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 Capa: referencial Nova formatação: Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo

Lampedusa, t. o Leopardo

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Lampedusa, Leopardo

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  • Capa: referencial

    Nova formatao:

    Luis Antonio Vergara Rojas - LAVRo

  • O LEOPARDO

    Tomasi di Lampedusa

    Crculo de Leitores

    Ttulo do original: Il gattopardo

    Traduo de Rui Cabeadas

    Crculo de Leitores, Lda.

    Composto em Garamond 11

    Impresso e encadernado

    por Printer Portuguesa, Lda.

    Setembro de 1974

    Edio integral

    Licena editorial para

    o Crculo de Leitores

    por cortesia de Livraria Bertrand

    proibida a venda a quem no pertena ao Crculo

  • 3

    CAPTULO I

    ROSRIO E APRESENTAO DO PRNCIPE - O JARDIM E O

    SOLDADO MORTO - AS AUDINCIAS REAIS - O JANTAR - DE

    CARRUAGEM PARA PALERMO - IDA A MARIANNINA - REGRESSO

    A S. LOURENO - CONVERSA COM TANCREDO - NOS

    ESCRITRIOS DA ADMINISTRAO: AS PROPRIEDADES E OS

    RACIOCNIOS POLTICOS - NO OBSERVATRIO COM O PADRE

    PIRRONE - REPOUSO DURANTE O ALMOO - D. FABRCIO E SEU

    FILHO PAULO - A NOTCIA DO DESEMBARQUE E, DE NOVO, O

    ROSRIO

    Maio, 1860

    Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. A recitao

    quotidiana do rosrio terminara. Durante meia hora, a voz

    calma do Prncipe havia recordado os mistrios Gloriosos e

    Dolorosos; durante meia hora, outras vozes entremeadas

    haviam tecido um sussurro ondulante em que sobressaam as

    flores de oiro de certas palavras inslitas: amor, virgindade,

    morte. Durante aquele sussurro o salo rococ parecia ter

    mudado de aspecto; at os papagaios que abriam as asas

    irisadas na seda das tapearias haviam-se mostrado

    intimidados; e, entre as duas janelas, Madalena, na qual todos

    habitualmente viam uma bela e opulenta loira, perdida no se

    sabe em que sonhos, tinha tomado uns ares de penitente.

    Calada, agora, a voz, tudo regressava ordem na

    desordem do costume. Pela porta por onde os criados haviam

    sado, Bendic, o grande co de fila, a quem a forada

    excluso havia magoado, entrou e abanou o rabo.

    Lentamente, as senhoras principiaram a erguer-se e, aos

    poucos, o refluxo oscilante das suas saias ia deixando a

  • 4

    descoberto os nus mitolgicos desenhados no fundo leitoso

    dos azulejos. Apenas permanecia escondida uma Andrmeda,

    a quem a batina do Padre Pirrone, atrasado nas oraes

    suplementares, impediu, por um bom momento, de rever o

    seu prateado Perseu, que, sobrevoando as vagas, corria a

    libert-la e a beij-la.

    No fresco do tecto as divindades acordaram. Filas de

    trites e drades precipitavam-se dos montes e mares, entre

    nuvens cor de framboesa e lils, em direco a uma

    transfigurada Concha de Oiro, a fim de exaltar a glria da Casa

    de Salina; to transbordantes de satisfao se mostravam que

    as mais elementares regras de perspectiva foram violadas. E

    os Deuses maiores, os prncipes entre os Deuses, Jpiter o

    Fulgurante, Marte o Carrancudo, Vnus a Langorosa, que

    haviam precedido a multido dos Deuses menores, pareciam

    agora sustentar de boa vontade o escudo azul com o Leopardo

    danando.

    Sabiam perfeitamente que durante vinte e trs horas e

    meia voltariam a ser os senhores da villa. Nas tapearias das

    paredes, os macacos voltavam a fazer momices s catatuas.

    Tambm os mortais da casa de Salina, sob aquele Olimpo

    palermitano, desciam apressadamente das altas esferas

    msticas. As raparigas compunham as pregas dos vestidos

    enquanto trocavam entre si rpidos olhares azulneos e

    palavras na gria do pensionato. H mais de um ms, desde os

    motins do quatro de Abril, que as haviam mandado voltar do

    convento; agora, era com saudade que recordavam os

    dormitrios de baldaquins e a intimidade colectiva do

    Convento de Salvador. Os rapazes mais novos brigavam j

    pela posse de uma imagem de S. Francisco de Paula; o

    primognito e herdeiro, o Duque Paulo, comeava j a sentir

    vontade de fumar, mas, com receio de o fazer na presena dos

    pais, contentava-se em apalpar, atravs da algibeira, a palha

    entranada da cigarreira. Desenhava-se-lhe no rosto emaciado

    uma melancolia metafsica: o dia havia-lhe corrido mal, pois

    Guiscardo, o alazo irlands, tinha-lhe parecido em m forma

  • 5

    e Fanny no conseguira encontrar o meio (ou o desejo?) de

    fazer-lhe chegar mo o habitual bilhetinho cor-de-rosa. Para

    que se havia ento sacrificado o Redentor?

    Com insegura autoridade a Princesa deixou cair,

    secamente, o tero na bolsa bordada de azeviche, enquanto os

    seus belos olhos manacos observavam os filhos escravos e o

    marido tirano. O seu corpo minsculo projectava-se para este

    num vo desejo de domnio amoroso.

    Entretanto, o Prncipe levantou-se e, ao choque do seu

    peso de gigante, o soalho estremecia. Durante uns instantes,

    os seus olhos claros reflectiam o orgulho daquela efmera

    confirmao do seu domnio sobre homens e coisas.

    Depois, poisou o enorme missal vermelho que estivera na

    sua frente durante a recitao do rosrio e guardou o leno em

    que apoiara o joelho; um pouco de mau humor turvou-lhe o

    olhar, quando viu a pequenina ndoa de caf que, desde a

    manh, havia ousado quebrar a vasta brancura do colete.

    No era gordo; era apenas imenso e forte. A sua cabea

    tocava (nas casas habitadas pelos mortais comuns) o floro

    inferior dos lustres, e os seus dedos sabiam dobrar como

    papel as moedas de ducado. Havia sempre, entre a villa Salina

    e a loja de um ourives, um contnuo vaivm a fim de se

    consertarem os garfos e as facas que a sua ira contida, mesa,

    fazia frequentemente dobrar em arco. Aqueles dedos sabiam

    alis usar de extrema delicadeza, quando acariciavam ou se

    entregavam a certas brincadeiras; e disto, para sua desgraa,

    se poderia lembrar Maria Stella, sua mulher; e, ainda, sob o

    seu toque delicado, os parafusos, os aros e botes

    esmerilados dos telescpios, culos e pesquisadores de

    cometas, que enchiam, l no alto da villa, o seu observatrio

    particular, no sofriam qualquer dano.

    Os raios do sol poente daquela tarde de Maio incendiavam

    a tez rosada e os cabelos cor de mel do Prncipe. Eram estes

    que denunciavam a origem alem de sua me, aquela Princesa

    Carolina cuja soberba, trinta anos atrs, havia enregelado a

    Corte um tanto negligente das Duas Siclias. Mas no sangue

  • 6

    fermentavam-lhe outras essncias germnicas, e estas mais

    incmodas para um aristocrata siciliano, naquele ano de 1860,

    de que podiam ser atraentes uma pele clara e uns cabelos

    loiros no meio daquela gente de pele olivcea e cabelos

    negros. O seu temperamento autoritrio, uma certa rigidez

    moral, a sua propenso s ideias abstractas, no ambiente

    moral um tanto mole da sociedade palermitana, haviam-se

    mudado, respectivamente, em tirania caprichosa, perptuos

    escrpulos morais e desprezo pelos seus parentes e amigos,

    os quais lhe pareciam andar deriva nos meandros do

    vagaroso rio do pragmatismo siciliano.

    Ele era, numa famlia que, durante sculos, no havia

    nunca sequer sabido fazer a soma das despesas e a subtraco

    das dvidas, o primeiro e ltimo a possuir uma forte e mais

    que notria inclinao para as cincias matemticas.

    O Prncipe havia-as aplicado astronomia e, desta forma,

    obtido com elas razoveis sucessos pblicos e belssimos

    prazeres privados. Com efeito, a tal ponto, nele, o orgulho e a

    anlise matemtica se tinham associado, que alimentava a

    iluso de que os astros obedeciam aos seus clculos (como

    alis pareciam fazer) e que os dois planetas que havia

    descoberto (chamara-lhes Salina e Esbelto em homenagem

    sua propriedade e a um inesquecvel perdigueiro) propagavam

    a fama da sua casa nas estreis plagas do cu entre Marte e

    Jpiter. E, assim, os frescos da villa representariam mais uma

    profecia que a adulao de um pintor.

    Solicitado, por um lado, pelo orgulho e intelectualismo

    materno, por outro, pela sensualidade e condescendncia do

    pai, o nobre Prncipe Fabrcio vivia, sob a carranca de Zeus,

    em perptuo descontentamento, entregando-se

    contemplao da runa da sua raa e do seu patrimnio sem

    dar mostras de qualquer actividade e, o que mais, sem tentar

    pr-lhe um termo.

    Aquela meia hora entre o rosrio e o jantar era um dos

    momentos menos irritantes do dia e, horas antes, j de

    antegozava-lhes a calma equvoca.

  • 7

    Precedido de um Bendic excitadssimo, desceu a pequena

    escada que conduzia ao jardim. Encerrado entre trs muros e

    um dos lados da villa, esta clausura conferia-lhe um ar de

    cemitrio, acentuado ainda mais pelos montculos paralelos

    que ladeavam os pequenos canais de irrigao e que

    lembravam tmulos de gigantes magrssimos. Na argila

    avermelhada as plantas cresciam em espessa desordem; as

    flores surgiam ao deus-dar e as sebes de murta pareciam ali

    dispostas mais para impedir que para dirigir os passos.

    Ao fundo, uma Flora, manchada por lquenes amarelo-

    negros, exibia, com resignao, os seus mimos mais que

    seculares; de cada um dos lados um banco sustentava uma

    almofada bordada, comprida e enrolada, talhada, tambm ela,

    em mrmore cinzento.

    A um canto, o oiro de uma accia introduzia uma nota de

    alegria intempestiva. De todos aqueles torres emanava uma

    sensao de beleza depressa amortecida pela indolncia.

    Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas

    barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais, levemente

    ptridos, como os lquidos destilados das relquias de certos

    santos; o perfume apimentado das violetas sobrepunha-se ao

    aroma convencional das rosas e ao oleoso das magnlias que

    se concentravam nos cantos. Muito ao de leve, percebia-se

    ainda o perfume da hortel-pimenta misturado ao aroma

    infantil da accia e ao cheiro a confeitaria da murta. O

    perfume de alcova das primeiras flores das laranjeiras do

    pomar transbordava por cima do outro muro.

    Era um jardim para cegos. A vista constantemente se

    ofendia, mas o olfacto, esse, podia extrair dele um prazer

    violento, embora grosseiro. As rosas Paul Neyron, cujas

    estacas ele prprio adquirira em Paris, haviam degenerado.

    Primeiro estimuladas, depois extenuadas pelos sucos

    vigorosos e indolentes das terras sicilianas, queimadas por

    Julhos apocalpticos, haviam-se transformado numa espcie

    de couves cor de carne, obscenas, que destilavam, porm, um

    aroma denso, quase desonesto, que nenhum criador francs

  • 8

    teria ousado esperar. O Prncipe levou uma delas ao nariz e foi

    como se aspirasse a coxa de uma bailarina da pera. Bendic,

    a quem em seguida a ofereceu, retraiu-se nauseado e

    apressou-se a ir procurar sensaes mais saudveis no meio

    do estrume e das lagartixas mortas.

    Para o Prncipe, porm, aquele jardim perfumado foi

    causa de obscuras associaes de ideias. Agora, sim, cheira

    bem, mas h um ms...

    Recordava a repugnncia que as baforadas adocicadas

    haviam espalhado por toda a villa antes que tivesse sido

    removida a sua causa: o cadver de um jovem soldado do

    Batalho de Caadores 5 que, ferido na escaramua de S.

    Loureno, contra as tropas rebeldes, tinha vindo morrer,

    sozinho, debaixo de um limoeiro. Haviam-no encontrado de

    bruos, no meio do trevo espesso, o rosto mergulhado no

    sangue e nos vmitos, as unhas cravadas na terra, coberto de

    formigas; sob as bandoleiras os intestinos violceos haviam

    formado uma poa de lama. Tinha sido Russo, o guarda, a

    encontrar aquela coisa desfeita, a volt-la, a cobrir-lhe o rosto

    com o seu leno vermelho e, com um pau, a meter as

    entranhas para dentro do rasgo do ventre e cobrir depois a

    ferida com as abas azuis do capote, cuspindo continuamente

    de nojo, no precisamente em cima mas bastante perto do

    cadver. Tudo isto com uma habilidade cuidadosa. O fedor

    destes malandros no pra nem quando esto mortos, dizia.

    E fora tudo o que comemorara aquela morte solitria.

    Quando os camaradas sonolentos o vieram tirar (sim,

    haviam-no arrastado pelos ombros at carreta, o que fez

    com que a estopa do boneco sasse outra vez para fora), foi

    acrescentado ao rosrio da tarde um De Profundis pela alma

    do desconhecido.

    E, como a conscincia das senhoras ficou satisfeita com

    isto, no mais se voltou a falar no assunto.

    O Prncipe foi raspar um pouco de lquen dos ps da Flora

    e ps-se a passear de um lado para o outro. O sol poente

    projectava-lhe a imensa sombra sobre os canteiros fnebres.

  • 9

    De facto, no se havia falado mais no morto e, no fim de

    contas, os soldados so soldados precisamente para morrer

    em defesa do Rei. A imagem daquele corpo estripado voltava-

    lhe, porm, muitas vezes memria, como para pedir que lhe

    desse paz pelo nico meio possvel para o Prncipe: superando

    e justificando o seu derradeiro sofrimento com uma

    necessidade geral. sua volta pairavam outros espectros

    ainda menos atraentes que aquele; porque morrer por algum

    ou por qualquer coisa est certo, da prpria natureza das

    coisas; mas era preciso saber ou, pelo menos, ter a certeza

    que as pessoas sabem por que ou por quem se morre.

    Era isto o que perguntava aquela face desfigurada e era

    exactamente neste ponto que as coisas comeavam a

    confundir-se na nvoa.

    Mas evidente que ele morreu pelo Rei, caro Fabrcio,

    ter-lhe-ia respondido, se o Prncipe o tivesse interrogado, o

    seu cunhado Mlvica, aquele Mlvica escolhido sempre como

    porta-voz da multido de amigos. Pelo Rei, que representa a

    ordem, a continuidade, a decncia, o direito e a honra. Pelo rei

    que, sozinho, defende a Igreja e impede o desmembramento da

    propriedade, objectivos finais da seita.

    Magnficas palavras estas que se referiam a tudo quanto

    era caro ao Prncipe no mais ntimo do seu corao. Qualquer

    coisa porm soava falso ainda. Sim, o Rei; at aqui tudo estava

    bem; conhecia-o, pelo menos o que tinha morrido h pouco; o

    actual era apenas um seminarista vestido de general e, para

    dizer a verdade, no valia grande coisa. Mas isso no

    raciocinar, rebatia Mlvica; um determinado rei pode no

    estar altura da funo mas a ideia monrquica permanece

    vlida na mesma. Tambm aquilo estava certo; mas os reis

    que encarnavam uma ideia no podiam ou, pelo menos, no

    deviam descer, atravs dos tempos, abaixo de um certo nvel;

    seno, meu caro cunhado, tambm a ideia sofre com isso.

    Sentado num banco, ali estava ele contemplando, inerte, a

    devastao que Bendic ia operando nos canteiros. De vez em

    quando, o co levantava para ele os olhos inocentes, como a

  • 10

    pedir-lhe um louvor pelo trabalho realizado: catorze cravos

    despedaados, meia sebe arrancada, um rego obstrudo.

    Parecia mesmo um ser humano!

    Chega, Bendic, anda c.

    E o animal acorria, poisava-lhe na mo o focinho sujo de

    terra, ansioso de mostrar-lhe que a tola interrupo do belo

    trabalho cumprido lhe havia sido perdoada.

    Oh! Aquelas audincias, aquelas muitas audincias que o

    Rei Fernando lhe havia concedido, em Caserta, em

    Capodimonte, em Portici, em Npoles... no inferno!

    Ao lado do camarista de servio, que o guiava

    tagarelando, com o bicorne debaixo do brao e os mais frescos

    ditos napolitanos nos lbios, percorria-se interminveis salas

    de arquitectura magnfica e de um mobilirio desagradvel

    (exactamente como a monarquia bourbnica), enfiava-se em

    corredores sujos e pequenas escadas vacilantes e chegava-se a

    uma antecmara onde muita gente esperava: caras fechadas de

    esbirros, caras vidas de suplicantes recomendados. O

    camarista desculpava-se, fazia-o transpor o obstculo daquela

    gente vulgar e conduzia-o a uma outra antecmara, a que era

    reservada s pessoas da Corte: um pequeno compartimento

    todo azul e prata dos tempos de Carlos III; aps uma breve

    espera, um criado batia levemente porta e chegava-se

    Presena Augusta.

    O gabinete privado era pequeno e pretensiosamente

    simples; nas paredes caiadas um retrato do Rei Francisco I e

    outro, de aspecto azedo e colrico, da actual Rainha; por cima

    do fogo, uma Madona de Andrea dei Sarto parecia espantada

    de ver-se rodeada por litografias coloridas representando

    santos da terceira ordem e santurios napolitanos.

    Em cima de uma mesa, com a lamparina acesa em frente,

    um Menino Jesus de cera; sobre a secretria modesta, papis

    brancos, papis azuis, papis amarelos; toda a administrao

    do Reino chegada sua fase final, a da assinatura de Sua

    Majestade (D. G.).

  • 11

    Por detrs desta barreira de papelada, o Rei, j em p para

    no ser obrigado a levantar-se; o Rei com o seu caro gordo e

    mortio entre umas suas loiras e que vestia uma casaca

    militar de tecido grosseiro donde brotavam, em cascata roxa,

    umas calas tufadas. Dava um passo em frente com a mo

    direita j virada para o beijo que depois recusaria.

    Viva Salina, felizes olhos que te vem!

    O sotaque napolitano ultrapassava de longe, em sabor, o

    do camarista.

    Rogo a Vossa Majestade que me perdoe por no trazer a

    farda da Corte; mas estou em Npoles apenas de passagem e

    no queria deixar de apresentar os meus cumprimentos a

    Vossa Majestade.

    Tu ests doido, Salina; sabes que aqui em Caserta ests

    como em tua casa. Em tua casa, com certeza. Em tua casa, com

    certeza repetia, sentando-se por detrs da secretria e

    demorando um instante a mandar sentar o visitante.

    E como vo as pequenas?

    O Prncipe sabia que era altura de cometer um equvoco

    ao mesmo tempo licencioso e beato.

    As pequenas, Majestade? Na minha idade, e sob o

    sagrado vnculo do matrimnio?

    A boca do Rei ria, enquanto as mos, severamente,

    arrumavam os papis.

    Nunca me atrevia a tanto, Salina. Perguntava pelas tuas

    pequenas, as princesinhas? Concetta, a nossa querida

    afilhada, j deve estar crescida, uma autntica senhora.

    Da famlia passou-se cincia.

    Tu, Salina, no s te honras a ti mesmo, como a todo o

    Reino! Grande coisa a cincia, quando no se pe a atacar a

    religio.

    Depois, a mscara do Amigo era posta de lado, e assumia

    a do Soberano Severo.

  • 12

    E, diz-me c, Salina, o que que se diz de Castel-cicala

    na Siclia?

    Salina no tinha inteno de dizer uma palavra sobre o

    partido real nem to-pouco sobre o partido liberal, mas no

    queria trair o amigo; defendia-se e mantinha-se nas

    generalidades.

    Um cavalheiro, um glorioso ferimento, mas talvez

    demasiadamente idoso para as muitas fadigas de lugar-

    tenente.

    O Rei anuviava-se; Salina no queria prestar-se ao papel

    de espio, logo, Salina no valia nada para ele. Com as mos

    apoiadas na secretria preparava-se para o despedir.

    Tenho muito trabalho, todo o Reino assenta nos meus

    ombros.

    Era altura de dourar a plula; a mscara amigvel voltou a

    sair para fora da caixa.

    Quando voltares a Npoles, vem mostrar Concetta

    Rainha. Eu bem sei que ela demasiado nova para ser

    apresentada Corte, mas nada impede um simples almoo

    ntimo. Macarro e raparigas bonitas, como se costuma dizer.

    At vista, Salina. Passa bem.

    Certa vez, porm, a despedida fora desagradvel.

    O Prncipe, recuando diante do Rei, havia j feito a

    segunda reverncia quando este o chamou.

    Escuta, Salina! Disseram-me que ele tem ms

    companhias em Palermo; aquele teu sobrinho Falconri...

    porque no o metes na ordem?

    Mas, Majestade, Tancredo s se preocupa com mulheres

    e com as cartas.

    O Rei perdeu a pacincia.

    Salina, Salina, tu ests doido. Tu, o tutor, que s

    responsvel. Diz-lhe que tenha juzo. Adeus!

    Voltando a percorrer o itinerrio faustosamente medocre

  • 13

    para ir assinar o livro de cumprimentos da Rainha, o desnimo

    invadia-o: a cordialidade plebeia havia-o deprimido tanto

    como a manha policial. Felizes os seus amigos que

    interpretavam aquela familiaridade como prova de amizade e

    a ameaa como manifestao de poder real; ele no podia. E,

    enquanto se entregava m lngua com o impecvel

    camareiro, ia perguntando a si mesmo quem seria destinado a

    suceder naquela monarquia que ostentava j os sinais da

    morte no rosto. O Piemonts, a quem chamavam o

    Cavalheiro e que fazia tanto estardalhao na sua pequena

    capital fora de mo? No seria a mesma coisa? Dialecto

    piemonts em vez de napolitano?

    Pronto, j bastava de perguntas.

    Haviam chegado ao livro. Assinava: Fabrcio Cor-bera,

    Prncipe de Salina.

    Ou talvez a Repblica de don Peppino Mazzini? Seja,

    transformar-me-ei no senhor Corbera!

    A grande volta de regresso no o acalmou. Nem mesmo o

    encontro j marcado com Cora Danolo o pde consolar.

    Mas que havia ele de fazer, se as coisas eram assim

    mesmo? Agarrar-se s realidades presentes sem dar saltos no

    desconhecido?

    Ouviam-se agora as detonaes secas das descargas, como

    as que haviam soado, no h muito tempo, numa praa

    miservel de Palermo; mas para que serviam tambm aqueles

    tiros?

    Nada se consegue com os pum! pum! No verdade,

    Bendic?

    Ding, ding, ding tocou a sineta que anunciava o jantar.

    Bendic corria j, com a gua a correr-lhe na boca, em busca

    de comida.

    Um autntico piemonts, pensava Salina, subindo as

    escadas.

    O jantar na villa Salina, como era uso no Reino das Duas

  • 14

    Siclias, servia-se com um fausto verdadeiramente ruinoso. O

    nmero de comensais (eram catorze, entre patres, filhos,

    governantes e preceptores) bastava, por si s, para conferir

    imponncia mesa. Esta, coberta de uma finssima toalha j

    remendada, resplandecia sob a luz de um grande lustre

    precariamente suspenso da ninfa, sob o lampadrio de

    Murano. Pelas janelas entrava ainda muita luz, mas as figuras

    brancas sobre fundo escuro que, nas portas, simulavam

    baixos-relevos, perdiam-se j na sombra. Macias eram as

    pratas, esplndidos os copos de cristal facetado da Bomia,

    que ostentavam, sobre um medalho liso, as iniciais F. D. (Fer-

    dinandus dedid), em recordao de uma munificncia real; os

    pratos, porm, cada um assinado por uma sigla ilustre, eram

    apenas os sobreviventes dos estragos cometidos pelo pessoal

    da cozinha e provinham de servios dspares. Os maiores,

    grandes Capodimonti, de larga cercadura verde-amndoa,

    salpicada de pequeninas ncoras douradas, eram reservados

    para o Prncipe, que gostava que as coisas sua volta fossem

    sua escala, excepto a mulher.

    Quando ele entrou na sala de jantar, j l estavam todos

    reunidos; s a Princesa sentada, os outros de p, atrs das

    cadeiras. Em frente ao seu lugar, sobressaam, ladeados por

    uma pilha de pratos, os flancos prateados da enorme terrina

    de tampa coroada pelo Leopardo danando. Era o prprio

    Prncipe a tirar a sopa para os pratos, tarefa que lhe era grata,

    smbolo das atribuies alimentares do pater famlias.

    Naquela noite, porm, como h j um certo tempo no

    acontecia, ouviu-se, ameaador, o tinir da concha contra as

    paredes da terrina: sinal de grande clera contida, um dos

    rudos mais pavorosos que havia, como, quarenta anos depois,

    contava um filho sobrevivente. O Prncipe havia reparado que

    Francisco Paulo, o filho de dezasseis anos, no estava ainda

    no seu lugar. O rapaz entrou logo a seguir (desculpa, pap) e

    sentou-se. No sofreu censura, mas o Padre Pirrone, que mais

    ou menos tinha as funes de co de guarda, inclinou a cabea

    e agradeceu ao Senhor: a bomba no havia explodido, mas o

  • 15

    vento da sua passagem tinha gelado as pessoas mesa e, de

    qualquer forma, o jantar estava estragado.

    Enquanto comiam em silncio, os olhos azuis do Prncipe,

    escondidos entre as plpebras semicerradas, fixavam, um por

    um, os filhos que ficavam mudos de terror.

    E, no entanto, pensava: Que bela famlia! As raparigas

    gorduchas, florescentes de sade, com covinhas maliciosas

    nas faces e, entre a testa e o nariz, aquela famosa ruga, a

    marca atvica dos Salinas.

    Os rapazes, magros mas fortes, exibindo no rosto a

    melancolia da moda, manejavam os talheres com comedida

    violncia. Um deles, Joo, o filho segundo, o mais querido e o

    de feitio mais difcil, h j dois anos que estava ausente. Um

    belo dia desaparecera de casa e durante dois meses no

    haviam tido notcias dele. At que chegou de Londres uma

    carta, fria e respeitosa, em que se pedia desculpa pelos

    cuidados que havia causado, os tranquilizava quanto sua

    sade e, coisa estranha, afirmava preferir a modesta vida de

    empregado num depsito de carvo existncia demasiado

    mimada (leia-se: presa) dos palermitanos. A saudade, os

    cuidados pelo moo perdido naquele famoso nevoeiro da

    cidade hertica atenazaram raivosamente o corao do

    Prncipe, fazendo-o sofrer imenso. Tornou-se ainda mais

    sombrio. To sombrio que a Princesa, sentada ao seu lado,

    estendeu a mo infantil e acariciou-lhe a manpula poderosa

    que repousava sobre a toalha. Gesto inesperado que lhe

    desencadeou uma srie de sensaes: irritao por se ver

    lamentado, sensualidade que, embora despertada pela mulher,

    para ela no se dirigia. Num relmpago apareceu ao Prncipe a

    imagem de Mariannina com a cabea afundada na almofada;

    secamente, levantou a voz.

    Domingues disse a um dos criados , vai dizer a don

    Antnio para atrelar os baios ao coup; vou a Palermo, logo a

    seguir ao jantar.

    Depois, reparando nos olhos da mulher que se haviam

    tornado vtreos, arrependeu-se da ordem; mas era impossvel

  • 16

    pensar em retirar uma ordem j dada e, assim, insistiu,

    unindo a ironia crueldade.

    Padre Pirrone, venha comigo; estaremos de volta s

    onze; poder passar duas horas no Convento com os seus

    amigos.

    Ir a Palermo de noite, e naqueles tempos de desordem,

    no podia, manifestamente, ter outro objectivo seno o de

    uma aventura galante de baixa categoria, mas levar como

    companhia o padre da casa era de um despotismo

    verdadeiramente ofensivo. Pelo menos, assim o pensou o

    Padre Pirrone, que se ofendeu; como era natural, porm,

    cedeu.

    Apenas engolida a ltima nspera, ouvia-se j o rodar da

    carruagem no ptio; enquanto um criado estendia a cartola ao

    Prncipe e o tricrnio ao jesuta, a Princesa, j com lgrimas

    nos olhos, fez uma ltima, embora v, tentativa.

    Mas Fabrcio, nestes tempos, com a estrada cheia de

    soldados e de malandrins... pode acontecer-te algum mal.

    Ele riu-se.

    Palermices, Stella, palermices; que queres tu que me

    acontea? Todos me conhecem; homens com dois metros de

    altura no h muitos, em Palermo. Adeus!

    E beijou apressadamente a testa ainda lisa que apenas lhe

    chegava altura do queixo. Mas, ou porque o perfume da pele

    da Princesa lhe despertasse ternas recordaes, ou porque,

    atrs dele, o passo contrafeito do Padre Pirrone lhe tivesse

    invocado sermes pios, quando se viu diante do coup esteve

    quase a desistir do passeio. No momento em que ia abrir a

    boca para ordenar que recolhessem a carruagem, um grito

    violento Fabrcio, meu Fabrcio veio da janela, seguido logo

    de gritos agudssimos. A Princesa iniciava uma das suas crises

    histricas.

    Vamos disse para o cocheiro, que na boleia, de

    chicote atravessado na barriga, esperava , vamos, vamos a

    Palermo levar o Reverendo Padre ao convento.

  • 17

    E bateu com a portinhola, sem dar ao criado tempo a

    fech-la.

    Ainda no era noite. A estrada, muito branca, corria entre

    altos muros e, mesmo sada da propriedade dos Salinas,

    avistava-se, esquerda, a villa semiarruinada dos Falconri, e

    que pertencia a Tancredo, seu sobrinho e pupilo. Um pai

    esbanjador, marido da irm do Prncipe, havia dissipado todo

    o patrimnio para morrer em seguida. Fora uma daquelas

    runas totais em que se acaba por mandar fundir a prata dos

    gales das librs. Depois da morte da me, o Rei havia

    confiado a Salina a tutela do sobrinho, ao tempo com catorze

    anos, e o rapaz, ao princpio quase ignorado, tornara-se

    extremamente querido ao irritvel Prncipe, que encontrava

    nele uma alegria turbulenta, um temperamento frvolo,

    assaltado, por vezes, por imprevistas crises de seriedade. Sem

    que ousasse confess-lo, teria preferido t-lo como

    primognito, em vez daquele pateta do Paulo.

    Naquele momento, Tancredo, com vinte e um anos, levava

    uma boa vida com o dinheiro que o tutor no regateava e que,

    por vezes, acrescentava do seu prprio bolso. Que estar

    aquele rapaz a tramar, pensava o Prncipe quando passavam

    em frente da villa Falconri, qual uma enorme buganvlia,

    transbordando em cascatas de seda episcopal para fora do

    porto, conferia, na obscuridade, um aspecto de fausto

    verdadeiramente abusivo. Quem sabe o que estar ele a

    tramar? Porque, quando o Rei Fernando havia falado das ms

    companhias do rapazola, havia cometido uma falta ao diz-lo,

    mas, a verdade que, quanto aos factos, tivera razo. Preso

    numa rede de amigos jogadores e de um certo tipo de amigas

    que o seu encanto atraa, Tancredo havia chegado ao ponto de

    manifestar simpatias pela seita e ter relaes com o Comit

    Nacional Clandestino; quem sabe se recebia tambm dinheiro

    deles, como recebia do Tesouro Real. Tivera de se mexer bem

    e, inclusivamente, foram necessrias algumas visitas pessoais

    a um Castelcicala cptico e a um Maniscalo, demasiado corts,

    para evitar que o rapaz, depois do quatro de Abril, sofresse

  • 18

    graves aborrecimentos. Tudo isto era desagradvel, mas

    Tancredo, segundo pensava o tio, no tinha culpa alguma; a

    culpa era daqueles tempos disparatados em que um rapazote

    de boas famlias no se podia entregar a umas pndegazinhas

    sem se ver envolvido em amizades comprometedoras. Que

    poca!

    Maus tempos, estes que correm, Excelncia! A voz do

    Padre Pirrone soou como um eco dos seus prprios

    pensamentos. Refugiado no canto do coup, esmagado pela

    mole macia do Prncipe e amachucado por aquela

    manifestao de tirania, o jesuta sofria na carne e no esprito,

    mas, no sendo um homem medocre, transferira

    imediatamente as suas penas efmeras para o mundo

    perdurvel da histria.

    Olhai, Excelncia!

    E apontava os montes abruptos da Concha d'Oiro, ainda

    iluminada pelas ltimas claridades do crepsculo. Pelas

    encostas e no alto dos montes ardiam dezenas de fogueiras;

    eram os fogos que as tropas rebeldes acendiam todas as

    noites, ameaa silenciosa cidade rgia e conventual.

    Pareciam aquelas lamparinas que se vem arder nos quartos

    dos doentes graves, nas noites derradeiras.

    Vejo, sim, Padre, vejo.

    E pensava que talvez Tancredo estivesse junto de uma

    daquelas fogueiras, atiando, com as suas mos aristocrticas,

    o fogo que expressamente ardia para liquidar todas aquelas

    mos. Na verdade, que belo tutor eu sou para este pupilo que

    pratica todas as loucuras que lhe vm cabea!

    A estrada agora comeava a descer um pouco e, per-

    tssimo, avistava-se Palermo, completamente s escuras. As

    suas casas baixas e amontoadas eram esmagadas pelas moles

    imensas dos conventos; eram s dezenas, todos enormes,

    muitas vezes agrupados aos dois e trs; conventos de homens

    e de mulheres, ricos e pobres, nobres e plebeus, conventos de

    jesutas, beneditinos, franciscanos, capuchinhos, carmelitas,

  • 19

    liguoristas, agostinhos... Mais alto, erguiam-se cpulas

    esguias, de curvas incertas, como seios esvaziados de leite;

    eram, porm, os conventos que davam cidade a sua

    verdadeira dimenso e carcter, aquele ar solene, aquela

    presena da morte que nem mesmo a frentica luz siciliana

    conseguia afugentar. Era quase noite cerrada e quela hora os

    conventos dominavam, como dspotas incontestados, a

    paisagem. Era verdadeiramente contra eles que aquelas

    fogueiras da montanha ardiam, atiadas, de resto, por homens

    que muito se assemelhavam aos que viviam nos conventos:

    como eles, frenticos, orgulhosos, vidos de poder, em suma,

    como habitualmente, de ociosidade.

    Era o que o Prncipe pensava, enquanto os baios desciam

    a passo a descida; pensamentos, alis, que contrariavam a sua

    natureza mais profunda, mas que nasciam dos cuidados sobre

    a sorte de Tancredo e de um impulso sensual que o levava a

    revoltar-se contra a represso dos sentidos que os conventos

    encarnavam.

    A estrada atravessava os laranjais em flor e como o luar

    anula uma paisagem, assim o perfume nupcial das flores

    anulava todas as coisas: o cheiro dos cavalos suados, o cheiro

    do coiro dos estofos da carruagem, o cheiro do Prncipe e do

    jesuta, tudo era eliminado por aquele perfume islmico que

    evocava o almscar e carnais de alm-tmulo.

    O prprio Padre Pirrone deixou-se comover.

    Que bela terra, Excelncia, se...

    Se no fossem tantos jesutas, pensou o Prncipe, a

    quem a voz do padre havia interrompido dulcssimas

    antevises.

    Mas imediatamente se arrependeu da m educao no

    consumada e, com a mo enorme, bateu no tricrnio do velho

    amigo.

    Ao chegarem aos arredores da cidade, perto da villa

    Airoldi, uma patrulha mandou parar a carruagem. Vozes com o

    acento da Aplia e de Npoles mandaram parar. Baionetas

  • 20

    esguias bailaram sob a luz oscilante de uma lanterna, mas um

    oficial subalterno reconheceu imediatamente o Prncipe, que

    levava o chapu alto sobre o joelho.

    Queira desculpar, Excelncia, podeis passar.

    E, para que no voltassem a ser incomodados por outros

    postos da guarda, mandou mesmo subir para a boleia um

    soldado. O coup, um pouco mais lento por causa do novo

    passageiro, continuou a avanar; contornou a villa Ranchibile,

    ultrapassou Torrerose e as hortas de Villafranca e entrou na

    cidade pela Porta Macqueda. No Caf Romeres e nos Quatri

    Canti di Campagna os oficiais das patrulhas da guarda riam-se

    enquanto sorviam enormes copos de refresco. Era, porm, este

    o nico sinal de vida da cidade: as ruas estavam desertas, e

    nelas apenas se ouvia o passo cadenciado das rondas que

    passavam, de bandoleiras brancas cruzadas no peito.

    E, de um e doutro lado, em fila contnua os conventos: a

    Abadia dei Monte, os Stimmati, os Crociferi, os Tea-tini; todos

    paquidrmicos, negros como alcatro, imersos num sono

    vizinho da morte.

    Padre, daqui a duas horas voltarei para o buscar. Boas

    oraes!

    E o pobre Pirrone, de alma confundida, bateu porta do

    convento, enquanto o coup continuava pelas travessas e

    ruelas.

    Deixando a carruagem no palcio, o Prncipe dirigiu-se a

    p para o seu destino. A rua era pequena, mas o bairro tinha

    m fama; soldados completamente equipados, o que revelava

    imediatamente que se haviam escapado furtivamente dos seus

    aquartelamentos nas praas, saam, de olhar pasmado, das

    casitas baixas onde uma planta de baslico nas graciosas

    janelas explicava a facilidade com que haviam entrado;

    rapazolas de aspecto sinistro, usando umas calas largas,

    discutiam naquele tom de voz baixo dos sicilianos

    enraivecidos; de longe chegava o eco de descargas disparadas

    por qualquer sentinela nervosa. Ultrapassado o bairro, a rua

  • 21

    prosseguia ao longo do cais; no velho porto de pesca

    baloiavam, meio podres, barcos com o aspecto desolado de

    ces sarnentos.

    Sou um pecador, eu sei-o, e duas vezes pecador: perante

    a lei divina e perante o amor humano de Stella. E disso no

    pode haver dvidas. Amanh terei de me confessar ao Padre

    Pirrone. Sorriu, pensando no ntimo que talvez aquilo fosse

    suprfluo, pois, decerto, o jesuta no havia de ter dvidas

    sobre os pecados que iria cometer. Mas, imediatamente, o seu

    esprito de sofista retomou o comando da situao. verdade

    que peco, mas peco para pr termo ao pecado, para no

    continuar a excitar-me, para arrancar este espinho que me

    atormenta a carne, para no ser levado a cometer maiores

    pecados. O Senhor sabe-o bem. Sentiu-se inundado por uma

    sbita ternura por ele mesmo. Pobre de mim! Sou um homem

    fraco, pensava, enquanto, com o passo poderoso, martelava a

    calada imunda. Sou um fraco e ningum me ajuda. Stella!

    Diga-se a verdade! O Senhor sabe como a amei: casmos aos

    vinte anos. Mas ela agora to tirnica e to velha! A

    sensao de fraqueza passara-lhe. Ainda sou um homem

    vigoroso; como posso, pois, contentar-me com uma mulher

    que na cama, antes de a apertar nos meus braos, faz sempre

    o sinal da cruz e que, depois, nos momentos de maior emoo,

    no sabe dizer mais do que: Jesus-Maria! Na altura em que nos

    casmos, quando ela tinha dezasseis anos, tudo isto me

    exaltava, mas agora... Tive sete filhos dela, sete, e nunca lhe

    vi o umbigo. Ser isto justo? Quase gritava, excitado por

    aquela angstia egocntrica. Estar certo? Pergunto a vs

    todos! E dirigindo-se ao arco da Catena: Ela que a

    pecadora!

    Esta tranquilizadora descoberta reconfortou-o, e foi assim

    que bateu porta de Mariannina.

    Duas horas depois j ia de volta, no coup, com o Padre

    Pirrone. Este estava perturbado: os seus irmos de convento

    haviam-no posto ao corrente da situao poltica, muito mais

    tensa do que parecia no isolamento calmo da villa Salina;

  • 22

    receava-se um desembarque dos piemonteses no Sul da ilha,

    pelos lados de Sueca; as autoridades haviam notado no povo

    uma efervescncia silenciosa: a escumalha das cidades

    esperava o primeiro sinal de enfraquecimento do Poder para

    se entregar pilhagem e ao estupro; os padres estavam

    alarmados e trs deles, os mais velhos, haviam sido enviados

    para Npoles, no barco correio da tarde, com os papis do

    convento.

    O Senhor nos proteja e poupe este santssimo Reino.

    O Prncipe quase no o ouvia, imerso como estava numa

    serenidade saciada, mesclado de certa repugnncia.

    Mariannina havia-o olhado com aqueles grandes olhos opacos

    de camponesa e a nada se tinha negado; havia-se mostrado

    humilde e servial: uma espcie de Bendic de saiote de seda.

    Num momento de particular deliquescncia, exclamava: Meu

    Prncipe grandalho! Satisfeito, sorria agora com aquilo; era

    sem dvida melhor que mon chat ou mon singe blond1

    que

    denunciavam os momentos homlogos de Sarah, aquela

    prostitutazita parisiense que ele havia frequentado quando h

    anos, pelo Congresso de Astronomia, lhe haviam dado a

    medalha de ouro. Melhor que mon chat sem dvida; muito

    melhor que Jesus-Maria; pelo menos no era sacrilgio. Era

    boa rapariga a Mariannina; havia de trazer-lhe seis metros de

    seda vermelha, da prxima vez que fosse ter com ela.

    Mas, tambm, que tristeza: aquela carne jovem to

    manipulada, aquele impudor resignado; e ele prprio, o que

    era? Um porco e nada mais. Veio-lhe cabea um verso que

    lera por acaso numa livraria de Paris, ao folhear um volume de

    cujo autor j no se lembrava, certamente um daqueles poetas

    que a Frana produz e esquece todas as semanas.

    Revia a pilha amarelo-limo dos exemplares por vender, a

    pgina, uma estranha pgina, e de novo ouvia aqueles versos

    com que uma poesia extravagante terminava:

    1 Em francs no original, como, alis, muitas outras palavras e frases no se traduzem.

    (Nota do tradutor.)

  • 23

    ... donnez-moi la force et le courage

    de contempler mon coeur et mon corps sans dgout.

    E, enquanto o Padre Pirrone continuava a ocupar-se de um

    tal La Farina e de um tal Crispi, o Grandalho adormeceu,

    numa espcie de euforia desesperada, embalado pelo trote dos

    baios, aos quais a luz oscilante dos lampies iluminava as

    ndias garupas. Acordou na curva da estrada, mesmo defronte

    da villa Falconri. Tambm aquele um bom rapaz que vai

    atiando o fogo que o h-de queimar.

    Ao entrar no quarto matrimonial, quando viu a pobre

    Stella, a dormir, com os cabelos bem arrumados na touca,

    toda suspirosa, no enorme e altssimo leito de cobre,

    comoveu-se e enterneceu-se. Deu-me sete filhos, e foi

    minha, apenas minha.

    Um cheiro a valeriana flutuava no quarto, ltimo vestgio

    da crise histrica.

    Pobrezinha da minha Stella, afligia-se ele ao subir para

    a cama. As horas passaram e no conseguia dormir: Deus, com

    mo poderosa, misturara no seu pensamento trs fogos: o das

    carcias da Mariannina, o dos versos franceses e, ameaador, o

    das fogueiras das montanhas.

    Pela manh, contudo, a Princesa teve ocasio de fazer o

    sinal da cruz.

    Na manh seguinte, o sol iluminou um Prncipe

    revigorado. Havia j tomado o caf e, de roupo vermelho com

    flores negras, barbeava-se diante do espelho; Bendic apoiava

    a enorme cabea na pantufa. Barbeava a face direita, quando

    viu aparecer no espelho atrs de si, o rosto de um rapaz, um

    rosto magro, fino, com uma expresso de ironia um pouco

    receosa. No se voltou e continuou a barbear-se.

    Tancredo, que andaste tu a fazer a noite passada?

    Bons dias, tio. Que andei eu a fazer? Absolutamente

    nada: estive com uns amigos. Uma santa noite; ao contrrio de

  • 24

    certas pessoas minhas conhecidas que foram divertir-se a

    Palermo.

    O Prncipe aplicou-se a barbear bem aquele bocado de

    pele um tanto difcil entre o lbio e o queixo. A voz

    ligeiramente roufenha do sobrinho tinha uma vivacidade to

    juvenil que era impossvel zangar-se; mas talvez fosse lcito

    surpreender-se. Voltou-se, e, com a toalha sob o queixo, olhou

    o sobrinho. Este estava de fato de caa, casaco elegante,

    polainas altas.

    E posso saber quem so essas pessoas conhecidas?

    Tu, Tiozo, tu. Vi-te com estes meus olhos no posto da

    guarda da villa Airoldi, quando falavas com o sargento. Bonita

    coisa, na tua idade! E em companhia de um reverendssimo

    padre! Velhos libertinos!

    J estava a ser insolente de mais; julgava que podia

    permitir-se tudo. Entre as plpebras semicerradas aqueles

    olhos azuis-escuros, os olhos da me e os seus prprios,

    fixavam-no, sorridentes. O Prncipe sentiu-se ofendido: o

    rapaz no sabia at onde podia ir; faltava-lhe, porm, a

    coragem de ralhar-lhe; de resto, ele tinha razo.

    Mas porque ests tu assim vestido? O que ? Um baile

    de mscaras logo de manh?

    O rapaz tornou-se srio; o seu rosto triangular tomou uma

    inesperada expresso de virilidade.

    Vou-me embora, tio, parto daqui a uma hora. Vim dizer-

    te adeus.

    O pobre Salina sentiu apertar-se-lhe o corao.

    Um duelo?

    Sim. Um grande duelo com o rei Francisquinho-Deus-te-

    Guarde. Vou para as montanhas, para Ficuzza; no o digas a

    ningum, sobretudo a Paulo. Vo acontecer grandes coisas,

    tio, e no quero ficar em casa. De resto se c ficasse

    apanhavam-me logo.

  • 25

    O Prncipe teve uma das suas costumadas e inesperadas

    vises: uma cena cruel de guerrilhas, descargas no meio dos

    bosques, e o seu Tancredo por terra, de tripas mostra, tal

    como acontecera quele desgraado soldado.

    Ests doido, meu filho! Ires meter-te com aquela gente;

    so todos uma scia de bandidos e aldrabes; um Falconeri

    deve estar connosco, do lado do Rei.

    Os olhos voltaram a sorrir.

    Do lado do Rei, com certeza, mas de que Rei?

    O rapaz teve um daqueles seus acessos de seriedade que

    o tornavam impenetrvel e querido.

    Se ns no estivermos l, eles fazem uma repblica. Se

    queremos que tudo fique como est preciso que tudo mude.

    Expliquei-me bem? Um pouco comovido abraou o tio.

    At vista, at breve. Voltarei com a bandeira tricolor.

    A retrica dos amigos havia tambm marcado um pouco o

    sobrinho; mas no, naquela voz roufenha havia um acento que

    desmentia a nfase. Que rapaz! Dizendo ou fazendo

    palermices; ao mesmo tempo, contradizendo-as. E o seu Paulo

    que naquele momento devia estar certamente a vigiar a

    digesto de Guiscardo! Este, sim, era o seu verdadeiro filho. O

    Prncipe levantou-se pressa, arrancou a toalha do pescoo,

    remexeu numa caixa.

    Tancredo, Tancredo, espera!

    Correu atrs do sobrinho, ps-lhe na algibeira um rolo de

    moedas de oiro e apertou-lhe o ombro. Este ria.

    Subsidias agora a revoluo! Obrigado, Tiozo, at

    breve, d um grande abrao meu tia.

    E precipitou-se pela escada.

    Chamou Bendic, que seguia o amigo enchendo a villa de

    ladridos alegres. Depois, terminou a barba e lavou a cara. O

    criado veio calar e vestir o Prncipe. O tricolor! Bravo, o

    tricolor! Enchem a boca com estas palavras, os patifes. E que

  • 26

    significa aquele sinal geomtrico, macaqueado dos franceses,

    e to feio em comparao com a nossa bandeira branca com o

    lrio de oiro no centro? E que se pode esperar de um

    amontoado de cores berrantes?

    Era o momento de pr volta do pescoo a monumental

    gravata de cetim negro. Operao difcil durante a qual era

    bom que se suspendessem todas as meditaes polticas: uma

    volta, duas voltas, trs voltas. Os enormes e delicados dedos

    compunham as pregas, alisavam as rugas, pregavam na seda a

    pequena cabea de Medusa de olhos de rubi.

    Um colete lavado. No vs que este est sujo?

    O criado ergueu-se nas pontas dos ps para lhe enfiar a

    sobrecasaca castanha; perfumou-lhe um leno com trs gotas

    de bergamota e deu-lho; as chaves, o relgio de corrente, o

    dinheiro foi ele que os meteu na algibeira. Olhou-se ao

    espelho: impecvel. Era ainda um belo homem! Velho

    libertino! Uma brincadeira pesada de Tancredo! Queria v-lo

    na minha idade, um carga de ossos como ele .

    As suas passadas vigorosas faziam tinir os vidros dos

    sales que atravessava. A casa estava serena, luminosa e em

    ordem, e, sobretudo, era sua. Descendo as escadas,

    compreendeu. Se quisermos que tudo fique como est...

    Tancredo era um grande homem: sempre o tinha pensado.

    Os escritrios da administrao estavam ainda desertos,

    silenciosamente iluminados pelo sol que atravessava as

    persianas corridas. Mesmo sendo o lugar da villa destinado

    prtica das maiores frivolidades, o seu aspecto era de calma

    austeridade. Nas paredes caiadas, reflectindo-se no soalho

    encerado, pendiam enormes quadros representando as

    propriedades da casa de Salina; em molduras negras e

    douradas viam-se pintadas a cores vivas: Salina, a ilha das

    montanhas gmeas, rodeada pela renda espumante de um mar

    onde caracolavam galeras embandeiradas: Querceta, com as

    suas casas baixas volta da Igreja Matriz, para onde

    convergiam grupos de peregrinos azulados; Ragattisi,

    apertada entre vales; Argivocale, minscula na enorme seara

  • 27

    salpicada de camponeses no trabalho; Donnafugata, com o seu

    palcio barroco, para onde se dirigiam carruagens escarlates,

    verdes, douradas, carregadas, ao que parece, de garrafas e

    violinos; e muitas outras ainda, todas protegidas por um cu

    limpo e tranquilizador e pelo Leopardo sorrindo entre os

    compridos bigodes. Todos com um ar de resta, todos

    desejosos de exprimir o iluminado imprio, directo ou

    indirecto, da Casa de Salina: ingnuas obras-primas de arte

    rstica do sculo anterior, que no podiam, porm, delimitar

    extremas, precisar as reas ou os rendimentos, coisas que de

    facto permaneciam desconhecidas. As riquezas com muitos

    sculos de existncia haviam-se transformado em arrebiques,

    em luxo, em prazeres, e nada mais; a abolio dos direitos

    feudais havia decapitado ao mesmo tempo as obrigaes e os

    privilgios; a riqueza, como um vinho velho, havia deixado

    cair no fundo da pipa as borras da cobia, dos cuidados, e

    mesmo as da prudncia, para conservar apenas o calor e a cor.

    E, assim, acabava por se destruir a ela prpria: esta riqueza,

    que havia atingido o seu objectivo, compunha-se agora apenas

    de leos essenciais e, como os leos essenciais, evaporava-se

    rapidamente. E j algumas daquelas propriedades de ar festivo

    haviam levantado voo e delas restavam apenas aquelas telas

    pintalgadas e os seus nomes. Outras pareciam aquelas

    andorinhas de Setembro que, embora ainda presentes, j esto

    reunidas em grande gritaria nas rvores, prestes a partir. Mas

    eram tantas...; parecia que jamais poderiam acabar.

    Apesar de tudo, e como habitualmente, a sensao do

    Prncipe ao entrar no escritrio foi desagradvel. No meio do

    compartimento erguia-se, como uma torre, uma secretria com

    dezenas de gavetas, nichos, concavidades, esconderijos,

    tampos; aquela massa de madeira amarela com embutidos

    negros tinha tantos alapes e outros mecanismos como um

    palco teatral; havia tampos, planos corredios e dispositivos

    secretos, que ningum, excepto os ladres, sabia fazer

    funcionar. Estava coberta de papis e, se bem que a

    previdncia do Prncipe tivesse tido o cuidado de uma boa

    parte deles se referir aos saborosos domnios da astronomia, o

  • 28

    resto era suficiente para encher de desagrado o corao do

    Prncipe. Veio-lhe subitamente idea a secretria do Rei

    Fernando em Caserta, tambm ela cheia de decises a tomar, e

    como ela capaz de dar a iluso de que interferia na torrente

    do destino que, muito ao contrrio, corria livremente noutro

    vale.

    Salina pensou numa droga h pouco descoberta nos

    Estados Unidos da Amrica, que permitia que as pessoas no

    sofressem durante as operaes mais graves e que fossem

    felizes no meio das suas desventuras. Haviam-na baptizado

    com o nome de morfina, este grosseiro substituto qumico do

    estoicismo antigo, da resignao crist. Para o pobre Rei

    aquela administrao fantasmagrica substitua a morfina; ele,

    Salina, tinha tambm a sua e de espcie mais requintada: a

    astronomia. Expulsando as imagens de Ragattisi perdida e de

    Argivocale oscilante, mergulhou, pois, na leitura do mais

    recente nmero do Journal ds Savants. Ls dernires

    observa-tions de l'Observatoir de Greenwich prsentent un inte-

    rt ou t particulier...

    Em breve, porm, foi obrigado a exilar-se daquelas

    geladas regies estelares. Don Ciccio Ferrara, o guarda-

    livros, entrou.

    Era um homenzinho seco que escondia a sua alma de

    liberal ambicioso e rapace por detrs de uns culos

    tranquilizadores e de gravatas imaculadas. Naquela manh

    apresentou-se mais animado que o costume: percebia-se

    perfeitamente que as mesmas notcias que haviam deprimido

    o Padre Pirrone tinham agido sobre ele como um excitante.

    Tristes tempos, Excelncia disse depois dos

    cumprimentos rituais. Vo acontecer grandes desgraas,

    mas depois de uma certa confuso e de alguns tiros tudo

    comear a correr melhor; vai haver uma nova poca de glria

    para a nossa Siclia; se no fosse o facto de tantos rapazes

    terem de perder a pele, s haveria razo para estarmos

    contentes.

  • 29

    O Prncipe resmungava, sem, contudo, exprimir uma

    opinio.

    Don Ciccio disse em seguida , preciso pr um

    pouco de ordem na cobrana das rendas de Querceta; h j

    dois anos que no se recebe um tosto.

    A escrita est em dia, Excelncia - era a frase mgica. -

    Falta apenas escrever a don Angelo Mazza, para ele pr a

    aco; hoje mesmo levo a carta a Vossa Senhoria para assinar.

    E afastou-se para ir remexer nos enormes livros da

    escrita.

    Estes, numa caligrafia minuciosa e com dois anos de

    atraso, registavam todas as contas da Casa de Salina, excepto

    as que eram verdadeiramente importantes.

    Ficando de novo s, o Prncipe demorou a mergulhar nas

    nebulosas. Estava irritado, no j contra os acontecimentos

    em si, mas contra a estupidez de don Ciccio, em quem havia

    identificado a futura classe dirigente.

    Exactamente o que o homenzinho disse que no

    verdade. Lamenta os rapazes que vo rebentar, mas, se bem

    conheo a qualidade dos dois adversrios, sero bem poucos;

    precisamente e apenas os que forem necessrios para se

    redigir um comunicado vitorioso em Npoles ou em Turim, o

    que alis d na mesma. Ele, por sua vez, acredita numa poca

    gloriosa para a nossa Siclia como diz, coisa que nos tem

    sido prometida na altura dos muitos desembarques que j

    sofremos desde Nicias. poca que no chegou. E, de resto,

    porque havia ela de chegar? E que ir ento acontecer? Ora!

    Negociaes ao ritmo de descargas inofensivas. Depois tudo

    ficar na mesma, embora tudo tenha mudado.

    Voltaram-lhe cabea as palavras de Tancredo, mas agora

    compreendia-lhes todo o alcance. Ficou tranquilo e deixou de

    folhear a revista. Olhava as encostas do monte Pellegrino,

    queimadas, escalavradas, eternas como a misria.

    Pouco depois chegou Russo, o mais caracterstico dos

    seus dependentes, segundo pensava o Prncipe. Esbelto,

  • 30

    embrulhado no sem uma certa elegncia na bunaca de veludo

    canelado, olhos vidos sob uma testa sem remorsos, o homem

    era, para ele, a perfeita expresso de uma classe em ascenso.

    Alis, respeitoso e quase sinceramente afectuoso, pois

    praticava as prprias ladroeiras convencido de exercer um

    direito.

    Imagino como Vossa Senhoria ter ficado aborrecido

    com a partida do senhor Tancredo; mas estou certo de que a

    ausncia dele no vai durar muito e tudo acabar bem.

    Mais uma vez o Prncipe se encontrou perante um dos

    enigmas sicilianos.

    Nesta ilha de segredos onde as portas das casas so

    trancadas e onde os camponeses dizem no conhecer o

    caminho para a sua aldeia que se avista l no monte, a cinco

    minutos da entrada, nesta ilha, apesar de um ostensivo luxo

    de mistrios, a reserva um mito.

    Fez sinal a Russo para se sentar, olhou-o fixamente nos

    olhos.

    Pedro, falemos de homem para homem. Tu tambm

    ests metido na coisa?

    Metido no estava, respondia ele; era pai de famlia e

    estes riscos so para os mais novos como o Sr. Tancredo.

    Pensa que escondo alguma coisa a Vossa Senhoria, que

    como se fosse meu pai?

    No entanto, trs meses antes, havia escondido, no seu

    celeiro, trezentos cestos de limes do Prncipe e sabia que o

    Prncipe o sabia.

    Mas devo dizer que o meu corao est com eles, com

    esses corajosos rapazes.

    Levantou-se para dar entrada a Bendic, que fazia tremer

    a porta sob os seus assaltos amigveis. Voltou a sentar-se.

    Vossa Senhoria sabe-o; no se pode mais: perseguies,

    interrogatrios, papelada para qualquer coisa, um secreta a

    cada canto da casa; uma pessoa de bem no pode j levar a

  • 31

    sua vida como quiser. Depois, em contrapartida, teremos

    liberdade, segurana, impostos mais pequenos, facilidades,

    comrcio, todos ficaremos melhor; s os padres vo perder. O

    Senhor protege os pobrezinhos como eu e no a eles.

    O Prncipe sorria: sabia que era o prprio Russo que

    atravs de interposta pessoa desejava comprar Argi-vocale.

    Sero dias de muita desordem e confuso, mas a villa

    Sabina vai ficar segura que nem uma rocha; Vossa Senhoria o

    nosso pai e eu tenho muitos amigos aqui. Os piemonteses

    viro de chapu na mo apenas para apresentar cumprimentos

    a Vossa Senhoria. E afinal o tio e tutor de D. Tancredo.

    O Prncipe sentia-se humilhado: neste momento via-se

    descido categoria de protegido dos amigos de Russo; o seu

    nico mrito, ao que parecia, era o de ser tio de Tancredo.

    Dentro de uma semana acabarei por descobrir que vou salvar

    a vida porque tenho Bendic c em casa.

    Torcia uma orelha do co entre os dedos, com tal fora

    que o pobre animal gania, honrado sem dvida, mas sofredor.

    Pouco depois, algumas palavras de Russo deram certo

    alvio ao Prncipe.

    Tudo vai ficar melhor, creia-me, Excelncia. Os homens

    honestos e habilidosos podero progredir. O resto ficar como

    dantes.

    Afinal, esta gente, estes liberais do campo, queriam,

    apenas, poder enriquecer mais facilmente. Era tudo. As

    andorinhas iriam levantar voo mais cedo. E nada mais. De

    resto havia ainda muitas no ninho.

    Talvez tenhas razo. Quem sabe?

    Agora havia compreendido o sentido oculto de todas as

    palavras enigmticas de Tancredo, as retricas de Ferrara; as

    falsas, mas reveladoras, de Russo, haviam-lhe entregue o seu

    tranquilizador segredo. Muita coisa iria passar-se, mas tudo

    seria uma comdia; uma ruidosa e romntica comdia com

    algumas gotas de sangue nas roupas burlescas. A Itlia era o

    pas dos reajustamentos, no havia nela a fria francesa; mas

  • 32

    tambm que havia acontecido de novo em Frana com

    excepo do movimento revolucionrio de Junho de 48? Tinha

    vontade de dizer a Russo, no que foi impedido pela sua inata

    cortesia:

    J compreendi tudo muito bem. Vocs no nos querem

    aniquilar a ns, os vossos pais. Querem apenas tomar o

    nosso lugar. Com doura, com boas maneiras, metendo-nos

    talvez na algibeira alguns milhares de ducados. No assim?

    O teu sobrinho, caro Russo, julgar sinceramente ser baro; e

    tu tornar-te-s - que sei eu! - no descendente de um gro-

    duque de Moscovo, por causa do teu nome, apesar de seres o

    filho de um labrego com o cabelo ruo, como exactamente o

    teu nome indica. E tua filha, antes disso, ter desposado um

    de ns, talvez at o prprio Tancredo, com os seus olhos

    azuis, e as suas mos finas. De resto, bela, e uma vez que

    comece a lavar-se... Porque tudo fica na mesma. No fundo na

    mesma, apenas com uma insensvel substituio de classes. As

    minhas chaves douradas de camareiro, o cordo vermelho de

    S. Gennaro, tero de ficar na gaveta e iro acabar numa vitrina

    do filho de Paulo; mas os Salinas ficaro e talvez tenham

    qualquer compensao: o Senado de Sardenha, a fita verde de

    S. Maurcio. Brincadeiras!

    Levantou-se:

    Pedro, fala com os teus amigos. H c bastantes

    raparigas, preciso no assust-las.

    Fique Vossa Excelncia sossegado, que j falei. A villa

    Salina ficar to calma como um convento.

    E sorriu, com ar irnico e benvolo.

    D. Fabrcio saiu seguido de Bendic. Queria subir para

    procurar o Padre Pirrone, mas o olhar suplicante do co

    obrigou-o a dirigir-se para o jardim; Bendic, na verdade,

    conservava ainda na memria exaltadas recordaes do belo

    trabalho da tarde anterior e queria termin-lo segundo todas

    as regras. O jardim estava ainda mais odoroso que na vspera

    e sob o sol matutino o oiro da accia sobressaa menos. Mas

  • 33

    os soberanos? Os nossos soberanos? E que feito da

    legitimidade? Este pensamento perturbou-o um momento;

    no se podia iludir. Por instantes foi como Mlvica. Estes

    Fernandos, estes Franciscos, to desprezados, apareceram-lhe

    como irmos mais velhos, confiantes, afectuosos, justos,

    autnticos reis. Mas j as foras de defesa da sua calma

    interior, sempre to vigilantes nele, acorriam em socorro, com

    a infantaria do Direito, com a artilharia da Histria. E a

    Frana? No , acaso, ilegtimo Napoleo III? E no vivem

    talvez felizes os Franceses sob o reinado deste Imperador

    iluminado que os conduzir certamente aos mais altos

    destinos? De resto, entendamo-nos bem. Acaso estaria ele,

    Carlos III, perfeitamente legitimado? Tambm a batalha de

    Bitonto foi, como as futuras batalhas de Bisaquino ou de

    Corleone ou qualquer outra em que os piemonteses recebero

    os nossos paulada, uma daquelas batalhas que se fazem para

    que tudo fique na mesma. De resto nem mesmo Jpiter era o

    rei legtimo do Olimpo. Como era evidente, o golpe de estado

    de Jpiter contra Saturno acabaria por trazer-lhe as estrelas ao

    esprito.

    Deixou Bendic s voltas com o seu prprio dinamismo,

    subiu a escada, atravessou os sales onde as filhas falavam

    das amigas do convento (houve um ranger de sedas quando,

    sua passagem, as raparigas se levantaram), subiu uma

    escadinha comprida e entrou na grande claridade azul do

    observatrio. O Padre Pirrone, com aquele aspecto sereno do

    padre que acabou de dizer a sua missa e que j tomou um caf

    forte com biscoitos de Monreale, estava sentado, absorvido

    nas suas frmulas algbricas. Os dois telescpios e os trs

    culos, cegos pelo sol, com a tampa negra sobre as lentes, l

    estavam pacientemente agachados, como animais bem

    amestrados que sabem que s lhes daro a comida noite.

    A vista do Prncipe arrancou o padre aos seus clculos e

    trouxe-lhe memria o que se havia passado na noite

    anterior. Levantou-se, cumprimentou cerimoniosamente, mas

    no pde deixar de dizer.

  • 34

    Vossa Excelncia vem confessar-se?

    O Prncipe, a quem o sono e as conversas da manh

    haviam feito esquecer o episdio nocturno, espantou-se.

    Confessar-me? Mas hoje no sbado! Depois recordou-

    se e sorriu.

    Mas, na verdade, padre, no h necessidade alguma

    disso. J sabe tudo.

    Esta insistncia na cumplicidade imposta irritou o jesuta.

    Excelncia, a eficcia da confisso no est s em

    contar os factos, mas em arrepender-se de tudo quanto se

    cometeu de mal. E, enquanto no vos tiverdes arrependido e

    no o tenhais demonstrado a mim, ficareis em pecado mortal,

    quer eu conhea ou no as vossas aces.

    Soprou meticulosamente um cabelo da manga e voltou a

    mergulhar nas suas abstraces.

    Mas tanta era a calma que as descobertas polticas da

    manh haviam trazido alma do Prncipe, que este no fez

    mais do que sorrir daquilo que noutra altura lhe teria parecido

    insolncia. Abriu uma das janelas da torre: a paisagem exibia

    todas as suas belezas. Sob o fermento de um sol forte todas as

    coisas pareciam perder o peso: o mar, ao fundo, era uma

    mancha de pura cor; as montanhas que, de noite, lhe haviam

    parecido esconder terrveis armadilhas, eram agora massas de

    vapor prestes a dissolver-se; mesmo a torva Palermo, como

    um rebanho aos ps do pastor, estendia-se, saciada, ao redor

    dos conventos; no porto, os navios estrangeiros ancorados,

    enviados na previso de distrbios, no bastavam para pr

    uma nota de perigo naquela calma majestosa. O sol daquela

    manh de treze de Maio, embora longe do mximo da sua

    fora, mostrava-se o autntico soberano da Siclia: um sol

    violento e impdico, um sol narcotizante que anulava as

    vontades e mantinha todas as coisas numa imobilidade servil,

    embalada em sonhos violentos, em violncias que

    participassem da prpria arbitrariedade dos sonhos.

  • 35

    Sero necessrios muitos Vtor Manuis para mudar este

    filtro mgico que nos vem l do alto.

    O Padre Pirrone havia-se levantado e, compondo o cinto,

    dirigiu-se para o Prncipe com a mo estendida:

    Excelncia, fui muito brusco. Conservai por mim a

    vossa benevolncia, mas dai-me ouvidos, confessai-vos!

    O gelo fora rompido. O Prncipe pde ento informar o

    Padre Pirrone das suas intuies polticas; o jesuta, porm,

    estava bem longe de compartilhar do seu alvio; pelo contrrio

    tornou-se mordaz.

    Em poucas palavras, vs, senhores, ponde-vos todos de

    acordo com os liberais que digo eu! , exactamente com os

    maes. E nossa custa, custa da Igreja. Porque claro que

    os nossos bens, os bens que so patrimnio dos pobres, sero

    extorquidos e divididos entre os cabecilhas mais

    desvergonhados; e quem matar depois a fome multido de

    infelizes que ainda hoje a Igreja sustenta e guia?

    O Prncipe calava-se.

    E que se far ento para apaziguar estas turbas

    desesperadas? Vou dizer-vos, Excelncia. Deitar-se-lhe- para

    seu repasto, primeiro, uma parte, depois uma segunda e, por

    fim, todas as vossas terras. E, assim, Deus ter feito a Justia

    ainda que por intermdio dos maes. O Senhor curava os

    cegos de corpo; mas como acabaro os cegos de esprito?

    O infeliz padre arfava. dor sincera da prevista perda do

    patrimnio da Igreja unia-se agora o remorso por se ter

    deixado de novo arrebatar pelas palavras e de novo ter

    ofendido o Prncipe, de quem era sinceramente amigo; se bem

    que houvesse suportado as suas cleras ruidosas, havia-lhe

    tambm experimentado a complacente bondade. Sentado,

    permanecia em expectativa olhando D. Fabrcio, que, com uma

    escovinha, limpava o maquinismo de um culo e parecia

    absorto nesta actividade meticulosa. Momentos depois, este

    levantou-se e limpou demoradamente as mos com um trapo.

    O seu rosto no tinha expresso alguma, os seus olhos claros

  • 36

    pareciam apenas ocupar-se em procurar qualquer mancha de

    leo que se houvesse refugiado na raiz das unhas. Em baixo,

    volta da villa, o luminoso silncio era profundo e majestoso,

    mais sublinhado que perturbado pelo longnquo ladrar de

    Bendic, que, no fundo do pomar, provocava o co do

    jardineiro, e pelo bater rtmico e surdo do cutelo de

    cozinheiro na tbua, l na cozinha, onde cortava a carne para

    o almoo que se aproximava.

    O sol intenso havia absorvido a turbulncia dos homens e

    a aspereza da terra. O Prncipe aproximou-se da mesa do

    padre, sentou-se e, com o lpis afiado que o Padre Pirrone, na

    sua clera, havia abandonado, ps-se a desenhar esguios lrios

    bourbnicos. Tinha um ar srio, mas to sereno que as

    preocupaes do Padre Pirrone se desvaneceram.

    No somos cegos, meu caro Padre, somos apenas

    homens. Vivemos numa realidade mvel qual procuramos

    adaptar-nos como as algas que se dobram sob o mpeto das

    ondas do mar. Santa Madre Igreja foi explicitamente

    prometida a imortalidade, mas a ns, como classe social, no.

    Para ns, um paliativo que nos garanta mais cem anos de vida

    equivale eternidade. Poderemos porventura preocuparmo-

    nos com os nossos filhos, talvez com os netos; mas para alm

    daquilo que esperamos poder acariciar com estas mos no

    temos obrigaes. E no posso preocupar-me com o que os

    meus eventuais descendentes sero no ano de 1960. A Igreja,

    essa, sim, deve preocupar-se com isso, pois est destinada a

    no morrer. At no seu desespero est implcito o conforto. E

    acreditais que se ela pudesse agora ou no futuro salvar-se com

    o nosso sacrifcio no o faria? Sem dvida que sim, e faria

    bem.

    O Padre Pirrone estava contente por no ter ofendido o

    Prncipe e, por seu turno, no se ofendeu. Aquela expresso

    desespero da Igreja era inadmissvel; mas o longo hbito da

    confisso tornava-o capaz de apreciar o estado de esprito

    desiludido de D. Fabrcio. Era porm necessrio no deixar

    triunfar o interlocutor.

  • 37

    Tendes dois pecados para me confessar no sbado,

    Excelncia: um da carne, outro do esprito. Lembrai-vos.

    Acalmados os dois, puseram-se a discutir um relatrio

    que era necessrio mandar rapidamente para um observatrio

    estrangeiro, o de Arcetri. Sustentados e guiados, como

    parecia, por nmeros, invisveis naquele momento mas

    presentes, os astros riscavam o espao com as suas

    trajectrias exactas. Fiis s entrevistas, os cometas haviam-se

    habituado a apresentar-se pontualmente perante os que os

    observavam.

    No eram mensageiros de catstrofes como Stella julgava:

    pelo contrrio, a sua prevista apario era o triunfo da razo

    humana que se projectava e participava na sublime

    regularidade dos cus. Deixemos que l em baixo os Bendics

    persigam presas rsticas e que o cutelo do cozinheiro triture a

    carne de animaizinhos inocentes. altura do observatrio as

    fanfarronadas daquele e a crueldade deste fundem-se numa

    harmonia tranquila. O verdadeiro problema viver a vida de

    esprito nos seus momentos mais sublimes; os que mais se

    assemelham mor te.

    Assim pensava o Prncipe, esquecendo as suas eternas

    fantasias e os seus caprichos carnais da vspera. E, graas

    queles momentos de abstraco, ele foi talvez mais

    intimamente absorvido, isto , mais unido ao universo do que

    o poderia fazer a bno do Padre Pirrone. Durante uma meia

    hora daquela manh os deuses do tecto e os macacos das

    tapearias foram de novo remetidos ao silncio. Ningum,

    porm, no salo se apercebeu do facto.

    Quando a sineta os chamou para o almoo, ambos

    estavam tranquilizados, quer sobre a compreenso da

    conjuntura poltica quer quanto ao superamento desta prpria

    compreenso; uma atmosfera de desusada distenso se

    espalhou pela villa. A refeio do meio-dia era a principal do

    dia e decorreu sempre, graas a Deus, sem complicaes.

    Imagine-se que um dos brincos que emolduravam o rosto de

    sua filha Carolina, que tinha vinte anos, no tendo ficado bem

  • 38

    seguro pela pina, soltou-se e foi cair dentro do prato. O

    incidente que, noutro dia, poderia ter sido desagradvel,

    apenas fez crescer desta vez a alegria. Quando o irmo que

    estava ao lado da rapariga pegou no brinco e fixou-o no

    pescoo como um escapulrio, at o Prncipe se permitiu

    sorrir. A partida, o destino, os objectivos de Tancredo eram

    agora conhecidos de todos e toda a gente falava nisso, excepto

    Paulo, que continuava a comer em silncio. De resto ningum

    estava preocupado, excepo do Prncipe, que escondia uma

    certa angstia no fundo do seu corao, e Concetta, que era a

    nica a conservar uma sombra no belo rosto. A rapariga deve

    ter o seu fraco por aquele mariola. Daria um belo casal. Mas

    receio que Tancredo olhe para mais alto, quer dizer para mais

    baixo. Naquele dia, uma vez que a calma poltica tinha

    afugentado as nvoas que habitualmente a obscureciam, a

    bonomia fundamental do Prncipe vinha superfcie. Para

    tranquilizar a filha ps-se a explicar a ineficcia das

    espingardas do exrcito real; falou sobre a falta de estrias dos

    canos daquelas enormes espingardas e sobre a pequena fora

    de penetrao de que eram dotados os projcteis que delas

    saam; explicaes tcnicas, alm do mais, de m f, que

    poucos compreenderam, que no convenceram ningum, mas

    que consolaram todos, incluindo Concetta, pois haviam

    conseguido transformar o caos extremamente concreto e

    srdido que a guerra na realidade num puro e simples

    diagrama de linhas de fora.

    No fim do almoo foi servido um pudim de gelatina com

    rum. Era o doce preferido do Prncipe, e a Princesa, grata pelas

    consolaes recebidas, havia tido o cuidado de mand-lo fazer

    logo de manhzinha. Aparecia ameaador com aquela sua

    forma de torreo apoiado em basties e rampas, de paredes

    lisas e escorregadias, impossveis de escalar, encimado por

    uma guarnio vermelha e verde de cerejas e pistcios; era,

    porm, transparente e oscilante e a colher afundava-se nele

    com extrema facilidade. Quando aquela fortaleza cor de mbar

    chegou em frente do filho Francisco Paulo, de dezasseis anos, o

    ltimo a ser servido, j no restavam dele seno muralhas

  • 39

    bombardeadas e blocos desagregados. Excitado pelo aroma do

    licor e pelo gosto delicado daquela milcia multicor, o Prncipe

    divertia-se deveras, assistindo ao rpido desmantelamento da

    sombria fortaleza sob o assalto daqueles apetites. Um dos seus

    copos havia ficado meio cheio de Marsala; levantou-o, lanou

    um olhar para toda a famlia, fixando-se mais um instante nos

    olhos azuis de Concetta:

    sade do nosso Tancredo disse.

    Bebeu o vinho de um s trago. As iniciais F. D., que antes

    se destacavam bem ntidas sob a cor dourada do copo cheio,

    deixaram de se ver.

    No escritrio, para onde desceu de novo depois do

    almoo, a luz entrava agora de travs. No sofreu qualquer

    reprovao por parte dos quadros das propriedades, agora na

    sombra.

    Que Vossa Excelncia nos abenoe murmuraram

    Pastorello e Lo Nigro, os dois rendeiros de Ragattisi que

    haviam trazido os carnaggi, aquela parte da renda que se

    pagava em gneros.

    Ali estavam, muito direitos, com os olhos pasmados nas

    caras bem barbeadas e curtidas pelo sol, espalhando um

    cheiro a ovelhas.

    O Prncipe falou-lhes com cordialidade no seu dialecto

    refinado: informou-se sobre as suas famlias, sobre o estado

    dos animais, sobre as perspectivas das colheitas. A seguir

    perguntou-lhes:

    Trouxeram alguma coisa?

    E quando os dois responderam que sim, que estava ali na

    casa ao lado, o Prncipe envergonhou-se um pouco, pois

    percebeu que o colquio fora uma repetio da audincia do

    Rei Fernando.

    Esperem cinco minutos, Ferrara vai dar-lhes os recibos.

    Meteu na mo de cada um dois ducados, o que

    representava, talvez, mais do que o valor que haviam trazido.

  • 40

    Bebam um copo nossa sade.

    E foi ver os carnaggi: no cho estavam quatro formas de

    queijos frescos de doze rotoli, ou seja dez quilos cada;

    observou-os com indiferena; detestava aquele queijo. Havia

    ainda seis cordeiros, os ltimos do ano, com as cabeas

    pateticamente pendidas acima da grande facada pela qual a

    vida havia sado h poucas horas; tam-brn os seus ventres

    haviam sido abertos e os intestinos irisados saam para fora.

    O Senhor receba as suas almas, pensou, recordando o

    esventrado de h um ms. Quatro pares de galinhas presas

    pelas patas torciam-se de medo sob o focinho investigador de

    Eendic. Tambm aqui um exemplo de temor intil: o co no

    significa para elas nenhum perigo; nem mesmo comeria um

    osso porque lhe faria mal barriga.

    Desgostou-o, porm, o espectculo de sangue e terror:

    Tu, Pastorello, leva as galinhas para o galinheiro; por

    agora no h necessidade delas na despensa; e a seguir leva

    directamente os cordeiros para a cozinha; aqui esto a sujar. E

    tu, Lo Nigro, vai dizer a Salvador que venha fazer a limpeza

    disto e levar os queijos. E abre a janela para fazer sair o

    cheiro.

    Depois entrou Ferrara, que redigiu os recibos.

    Quando o Prncipe saiu, encontrou Paulo, o primognito,

    Duque de Querceta, que o esperava no gabinete onde, sobre

    um div vermelho, costumava fazer a sesta. O rapaz havia

    reunido toda a sua coragem e pretendia falar-lhe. Baixo,

    magro, de tez olivcea, parecia mais velho que o Prncipe.

    Queria perguntar-te, pap, que atitude vamos tomar

    para com Tancredo, quando o voltarmos a ver.

    O Prncipe percebeu imediatamente e comeou a irritar-se.

    Que queres tu dizer com isso? O que que mudou?

    Mas, pap, no podes certamente aprov-lo: foi juntar-

    se queles patifes que fazem toda esta desordem na Siclia;

    isto coisa que no se faz.

  • 41

    O cime pessoal, o ressentimento do beato contra o primo

    sem preconceitos, do pateta contra o rapaz inteligente,

    haviam-se transformado em argumentos polticos. O Prncipe

    ficou to indignado que nem mesmo mandou o filho sentar-se.

    melhor fazer palermices que estar todo o dia a olhar a

    caca dos cavalos. Gosto mais de Tancredo que anteriormente;

    e alm disso no se trata de palermices; se tu podes mandar

    fazer cartes de visita com o nome de Duque de Querceta e se,

    quando eu desaparecer, vais herdar uns tostes, deve-los a

    Tancredo e a outros como ele. Vai-te embora, no te autorizo a

    falar-me mais no assunto. Aqui, quem manda sou eu.

    Depois, acalmou-se e substituiu a ira pela ironia.

    Vai-te embora, meu filho, quero dormir. Vai falar de

    poltica com Guiscardo. Compreender-vos-eis bem.

    E enquanto Paulo, paralisado, fechava a porta atrs de si,

    o Prncipe tirou a sobrecasaca e as botinas e, fazendo gemer o

    div sob o seu peso, adormeceu tranquilamente.

    Acordou quando entrou o criado, trazendo numa bandeja

    um jornal e um bilhete. Vinham de Palermo, enviados pelo seu

    cunhado Mlvica, e trazidos, pouco antes, por um criado a

    cavalo. Ainda um pouco estremunhado pela soneca da tarde o

    Prncipe abriu a carta: Caro Fabrcio. Escrevo-te num estado

    de prostrao sem limites. Li as terrveis notcias que vm no

    jornal. Os piemonteses desembarcaram; estamos todos perdi-

    dos. Esta noite, eu e toda a minha famlia vamo-nos refugiar

    nos barcos ingleses. Certamente hs-de querer fazer o mesmo;

    se assim o entenderes mandarei reservar-te alguns lugares. O

    Senhor salve o nosso amado Rei. Um abrao. Teu Ciccio.

    Voltou a dobrar o bilhete, meteu-o na algibeira e desatou

    a rir alto. Aquele Mlvica! Havia sido sempre um medricas.

    No compreendera nada e agora punha-se a tremer. Deixava o

    palcio guarda dos criados. Desta vez, sim, iria encontr-lo

    vazio! A propsito, preciso que Paulo v ficar em Palermo;

    casas abandonadas neste momento, so casas perdidas. Falar-

    lhe-ei ao jantar.

  • 42

    Abriu o jornal. Um acto de flagrante pirataria foi

    cometido em 11 de Maro com o desembarque de tropas na

    costa de Marsala. Relatrios posteriores esclareceram que o

    bando desembarcado de oitocentos homens e comandado

    por Garibaldi. Assim que aqueles flibusteiros puseram o p em

    terra evitaram cuidadosamente o encontro com as tropas reais

    e, segundo certas notcias, dirigem-se para Castelvetrano,

    ameaando os cidados pacficos e no poupando pilhagem

    e s devastaes, etc., etc.

    O nome de Garibaldi perturbou-o um pouco: aquele

    Aventureiro, todo cabelo e barba, era um mazziniano puro. Era

    capaz de ter pensado em complicaes. Mas, se o rei o

    Cavalheiro o havia mandado para aqui isso queria dizer que

    tinha confiana nele. Haviam de o moderar.

    Tranquilizado, penteou-se, voltou a calar as botas e a

    vestir a sobrecasaca; guardou o jornal numa gaveta. Era quase

    a hora do rosrio, mas o salo ainda estava vazio; sentou-se

    num sof e, enquanto esperava, reparou, que o Vulcano do

    tecto se parecia com as litografias de Garibaldi que havia visto

    em Turim. Sorriu: Um cornudo.

    A famlia comeava a chegar: a seda das saias sussurrava

    e os mais novos vinham ainda a brincar uns com os outros.

    Atrs da porta ouviu-se a costumada questincula entre os

    criados e Bendic, que a todo o custo queria tomar parte na

    funo. Um raio de sol carregado de poalha iluminava os

    macacos maldosos. Ajoelhou-se.

    Salve Regina, Mater misericordiae.

  • 43

    CAPTULO II

    A CAMINHO DE DONNAFUGATA - A LTIMA PARAGEM; O

    DESENROLAR DA VIAGEM - CHEGADA A DONNAFUGATA - NA

    IGREJA - DON ONFRIO ROTOLO - CONVERSA NA CASA DE

    BANHO - A FONTE DE ANFITRITE - SURPRESA ANTES DO

    JANTAR - O JANTAR; AS VRIAS REACES - D. FABRCIO E AS

    ESTRELAS - VISITA AO CONVENTO - O QUE SE AVISTA DA

    JANELA

    Agosto, 1860

    As rvores! L esto as rvores!

    O grito partiu da primeira carruagem e percorreu toda a

    fila das outras quatro que lhe vinham atrs, quase invisveis

    numa nuvem de poeira branca; s janelas das carruagens os

    rostos suados exibiram um ar de satisfao cansada.

    A bem dizer, as rvores no passavam de trs eucaliptos,

    os mais esgrouviados filhos da me natura; eram, porm, os

    primeiros que se avistavam desde que a famlia Salina havia

    deixado Bisacquino, s seis da manh.

    Eram onze horas e, durante aquelas cinco horas, apenas

    se havia avistado a ondulao preguiosa das colinas amarelas

    brilhando ao sol. O trote dos cavalos nos percursos planos

    havia, em breve, alternado com as longas e lentas arrancadas

    nas subidas e com o passo prudente das descidas; passo e

    trote que, alis, se haviam igualmente diludo no fluxo

    contnuo do tinido dos guizos, nica manifestao sonora

    naquele ambiente abrasador. Haviam atravessado aldeolas

    pintadas de um azul-plido; haviam atravessado, sobre pontes

  • 44

    de inslita magnificncia, ribeiros inteiramente secos; haviam

    ladeado ravinas to desesperadas que nem mesmo o milho

    saburro e as giestas conseguiam consol-las.

    Nem uma rvore, nem uma gota de gua: sol e poeira. No

    interior das carruagens, fechadas por causa do sol e do p, a

    temperatura havia certamente atingido os cinquenta graus.

    Aquelas rvores sedentas, gesticulando sob um cu

    desbotado, anunciavam uma quantidade de coisas: que

    estavam a menos de duas horas do termo da viagem; que

    entravam nos domnios da casa de Salina; que podiam comer e

    mesmo talvez lavar a cara na gua infecta dos poos.

    Dez minutos depois chegavam ao casal de Rampin-zri:

    uma casa enorme habitada apenas um ms por ano pelos

    trabalhadores, mulas e outros animais que l se juntavam no

    tempo das colheitas. Por cima da porta, solidssima mas

    arrombada, um Leopardo de pedra danava, apesar de as

    pedradas lhe terem quebrado as pernas; ao lado da casa, e

    com os eucaliptos de sentinela, um poo fundo oferecia em

    silncio os variados servios de que era capaz: podia servir de

    piscina, bebedouro, priso e cemitrio. Matava a sede,

    propagava o tifo, guardava homens sequestrados, escondia

    carcaas de animais e de homens at reduzi-los a esqueletos

    polidos e annimos.

    Toda a famlia Salina desceu das carruagens. O Prncipe,

    satisfeito pela ideia de chegar em breve sua querida

    Donnafugata; a Princesa, ao mesmo tempo irritada e prostrada,

    mas a quem a serenidade do marido dava foras; as raparigas,

    cansadas; os rapazitos, excitados pela novidade que o calor

    no havia podido dominar; made-moiselle Dombreuil, a

    governante francesa, completa-mente desfeita e que,

    recordando os anos passados na Arglia, em casa da famlia do

    marechal Bugeaud, ia gemendo: Mon Dieu, mon Dieu, c'est pire

    qu'en Afri-quel, enquanto enxugava o narizinho; o Padre

    Pirrone, a quem uma leitura apenas iniciada do brevirio havia

    granjeado um sono que lhe fizera parecer pequeno o trajecto,

    era o mais fresco de todos; uma criada de quarto e dois

  • 45

    criados, gente da cidade irritada pelos aspectos inacostumados

    do campo; e Bendic que, saltando para fora da ltima

    carruagem, barafustava contra as insinuaes fnebres das

    gralhas que, naquela luz, esvoaavam baixo, volta.

    Estavam todos brancos de p, at mesmo as

    sobrancelhas, os lbios e as rabonas; pequenas nuvens

    brancas formavam-se volta daqueles que, junto da casa,

    sacudiam o p uns aos outros.

    No meio daquela porcaria brilhava ainda mais a correco

    elegante de Tancredo. Havia viajado a cavalo e, chegado ao

    casal meia hora antes da caravana, tivera tempo de sacudir o

    p, lavar-se e mudar a gravata branca. Ao tirar gua do tal

    poo de variadas aplicaes, olhara-se um momento no

    espelho do balde e ficara satisfeito consigo; com aquela banda

    negra sobre o olho direito que recordava, at porque no a

    tratava, a ferida recebida h trs meses nos combates de

    Palermo; com o outro olho azul-escuro que parecia ter

    assumido o encargo de exprimir a malcia do que se havia

    temporariamente eclipsado; com o fio vermelho da gravata

    que, discretamente, aludia camisa vermelha que havia

    usado. Ajudou a Princesa a descer da carruagem, escovou o p

    do chapu alto do Prncipe com a manga, distribuiu caramelos

    s primas e piadas aos primitos, quase se ajoelhou perante o

    jesuta, retribuiu os mpetos passionais de Bendic, consolou

    mademoiselle Dom-breuil, encantou a todos.

    Os cocheiros obrigavam os cavalos a dar umas voltas a

    passo para os refrescar antes de lhes dar de beber; no

    pequeno rectngulo de sombra projectada pela casa os criados

    estendiam as toalhas sobre a palha que havia ficado da

    debulha. Perto do prestvel poo iniciaram a refeio. volta

    ondulava a campina fnebre, amarela do restolho, negra dos

    restos queimados; o lamento das cigarras enchia o cu; era

    como o estertor de uma Siclia alucinada que, no fim de

    Agosto, em vo, esperava a chuva.

    Uma hora depois, refrescados, puseram-se todos, de novo,

    a caminho.

  • 46

    Apesar de os cavalos cansados andarem mais devagar, j a

    ltima etapa de percurso lhes parecia pequena; a paisagem,

    agora familiar, havia atenuado o seu ar sinistro. Iam

    reconhecendo os lugares conhecidos, meta rida de passeios e

    piqueniques dos anos anteriores; o despenhadeiro da

    Dragonera, a encruzilhada de Misilbesi; da a pouco tempo

    chegariam Madonna delle Grazie, limite mximo para os

    passeios a p desde Donnafugata. A Princesa havia

    adormecido, o Prncipe, sozinho com ela na espaosa

    carruagem, sentia-se feliz. Nunca estivera to contente por ir

    passar trs me