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151 Cadernos de Geografia nº 28/29 - 2009/10 Coimbra, FLUC - pp. 151-158 La Gioconda, a cidade contemporânea e os centros históricos Márcio Moraes Valença Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes [email protected] Resumo: Com o auxílio de autores como Benjamim, de Certeau (e Giard), Baudrillard, Jameson e Harvey, este ensaio apresenta uma tentativa de compreender o papel que deve ter o patrimônio histórico para o desenvolvimento das cidades contemporâneas, em particular as brasileiras. Faz um contraponto entre a ideia benjaminiana de reprodutibilidade técnica da obra de arte e a discussão, que apresentam Michel de Certeau e Lucy Giard, acerca da “permanência” de alguns objetos (ditos “fantasmas”, inclusive os imobiliários) na cidade, entes invisíveis e imperceptíveis, que só se revelam muito tempo depois, após se estabelecerem como partícipes de nossas vidas cotidianas. Fazendo uma analogia com o desenvolvimento urbano contemporâneo, concluo, com a ajuda de Jean Baudrillard, dizendo que os centros das cidades – todas com vários componentes “iguais” – são simulacros de um tempo passado que nunca existiu. Existe hoje, em grande parte graças ao assim chamado planejamento estratégico de cidades, na forma fetishisada de mercadoria, como definem Fredric Jameson e David Harvey. Palavras-chave: Desenvolvimento urbano contemporâneo. Reabilitação urbana. Mercantilização da cultura. Résumé: La Joconde, la ville contemporaine et les centres historiques En s’appuyant sur des auteurs tels que Benjamim, de Certeau (et Giard), Baudrillard, Jameson et Harvey, cet essai présente une tentative de compréhension du rôle que doit jouer le patrimoine historique dans le développement des villes contemporaines, notamment les villes brésiliennes. Une contreposition est faite ici de l’idée benjaminienne de reproductibilité technique de l’oeuvre d’art et la discussion, d’après Michel de Certeau et Lucy Giard, à propos de la « permanence » de quelques objets (dits des « fantômes », y compris les immobiliers) dans la ville, des entités invisibles et imperceptibles, qui ne se revèlent que beaucoup de temps après, s’étant déjà établies en tant que participantes de nos vies quotidiennes. En faisant une analogie avec le développement urbain contemporain, j’arrive à la conclusion, basée sur Jean Baudrillard, que le centre des villes – toutes ayant des composantes « égales » – sont des simulacres d’un temps passé qui n’a jamais existé. Il n’existe qu’aujourd’hui, en grande mesure grâce à la soit disante planification stratégique des villes, dans la forme fétichisée de la marchandise, telle que la définisent Jameson et David Harvey. Mots-clés: Développement urbain contemporain. Réhabilitation urbaine. Marchandisation de la culture. Abstract: La Gioconda, the contemporaneous city and historic centers Based on authors like Benjamin, de Certeau (and Giard), Baudrillard, Jameson and Harvey, this essay pinpoints the role that heritage may have to contemporary urban development, in particular in Brazil. It plays with the Benjamin’s idea of technical reproduction in the field of the arts and culture and, as a counterpoint, with de Certeau and Giard’s discussion of heritage and the existence and permanence in the city of certain ‘objects’ – like ‘ghosts’ – which are at first invisible and imperceptible, but are revealed after establishing themselves in people’s everyday lives. In the conclusion, Baudrillard’s concept of simulacra is used to argue that, in part due to contemporaneous urban strategic planning, city centers have become places which are symbols of a past that never existed, having become instead fetished as goods, as defined by Fredric Jameson and David Harvey. Keywords: Urban development. Urban rehabilitation. Culture and the economy.

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Cadernos de Geografia nº 28/29 - 2009/10Coimbra, FLUC - pp. 151-158

La Gioconda, a cidade contemporânea e os centros históricos

Márcio Moraes ValençaUniversidade Federal do Rio Grande do Norte.Centro de Ciências Humanas, Letras e [email protected]

Resumo:

Com o auxílio de autores como Benjamim, de Certeau (e Giard), Baudrillard, Jameson e Harvey, este ensaio apresenta uma tentativa de compreender o papel que deve ter o patrimônio histórico para o desenvolvimento das cidades contemporâneas, em particular as brasileiras. Faz um contraponto entre a ideia benjaminiana de reprodutibilidade técnica da obra de arte e a discussão, que apresentam Michel de Certeau e Lucy Giard, acerca da “permanência” de alguns objetos (ditos “fantasmas”, inclusive os imobiliários) na cidade, entes invisíveis e imperceptíveis, que só se revelam muito tempo depois, após se estabelecerem como partícipes de nossas vidas cotidianas. Fazendo uma analogia com o desenvolvimento urbano contemporâneo, concluo, com a ajuda de Jean Baudrillard, dizendo que os centros das cidades – todas com vários componentes “iguais” – são simulacros de um tempo passado que nunca existiu. Existe hoje, em grande parte graças ao assim chamado planejamento estratégico de cidades, na forma fetishisada de mercadoria, como definem Fredric Jameson e David Harvey.

Palavras-chave: Desenvolvimento urbano contemporâneo. Reabilitação urbana. Mercantilização da cultura.

Résumé:

La Joconde, la ville contemporaine et les centres historiques

En s’appuyant sur des auteurs tels que Benjamim, de Certeau (et Giard), Baudrillard, Jameson et Harvey, cet essai présente une tentative de compréhension du rôle que doit jouer le patrimoine historique dans le développement des villes contemporaines, notamment les villes brésiliennes. Une contreposition est faite ici de l’idée benjaminienne de reproductibilité technique de l’oeuvre d’art et la discussion, d’après Michel de Certeau et Lucy Giard, à propos de la « permanence » de quelques objets (dits des « fantômes », y compris les immobiliers) dans la ville, des entités invisibles et imperceptibles, qui ne se revèlent que beaucoup de temps après, s’étant déjà établies en tant que participantes de nos vies quotidiennes. En faisant une analogie avec le développement urbain contemporain, j’arrive à la conclusion, basée sur Jean Baudrillard, que le centre des villes – toutes ayant des composantes « égales » – sont des simulacres d’un temps passé qui n’a jamais existé. Il n’existe qu’aujourd’hui, en grande mesure grâce à la soit disante planification stratégique des villes, dans la forme fétichisée de la marchandise, telle que la définisent Jameson et David Harvey.

Mots-clés: Développement urbain contemporain. Réhabilitation urbaine. Marchandisation de la culture.

Abstract:

La Gioconda, the contemporaneous city and historic centers

Based on authors like Benjamin, de Certeau (and Giard), Baudrillard, Jameson and Harvey, this essay pinpoints the role that heritage may have to contemporary urban development, in particular in Brazil. It plays with the Benjamin’s idea of technical reproduction in the field of the arts and culture and, as a counterpoint, with de Certeau and Giard’s discussion of heritage and the existence and permanence in the city of certain ‘objects’ – like ‘ghosts’ – which are at first invisible and imperceptible, but are revealed after establishing themselves in people’s everyday lives. In the conclusion, Baudrillard’s concept of simulacra is used to argue that, in part due to contemporaneous urban strategic planning, city centers have become places which are symbols of a past that never existed, having become instead fetished as goods, as defined by Fredric Jameson and David Harvey.

Keywords: Urban development. Urban rehabilitation. Culture and the economy.

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€9,00 é quanto custa o bilhete básico de entra-da no Museu do Louvre, em Paris, maravilha imperdí-vel. Barato, se considerarmos que não é possível en-contrar uma imperial, naquela cidade, por menos de €3,50, podendo chegar a €7,00, mesmo naquelas me-sinhas de rua. Estando em Paris – em passeio ou em trabalho – é quase obrigatório ir ao Louvre apreciar sua espantosa coleção (são 35 mil obras de arte), sua imponente arquitetura neoclássica/pós-moderna e, muito particularmente – como todos os demais mortais –, a Vénus de Milo (Afrodite) e a Mona Lisa (La Gioconda)2.

Mona é, em italiano, a abreviação de madona e equivale, no linguajar corrente, a dona, daí dona Lisa (de Giocondo, esposa de Francesco del Giocondo, ou, simplesmente, La Gioconda). Quando criança, tinha-a colada na parede do meu quarto, com fita isolante preta formando uma espécie de moldura, numa repro-dução em papel de boa qualidade, rugoso, imitando uma tela, que veio encartada numa revista sobre his-tória da arte que a minha mãe colecionava. A reprodu-ção era pequena e eu imaginava que a tela original fosse enorme e imponente de encher o olho. Decep-ção! A tela é relativamente pequena, medindo 77x53 cm, um pouco maior do que a reprodução que eu tinha quando criança. Perde-se na imensidão de paredes e no turbilhão de pessoas e vozes em sua volta. No en-tanto, aquela mulher com um sorriso sem graça, po-rém enigmático, cativa. Não sei explicar bem porquê, mas, talvez, por ser mais um no rebanho, é inevitável, quando em Paris, visitá-la e, quando não, dela me lembrar com alguma frequência. E, sempre que a vejo, volto a me decepcionar tanto com a tela em si quanto com o tal sorriso sem graça. Há muitas versões sobre o enigma do sorriso e da tela, que é a obra de arte mais conhecida no mundo, mas não cabe aqui explorar tal polémica.

Museu do Louvre. a. As pirâmides do Louvre, de I. M. Pei. O antigo e o contemporâneo compondo o espaço público e acesso ao museu (foto do autor); b. Público

1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada como comunicação no “Encontro Nacional de Arquitetos. Arquimemória 3: Pa-trimônio edificado: função social, integração e participação”. Salvador: IAB, FAU-UFBA, IPHAN, IPAC, CONDER, CAIXA e outros, 8 a 11 de junho de 2008. A versão definitiva foi também publicada na revista Arquitextos, São Paulo, n.117, Vitruvius, em fevereiro de 2010: <http://www.vitru-vius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.117/3378>. Agradeço à Edito-ria e aos pareceristas de Cadernos de Geografia pelas sugestões, críticas e revisões.

2 Com aproximadamente 10 milhões de visitantes por ano, é o museu mais visitado do mundo.

diante da Gioconda, quadro de Leonardo da Vinci (foto de Abílio Guerra); c. Público diante da Vénus de Milo, estátua grega (foto do autor)

Antes, cabe explicar por que resolvi escrever este ensaio, tendo como introdução a tela de Da Vinci e o tal sorriso. São vários os motivos, que passo a expor. Antes de mais, é necessário “dar a mão à palmatória” (olha só que expressão histórica!) e reconhecer, nos dois parágrafos introdutórios, o discurso arrogante,

Figura 1Museu do Louvre. a. As pirâmides do Louvre, de I. M. Pei. O antigo e o contemporâneo compondo o espaço público e acesso ao museu (foto do autor); b. Público diante da Gioconda, quadro de Leonardo da Vinci (foto de Abílio Guerra); c. Público diante da Vénus de Milo, estátua grega (foto do autor)

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pequeno-burguês. Pelo menos, a intenção foi boa. Que-ria eu resgatar a discussão benjaminiana sobre a obra de arte e a sua aura. Qual o papel da obra de arte hoje, na sociedade globalizada, pós-moderna, se é que assim o é? Como Lisa pode sobreviver, por 500 anos, passando de mão em mão, de sala em sala, deixando-se rodear por milhares de estranhos e ainda emocionar, cumprin-do suas obrigações sociais? Longe de seu criador, do contexto em que foi criada, da sua musa inspiradora, seja ela quem tenha sido, o que significa hoje?

Eis um bom começo para explorarmos um tema bastante atual que domina a discussão acerca da reabi-litação urbana, da conservação e da preservação ou não (total ou parcial) dos sítios e edifícios históricos, tanto nos países europeus, onde há uma grande quantidade de edificações ditas históricas, como, crescentemente, nos centros das cidades brasileiras. Preservar para quê, para quem e de que forma? Ao longo dos séculos, as edificações e o traçado urbano foram-se modificando de acordo com as necessidades de seu tempo3. Assim, é comum a sobreposição de estilos arquitetónicos, que convivem lado a lado num mesmo sítio ou até numa mesma edificação. São comuns mesmo as sucessivas mudanças de uso. Veja-se o exemplo da Paris de Hauss-mann, na segunda metade do século XIX, ou da reforma monumental da Alta em Coimbra, na segunda metade do século XX.

Para fRedRiC jaMeson (2004), o que define a chama-da pós-modernidade não é apenas a mercantilização da cultura, mas também a culturalização das mercadorias. As mercadorias são aculturadas por meio dos média, da publicidade, do design, da marca. Não é só a utilidade prática do produto que vende, mas a sua imagem, que é produzida através de complexos sistemas de repre-sentação, ou ainda a utilidade que tem na manutenção e promoção da sociabilidade e do status quo. O pós-modernismo não se refere apenas ao estético-estilísti-co, mas a uma lógica específica da produção em que o cultural tem um lugar funcional específico. daVid haRVey (2002) acrescenta que, para o capital, o investimento nos circuitos secundário (imobiliário) e terciário (cultu-ra, educação, ciência e tecnologia) intensifica-se sem-pre que há uma crise no circuito primário (no qual é produzida a maior parte das mercadorias). No mundo contemporâneo, o desenvolvimento dos média, a pro-moção de eventos culturais e artísticos, a musealização (democratização e popularização da arte ou negócio?)

3 Uma referência a esse respeito é a obra de David Harvey sobre a dinâmica do capital – que constrói, destrói e reconstrói a cidade a sua semelhança em função das suas necessidades de acumulação (ver Valença, 2008).

são marcas indeléveis. Se isso significa estar este mun-do em crise ou ser essa promoção um dos produtos da crise, na busca de sua superação, a reabilitação urbana se apresenta como espaço privilegiado em que investi-mentos em ambos os circuitos (secundário e terciário) podem acontecer simultânea e combinadamente e ain-da promover a expansão do circuito primário através do maior dinamismo comercial e do setor de serviços.

Vem-me, agora, à mente uma imagem muito pe-culiar: a vista que se tem do alto, em Alfama, bairro antigo, de influência moura, em Lisboa. Há 10-15 anos atrás, a vista dos telhados que forma os labirintos de ruas, indicava uma certa decadência, suscitando o anti-go. Muitos eram os edifícios em ruína. O casario de cor branca e os telhados encurvados, tudo manchado pelo tempo, dava aquela impressão de abandono e autenti-cidade histórica. Não o era necessariamente. Muito tem mudado no bairro ao longo dos anos. Como muito pouco restou do terremoto que o atingiu em 1755, de mouro, quase não há mais nada. Hoje, no entanto, para o de-leite dos turistas e visitantes, muito especificamente após os investimentos realizados na área (intensificados com a realização, não tão distante da EXPO-98), as edi-ficações de variadas escalas foram sendo reformadas e pintadas (o próprio sítio foi modernizado, com a cons-trução de estacionamentos reformas de calçadas, lar-gos, implementação e renovação de várias infraestrutu-ras, como o calçamento de ruas etc.). As edificações têm hoje pintura impecavelmente branca e os seus te-lhados são alinhados, homogeneamente vermelhos, no-vinhos. Às vezes, pergunto-me se o que foi realizado pode ser entendido como preservação ou se seria me-lhor definido como reforma (ou qualquer outro “re”). Se é uma reforma, indicando mudança no seu aspecto físico, estilístico, no seu uso etc., por que é que ela tem de seguir – inclusive no que diz respeito a fachadas e telhados – o modelo “original”? Se o modelo original já não atende às necessidades atuais e necessita de atua-lização, o que da edificação deve ser preservado e como fazê-lo? Preservar fachadas e telhados apenas? Porquê? Quem decide?

Sei que essas questões dizem respeito às mesmas preocupações contidas e tratadas de forma muito pre-cisa e incisiva nas Cartas de Atenas de 1931 e de Veneza de 1964 e, com alguma polémica, na Carta de Atenas de 1933; no entanto, são tão atuais hoje como antes. Se-riam as fachadas limpas e brancas, os telhados alinha-dos e vermelhos, os becos e as ruas com calçada de pedras assentadas milimetricamente como o sorriso da Mona Lisa? Lá se encontra uma espécie de cidade-mu-seu ou bairro-museu, cujo acesso se dá unicamente e a

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muito custo para as massas de visitantes solváveis? Quais as consequências para os moradores da área, principalmente os menos favorecidos, que têm de pas-sar a conviver com este novo uso do espaço para residir ou partir? Enfim, qual seria o destino adequado para o crescente acumular de edificações degradadas nos cen-tros das cidades históricas mundo afora e, em particu-lar, o das brasileiras?

Recentemente, reli o famoso texto de Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibili-dade técnica”. No texto, escrito na década de 1930, benjaMin (1985) escreve que, embora para cada modo de produção corresponda um complexo sistema de repre-sentação, as mudanças nos setores culturais ocorrem com um grande desfasamento de tempo em relação às transformações na estrutura económica. Na era do taylorismo, a produção em série gera objetos iguais, ou seja, possibilita a reprodução de vários modelos origi-nais4. Em suma, “[…] na era da reprodutibilidade técni-

4 A reprodução em si não era, no início do século XX, de todo uma novidade. Desde a Idade Média, as xilogravuras reproduziam dese-nhos. No século XIX, vieram as litografias e, depois, a fotografia, o som, o cinema, etc.

ca, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia” (p. 176). A reprodução, segundo Benjamin, elimina a “existência única” da obra de arte, o seu “aqui e ago-ra”, questionando a sua autenticidade e pondo em risco a sua “aura”. Ele escreve: “A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte cria-da para ser reproduzida. […] a questão da autenticida-de das cópias não tem nenhum sentido. […] toda a fun-ção social da arte se transforma” (p. 171).

Esse texto, tão provocativo e – hoje! – tão apa-rentemente simples, serviu de base ou influenciou um número considerável de estudos que se seguiram – in-cluindo, aqui, os de Jameson, Baudrillard, de Certeau e Giard e Harvey –, em relação ao papel da arte e da cultura na sociedade contemporânea. Não é difícil, dessa forma, inserir a questão do “património histó-rico” nessa discussão sobre a reprodutibilidade técnica. Desde, pelo menos, a década de 1960, forte dinâmica económica, frequentemente associada ao turismo e aos eventos de negócios, mas também às condições gerais de reprodução das elites locais, tem determinado o que e como preservar, restaurar, recuperar, renovar, revita-lizar, requalificar, reformar e/ou reabilitar. Isso nos in-

Figura 2Telhados – renovação x degradação. a. Bairro de Alfama, Lisboa (foto do autor); b. Bairro de Alfama, Lisboa (foto do autor); c. Centro Histórico, João Pessoa (foto do autor); d. Centro Histórico, Porto (foto do autor)

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troduz no pensamento de CeRteau e GiaRd (1998). Estes afirmam claramente que o património histórico tem co-notações simbólicas e políticas, ligadas ao exercício do poder, que estabelece os monumentos e outros objetos que devem ou não ser preservados. O património histó-rico é o património histórico das elites ou é aquele por elas escolhido. Voltaremos a de Certeau e Giard mais à frente.

A partir de meados da década de 1960, haRVey (2002; 2005) explica, não só os centros de cidades ame-ricanas (Boston, Baltimore, etc.), abandonados pelas elites e pelas classes médias que haviam, no pós-guer-ra, migrado para os subúrbios, mas também os centros de cidades do mundo todo (Barcelona, Londres, Lisboa, Bilbao, etc.) que vêm sofrendo intervenções – a la ope-rações urbanas – que visam revitalizar e (é este o ter-mo?) “requalificar” as áreas centrais. Em seguida, ao sucesso do modelo de Barcelona, após os jogos olímpi-cos de 1992, Manuel Castells e joRdi boRja (1996) passa-ram a sistematizar o que, na era do globalismo, deve-riam fazer os poderes públicos locais na promoção de suas cidades num ambiente cada vez mais competitivo. Borja passou a compor o que ficou conhecido por “con-sultoria catalã” de planos estratégicos. CaRlos VaineR (2000) – ver também aRantes (2000) sobre a gênese e natureza desse novo fenómeno – bem expõe as suas três principais características: constituir a cidade-empresa, a cidade-mercadoria e a cidade-pátria, para a qual o marketing urbano é fundamental. O planeamento es-tratégico de cidades, como chamado no Brasil, ou city marketing, como mais conhecido em Portugal, estabe-lece-se, assim, como uma forte característica do de-senvolvimento urbano contemporâneo, a partir dos anos 1990, dando novo impulso às reformas (ou cha-mem-lhes o que quiserem!) dos centros e outras áreas degradadas das cidades5. Esse planeamento não vê já a cidade como um todo, mas as suas partes como nichos que devem ser espetacularizados. (Trata-se de um ur-banismo pós-moderno?).

De volta a de CeRteau e GiaRd (1998, p.135)6– refe-rindo-se ao contexto francês ou, mais precisamente, parisiense, mas que é perfeitamente aplicável a outros casos –, estes escrevem: “No mundo urbano, há em pri-meiro lugar coisas que falam por si. Elas se impõem. Elas estão lá, fechadinhas nelas mesmas; são forças si-

5 Numa linha de raciocínio similar à de Steve Pile e Nigel Thrift, Fernandes (2003, 8) escreve: “[...] verifica-se um processo de uniformiza-ção à escala europeia [...], o que sai reforçado pelo facto da intervenção sobre o espaço público fazer parte do discurso e da prática em quase todas as cidades do mundo ocidental, com centros de cidade e outras áreas co-merciais a ser pedonizados, tratados e animados com cafés, restaurantes, mercados, festivais, espetáculos, etc.”

6 Todas as traduções são livres.

lenciosas. Elas têm personalidade. Ou, melhor ainda, elas são personagens no cenário urbano. Personagens secretas. [...] como ‘fantasmas’”.

Os autores explicam que, independentemente dos monumentos do “património nacional”, eleitos pe-las elites por intermédio dos técnicos do planeamento (“de acordo com quais critérios?”, perguntam), há uma série de objetos, os tais “fantasmas”, que se impõe no imaginário dos cidadãos, imprimindo a sua forte presen-ça na cidade, muito antes de receberem o devido reco-nhecimento oficial. São o que chamam de “heterodo-xias”. Daí, uma vez “restauradas”, ou seja, incorporadas neste corpo chamado “património” em consequência do desenvolvimento urbano oficial, essas heterodoxias se transformam em uma “nova ortodoxia cultural”. Trans-formados e reconhecidos, esses objetos passam a gozar de uma espécie de “seguro de vida” (transformando-se em “peças de museu”?), com a obrigação, no entanto, de desempenhar o papel que se espera deles. Eles são “modernizados”, renovados, o que inclui uma forte con-tradição: “[...] devem a um só tempo proteger e civili-zar aquilo que é velho, deixar novo aquilo que é velho” (p.137). Dizem ainda os autores: “Por razões tanto eco-nómicas como nacionais e culturais, retorna-se a um passado que tem envelhecido menos do que o que é novo.” (p.134, itálico adicionado). Mas isso não impede, ressaltam os autores, que esses objetos renovados se-jam locais de trânsito entre o passado e “os imperativos do presente”. Mais: eles representam a multiplicidade de períodos, grupos e práticas sociais – a tal heterodo-xia! Essa aparente contradição compõe um movimento circular de alienação/desalienação.

É também comum a renovação ter como resulta-do a mudança dos beneficiários, já que é também co-mum estar atrelada à “lei do mercado”: “Essa restaura-ção urbanística é uma ‘restauração’ social”. [...] “Através de seu próprio movimento, a economia da res-tauração tende a separar os lugares de seus moradores. Uma inadequada apropriação de sujeitos acompanha a renovação de objetos” (p.138)7.

Desconfio que essa estória toda se aproxime, ou talvez se enquadre, no que jean baudRillaRd (1991) cha-ma de simulacro no livro, já um clássico. Talvez, a ima-gem mais utilizada para explicar o conceito baudrillar-diano seja o da pessoa que, não estando, mas pensando estar doente, passa a apresentar sintomas da doença. Ora, se a pessoa acredita estar doente e com isso torna-

7 Para de CeRteau e GiaRd (1998), os moradores originais deveriam ter o direito de escolher permanecer ou não no sítio restaurado/renovado, inclusive “selecionar sua própria estética”. Não é o que tem acontecido na França ou no Brasil.

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Figura 3Fachadas e o “espaço público”. a. Pelourinho, Salvador (foto do autor); b. Carnaval de Olinda (foto do autor); c. Nazaré (foto do autor); d. Ouro Preto (foto do autor); e. Florianópolis (foto do autor)¸ f. Fortaleza (foto do autor); g. Coimbra. A rua por trás está adaptada à vida contemporânea (foto do autor)

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se realmente doente, o que era falso torna-se verdadei-ro, porém numa forma transformada. Eis, portanto, o simulacro: a verdade que se constrói, falseando a reali-dade. Por analogia, voltemos ao nosso caso. No contex-to do que na contemporaneidade é chamado de plane-amento estratégico de cidades, já mencionado, difundem-se, em muitas cidades, políticas urbanas de reabilitação (ou, de novo: recuperação, revitalização, renovação, requalificação, reforma, restauração) cujos formatos muito se assemelham entre si. Tais políticas são voltadas para a população solvável de visitantes ilustres e abonados locais. Recuperação de fachadas e telhados, como em Alfama, também já mencionada, e no Bairro Alto em Lisboa, é uma medida cada vez mais adotada em todo o mundo, em particular no Brasil8. Pois bem: o marketing urbano promove essas políticas e esses bairros “revitalizados” de tal forma que todos nós passamos a acreditar no simulacro. Explico: passamos a acreditar que, no passado, as pessoas viviam num mun-do feliz e prazenteiro, com ruas perfeitamente calça-das e limpas, repletas de lindas e harmoniosas casas e edificações coloridas (ou brancas, se mouras; ou de ou-tra forma, dependendo do caso, como se fossem “par-ques temáticos”), onde se situavam cafés, bares, res-taurantes, lojinhas de todos os tipos imagináveis de bugigangas etc. A convivência com animais de variadas espécies e tamanhos (cavalos, bois, cabras, porcos, ga-linhas, ratos, baratas, mosquitos etc.) como também com epidemias, lama, humidade, calor ou frio excessi-vo, fumo, poeira, incêndios, transportes precários, vio-lência sem lei, dominação oligárquica patriarcal, escla-vagismo, repressão sobre as mulheres e qualquer alteridade, tudo isso se esvai. O colorido radiante – o preferido – das casinhas coloridas – o simulacro – trans-forma-se na referência ao passado que muitos de nós sonhamos frequentar e passar a “reviver” em viagens curtíssimas e caras, muitas vezes pagas a prestações e com juros.

Concluo dizendo que, na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte – em que tudo se reproduz em série, ou seja, não mais existe uma peça original única, mas vários originais –, todas as principais cidades de-senvolvem os seus “centros”, renovam, inventam e reinventam os seus “patrimónios” (nem sempre históri-cos, mas que se tornam simulacros da história). As cida-des, em vista da crescente competição internacional, são, nesse aspecto, “todas iguais”. Persegue-se o cami-nho do dinheiro: turistas e visitantes endinheirados (consumidores e investidores). Para isso se concretizar

8 O arquiteto Marcelo Ferraz refere-se a uma certa “pelouriniza-ção” dos centros históricos das cidades brasileiras.

mais intensivamente, nas últimas décadas foi desenvol-vido o planeamento estratégico de cidades. Construí-ram-se hotéis, infraestrutura e serviços disneylandiza-dos; produziram-se tradições culturais, imprimiram-se marcas próprias num mundo que, para as elites, se tem tornado cada vez mais homogéneo com as suas infraes-truturas e serviços VIP9 (aeroportos, centros de conven-ções, hotéis, shopping centers, parques temáticos, con-domínios fechados, ou seja, espaços proibidos para os não dispõem de dinheiro para pagar, indesejáveis, nos quais circulam as elites). Objetos aparentemente – ou anteriormente – ímpares perderam sua “aura”, a refe-rência ao contexto de sua criação, transformando-se em objetos fetishizados. Até a Mona Lisa, antes solitá-ria, passou a receber milhões de visitantes por ano. (A museificação dos objetos de arte instituiu a reproduti-bilidade da audiência.) O contraponto a esta tendência são os “fantasmas”, de que De Certeau e Giard falam: esses objetos que se impõem sobre nós no quotidiano sem que sequer percebamos, tornando-se atores sociais “invisíveis”. E assim continua a história das cidades num contínuo de alienação/desalienação. Concluo, as-sim, sem concluir: não tenho todas as respostas às per-guntas formuladas, nem sei se o modelo atual de revi-talização de centros históricos é bom ou mau, mas, em muitos casos, que fica bonito, fica!

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