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191 LAMEIROS E PRADOS DE LIMA Luis Santos Pereira (1) e Vicente Seixas E Sousa (2) (1) Centro de Estudos de Engenharia Rural, Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa, Tapada da Ajuda, 1349-017, Lisboa. [email protected] (2) Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. Resumo Nas regiões montanhosas do Norte de Portugal, onde a precipitação é muito abundante e os vales são constituídos por solos de aluvião, geralmente argilosos ou limosos, com baixa drenagem vertical, desde há séculos o seu aproveitamento é feito por forragens perenes para corte. São designados lameiros porque se encharcados e nus seriam abundantes em lama. Se a abundância do escoamento superficial produz condições adversas de humidade no Inverno, essa humidade cria condições propícias à produção no período de Primavera- Verão. Mais importante, o facto de o solo se encontrar sempre revestido, permite adequado controlo da erosão, tanto mais que tradicionalmente são construídos pequenos cômoros transversais que levam a água de escoamento a espalhar-se sobre toda a superfície, evitando-se escoamentos concentrados e favorecendo-se a infiltração. Deste modo, os hidrogramas de cheia têm pontas mais baixas e o tempo de concentração é maior o que se traduz por diminuição das pontas de cheia a jusante. Nas mesmas regiões, as águas de escoamento concentradas em linhas de água são tradicionalmente desviadas para pequenos canais de encosta, regueiras, aproximadamente de nível, de onde escoam sobre pastos permanentes de Inverno, sendo recolhidos pela regueira situada a nível inferior até que são devolvidos ao curso de água. De Inverno, este processo permite controlar os efeitos do gelo sobre o pasto dado que a água corrente tem sempre uma temperatura superior a zero graus. Porque a água escorre em lâmina fina sobre o pasto, limando, como se diz localmente, a estes prados é dado o nome de prados de lima. Os prados de lima ou lameiros constituem zonas húmidas cultivadas que se traduzem em paisagens de grande valor visual e ecológico. Porém, a sua conservação encontra dificuldades enormes porque requere trabalho de conservação ao longo de todo o ano, o rendimento das pastagens é relativamente baixo e, sobretudo, as zonas serranas conhecem um despovoamento muito forte com consequente envelhecimento das populações. Torna-se urgente reconhecer os benefícios e os prejuízos que resultariam para a sociedade da sua manutenção ou do seu abandono de forma a provocar uma análise benefícios-custos que permita à sociedade uma tomada de decisão. Estas questões são analisadas na perspectiva de construir uma metodologia de análise que permita tal avaliação. Palavras-chave: pastagens de montanha, rega de escorrimento, impactos hidrológicos, controlo da erosão, valor ambiental e paisagístico Summary In the mountainous areas of North of Portugal, where rainfall is abundant and valleys have alluvial soils, generally loamy-clay and silt soils, with low vertical drainage, these humid sloping lands are used for permanent pasture, or meadows. The land is quite wet in the autumn and winter due to high rainfall and low evapotranspiration, which may create less

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LAMEIROS E PRADOS DE LIMA Luis Santos Pereira (1) e Vicente Seixas E Sousa (2) (1) Centro de Estudos de Engenharia Rural, Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa, Tapada da Ajuda, 1349-017, Lisboa. [email protected] (2) Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. Resumo Nas regiões montanhosas do Norte de Portugal, onde a precipitação é muito abundante e os vales são constituídos por solos de aluvião, geralmente argilosos ou limosos, com baixa drenagem vertical, desde há séculos o seu aproveitamento é feito por forragens perenes para corte. São designados lameiros porque se encharcados e nus seriam abundantes em lama. Se a abundância do escoamento superficial produz condições adversas de humidade no Inverno, essa humidade cria condições propícias à produção no período de Primavera-Verão. Mais importante, o facto de o solo se encontrar sempre revestido, permite adequado controlo da erosão, tanto mais que tradicionalmente são construídos pequenos cômoros transversais que levam a água de escoamento a espalhar-se sobre toda a superfície, evitando-se escoamentos concentrados e favorecendo-se a infiltração. Deste modo, os hidrogramas de cheia têm pontas mais baixas e o tempo de concentração é maior o que se traduz por diminuição das pontas de cheia a jusante. Nas mesmas regiões, as águas de escoamento concentradas em linhas de água são tradicionalmente desviadas para pequenos canais de encosta, regueiras, aproximadamente de nível, de onde escoam sobre pastos permanentes de Inverno, sendo recolhidos pela regueira situada a nível inferior até que são devolvidos ao curso de água. De Inverno, este processo permite controlar os efeitos do gelo sobre o pasto dado que a água corrente tem sempre uma temperatura superior a zero graus. Porque a água escorre em lâmina fina sobre o pasto, limando, como se diz localmente, a estes prados é dado o nome de prados de lima. Os prados de lima ou lameiros constituem zonas húmidas cultivadas que se traduzem em paisagens de grande valor visual e ecológico. Porém, a sua conservação encontra dificuldades enormes porque requere trabalho de conservação ao longo de todo o ano, o rendimento das pastagens é relativamente baixo e, sobretudo, as zonas serranas conhecem um despovoamento muito forte com consequente envelhecimento das populações. Torna-se urgente reconhecer os benefícios e os prejuízos que resultariam para a sociedade da sua manutenção ou do seu abandono de forma a provocar uma análise benefícios-custos que permita à sociedade uma tomada de decisão. Estas questões são analisadas na perspectiva de construir uma metodologia de análise que permita tal avaliação. Palavras-chave: pastagens de montanha, rega de escorrimento, impactos hidrológicos, controlo da erosão, valor ambiental e paisagístico Summary In the mountainous areas of North of Portugal, where rainfall is abundant and valleys have alluvial soils, generally loamy-clay and silt soils, with low vertical drainage, these humid sloping lands are used for permanent pasture, or meadows. The land is quite wet in the autumn and winter due to high rainfall and low evapotranspiration, which may create less

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than optimal conditions for production, but prevalent moist conditions favour pasture yields during the spring-summer period. The soil is therefore fully covered all the year, which allows adequate control of erosion. The irrigation water is applied both in winter for temperature control and in summer for soil moisture control. It is diverted from watercourses to small contour ditches and then is spread as a fine sheet all over the pasture land until the next ditch and so successively along the slopes; the excess non-infiltrated water returns then to the watercourses. Therefore, the runoff water is not concentrated, infiltration is favoured, and flood hydrographs have relatively low peaks and large time of concentration, which decrease the flood peaks in the downstream areas. In winter, this procedure avoids the impacts of low temperatures on the pasture because the flowing water has always a temperature above zero degrees. These meadows are therefore humid cultivated zones that give place to beautiful landscapes with high visual, ecologic and environmental value. However, their conservation is becoming more and more difficult because the water diversion and spreading structures require maintenance labour along the year, the pasture productivity is low, and the mountainous areas are loosing population, which is rapidly aging. It is urgent to recognize the benefices and costs resulting from maintaining them or from their abandoning in such a way tat the society may decide about preserving or abandoning those mountain meadows. Keywords: water scarcity, droughts, Alentejo, standardized precipitation index SPI, Palmer index. Introdução Os lameiros são áreas de prados e pastagens regadas características das zonas de montanha do norte e centro de Portugal (Figura 1). Desenvolveram-se integrados num sistema produtivo que visava o mais possível a auto-suficiência e era a base da alimentação do efectivo pecuário, sobretudo bovino. Os lameiros são o exemplo de um sistema produtivo que reflecte um profundo conhecimento e integração de vários factores de produção e de produções diversas com vista a atingir determinado objectivo. A intensidade adequada do pastoreio, suficientemente severo para impedir o desenvolvimento das espécies menos queridas pelos animais, mas não excessivo para não degradar a pastagem, a utilização criteriosa da água, a drenagem para impedir o desenvolvimento de plantas como juncos, a rega da pastagem com águas que atravessam a aldeia e que a fertilizam com resíduos orgânicos recolhidos nos caminhos, tudo com vista a suportar o efectivo pecuário mais numeroso possível, e organizado segundo um conhecimento desenvolvido e transmitido ao longo de séculos que constitui um exemplo da utilização sustentada dos recursos.

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Figura 1. Prados de lima na Serra de Montemuro (em cima) e na Serra de Montezinho (em baixo)

O efectivo pecuário estabelece a ligação entre os lameiros e prados, principal fonte da sua alimentação, com os incultos donde provêm os matos para as camas dos animais, e com as hortas e culturas de batata e milho onde é a principal força de trabalho e origem da fertilização através do estrume que produz. Este complexo sistema produtivo, tem um grande valor ambiental que resulta da sua contribuição para a manutenção da biodiversidade vegetal e animal, na protecção do solo e dos recursos hídricos, no grande valor paisagístico, na preservação das produções zootécnicas autóctones e até na redução do risco de propagação de incêndios pela descontinuidade que introduz nas manchas florestais. Os lameiros e prados de lima, e os sistemas produtivos em que se enquadram estão em risco, ameaçados pela progressiva desertificação do mundo rural, que conta hoje com uma população envelhecida. A actividade agrícola no minifúndio da agricultura de montanha não produz rendimento que possa contrariar a saída dos mais jovens em busca de melhores condições de vida. O envelhecimento e diminuição da população tornam difícil, talvez impossível, a manutenção e exploração destes sistemas e poderão conduzir ao seu progressivo desaparecimento.

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Organização da produção de erva, suporte alimentar do efectivo pecuário. Os lameiros e prados de lima são pastagens permanentes localizadas nas regiões montanhosas do norte e centro do país. São pastagens semi-naturais, constituídas sobretudo por plantas espontâneas, na maior parte gramíneas, e constituem a base da alimentação do efectivo pecuário existente, sobretudo bovino. Localizam-se em geral acima dos 700 m de altitude, onde o clima, embora ameno durante o Verão, é chuvoso e frio durante o Inverno. Verifica-se, como em todo o pais, uma concentração da precipitação na estação fria, sendo que também, durante o Inverno, a temperatura é frequentemente negativa e é frequente a queda de neve. Nestas condições, e ao contrario do que acontece por exemplo no sul do país, onde a secura estival limita o potencial produtivo forrageiro e por essa via o efectivo pecuário, aqui é o frio durante o Inverno que pára o crescimento da forragem sendo necessário recorrer a alimento conservado, normalmente feno, para a alimentação dos animais. No sentido de limitar os efeitos do frio sobre a pastagem e permitir que as temperaturas se situem tanto quanto possível com temperaturas positivas, os lameiros são regados durante todo o Inverno. Alguns lameiros nunca dispõem de água de rega e são chamados de sequeiro ou, nalgumas regiões, de “secadal” e localizam-se em geral nas zonas aplanadas a maior altitude. Têm um potencial produtivo reduzido, os solos são menos férteis e durante o Inverno não produzem quando, devido às temperaturas muito baixas, estejam frequentemente cobertos pela neve. Produzem sobretudo durante a Primavera e, nos anos menos secos, mesmo durante parte do Verão. Na Figura 2 apresenta-se a caracterização climática termo-pluviométrica definindo vários andares de ocorrência de lameiros e, para alguns casos, o respectivo balanço hídrico (Teles, 1970). Pode observar-se que a rega de verão é necessária mesmo em clima super-húmido (casos a e b), onde ocorrem os lameiros de secadal, sendo absolutamente necessária no caso de clima sub-húmido, que corresponde ao limite inferior da ocorrência de lameiros, em que os lameiros de secadal têm produtividade marginal.

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Figura 2. Caracterização climática das áreas de lameiros.

À esquerda, andares bioclimáticos definidos pelo quociente pluviotérmico de Emberger; à direita, balanço hídrico para dois locais a) e b) situados no andar super-húmido, um local c) em andar húmido e outro d) em andar sub-húmido. Fonte: Teles, 1970 Alguns lameiros são regados apenas durante parte do ano, enquanto a água é abundante ou não é necessária para as culturas de milho e de batata. Nestes lameiros a rega pratica-se mesmo durante o Inverno, a rega de lima, que contribui para a subida da temperatura no solo a na interface com a atmosfera permitindo crescimento da vegetação. Localizam-se nas zonas de meia-encosta ou mesmo no fundo do vale (Figura 1). Finalmente há lameiros regados durante todo a ano. Localizam-se nos solos mais férteis dos vales de altitude e, algumas vezes, beneficiam da rega com águas enriquecidas com matéria orgânica por terem atravessado os caminhos da aldeia ou mesmo cortes de gado. Quanto à forma como é utilizada a forragem (Pires et al., 1994; Moreira, 2000; Moreira et al., 2001), os lameiros são chamados “Lameiros de Pasto”, quando a sua produção é utilizada exclusivamente por pastoreio, “Lameiros de Erva” que são aproveitados exclusivamente por corte sendo a erva consumida de imediato pelos animais e “Lameiros de Feno” que são utilizados por pastoreio até determinada data e depois reservados para que a erva cresça e possa ser cortada para feno no início do Verão, feno que será reservado para consumo durante o Inverno seguinte.

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Os “Lameiros de Pasto” correspondem às áreas de pastagem que não é regada. Localizados na zona planáltica, são os menos produtivos, mais dependentes da precipitação primaveril e estival, e são o suporte do efectivo pecuário durante a primavera e o início do Verão enquanto os “Lameiros de Feno” estão protegidos para a produção de feno (Figura 3). Figura 3. Lameiros de feno, regados, no planalto de Bragança, à esquerda, e lameiros de pasto, de secadal, no planalto de Miranda

Os “Lameiros de Feno”, são em geral regados durante parte do ano, ou durante todo o ano se houver disponibilidade de água. São mais produtivos, constituídos por espécies mais nutritivas, e aproveitados num regime misto. Em geral são pastados, excepto durante a Primavera período durante o qual se deixa a erva crescer para ser cortada para feno no início do Verão. Os “Lameiros de Corte”, são os mais produtivos. São sempre regados, melhor fertilizados e utilizados exclusivamente por corte, durante o Verão. Localizam-se nas imediações da aldeia, por vezes no seu interior e são a origem do suplemento alimentar de “erva verde” para os animais, pelo que nalgumas zonas são chamados “Horta do Gado”. Dada a importância da pecuária nestes sistemas produtivos, toda a actividade se organiza à volta do efectivo pecuário. Assim está organizada a produção e utilização da erva, de forma a suportar o maior efectivo animal possível. O equilíbrio entre a capacidade produtiva e a necessidade do efectivo pecuário é fundamental num sistema em que a importação de alimentos para os animais não existia. Neste condições ecológicas, há uma grande variação sazonal da capacidade produtiva, sendo o Inverno, sem dúvida, o período limitante, que se atenua reservando parte da produção primaveril em excesso, sob a forma de feno, e incrementando a produção durante o Inverno através da rega de lima. Uma análise cuidada das condições produtivas dos lameiros (Santos e Aguiar, 1995) mostra que a sua produtividade depende essencialmente da abundância de água, da aplicação de azoto, antigamente através de estrumações mas

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hoje por adubos, e da gestão dos cortes, seja pelo gado, seja para feno, sendo que a gestão colectiva das áreas de lameiro de uma aldeia favorece a produção relativamente à gestão individual de cada parcela pelo seu proprietário. A rega de lima A rega de lima, prática tradicional nos prados de montanha, não tem como objectivo o humedecimento do solo, mas sim o de favorecer o balanço energético da pastagem com vista a permitir algum crescimento mesmo durante o Inverno ou manter a vegetação num estado menos desidratado que permita um arranque mais rápido e vigoroso do crescimento no final do Inverno. Através de um engenhoso conjunto de regadeiras de ordem hierárquica sucessivamente menor, o caudal disponível é dividido de forma a que toda a parcela a regar fica coberta por uma lâmina de água que é recolhida por outra regadeira a jusante e finalmente, a parte que não se infiltra, devolvida ao curso de água depois de “Limar” toda a parcela (Figura 4). Figura 4. Rega de lima na serra de Montejunto notando-se a regadeira superior, aproximadamente de nível, e as regadeiras sucessivas até à linha de água.

Na rega de lima utiliza-se de água dos cursos de água de montanha, desviada para as regadeiras através de pequenos açudes, por isso mantendo-se sempre corrente, o que permite que a sua temperatura, mesmo baixa, evite os efeitos de gelo nos pardos limados, como se indica esquematicamente na Figura 5, onde se comparam as temperaturas da água do rio e, depois de desviada, a várias distâncias sobre o prado.

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Figura 5. Temperaturas da água na rega de lima, do ar e da relva num dia em que ocorreu geada.

Fonte: adaptado de Gonçalves, 1985 Há preferência pela água proveniente de nascentes, que está a uma temperatura muito superior à que corre nos cursos de água, mas esta nem sempre é disponível. Gonçalves (1985) em observações efectuadas na região de Bragança, indica valores de temperatura da água de lima proveniente de nascente de aproximadamente 11ºC, a temperatura da água na rega sobre o prado >2,5ºC, enquanto a temperatura mínima do ar era <-5ºC e a temperatura mínima na relva era <-7ºC, valores que são muito sugestivos quanto ao efeito benéfico da rega, sobretudo quando efectuada com água de nascente. Esta prática da rega de lima permite pois evitar os efeitos do frio e manter os prados em condições produtivas durante o Inverno. A rega de lima é mais eficaz quando se pratica durante o período de maior arrefecimento e se prolonga até que desapareça o risco de geada. Se não houver água disponível suficiente que permita regar por períodos longos, é preferível não efectuar a rega, sobretudo na véspera de noites muito frias e se a água não for de nascente. Com efeito, a água retida em grande quantidade nas camadas superiores do solo pode congelar e o aumento de volume e a formação de cristais de gelo podem provocar o levantamento da camada de vegetação, levando exposição da parte superior do sistema radicular, fenómeno que localmente é designado por “descalçamento”. Valor ambiental e paisagístico As pastagens de montanha e a rega de lima integram-se num sistema produtivo das regiões de montanha, caracterizado pela necessidade de auto-suficiência, e onde o efectivo pecuário, alimentado pela pastagem, constituía um pilar fundamental deste sistema sendo a principal fonte de rendimento “em dinheiro”, para além da força de trabalho e da produção de estrume que eram essenciais no passado. Destacamos no entanto outros aspectos, que se evidenciam cada vez mais, talvez devido aos impactes negativos da agricultura intensiva, da normalização da produção e das dúvidas recorrentes sobre a segurança alimentar. Desde logo, o próprio efectivo pecuário que é ainda maioritariamente composto pelas raças autóctones, certamente menos produtivas que outras raças melhoradas, mas melhor adaptadas às condições severas do meio. Tem surgido um pouco por toda a parte agrupamentos de produtores destas raças como a

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Maronesa, a Barrosã, a Mirandesa ou a Arouquesa, que valorizam a produção, sobretudo a carne, e que procuram mercado no consumidor urbano, por vezes nostálgico da sua origem rural, e em busca de produtos que simbolicamente incorporam essa ruralidade e sejam alegadamente mais seguros do ponto de vista alimentar o que constitui para a defesa dos lameiros por via da defesa das raças bovinas autóctones (vide, por exemplo, IDRHa, 2005). Os lameiros e prados são constituídos por espécies espontâneas pelo que contribuem para a manutenção da biodiversidade, vegetal e animal. Embora haja estudos recentes, merece destaque o trabalho de Teles (1970), que constitui um marco decisivo no reconhecimento da biodiversidade dos lameiros e da diversidade que os mesmos apresentam de acordo com o clima da região onde ocorrem (Figura 6) e, naturalmente, com a gestão praticada pelos agricultores. Figura 6. Principais agrupamentos florísticos em lameiros e composição florística de um lameiro em Bragança

Fonte: Teles, 1970.

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As pastagens e prados de montanha, contribuem para uma grande valorização da paisagem através da descontinuidade que introduzem na cobertura arbórea ou arbustiva do terreno, resultando um mosaico que, sobretudo em certas épocas do ano adquire enorme valor estético. Para alem disso, essa descontinuidade dificulta a propagação dos grandes incêndios florestais. O reconhecimento do valor paisagístico dos lameiros é relativamente recente (Moura, 2005) mas já desde há anos que os lameiros são incluidos em roteiros de paisagem rural (Farinha, 2000;. Filipe, s/data). Constituem motivo para valorização dos territórios onde se integram e aparecem em vários “sites” regionais como atractivo histórico-turístico (e.g. CMM, 2005; Nordeste, 2005). A cobertura permanente do solo, reduz a risco de erosão, promove a infiltração da água diminuindo o escorrimento e aumentando os mananciais subterrâneos. Por outro lado, na sequência de chuvadas, a água de escoamento superficial é sucessivamente interceptada pelas regadeiras e a água que se escoa nas linhas de água é também sucessivamente derivada para aquelas resultando um aumento do tempo de concentração e maior oportunidade para a infiltração, originando igualmente a ocorrência de escoamento sub-superficial rápido já que a cobertura do solo por pastagem favorece grandemente os processos de infiltração e exfiltração (Figura 7). Resulta aumento do tempo de concentração e diminuição dos caudais de ponta embora ocorra pequena alteração dos volumes escoados como resposta à chuvada (Figura 8). Figura 7. Esquema da rega de lima e seus impactos no retardamento do escoamento superficial mostrando que a água de escoamento superficial é sucessivamente interceptada pelas regadeiras e que a água que se escoa nas linhas de água é também sucessivamente derivada para aquelas.

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Figura 8. Interpretação esquemática dos impactos hidrológicos da rega de lima

Fonte: adaptado de Dunne e Leopold, 1978 Perspectivas futuras O sistema produtivo em que se integram as pastagens de montanha e os prados de lima visava sobretudo a auto-suficiência das comunidades rurais. Havia pouco contacto e trocas comerciais com o exterior. Havia muito pouco dinheiro circulante. A pequena receita gerada, sobretudo pela actividade pecuária, era reservada para as compras indispensáveis, como utensílios para actividade agrícola e para a habitação, a roupa que não era fabricada na aldeia, alguns alimentos como arroz, massas, açúcar, etc., e para constituir uma pequena reserva para acudir numa necessidade urgente como uma doença. Esta realidade herdada da idade média, começou a alterar-se ligeiramente no início do século XX com a emigração para o Brasil, com a generalização do ensino primário gratuito e depois obrigatório, com a melhoria progressiva das comunicações. O isolamento começa a quebrar-se, durante as décadas de 50 a 70 começa a generalizar-se a distribuição de energia eléctrica, e com ela os frigoríficos e televisores. Aumentam as solicitações para o consumo, que a actividade agrícola dificilmente suporta. Nesta altura intensifica-se o fluxo migratório, desta vez para a Europa, sobretudo para a França, a Suíça e a Alemanha. Saíram primeiro os Homens mas depois também em muitos casos as Mulheres. Muitas aldeias viram a sua população reduzida drasticamente. A mão-de-obra disponível reduziu-se e os que ficaram viram-se confrontados com a “riqueza” dos que saíram, que em poucos anos amealhavam mais do que gerações a trabalhar duramente na agricultura local, facto que a desvalorizava definitivamente e alimenta ainda mais o fluxo migratório. Actualmente a população das aldeias de montanha está muito envelhecida. Os que não saíram para o Estrangeiro, procuraram algum emprego nas vilas e cidades vizinhas. Nesta conjuntura, a esperança para a manutenção do sistema agro-ecológico em que se inserem as pastagens de montanha e os prados de lima, reside na valorização dos produtos regionais associada à actividade turística que gere as receitas necessárias para que a esta

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actividade possa competir com actividades alternativas nas zonas urbanas e ofereça aos que a ela se dedicam acesso aos padrões de vida actuais. No entanto, é necessário avaliar cuidadosamente os impactos destes sistemas bem como avaliar as consequências sociais, ambientais e paisagísticas que resultariam do seu abandono. È necessário que o reconhecimento da multifuncionalidade destes sistemas leve a instituir processos de conservação e a reconhecer procedimentos de financiamento que conduzam à manutenção dos lameiros e prados de lima e impeçam a morte das aldeias que, ao longo de séculos, os criaram e valorizaram deixando-nos uma herança que seria estultícia desprezar. Bibliografia CMM (2005). Ecomuseu do Barroso. Câmara Municipal de Montalegre, (http://www.cm-montalegre.espigueiro.pt, aces. 03.05) DUNNE, T. e L.B. LEOPOLD (1978). Water in Environmental Planning. WH Freeman and Company, S. Francisco. FARINHA, J.C. (coord.) (2000). Percursos. Paisagens e Habitats de Portugal. Assírio e Alvim, Lisboa. FILIPE, A.G. (coord.), s/data. Parques Naturais de Portugal. Instituto da Conservação da Natureza e Público Comunicação Social, Lisboa. GONÇALVES, D.A., (1985). A Rega de Lima no Interior de Trás-os-Montes. Alguns Aspectos da sua Energética. Instituto Universitário de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. IDRHa (2005). http://www.idrha.min-agricultura.pt/produtos_tradicionais/bovinos/ carne _cruzado.htm (aces. 03.05) MOREIRA, N.T. (2000). Em Defesa dos Lameiros de Trás-os-Montes. (http://www.agroportal.pt/a/2000/nmoreira.htm, aces. 03.05) MOREIRA, N., C. AGUIAR y J. PIRES (2001). Lameiros e outros prados e pastagens de elevado valor florístico. Direcção Geral de Desenvolvimento Rural, Lisboa. MOURA, R.M. (2005). Arquitectura Paisagista e Conservação da Natureza (http://www.arquitecturapaisagista.net/, aces. 03.05) NORDESTE (2005). http://www.nordeste-digital.com/guias/lameiros/percurso/frset-index.html (aces. 03.05) PIRES, J.M., P.A. PINTO y N.T. MORIERA (1994). Lameiros de Trás-os-Montes. Estudos 29, Instituto Politécnico de Bragança. SANTOS, J. y C. AGUIAR (1995). Private hay meadows and common pastures: integrated management of two ecosystems. In: L.M. Albisu e C. Romero (Eds.) Environmental and Land Use Issues: An Economic Perspective. Wissenschaftsverlag Vauk, Kiel, pp. 491-501. TELES, A. (1970). Os lameiros de montanha do norte de Portugal. Subsídios para a sua caracterização fitossociológica e química. Agronomia Lusitana, Vol. 31, nº1 e 2: 5-132.