45
FASS FACULDADE SÃO SEBASTIÃO LA LUZ ES COMO EL ÁGUA: UMA QUESTÃO DE FÍSICA QUÂNTICA OU DE REALISMO MARAVILHOSO? CLEBER JOSE CHAVES DE CARVALHO JERÔNIMO Profª. Me. ROSELIANE SALEME Literatura Hispanoamericana II: Construção de Identidade São Sebastião 2009

La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

Embed Size (px)

DESCRIPTION

La luz es como el água – uma questão de física quântica ou de realismo maravilhoso versa sobre o possível ponto de intersecção entre a teoria literária e os conceitos físicos, procura-se descrever uma análise literária na qual se priorize incitar o leitor a realizar uma leitura mais aprofundada do texto, recorrendo como instrumento mediador o imaginário e como ferramental balizador a ruptura dos paradigmas de realidade e irrealidade. Utiliza-se a física quântica, a teoria do caos e a teoria relativista com o intuito de promover um maior entendimento da obra em si, corroborado pelos traços de realismo maravilhoso dessa obra de García Márquez.

Citation preview

Page 1: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

FASS – FACULDADE SÃO SEBASTIÃO

LA LUZ ES COMO EL ÁGUA: UMA QUESTÃO DE FÍSICA QUÂNTICA OU DE REALISMO

MARAVILHOSO?

CLEBER JOSE CHAVES DE CARVALHO JERÔNIMO

Profª. Me. ROSELIANE SALEME Literatura Hispanoamericana II: Construção de Identidade

São Sebastião 2009

Page 2: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

CLEBER JOSÉ CHAVES DE CARVALHO JERÔNIMO

LA LUZ ES COMO EL ÁGUA: UMA QUESTÃO DE FÍSICA QUÂNTICA OU DE REALISMO

MARAVILHOSO?

Trabalho de conclusão do curso de Letras Português e Espanhol e suas Literaturas das Faculdades São Sebastião para obtenção de graduação sob orientação da Professora Me. Roseliane Saleme.

São Sebastião 2009

Page 3: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

Cleber José Chaves de Carvalho Jerônimo

LA LUZ ES COMO EL ÁGUA: UMA QUESTÃO DE FÍSICA QUÂNTICA OU REALISMO

MARAVILHOSO?

Apresentação de monografia às Faculdades São Sebastião, como condição parcial para a conclusão do curso de Graduação em Letras Português e Espanhol e suas Literaturas.

São Sebastião, ____________________

BANCA EXAMINADORA

______________________________

ORIENTADOR

______________________________

ARGUIDOR

______________________________

ARGUIDOR

MÉDIA FINAL:_____________

Page 4: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

À minha mãe Fátima, mulher forte cujo único ponto fraco é seu filho. A meu pai, homem simples e de uma sabedoria ímpar. À minha irmã Janaina por tudo.

Page 5: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

À minha orientadora e amiga, Profª Me. Roseliane Saleme pelo carinho e tanto

acreditar em meu potencial.

A todos os meus professores do curso de Letras Português e Espanhol e suas

Literaturas, por compartilharem de seu conhecimento.

A meu amigo Prof° Doutorando Lucelmo Lacerda de Brito, pela paciência e colocar

meus pés no chão.

À minha irmã de coração Michelle Beisiegel da Silva pelo companheirismo.

Page 6: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

“(…) las cosas tienen vida propia (...) todo es cuestión de despertarles el ánima”. García Márquez

Page 7: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

JERÔNIMO, Cleber José Chaves de Carvalho. La luz es como el água: uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso . 2009. 45 f. Monografia (Graduação) – FASS – Faculdades São Sebastião, São Sebastião, 2009.

La luz es como el água – uma questão de física quântica ou realismo

maravilhoso versa sobre o possível ponto de intersecção entre a teoria literária e os

conceitos físicos, procura-se descrever uma análise literária na qual se priorize

incitar o leitor a realizar uma leitura mais aprofundada do texto, recorrendo como

instrumento mediador o imaginário e como ferramental balizador a ruptura dos

paradigmas de realidade e irrealidade. Utiliza-se a física quântica, a teoria do caos e

a teoria relativista com o intuito de promover um maior entendimento da obra em si,

corroborado pelos traços de realismo maravilhoso dessa obra de García Márquez.

Palavras-chave: García Márquez - imaginário – Teoria Quântico-relativista – Teoria

do Caos – Realismo Maravilhoso

Page 8: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

JERÔNIMO, Cleber José Chaves de Carvalho. La luz es como el água: uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso . 2009. 45 f. Monografia (Graduação) – FASS – Faculdades São Sebastião, São Sebastião, 2009.

„La luz es como el agua - una cuestión de física cuántica o realismo maravilloso‟

habla sobre el posible punto de intersección entre la teoría literaria y los conceptos

físicos, trata de describir un análisis literario cuya prioridad es provocar una lectura

más allá del texto, utilizando el imaginario como herramienta mediadora y como

instrumento para romper los paradigmas de la realidad y la irrealidad. Se utiliza la

física cuántica, la teoría del caos y la teoría relativista con el fin de promover una

mayor comprensión de la propia obra, apoyados en la esencia de la literatura en esa

obra de García Márquez.

Palabras-clave: García Márquez - imaginario – Física Cuántico-relativista – Teoría del Caos – Realismo Maravilloso

Page 9: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

1 INDEFINIÇÕES ...................................................................................................... 14 1.1 Indefinições do Conto ...................................................................................... 14 1.2 Indefinições do Fantástico ............................................................................... 14 1.3 Indefinições: Realismo Mágico ou Maravilhoso? ............................................. 16 1.4 Indefinições: Relativizando os Conceitos Físicos ............................................ 18

2 NAVEGANDO DO CONTO .................................................................................... 21

2.1.1 Realidades: Realismo no conto .................................................................... 21 2.1.2 Realidades: Espaço ...................................................................................... 21 2.1.3 Realidades: Tempo ....................................................................................... 22 2.1.4 Realidades: O cotidiano ................................................................................ 23 2.2.1 Navegando pela narrativa ............................................................................. 25 2.2.2 Entre o Maravilhoso e o onírico .................................................................... 25 2.2.3 Sob a luz da semiótica .................................................................................. 26 2.2.4 Um mergulho nas personagens .................................................................... 28 2.3.1 Realismo Maravilhoso ................................................................................... 30 2.3.2 Maravilhoso ou disfarce? .............................................................................. 31 2.4.1 Dos conceitos físicos .................................................................................... 36 2.4.2 Do quântico-relativista ao caos ..................................................................... 38

3 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 41

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 43

ANEXO - LA LUZ ES COMO EL AGUA .................................................................... 45

Page 10: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

10

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de estudo o conto La luz es como el

água (1992), de Gabriel Garcia Márquez, escritor colombiano, obra esta enquadrada

no gênero literário Realismo Mágico, sendo ele, de acordo com Valdez-Mozes apud

Lopes (2008, p. 383) um dos seus maiores representantes.

La luz es como el água, provoca um momento de inquietação resultante de

sua leitura: as situações elencadas no conto seriam possíveis?

Segundo Ataíde (1973) ao escrever uma obra é bom que o autor não se

arrisque empregando o irracional ou impossível quando esta apresentar cunho

fantástico, entretanto se for pertinente à construção da obra como um todo, traçando

laços fortes e bem amarrados em sua tecitura, tornando a narrativa indestrutível em

relação à sua estrutura, unindo o lógico e o excepcional, aí sim poderá empregar o

recurso do irracional e improvável, resultando desta feita, em uma obra de primeira

qualidade.

Diante do mundo moderno e toda sua agilidade, o homem, tem ficado cada

vez mais à mercê de seu tempo, ou, de sua falta de tempo. Tudo se tornou urgente,

sem possibilidade nem tempo para falhas, o stress diário empurra e emperra esse

homo sapiens, impulsionando-o para um posicionamento ante a realidade cada vez

mais introspectivo, isolando-o dentro de si, denotando neste recorte, a relevância

deste estudo: trazer de volta o sonho, o mundo das possibilidades presentes no

imaginário infantil, arrancando esse homem do seu íntimo e fazendo-o imaginar, ao

mergulhar nesta obra de García Márquez de tamanha complexidade e que ao

mesmo tempo resgata sua ingenuidade.

Strathern (2009, p. 77) interpreta que “[n] o tipo de fantasia de García

Márquez, há sempre uma sensação de que qualquer coisa vai acontecer” e afirma

que ou nos apaixonamos por sua obra desde a primeira frase ou tornamo-nos

totalmente indiferentes a toda construção de sua “realidade poética”.

Gabriel José García Márquez nasceu em Aracataca (Colômbia), tem uma vida

literária bastante produtiva, faz um registro da América Hispanica que emerge e em

1982 recebe o Premio Nobel de literatura e em 1992, ele publica Doce cuentos

peregrinos, no qual consta o conto La luz es como el água conforme Dasi (s/d):

Page 11: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

11

Em 19921 escreve Doze contos peregrinos. Segundo o próprio autor

se trata de: “uma coleção de contos curtos, baseados em feitos periódicos, mas redimidos de sua condição mortal pela astúcia da poesia”. Muitos deles, antes de ser finalmente contos, foram histórias escritas com outras finalidades: cinco foram notas de jornal; outros cinco, roteiro de cinema e um, uma série de televisão. (s/p)

2 (sic)

Todorov (2004, p. 81) defende que “a literatura deve ser compreendida na sua

especificidade, enquanto literatura, antes de se procurar estabelecer sua relação

com algo diferente dela mesma”. Desta forma, margearemos a linha divisória entre o

fantástico e a realidade, apontando hipóteses de realidade apoiadas em abstrações

e interpretações da Física em seus vários campos do conhecimento, seja ela

Tradicional ou Experimental3, sem a pretensão de descaracterizar a obra em relação

ao estilo a que pertence, estilo este promovido pelo distanciamento do real “sem

criar tensão ou questionamento” (Camarini 2008) conceituando o corpus desta

análise como “Realismo Mágico” ou “Realismo Fantástico” ou ainda “Realismo

Maravilhoso”, estilo que, também segundo Chiampi (1983) é caracterizado pela

naturalização do insólito e do sobrenatural.

Em Indefinições, faremos um aporte de alguns pesquisadores que estudaram

a questão do fantástico presente na literatura, sua definição, manifestação, e a

constituição de uma literatura maravilhosa chegando ao Realismo Maravilhoso com

o intuito de tornar mais acessível à compreensão do corpus deste trabalho.

Navegando, tendo como porto partida o conto, teceremos uma análise do

objeto de estudo deste trabalho, utilizando os recursos propostos no embasamento

teórico, marcando a ecleticidade de García Márquez em seus nuances de real e

fantástico, buscando os traços distintivos dessa escrita.

Remaremos um pouco sob a luz da linguística e semiótica e apontaremos

uma vertente do real implícito na voz de García Márquez com a finalidade de

enriquecer um pouco mais as possíveis análises que se possa fazer desta obra

literária, reforçando o entendimento de que nada é escrito ao acaso.

1 Há que se fazer uma ressalva, a data mencionada por Martinez Dasi se refere à data de publicação

do livro, García Márquez data o conto como escrito em (mês) 1978, no referido livro. 2Tradução minha de “(...) En 1992 escribe Doce cuentos peregrinos. Según el propio autor se trata

de:” una colección de cuentos cortos, basados en hechos periodísticos, pero redimidos de su condición mortal por las astucias de la poesía”. Muchos de ellos, antes de ser finalmente cuentos, fueron historias escritas con otros fines: cinco fueron notas periodísticas; otros cinco, guiones de cine y uno, un serial de televisión.” MARTÍNEZ DASI, O. Apunte biográfico, disponível em http://www.sololiteratura.com/ggm/marquezbiografia.htm acessado em 12/09/2009 as 19:55hs. 3 Não é nossa intenção rotular nenhuma forma de conhecimento científico, todavia utilizamos o termo

“experimental” devido a não ampla divulgação dessas ciências.

Page 12: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

12

Embarcaremos na viagem do conto e teceremos as hipóteses explicativas

sobre os acontecimentos da narrativa, procurando um elo que faça a ponte entre a

literatura e os conceitos físicos, salientando que não cabe em uma análise literária a

elaboração de fórmulas matemáticas para a comprovação de fatores de uma

narrativa ficcional, porém, é nosso interesse provocar a reflexão sobre os tópicos

abordados para que se atinja a percepção da inexistência de um real absoluto.

Por fim, tentaremos utilizar alguns princípios físicos para elucidar, entender e

explicar alguns pontos do conto, com a intenção de ampliar as interpretações

possíveis e libertar-nos dos grilhões da maioridade que já não permite a instauração

do onírico tão presente no impúbere.

No capítulo final, encerraremos este trabalho de maneira sucinta com nossas

considerações sobre o tema.

Page 13: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

13

1 INDEFINIÇÕES TEÓRICAS

Neste capítulo, formaremos uma corrente estrutural crescente para embasar

nossa análise, traremos algumas definições do conto, sua estruturação e elementos

essenciais; entraremos no gênero fantástico, com suas vertentes até desaguar nas

definições do Realismo Maravilhoso, sendo esta enxurrada teórica iluminada com

alguns relampejos dos conceitos Físicos com lampejos das Teorias físico-quântica-

relativistas e caos.

1.1 Indefinições do Conto

A obra em estudo manifesta características constitutivas do conto, gênero

literário que segundo Massaud Moisés (1988, p. 21) é definido como uma fração

dramática, de caráter continuado, de cujo passado ou futuro não tem maior

importância, quando muito apenas funcionam como preparativo para o ápice da

trama, assumindo valor sólido somente o momento em que se dá à narrativa. É uma

“(...) obra fechada, dramaticamente circunscrita”.

Quanto à organização, Moisés (1988, p. 25) aduz que o conto pode ser

comparado a “uma célula, com seu núcleo e o tecido ao redor, o núcleo possui

densidade dramática, enquanto a massa circundante existe em sua função” (p. 25),

há em todo o conto fatores comuns a todas as formas de narrativa (personagens,

espaço, ação, tempo, etc), no entanto no núcleo é que o desenrolar da trama

acontece com real importância dramática. “Assim sendo, o que importa num conto é

aquela (s) personagem (ns) em conflito, não a (s) dependente (s); o espaço onde o

drama se desenrola, não todos os lugares por onde transita a personagem, e assim

por diante...”.

Assimilando o conto como uma manifestação literária caracterizada pela

utilização de uma única célula dramática, na qual se desenvolve toda ação na

narrativa, percebe-se que na construção de La luz es como el água, nos é

apresentada uma pequena turbulência na qual é realizado a mistura do real com

elementos fantásticos, os fatos inusitados ou inesperados transbordam no

transcorrer da diegése de maneira muito própria.

Ainda segundo o Professor Moisés (1988, p. 23) é preciso “compreender-se

melhor que no conto tudo deva convergir para essa impressão singular, (...) ele

Page 14: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

14

opera com a ação e não com caracteres. (...)”, logo, todo contista tem em mente que

não é recomendável a inserção de descrições alongadas na construção da narrativa,

visto que seu desenvolvimento tende a ser estritamente objetivo, a criação das

personagens também deve ser objetiva, “embora as personagens estejam longe de

ser confundidas com bonecos de mola nas mãos do ficcionista. (...) jamais pode

permanecer longo tempo em sua analise”, assim, serão abordados somente os fatos

imprescindíveis para cumprir o intento deste trabalho.

1.2 Indefinições do Fantástico

Todorov (1970) apud Sá (2003, p. 35) demonstra as condições para

instauração do fantástico em uma obra literária, para tanto expõe três condições

para sua manifestação: “a hesitação provocada no leitor como reflexo da narrativa,

uma atitude que rejeite a leitura alegórica ou poética da obra (...) e, como condição

não necessária, a identificação do leitor com um personagem, preferencialmente o

narrador”.

Partindo desta assertiva, Todorov (1970) apud Sá (2003, p.35), definiu “o

fantástico através [sic] do posicionamento entre dois mundos, o real e o

sobrenatural. Entretanto, colocando-se em foco a realidade humana que

proporcionará contornos tanto ao real quanto ao sobrenatural”, sendo este

pensamento alicerçado na sociedade ou cultura do mundo que será criado

ficcionalmente.

Conforme Méletinski (1984)4 apud Chnaiderman (1989, p. 78), o formalista

russo Propp (1984) em sua publicação “A morfologia do conto maravilhoso”, traça

uma linha geral de análise para todos os contos de cunho fantástico, procurando a

universalidade desses contos. Como resultado desse estudo, estabeleceu 31

funções5, obtidas por meio da fragmentação e segmentação da estrutura do objeto

que serviria como fórmula metodológica de criação e análise para todos os contos

fantásticos, estabelecendo que “a narrativa nos contos de magia teria leis: a

sequência dos elementos seria sempre, rigorosamente, idêntica. Todos os contos de

magia são monotípicos quanto à construção.”

4 MÉLETINSKI, E. M. “O estudo tipológico-estrutural do conto maravilhoso” in Propp, V. Morfologia do

conto maravilhoso, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984. 5 Por função, compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua

importância para o desenrolar da ação”. (PROPP, 1984, p. 26).

Page 15: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

15

Ainda apoiados no estudo de Méletinski (1984) apud Chnaiderman (1989, p.

95) com foco no aprofundamento feito nos estudo de Propp (1984) por Greimas

(1984)6 no qual “conservou apenas vinte funções, ligando cada par segundo o

critério de implicação ou disjunção”, desta forma todo conto segue um receita natural

para construção da narrativa de um conto, “na primeira metade do conto, sempre

haveria um elemento negativo que apareceria positivamente na segunda metade”,

nesta classificação independe a presença ou ausência do herói.

Todorov (2004, p. 152) expõe que “o gênero fantástico é, pois definido

essencialmente por categorias que dizem respeito às visões na narrativa; e, em

parte, por seus temas”, assim o próprio título do conto já o insere no gênero

fantástico.

Segundo Todorov (1981, p. 82) a vacilação do leitor ante a realidade

apresentada, na qual ele, o leitor, se identifica com o personagem principal da trama,

de forma que a veracidade do acontecimento “pertence à realidade, já seja

decidindo que este é produto da imaginação ou o resultado de uma ilusão; em

outras palavras, pode-se decidir que o acontecimento é ou não é.”

Todorov (2004, p. 150-1) instrui que “o fantástico implica, pois uma integração

do leitor tem dos acontecimentos narrados; esse leitor se identifica com a

personagem”, entendendo aqui uma função de leitor implícito assim como no texto

existe a função do narrador implícito inscrito no texto seguindo a movimentação das

personagens.

Bessière apud Camarini (2008) explana que o termo fantástico faz alusão a

uma estrutura previamente entendida e caracterizada pela contradição e recusa

recíproca ao mesmo tempo implícita de ordens divergentes: o natural e o

sobrenatural.

A literatura de ficção fantástica se utiliza da incerteza para criar um clima

envolvente para que o leitor permaneça ali, hesitando diante da ambigüidade

apresentada pelo próprio objeto literário. A hesitação causada pelo estranhamento

contido no fantástico gera espanto também nas personagens que vivenciam a

diegése.

1.3 Indefinições: Realismo Mágico ou Maravilhoso

6 PROPP, V.I. Morfologia do conto maravilhoso, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984 (org.

Boris Schnaiderman).

Page 16: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

16

De acordo com Lopes (2008, p. 381), “em 1925 foi utilizado pela primeira vez

o termo Realismo Mágico pelo historiador Franz Roh (1890-1965), publicado pela

Revista Ocidente”, cujo título é “O Realismo Mágico”.

O realismo mágico, segundo Valdez-Moses apud Lopes (2008, p. 383) é

caracterizado por um forte entrosamento entre o real e o fabuloso. “A fusão do real e

do mágico, na sua proposta, pode ser entendida como tendo uma linhagem dupla,

ou melhor, como uma convergência de duas tradições narrativas distintas”.

Congregando do mesmo entendimento Chiampi na voz de Camarini (2008, p.

02) aclara um pouco mais a questão terminológica do realismo mágico/maravilhoso:

Essa confusão terminológica é apontada por Chiampi (1980), em um dos poucos livros publicados no Brasil a respeito do tema - O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano -, quando aponta ser este termo “onipresente e de uso indiscriminado na crítica hispano-americana”, assinalando “o processo de esvaziamento conceitual que o realismo mágico sofreu na aplicação à produção literária” da América hispânica (1980, p. 19 e 22). Após examinar criticamente os conceitos de mágico, fantástico e maravilhoso, e discutir detalhadamente as oscilações conceituais do termo realismo mágico/realismo maravilhoso, a autora evidencia “a pertinência das reflexões de Carpentier sobre a fenomenologia da percepção do maravilhoso na realidade, posto que abrem caminho para a análise das relações pragmáticas do texto literário” (CHIAMPI, 1980, p. 39). Opta, assim, pela expressão “realismo maravilhoso”, para “situar o problema no âmbito específico da investigação literária” (CHIAMPI, 1980, p. 43), já que considera o termo “mágico” como “tomado de outra série cultural” (CHIAMPI, 1980, p. 43).

Neste trabalho, fora eleito o termo Maravilhoso, ao invés de Realismo

Fantástico ou Realismo Mágico, termos estes amplamente difundidos dentre os

teóricos, em razão do contato com o trabalho desenvolvido por Chiampi (1983, p.

54), no qual faz uma distinção entre, Maravilhoso, Fantástico e Mágico: o último está

diretamente ligado a magia, o anterior atrelado ao sobrenatural (fantasmas e

aparições) e o primeiro remete à ideia de fato insólito, inesperado, inexplicável, sem

relação com sobrenatural ou magia.

De acordo com Chiampi (1983, p. 54) o Realismo maravilhoso é caracterizado

por tornar natural o inusitado, insólito e sobrenatural, maravilhoso e o extraordinário,

o que escapa ao curso diário das coisas e da realidade humana. Maravilhoso é o

que contém maravilha, do latim mirabilia, ou seja, coisas “admiráveis” (belas ou

execráveis, boas ou horríveis) opostas aos naturalia”7.

7 Tradução minha de: (...) maravilloso es lo “extraordinario”, lo “insólito”, lo que escapa la curso diario

de las cosas y de lo humano. Maravilloso es lo que contiene la maravilla, del latin mirabilia, o sea cosas “admirábles” (bellas o execrables, buenas u horribles), opuestas a los naturalia.(pag. 54)

Page 17: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

17

O Realismo Fantástico não está preocupado com o real nem com o irreal

segundo Chiampi (1983, p. 54), “o fantástico se conforma com fabricar hipóteses

falsas (ou seja, o “possível” é improvável), em desenhar a arbitrariedade da razão”8,

não oferecendo nada além da incerteza, “se constroem sobre o artifício lúdico do

verossímil textual, cujo projeto é evitar toda afirmação, todo significado fixo” (p. 67)9.

Contentaremo-nos com a inserção de mais uma definição e nomenclatura,

dentre tantos outros estudiosos possíveis quanto ao enquadramento do objeto

dentro da literatura, neste selecionado para análise, segundo Spindler (1993, p. 79)

o realismo metafísico, induz a um senso de irrealidade pela técnica do

estranhamento, descrevendo uma cena como se fosse algo novo e desconhecido

“sem recorrer explicitamente ao sobrenatural, como nas narrativas surrealistas e em

alguns textos de Kafka de Buzzati e de Murilo Rubião”.

Há que se fazer bem entendido a linha divisória entre o gênero Fantástico e o

Realismo Maravilhoso que apesar de tênue, na primeira terminologia é criado um

ambiente envolvente e ambíguo, elaborado para cativar o leitor, retomando as

considerações de Todorov (2004) a hesitação é indispensável para sua instauração,

sendo este o contraponto principal para sua diferenciação, na segunda terminologia

não há um clima de mistério, conforme Barthes apud Lopes (2008, p. 383) o mesmo

não ocorre no realismo mágico, “em que não há hesitação, uma vez que os eventos

considerados irreais fluem naturalmente”, e que Todorov (1981, p. 30) chamaria de

um “maravilhoso puro”, “os elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação

particular nem nos personagens, nem no leitor implícito”.

1.4 Indefinições: Relativizando os Conceitos Físicos

A Teoria da Relatividade Restrita formulada por Albert Einstein, publicada em

1905, tem seu cerne na questão do ponto de observação, como afirma Villate

(2005)10, onde se pode inferir um determinado conceito dependendo de qual seja o

posicionamento do observador diante do fato ou objeto observado. Apropriadamente

Daniel (2008, p. 36) pondera que “essa peculiaridade de como e de onde olhar o real

é comparável a interpretação física, dada por Albert Einstein (...) O intuito aqui não é

8 Tradução minha de: (...) Lo fantástico se conforma con fabricar hipótesis falsas (o sea lo “posible” es

improbable), en diseñar la arbitrariedad de la razón,(…) (p. 66) 9 Tradução minha de: (...) se construyem sobre el artificio lúdico de lo verosímil textual, cuyo proyecto

es evitar toda aserción, todo significado fijo. (p. 67) 10

Teorias da luz. Experiências, Jaime E. Villate, Departamento de Física - Faculdade de Engenharia - Universidade do Porto - Exposição na Biblioteca da FEUP - 21 de Abril a 13 de Junho de 2005

Page 18: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

18

simplificar a Teoria da Relatividade Restrita, (...)”, menos ainda descaracterizar

qualquer conceito estabelecido sobre a literatura em exame, apenas pretendemos

nos utilizar desse ferramental para aumentar a amplitude dos alçapões ocultos no

texto literário.

Capra (2004, p. 67) de maneira simples, explica o impacto desta teoria e o

conceito de espaço e tempo estabelecido nesse novo paradigma no qual se

descobre que toda medição do espaço e tempo são relativas. Mesmo antes de

Einstein se sabia que o posicionamento de um objeto no espaço somente seria

possível mensurar de acordo com outro objeto e doravante também o tempo se

mostra relativo.

Ainda referenciando Capra (2004, p. 53 a 69) com relação ao tempo ser

relativo, descreve um experimento mental fundamentado no campo quântico, no

qual os “sistemas observados se descrevem em termos de probabilidades11”.

O experimento consiste na observação teórica de dois irmãos gêmeos que

seriam separados num dado momento de sua vida e um deles seria enviado numa

viagem ao espaço exterior num longo e rápido percurso, e o outro gêmeo ficaria aqui

na Terra esperando.

Quando do retorno desta viagem, o gêmeo que esteve fora terá menos idade

que o irmão que ficou a espera, pois para ele o tempo passou de forma diversa a de

seu irmão, não que o tempo necessariamente tenha corrido para trás, mas sim pelo

fato de que “os relógios em movimento vão mais devagar, o tempo passa em

câmera lenta. Estes relógios podem ser de qualquer tipo: mecânicos, atômicos ou

inclusive o próprio coração humano” 12.

Assim o tempo na teoria quântica também é relativo, dependendo de um

referencial e ou observador e de acordo com a formulação relativista E=mc2 criada

por Einstein, massa e o tempo de um objeto variam com sua velocidade, o ponto de

observação é essecial. Assim, a energia cinética13 do elétron acelerado converte-se

em massa14, assim Capra (2004, p. 83) expõe que “a quantidade de energia contida,

11

Tradução minha de: (...) los sistemas observados se describen en términos de probabilidades. Capra (2004, p. 53) 12

Tradução minha de: (...) Esto significa que los relojes en movimiento van más despacio, el tiempo se ralentiza. Estos relojes pueden ser de cualquier tipo: mecánicos, atómicos o incluso el latido de un corazón humano. Capra (2004, p. 69) 13

Cabe relembrar que a energia cinética segundo a física tradicional ou clássica, estudada dentro da Mecânica, versa sobre o movimento, independentemente das causas que o produzam, entendida como a potencial energia armazenada nos corpo, tanto em repouso quanto em movimento. 14

Massa é a quantidade de matéria que constitui um corpo.

Page 19: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

19

por exemplo, em uma partícula, é igual à massa da partícula c2, o quadrado da

velocidade da luz”15.

Paralelamente Dos Anjos (s/d, p. 286), na Física Tradicional, de acordo com

os estudos sobre luz de Louis de Broglie, aponta que a luz apresenta uma natureza

dualística, ora se comportando como partícula, ora como onda, logo, pode-se

considerar o entendimento que Isaac Newton pregava, de que a luz é constituída por

partículas materiais, ou mesmo o conceito de Huygens, que considerava que a luz

era uma onda, convergindo para as teorias de Einstein.

No entendimento de Gleick (s/d, p. 23) a Teoria do Caos é a vertente da

Física que versa inicialmente sobre a estrutura organizacional dos fenômenos

naturais, estuda os padrões indeterminísticos estabelecidos mesmo dentro de uma

aparente desordem, e para ser entendida, é preciso que se conheça pelo menos três

conceitos básicos:

O primeiro foi apresentado no final do século passado pelo precursor da Teoria do Caos, o matemático francês Jules Henri Poincaré (1845-1912), [...] veio dele a noção de que uma pequena causa pode levar a grandes efeitos. Com o tempo, o enunciado ficou conhecido [...] como Efeito Borboleta. [...] Outro princípio geral, o da sensibilidade às condições iniciais, foi formulada pelo meteorologista americano Edward Lorenz, nos anos 60. Ao fazer simulações em computador sobre o deslocamento das nuvens, ele descobriu que o resultado final variava sutilmente, de acordo com a quantidade de números colocados depois da vírgula. [...] Outro suporte da Teoria do Caos são as repetições de um mesmo tipo de estrutura, as bifurcações ou ramificações [...].

A Terceira Lei de Newton ou Princípio da Ação e Reação, é explicada por

Anjos (s/d, p. 76), da seguinte forma: “se um corpo A aplica uma força em outro

corpo B, este também aplica em A uma força de mesma intensidade e mesma

direção, porém em sentido contrario”, é possível transcrever que um acontecimento,

por mais sutil que seja, possivelmente influenciará o resto do universo alhures,

fazendo assim, uma ponte com as Teorias Quântica, Relativistas e Caóticas.

15

Tradução minha de: (...) La cantidad de energía contenida, por ejemplo, en una partícula, es igual a la masa de la partícula c2, el cuadrado de la velocidad de la luz. (pág. 83)

Page 20: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

20

2 NAVEGANDO NO CONTO.

A análise que neste momento se principia, tem seu foco em abordar o maior

número possível de interpretações desta obra de García Márquez e mostrar que

essa Nau não precisa necessariamente permanecer presa à poita de uma vertente

literária ou mesmo de um campo do conhecimento científico.

Procuraremos respeitar os sistemas básicos de analises literárias, sobretudo,

das analises de contos quanto aos elementos fundamentais de organização, mas é

na intersecção do Literatura Realista com o Realismo Maravilhoso que nossa

navegação tomará nova dimensão.

2.1.1 Realidades: Realismo no conto

O professor Massaud Moisés (2004, p.378-9) o realismo é uma forma de

manifestação estética cujo cerne seja o “real”, composta por todos os elementos

naturais contido no mundo físico e social, surgindo como oposição ao Romantismo

que planava em meio ao imaginativo idealizado, ocorre que em La luz es como el

água é apresentado elementos comuns as demais narrativas em sua construção,

suscitando a inúmeras identificações sobretudo com a narrativa realista, ambienta

um mundo constituído natural e real com situações corriqueiras do cotidiano como

denotaremos nos próximo sub-capítulos.

Para Barthes (1968) apud Lopes (2008) “a imitação de modos não ficcionais,

como história ou jornalismo, ou o uso abundante de detalhes são fundamentais para

criar o “efeito do real””, de maneira que a escrita de García Márquez nos proporciona

uma riqueza de informações a fim de naturalizar os elementos da narrativa.

2.1.2 Realidades: Espaço

O espaço físico, segundo o Professor Moisés (1987), não ocupa grande

função na estrutura de um conto, visto que a diegése deverá acontecer em algum

lugar, seja ele e externo ou interno, em face da necessidade de ser objetiva a

construção textual, que é um predicativo do conto.

Ataíde (1973, p. 50) pondera que “o espaço geográfico é importante para a

localização o desenvolvimento dos fatos”, então em La luz es como el água o

espaço ambientado é natural, a narrativa se passa em Madrid, Espanha, para a qual

Page 21: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

21

se mudou-se a família que protagoniza o núcleo dramático do conto, vinda de

Cartagena de Índias (Colômbia):

Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um flutuante sobre a bahia, e um refúgio para os iates grandes. Ao passo que aqui em Madrid vivem apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana (...)

16 (García Márquez).

Com o intento de aprofundar a questão espacial, Ataíde (1973, p. 50)

considera mais importante “aquela vinculada a um estado anímico” refletindo o

comportamento humano, devendo este ser entendido “como conexa a outros

constituintes ficcionais”, assim pode-se apurar a necessidade de expressão

impressa no conto, quando García Márquez ambienta a narrativa, em sua quase

totalidade, em um apartamento na cidade de Madrid (Espanha), temática que será

mais aclarada em nosso capítulo Maravilhoso ou disfarce?.

2.1.3 Realidades: Tempo

A definição de tempo feita por Ataíde (1973, p. 47) é sintetizada como “a

velocidade com que a narrativa se movimenta” assim o tempo em que se dão os

acontecimentos é cronológico17 para reforçar a sensação de realidade e aumentar

sua intensidade e naturalidade, García Márquez introduz marcas temporais

bastantes claras em toda diegése.

Dimas (1985) apud Costa (2008) explana que o espaço preenche funções que

extrapolam a verossimilhança necessária para o entendimento das ações e

situações das personagens, contribuindo de forma significativa para o entendimento

final de um texto.

O autor proporciona com toda nitidez que seja identificado à época do ano em

que os fatos são contados, lê-se que estão próximos ao natal: “No natal os

pequenos voltaram a pedir um bote de remos” 18 e ao fazer menção aos filmes que

os pais vão assistir no cinema, García Márquez nos situa mais uma vez no tempo,

fica entendido que o desencadeamento dos episódios narrados advém da década de

16

Tradução minha de: (...) En la casa de Cartagena de Indias había un patio con un muelle sobre la bahía, y un refugio para dos yates grandes. En cambio aquí en Madrid vivían apretados en el piso quinto del número 47 del Paseo de la Castellana.(...) (García Márquez) 17

Pela definição de Ataíde (1973) “tempo cronológico é aquele que se mede pelo relógio, pela sucessividade dos dias e das noites, pelo movimento da terra e da lua, pela alternância das estações.” (p. 47) 18

Tradução minha de: (...) En Navidad los niños volvieron a pedir un bote de remos (...)” (García Márquez)

Page 22: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

22

70, momento em que de fato estava em cartaz nos cinemas “El ultimo tango en

Paris” e “La Batalla de Argel”.

Traços temporais são referenciados na trajetória narrativa, sendo um dos

mais significativos, o transcorrer das semanas explicitado pelas datas em que

ocorrem os fatos maravilhosos no conto, todas as quartas-feiras, robustecendo a

questão de continuidade temporal: “Na noite de quarta-feira, como todas as quartas-

feiras, os pais foram ao cinema” 19 (García Márquez), ou ainda “(...) meses depois,

ansiosos de ir mais longe, (...)20 (García Márquez).

Cano (2006, p. 72), a respeito do trabalho desenvolvido por García Márquez,

o compara a Salman Rushdie e afirma que o desenvolvimento da narrativa é feito

com total naturalidade “o autor colombiano não mostra nenhuma preocupação nem

pela credibilidade no que esta contando nem em separar os planos de realismo e

fantasia”21, comparação esta que concordamos em parte, pois, por mais que não

haja a intenção consciente de vincular seu texto com a realidade, García Márquez

fortalece o aspecto realista, ao procurar manter um tempo cronológico na narrativa,

determinando o modus vivendis daquela família.

2.1.4 Realidades: O cotidiano

As ações cotidianas da família protagonizante do corpus em análise são

relatadas almejando ressaltar o vínculo com a realidade, de maneira que García

Márquez apresenta toda a rotina familiar abordando os conflitos naturais de

convivência e as posturas adotadas, cada qual de acordo com sua função dentro

dessa estrutura.

Os usos e costumes familiares ficam externados em alguns trechos desse

objeto de estudo, seja explicita ou implicitamente, tal como quando no início da

narrativa, rapidamente, é realizada uma conversa em família à mesa, “revelou o pai

no almoço” 22 (García Márquez), trecho em que mostra uma situação extremamente

real, em cuja unidade familiar, ao menos os patriarcas decidem sobre os rumos a

serem tomados em relação aos anseios dos menores.

19

Tradução minha de: (...) La noche del miércoles, como todos los miércoles, los padres se fueron al cine. 20

Tradução minha de: (...) Meses después, ansiosos de ir más lejos, (...) (García Márquez) 21

Tradução minha de: (...) El autor colombiano no muestra ninguna preocupación ni por la credibilidad de lo que está contando ni por separar los planos de realismo y fantasía; (...) (García Márquez) 22

Tradução minha de: (...) -reveló el papá en el almuerzo- (…) (García Márquez)

Page 23: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

23

Caracteriza uma família comum, numa cidade comum, com discussões

também comuns, estipulam suas regras e valores familiares, acordam e desacordam

sobre diversas temáticas, há até um fator pedagógico implícito nesta passagem

audível na fala da Mãe: qual seria a melhor maneira de estimular o desenvolvimento

escolar dos filhos? Segundo as palavras da personagem Mãe, não seria comprando

a dedicação dos filhos, a ponto de considerar a promessa como dívida de jogo,

entretanto havia a necessidade de cumpri-la: “Pois, ao final, nem ele nem ela

puderam se negar, porque lhes haviam prometido um bote de remos com seu

sextante e bússola, se ganhassem o laurel do terceiro ano primário, e haviam

ganhado.23” (García Márquez)

Num outro momento da diegése, García Márquez manifesta a curiosidade

humana, fator inerente ao cotidiano natural, personificando-a por meio da

necessidade das crianças de testar se a informação sobre a origem da luz recebida

do narrador é verídica, logo, elas, no desenvolvimento do conto, pedem aos pais um

bote de remos, para navegar nesta luz, servindo como moeda de troca a maior

dedicação aos estudos.

Os pais mesmo que sem entender o por quê daqueles pedidos e um tanto

relutantes, vão atendendo-os na mesma proporção em que os pequenos, mostram

seu empenho nos estudos, cedendo a esta espécie de barganha, ainda que a mãe

se mostre contraria a isso: “(...) sua esposa, que era a mais contrária a pagar dívidas

de jogo (...)” 24 (García Márquez) e seria de fato esta uma dívida de jogo, logo esta

passagem nos serve como estimulo a aceitação desta realidade como cotidiana,

vivenciada em qualquer estrutura familiar.

Até este ponto da narrativa, todos os indícios apontam para uma construção

literária realista, verossimilhante25, mesmo o pedido do bote de remos, que é neste

momento a manifestação da imaginação das crianças desejando entrar num mundo

de fantasia. No entanto, um novo caminho é tomado no desencadeamento dos

acontecimentos, fatos fantásticos são inseridos no texto.

23

Tradução minha de: “...Pero al final ni él ni ella pudieron negarse, porque les habían prometido un bote de remos con su sextante y su brújula si se ganaban el laurel del tercer año de primaria, y se lo habían ganado.” (García Márquez) 24

Tradução minha de: “...su esposa, que era la más reacia a pagar deudas de juego...” (García Márquez) 25

Segundo Todorov (1979, p. 97) “Fala-se da verossimilhança de uma obra, na medida em que ela tenta fazer-nos crer que se submete ao real e não às suas próprias leis; quer dizer, o verossímil é a máscara com que se dissimulam as leis do texto, e que nos daria a impressão de uma relação com a realidade.” apud

Page 24: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

24

2.2.1 Navegando pela narrativa

Em La luz es como el água é narrada a história de dois irmãos menores, Totó

e Joel, que alimentam um desejo: navegar na luz, fato este incitado por uma

personagem secundária, cujo nome não é feito menção que, todavia, desempenha

duas funções essenciais no conto: é o narrador e é quem acende o estopim da

imaginação de Totó e Joel, quando afirma que a luz é como a água:

Esta aventura fabulosa foi o resultado uma brincadeira minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com o apertar de um botão, e eu respondi sem pensar duas vezes. - A luz é como a água – lhe respondi: alguém abre a torneira, e sai

26.

(García Márquez)

É preciso notar que o fantástico que será apresentado num primeiro momento

se resume ao imaginário das crianças, quando esse onírico se manifesta

palpavelmente estabelece-se um padrão de acontecimentos que vão se

intensificando gradativamente.

2.2.2 Entre o maravilhoso e o onírico

Ainda que numa obra literária não se tenha a pretensão de descrever a

realidade como conhecemos e estar apenas atrelada a verossimilhança, no contexto

da narrativa o gatilho que serviu para desencadear todo o processo, foi a sugestão

do narrador, logo é possível seguir outra linha de raciocínio: se encararmos de

acordo com o postulado de Freud em relação ao estudo e interpretação dos sonhos,

podemos notar que todas as viagens incursionadas na luz, acontecem nas noites de

quarta-feira, os pais jamais presenciam os fatos, pois saem sempre para ir ao

cinema e quando retornam estão as crianças dormindo e tudo na casa esta em

ordem.

Num primeiro momento, podemos deduzir que logo após a saída dos pais, as

crianças cairiam nos braços de Morfeu e então todo o plano narrativo aconteceria no

plano dos sonhos. Sigmund Freud (1999, p. 270), afirma que “o sonho é, antes,

construído por toda a massa de pensamentos oníricos, submetida a uma espécie de

26

Tradução minha de: (...) Esta aventura fabulosa fue el resultado de una ligereza mía cuando participaba en un seminario sobre la poesía de los utensilios domésticos. Totó me preguntó cómo era que la luz se encendía con sólo apretar un botón, y yo no tuve el valor de pensarlo dos veces. -La luz es como el água - le contesté: uno abre el grifo, y sale. (García Márquez)

Page 25: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

25

processo manipulativo em que os elementos que têm apoios mais numerosos e mais

fortes adquirem o direito de acesso ao conteúdo do sonho (...)”, no entanto, esta

argumentação não nos é válida, pois no final do conto as crianças têm uma morte ao

que tudo indica física, e não somente os dois, mas todos os colegas de sala

também, descartando essa possibilidade.

2.2.3 Sob a Luz da semiótica

Fazendo uma digressão bastante pertinente, ao considerar toda a saga desta

narrativa e enxergarmos pelo viés da Semiótica greimasiana27 na visão de Barros

(2007), será notado que o bote de remos, que é a primeira manifestação do desejo

dos protagonistas, pode se atribuir, segundo Barros (2007), que é o objeto de valor

do programa narrativo28 inicial, doravante PN1 e sequência, que após provas,

anteriores ao inicio da narrativa, resultam em junção do sujeito actante com o objeto

de valor e com o objetivo é dar continuidade no sistema actancial do conto, são

inseridos outros programas: PN2, sendo o objeto de valor um equipamento mergulho

/ pesca submarina e PN3, cujo objeto de valor seria uma festa com todos seus

colegas de classe, todos terminando em junção com seus objetos-valor.

Consonante a Chnaiderman (1989, p. 93-4) efetuamos uma ponte com o

pensamento de Greimas, que adaptou as 31 funções determinadas por Propp, por

excluir a necessidade da existência de um herói, visto que no Realismo e tampouco

no Realismo Fantástico a presença do herói inexiste, e as reduz a 20 funções.

Sob este prisma, após uma rápida análise da estrutura dessa diegése,

reconhecemos algumas funções estipuladas por Greimas, como:

Ausência: existe um afastamento espacial por parte dos personagens pais,

que vão todas as noites de quarta-feira ao cinema e deixam as crianças em casa,

explicitado em “Na noite de quarta-feira, como todas as quartas-feiras, os pais foram

ao cinema” 29 (García Márquez).

Proibição vs. Violação: subjetivamente, há uma determinação implícita no

texto dos pais ante aos jovens, para que mantenham a disciplina dentro do

27

Teoria desenvolvida por A. J. Greimas e pelo Grupo de Investigação Sêmio-linguistica da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Tartu. 28

O programa narrativo ou sintagma elementar da sintaxe narrativa define-se com um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Integra, portanto, estados e transformações. Barros (2007, p. 20) 29

Tradução minha de: “(…) La noche del miércoles, como todos los miércoles, los padres se fueron al cine. (…) ” (García Márquez).

Page 26: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

26

apartamento, que não subvertam a ordem, ordem esta que é violada com as

pequenas incursões na luz quando os pais saem.

Partida: no desenrolar da narrativa, vemos mais de uma partida que podem

ser referidas sob a óptica desta função, tanto a partida ou saída dos pais para irem

ao cinema como citado em função anterior quanto à própria morte dos jovens

afogados, entendendo morte como partida do plano terrestre para outro plano astral.

Atribuição de uma prova vs. Enfrentamento da prova: os pais condicionam à

entrega dos presentes desejados, objetos-valor, as crianças, após identificarem uma

melhora nos estudos, prova esta que os jovens aceitam prontamente, expresso no

trecho “(...) Mas a final nem ele nem ela puderam se negar, porque lhes fora

prometido um bote de remos com sextante e bússola se ganhassem o laurel do

terceiro ano primário,30 (...)”(García Márquez).

Recepção do ajudante: devido à dificuldade de levar o bote ate o apartamento

os protagonistas, pedem auxilio aos seus colegas de sala para apoiá-los nessa

empreitada, como vemos em “(...) os meninos convidaram a seus condiscípulos para

subir o bote pelas escadas31 (...)” (García Márquez).

Deslocamento espacial: o deslocamento espacial com significância que

abstraímos do conto é o ir vir dos pais, expresso varias vezes na narrativa e

constante da função Ausência, Partida e Retorno.

Retorno: como contrapartida de cada saída dos pais para irem ao cinema, há

o retorno deles ao lar, expresso em “(...) até que os pais voltavam do cinema e os

encontravam dormindo32 (...)” (García Márquez).

Atribuição de uma tarefa vs. Êxito: a mesma prova atribuída aos jovens num

dos itens anteriores é realizada com grande eficácia pelos meninos, cumprindo-a

acima das expectativas, identificadas na passagem “(...) Mas Totó e Joel, que

haviam sido os últimos nos anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias

de ouro e reconhecimento público do diretor 33(...)” (García Márquez).

Reconhecimento: os pequenos após desempenharem a tarefa atribuída a eles 30

Tradução mina de: “Pero al final ni él ni ella pudieron negarse, porque les habían prometido un bote de remos con su sextante y su brújula si se ganaban el laurel del tercer año de primaria, (...)” (García Márquez). 31

Tradução minha de: “(…) los niños invitaron a sus condiscípulos para subir el bote por las escaleras, (...)” (García Márquez). 32

Tradução minha de: “(…) hasta que los padres regresaban del cine y los encontraban dormidos (...)” (García Márquez). 33

Tradução minha de: “(…) Pero Totó y Joel, que habían sido los últimos en los dos años anteriores, se ganaron en julio las dos gardenias de oro y el reconocimiento público del rector.(…)” (García Márquez).

Page 27: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

27

pelos país, recebem o reconhecimento publico por sua conduta, o que é notado no

fragmento “(...) Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para

escola, e lhes deram diplomas de excelência.34 (…)” (García Márquez)

Como é visto várias são as funções que não são contempladas utilizando a

propositura de Propp, visto que o texto não resiste à análise feita com esse

ferramental, e ainda, pela similaridade, segundo Greimas apud Chnaiderman (1989,

p. 94) “para classificar os contos maravilhosos seria preciso que algumas da funções

se excluíssem mutuamente, o que não acontece”, ficaria, portanto, após considerar o

estudo inicial de Propp sobre o conto maravilhoso e apoiando-nos em Greimas, a

função resumida a “atribuição de uma tarefa difícil / êxito”: os meninos recebem em

troca do atendimento ao seu pedido, a tarefa de dedicarem-se mais aos estudos,

tarefa que desempenham e ultrapassam as expectativas.

2.2.4 Um mergulho nas personagens

Faremos aqui a inserção de algumas teorias que se fazem necessárias,

assim, Brait (1985, p. 64) explica a função de narrador personagem servindo como

testemunha, no qual “o narrador, de forma discreta, vai criando um clima de empatia,

apresentando a personagem principal de maneira convincente e levando o leitor a

enxergar, por um prisma ao mesmo tempo discreto e fascinado, a figura do

protagonista”, do mesmo modo, Moisés (1987, p. 36) afirma que quando “se trata

duma personagem secundária que nos conta a história da principal, à distância entre

o leitor e o conteúdo da narrativa aumenta, pois os acontecimentos se passam com

uma terceira personagem. (...) pode constituir, mais do que as outras, um disfarce do

autor.”, reforçado por Chiampi (1983, p. 68) quando esclarece que há “um dispositivo

narracional clássico do texto fantástico – o narrador que se levanta como

testemunha e conta uma história já ocorrida” 35, fator este que concordamos, visto

que há todos os indícios dentro do conto, apontando para esta conclusão:

a) Só há discurso direto livre por parte do narrador em um único momento.

b) Em todas as outras situações do conto, o narrador não está presente, não

poderia servir como testemunha, pois não está lá.

34

Traduçã minha de: “(…) En la premiación final los hermanos fueron aclamados como ejemplo para la escuela, y les dieron diplomas de excelencia.” (García Márquez). 35

Tradução minha de: un dispositivo narracional clásico del texto fantástico – el narrador que se erige um testigo y cuenta uma historia ya ocurrida”. Chiampi (1983, p. 68)

Page 28: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

28

Em relação às demais personagens desempenham a função de coadjuvantes,

personagens secundárias, sem maior expressão, entretanto, segundo Brait (1985, p.

49): “Uma outra função passível de ser desempenhada pela personagem é, segundo

os autores que se apóiam em vários outros críticos, a de agente da ação.”, assim

elenca-se seis categorias alternantes para as personagens de acordo com os

estudos desenvolvidos por E. Souriau e W. Propp.

Desta forma temos, conforme Brait (1985), condutor da ação36, oponente37,

objeto desejado38, destinatário39, adjuvante40 e árbitro ou juiz41, que se alternam

mutuamente, exemplificando:

O narrador é o condutor da ação e oferece o objeto de desejo (a possibilidade

de a luz ser como a água) ao destinatário (as crianças).

As crianças tomam para si o objeto de desejo e assumem a partir deste

momento da narrativa a função de condutor da ação.

Os pais exercem as funções simultaneamente de oponente, adjuvante e juiz,

visto que, são os que podem conceder auxiliar ou negar o objeto de desejo aos

condutores da ação (protagonistas), e quando o faz tornam se os pais a função de

condutores da ação.

Os colegas de classes e as demais personagens apenas exercem a função

de adjuvantes na narrativa, exceto nos raros episódios que se assumem como

condutores da ação.

De acordo com Massaud Moisés (2004, p. 26) “as personagens (do conto)

tendem a ser estáticas ou planas: porque as surpreende no instante climático de sua

existência, o contista as imobiliza no tempo, no espaço e na personalidade”,

entretanto, “los niños” sofrem mutações em seu comportamento, vão melhorando, se

aplicando com mais afinco para alcançarem seu objeto de desejo no decorrer dos

fatos narrados.

2.3.1 Realismo Maravilhoso

36

Condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é o que representa a força temática: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma carência; (p. 49) (Brait, 1985) 37

Oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; força antagônica que tenta impedir a força temática de se deslocar; (p. 50) Idem 38

Objeto desejado: força de atração, fim visado, objeto de carência; elemento que representa o valor a ser atingido; (p. 50) Ibidem 39

Destinatário: personagem beneficiário da ação; aquele que obtém o objeto desejado e que não é necessariamente o condutor da ação; (p. 50) Ibidem 40

Adjuvante: personagem auxiliar; ajuda ou impulsiona uma das outras forças; (p. 50) Ibidem 41

Árbitro, juiz: personagem que intervém em uma ação conflitual a fim de resolvê-la. (p. 50) Ibidem

Page 29: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

29

García Márquez, aos poucos vai inserindo em sua narrativa fatores maravilhosos,

num primeiro momento quando os pais presenteiam as crianças com o bote que

tanto queriam, o pai informa: “O problema é que não há como subi-lo nem pelo

elevador nem pela escada, e na garagem na há mais espaço disponível” 42 (García

Márquez), e ainda assim, as crianças com a ajuda de seus amigos levam o bote até

o apartamento.

Parafraseando Lewis (2009, p. 80) os fatos extraordinários não se cobrem

hipoteticamente de probabilidades com a finalidade de agregar conhecimentos sobre

a vida real, tecendo uma nova realidade diante desse improvável. “É precisamente o

contrario. A probabilidade hipotética é apresentada no sentido de tornar os eventos

estranhos mais plenamente imagináveis”, assim este evento causa estranhamento, e

nos faz indagar se seria possível terem realmente levado o bote até o apartamento.

Segundo Todorov (2003, p. 150) “a fé43 absoluta, como a incredulidade total, nos

levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida”, em outras palavras é

possível perceber que se não houver o fator estranhamento, se o que é apresentado

for crível totalmente ou inacreditável isso desmontaria a caracterização do fantástico.

Arrigucci (1987, p. 144) classifica este dito estranhamento, como o embate

entre a inteligência lúcida e certos episódios desconcertantes, o artifício de

estranhamento causado por fatores inverossímeis, “se revelam zonas obscuras de

nosso ser”, perdendo assim o vínculo com a realidade convencional, inserindo-nos

no “mundo do louco, da criança, do sonho, do mito e da poesia”.

Na sequência da narrativa, nos deparamos com o insólito: “Os pequenos,

donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, romperam uma lâmpada

acesa da sala. Um jorro de luz dourada e fresca como a água começou a sair da

lâmpada quebrada.44” (García Márquez), diante desta apresentação do fato

fantástico, agora, nesta realidade ficcional, temos uma nova verdade estabelecida: é

possível navegar na luz.

De posse desta informação, e devido ao “espírito aventureiro” natural do ser

humano, após esta descoberta fantástica, navegar sobre a luz seria algo superficial

demais, então as crianças se veem obrigadas a fazer incursões mais profundas,

42

Tradução minha de: (... ) El problema es que no hay cómo subirlo ni por el ascensor ni por la escalera, y en el garaje no hay más espacio disponible.” (García Márquez) 43

O termo “fé”, no contexto, entenda-se como acreditar, não se relacionando com religião. 44

Tradução minha de: (...) Los niños, dueños y señores de la casa, cerraron puertas y ventanas, y rompieron la bombilla encendida de una lámpara de la sala. Un chorro de luz dorada y fresca como el agua empezó a salir de la bombilla rota. (García Márquez)

Page 30: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

30

acarretando na necessidade de equipamentos mais específicos, como os que

pedem aos pais, cito equipamento de caça submarina, mergulho.

O pedido final de Totó e Joel, no encerramento do conto é recebido com certa

euforia pelos pais, encarando esse pedido como uma forma de amadurecimento das

crianças, afinal, ao passo que em outros momentos pediam coisas que para eles era

inútil, desta vez foram bastante coerentes, apenas desejavam uma festa com todos

seus colegas de classe.

Para surpresa dos pais e todos os moradores da cidade, quando os pais

retornam ao apartamento, encontram os bombeiros arrombando o local e dentro do

apartamento encontram todas as crianças participantes da festa mortas afogadas na

luz que transbordava do apartamento.

2.3.2 Maravilhoso ou disfarce?

A diegése do conto de García Márquez oferece uma série de pistas sobre a

provável intenção desta criação, em se considerando os aspectos implícitos no texto.

Todorov (1981, p. 36) exalta que “o leitor (esta vez real e não implícito) tem todo o

direito de não ter em conta o sentido alegórico indicado pelo autor, e de ler o texto

descobrindo nele um sentido muito distinto”, não há texto ingênuo e sim leitura

ingênua. Existe uma carga política inerente à narrativa de cunho denunciativo que

García Márquez se utiliza para que o fantástico, realismo mágico camufle os

registros históricos.

Sobre o exposto, Chiampi (1983, p. 105) pondera que esta obsessão em

reportar os fatos históricos ainda carentes de registro verbal; e se encontra

amplamente difundidos no romance realista mágico; pode ser entendida como “o

modo dilemático e barroco de interpretar uma sociedade imersa em violentos

contrastes sociais e brutais anacronismos econômicos45”.

Novamente nos servindo da fala de Chiampi (1983, p. 63) quando explana

que “a fantasticidade é, fundamentalmente, um modo de produzir no leitor uma

inquietação física (medo e outras variantes) por meio da inquietação intelectual

(dúvida)”, García Márquez em La luz es como el água, utiliza esse recurso da

incerteza, comum a este gênero diegético, pelo qual será nosso ponto de partida

45

Tradução minha de: (...) “el modo dilemático y barroco de interpretar una sociedad inmersa en violentos constrastes sociales y brutales anacronismos económicos.” (Chiampi, 1983, p. 105)

Page 31: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

31

para uma pequena investigação para averiguar o que está oculto por baixo desse

realismo mágico.

Conforme Leal apud Chiampi (1983, p. 29) “o realismo mágico é, mais que

nada, uma atitude, ante a realidade... (232)46” e esta foi a forma que García Márquez

teria encontrado para demonstrar sua inconformidade com a realidade de seu país,

e ainda segundo Strathern (2009, p. 15) o autor ao evocar a historia atual da

“América Latina, com suas injustiças, horrores e derramamento de sangue” assume

um tom sombrio.

É manifestada, desta feita, a ideologia política de García Márquez, não

necessariamente partidária, mas sim com a intenção de evidenciar a urgência de

criar ou reforçar uma identidade social, tema este recorrente em diversas literaturas,

principalmente nas em formação.

O corpus em questão denota em suas entrelinhas, marcas fortes desse apelo

ideológico de García Márquez, no sentido de que é preciso se posicionar ante a

realidade, transparecendo indícios bélicos em seu traçado.

O conto proporciona uma informação conflitante, ora faz menção à Espanha

em “De acordo – disse o pai, o compraremos quando voltarmos a Cartagena47”

(García Márquez), ora a Colômbia, como alude em “na casa de Cartagena de Índias

havia um pátio (...)48” (García Márquez), afinal a qual Cartagena pertence a

narrativa?

Nesta linha de pensamento, identificamos um acontecimento importante no

ano de 1978, ano este em que García Márquez escreve La luz es como el água,

consta da publicação do Jornal El País datado de 19 de abril de 1978, em

atendimento a uma convocação feita pelo Partido Cantonal, cerca de 10 mil pessoas

se concentraram na tarde de segunda-feira para solicitar que Cartagena (Espanha)

se tornasse Província49, rememorando o ato de julho de 1873, quando os Federais

intransigentes tomaram o Ajuntamento dos Federais benévolos, se apossaram da

cidade e do porto e então proclamaram o grito cantalonista de viva Cartagena.

García Márquez utiliza a estrutura do realismo-mágico para provocar uma

reação em seu leitor a titulo de protesto, apresenta o insólito e deixa pairar

46

Tradução minha de: (...) El realismo mágico es, más que nada, una actitud ,ante la realidad.. [232]” (Chiampi, 1983, p. 29) 47

Tradução minha de: (...) De acuerdo -dijo el papá, lo compraremos cuando volvamos a Cartagena. (García Márquez) 48

Tradução minha de: (...) En la casa de Cartagena de Indias había un patio (...) (García Márquez) 49

Entenda-se como Unidade Federativa de alguns países, equivalente a Estado (divisão política)

Page 32: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

32

entendimentos inúmeros que se entendido por este viés, podemos interpretar como

a personificação da indignação do autor devido ao não respeito da identidade

Cartagenense, por isso a confusão proposital, e deixando intrínseca a ideia de

revolução. Propõe, neste contexto, um levante assim como o de Cartagena

(Espanha) focando o resgate da memória coletiva de Cartagena (Colômbia), para

exemplificar, elegemos algumas palavras / trechos-chave, para aclarar este excerto.

Segundo o próprio autor, “Doce cuentos Peregrinos” foi baseado em

periódicos, antes de serem contos, cinco foram notas de jornal, outros cinco, roteiro

de cinema e um, uma série de televisão.

Além da referência feita à manifestação pela provincialização de Cartagena

(Espanha) tornando latente o sentimento de auto-afirmação da identidade

Colombiana, no mesmo ano em que García Márquez escreveu este conto, podemos

identificar outras marcas claras deste sentimento na voz do autor, tal como os filmes

que os personagens pais vão assistir no cinema: “La batalha de Argel” (filme

baseado na guerra de independência da Argélia em relação à opressão colonial

francesa, década de 50) e “El último tango en Paris” (obra fílmica cujo ponto alto é o

pacto de silêncio feito entre os protagonistas, serve como símbolo do anseio de

liberdade e o medo da repressão), ambos com apelo revolucionário.

Ademais, outros trechos50 desta obra podem ser destacados do texto, na

sequencia em que se apresentam para iluminar a senda traçada nos interstícios da

escrita de García Márquez, tais como observado no quadro abaixo:

Excerto Análise subjetiva

“(…) y un refugio para dos

yates grandes.”

“(…) aquí en Madrid

vivían apretados (…)”

As palavras “refúgio” e “apertados”, transmitem a

sensação de prisão, perseguição, somente precisa de

refugio aquele que é perseguido.

“Los niños, dueños y

señores de la casa,

cerraron puertas y

ventanas, y rompieron la

bombilla encendida (…)”

Neste trecho, os protagonistas assumem a função de

poder dentro da narrativa, subvertem a ordem

estabelecida, como em estados de exceção.

50 Optamos por manter estes excertos no idioma original para preservar sua integridade em relação a traduções que por ventura viesse a distorcer sua significação, salientando que toda tradução é uma re-escritura do objeto traduzido, podendo incorrer em vicio na tradução.

Page 33: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

33

“(…) el nivel llegó a cuatro

palmos.”

Tradicionalmente é realizado o enterro dos mortos em

covas de sete palmos de profundidade, identificamos

aqui uma presença fúnebre: quatro palmos seria a

medida de uma cova rasa.

“(…) cuando participaba

en un seminario sobre la

poesía de los utensilios

domésticos.”

Esta fala do narrador nos remete a reuniões sindicais,

estudantis ou qualquer outra organização que pleiteie

uma renovação, traz consigo a ideia de revolução,

passeata, “panelaço”.

“-La luz es como el agua -

le contesté: (…)”

Oxímoro: vida é como a morte: luz e água de acordo

com diversas culturas humanas são símbolos de vida e

renascimento, simbolicamente a junção desses

elementos seria o prenúncio da morte das crianças.

“(…) aprendiendo el

manejo del sextante y la

brújula.”

“(…) Con todo: máscaras,

aletas, tanques y

escopetas de aire

comprimido.”

“Los instrumentos de la

banda de guerra, (…)”

Manejar o sextante e a bússola é facilmente associável

a manejo de equipamentos bélicos, treinamento para

alguma forma de combate.

Igualmente, a presença do bélico na diegése do conto,

se faz reforçada mais intensamente pela “escopeta de

ar comprimido” e “a banda de guerra”, dando o tom de

armamento pesado e pelotão de soldados.

“(…) y rescataron del

fondo de la luz las cosas

que durante años se

habían perdido en la

oscuridad.”

Fala do autor51 afirmando que deseja trazer à luz a

identidade nacional ocultada pelos resquícios da

colonização ainda tão presente em sua cultura.

“Los utensilios

domésticos, en la plenitud

de su poesía, volaban con

sus propias alas por el

cielo de la cocina.”

Mais uma vez, García Márquez, faz alusão ao bélico

na narrativa, os utensílios domésticos voando com

suas próprias asas se comparam às baterias

antiaéreas.

“(…), y el televisor de la A expressão “boiava de costas” pode aduzir a que se

51

Identificamos esta fala como sendo do autor, pois é a do narrador do conto, corroborado pelo entendimento de Massaud Moisés (1987) ao denotar que este tipo de construção poderia “ser um disfarce do autor” (p, 36)

Page 34: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

34

alcoba principal flotaba de

costado, (…)”

crie uma tela na qual a cena retratada seja de corpos

abandonados ou despachados nos rios, ato rotineiro

quando em regime de exceção.

“En Madrid de España,

una ciudad remota de

veranos ardientes y

vientos helados, sin mar

ni río, y cuyos aborígenes

de tierra firme nunca

fueron maestros en la

ciencia de navegar en la

luz.”

Neste ultimo trecho do conto, García Márquez faz a

amarração da tecitura do conto, fechando a trama com

uma crítica ao seu povo, ao qual conclama a uma

reação a constante opressão, legado dos

colonizadores, e falta de reação pela defesa de sua

unidade identitária, lançando mão da afirmação de que

os aborígenes de terra firme, os colombianos, nunca

foram mestre na ciência de navegar na luz, nunca

souberam como reivindicar, lutar, até mesmo pegar em

armas, para defender seus interesses e cultura. García

Márquez clamaria pela união popular, sabendo que a

grande massa poderia até mesmo destituir um

governo.

3.4.1 Dos conceitos físicos

O conto de García Márquez, como aludido no capítulo anterior, é conceituado

como “Realismo Maravilhoso”, o que abre precedente para uma interpretação muito

mais ampla sobre sua significação e conforme Lewis (2009, p. 102) “não há

nenhuma obra na qual, lacunas não possam ser preenchidas (...)”.

Ordenando e selecionando os elementos da narrativa de forma linear,

direcionando o foco actancial aos protagonistas, Totó e Joel, obteremos,

sucintamente, o seguinte resultado:

1 - Recebem a informação de que a luz é como a água;

2 - Pedem aos pais um bote e equipamentos de mergulho;

3 - Levam com a ajuda de seus colegas o bote pela escada até o

apartamento;

4 - Quebram uma lâmpada e dela jorra luz como se fosse água;

5 - Utilizam o bote e os demais acessórios para navegar na luz;

6 - Desbravam a profundidade da luz e resgatam objetos perdidos;

7 - Pedem uma festa com todos os colegas de sala;

Page 35: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

35

8 - Varias luzes são rompidas e inundam todo apartamento;

9 - A luz transborda pelas janelas do apartamento e ilumina toda cidade;

10 - Os bombeiros chegam e encontram os corpos das crianças afogadas na

luz.

3.4.2 A questão de ponto de vista

É lícito que o ser humano tenha uma resistência natural em negar ou aceitar

fatos novos, estranhos ao seu mundo de conhecimento, mas ao considerar de

maneira, por mais superficial que seja a física quântica, a noção de realidade pode

tomar outra proporção. Se considerarmos a realidade vista por um sujeito que possui

algum tipo de demência ou transtorno mental, mesmo que em meio a alucinações

diversas, ali, dentro de seu universo mental, existe uma realidade “real”, retomando

o conceito de Einstein, tudo está diretamente relacionado com ponto de vista do

observador.

Sá (2003, p. 49) denota que a consciência do individuo é decorrente de sua

forma de encarar a realidade, se a percepção de mundo tiver sofrido algum tipo de

interferência, tais como o uso de drogas, os sonhos, a esquizofrenia, a realidade

será enxergada de uma maneira desvirtuada, “para o fantástico a alteração no

estado de consciência, seja ela de que maneira for, provocaria um desvio na

concepção de mundo realista”.

A construção da narrativa utilizada por Márquez utiliza a inversão dos

acontecimentos por meio de uma reminiscência do narrador, fato que pode

direcionar a análise ao princípio quântico-relativista: estruturalmente cria uma ruptura

temporal por meio desse chiste na narrativa.

“Esta aventura fabulosa fue el resultado de una ligereza mía cuando participaba en un seminario sobre la poesía de los utensilios domésticos. Totó me preguntó cómo era que la luz se encendía con sólo apretar un botón, y yo no tuve el valor de pensarlo dos veces. -La luz es como el agua -le contesté: uno abre el grifo, y sale.” (García Márquez)

Assim, dado que o estopim dessa viagem poderia ter sido o fator psicológico,

a sugestão e no desfecho do conto, as crianças apresentam uma morte ao que tudo

indica física, García Marquez nos faz embarcar nesta viagem e interpretar que neste

momento a consciência no aparelho mental extrapolaria a barreira espaço-temporal

Page 36: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

36

e continuado a desbravar as profundezas da luz, assumindo a função de emissores

de luz ao invés daquela que desempenhavam anteriormente, hipoteticamente seus

corpos permaneceriam inertes, como se estivessem em animação suspensa, o

tempo para eles teria prosseguido diferentemente das demais personagens dado

que seu referencial de realidade adquiriu neste momento caráter único.

Abstraindo-nos ainda mais nesta questão, se referenciarmos a descrição do

experimento mental de Einstein apud Capra (2004) sobre os gêmeos viajantes e se

considerarmos o estado de excitação dos protagonistas, presumível em face dessa

nova realidade instituída, é passível de credito que o fato físico, a morte das

crianças, seria decorrente da alteração de seus relógios biológicos.

Garcia Márquez ao descrever o jato de luz que jorra da lâmpada quebrada

pelos jovens, a predica como dourada e fresca, relativiza a questão material e

transita entre a visão denotativa para a conotativa atribuindo a luz além do caráter

visível, dourada, algo perceptível por meio de sensação térmica, rompe o paradigma

aceito do fator incandescente costumeiro da luz, ainda que seja uma luz artificial

fluorescente esta jamais se manifestaria fria no sentido de refrescar como afirma na

obra.

3.4.2 Do quântico-relativista ao Caos

Em consoante aos entendimentos quânticos, tudo no universo tem uma

relação mútua, no primeiro caso, se aplicássemos conceitualmente a Teoria do Caos

ao interpretarmos o momento em que Joel e Totó são induzidos pela afirmação do

narrador de que “a luz é como a água”, essa sugestão desencadeia uma sequência

de processos similares ao “Efeito Borboleta”, a hipótese assentada no imaginário

das crianças, assim como o bater de asas referenciado em nosso embasamento,

influencia indiretamente a realidade ficcional que principia no conto, dado que a

probabilidade52 de repetição deste mesmo evento (sugestão vs manifestação física)

ocorrer é quase nula, e dá inicio aos acontecimentos do conto que cuminam com o

afogamento das crianças, ressaltando nosso entendimento de que a partir do

estabelecimento da primeira ocasião em que a luz assume as características da

52

Enfocamos que segundo Capra (2004, p. 53) “en la teoría cuántica los sistemas observados se describen en términos de probabilidades”.

Page 37: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

37

água cria-se uma relação direta de acontecimento atrelado ao fato gerador, causa e

efeito.

Em relação aos itens 2 (dois) e 7 (sete) se trata de uma estratégia do autor de

criar uma realidade ficcional verossimilhante, conforme aludimos em capítulo

anterior.

No item 3 (três) uma particularidade nos provoca curiosidade: o pai afirma que

não é possível levar o bote pelo elevador e nem pela escada, haja vista que não

haveria espaço suficiente para manejar o bote naquele local, e ainda assim “ los

niños” subiram com o bote pelas escadas com ajuda de seus colegas de sala, mas

como?

Analisando literária e não literalmente a Terceira Lei de Newton, seria

possível transcrever que um acontecimento, por menor relevância que tenha,

possivelmente influenciará o resto do universo, reforçado por nossa interpretação da

Teoria do caos, e voltando-a para o objeto em estudo, quando se lança ao cosmo

uma vontade, um desejo, um pensamento, entendendo aqui pensamento com um

ato físico-biológico, no qual a comunicação feita entre um neurônio e outro se

pronuncia por meio de impulsos elétricos que geram freqüência eletromagnética, que

por sua vez pode ser aferida por instrumentos utilizados hoje na medicina, tal como

o eletro encefalograma, ele ou essa energia projetada alcançaria dimensões aquém

do entendimento humano, e é lançado de volta a quem deu inicio a esse ciclo, ação

e reação, conversando claramente com o que preconiza a teoria quântica ao

interpretar energia como essência do universo, pois considera a massa constitutiva

de todas as coisas, uma manifestação energética, logo não podendo ser destruída

apenas alternando de forma (cf. Capra 2004, p. 83).

Nos itens 4 (quatro), 8 (oito) e 9 (nove), García Marquez realiza em sua

literatura o antes impensado, a luz com todos os seus atributos e peculiaridades

transmuta seu aspecto convencional para assumir as particularidades da água, mas

afinal a luz é como a água?

Não nos aprofundaremos sobre outra área do conhecimento cientifico, a

Química, pois não é esse nosso foco de trabalho, apenas rememoraremos a

definição hoje de domínio público que a composição da água, por sua formulação é

a junção de duas partículas materiais de hidrogênio e uma de oxigênio (H2O), possui

massa e pode se apresentar em três estados físicos – sólido, liquido e gasoso.

Page 38: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

38

A luz, por sua natureza, apresenta um caráter dualístico, retomando as

palavras de Dos Anjos “ora se comportando como partícula, ora como onda”, logo,

podendo ser considerado o entendimento de Isaac Newton de que a luz é

constituída por partículas materiais, ou mesmo o conceito de Huygens, que

considerava que a luz era uma onda.

Partindo dos apontamentos anteriores, é possível perceber uma relação entre

o caráter físico da água e o da luz: ambas podem se propagar como ondas, ambas

preenchem o espaço onde se encontram e ambas são compostas de partículas

materiais.

Já nos itens 5 (cinco) e 6 (seis) é inevitável o entendimento de haver neste

mergulho algo mais complexo: a luz, considerando a Teoria Relativista,

alegoricamente serviria como um “portal dimensional”, pelo qual seriam levados a

outra dimensão, paralela a esta, e em que os objetos perdidos a muito tempo e

encontrados por eles ali estavam presentes, logo, seria uma ruptura no espaço-

tempo, propiciado “[pel] a contração da distância e a dilatação do tempo são efeitos

relativistas reais” de acordo com os estudos de Einstein, segundo Villate (2005, p.

05)53.

E finalmente item 10: As crianças mergulhadas na luz, após terem navegado

pelo apartamento, morrem afogadas... Na luz?

Como expusemos luz e água cultivam certa semelhança, ambas ocupam

lugar no espaço e ambas possuem massa, posto que a física Quântica, mais

precisamente na teoria do Caos procura explicar a aleatoriedade dos movimentos

naturais, tal como o porquê da formação repentina de redemoinhos num rio que

corre lentamente, sem que haja uma causa aparente, e a probabilidade de esses

fatos se repetirem e ou descrever um padrão dado que são indeterminísticos.

Poderíamos supor que naquela data, naquele apartamento em Madrid,

reuniram-se fatores, ao acaso, talvez o número de lâmpadas rompidas ao mesmo

tempo, talvez o desejo de toda criançada de ver concretizado o relato dos dois

irmãos, talvez aquele fio dourado pintado no bote de remos, talvez a necessidade de

fuga das crianças daquela realidade e tantas outras suposições possíveis, no

entanto imprescindíveis para compor a cena em foco, teriam contribuído para

intensificar a densidade da luz, aumentando a concentração substancial da massa

53

Teorias da luz. Experiências, Jaime E. Villate, Departamento de Física - Faculdade de Engenharia - Universidade do Porto - Exposição na Biblioteca da FEUP - 21 de Abril a 13 de Junho de 2005

Page 39: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

39

nela contida, a ponto de ao ser inalada, essa luminosidade teria invadido os pulmões

das crianças, expulsando todo o ar, ocasionando o afogamento em luz.

4 CONSIDERAÇÕES

Em face de nossas colocações em todo o transcorrer deste trabalho e

apoiados em nosso embasamento teórico, teceremos algumas considerações a

nosso ver fundamentais para o perfeito entendimento de nossa propositura.

Preocupamo-nos do inicio ao fim desta análise em ampliar a visão sobre o

conto La luz es como el água e aclarar que numa obra literária há sempre varias

interpretações possíveis, bastando para tanto recolher os elementos necessários

para criar os conectivos de coerência que deram suporte para afirmar ou negar algo

sobre a obra em análise, devendo esta ser entendida como mais uma possibilidade

interpretativa.

Procuramos não nos estender sobre os temas abordados por uma questão de

legitimidade, pois um aprofundamento maior, por exemplo, nas temáticas voltadas a

Física, implicaria necessariamente a inserção de formulações matemáticas que não

nos seriam pertinentes, dado que conforme ponderamos no inicio do trabalho, não

tínhamos a intenção de descaracterizar a obra, nem violar os padrões da estética

Realista Maravilhosa.

Não tivemos a pretensão de afirmar ou negar a possibilidade de

concretização dos fatos maravilhosos engenhosamente tramados pelo autor do

conto, mas navegando pelos conceitos quânticos, caóticos e, sobretudo das teorias

relativistas de Einstein passamos a observar essa realidade literária bem mais

próxima à realidade não literária, mais palpável, ainda que não seja essa a função

deste estudo.

Constatamos como resultado de nossa análise que em La luz es como el

água são apresentados fatores marcantes de Realismo Maravilhoso,

indubitavelmente, os evento inexplicáveis, insólitos são aceitos com total

naturalidade por todos os participantes de narrativa, não causa o estranhamento

explicitado por Todorov (1981) que se assim o fosse, o inseriria no gênero fantástico.

Acreditamos que tenhamos cumprido com nossa propositura inicial, visto que

a intersecção dos conceitos físicos com a teoria literária nos foi de grande valia por

nos proporcionar um encontro muito singular com a literatura de García Márquez,

Page 40: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

40

afastando as margens restritivas da realidade convencional e fazendo fluir o rio do

imaginário, essencial para a ampliação da visão de mundo e do real, pautado à luz

do processo criativo.

Como resultado, vemos que esse ponto de intersecção, é um terreno muito

fecundo para alicerçar a tecitura de diversos estudos sobre essa e outras obras

literárias, dando uma maior liberdade na análise.

A mescla do realismo com o maravilhoso visto pelo viés dos conceitos físico-

quântico-relativistas nos propicia remar em direção ao campo do imaginário, das

probabilidades e principalmente das possibilidades que podem resultar em avanços

significativos na ciência em geral, basta relembrar que parte das comprovações

empíricas da física partiram de experimentos mentais, transitando inicialmente na

esfera das ideias, desta feita, não somente em razão da obra corpus deste trabalho,

vemos García Márquez como autor à frente de nosso tempo.

Page 41: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

41

REFERÊNCIAS

ANJOS, Ivan Gonçalves dos. Física. São Paulo: Ibep, ARRIGUCCI, David Jr. Enigma e comentário: ensaios sobre a literatura e experiência. Cia das Letras, SP, 1987

ATAIDE, Vicente. A Narrativa de Ficção. São Paulo: McGraw – Hill do Brasil, Ltda,

ed. 2, 1973. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, ed. 4, 2007. BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985.

Braz, Ana Lúcia. Efeito da luz na faixa espectral do visível em adultos sadios.

2002. 134 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Bioengenharia, Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento da Universidade do Vale do Paraíba, 2002 CAMARINI, Ana Luiza Silva. Murilo Rubião e o realismo mágico. 2008. 7 f. Artigo – XI Congresso Internacional ABRALIC: Tessitura, Interações, Convergências, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. CAPRA, Fritjof. El Tao de la Física. Chile: Editorial Sirio, S.A. C/,2004 CHIAMPI, Irlemar. El Realismo Maravilloso: Forma e Ideologia en la novela Hispano- Americano. Caracas: Monte Ávila Editores, C.A., 1983

CHNAIDERMAN, Mirian. O hiato convexo: Literatura e Psicanálise. São Paulo:

Brasiliense, ed. 1, 1989. COSTA, Marta Moraes. Teoria da Literatura II. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008. DANIEL, Eliane Aparecida de Lucas de. Crítica da voz discursiva; a interface dialógica da literatura de Monteiro Lobato. 2008. 102 f. Dissertação (Mestrado) –

Programa de Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2008. FREUD, Sigmund. A interpretação dos Sonhos. R.J., Ed. Imago, 1999

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. La luz es como el água. Disponível em:

http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/ esp/ggm/luzescom.htm. Acessado em 09 de nov. 2009. GLEICK, James. Caos, a criação de uma nova ciência. São Paulo: Campus, s/d.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Editora Ática, 2003.

Page 42: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

42

LEWIS, C. S.. Um experimento na crítica literária. Trad. João Luís Ceccantini. São

Paulo: Editora UNESP 124, 2009. LOPES, Tânia Mara Antonietti. O Realismo mágico em José Saramago. 2008. 102 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2008. MASSAUD MOISÉS. A Criação Literária: Prosa. São Paulo: Cultrix, ed. 4, 1988. _______________. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, ed. 12, 2004. NADEAU, Robert & KAFATOS, Menas. The No-Local Uniniverse – The News Physics and Matters of the Mind, Oxford University Press, New York, 1999, p. 79 PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984. El Pais, Espanha, 19 abr. 1978, disponível em: http://www.el pais.com/articulo/ espana/MURCIA/CARTAGENA_/MURCIA/MURCIA/mil/personas/piden/Cartagena/sea/provincia/elpepiesp/19780419elpepinac_24/Tes/ Acessado em 20 set 2009 às 15 hs e 56 min. SÁ, Márcio Cícero. Da Literaturas fantástica (teorias e contos). 2003. 141 f.

Dissertação (Mestrado) – Departamento de Teoria Literária Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. SILVA, Lidia Basso e. Teoria do Caos. Revista Espaço de Sophia, n. 08, p. 08, Nov

2007. STRATHERN, Paul. García Márquez em 90 minutos. Trad. Lygia Maria Jobim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 102, 2009. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Mosés. São

Paulo: 4 ed. Perspectiva 206, 2004. _________________. Introdução à literatura fantástica. Trad. Silvia Delpy. México D.F.: Premia S.A, 96 p., 1981 _________________. Poética da Prosa. Trad. Maria de Santa Cruz. São Paulo:

Edições 70, 1979.

Page 43: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

43

ANEXO - La luz es como el agua54.

En Navidad los niños volvieron a pedir un bote de remos.

-De acuerdo -dijo el papá, lo compraremos cuando volvamos a Cartagena.

Totó, de nueve años, y Joel, de siete, estaban más decididos de lo que sus padres

creían.

-No -dijeron a coro-. Nos hace falta ahora y aquí.

-Para empezar -dijo la madre-, aquí no hay más aguas navegables que la que sale

de la ducha.

Tanto ella como el esposo tenían razón. En la casa de Cartagena de Indias había un

patio con un muelle sobre la bahía, y un refugio para dos yates grandes. En cambio

aquí en Madrid vivían apretados en el piso quinto del número 47 del Paseo de la

Castellana. Pero al final ni él ni ella pudieron negarse, porque les habían prometido

un bote de remos con su sextante y su brújula si se ganaban el laurel del tercer año

de primaria, y se lo habían ganado. Así que el papá compró todo sin decirle nada a

su esposa, que era la más reacia a pagar deudas de juego. Era un precioso bote de

aluminio con un hilo dorado en la línea de flotación.

-El bote está en el garaje -reveló el papá en el almuerzo-. El problema es que no hay

cómo subirlo ni por el ascensor ni por la escalera, y en el garaje no hay más espacio

disponible.

Sin embargo, la tarde del sábado siguiente los niños invitaron a sus condiscípulos

para subir el bote por las escaleras, y lograron llevarlo hasta el cuarto de servicio.

-Felicitaciones -les dijo el papá ¿ahora qué?

-Ahora nada -dijeron los niños-. Lo único que queríamos era tener el bote en el

cuarto, y ya está.

La noche del miércoles, como todos los miércoles, los padres se fueron al cine. Los

niños, dueños y señores de la casa, cerraron puertas y ventanas, y rompieron la

bombilla encendida de una lámpara de la sala. Un chorro de luz dorada y fresca

como el agua empezó a salir de la bombilla rota, y lo dejaron correr hasta que el

nivel llego a cuatro palmos. Entonces cortaron la corriente, sacaron el bote, y

navegaron a placer por entre las islas de la casa.

Esta aventura fabulosa fue el resultado de una ligereza mía cuando participaba en

54

O conto La luz es como el agua, está disponivel em: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/ esp/ggm/luzescom.htm acessado em 09 de nov 2009 às 15 hs e 21 min.

Page 44: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

44

un seminario sobre la poesía de los utensilios domésticos. Totó me preguntó cómo

era que la luz se encendía con sólo apretar un botón, y yo no tuve el valor de

pensarlo dos veces.

-La luz es como el agua -le contesté: uno abre el grifo, y sale.

De modo que siguieron navegando los miércoles en la noche, aprendiendo el

manejo del sextante y la brújula, hasta que los padres regresaban del cine y los

encontraban dormidos como ángeles de tierra firme. Meses después, ansiosos de ir

más lejos, pidieron un equipo de pesca submarina. Con todo: máscaras, aletas,

tanques y escopetas de aire comprimido.

-Está mal que tengan en el cuarto de servicio un bote de remos que no les sirve para

nada -dijo el padre-. Pero está peor que quieran tener además equipos de buceo.

-¿Y si nos ganamos la gardenia de oro del primer semestre? -dijo Joel.

-No -dijo la madre, asustada-. Ya no más.

El padre le reprochó su intransigencia.

-Es que estos niños no se ganan ni un clavo por cumplir con su deber -dijo ella-,

pero por un capricho son capaces de ganarse hasta la silla del maestro.

Los padres no dijeron al fin ni que sí ni que no. Pero Totó y Joel, que habían sido los

últimos en los dos años anteriores, se ganaron en julio las dos gardenias de oro y el

reconocimiento público del rector. Esa misma tarde, sin que hubieran vuelto a

pedirlos, encontraron en el dormitorio los equipos de buzos en su empaque original.

De modo que el miércoles siguiente, mientras los padres veían El último tango en

París, llenaron el apartamento hasta la altura de dos brazas, bucearon como

tiburones mansos por debajo de los muebles y las camas, y rescataron del fondo de

la luz las cosas que durante años se habían perdido en la oscuridad.

En la premiación final los hermanos fueron aclamados como ejemplo para la

escuela, y les dieron diplomas de excelencia. Esta vez no tuvieron que pedir nada,

porque los padres les preguntaron qué querían. Ellos fueron tan razonables, que

sólo quisieron una fiesta en casa para agasajar a los compañeros de curso.

El papá, a solas con su mujer, estaba radiante.

-Es una prueba de madurez -dijo.

-Dios te oiga -dijo la madre.

El miércoles siguiente, mientras los padres veían La Batalla de Argel , la gente que

pasó por la Castellana vio una cascada de luz que caía de un viejo edificio

Page 45: La luz es como el água, uma questão de Física Quântica ou Realismo Maravilhoso

45

escondido entre los árboles. Salía por los balcones, se derramaba a raudales por la

fachada, y se encauzó por la gran avenida en un torrente dorado que iluminó la

ciudad hasta el Guadarrama.

Llamados de urgencia, los bomberos forzaron la puerta del quinto piso, y

encontraron la casa rebosada de luz hasta el techo. El sofá y los sillones forrados en

piel de leopardo flotaban en la sala a distintos niveles, entre las botellas del bar y el

piano de cola y su mantón de Manila que aleteaba a media agua como una

mantarraya de oro. Los utensilios domésticos, en la plenitud de su poesía, volaban

con sus propias alas por el cielo de la cocina. Los instrumentos de la banda de

guerra, que los niños usaban para bailar, flotaban al garete entre los peces de

colores liberados de la pecera de mamá, que eran los únicos que flotaban vivos y

felices en la vasta ciénaga iluminada. En el cuarto de baño flotaban los cepillos de

dientes de todos, los preservativos de papá, los pomos de cremas y la dentadura de

repuesto de mamá, y el televisor de la alcoba principal flotaba de costado, todavía

encendido en el último episodio de la película de media noche prohibida para niños.

Al final del corredor, flotando entre dos aguas, Totó estaba sentado en la popa del

bote, aferrado a los remos y con la máscara puesta, buscando el faro del puerto

hasta donde le alcanzó el aire de los tanques, y Joel flotaba en la proa buscando

todavía la altura de la estrella polar con el sextante, y flotaban por toda la casa sus

treinta y siete compañeros de clase, eternizados en el instante de hacer pipí en la

maceta de geranios, de cantar el himno de la escuela con la letra cambiada por

versos de burla contra el rector, de beberse a escondidas un vaso de brandy de la

botella de papá. Pues habían abierto tantas luces al mismo tiempo que la casa se

había rebosado, y todo el cuarto año elemental de la escuela de San Julián el

Hospitalario se había ahogado en el piso quinto del número 47 del Paseo de la

Castellana. En Madrid de España, una ciudad remota de veranos ardientes y vientos

helados, sin mar ni río, y cuyos aborígenes de tierra firme nunca fueron maestros en

la ciencia de navegar en la luz.