e das guerrasinternas, que impeliam um grande contingente populacional ase estabelecer na costa, a oferta de escravos era cada vez maiorem regiões como o Zambeze, controlada por portugueses.

Um novo fator, no entanto, alterou a dinâmica do tráfico deescravos e da escravidão tanto na África quanto nas Américas:o movimento em prol da abolição do tráfico. Embora reforma-dores ingleses tenham começado a atacar a existência do co-mércio de seres humanos ainda em fins do século XVIII, foi sóno século XIX que as primeiras leis começaram a transformartais idéias em realidade. Na Inglaterra, o tráfico foi abolido em

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1807; os Estados Unidos, depois de tentativas de proibi-lo em1791 e 1794, finalmente o fizeram em 1808.

Embora desde a década de 1810 navios ingleses tenhamaportado nas praias africanas na tentativa de coibir o tráficopara as Américas, a Inglaterra só passou a pressionar efetiva-mente pelo fim do tráfico negreiro em 1840, quando começoua tomar medidas de repressão aos países que continuassem per-mitindo a entrada de africanos escravizados em seus territóriosou fomentassem seu comércio. Ao invés de coibir a saída deescravos da África, no entanto, o efeito imediato da posiçãoinglesa foi o incentivo às exportações; de fato, só na primeirametade do século XIX saíram de todas as regiões do continentecerca de 5,6 milhões de escravos.

No Brasil, o reconhecimento da independência por parte daInglaterra foi condicionado ao cumprimento de antigos trata-dos de restrição ao tráfico firmados ainda entre este país e Por-tugal. Os acordos entre o Brasil e a Inglaterra, firmados em1826, acabaram resultando na lei de 7 de novembro de 1831,que proibia a entrada de africanos no país e instituía penaspara quem vendesse, transportasse ou comprasse africanos re-cém-chegados.

Embora tenha causado uma queda momentânea nas impor-tações de africanos, a lei de 1831 acabou provocando uma cor-rida à compra de escravos durante toda a década de 1830, jáque sinalizava para o fim efetivo do tráfico atlântico de cativos.Mas, como ela não se fez acompanhar de um esforço real paraconter o contrabando no Brasil – que era, inclusive, apoiadopela população livre, comprometida com a continuidade daescravidão –, a lei não foi colocada em prática, acabando co-nhecida como “lei para inglês ver” pela sua ineficácia.

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Os carregamentos apreendidos foram poucos e os trafican-tes acusados de burlar a lei, absolvidos. Os africanos apresados,que em princípio deviam ser mandados de volta para a Áfricapelo governo brasileiro – depois de 1834 passaram a ser for-malmente considerados africanos livres, devendo, no entanto,servir o Estado ou particulares –, acabavam reescravizados.

Em Angola, a entrada em vigor do tratado anglo-brasileirosobre o tráfico também criou a ilusão de que o comércio ne-greiro seria extinto rapidamente; após três anos de depressãoeconômica, no entanto, a exportação voltou a aumentar. Ointeresse de Portugal no tráfico de escravos, contudo, é que sealterou: se, antes da independência do Brasil, o governo daque-le país estava atento para a oferta de escravos para a agriculturabrasileira, agora empenhava-se em assegurar trabalhadores paraas possessões portuguesas na África.

Embora a Inglaterra continuasse pressionando Portugal paraque abolisse o tráfico, navios negreiros não só utilizavam osportos de Angola e Moçambique para embarque e como pontode apoio, como ainda recorriam à bandeira portuguesa paraprotegerem-se da repressão inglesa. Em 1836, finalmente, Por-tugal emitiu um decreto proibindo exportação de escravos daspossessões portuguesas e, em 1842, foi assinado o tratado deabolição total do comércio negreiro.

Enquanto o tráfico não foi abolido no Brasil, no entanto,essas leis foram letra-morta: o tráfico ilegal continuava a existire a impulsionar a economia das possessões portuguesas, quetambém dependiam da demanda por urzela (planta utilizadapara fabricar tintas azuis, principalmente em Angola), cera,goma copal e marfim. Até fins da década de 1860, estas merca-dorias desciam até Luanda, Benguela ou Moçâmedes através

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de caravanas organizadas por agentes que representavam fir-mas estabelecidas na costa. Assim, as estruturas econômicascom base no crédito, desenvolvidas ao longo de séculos de trá-fico, foram transpostas para o comércio colonial.

Na África Ocidental como um todo, a maior utilização deescravos na produção agrícola também foi ajudada pela quedano preço dos escravos, ainda como resultado dos esforços in-gleses para acabar definitivamente com o tráfico atlântico. Aqueda temporária do preço de cativos na costa, somada ao pre-ço já normalmente baixo dos escravos no interior, sugerem queo trabalho escravo efetivamente tornara-se um investimentoatraente: a África centro-ocidental, os golfos do Benin e doBiafra e o sudeste da África foram particularmente afetadospela explosão das exportações de escravos durante a primeirametade do século XIX.

3.7. A reorientação das atividades produtivas na ÁfricaNestes locais, além de trabalharem na própria produção agrí-

cola, os escravos também eram utilizados na exportação denozes-de-cola para a região da Savana, na produção de gênerosalimentícios para consumo local e distribuição regional e namineração do ouro; trabalhavam, ainda, como carregadores nascaravanas, como tripulantes dos barcos fluviais e como solda-dos, tanto no controle do setor agrícola quanto na escravizaçãode inimigos estrangeiros.

Nesta época, além de viverem em suas próprias aldeias, tam-bém eram encontrados em fazendas, localizadas principalmen-te perto da costa ocidental e ao longo dos rios de Serra Leoa,em Axante, Daomé e nos Estados iorubas, onde moravam embarracões, repetindo padrão de moradia adotado nas plantations

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americanas. Embora as pequenas propriedades ainda fossemencontradas por toda parte, agora sobressaía a presença de gran-des fazendas, concentradas cada vez mais nas mãos de proprie-tários de origem européia. Se até 1850 ainda havia fazendeirosafricanos e europeus dedicando-se ao plantio de café e árvores,em 1880 grande parte da terra fértil já era controlada por colo-nos de origem européia.

Foi neste movimento que os arquipélagos de São Tomé ePríncipe foram revitalizados no início da década de 1850, jus-tamente quando o comércio exportador da África centro-oci-dental começou a entrar em declínio. Ao invés de atravessaremo Atlântico, os escravos eram enviados para estas localidades,onde cultivavam cana-de-açúcar, café e, mais tarde, cacau. Emmeados dos anos 1860, em particular, as principais correntesdo tráfico mudaram das Américas para estas regiões, e grandesfamílias descendentes de portugueses transferiram-se da costaangolana para as ilhas, levando consigo todos os seus escravos.

O surgimento dessas plantations, além de provocar a escravi-zação de um contingente enorme de pessoas, ainda envolveuno processo de captura grupos antes marginalmente envolvi-dos no tráfico, como os quiocos, fazendeiros e caçadores queviviam no interior de Angola e que, quando a demanda pelasmercadorias legais aumentou, estavam em posição estratégicapara desenvolver as redes comerciais necessárias à exportaçãode bens agrícolas.

O novo interesse pelas mercadorias legais não significou ofim do tráfico transatlântico, portanto. Clandestinamente, es-cravos continuavam sendo fornecidos ao Brasil e a Cuba. Sódepois do fechamento dos portos no Brasil, em 1850, é que asatividades do comércio de escravos – que continuavam a ser

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operadas em grande parte por comerciantes do Rio de Janeiro,com agentes em Luanda e Lisboa – foram sendo paulatina-mente abandonadas.

Mesmo assim, com a manutenção do tráfico para Cuba, quesó seria extinto em 1863, a exportação clandestina da região doCongo-Angola e Benguela aumentou muito, atingindo o picoentre 1857 e 1860, justamente quando já circulavam rumoressobre a necessidade de proibir o “infame comércio” no Caribe.Mais de 70% dos escravos que desembarcaram em Cuba após1850 haviam partido dos portos de Ambriz, Malemba, Cabindae Loango.

De qualquer forma, é importante marcar que, embora asatividades fossem distintas, havia forte imbricação entre os in-teresses econômicos legais e os clandestinos ao longo do séculoXIX. Daí ser impossível separar indivíduos e capitais envolvi-dos nas duas atividades.

Embora Luanda tenha sido o principal porto de saída deescravos para o Rio de Janeiro durante a ocorrência do tráficoilegal, as relações de Angola com o Brasil sofreram grandesmodificações após o fechamento do comércio ilícito. Comerci-antes angolanos passaram a devotar mais atenção a Portugal doque ao Brasil, onde era, inclusive, mais fácil chegar, vindo deAngola; não por acaso, a partir de 1857, a inauguração de umarede de vapores entre Luanda e Lisboa facilitou a comunicaçãodireta entre as duas regiões.

3.8. O fim do tráfico para as AméricasEm 1845, o parlamento inglês votou o Bill Aberdeen, legali-

zando o apresamento de qualquer navio brasileiro envolvidono tráfico negreiro, em qualquer circunstância (inclusive em

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águas do Império brasileiro). Cinco anos depois, num quadrode tensão internacional crescente, já que a medida provocouforte sentimento antibritânico, o governo brasileiro, lideradopor Euzébio de Queiroz, conseguiu aprovar a lei no 581 de1850, que extinguia o tráfico atlântico de escravos para o Brasile autorizava a apreensão no país de escravos boçais (recém-che-gados, que ainda não dominavam o idioma português).

Com isso, além de extinguir definitivamente o comércio deafricanos e reprimir as tentativas de burlar a proibição – háregistros de que embarcações continuaram entrando ilegalmenteaté 1856 –, a lei Euzébio de Queiroz também pretendia legiti-mar a entrada de todos os africanos trazidos após 1831, estima-dos em mais de um milhão de pessoas, que haviam chegadodepois da proibição de manter o tráfico atlântico.

A extinção do tráfico desencadeou profundas mudanças nasestruturas demográficas, políticas, sociais e econômicas brasi-leiras, com efeitos diretos no processo de abolição da escravi-dão no Brasil. A principal delas foi o incremento do tráficointerno (ou tráfico interprovincial), com a venda em massa deescravos das províncias do nordeste, em decadência econômi-ca, para a região do centro-sul, em plena expansão cafeeira,que, inclusive, provocou desequilíbrio entre as províncias noque se refere ao próprio apoio à ordem escravista.

O fim do tráfico externo também teve como efeito a grandeconcentração social da propriedade escrava, já que, com a escas-sez de novos braços, os preços dos escravos subiram rapidamente;se, até 1850, a propriedade escrava era acessível ao conjunto dapopulação livre, incluindo até libertos e lavradores pobres, a par-tir daí o acesso à posse de escravos ficou restrito aos grandes pro-prietários, que se dedicavam à agricultura de exportação.

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O fim do tráfico atlântico e a alta concentração da proprie-dade escrava significaram, assim, um golpe de morte no com-prometimento da população livre com o trabalho escravo noBrasil. Embora 38 anos ainda separaram o fim do tráfico daabolição da escravidão no Brasil, é possível afirmar que a legi-timidade do regime de trabalho escravo tenha sido fortementeabalada em 1850.

Em 1871, quando a Lei do Ventre Livre estabeleceu que, apartir de então, ninguém mais nascia escravo no país, a legiti-midade da escravidão caiu definitivamente por terra. A estaaltura, com o fim da guerra civil norte-americana e com a apro-vação da lei do ventre livre e de libertação dos escravossexagenários em Cuba, o Brasil já estava isolado como a únicanação escravista das Américas. Deixaria de sê-lo em 1888, quan-do o reconhecimento da igualdade civil de todos os brasileirosfoi acompanhado da composição de um novo quadro de desi-gualdades raciais, comum a todas as sociedades americanas quevivenciaram a experiência da escravidão.

3.9. A manutenção da escravidão na ÁfricaSe o movimento pelo fim do comércio de escravos da África

para a América teve, como efeito último, a própria extinção daescravidão neste continente, o que aconteceu na África foi bemdiferente: ali, o efeito imediato do fim do tráfico atlântico foi oaumento da procura pelo “comércio legítimo” – termo usadona época e por estudiosos desde então para distinguir escravosde mercadorias legalmente comercializadas como marfim, amen-doim, azeite-de-dendê, louro, borracha, cravo, couro, peles,penas de avestruz, cera de abelhas, goma arábica etc. –, comoocorreu em Angola.

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Como muitas destas mercadorias eram cultivadas e trans-portadas por escravos, o crescimento da demanda mundial pro-vocou o aumento do número de escravos empregados em ativi-dades produtivas na África. Em suma: o fim do tráfico externode escravos não significou o colapso do tráfico interno de escra-vos na África; também não significou o fim da escravidão nocontinente. Muito pelo contrário, a transição da exportação deescravos para a exportação de outras mercadorias resultou nageneralização da utilização de escravos na economia africana.

Parece até ironia: enquanto a escravidão minguava nas Amé-ricas, ela se renovava na África, onde muito tempo ainda sepassaria até que ela fosse completamente extinta.

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Keila Grinberg e Hebe Mattos

As autoras

Keila GrinbergDoutora em História do Brasil pela UFF e professora adjuntado Departamento de História da UNIRIO, onde coordena oPrograma de Pós-Graduação em História. Seus principais cam-pos de estudo são História do Brasil Imperial, Escravidão noBrasil e no Mundo Atlântico, História do Direito e das Institui-ções e Ensino de História. Autora de diversas publicações, entreas quais os livros Liberata: a lei da ambiguidade (1994, RJ, RelumeDumará), O Fiador dos Brasileiros: escravidão, cidadania e direitocivil no tempo de Antonio Pereira Rebouças (2002, RJ, CivilizaçãoBrasileira) e Slavery, Freedom and the Law in the Americas, comSue Peabody (2007, Boston/NY, Bedford Books).

Hebe MattosDoutora em história pela UFF, com Pós-Doutorado na Univer-sity of Maryland at College Park na UNICAMP e na Sorbonne.Foi professora visitante na University of Michigan e na Ecoledes Hautes Etudes en Sciences Sociales. É professora titular daUniversidade Federal Fluminense. Atua principalmente nos te-mas escravidão, abolição, memória, história oral e identidade. Éautora de vasta obra publicada das quais se destacam os livrosMemórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abo-lição (2005, Civilizaçao Brasileira); Escravidão e monarquia noBrasil monárquico (2004, Zahar).