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Laurinda Alves - Um Dia Atrás Do Outro

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Laurinda AlvesUM DIA ATRAS DO OUTROCrónicas da vida real

Prefácio de Mia CoutoSumário

© 2001, Laurinda Alves

Oficina do Livro - Sociedade Editorial, Lda.

Rua Castilho, n.°209, 1.0 Dto.

1070-051 Lisboa

Tel. 213 844 829 -Fax 213 865 711

E-mail: [email protected]ítulo: Um dia atrás do outro

Autoria: Laurinda Alves

Revisão: Teresa Reimão Pinto

Composição: Filipe Infante do Carmo,

em caracteres Galliard, corpo 11

Fotografia: Isabel Pinto

Capa: Tocas

PrefácioAnjos sem céu por Mia Couto0 Princípio de Tudo

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Mãe e filha Estrelas no deserto Paz no mundo A primeira noite Até ao amanhecer 0 escritor e a garça Debaixo da cerejeira 0 dia do julgamento As três irmãs Tarde Demais 0 rapaz e o pássaro Os olhos do Zé Maria Vou ser feliz! No CéuRosas brancas E agora A verdadeira história da Carochinha Sentido religioso Os despojos do diaLadrão e cavalheiro Querida Dona Felisbela Para sempre Campo de saltimbancos Lua de papel A máxima certeza Dona Luciana e os seus doze filhos As mãos e os gestos Cão solteiro 0 circo A casa da falésia João Assis Pacheco Joseph Brodsky Mark Rothko A tocadora de harpa Ensaio sobre a banalidade Calvin & Hobbes

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Dizer «não» Olhos que ouvem Oceano Pacífico0 melhor ladrão do mundo A minha avó Laurinda Véspera de Natal A despedida

PrefácioAnjos sem céu

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É domingo. Abro, lento, a porta da rua para apanhar o jornal. Acto heróico esse de cruzar a fronteira entre a casa e a rua. 0 jornal é o mensageiro entre esses dois mundos.Cumpro esse ritual, todos os domingos. No entanto, não é grande o entusiasmo. Há muito que deixei de ter crença nesse mensageiro que uma mão anónima teima em atirar para o interior do meu território. Há muito que deixei de ser prisioneiro desse regime: a tirania da actualidade. Nos fins de semana chegam, volumosos, os jornais portugueses. Pousam fora do prazo, aves de arribação sempre atrasadas. Pouco importa, eu neles procuro outros sinais, desvios sonâmbulos, anotações à margem da página, no litoral do quotidiano.Não são as notícias pois que me alimentam nessa rotina. Que eu estou como esse velho que lia sempre o mesmo jornal, um antigo, do tempo em que havia boas novidades. Me alenta é encontrar, no meio do papel impresso, uma espécie de cartas de amigos distantes. Falo desses pequenos textos a que chamamos crónicas. Esses textos são relatos de viagem, dessa viagem que fazemos perante um novo deserto: um mundo desertificado de sentidos. Às vezes, as crónicas são indícios que, num mundo agonizante, vai emergindo uma outra ordem. Outras vezes, representam sinais da permanência de um tempo em que fazíamos sentido. Estão esses cronistas fundando uma narrativa de um mundo sem história? De uma história sem mundo?Num quotidiano que nos surpreende pela negativa, numa sociedade que teima em negar confirmação à expectativa e à esperança, o jornalismo propõe-se substituir à realidade e construir-se não apenas como um espelho mas como uma outra realidade. Uma realidade que se instaura pelo seu próprio excesso, pela saturação de imagens que parecem desprovidas de autoria. Mas que, cada vez mais, nos deixam um sentimento de carência. Esse é o paradoxo desses jornais que me fazem ajoelhar à porta dos domingos: quanto mais nos dão, mais vazios ficamos. E pouco nos ajudam a encontrar resposta para uma tão simples pergunta: que vamos fazer de nossas vidas para que elas sejam mais vivas e mais nossas?Contra esta ditadura de um tipo de comunicação é absurdo negar, contrariar em absoluto. 0 jeito é contornar, abrir espaços, criar ilhas no

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oceano hegemónico da chamada objectividade. Essa arte requer distanciamento da obrigação de se ser porta voz dos chamados «acontecimentos». Os cronistas são uma espécie de confessores de emoções que, paradoxalmente, mais se aproximam da função a que se propõem os jornais - escrever a actualidade. 0 cronista abre no edifício da História a porta de entrada para as estórias. Escrevia Guimarães Rosa que a estória não quer ser História. 0 cronista reconcilia a estória com a História. São iluminações súbitas, intuições passageiras, pedaços cheios de significado mas que não se apresentam com a arrogância de quem se assume com a missão de fornecer interpretações sobre o mundo.Laurinda Alves é um desses autores que se debruça sobre as sobras para além dos acontecimentos. Os textos de Laurinda resultam da capacidade de se espantar, a surpresa perante uma ordem que não dá espaço, que exclui o universo íntimo do sentimento.Aos anjos do céu Laurinda diz que não é tarde demais. Eis a palavra, eis o texto onde eles cabem na forma de pessoas. Onde cabem vidas à procura de outra vidas. 0 olhar de Laurinda salva essa gente de serem invisíveis, inavistáveis.Estão aqui os vencidos, os desautorizados, os que sucedem um dia atrás do outro. Como se o tempo, posto em sucessão, fosse a estrada onde não vão senão para destinos que outros para eles sonharam.0 que se pretende é resgatar um sentido de familiaridade com o mundo, como se a terra inteira voltasse a ser a casa, o lugar da infância. Um mundo em que existe a Lua e ela importa tanto quanto as utilitárias categorias do lucro. Laurinda Alves convoca as pedras escuras e gastas das praças antigas para a celebração dessa eternidade. Escrita religiosa esta que reinventa o sentimento do sagrado, a humanização do humano. A sua aposta parece demasiado pessoal mas é, afinal, a de todos nós: a recusa dessa morte que é a despedida de um tempo de infância, de um tempo em infância. Na escrita, Laurinda instala um sentido de permanência: a casa em que a luz não envelhece e a água não se enruga.Laurinda Alves se faz irmã dos insectos nocturnos que, cegos pela luz, esbarram contra as as janelas com a aflição «de quem precisa de um lugar onde a noite ainda seja possível». Sobre esses insectos, ou melhor, sobre a nossa condição humana ela escreve:

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Atordoados, investem contra os vidros e morrem antes de amanhecer. Encosto-me ao vidro e estendo bem a mão para perceberem que existe ali uma matéria intransponível. Não vale a pena. Continuam à procurada noite, incessantemente, como se o dia lhes fosse insuportável. Percebo-os e afasto-me da janela.

Na convocação do sagrado, Laurinda escreve como quem reza. Não sei que Deus será o dela. Mas é certamente um deus bonito que a escuta com crença de pai. E lhe devolve um céu apto para anjos.

Mia Couto

0 Princípio de Tudo

Ali onde o sol nasce silencioso, inundando o mundo de uma luz púrpura e líquida, onde o mar permanece adormecido, onde a manhã se anuncia em

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cada dia como se fosse a primeira e onde tudo é tão perfeito e luminoso, apetece ficar para sempre. Mudos e quietos como o mar àquela hora.Apetece demorar naquela ponta da ilha onde os pássaros cruzam o céu em voos secretos, apenas denunciados pelo barulho acelerado das asas quando mudam de rumo. Apetece pairar como eles e ver aquele lugar de cima, a pique, numa vertigem de azul infinito, numa ilusão de paz eterna.Embalados pelo murmúrio vegetal das hortênsias de pétalas azuis, somos transportados para um mundo inteiramente diferente e incrivelmente distante daquele a que estamos habituados. Como se existisse outro mundo para além deste mundo, onde tudo parece delicado, primordial e puro.Na Ponta da Madrugada, o tempo escoa devagarinho e mede-se ao ritmo lento da respiração de quem não se importa com a existência das horas nem a consistência dos minutos. De quem não se lembra de nada nem ninguém para lá do fio do horizonte.Naquele lugar não existe passado nem futuro, apenas o instante presente, o momento demorado da contemplação da obra divina.Mais do que ilhas, os Açores parecem estilhaços de terra, pedaços angulosos espalhados sobre o mar, cobertos de um manto espesso, cor de musgo.Firmes como rochedos, são ilhas com muita aresta. Sob a aparência diáfana daquele imenso prado iluminado pela luz atlântica e recortado de flores azuis, brancas e rosas, persiste uma terra agreste que resiste a ventos e tempestades. Povoada de homens e mulheres de porte digno e sorriso antigo, é nas vilas mais remotas que se percebe como as pessoas foram sendo talhadas pela adversidade. Como se fossem feitas da mesma matéria das ilhas, a matéria que, afinal, elas próprias moldam e transformam com as suas mãos. Os açoreanos trazem consigo as marcas do tempo e todos e cada um dos vestígios de uma vida cumprida naquela austeridade e abstracção de que é feita a existência insular.A solidão deixa marcas, a saudade cava vincos e a resistência fica gravada na alma, mas tudo serve para fortalecer o carácter. E desenhar aqueles gestos contidos mas acolhedores com que recebem os que chegam.

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Os açoreanos são pessoas especialmente hospitaleiras e atentas aos outros. Com uma curiosidade quase infantil ouvem as perguntas que lhes fazemos e sorriem como quem conhece há muito a resposta a dar.Mostram o caminho, ensinam os atalhos, acompanham-nos na estrada e só desistem de nós quando temos a certeza de encontrar aquilo que procurávamos. Parecem anjos na terra, sempre com tempo, sempre a sorrir, sempre prestáveis e sempre sem pressas. Esboçam no ar gestos antigos para mostrar os caminhos que eles próprios traçaram. Vamos, voltamos e eles continuam no mesmo lugar, os olhos presos no horizonte, ar de quem cisma e pose de quem aceita o que Deus dá.Nas vilas mais remotas estes açoreanos são um exemplo de vida. E um testemunho de fé. A terra pode tremer, as ribeiras podem alagar e a lama pode escorrer até cobrir o telhado das suas casas que eles não desistem nunca. Esperam por dias melhores, deitam mãos ao trabalho e resgatam conforme podem coisas e vidas. Voltam a morar nos mesmos lugares e, quase sempre, nas mesmas casas. Muitas vezes são obrigados a enterrar o passado, mas rezam pelo futuro e entregam o presente e nisso revelam uma tenacidade assombrosa.Nos Açores apetece ser como os açoreanos mas é impossível; era preciso viver tudo o que já viveram, ter as saudades que já tiveram, ver partir muitos daqueles que verdadeiramente amaram e sentir que, à sua volta, a única certeza que fica e aquilo que para sempre permanece é o barulho do mar e a luz do céu. Na Ponta da Madrugada o silêncio encanta e atordoa por se revelar ali toda a dimensão da alma açoreana e, ao mesmo tempo, se adivinhar o tamanho de um mundo que se estende para além da linha da água e do qual muitos açoreanos jamais saberão coisa nenhuma. Se calhar nunca mais volto a sentar-me no muro de pedra da Ponta da Madrugada mas não faz mal, pois agora conheço um caminho seguro para lá voltar.

Mãe e filha

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Naquela noite a Lua espalhava tanta luz que recortava uma espécie de aura em volta de cada pessoa. Passavam umas pelas outras sem dar conta, cegas pela contraluz de prata e anil. Naquela noite ninguém esperava tanto luar e tanto calor. Ninguém sabia que podia haver uma noite transbordante e quente entre as noites de estio.As pessoas voltaram a sair à rua. Todas de uma vez, como se tivessem marcado encontros urgentes. E, no entanto, era devagar que andavam e era com tempo que se sentavam nos degraus de pedra para se entregarem a conversas avulsas nas praças antigas.Mãe e filha tinham acabado de chegar àquela cidade eterna. Vaguearam sem destino nem pressa, até achar vazio o muro de mármore do canto de uma fonte, onde se sentaram num silêncio exaltado. Atrás, as escadas da Piazza di Spagna e um eco de vozes soltas que se descombinam em cada degrau. Um filme de multidões que chegam e se acomodam como se fosse esta a sua casa e aquele o seu lugar no mundo.À volta da fonte, um rumor líquido de água cristalina que corre, e o som brando de passos que se aproximam e afastam distraídos. Mãe e filha parecem ausentes, olham sem ver porque trocam cumplicidades, contam segredos e falam de coisas que mais ninguém entende. Dão a mão e ficam ainda mais alheias ao que se passa à sua volta. Como se, naquele instante, o mundo inteiro se dissolvesse e existissem apenas elas.Passa um cavalo atrelado, guiado por um homem de sorriso largo e decidem as duas ir com ele pelas ruas, ouvir as histórias de cada praça. Deixam para outros o seu lugar no muro de mármore e partem como se, de repente, houvesse pressa.Existe naquela cidade um som único que se desprende do chão de pedras escuras e gastas, quando tocadas pelos cascos do cavalo. Um som do passado, de tempos que não voltam mas permanecem suspensos nos mistérios que encerram todas as praças onde o homem, de sorriso largo, obriga docemente o seu cavalo a parar. Com gestos lentos, o homem volta-se para trás e fica como que derramado sobre o banco, o corpo meio deitado meio sentado, a explicar com orgulho a geometria de cada lugar, o detalhe exacto de cada coisa e o valor de cada nome. Depois inspira fundo e, com a mesma vaguidão de gestos, compõe a figura, emenda a pose e, em silêncio, concede uns minutos de contemplação antes de fazer

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o cavalo avançar pela esteira de luz que a Lua desenha na laje escura do chão.Duas horas mais tarde, volta ao lugar de onde partiu e anuncia gentilmente o fim do passeio. Mãe e filha descobrem, então, que a Lua está muito alta e hesitam se hão-de ir ou ficar. Sentam-se ainda no muro de pedra, pelo prazer de conversar ao luar. Esquecem as horas para sempre.201 LAURINDA ALVESNo dia seguinte acordam muito cedo. Amanhece devagar e um céu demasiado púrpura projecta sombras compridas e oblíquas nas ruas por onde caminham. Vão ao encontro da multidão que começou a juntar-se na grande praça redonda e sagrada.Ocupam duas cadeiras nas primeiras filas e sentam-se numa espera solene, cúmplices no silêncio alto e brilhante da manhã que se anuncia.Ao primeiro sopro de vento desaba o céu inteiro, num dilúvio que ameaça persistir. Sete horas a fio sem que a chuva pare de cair. Sete horas de frio e desconsolo sem que as pessoas desistam de ficar. Permanecem firmes, de pé, cumprindo a missão da sua presença na celebração colectiva do grande acontecimento de um ano maior.Quando tudo acaba e, à sua volta, há apenas um rasto de cadeiras desalinhadas que navegam num mar de papéis que se dissolvem pelo chão, escolhem a fila que se encaminha para o templo e é lá que se recolhem e ajoelham num acto de devoção.Quando voltam à luz do dia, o vento gela os pulsos e atrapalha os passos. Caminham apressadas e não param até chegar ao hotel, onde acabarão o dia entre chás, mantas e conversas quentes. Por fim a mãe adormece, exausta, e a filha cobre a linha dos seus ombros com o lençol branco. Fica esquecida a olhar o seu perfil repousado, o ondular doce dos seus cabelos encantados sobre a almofada e a medir a respiração lenta. E é embalada na perfeição daquele instante, em que vela pelo sono da mãe, que a filha adormece.

15 de Outubro de 2000Estrelas no deserto

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Pedras de todos os tamanhos pousadas na terra. Caídas, espalhadas, juntas em montes grandes e montes pequenos. Pedras angulosas, muito quietas, por toda a parte. Pedras escuras, de uma só cor. A sombra não existe e o sol cobre-as por inteiro de manhã até à noite. Ou talvez não. Completamente negras, não têm vestígios de vida. Apenas o desenho do vento e as arestas do tempo.Naquele lugar onde só existem pedras, o céu derrama-se inteiro sobre a terra ressequida. Olhando à volta parece que tudo começa e acaba ali. Não sobra cor para além do fio do horizonte. Para além daquilo que a vista alcança.L Não se vê um pássaro, não se ouve uma voz, não se sente um sopro de vida. E, no entanto, tudo parece habitado e certo. Como se houvesse uma possibilidade de ordem no caos luminoso daquele deserto de pedras sem fim.Cada dia demora uma eternidade. Nada acontece hoje, como nada aconteceu ontem. Ao longe, muito ao longe, um vulto cruza devagar todo o horizonte. Vai de uma pedra gigante21

221 LAURINDA ALVESUM DIA ATRÁS DO OUTRO 123para outra pedra que ninguém vê nem adivinha. Caminha com vagar e a certeza de quem conhece o destino. Desaparece como aparece, sem deixar rasto nem levantar poeira, e o silêncio perturba por ser implacável e fundo.Naquele deserto de pedras sentimo-nos estranhos, como que expostos a uma luz que desconhecemos. A um som que nunca ouvimos. Só se ouve o silêncio e um misterioso eco interior desse silêncio, mais nada. Não se vê a cara de ninguém mas não estamos sós. E impossível permanecer naquele espaço inquietante durante muito tempo. Qualquer coisa nos faz seguir caminho, nos empurra para a frente, nos impede de ficar parados. Uma criança sai detrás das pedras e estende a mão sem dizer uma palavra. Atrás dela vem outra, e ainda mais outra, e ficam as três a suplicar com o olhar. Em volta não existem casas, não se distingue o contorno de uma tenda, não corre um fio de água. De onde virão estas crianças? Onde

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estavam até agora, em que tempo e espaço vivem, se ali, entre o céu e a terra, apenas as pedras crescem e se multiplicam?Num rumor de passos apressados seguem-nos de olhos fixos e mão estendida. Pedem sem sabermos exactamente o quê. Querem água ou canetas para escrever. E só. Dizem adeus, dão a mão, tocam na nossa roupa e acompanham-nos um pouco pelo deserto, alegres de nos encontrar ali no meio de nada. Depois desaparecem e não conseguimos ver por onde foram nem onde moram. Deixaram a água connosco, devolvendo a garrafa com gestos delicados, num aceno extraordinário e comovente pois à nossa volta existe apenas terra seca, estalada, impiedosamente ferida pelo sol.Voltamos ao ponto de partida. Estamos de passagem.Atravessamos a pé o imenso lago salgado, seco e estéril, cheio de cicatrizes, coberto de um pó branco e fino. É mais fácil permanecer ali, naquela espécie de planeta distante, de horizonte lunar onde não existe vida e nada cresce da terra. 0 chão branco, imaculado, todo quebrado, e o céu azul, cristalino e inteiro, são a revelação da eternidade. Apetece ficar mas seria impossível sobreviver. Partimos sem olhar para trás porque sabemos que alguma coisa deixámos fora de nós. Alguma coisa rara e indefinível ficou ali para sempre, pousada no chão branco e sem raízes.Anoitece já perto das dunas. De madrugada têm uma cor púrpura, muito clara, quase transparente. Depois vão ganhando sombras, contornos definidos e um tom que começa por ser esbranquiçado como o sal para, logo a seguir, se desvanecer num marfim dourado que se transforma em amarelo, cada hora mais intenso e carregado, que vai tingindo a areia até tudo ficar completamente ocre. À noite as dunas são castanhas, de um castanho mais escuro que a terra, mas parecem mantos divinos, reverentemente pousados no chão como forma de celebrar um culto.Voltamos à estrada porque se faz tarde e o caminho ainda é longo. Somos muitos e os faróis acesos são como candeias de uma caravana bíblica que segue a estrela mais luminosa no céu. Durante mais de uma hora ninguém fala, ninguém diz uma palavra. Apenas a noite escura, o céu aberto, a estrela-guia e um comboio de luzes infinitas que nos acompanham em fila. E é a estrela mais brilhante no céu e a memória daquela linha silenciosa, longa e sublime das luzes de uma caravana que evolui no deserto escuro e

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vejo reflectida no espelho retrovisor, que ainda guia muitos dos meus dias.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 125Paz no mundoDevo a Maria de Lourdes Pintasilgo uma excelente conferência.Hans Küng, filósofo, teólogo, conselheiro teológico pontificio nomeado pelo Papa João XXIII, professor catedrático de Teologia Dogmática e Ecuménica na Universidade de Tübingen, na Alemanha, e director do Instituto de Estudos Ecuménicos da mesma universidade, esteve em Portugal a convite do Graal, o grupo de reflexão católico liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo. Eloquente no discurso, articulado na elaboração, claro na exposição e incisivo na convicção, Hans Küng revelou na Gulbenkian o melhor da sua extraordinária arquitectura mental.Para aqueles que admiram a obra e o discurso, não é difícil acreditar que a conferência que fez em Lisboa foi fundamental. Para os que não acompanham de perto os passos que dá pelo mundo inteiro, também fácil perceber a importância da sua mensagem.Hans Küng vai direito ao assunto. Fala do essencial e abstém-se no acessório. Declara, logo à partida, que jamais poderá haver paz no mundo se não houver concórdia entre as religiões e estabelece como patamar de conversa e entendimento geral a aceitação dos valores humanos capitais.Paz, muita tolerância e um diálogo empenhado entre as religiões são os utensílios necessários para lavrar o caminho que Küng há muito vem traçando.«É impossível sobreviver sem um ethos mundial», garantiu o filósofo perante uma assembleia atenta e concordante.«Há uma necessidade absoluta de definir uma ética para toda a humanidade. 0 mundo em que vivemos só poderá sobreviver se não se perpetuarem os espaços éticos díspares, rivais e, até, antagónicos. Tem de haver uma ética de base, uma ética de referência!»Dito assim, parece simples e cristalino, mas, como todos sabemos, não é nada fácil estabelecer uma ética à escala mundial. Um propósito moral, uma regra de conduta universal que prevaleça sobre os interesses políticos, financeiros e religiosos. Por isso mesmo, Küng elabora

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longamente sobre algumas formas consistentes e eficazes de chegar a esta ética mundial. A uma paz (ainda) possível e por todos desejada.«Na hora actual, cabe às religiões mundiais uma responsabilidade muito particular pela paz no mundo», sublinha Hans Küng, convencido de que, no futuro, a credibilidade e autenticidade de todas as religiões depende exclusivamente da capacidade de acentuarem aquilo que as une e não aquilo que as separa.Hans Küng sabe que não basta haver concórdia entre as24261 LAURINDA ALVESUM DIA ATRÁS DO OUTRO 127religiões e os seus líderes. «É minha profunda convicção que, se não conseguirmos a adesão dos representantes do mundo político, financeiro e económico a um programa ético de acção, qualquer iniciativa desta natureza, por mais bem intencionada que seja, cairá no vazio», garante o filósofo.0 armistício religioso implica naturalmente o armistício político. Parece outra verdade cristalina mas, como bem sabemos, muito difícil de concretizar. Agora, como sempre, com Timor, Angola, o Kosovo e os EUA no horizonte (só para citar os exemplos mais óbvios e urgentes), é obvio que qualquer estratégia de concórdia mundial tem de envolver o poder político. Acontece que, especialmente neste plano, os valores que prevalecem nem sempre são os valores humanos essenciais para construir com solidez os mil edificios da ética planetária.Hans Küng lembrou, a propósito, realidades que devem ser tidas em conta e contrariadas a todo o custo, sob pena de a ordem mundial se tornar uma miragem cada dia mais longe do nosso alcance.Sem pretender ser alarmista ou demasiado catastrófico, Küng socorre-se de dados de facto. De números que não deveríamos conseguir esquecer para, em «petit» ou « grand comité», nós próprios termos a noção de que não é possível uma ética global se não houver uma ética pessoal. Um propósito moral (jamais moralista!) em tudo aquilo que fazemos e dizemos.Depois de uma exposição brilhante sobre a crise das ideologias, o desencanto dos sistemas políticos e a falência dos valores e deuses

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modernos que surgiram na esteira do progresso, Küng anunciou que, não querendo ser demasiado pessimista nem transmitir uma imagem de profeta «melancólico-apocalíptico», era impossível ignorar que o ritmo do progresso tecnológico é tal que «ameaça constantemente ultrapassar a organização política».«Com a língua de fora, a legislação persegue, ofegante, o desenvolvimento tecnológico como um cão de caça a sua presa, mas esta situação é insustentável!»0 que Hans Küng quis dizer naquela conferência é que, até agora, a ética, enquanto reflexão sobre o comportamento moral do ser humano, «tem chegado sempre tarde demais: na maior parte dos casos, interrogamo-nos acerca do que deveríamos ter feito depois de já o termos feito quando, pelo contrário, a ética devia servir de profilaxia da crise».Por tudo o que disse naquele dia e escreve há tantos, tantos anos, vale a pena ouvir e ler Hans Küng, arregaçar as mangas e deitar mãos à obra. Cabe-nos a nós juntar cimento aos tijolos que Küng tem vindo a empilhar.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 129A primeira noiteEra uma vez um rapaz que vivia numa casa de madeira com a mãe, uma irmãzinha bebé e uns amigos da mãe que nunca eram os mesmos mas entravam e saíam com ar de propriedade. 0 rapaz nunca gostou daqueles homens mas não sabia exactamente porque.0 rapaz viveu dez anos e sete meses naquela casa de madeira onde todos os dias faltava o pão e nem sequer havia uma mesa. Numa noite chegou tarde e reparou que a casa estava ainda mais vazia. 0 bebé chorava sozinho, sentado a um canto, a luz continuava apagada e não aparecia ninguém para o consolar. 0 rapaz pegou na irmãzinha ao colo e sossegou-a contra o peito. Assustado, deu pelas horas e, num gesto maquinal, embalou o bebé sem saber bem o que estava a fazer. Quando sentiu que tinha adormecido pousou-o no colchão e procurou uma luz. Só então reparou que permaneciam às escuras.Sem fazer barulho abriu a porta da rua e esperou que viesse28

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alguém. De respiração suspensa, prestou atenção a todos os barulhos que ouvia mas nenhum lhe pareceu familiar. Voltou a entrar em casa e olhou para o relógio: duas horas da manhã. Sentou-se ao lado do bebé e pensou que eram horas de jantar. Levantou-se e procurou qualquer coisa para comer mas não encontrou nada. Voltou a ficar assustado. Se a irmã acordasse com fome não saberia como acalmá-la. Pensou em voltar a sair para arranjar comida mas teve medo de deixar o bebé sozinho. Fez-lhe pena pensar que podia acordar e não sentir ninguém. Esperou pela mãe sentado no degrau da porta. Apagou a luz para não gastar nem acordar o bebé e cantou baixinho uma canção que lhe tinham ensinado nesse dia. Esperou. Sentado no degrau começou a sentir frio. Era uma noite de Verão, lembra-se bem, mas teve muito frio. Procurou, em silêncio, uma manta para se aquecer e, de caminho, aconchegou o bebé de encontro à parede para não cair. Voltou a sentar-se no degrau porque a mãe devia estar a chegar. Acordou sobressaltado com o bebé a chorar e correu para lhe pegar. Eram seis da manhã e a mãe ainda não tinha voltado.A irmãzinha soluçava e o rapaz compreendeu que era um desespero de fome. Olhou à sua volta e, naquela penumbra da madrugada, julgou distinguir um pedaço de pão. Deitou-lhe a mão mas não era pão. Era uma pedra que tinha guardado no canto onde tinha uma cama a fazer de quarto e uma caixa de madeira a fazer de mesa.Abriu a porta da rua com o bebé a chorar ao colo e deu uns passos na direcção da estrada. Não sabia exactamente para onde ia mas sentia que tinha que ir para qualquer lado.Esqueceu-se de fechar a porta e não se lembrou de levar301 LAURINDA ALVESconsigo o cobertor onde o bebé tinha dormido. No seu desnorte caminhava descompassado e tentava não fazer barulho mas o bebé continuava a chorar ao seu colo.Vagueou pela estrada em busca de alguém mas àquela hora não aparecia ninguém. Cego de cansaço, seguiu em frente e, lembra-se agora, chegou ao centro da vila muito tempo depois mas não o suficiente para os cafés estarem abertos. Ao colo, o bebé continuava a soluçar. Sem forças para continuar, o rapaz sentou-se no passeio e limpou as lágrimas da irmã enquanto as suas corriam sem parar. Não sabia o que fazer e voltou a

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pegar-lhe ao colo. Procurou nos caixotes do lixo, bateu timidamente à porta do restaurante de um senhor que era quase seu amigo e, já exausto, lembrou-se de ir à padaria. Deu a volta por trás e desceu uma escada sombria que o levou por um corredor mal iluminado até ao patamar onde dois homens de branco, debruçados sobre uma boca de forno, retiravam pães a ferver com enormes pás de madeira. Embriagado pelo cheiro do pão quente ficou parado sem conseguir falar. 0 bebé chorava e os homens estenderam-lhe um pão mas era pequeno de mais para o poder comer. 0 rapaz agradeceu em silêncio e voltou a subir as escadas. Na rua ouviam-se rumores vindos do mercado. Homens e mulheres empilhavam caixas de madeira, abriam portas e lavavam o chão com mangueiras. 0 rapaz deixou-se guiar pelo barulho e parou ao pé de uma camioneta cheia de alfaces. 0 bebé chorava já sem voz e todo o corpo estremecia num soluçar compulsivo de exaustão. Uma senhora comoveu-se de os ver assim tão pequenos e desprotegidos e chamou pelo rapaz. Deu-lhe leite quente de um termos que trazia consigo e juntou-lhe uma colher de mel bem cheia. Pegou no bebéUM DIA ATRÁS DO OUTRO 131e aconchegou-o ao colo enquanto improvisava um biberão numa garrafa de coca-cola. 0 rapaz adormeceu e esqueceu-se de perguntar pela mãe.Aquela noite foi apenas a primeira noite em que a mãe não apareceu em casa. Durante um ano inteiro não voltou a vê-la e, no dia em que chegou a casa e ela estava lá outra vez, ouviu-a dizer que tinha ido buscar o bebé. Só.0 rapaz agarrou-se à irmã como um náufrago mas de nada serviu. A mãe levou a irmã e o rapaz ficou sozinho para sempre. Nunca mais voltou a ver a mãe e a irmã e nunca mais foi obrigado a roubar comida para dois. Também nunca mais teve que fechar a porta de casa ou apagar a luz para não gastar. Nunca mais se lembrou de quem era ou de quem gostava de ter sido.Nunca mais disse a ninguém o seu verdadeiro nome que não se pode saber mas rimava com anjo.* Adaptado para televisão com o título Anjo Caído

(telefime)

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SIC - Set. 2001Até ao amanhecerE durante o ano inteiro em que a mãe não voltou a casa, o rapaz alimentou sozinho a irmã e, juntos, foram uma família e viveram na mesma casa de madeira sem vidros nas janelas.0 rapaz protegia a irmã pequenina dos pesadelos, do frio das noites e dos fantasmas dos dias. Falava da mãe, que se tornara ela própria um fantasma por ter desaparecido sem deixar rasto, e contava histórias de quando eram todos mais felizes. Inventava.0 rapaz descobriu, sem querer, que sabia embalar um bebé, caminhar com ele na anca, roubar comida no supermercado e, até, vaguear pelas ruas e voltar a casa sem nunca se perderem.Nos dias de sol brincavam juntos na praia e apanhavam conchinhas brilhantes como pedras preciosas e, nos dias de Inverno, jogavam à bola no parque.A irmã aprendeu a andar quando o rapaz fez onze anos. Era mais um dia triste e sem história. Estavam os dois ainda em casa, calados, entretidos e sem nada para comer ou fazer.32UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1330 rapaz lembra-se de ter sentido que mais valia morrer do que fazer anos assim. Preferia ser como a mãe, capaz de desaparecer, em vez de ficar eternamente sentado no degrau da porta a tentar ouvir os seus passos.Nesse dia a irmã fazia-lhe festas no cabelo e puxava-lhe o queixo mas ele estava distraído. Desanimado. Foi então que• bebé se agarrou à caixa de madeira que fazia de mesa e, com gestos hesitantes e sorriso firme, ficou de pé em frente do irmão.0 rapaz acordou do torpor e chorou. Abraçou a irmã,• dançaram muito. 0 bebé não voltou a sentar-se. Durante uma manhã inteira e uma tarde sem fim andou para a frente e para trás.Começava de braços estendidos e acabava num abraço forte. Quando ficou demasiado cansada, o rapaz pegou nela e foram os dois para a rua. Ele queria que todos vissem o milagre.Na rua ninguém prestou muita atenção mas o rapaz não se importou porque nem reparou. Descobriu que, afinal, também conseguia ser feliz.

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Nessa noite trouxe para casa uma ceia especial que conseguiu tirar às escondidas do supermercado. Fizeram uma festa mesmo sem apagar velas.No tal dia em que a mãe voltou a casa para ir buscar apenas o bebé e o deixou sem ninguém, o rapaz ficou mudo. De espanto• tristeza. Também queria ir com a mãe mas não foi capaz de pedir. A mãe nem se despediu.Depois daquele dia nada ficou como era. Não havia ninguém para cuidar, ninguém para ralhar, ninguém para brincar, ninguém para ensinar a contar as estrelas. Ninguém por quem merecesse a pena viver. Só o rapaz, a casa de madeira e as janelas de vento.Durante meses a fio o rapaz não voltou a casa nem saiu da341 LAURINDA ALVESrua. Conheceu outros rapazes como ele e copiou tudo o que faziam e diziam. Falava como se não tivesse alma e agia como se não tivesse coração. E não tinha mesmo.Conheciam-no pelas piores razões. Chamavam-lhe nomes terríveis, e temíveis.Os dias em que fizera de anjo da guarda apagaram-se da memória e tudo nele parecia feito de raiva e ódio. Tudo menos a maneira como olhava para as crianças mais pequenas.Passaram os anos e ele sempre na rua, sem outro lugar para onde ir. Correu perigos e enfrentou desafios. Crescia sem dar por isso. Perdeu a noção do tempo e desistiu de ser alguém. Ou de procurar alguma coisa. Deixou-se levar até ao dia em que a polícia o perseguiu e ele, assustado, se lançou da janela de um prédio alto. Foi a sua morte. Ou melhor, a sua sorte.Acordou no hospital com dois amigos à cabeceira. Não os amigos da rua mas outros que apostaram que lá no fundo, bem no fundo, existia de certeza um coração.Abreviando a história, o rapaz foi adoptado, amado e ensinado. A primeira mãe não voltou a aparecer e a irmã nunca mais foi vista mas já consegue falar delas e da falta que lhe fizeram, sem chorar. Aliás a última vez que o vi chorar foi na semana passada, no enterro do avô adoptivo. 0 avô verdadeiro.

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* Adaptado para televisão com o título Anjo Caído

(telefime)

SIC - Set. 20010 escritor e a garçaTem alma de poeta e profissão de doutor. Estuda os animais mas escreve sobre os homens. Mistura-os todos nos livros e sonha com eles à noite. Investiga a vida das formigas, perde horas a comparar o tamanho das asas dos pássaros, descobre amigos em lugares remotos e ri com eles como se ainda fosse criança. Fala devagarinho, mais baixo do que é costume, e, às vezes, diz coisas incompreensíveis. Coisas que não podemos compreender porque não são deste mundo. Pertencem a outro, mais remoto, infinitamente maior e melhor.Um dia escreveu sobre um pescador e uma garça cinzenta. Um conto simples que não sei como acabou. Durante anos a fio esqueceu-se do pescador e da sua garça. Numa tarde sem história, caiu-lhe uma garça cinzenta aos pés. Igualzinha à do seu pescador.Olhou para ela e pensou, com ar vago, como era estranho ver ali uma garça cinzenta. Depois tocou-lhe e percebeu que35361 LAURINDA ALVEStinha vindo ter com ele. Resolveu ficar com a garça e levá-la consigo para casa. Pensou demoradamente como haveria de fazer a coisa e, à falta de melhor recurso, atou uma corda a uma das pernas e arrastou-a consigo pelo campo fora, de forma gentil.Parava quando a garça queria parar, esperava o tempo que a garça fazia esperar e caminhavam os dois muito devagar. Chegou a apetecer-lhe conversar.Atenta, a garça seguia-o uns passos atrás. Sempre que atrasava o passo, dava uns pulinhos e fazia figuras engraçadas. Parecia divertida.Uma vez na cidade, era preciso apanhar um táxi ou inventar uma maneira de chegar mais depressa a casa. Instintivamente, colocaram-se os dois na berma da estrada. Nenhum carro parou porque, na verdade, ninguém quer saber de um homem com uma garça pela trela.

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De bico caído e olhar triste, a garça parecia adivinhar a sorte que os esperava. Desistiram e fizeram-se à estrada. Caminhavam no asfalto, saltavam para o passeio, contornavam os buracos, obrigavam os carros a parar e as pessoas a olhar. Seguiam em frente com ar digno, a garça sempre atrás e o homem à frente. Chegaram já de noite a casa. Muito noite mesmo.Com os olhos pesados de sono, a família inteira quis saber quem era aquela garça. Como se tivesse outro nome ou fosse possível explicar tudo naquele instante. Foram dormir. A filha mais pequena demorou a adormecer. Habituada às histórias do pai, delirava com os seus disparates de homem crescido e, acima de tudo, com a variedade de animais que insistia em trazer para casa.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 137Compreendeu que a garça pertencia à família e, já de olhos bem abertos, observou o pássaro com detalhe. Fez-lhe festas nas penas e aconchegou-a para a noite. Pela primeira vez, a garça não subiu a uma árvore para dormir.Na sua nova casa, a garça habitava a parte da frente do jardim. No de trás havia dois cães, que ensaiaram um ar feroz mal deram pela sua presença. Na verdade, estavam intrigados com o feitio do bicho e o tamanho do bico. À cautela, resolveram atacar. A garça encheu o peito, desenrolou as penas, inchou e enfrentou-os com ar ameaçador. Recuaram, voltaram para o jardim de trás e nunca mais se atreveram a aparecer.A garça passava os dias feliz. Passeava pela casa, entretinha-se no jardim, comia abundantemente todo o peixe que entrava na cozinha, gastava o melhor do seu tempo em contemplação• crescia a olhos vistos. Um dia, o escritor olhou para ela• resolveu ensiná-la a pescar. Levou-a pela trela até um lugar distante onde sabia de uma colónia de garças. Pensava, naturalmente, que a melhor maneira de uma garça aprender a pescar era copiar os gestos de outras garças. Estava enganado. Mal pisou o chão onde estavam as garças, todas abriram as asas• desataram a voar. Voaram para tão longe que deixaram de se ver. Inocente, a sua garça olhou para ele. De bico caído e ar vagamente

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comprometido, debicou pelo chão fingindo-se alheia ao drama. Ele sentou-se no chão, largou a trela e ficou a cismar.Por um lado, não podia atirar-se à água e voltar com um peixe no bico, porque nem era coisa de homem nem tinha a certeza de conseguir fazê-lo. Nunca tinha pescado um peixe com a boca e nunca na vida sonhara ver-se com uma garça381 LAURINDA ALVESbebé nos braços. Cismou mais um bocado. A garça aproveitou para se aninhar aos pés e foi então que ele percebeu e desistiu.Ver uma garça assim aninhada, feliz e tranquila, deu-lhe vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. 0 que é que havia de fazer com uma garça que não subia às árvores para fazer ninho e dormir, que jamais aprenderia a pescar sozinha e se imaginava um cão com dono?Deu uma laçada na trela e levou-a de volta para casa. Resignado, antecipou uma velhice mansa rodeado dos três filhos e todos os netos, com a sua garça cinzenta aos pés, já muito velhinha, embrulhada numa manta a ouvir as histórias da família. Voltou com ela para casa, devolveu-lhe os brinquedos e a sua parte de jardim e prometeu solenemente nunca mais ralhar por comer o peixe que não lhe pertencia. Adormeceu em paz e, durante muitos meses, alimentou e mimou a sua garça. Até ao dia em que, inchada de felicidade, a garça se aninhou aos pés do dono, ficou muito quietinha e nunca mais voltou a levantar-se.Debaixo da cerejeiraTenho saudades do meu avô. Às vezes sonho com ele e vejo-me sentada ao seu lado, na cadeira rente ao chão que os netos disputavam para ficar mais perto dele e ouvir as histórias que contava como ninguém. Vejo-o enorme, no seu cadeirão de braços, com as pernas cruzadas e os óculos de meia-lua sobre a ponta do nariz a ler o jornal concentrado e, ao mesmo tempo, muito atento a tudo à sua volta. Vejo-o com todo o tempo do mundo a ter tempo para todos. Lembro-me da sua voz, da sua cor e da maneira como os olhos riam. Era um homem alto, lindo, cabelo imaculadamente branco, olhos azul-escuro que acinzentavam conforme a luz dos dias, andar compassado e tranquilo. Um andar de quem conhece a terra que pisa.

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Já uma vez escrevi que aquele meu avô nunca foi um homem como os outros e sempre me pareceu mais digno, mais justo e mais bonito que todos. Nasceu com o século e, aos 16 anos, já39401 LAURINDA ALVESórfão de pai, decidiu partir para a guerra. Alistou-se como voluntário e trocou a casa da mãe pelo campo de batalha. Sobreviveu em França, sabe Deus como, e voltou depois de muito ver e ouvir.Aos 18 anos apresentou-se em Aldeia Velha, aldeia de granito e cal perdida na Beira já com outra cara, outro mundo e outra largura de ombros. A mãe teve que demorar o abraço para reconhecer o seu filho. De camisa branca, calças de fazenda impecavelmente vincadas e casaco ao ombro, parecia um actor de cinema.No dia em que chegou, reparou numa rapariga de sorriso largo e olhar cristalino e sonhou que havia de casar com ela. A rapariga, a quem devo o nome, contou em casa que havia quem parecesse gostar dela, mas o pai, homem de poucas brincadeiras e ainda menos palavras, declarou solenemente que não estava para namoros. Se era para começar a olhar para o rapaz, o melhor seria logo casar. Foi o que fizeram.Casaram sem saber bem o que faziam. Mal se conheciam e nunca se tinham ouvido falar mas não lhes ocorreu recuar.Tiveram 13 filhos e foram felizes para sempre. A minha avó morreu cega depois de ter enterrado quatro filhos. 0 essencial estava visto. 0 meu avô enterrou a minha avó e aconchegou, de joelhos, a terra que a acolheu. Sobreviveu à dor e conseguiu permanecer lindo e de pé até ao fim. A mesma calma, a mesma ponderação e o mesmo brilho nos olhos. 0 brilho de quem foi feliz porque fez os outros mais felizes.Foi o primeiro a ter uma telefonia, a tirar a carta e a comprar carro. Foi o pioneiro da electricidade e da água canalizada que fez desaguar no chafariz das Alminhas. Vereador da Câmara eUM DIA ATRÁS DO OUTRO 141presidente da Junta de Freguesia durante anos a fio, era um engenheiro sem diploma.Inventava, improvisava, dava lustro e acrescentava escrúpulo a tudo o que dizia e fazia. Especialmente ao que dizia.

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Não havia naquele tempo e naquelas paragens homem mais avisado. Em casos de dúvida, era ele o primeiro a ser consultado e o único cuja palavra ditava lei.Justo como poucos, o meu avô era chamado a resolver conflitos dentro e fora da família. Encontrava sempre o tom adequado e mesmo quando era implacável, a sua dureza tinha uma razão.Empresário, fundou um negócio que prosperava, mas do qual não conseguia tirar rendimento por inteiro. Quando, finalmente, percebeu que um dos empregados subtraía dinheiro da caixa e café das sacas e, com o expediente, enriquecia ao ponto de acumular fortuna, levou-o ao tribunal.No dia da sentença comoveu-se com os olhos da mulher e dos filhos do usurpador e declarou que retirava a queixa. 0 homem foi mandado em paz e o meu avô continuou a dormir tranquilo.Generoso, divertido e aventureiro, era uma combinação perfeita de carácter. Bondoso com a mulher, os filhos, os netos e todos os que se lhe atravessavam ao caminho, filosofava longas horas ao serão.No Verão, passávamos pelo menos um mês inteiro juntos. Quase 30 netos, o dobro de tios e tias e, ainda, alguns primos afastados. Lembro-me de nos juntarmos à sua volta, muito perto do cadeirão, a pedir-lhe que contasse as suas aventuras, as histórias da guerra e os episódios cómicos das suas viagens que nos faziam rebentar de riso.421 LAURINDA ALVESÀ noite não havia horas para dormir e os mais novos iam tombando de sono, embalados pelo som da sua voz.0 tempo em que o meu avô e a minha avó eram vivos foi o tempo mais feliz da nossa família. Amados pelos filhos e netos, eram igualmente venerados pelas noras e genros.0 dia do piquenique anual, feito à sombra da cerejeira mais antiga e perfumada das terras do meu avô, era um dia inesquecível. Vinham homens para assar o borrego e mulheres para ajudar a estender as toalhas na terra inclinada sobre a vinha.Nós divertíamo-nos uns com os outros, divididos entre o prazer dos assados, as anedotas do tio Guilherme e os saltos para o tanque que todos os anos era limpo e cheio de água fresca. Alguns desses dias foram filmados e ficaram gravados para sempre. As imagens estão gastas e não

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têm som, mas de cada vez que as vejo ou me lembro delas, oiço as vozes com uma estranha nitidez.Um dia o meu avô deitou-se, adormeceu e não voltou a acordar. Morreu exactamente como viveu e todos nós chorámos como crianças perdidas. Os anos passaram e tudo foi ficando diferente. Tudo menos o cabelo, o sorriso e a sabedoria da minha mãe que, cada dia, se parece mais com o meu avô.0 dia do julgamentoTreze filhos nascidos, quatro enterrados e nove vivos, uma casa grande, uma mulher sem tamanho e uma vida maior, embora tantas vezes de aparência menor. Muita terra e muito trabalho, sangue e suor, lágrimas e risos. Serões compridos, silêncios vividos, dias divididos e destinos cumpridos. Naquela casa branca, caiada, por onde se chegava atravessando um pátio de granito coberto de videiras, amanhecia cedo ao som cavo e pesado das panelas de ferro, de três pernas, que eram pousadas na lareira para aquecer a água para o café da manhã. Nas camas, os lençóis de linho grosso desenhavam o corpo e permaneciam gelados, quase molhados, onde as pernas não chegavam. Os filhos aconchegavam as mantas de papa, grossas e pesadas, ao pescoço e cobriam as orelhas. Deixavam-se ficar a ver no ar o vapor da sua respiração, numa ilusão de que o dia demorava a chegar mas o cheiro e o fumo quente do café que fervia ao lume inundava a casa e fazia-os levantar.Juntavam-se todos à volta da grande mesa de madeira grossa,43441 LAURINDA ALVEScada um no seu lugar, rapazes de um lado, raparigas do outro• o pai e a mãe em cada cabeceira, à espera do último para começarem a rezar.Em silêncio ouviam a voz grave do pai, que agradecia tudo• tanto e a mãe, mais doce, a terminar. Benziam-se e desatavam todos a falar. A medida que se despachavam, pediam licença ao pai e retiravam-se para acabar de se vestir e calçar. Saíam em grupos para a escola. Os mais velhos passavam a semana na cidade e voltavam à sexta-feira, numa camioneta que apanhavam no largo da câmara municipal onde, no

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Inverno, esperavam longas horas, batendo com os pés no chão empedrado para não gelar. Os mais novos iam para perto e chegavam a tempo de almoçar.0 pai vigiava as saídas, descia com eles, ligava o carro e deixava-o a aquecer enquanto voltava atrás para recolher papéis e ver o que havia para fazer. Dava ordens ao Artur, o rapaz que tratava do comércio e das coisas da casa, verificava• expediente do dia e perguntava à mãe o que era preciso. Despediam-se à porta, todos os dias da mesma maneira. Com uma mão abraçava-a pelo ombro, com a outra segurava a dela enquanto lhe depositava um beijo terno na testa. Apertava-a contra si num gesto protector e apaixonado. 0 mesmo gesto com que anos antes lhe pedira para casar e anos mais tarde ajoelharia na terra para melhor a aconchegar.Saía cedo para a cidade e voltava a tempo de almoçar. Durante uma hora sentava-se na sua cadeira de braços a ler o jornal e a descansar. Depois mudava de roupa, trocava de botas e ia sempre para o mesmo lugar. Tardes inteiras a endireitar a vinha, a preparar a terra, a cuidar do que era preciso cuidar.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 145Dono de uma terra fecunda de castanheiros, cerejeiras, macieiras e videiras era, também, proprietário de um comércio de café que vendia muito e prosperava pouco. No armazém onde guardava as sacas de serapilheira cheias, trabalhava Firmino, rapaz da sua confiança, que se ocupava de pesar e vender o café.No fim de cada dia passava no armazém, conferia contas, assinava papéis, acertava detalhes e subia para casa onde todos o esperavam para as conversas do dia. Enquanto a Esperança e a Generosa aqueciam a água nas panelas maiores e arrastavam, no andar de cima, a bacia de metal para ao pé da janela onde os filhos se preparavam para tomar banho, o pai dava atenção à mãe. Eram capazes de ficar os dois entretidos a falar durante horas mas também eram capazes de permanecer num silêncio cúmplice, feito de amor e entrega.0 pai vivia numa aflição de contas. Não percebia porque éque o café se vendia e não rendia como devia. Fazia somas e subtracções, multiplicava e dividia e tudo parecia bater certo. E, no entanto, a sua vida

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afundava enquanto a do Firmino subterraneamente prosperava. Primeiro uma casa construída fora da vila, longe da vista e do alcance, depois uma conta bancária aberta na cidade e, ainda, um desafogo inesperado. Discreto, Firmino subtraía em cada saca de café um tanto que punha de lado. A medida exacta do lucro, que guardava só para si.Os meses corriam devagar e em cada Outono e Primavera chegavam à casa grande a costureira e o sapateiro que se instalavam para fazer fatos e sapatos para toda a família. Quando partiam sobrava tão pouco dinheiro que o pai ficava sem dormir. Demoroui461 LAURINDA ALVESmuitos anos a perceber mas um dia foi obrigado a acusar. Firmino, descoberto e preso, deixou a mulher, dez filhos e a casa, todos na ruína. No dia do julgamento era outro homem. Magro, consumido, sem ombros nem alma, foi incapaz de levantar os olhos para aquele a quem toda a vida enganara.0 juiz, solene e implacável, enunciou os factos. Dadas as evidências, o julgamento correu rápido. Os tempos eram outros e, no fim, cabia ao juiz confirmar a intenção da acusação antes de proferir a sentença.Foi então que o pai olhou para a mulher de Firmino e para as dez bocas que haviam ficado sem nada que comer. Igualmente solene, avançou um passo e retirou a queixa. Firmino foi deixado ir em liberdade. 0 pai regressou a casa onde o esperavam à mesa. Sentou-se, benzeu-se e, juntos, agradeceram tudo e tanto.As três irmãsIsabel, Josefa e Maria Viola foram todas baptizadas à nascença com água gelada. Fazia um frio granítico e ninguém se lembrou de aquecer a água, mas também ninguém se lembra de as ter ouvido chorar. As irmãs Viola, como para sempre ficaram conhecidas, não choraram no primeiro dia nem em dia nenhum da sua vida. Pelo menos que alguém visse ou soubesse.Josefa e Maria nasceram cegas e foi a Isabel que coube ensinar-lhes os caminhos e guiá-las pelos atalhos. Os pais morreram cedo, vergados de trabalho, e as duas irmãs ficaram entregues à mais velha. Viviam as três numa casa de pedra e cal, sem ajuda de ninguém. De resto, não havia, naquele tempo, alma chegada que as pudesse ajudar, e talvez por isso

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nunca tenham precisado de mais ninguém. Nasceram e cresceram nos anos de grande fome, em que a peseta valia dois tostões e a cada pessoa era vendido apenas um quarto de pão por dia.Andavam sempre juntas e viviam com incrível asseio e alegria47L481 LAURINDA ALVESnuma casa pobre, de onde saíam todas as madrugadas impecavelmente vestidas e penteadas. Iam à missa das seis e meia,a hora a que o padre de Aldeia Velha celebrava por achar amadrugada mais própria para abençoar o dia de trabalho.Nunca faltaram à missa da manhã nem ao terço da noite,as três sempre de mão dada pela calçada irregular, ombros muito direitos e juntos para não deixar passar o frio nem desacertar o passo e lenço atado no queixo como faziam as mulheres mais velhas. As irmãs Viola faziam tudo de maneira diferente das raparigas da sua idade. Isabel copiava o que via e ensinava, com enlevo de mãe, as duas irmãs cegas, que, sem saber, eram em tudo iguais uma à outra.Treinavam os gestos, ensaiavam os passos e chegavam a divertir-se como se a vida fosse uma brincadeira de sótão. Os vizinhos admiravam-se de as ver assim, sempre tão alegres e unidas e, em podendo, ofereciam ajuda.Josefa e Maria tentavam fazer em casa o que a irmã aprendia na escola, mas era muito difcil. Às vezes tinham de ir com ela para ouvirem a professora e entenderem melhor o que Isabel queria dizer. Maria Odete, a professora velhinha que dava aulas embrulhada num xaile e os pés pousados numa braseira antiga, deixava-as sentar no fundo da sala gelada, onde ficavam muito quietas e caladas. Era assim que as irmãs passavam muitas manhãs de geada. Sem falar, só a ouvir as vozes e a adivinhar as figuras.Toda a vida as irmãs Viola sobreviveram à fome e ao frio atravessando a fronteira. Dezoito quilómetros de manhã e outros tantos de tarde, a pé, entre pedras, giestas, montes e vales sem nunca parar para descansar. Espanha ficava perto e, nesse tempo, era lá que aviavam as encomendas que lhes faziam na aldeia.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 149

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Pão de trigo e azeite. Iam uma vez de manhã e outra à tarde, sem hesitações. Partiam de mãos vazias e voltavam carregadas de sacos e pesos. Josefa e Maria seguiam atrás de Isabel e, mesmo não vendo nada, conheciam o caminho como os próprios nomes. Às vezes cantavam à ida. Na última volta da tarde vinham demasiado cansadas e nem sequer falavam. Entendiam-se bem.As irmãs Viola fizeram-se três raparigas bonitas e, uma vez, a mais velha foi com um rapaz da aldeia que lhe deu, só num dia, mais atenções do que ela julgava merecer. Isabel deu por si já grávida de meses sem saber bem o que fazer. Nunca mais tinha ouvido falar do rapaz e não sabia aonde ir para o procurar. Teve um filho homem, baptizou-o de António José, como o avô, e levou-o para casa.As três irmãs cuidaram dele como de um filho e António José aprendeu a falar espanhol ao mesmo tempo que falava português. Nem sempre as acompanhava porque o caminho era agreste, mas sabia ficar em casa à espera, muito aconchegado e entretido. Nunca houve naquela casa outro homem para além de António José, mas a verdade é que se fez um homem rijo, de muito valor e bom trato.As irmãs Viola nunca chegaram a ter uma loja. Vendiam em casa o que traziam de Espanha e nevasse ou fizesse sol não passou um dia sem que tivessem atravessado a fronteira a pé.De madrugada encomendavam a alma, de dia faziam os recados, à noite, agradeciam as graças. Isabel morreu em paz, Josefa foi alegre até ao último dia e Maria, de 80 anos, ainda hoje fala como se toda a vida tivesse sido muito feliz. António José Viola casou, tem filhos sãos, é mestre alfaiate mas também foi polícia. Sabe que deve muito do que é à mãe e às suas tias cegas.LTarde Demais0 dia ainda vinha longe mas o barco já ia pesado. Passava das seis e meia. A madrugada gelava os ossos e o vento arrepiava os gestos. Chovia sem parar. Quatro vultos deitavam as mãos às redes com o vigor de quem luta pela vida. Mais duas braçadas firmes, a compasso, e ficou rematada a faina. Os robalos debatiam-se no escuro antes de serem atirados para o fundo e os vultos iam ganhando cor. Os sorrisos, esses, recuperavam o

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contorno habitual. 0 dia ainda mal começara mas, para os quatro homens, estava terminado. Exaustos, sentaram-se à uma. Preparavam-se para o aconchego do cigarro quando sentiram um torpor excessivo no motor. 0 bote parecia arrastar todo o peso do mundo. Um deles inspeccionou os cantos enquanto os outros tentavam perscrutar o fundo. De repente deram-se conta de que havia um rombo por onde a água entrava em cachão. Apressaram-se a dar vazão à água que subia mas a força dos braços nada podia contra o ímpeto do rio. Havia uma bomba50UM DIA ATRÁS DO OUTRO 151pequena que costumava servir, mas também ela se revelou escassa. A água transbordava e ameaçava afundar o barco. «Não dávamos vencimento àquilo, a água era demasiada.»Lestos de movimentos e raciocínio, dividiram tarefas e enquanto uns recolhiam os coletes de salvação, os outros desembaraçavam-se da roupa mais pesada. 0 barco ia a pique• a não ser as suas vidas, nada mais havia ali para salvar. Arruinada, a velha embarcação há muito não tinha rádio nem reservas de alerta ou protecção. Meio submersa, deixou rapidamente de dar luz e, antes das dez da manhã, já não havia vestígio da pobre lancha. No coração das ondas concêntricas desenhadas pelo afundamento, ficaram quatro homens tolhidos de frio a tentar desesperadamente manter à superficie o corpo• a esperança.Durante mais de cinco horas agitaram os pés e as mãos na água gelada. Tinham todos perto de 60 anos mas pareciam crianças aflitas. Chovia impiedosamente e o vento não dava tréguas. Fustigados pelas ondas, faziam os impossíveis para permanecer juntos e congeminar uma saída. 0 barco encalhara numa coroa de areia e eles sabiam que a maré havia de baixar. Nessa altura, com sorte, a superficie do barco emergia e eles descansavam um pouco.«Tivemos salvamento à vista por três vezes.» E por três vezes os batelões se afastaram, indiferentes aos gestos de raiva• aflição. «Batíamos com os pés na água com força para ver se nos viam, mas nada.» 0 dia estava embaciado. 0 céu, muito baixo, abafava os

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movimentos e as nuvens diluíam o horizonte na água do rio. Tudo assustadoramente conjugado para a desgraça dos quatro amigos.521 LAURINDA ALVES«Estivemos mais de cinco horas ao frio, à chuva e ao vento, todos encharcados. Sabe Deus o que passámos. Foi aquela chuva a bater permanentemente, o frio gelado e tudo aquilo que deu conta da gente. Aquelas cinco horas destroçaram-nos completamente. Foi o pior que podia haver.»Das fraquezas fizeram forças e aguentaram-se até a maré acabar de vazar. Passava das três da tarde quando o barco voltou a ficar à superfcie.«Àquela hora já tínhamos traçado a melhor maneira de nos salvarmos.» Conheciam as marés e as correntes como as próprias mãos e tinham decidido nadar em direcção a uma lezíria.«Ali onde estava a canoa tínhamos duas alternativas: ou fazíamos a travessia para a lezíria do Lombo da Póvoa ou para a do Lombo do Tejo.» A primeira era habitada mas difícil de vencer: «tínhamos que andar por cima das ostras». Caminhavam descalços e nadavam sem roupa. Depois do tormento das cinco horas de naufrágio, pareceu-lhes demasiado dura a provação. Sabiam que acabariam fatalmente com os pés e mãos todos cortados. Escolheram a lezíria do Lombo do Tejo.«0 tempo ali já era pouco. Era preciso rasparmo-nos depressa, era a hora ideal porque a maré estava vazia.»Partiram. «0 José foi à frente, estava apanhado pelo frio. Quando partiu levava as pernas negras e a cara toda roxa.»José Fragateiro toda a vida sofrera com o frio. Muitas vezes fora impedido de pescar pelas próprias mãos, que se negavam à lida. Seguiu 15 minutos antes dos outros, na miragem de alcançar um pedaço de terra firme e abrir caminho aos amigos.«0 meu relógio não tinha parado e vi que eram 15h e 15m quando o Zé foi», conta António Fragateiro, primo, o últimoUM DIA ATRÁS DO OUTRO 153a deixar o barco encalhado. A seguir ao José foi o Manuel com o Joaquim. António, nu da cintura para cima e enregelado por estar tantas horas seguidas imerso num rio glacial a esbracejar, esboçou mais um par de braçadas mas percebeu rapidamente que não teria alento para nadar os

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três quilómetros necessários para atingir a margem. Voltou para trás, rendido à evidência da sua própria morte.«Olhei outra vez para o relógio e não sei o que é que se passou comigo. Gritei: já não vou, Manel, se morrer morro na canoa!», e recolheu ao amparo dos destroços. Desabrigado, procurou uma corda e atou-se ao barco. Sem camisola, sem sapatos e com umas calças de oleado molhadas a fazer de agasalho. Em pouco tempo deixou de ver os amigos e ficou entregue à sua sorte. Encomendou-se à santa da sua devoção e esperou pelo fim. Num silêncio feito de chuva e lágrimas.«Rezei, rezei, pedi tanto pela Senhora da Atalaia, mas chegou uma hora em que já não esperava nada.»José Fragateiro nadou devagar durante uma hora seguida, sempre à vista dos dois amigos que o seguiam, e conseguiu chegar a um «mochão» daqueles que emergem, a espaços, por todo o Tejo. Arrastou o corpo pelo lodo e conseguiu sair da água. Tal como os amigos, também ele se desembaraçara da roupa para poder nadar melhor. Reduzido à roupa interior e ao colete de salvação, deixou-se ficar ao frio a ver se recuperava algum alento. Manuel Aranha chegou pouco depois de José. «Encontrei-o com vida mas com poucas forças. Andava de gatinhas pela lama, e chamei-o: Zé, anda aqui para ao pé de mim!».Joaquim Silva, o único que não sabia nadar, decidira541 LAURINDA ALVEScorajosamente acompanhá-los na travessia, mas embrulhara-se na névoa e perdera-os de vista pouco depois da partida. Às cegas e sem saber dos amigos, chegou ao mesmo mochão mas já não ouviu ninguém. Paralisado de frio e solidão e com o corpo dormente, não chegou a ensaiar um único passo. Deixou-se cair sobre a lama e ali ficou até ser encontrado. Sem vida.Do outro lado das moitas, Manuel tentava animar o amigo José. «Veio ter comigo de gatinhas e ainda fomos os dois pela beira do mochão. 0 Zé estava muito fraco e caía. Tropeçava na lama e eu agarrava nele, levantava-o e dizia-lhe para vir comigo.» 0 corpo de José Fragateiro, derrotado pelo frio, recusava-se a andar. 0 lodo dava pela altura dos joelhos e tornava muito penosa a caminhada.

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«Não aguento, Manel, já não aguento!» gemia baixinho, «Aguentas sim!» enganava-o o amigo, despedaçado com a possibilidade de ter de o deixar para trás: mas Manuel Aranha sabia que o amigo já não tinha forças para nada.«Não aguentava de maneira nenhuma. Dizia coisas que já não batiam certo.» Manuel ainda aguentou ao seu lado uma hora. A noite começara a cair e, também ele, se sentiu fraquejar. Não tinha um pedaço de roupa, uma sobra de plástico ou qualquer coisa com que tapar o amigo enquanto tentava chegar à margem. Pensou no que havia de fazer.«Se ficasse morríamos todos. Achei que era melhor nadar para terra e procurar ajuda.» Foi o que fez. Com o coração apertado por deixar ali o amigo sozinho.«Vim embora pelo mochão fora, sempre à pressa, a lembrar-me do António.» E do Joaquim e do José.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 155«Deus queira que chegue a horas, Deus queira que chegue», era o pensamento obsessivo de Manuel Aranha.Perto das dez e meia, noite cerrada, Manuel deu à costa. «Fui parar a Santa Iria, à fábrica do gás. Chamaram o 115 e deram-me apoio no posto médico.» Manuel Aranha estava em colapso físico e emocional mas ainda arranjou forças para fazer um rascunho onde indicou a posição do barco e o lugar do mochão onde ficaram os dois amigos. Depois não se lembra de mais nada.Nessa altura já as mulheres dos pescadores estavam em sobressalto. «A partir da hora do almoço comecei a ficar preocupada» conta Josélia Fragateiro, a mulher de José. «Normalmente chegavam por volta das 11h, meio-dia. Às três ainda não tinham dado sinal e comecei a ficar inquieta.» Josélia e as mulheres dos outros pescadores sabem, por experiência própria, que a falta de notícias tem apenas um sentido: má sorte.«Quando não estavam em casa mas tinham chegado a terra, telefonavam sempre.» Nenhum dos quatro ligou nem deu sinal de vida e, para aquelas mulheres de negro, a ausência dos maridos era um presságio de morte.Correram a avisar o cabo-de-mar e depois a Polícia Marítima e, ainda, a capitania do porto. Sozinhas em casa, sentaram-se à beira do telefone. No

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Montijo, a terra dos pescadores desaparecidos, ninguém mais teve sossego.A noite caiu opressiva e o seu peso afundou as famílias numa angústia cada vez maior. Do outro lado do fio, vozes impessoais davam conta das tímidas operações de salvamento. «Já foram duas lanchas para o rio», informava uma autoridade.Quando chegou a notícia de que Manuel Aranha chegara561 LAURINDA ALVESa terra as mulheres rezaram, choraram e riram. Talvez os outros tivessem vindo com ele.«Fui logo buscar uns cobertores», conta Josélia Fragateiro esboçando, sem querer, o mesmo sorriso que lhe iluminou o olhar quando imaginou a figura do marido finalmente salvo e aconchegado no calor dos seus cobertores.Seguindo o rascunho de Manuel Aranha, as lanchas partiram em direcção ao barco naufragado. A noite estava mais calma que o dia, mas as estrelas não brilhavam e os homens tiveram dificuldade em encontrar o ponto. Finalmente deram com a embarcação. António continuava amarrado ao barco. Mãos roxas, cara lívida e corpo negro do massacre das ondas e da tensão das amarras. Jazia praticamente inerte mas o pensamento flanava.«Quando chegou a uma hora da noite eu, que tenho visto muitas gaivotas e pássaros, nunca vi tanta bicheza em cima de mim. 0 mar parecia branco e as gaivotas andavam de roda dê mim. Que será isto? - pensei eu.» António delirava. Imaginou que vinha um vapor de luzes acesas, que se afastava tal como fizeram aqueles três a quem, remotamente, tinham pedido ajuda quando ainda estavam juntos. Fechou os olhos, porque não queria ver mais nada, e foi nesse estado de prostração que o recolheram e o cobriram de agasalhos.«0 meu primo Zé comunicou e vieram à minha procura», foi o derradeiro pensamento de António. Depois fechou os olhos e não se lembra de nada.0 primo Zé estava mais para lá, embrenhado nas moitas do mochão. Joaquim, há muito perdido em parte incerta, não dava sinais de vida. As lanchas aproximaram-se de cada um dos mochões que encontraram mas não tinham capacidade paraUM DIA ATRÁS DO OUTRO 157

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vencer a imensidão do lodo. Limitaram-se a apontar faróis e luzes potentes para ver se tinham resposta. Mortificados pelo frio e abandono, José e Joaquim já não estavam em condições de gritar. As lanchas regressaram à base.Em terra, Josélia e José Fragateiro, mulher e filho, faziam o que estava ao seu alcance para recuperar os náufragos. Fizeram os possíveis e pediram o impossível. Um helicóptero. Responderam-lhes que nem pensar. Perplexos e não conformados, insistiram. A resposta foi breve e seca: não. «É uma burocracia tremenda e, além disso, quem julgam que são para pedir um helicóptero?». Eram, simplesmente, a família mais chegada dos dois homens que morreram de frio e exaustão fisica por não terem sido resgatados durante a noite. 0 helicóptero não levantou e José Fragateiro e Joaquim Silva passaram mais uma noite no relento, despidos sobre o lodo.Na manhã seguinte, cumprida a burocracia e concedido o estatuto, o helicóptero largou finalmente da Base do Montijo. Em menos de meia hora os corpos foram encontrados. Amanhecera e Lisboa estava de novo à vista. Tão perto que parecia ao alcance de um braço.Josélia Fragateiro e Maria Domitília Silva foram chamadas a reconhecer os maridos. A eficácia póstuma das autoridades dilacerou ainda mais o coração das viúvas e filhos dos pescadores.No dia do enterro não havia um palmo de terra por onde pisar. Manuel Aranha e António Fragateiro estavam entre a multidão de amigos e choravam como duas crianças. «0 Joaquim levou as últimas horas a falar do neto Miguel. Tinha uma adoração pelo rapazinho e lembrava-se que ele se estreava na banda da Sociedade Filarmónica no dia seguinte. Queria vê-lo tocar mas581 LAURINDA ALVESjá não teve essa sorte», lastimava-se António, sem forças para encarar o rapazinho, também em prantos.«0 Zé é que nos ajudou a aguentar aquelas horas todas no mar. Falava, contava coisas e prometia que ainda havíamos de fazer uma caldeirada todos juntos.» Também não teve essa sorte. 0 helicóptero, disseram-nos, não voa de noite porque não tem holofotes. Talvez até conseguisse voar mas, para isso, era preciso que o apelido dos náufragos não rimasse com Fragateiro, nome singelo que têm os tripulantes de fragatas no Tejo.

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* Adaptado ao cinema por José Nascimento com o título «Tarde Demais», 20000 rapaz e o pássaroTanto vento e tanta chuva assustaram os pássaros naquele dia. Chocavam no ar, numa aflição de asas e gritos, à procura de abrigo. Alguns não voltaram ao ninho e houve um que ficou para trás, caído sobre a terra escura e molhada, atordoado pela ventania.Detrás de uma janela, o rapaz assistia à tempestade. De nariz colado ao vidro embaciava a janela sem querer e tentava olhar por cima para ver onde o pássaro caíra. Com o cotovelo da camisola de lã limpou o vidro para espreitar mais longe e conseguiu ver aquilo que lhe pareceu ser um movimento de asas feridas no chão. Pediu à mãe para o ajudar a salvar o pássaro e abriu as portas sem pensar no vento e na chuva que, num arrepio, inundaram a sala quente onde brincara toda a tarde.Cautelosa, a mãe voltou a fechar a porta, procurou um casaco e um chapéu mas a urgência do filho obrigou-a a desistir.59601 LAURINDA ALVESEntre relâmpagos e trovões correu até ao fundo do jardim, onde imaginara ver o pássaro moribundo. Não estava lá e a mãe puxou-o para dentro mas o rapaz, obstinado, resistiu e procurou noutro canto. Tinha a certeza que o vira cair e estava a precisar da sua ajuda. Avançou para o meio do jardim onde o vento espalhara o resto das flores das buganvílias e as folhas da hera que cobre os muros altos. Debaixo de chuva, ajoelhado na terra, o rapaz procurou minuciosamente. Afastou as folhas, passou as mãos ao longo do canteiro onde as hortênsias . perderam a cor e os bolbos das tulipas ainda não foram todos enterrados e destapou a mesa e as cadeiras que permanecem fora de casa mas não viu nada. Com os olhos cheios de lágrimas perguntou à mãe se teria morrido e a mãe percebeu que tinha que o ajudar a descobrir o pássaro ferido. Deu-lhe a mão e foram os dois procurar. Encontraram-no atrás de um vaso pousado no degrau de pedra, encolhido de dor. 0 rapaz secou as lágrimas sem dar por isso e suspirou aliviado. Com medo de o espantar atrasou o passo e encostou um dedo cauteloso ao nariz a pedir silêncio. Não era preciso pois o pássaro não se mexia. Assustado, permanecia naquela posição

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desprotegida, muito quieto, olhando em frente como se quisesse manter alguma dignidade.0 rapaz apanhou-o com cuidado e correu para dentro de casa. Procurou uma caixa de cartão, encheu-a de jornais e algodão e pousou o pássaro lá dentro. Só então concedeu deixá-lo para trocar de roupa e sapatos.Voltou e ficou deitado no chão de madeira, ao seu lado, para poder olhar de frente. Olhos nos olhos, fazia-lhe festas com a ponta dos dedos e tentava perceber o que era precisoUM DIA ATRÁS DO OUTRO 161fazer. A asa não estava ferida, não havia sangue nem sinal de golpes mas apenas uma pose de dor e um olhar de mortificação lenta. E uma respiração descompassada.Lá fora o temporal aumentara e anoitecia depressa. 0 rapaz sentia que era preciso fazer alguma coisa. Procurou um conta-gotas e deu-lhe água até ele se recusar a engolir. Depois desfez nas mãos o miolo de um pão e tentou dá-lo ao pássaro, que não comia mas olhava de baixo, como que agradecido.0 rapaz suplicou à mãe que levasse o pássaro ao médico mas a mãe explicou que era impossível. Chovia demasiado para irem todos para a rua. De repente, lembrou-se do senhor que morava por baixo, a quem um dia voara um pássaro, deixando-o desconsolado como uma criança órfá. Disse ao rapaz para ir bater à porta a pedir ajuda e ele foi, num sobressalto de esperança. Voltou com os olhos a brilhar e o senhor pela mão. Debruçados sobre o pássaro doente, ficaram os dois esquecidos a conversar. Comovido com o desvelo daquele senhor de sorriso bondoso e mãos protectoras, o rapaz entregou-se. Deixou que fosse ele a tratar de tudo e, então, o senhor desceu e voltou a subir, trazendo pendurado no braço um cesto de verga com o resto de uma manta velha.Com gestos delicados e uma voz sussurrada, os dois combinaram pôr o pássaro no cesto de verga para o senhor levar para baixo e cuidar dele até ficar bom.Ajoelhado, o velho senhor retirou o pássaro da caixa de cartão e pegou-lhe com as duas mãos em concha. Umas mãos muito grossas e extraordinariamente aconchegantes. A mãe não conseguia deixar de olhar

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para aquelas mãos de avô querido, aquelas mãos de homem grande que cuida e protege daqueles621 LAURINDA ALVESque precisam, quando precisam. Ficou a vê-los aos dois a ir pela escada com o pássaro no cesto, coberto com o resto de uma manta velha.0 rapaz voltou passado algum tempo e disse à mãe que o pássaro estava muito melhor. Deitou-se e nessa noite adormeceu infinitamente tranquilo. A mãe sonhou com o rapaz, o pássaro e o senhor de mãos muito grossas, fechadas em concha para proteger um pássaro ferido.Os olhos do Zé MariaConheci o Zé Maria no piso 7 do Instituto Português de Oncologia. 0 pai estava à sua cabeceira e a mãe aproveitara para ir à rua. Desde que, há dois anos, os médicos tinham diagnosticado uma leucemia ao seu bebé, passavam mais tempo a brincar com ele no quarto do hospital do que em casa.0 Zé Maria estava doente mas não parecia levar a doença muito a sério. Entretido com o brinquedo novo que o pai trouxera de Faro, a cidade onde sempre viveram, estava muito divertido.Entrei no quarto sem fazer barulho à espera de encontrar um menino de quatro anos prostrado e um pai e uma mãe muito abatidos mas dei com uma criança extraordinariamente alegre e faladora e um pai atento e bem disposto. Eu estava ali numa visita de trabalho, para fazer perguntas difíceis.0 fotógrafo da PAIS&Filhos passara uma semana no IPO a fotografar crianças com cancro e cabia-me entrevistar, depois, os pais de todas as crianças fotografadas e fazer um resumo do seu dia a dia.63641 LAURINDA ALVESTratava-se de mostrar a realidade dura mas incontornavel de pais e filhos condenados a viver uma vida radicalmente diferente daquela com que sempre sonharam e infinitamente mais dolorosa do que alguma vez imaginaram.0 pai do Zé Maria recebeu-me com enorme simpatia e o próprio Zé Maria abriu um sorriso quando me sentiu entrar. Digo sentiu porque, nessa altura, o Zé Maria já não via nada. Ficara cego na véspera do dia em que

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fora fotografado mas, por extraordinário que pareça, não estava especialmente incomodado por não conseguir ver.A sua memória recente, alimentada por uma imaginação prodigiosa, permitia-lhe juntar a cada palavra ouvida uma imagem tão viva que nem por um segundo lhe ocorreu lamentar a perda. 0 essencial é, como sabemos, invisível para os olhos e a verdade é que o Zé Maria continuava a ver através dos olhos do pai e da mãe.Tanto um como outro tinham convertido, rapidamente, todas as suas brincadeiras de criança em jogos tactéis, estimulantes para o ouvido e fáceis de fixar e o Zé Maria surpreendia tudo e todos pela facilidade com que aprendia a brincar com os novos brinquedos. E a viver sem ver.Sentei-me a vê-lo brincar aos engarrafamentos de berlindes enquanto o pai ia contando quantos lhe faltavam para encher o túnel por onde desciam. Ria, perguntava se estavam a acabar e, numa vozinha doce, pedia mais.- Papá, papá, há mais berlindes para eu pôr?0 pai endireitava as calhas de plástico e alinhava os berlindes à sua volta.Nos intervalos da brincadeira íamos falando mas o pai quase nunca olhava para mim. Primeiro estava o filho.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 165Contou-me tudo, desde o primeiro dia. De vez em quando confirmava um ou outro detalhe com o Zé Maria que, embora continuasse a brincar, estava muito atento à nossa conversa. Lembro-me de olhar para ele e, como se pressentisse o meu olhar, ele levantar a cabeça e sorrir.Visto ali naquele quarto de hospital asséptico e impessoal mas tão aconchegado pela presença e voz dos pais, o Zé Maria parecia uma criança incrivelmente feliz. E era, de facto, muito feliz apesar dos tratamentos, do cateter, dos enjoos e das saudades que tinha da sua casa e da sua cama.Sempre que o deixavam sair do hospital, os pais levavam-no a passear.Gostava de andar pelo campo e, um dia, atravessavam o Alentejo de carro quando a mãe lhe disse que ia a passar um rebanho. Já sem ver, o Zé Maria aproximou-se do vidro da janela, pôs as mãos em concha à frente dos olhos, como que a tapar o sol e gritou, maravilhado:- Ena, tantos! São milhões de carneiros, mãe!

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0 Zé Maria era, de facto, uma criança especial. Nunca se queixava e raramente chorava. Era dos poucos que aguentava fazer os tratamentos de radioterapia sem ser anestesiado porque preferia (e conseguia) ficar absolutamente imóvel durante vários minutos seguidos.Admirável pela boa disposição e pela maneira como lidava com a doença, o Zé Maria era um exemplo no piso 7 do IPO. Adorado pelos médicos, enfermeiras e voluntários, seduzia pelo sorriso e pelo ar terno com que falava e pedia explicações. E por se parecer com os pais.Ao longo dos dois anos que passaram (ou viveram) naquele661 LAURINDA ALVEShospital, os pais do Zé Maria revelaram uma extraordinária lucidez e boa disposição. Confrontados com a possibilidade remota de um transplante de medula tomaram decisões dificeis. No auge do sofrimento e da angústia souberam manter o sorriso e procurar ajuda. Investigaram, correram, andaram, viajaram e fizeram tudo o que estava ao seu alcance.Aceitaram o que era possível enquanto sonhavam com o impossível. Não desistiram nunca. No dia em que perceberam que já não havia remédio para o Zé Maria levaram-no ao colo para casa e deitaram-se os três muito juntinhos na mesma cama. E é muito juntinhos que hão-de viver para sempre. Estejam onde estiverem.Vou ser feliz!Cem dias e cem noites passaram sobre a última madrugada vivida no pátio de luz e sombras que me há-de acompanhar até ao último dia.Cem dias e cem noites, o tempo preciso para voltar a acreditar que existe mesmo uma possibilidade de ser tão feliz ali como em qualquer lugar.Cem dias e cem noites, um tempo exacto e geométrico. 0 tempo que as coisas demoram a assentar. A esquecer e a lembrar. A curar e a apagar.No dia em que voltámos juntos ao lugar onde tudo ficara desenhado no chão para, um dia, recomeçar, as primeiras pedras e os primeiros ferros já estavam de pé. Fortes, consistentes e, no entanto, ainda frágeis como o caule dos lírios e transparentes como o vidro das janelas onde, na derradeira madrugada, os mosquitos bateram aflitos e morreram cegos pela luz.A água da barragem transbordou e o lago espelha agora67

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681 LAURINDA ALVESum céu ainda maior. Infinito, onde cabem quase todas as nuvens e, ainda, as sombras das árvores, das canas e dos juncos que antes não se viam por estarem para lá da cerca de madeira.A água, batida pelo vento do Outono, corre veloz como se houvesse naquele lugar alguma pressa. Uma urgência de voltar para ficar.Espalhados pelo chão, os montes de areia, de terra húmida, de pedras e tábuas desalinhadas, dão a este lugar um ar de desordem, de caos instalado. E, no entanto, é apenas mais uma ilusão.Por detrás de cada pedaço de lama cinzenta arrancada debaixo do chão e posta de lado para voltar para onde veio, existe uma teia invisível de ferro e pedra, escrupulosamente tecida para travar a terra e conquistar o espaço subterrâneo por onde corre o labirinto de esquadrias que hão-de voltar a sustentar as paredes, o telhado e grande parte da nossa existência.0 vento, incessante, atravessa todo o campo fazendo inclinar as ervas e o que resta da seara à sua passagem e trespassa a copa das árvores que balançam, mas não vergam. As árvores mais antigas foram plantadas com ciência, do lado de lá da barragem, no monte que se eleva subtilmente a partir da linha da água e se estende para trás, a perder de vista.As árvores mais novas foram impecavelmente alinhadas do outro lado, num bosque infantil feito de alamedas rectas, cobertas de musgo, trevos e folhas ocres.Ao longe, mesmo muito longe, uma linha de plátanos cor de fogo parece suspensa no fio do horizonte. No crepúsculo, o amarelo quente que se desprende das suas folhas ilumina o céu e chega a confundir-se com o sol poente.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 169Do lado oposto, o sol a pique mostra onde está o norte e o sul, cobre a terra de sombras e espalha cores impossíveis. Uma paz absoluta também.Ninguém fala porque ninguém quer quebrar o silêncio nem dissolver a perfeição dos minutos que se sucedem. Lentos, leves e irreais.De repente, um barulho desperta outros sons. Um riso infantil revela o esforço de ganhar balanço para subir ao monte de areia mais alto, o grito da primeira cigarra que pressente a escuridão antecipa a noite e as rãs

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mergulham devagar porque reconhecem aquela hora no seu elemento. Das árvores desprende-se o inconfundível rumor das folhas que estremecem e se tocam, o vento voltou e a luz vai-se diluindo deixando um rasto de sombras cada vez mais escuras e pequenas luzinhas que, silenciosamente, se acendem nas casas ao fundo. Num instante a terra fica mais escura do que o céu e as primeiras estrelas são estas que aparecem rentes ao chão. Por magia. Como se fosse possível suspender o mundo e virá-lo ao contrário sem perturbar a quietude e a ordem de todas as coisas.Ao longe, uma voz distraída canta sozinha fragmentos dispersos de canções infantis. Cala-se, enche o peito de ar, apanha mais uma vez balanço e chega, finalmente, ao cimo do monte mais alto.- Vou ser feliz! - grita.0 grito dissolve-se no ar, mas fica guardado no meu coração. Para sempre.No céuAntes de ficar doente a cama estava arrumada no centro do quarto, encostada à parede branca do fundo onde havia dois quadros antigos, pintados perto do mar. As janelas ficavam à direita da cabeceira e tudo o que conseguia ver, assim deitada, era a copa de um plátano, as nuvens que iam para onde o vento as levava e os aviões que riscavam o céu nos dias de Verão. De resto apenas o barulho dos dias, o som das vozes e dos carros.Quando ficou doente arrastaram a cama para debaixo das janelas e, então, podia ver mais árvores e quase todo o céu.Passava muito tempo acordada, a lembrar-se do que fora a sua vida. Tinha dores e aliviava os tratamentos com a memória exacta das coisas passadas.Fechava os olhos e deixava-se ficar, como que adormecida, anestesiada pelo desconforto, a tentar retomar o fio do pensamento. Começava por pensar nos dias felizes. No calor intenso dos verões passados na serra, nas tardes de domingo70UM DIA ATRÁS DO OUTRO 171em que todos se juntavam no pequeno vale ao lado da vinha, perto do tanque, todos os anos limpo e todos os anos cheio de água gelada e

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cristalina, em que se estendiam as toalhas brancas sobre a terra dourada, em que todos se atropelavam para falar e as gargalhadas e gritos alegres se descombinavam no ar.Pensava naqueles dias compridos, ampliados pela felicidade de estarem juntos, tão perto uns dos outros e tão protegidos naquele mundo inteiramente criado por eles e para eles.Sem saber, sorria quando lhe parecia ouvir ainda a voz do pai, murmurada entre ombros, com aquele olhar inclinado de quem chama a atenção para o que é importante.Havia naqueles dias um cheiro que nunca mais encontrou, um cheiro a maçãs que se desprendia da macieira antiga e perfumada, em cuja sombra estendiam as toalhas e passavam as tardes de domingo de cada Verão.Desde que ficara na cama doía-lhe o coração e a alma mais do que os braços ou as pernas. Doía-lhe a ausência dos outros, a distância do mundo, a extensão desmesurada do tempo.Devagar, como num sonho que chega ao fim, deixava que a última imagem se desvanecesse na memória e, só então, concedia voltar à realidade. Abria os olhos e procurava ver na cor das folhas dos plátanos a estação do ano, o mês que corria. Aprendeu, com o tempo, a medir as horas pela luz do céu, pelo brilho no vidro. Gostava especialmente das manhãs enevoadas, dos dias de chuva e vento pois tudo ganhava vida naquela janela.Os plátanos tingiam-se de cores fortes e quentes e podia acompanhar as folhas a cair imaginando como seria a vida daqueles que ouvia, ao cair da noite, raspar o chão para varrer e amontoar de lado as folhas secas das árvores.721 LAURINDA ALVESNo princípio deixava o pensamento livre, entregava-se às memórias boas e más sem pretender impor uma ordem ao caos. Depois percebeu que lhe sobrava tempo e angústia e estabeleceu prioridades naquela vida vivida. Primeiro os filhos.Pensava em cada um como se fosse único e conseguia lembrar-se de coisas que nem julgava terem acontecido. Com uma nitidez perfeita ouvia as palavras e recordava os gestos. Em silêncio, respondia, ainda, a perguntas que tinham ficado sem resposta e franzia a testa erguendo, sem

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saber, as sobrancelhas nos momentos em que alguma coisa tinha sido particularmente dificil de viver ou aceitar. Na maior parte das vezes sorria sozinha, aquele sorriso doce, de entrega, de que é feito o sorriso de uma mãe.Primeiro o mais velho. Demorou meses a lembrar-se de tudo com detalhe. 0 dia em que soube que estava à espera, a frase do médico, o silêncio comovido do pai, o tamanho que, nesse dia, imaginou ter, a rua por onde desceu e a outra por onde subiu. A hora em que nasceu, a maneira como cresceu, o que disse e o que calou. A vida como ela foi. Depois o segundo filho, o terceiro e todos, até ao décimo. Foram precisos anos para se lembrar de tudo e todos. E para se esquecer que a sua vida estava suspensa e lhe cabia apenas viver o que já estava vivido. Ao sexto ano de memórias deu consigo a lembrar o dia em que os filhos se juntaram à cabeceira para ouvir um médico dizer que não voltaria a andar nem sair daquele quarto. Chorou outra vez como naquele dia. Engoliu as lágrimas sem dizer uma palavra e suspirou. A filha do meio permanecia à cabeceira. Rezava baixinho o Oficio da Agonia. Percebeu que, depois de longos dias de silêncio, a mãe voltara a si. Estendeu a mão e perguntou baixinho:UM DIA ATRÁS DO OUTRO 173- 0 que quer, minha mãe?- Quero ir para o céu.E foi. Sem dizer uma palavra, sem voltar a abrir os olhos esem outro gesto para além de um vago esboço daquele sorrisodoce e maternal, todo feito de entrega.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 175Rosas brancasSentadas na sala, cada uma na sua cadeira, de frente para a outra, manta sobre as pernas e lareira ainda apagada, liam as duas o mesmo jornal. Há anos sem fim que o Sr. Américo, do quiosque da esquina, guardava diariamente dois jornais para as «meninas». Liam num silêncio esquecido, óculos meia-lua ligeiramente descaídos, pescoço levantado e queixo muito direito, numa pose altiva e concentrada.Demoravam em cada página e, num descompasso perpétuo, acenavam negativamente sempre que as notícias lhes desagradavam. Raramente faziam comentários entre si; preferiam guardar a substância do dia para a

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hora do chá, quando voltavam a estender-se naqueles sofás de orelhas, com tempo para conversas antigas.Maria Amélia, a mais velha, acabava sempre primeiro. Suspirava, dobrava o jornal em quatro e pousava-o na mesinha74de madeira escura cheia de fotografias emolduradas onde deixava também os óculos. Levantava-se devagar e cumpria o ritual da manhã que se resumia a ir até à janela, afastar ligeiramente o pano de linho branco e fino que cobria as janelas muito altas, de vidros inteiros, e ficar de pé a olhar sem ver, com ar alheio.Maria Luísa deixava-se ficar sentada muito mais tempo. Fingia ignorar os passos da irmã, a distância dos anos e o peso do silêncio. Lia e relia, fazia barulho com as páginas do jornal, que folheava com avidez. Muitas vezes pensava alto, embora, por pudor, as palavras saíssem num murmúrio imperceptível. Sabia que Maria Amélia não gostava de ser incomodada, quando cismava, pois tudo lhe perturbava o silêncio e era, por isso, muito delicada com ela. Desde que ficara viúva, a irmã passava a vida encostada à janela, àquela janela de vidros altos de onde se via a rua e uma casa recuada, erguida entre a linha do horizonte e uma alameda de cedros antigos abrigados pelo muro de pedra caiada, desenhado sem arestas e redondo no cimo.Na cozinha, a senhora Justa preparava o almoço, enquanto a Milagres entrava e saía dos quartos sem dizer uma palavra. Às vezes cantava baixinho, enquanto arrumava as camas ou limpava os vidros. Abria as janelas mal entrava e só voltava a fechá-las quando olhava à volta e tudo lhe parecia impecável. Chovesse ou fizesse sol, gostava do ar e do barulho que entrava naquela casa sempre tão silenciosa e em ordem.Debruçada sobre a cama de Maria Luísa, via reflectida no vidro aberto a imagem de Maria Amélia, encostada à janela da sala. Como numa pintura, num esboço de quadro antigo, a senhora mantinha a pose muito direita e, ao mesmo tempo, triste, de quem espera que alguém chegue ou chame por ela.761 LAURINDA ALVES UM DIA ATRÁS DO OUTRO 177Maria Luísa não era tão magra e tão alta como a irmã. voltar a olhar para aquela casa de muros altos e arredondados,

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Nunca tivera a sua elegância aristocrática, mas também não se de onde se viam os cedros e o fio do horizonte, mas tambémlembrava de algum dia lhe ter invejado a figura. Achava-a bonita

longas filas de rosas brancas plantadas em linhas muito direitas,e muito elegante, mas seca de alma. Perdoava-lhe as fraquezas, todas voltadas para a sua janela. pois conhecia a raiz da sua agonia.Maria Amélia amara um homem que, dizem, a amava muito, mas a quem nunca tinha tido a coragem de o dizer. Muito rico, muito bonito e aventureiro, era também muito pretendido, e Maria Amélia nunca acreditou ser capaz de o amar assim, sem posse, nem dúvida. Fingiu que amava outro e deixou que as famílias tratassem de tudo. 0 tempo correu demasiado depressa e deu por si noiva de um homem que nunca amara, mas que tinha por ela verdadeira devoção. Incapaz de desiludir os que nela acreditavam, acertou a data do casamento e cumpriu, sem uma lágrima que se visse, todo o ritual.Na hora em que casava, os sinos tocaram sem cessar, num compasso de festa. Quando os noivos saíram da igreja, ouviu-se no ar o som de um motor e um avião de hélices brancas riscou o céu, dando voltas sobre a multidão, deixando cair qualquer coisa que ninguém percebia o que era. Só quando o avião se retirou, num arranque solene e triste, as pétalas de rosa inundaram o chão de pedra, pousaando delicadamente nas abas dos chapéus das senhoras e nos ombros dos homens de casaco de cerimónia. De repente, tudo ficou coberto por um manto branco e perfumado de pétalas de rosa.Maria Amélia olhou para o céu e chorou o seu amor perdido, mas ninguém reparou. Secou as lágrimas, abriu um sorriso e viveu o que lhe foi dado viver. Os cinco filhos casaram e, anos mais tarde, o marido morreu. Só então Maria Amélia se concedeuUM DIA ATRÁS DO OUTRO 179E agoraE agora, que o tempo nos dispersa e os dias correm, um atrás do outro, sem darmos conta de que tudo é tão efémero; agora que nada nos junta mas tudo permanece para nos lembrar aquilo que ficou por dizer; agora que a mãe procurou a sua filha em todos os lugares antigos onde costumava encontrá-la; agora que nada nem ninguém deu por ela parada,

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a ouvir e a ver aquilo que só ela consegue ver e ouvir; agora que os filhos foram pela mão do pai até ao deserto olhar para as estrelas e tentar perceber a sua ausência; agora que sabem que ela está muito longe mas muito perto; agora que a sua imagem ficou gravada para sempre em retratos que se multiplicam nas prateleiras de casa dos seus filhos e do seu amor e, também, na casa de cada uma das irmãs, do irmão, da família e dos amigos; agora que temos a certeza de que está mais viva do que nunca na memória e no coração de todos aqueles que a conheceram, a vida começa devagarinho a recuperar algum sentido.A morte de um filho traz uma dor que o tempo não cura nem apaga, mas a morte de uma mãe também não se consegue esquecer. Sobretudo quando os filhos não tiveram tempo para viver com ela tudo o que precisavam de viver e, menos ainda, para dizer adeus, sentir o seu colo e o seu cheiro pela última vez.As despedidas são infinitamente tristes mas ajudam a caminhar em frente. E a arrumar o que ficou para trás.Quando não conseguimos despedir-nos das pessoas que verdadeiramente amamos sentimos que tudo ficou por dizer.As saudades atordoam e a vontade irreprimível de voltar a ver, tocar e ouvir dói como as feridas que não curam.Foi por isso que a mãe procurou a sua filha nos lugares antigos onde antes passeavam e riam descontraídas como se o tempo fosse eterno e nada nem ninguém as pudesse separar.Avelhentada, a mãe percorreu todas as ruas sozinha e foi parando de cada vez que o coração, em sobressalto, a obrigava a parar. Não porque a imaginasse ali, não porque suspeitasse que ainda era possível espiar-lhe os gestos ou ouvir-lhe a voz, mas porque queria ficar quieta a medir cada palavra então trocada.Só uma mãe sabe como fazer isso, só uma mãe consegue sair do mundo sem que mais ninguém perceba e caminhar para trás no tempo. Foi o que ela fez em cada lugar onde esteve parada. Como as fadas dos contos, mãe e filha tornaram-se inconsistentes, suspenderam o tempo, abstraíram-se do espaço e voltaram a estar juntas. E choraram e riram sozinhas, em segredo. E contaram coisas uma à outra e voltaram a rir e a chorar, pois é

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de lágrimas e risos silenciosos que é feita a linguagem imaterial das fadas. E combinaram nunca mais deixar de se ver78801 LAURINDA ALVESUM DIA ATRÁS DO OUTRO 181daquela maneira e permanecer juntas para sempre e ficar a saber tudo uma da outra sem ter que usar palavras nem esboçar gestos. Fechando apenas os olhos e chamando, em silêncio, uma pela outra.Os filhos, esses, estão a aprender a linguagem dos anjos. Precisam de tempo para compreender, primeiro, que a morte é inelutável. Que por mais saudades que tenham, a mãe não volta para eles da mesma maneira. É dificil explicar isto a crianças de quatro e seis anos. É duro saber que sofrem a sua ausência, todos os dias, hora a hora.Riem e brincam com os amigos mas olham para o mundo de maneira diferente porque a procuram em todas as coisas e em cada pessoa. Sonham com ela à noite, depois de ouvir a voz do pai à cabeceira, e são os sonhos que os embalam e os levam até ela. É no segredo da noite que tudo acontece, é no silêncio do quarto que se lançam para o seu colo, se abraçam e conversam como faziam sempre.À noite custa adormecer e, de manhã, custa acordar. 0 pai pega-lhes na mão e leva-os pela penumbra do quarto até à janela. Mostra-lhes o Sol e o lugar de onde ela consegue vê-los melhor. Ajuda-os a escolher a roupa, a arrumar a pasta e a fazer o risco no cabelo. Senta-se com eles para comer e conta-lhes histórias logo de manhã. Responde às perguntas como se tivessem todo o tempo do mundo. Mesmo quando correm pela rua fora para chegar a horas à escola, tudo parece infinitamente tranquilo. E, outra vez, quase tudo certo.À noite carrega-os ao colo, põe pasta na escova de dentes enquanto espera que se dispam e riem juntos com os disparates que só eles sabem fazer. Deita-os na cama, aconchega-lhesos lençóis, apaga a luz e conversa com eles antes de adormecerem. Fala em voz baixa para não perturbar a paz que invade o quarto. Às vezes limpa as lágrimas que caem mas outras vezes deixa-as a brilhar no escuro, como estrelinhas capazes de guiar a mãe e trazê-la mais depressa para os sonhos.

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Depois sai de mansinho e volta para a sala onde permanece em silêncio. Abre a janela, aspira o ar da noite, ouve o murmúrio vegetal das folhas que balançam nas árvores e, sem se dar conta, repete a pergunta que o consome. E agora?UM DIA ATRÁS DO OUTRO 183A verdadeira história daCarochinhaEra uma vez uma senhora, nem nova nem velha, nem bonita nem feia, que vivia numa casa tão grande e tão rica que mais parecia um palácio. A senhora não tinha marido nem filhos, mas gostava muito de crianças. Não apenas das crianças, mas de tudo aquilo que elas diziam e faziam. Especialmente daquilo que pensavam. Essa senhora gostava de ensinar e gastava o melhor do seu tempo a ler e a estudar a melhor maneira de as fazer felizes.No quarto onde dormia, parecia impossível viver alguém. Papéis espalhados pelo chão, livros empilhados até ao tecto, revistas antigas e modernas, cadernos de estudo, blocos de apontamentos, tudo se misturava naquela enorme divisão, onde mal sobrava espaço para uma cama. A sua cama.Todas as noites adormecia a sonhar com uma escola onde as crianças pudessem aprender a ler e a escrever mas, também, a ser livres para pensar. Um dia, o seu sonho mais antigo tornou82-se realidade e a senhora ficou, para sempre, conhecida pela escola que fundou.Com a abertura de uma nova escola, Maria Ulrich, a senhora que vivia rodeada de livros num palacete, inaugurou muito mais do que o espaço de um colégio. Criou um método de aprendizagem que, esse sim, fez escola através dos tempos.Numa definição demasiado abreviada, o método consistia em acompanhar e orientar cada uma das crianças conforme o seu talento. Como se fosse única. A árvore exclusiva de uma imensa floresta.Muito mais do que um colégio para crianças, Maria Ulrich criou uma verdadeira escola para professores e educadores. Ao longo de mais de vinte e cinco anos em que dirigiu com prodigiosa imaginação e

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escrupulosa ciência a sua escola, Maria Ulrich empenhou-se em deixar sucessores que garantissem a eficácia de um método que, naquele tempo e, especialmente, aos olhos de Salazar, parecia demasiado revolucionário.Desde o primeiro dia em que abriu as portas do «Nosso Jardim» até ao último que ali passou, Maria Ulrich disse sempre que aquela escola só seria perfeita no dia em que tivesse um cão. Maria Ulrich morreu em 1988 e foi preciso passarem alguns anos até que Luísa Vian, educadora, antiga aluna de vinte valores e uma das suas favoritas, resolveu levar um cão para a escola.Optou por um labrador por ser indicado para as crianças e escolheu uma cadela de pelo curto, preto e muito brilhante. Baptizou-a de Carocha, comprou um cesto e passou a levá-la todos os dias com ela para o Nosso Jardim.A Carocha cresceu dentro do colégio e as crianças habituaram-se à sua presença doce e tranquila. Conquistou não só um841 LAURINDA ALVESUM DIA ATRÁS DO OUTRO 185canto da casa como o coração de todos os alunos que passaram pela aula de Luísa Vian, ela própria uma lenda viva e uma das mais nobres herdeiras da herança deixada por Maria Ulrich.Há tempos discutiu-se, no Nosso Jardim, a possibilidade de cruzar a Carocha com um cão da mesma raça e de a deixar, depois, ter os cachorrinhos na escola para que os alunos pudessem assistir. Alheios ao projecto, os pais limitavam-se a fazer umas festas avulsas sempre que subiam à aula para entregar os filhos e a olhar para a cadela com simpatia.Na semana passada alguns pais receberam um convite extraordinário: os seus filhos faziam parte do grupo dos «maiores amigos» da Carocha e, por isso, eram convidados a passar uma noite inteira no colégio para assistir ao nascimento dos filhos. Para o efeito era sugerido que trouxessem apenas um saco-cama e quatrocentos escudos para encomendar uma pizza.Surpreendidos com aquele convite original, impresso numa fotocópia da fotografia da Carocha recortada na sua forma maternal, nós, pais dos filhos eleitos (infelizmente não puderam ser todos os alunos do colégio,

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porque não cabiam na aula nem era humanamente possível assistirem todos ao parto), ficámos sinceramente comovidos.Quando soube o que o esperava nessa noite, o meu filho não quis perder nem mais um segundo. Mal chegou a casa, declarou que ia voltar para o colégio e suplicou-me apenas que lhe arranjasse um saco-cama.Quando passei no colégio, perto das nove da noite, estavam lá quinze crianças, entre os sete e os nove anos, preparadas para a aventura de passar uma noite em claro para assistir ao parto da Carocha. Nasceram sete cachorrinhos, todas as criançasajudaram e souberam fazer silêncio quando era preciso. Muito poucas dormiram mais do que um par de horas.No dia seguinte, todas fizeram questão de assistir às aulas. Cheias de sono, mas também de histórias inesquecíveis para contar. Aparentemente, estavam do mesmo tamanho, mas, olhando com mais detalhe, percebia-se que, numa simples noite, tinham crescido muito. Maria Ulrich tinha razão.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 187Sentido religioso

E quando olho no céu arder as estrelas;digo pensando para mim: para quê tantas candeias? Que faz o ar infinito, e aquele profundo infinito sereno? Que quer dizer estasolidão imensa? E eu que sou?G. LeopardiEstes versos do «Canto Notturno di Un Pastore Errante dell'Asia» em que o pastor, olhando o infinito do céu e da terra, faz perguntas à Lua sobre o horizonte sem fim, exprimem toda a fragilidade do homem e o enigma mais antigo e, porventura, maior de todos os tempos: saber quem somos e qual o sentido da vida. Saber de que é feita a realidade e para que existimos. 0 que está para lá do fio do horizonte.Na verdade, o significado último da existência não é uma preocupação de crentes ou não crentes mas uma dúvida que se põe a todo e qualquer ser humano e é neste sentido que Luigi Giussani, o fundador do movimento

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Comunhão e Libertação, fala de um sentido religioso. Como abertura ao mistério, como consciência de um destino, como paixão pela realidade.86Desde a noite dos tempos que poetas, filósofos, escritores e teólogos se interrogam apaixonadamente sobre o sentido da vida, sobre a razão de ser do homem e do infinito. Sobre o que existe para além da nossa janela e daquilo que a vista alcança. E, no entanto, desde os primeiros dias o homem sabe, secretamente, que é preciso ouvir a voz das coisas antes de ouvir a voz dos filósofos.Que é preciso ter uma atenção à realidade tal qual ela é. E que só através da paixão pela realidade, pelas suas evidências, podemos chegar às perguntas fundamentais sobre o destino do homem e a substância da vida.A Verbo acaba de editar um livro essencial sobre esta matéria. Um livro que se interroga, nos interroga e acompanha neste percurso de compreensão da existência. «0 Sentido Religioso» de Luigi Giussani é, porventura, o melhor livro de cabeceira que se pode ter.Eu que não gosto do conceito de «livro de cabeceira» por ter um prazer especial em empilhar livros à cabeceira sem que necessariamente algum deles seja digno desse crédito, assumo que este é um daqueles livros que nos ajudam a pensar e ao qual podemos (ou devemos) voltar muitas vezes.Alexis Carrel, Nobel de Medicina, escreveu nas suas «Reflexões Sobre o Sentido da Vida», que «pouca observação e muito raciocínio levam ao erro e muita observação e pouco raciocínio levam à verdade» e é por aqui que começa Giussani. Pegando nas palavras de Carrel para, com ele, afirmar que «a vitória das ideologias consagra a ruína da civilização».Giussani aposta no realismo, na «observação integral, apaixonada e insistente do facto, do acontecimento real» como881 LAURINDA ALVESUM DIA ATRÁS DO OUTRO 189método de reflexão e conhecimento, mas adverte para os excessos da razão. Devemos fixar o olhar em cada coisa, em cada gesto e cada pessoa e não ver apenas pelo canto do olho, projectando ou imaginando não aquilo que lá está mas aquilo que pensamos que lá está.

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Ou, dito de uma forma ainda mais simples, devemos assumir uma atitude individual de observação da realidade, devemos compreender cada coisa sem nos deixarmos ir pelo que os outros dizem e pensam. Sem preconceitos, sem medo de aplicar um critério individual, orientado pela nossa consciência. «Não partir de uma interrogação existencial própria seria como perguntar pela minha vida a outro», sublinha Giussani.0 realismo surge, assim, como a primeira premissa do conhecimento. Só partindo do real, da experiência individual é possível reflectir e conhecer. Aliás, a própria Natureza «lança o homem na comparação universal consigo próprio, com os outros, com as coisas, dotando-o de um complexo de evidências e exigências originais, de tal modo originais que tudo o que o homem diz ou faz depende delas». Na verdade, estas exigências têm muitos nomes: exigência de felicidade, exigência de verdade, exigência de justiça e mil e uma exigências que, como sabemos, põem em acção o motor humano.«0 Sentido Religioso» é um livro simples mas não é um livro fácil. Exige atenção, pede tempo e convicção. Radical na forma como elabora todas e cada uma das questões essenciais, Giussani toca-nos profundamente. A sua clareza de raciocínio, a agudeza de espírito e, acima de tudo, a extraordinária arquitectura filosófica e espiritual que revela fascinam e perturbam ao mesmo tempo. Obrigam a pensar tudo de maneira diferente.E a viver melhor, confiados naquilo a que chama as certezas morais.«Matemática, Ciências Naturais, Filosofia - são necessárias para a evolução do homem; são condições fundamentais para a civilização. Mas podíamos muito bem viver sem a Filosofia, sem saber se a Terra anda à volta do Sol. Sem certezas morais é que não podemos viver. Nenhum homem pode viver sem poder ter juízos seguros sobre o comportamento dos outros para com ele.»Para resumir a essência destas certezas mais certas, seriam precisas muito mais páginas, tempo e talento. Nada melhor do que pegar no livro e ler o que diz o próprio Giussani.921 LAURINDA ALVESLembro-me de um dia ter encontrado todos os cromos de futebol perfeitamente organizados e alinhados num lugar tão impossível como o

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bocado de chão que fica debaixo das janelas, entre a portada e as cortinas. Quando tentei resgatar os cromos do chão explicando que havia lugares melhores, foi impossível e, na verdade (e perante a argumentação), acabei por concordar que aquele espaço era perfeito para os cromos, e foi ali que permaneceram até lhes ser inventado outro destino.Houve outra vez em que dei com uma sucessão de revólveres de metal, todos escondidos debaixo da cama, mesmo à mão de semear. Estavam ali para o que desse e viesse e foi ali que, naturalmente, ficaram.De cada vez que apaguei a luz, depois de dar o último abraço e o último beijo, e tropecei em bocados de brinquedos encostados à parede a fingir que eram fortes apache, peças de dominó de madeira ou paus de Mikado alinhados pelo chão a desenhar um apertado circuito de fórmula 1 ou, ainda, desenhos dispersos mas sempre reveladores daquilo que, de alguma forma, ia marcando a nossa existência, tive vontade de enfiar tudo numa das caixas mais fundas e fingir que, de uma vez por todas, o quarto ficava arrumado. Felizmente foi prevalecendo o bom senso e a regra imperiosa de que há mínimos a cumprir.0 resto, aquilo que permanece disperso pela casa e encontro à noite em silêncio (como o saquinho de plástico atado com um nó) já não me enerva. Antes pelo contrário. Interessa-me e comove-me por se tratar de mais um daqueles misteriosos despojos do dia.Ladrão e cavalheiroAcordou a meio da noite, com uma sensação de formigueiro nos pés. Como se lhe estivessem a fazer cócegas. Tacteou à volta, à procura do candeeiro. De repente sentiu que não estava sozinha no quarto. Deu um salto na cama, endireitou-se e, mesmo sem reparar, protegeu-se com o lençol. Olhou para o fundo do quarto: um ladrão sentado no fundo da cama! Da sua própria cama.Com uma lanterna na mão, um blusão castanho e porte de rapaz novo, a figura pôs o indicador à frente da boca a pedir silêncio.- Não faças barulho! Não te quero fazer mal.- 0 que é que estás aqui a fazer? Perguntou a senhora com uma veemência surpreendente para os seus 80 anos.- Sou um ladrão!

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- És mesmo um ladrão? E estás sozinho?- Não. Estou com mais dois.93941 LAURINDA ALVES- Onde é que eles estão? - Na sala.- E os cães?- Não te preocupes, demos-lhes um bocado de carne comuma coisa para ficarem a dormir. - 0 que é que já roubaram? - 0 vídeo.- 0 meu vídeo? Nem penses! Sabes o que é um RollsRoyce?- Sei, porquê?- É que o meu vídeo é o Rolls Royce dos vídeos. Nem te atrevas a levá-lo!- Ai levo, levo!- Ai não levas, não! Por quanto é que vais vendê-lo depois? - Por dez contos.- Dou-te vinte!E esboçou o gesto de quem procura a carteira. Na penumbra e com a mão que segurava a lanterna a tremer, o rapazlevantou a voz.- Está quieta senão eu mato-te!- Não sejas parvo. Não matas nada porque o pior era para ti. Ficavas numa situação muito complicada.Desembaraçada, a senhora abriu a gaveta da mesa de cabeceira onde tinha uma caixinha com jóias e a sua carteira. À frente do ladrão contou vinte contos, voltou a arrumar o que sobrava (outro tanto) e estendeu o dinheiro ao rapaz que o guardou com gestos rápidos e incisivos.- E onde é que foram mais?- Ao frigorífico. Só tirámos um lombo.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 195- 0 lombo? Nem penses! Deixas cá o lombo se fazes favor porque já está temperado, o meu filho só gosta de carne e não tenho tempo de ir comprar nada para amanhã.- Eu levo o lombo, já disse.- Já te disse que não levas. Devolves-me o lombo e pões-te a andar.- Então tens que prometer que não chamas a polícia.

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- Era o que faltava!- Então promete que esperas, pelo menos, meia hora até chamares alguém.- Está bem, eu espero.0 rapaz desapareceu na sombra. A senhora ficou no seu quarto, muito quieta, sem saber o que fazer. Ainda mal refeita do susto e do inédito da situação tentou raciocinar e perceber se ainda havia alguém em casa. Ouviu uns barulhos na sala e viu, através de uma réstia de luz que entrava da rua, umas sombras a afastarem-se. Esperou 20 minutos, não mais, e chamou pelo filho e pelos de casa.Correram para a sala e verificaram que, afinal, os ladrões tinham levado o vídeo e o dinheiro. A senhora achou incrível a falta de palavra mas, num ataque de escrúpulo, lembrou-se que ela própria faltara à sua palavra quando decidiu chamar pelas pessoas antes de terem passado os 30 minutos prometidos.Em roupão correu para fora de casa à procura dos dois cães e verificou que estavam, realmente, adormecidos. Voltou para dentro e inspeccionou minuciosamente a sala e o resto da casa. Tudo impecável. Não mexeram em nada, não desarrumaram nem partiram. Por junto tinham forçado as barras das grades das janelas, adormecido os cães e roubado o vídeo. Tudo feito961 LAURINDA ALVEScom boas maneiras e de forma gentil. 0 rapaz tratou-a sempre por "tu" e a senhora devolveu a cortesia. Mais, o que ele estava a tentar fazer no momento em que a acordou com cócegas nos pés era uma atenção. 0 rapaz sabia que tinha 80 anos, não queria assustá-la e, por isso, sentou-se na beira da cama e, com tempo e de forma suave, foi fazendo cócegas até a acordar. Assim como fazem as mães que precisam de acordar os filhos de manhã mas têm pena de os arrancar do sono. 0 mesmo enlevo, a mesma paciência e a mesma técnica. Comovente.- 0 rapaz foi um perfeito cavalheiro. Um gentleman! - diria mais tarde a senhora perante uma plateia divertida e perplexa com os contornos do assalto.- E não roubou mesmo mais nada?- Não!

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- E o lombo, o que é que aconteceu? - Ah, esse devolveu-mo, claro!Querida Dona FelisbelaBateu à porta devagarinho. Tocou uma vez, quase a medo, e esperou muito composta. Como quem sabe que vai ser vista à lupa antes de ser atendida. Espreitei pela lupa minúscula da porta e abri.- Bom dia. Não me conhece mas disseram-me que me podia ajudar. Não sei ler nem escrever e gostava de aprender.Tinha acabado de sair da cama, não conhecia aquela senhora baixinha, de cabelos brancos e sorriso infantil, não consegui fixar imediatamente o nome e fiquei ali de porta aberta sem saber bem o que fazer. Convidei-a a entrar e a sentar-se. Não me lembro exactamente em que mês ou ano isto aconteceu, mas sei perfeitamente quando é que ela começou a fazer parte da minha vida.Felisbela Simas apresentou-se de forma muito delicada, sentada na beirinha da cadeira, as pernas recolhidas para trás e ligeiramente inclinadas sobre o lado (como antigamente se97981 LAURINDA ALVESensinava às senhoras), a carteira pousada no colo e as mãos firmes, entrelaçadas na alça.Tinha 65 anos, dois filhos homens, dois netos verdadeiros e outro que era como se fosse e um marido que, embora morto, permanecia vivo no seu coração. Quando falou nele, não pôde conter as lágrimas e foi aquele gesto de avozinha querida que, quando fala do falecido, tira os óculos para limpar o canto dos olhos, me comoveu para sempre.Não me conhecia, nunca nos tínhamos visto e eu era, na altura, pouco mais velha que os seus próprios netos mas, mesmo assim, a Dona Felisbela não se importou nada que a visse chorar.A única coisa que verdadeiramente a consumia era ter atravessado uma vida inteira sem saber ler nem escrever e achar que lhe podia faltar o tempo para aprender.Disse-lhe que sim, que a ensinava com muito gosto e combinámos um calendário escolar. A primeira aula ficou marcada para a manhã seguinte. Dona Felisbela não conseguia esperar nem mais um dia e tenho agora a

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certeza de que se lhe tivesse proposto logo aquela manhã ela teria ficado sem hesitar.No dia seguinte, a campainha tocou à hora combinada e Dona Felisbela entrou com um sorriso rasgado e o ar mais feliz que eu jamais vi. Numa pasta novinha em folha, trazia um caderno, um lápis, afia, borracha e mata-borrão. Lembro-me do mata-borrão.Sentámo-nos as duas, uma de cada lado da enorme mesa da sala, e começámos a lição. Aprendi mais com a Dona Felisbela do que ela comigo, embora ela, como era uma senhora, nunca o tivesse dado a entender.Escrupulosa, Dona Felisbela ouvia tudo direitinho antesUM DIA ATRÁS DO OUTRO 199de começar a copiar ou, sequer, fazer perguntas. Nunca me interrompia, raramente se distraía e poucas vezes se mostrou constrangida com as suas próprias dúvidas. 0 que a embaraçava era a dificuldade que tinha em memorizar algumas regras gramaticais. Sempre que, sem querer, teimava no mesmo erro, ficava aflita por não saber exactamente como contrariar a tendência. Aplicava-se, então, como uma menina pequena e, a pulso, ia vencendo todas as barreiras.À medida que o tempo passava, fui conhecendo melhor a Dona Felisbela. Entre ditados, cópias e palavras dificeis, pousava o lápis e, num vagar de avó, contava-me histórias da sua vida. Ria, chorava e voltava a sorrir com uma facilidade extraordinária. Limpava as lágrimas, pedia desculpas envergonhada e alisava as folhas do caderno com o mesmo ar infantil com que se apresentou no primeiro dia.Entre os episódios passados em África, ao lado do marido, militar em comissão, já com um filho nascido, e as cenas vividas na serra da Carregueira já com os dois filhos crescidos, ia recordando detalhes avulsos de uma vida vivida com muita dor, demasiado trabalho e poucas ajudas.- E sabe que nunca ninguém descobriu que eu não sabialer?Contava-me, então, os expedientes que usava para que ninguém desconfiasse que não tinha ido à escola.- Quando precisava de apanhar um autocarro, fingia que me tinha esquecido dos óculos em casa e pedia às pessoas que estavam na paragem que me dissessem para onde iam os autocarros.

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No banco e nas repartições públicas, iludiu a questão1001 LAURINDA ALVESaprendendo a assinar o seu próprio nome. Trazia na carteira um cartão onde alguém desenhara o seu nome numa letra impecável que ela, secreta e incessantemente, copiava até sentir que os rabiscos se pareciam. Não conseguia fazê-lo de cor, mas no dia em que tinha que levantar o cheque da reforma levantava-se mais cedo e treinava às escondidas.Dona Felisbela era uma mulher profundamente generosa e atenta aos outros. Irradiava felicidade e alegria, mas Deus sabe que, em toda a sua vida, foram muito mais os momentos de tristeza e aflição. Tinha uma memória prodigiosa e era capaz de relatar acontecimentos antigos como quem cita os factos do dia. As horas que passámos juntas a fazer cópias e ditados foram muito mais do que simples aulas de Português. Foram lições de vida onde, em cada dia, a Dona Felisbela me ensinou a conjugar melhor o verbo amar.Para sempreLoura, bonita, sorriso vagamente tímido. Sete filhos e dezassete netos. Ar de quem conserva ainda os amigos de infância e se diverte tanto agora como nesse tempo. Andar desembaraçado mas pose discreta. Um olhar luminoso que não passa despercebido a ninguém. Já não a via há um par de anos e no dia em que voltei a encontrá-la parecia uma criança feliz. Daquelas que guardam um segredo só delas mas morrem por poder contá-lo a alguém especial. Perguntei-lhe porque é que estava ainda mais bonita do que o costume e ela sorriu sem dar resposta. Esperou que todas as pessoas que estavam à nossa volta dispersassem e puxou-me pelo braço. Fomos para um canto mais discreto e, então, confessou:- Estou apaixonada!- Verdade?- Sim. Há três anos!Contou-me que era uma paixão correspondida e um homem lindo. Maravilhoso, acho que foi a palavra que usou.1011021 LAURINDA ALVES

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À nossa volta circulava uma multidão de pessoas interessadas num livro acabado de lançar e formava-se a clássica fila para os autógrafos. Aproximámo-nos ainda mais uma da outra e, naquele gesto inconfundível de quem isola o mundo por razões superiores, inclinámos ligeiramente os ombros para a frente e ficámos as duas numa conversa animada a meia voz.A história é um poema. Sessenta e seis anos ela, sessenta e sete ele e os dois com poucos vestígios de tempo passado. Como se os dias e os anos tivessem fluído, simplesmente, uns atrás dos outros sem cavar vincos. Antes desenhando traços, acentuando expressões e aprofundando sentimentos.Bonita como muito poucas, ela conserva o espírito dos dezoito anos e confessa que a paixão não tem idade. Percebe-se que fala verdade e apetece ficar a ouvi-Ia para sempre.Diz que ele é lindo, como nos filmes, e conta que se apaixonou por ele há uns anos, quando nem sonhava que a paixão era possível. Amigos, iam-se vendo e fazendo uma conversa avulsa. De vez em quando jantavam ou encontravam-se em casa de outros amigos. Gostavam muito de estar juntos e ficavam horas esquecidas à conversa, mas não sabiam explicar bem porquê.Conheci-a há uns anos num lugar remoto de África a viver numa casa sem vidros nas janelas nem móveis na sala. Uma casa escura, triste e distante da vila, capaz de derrotar até o espírito mais generoso e despojado. A casa não era importante, afinal. 0 essencial é que ela estava ali, naquele lugar daquele país, para ajudar os outros. Voluntária numa organização não governamental, revelou-se uma verdadeira missionária dos tempos modernos. Avançava para onde fosse preciso à hora a que fosse chamada e em tudo o que fazia punha amor e acrescentava umUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1103sorriso. Muitas vezes, até, uma das suas gargalhadas francas e contagiantes.Lembro-me de me contar ali algumas histórias da sua vida e recordo a maneira apaixonada como então falava dos filhos, dos netos e de um marido amado que morrera há muitos anos. Pelas saudades dela, percebia-se que tinham sido felizes até ao último dia.

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Quando, ao fim de um ano inteiro, fechou a porta daquela casa e saiu daquele país deixou muitas saudades. A casa ficou ainda mais escura e até a vila parecia sombria. É sempre difícil substituir uma pessoa capaz de fazer um trabalho duro com tanta leveza e alegria.De volta a sua casa, rodeada de filhos e netos, retomou o curso da sua vida. Divertiu-se, trabalhou, penou, teve alegrias e tristezas, mas nunca vergou. Os anos passaram e, sem saber bem como, voltou a apaixonar-se.Devagarinho, sem ansiedade nem pressas, começou a jantar com o seu amigo uma vez em cada mês. Desatou a escrever cartas e, um dia, recebeu de volta um livro de poemas com uma dedicatória mágica.Passaram três anos e continuam muito felizes. Partilham a casa, as famílias, os amigos, as inquietações, as alegrias e quase todas as horas dos dias. Cúmplices até nos silêncios, adoram ficar por casa a ler, a conversar ou, simplesmente, a cozinhar. Ele gosta de tudo e ajuda em tudo. Tem três filhos, cinco netos e uma mãe adorável que gosta de passar lá por casa para receber os mimos que ela lhe reserva. Um dia, sem mais nem menos, agradeceu-lhe.- Porquê? - perguntou ela.1041 LAURINDA ALVES- Por existires e seres como és.Ela chorou e ficou ainda mais feliz. Muito baixinho, disse-me que percebia Cocteau quando dizia que o drama de envelhecer é que não nos sentimos envelhecer. Olhando para ela, naquele lugar, à luz de um fim de dia passado entre amigos a celebrar o lançamento de um livro de alguém que nos é muito querido, apeteceu-me abraçá-la e dizer-lhe o mesmo que lhe disse a mãe dele.Campo de saltimbancosHomens dignos, com ar agreste e todos os filhos a morar muito longe. Avôs de netos que mal conhecem e falam uma língua que não é a sua.Mulheres vestidas de escuro, vergadas pelos anos e vincadas pelas saudades dos mesmos filhos que partiram demasiado cedo e nunca hão-de voltar para ficar. Casas de granito, um largo, uma igreja com adro, carros de vacas e ruas íngremes, com muros de pedra que serpenteiam pela serra acima. Como se houvesse dali caminho directo para o outro mundo.

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No Inverno, as pessoas quase não se deixam ver. A lidar na terra, debaixo de chuva, ou recolhidos em casa, com os pés pousados na braseira, são gente muito trabalho. Acordam antes dos animais e deitam-se depois deles. A vida é impiedosa e não há como fugir. De cada vez que um dos filhos arriscou e anunciou a sua partida, homens e mulheres benzeram-se, choraram em silêncio e saíram à rua vestidos como nos domingos, para acenar,105106 LAURINDA ALVESaté confundir os próprios filhos com as árvores que também eles plantaram e separam aquele bocado da serra do resto do mundo. Com as mãos pousadas na testa, a fazer sombra, mediram o fio do horizonte até lhes doerem os olhos e o vento lhes secar todas as lágrimas e os empurrar outra vez para dentro de casa, onde permaneceram num silêncio agonizante e antigo.Às vezes, os filhos deixavam para trás os seus próprios filhos e, nessa altura, havia motivos de interesse na aldeia. As crianças cresciam umas com as outras e até pareciam felizes, mas à medida que o tempo passou, foram-se achando cada vez menos pelas esquinas. No dia em que deixou de haver crianças na aldeia, o silêncio tornou-se de tal forma agudo e insuportável que houve homens e mulheres que chegaram a ter vontade de desistir. Deixaram de se lembrar de todas as horas do dia, do que estava feito e do que havia para fazer, porque a memória transbordava de saudades. Vagueavam pelas ruas, erravam pelo campo e voltavam de braços caídos, como se não houvesse uma razão de vida. Uma causa para cada coisa.Alguns mataram o desespero na taberna, enquanto outros venciam a solidão em serões improvisados sobre a loja dos animais. Sentadas em banquinhos de madeira, mãos ocupadas a fiar ou a tecer, as mulheres desfiavam um rosário de preces e histórias sem fim. Riam e choravam, sem perceber que as lágrimas se confundiam, porque quando há saudades ninguém consegue definir exactamente por que é que ri ou chora. Durante um par de horas, esqueciam-se de tudo e até da própria vida.

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Os homens, esses, sentavam-se sobre a palha ou na esquina das escadas de pedra, ficavam a ouvir e a meditar em tudo aquilo. Às escondidas, puxavam o lenço que traziam na algibeira eUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1107assoavam-se como se estivessem engripados. E Deus sabe que não havia gripe que lhes chegasse. Enganavam as mulheres, enganando-se a si próprios.0 tempo dos meses frios passa ali tão devagar que parece parado. Quando, finalmente, o alto da serra fica todo descoberto e o sol inunda as aldeias de calor e luz, as pessoas sentem-se renascer. 0 Verão traz os filhos e os netos de volta, e é nesta altura que, de tanto pensar no que está para vir, homens e mulheres chegam a acreditar que é possível ser feliz ali como em qualquer outro lugar.Um certo ano ainda as pessoas de Germil, Brufe e Cortinhas faziam contas aos dias que faltavam para as festa da aldeia, quando lhes anunciaram que se preparava uma festa ainda maior. Falaram-lhes em malabaristas, cantores, actores, músicos e teatros de palco. Disseram-lhes que estava para chegar um grupo de rapazes e raparigas, que vinha de propósito para organizar uma festa para eles. Acreditaram quando viram aparecer, num só dia, quase tantas pessoas como aquelas que conhecem nas três aldeias juntas.Durante dez dias seguidos, assistiram a coisas nunca vistas. Homens de pernas altas, de pau, e calças muito compridas às cores a andar pela rua, rapazes malabaristas capazes de cantar e, ao mesmo tempo, fazer rodar no ar cinco bolas com estrelas pintadas, raparigas vestidas de palhaço, actores de verdade, homens com megafones a convidá-los para a festa e carros carregados de fatos coloridos de sedas e cetim para teatros nunca dantes imaginados. Ao longe, uma nuvem de rapazes e raparigas alegres montava um arraial de tendas de circo, barracas de feira e palcos improvisados. Tudo feito de forma incrivelmente gentil1081 LAURINDA ALVESe num espírito contagiante. Nada que viesse perturbar aqueles homens e mulheres resignados ao silêncio mas, antes, levá-los a aderir e a querer, eles próprios, fazer de reis e rainhas daquela enorme festa.

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Perplexos com a dimensão da coisa e felizes por ser especialmente preparada para eles, os habitantes de Germil, Brufe e Cortinhas deitaram mãos à obra e juntaram-se para ajudar.A ideia de montar um Campo de Saltimbancos nasceu no Centro Universitário Padre António Vieira, o celebrado CUPAV, onde se juntaram 50 voluntários, entre músicos, actores, cantores e aprendizes de várias artes, dispostos a passar dez dias a percorrer as aldeias perdidas do Gerês a improvisar espectáculos.A festa durou dez dias seguidos e, até hoje, ninguém sabe se foram mais divertidos os dias da preparação ou as noites da festa. A verdade é que nunca ali tinha havido tamanha animação e tantas lágrimas de riso.Lua de papelTem tantos anos que já lhes perdeu a conta. Diz que não se lembra de ter nascido mas garante que foi muito vivido. Tem um dente seu que é um estorvo para os outros que pagou mas, por nada deste mundo deixa que lho arranquem.Quando sorri parece um erro. Uma linha impecável de dentes novos, pousada noutra linha de dentes imaculados, todos muito bem alinhados, menos um. 0 exemplar único dá vontade de rir mas é ele próprio quem dá sempre a primeira gargalhada. Contagiante, o senhor Ezequiel, é capaz de ficar um dia inteiro em silêncio e uma noite adentro a contar histórias antigas. A maior parte dos dias passa-os sozinho, na penumbra da sua casa de pedra e cal, virada para a fraga.Vive ao som da água e sabe quando a cascata vai cheia. Conhece os rápidos como as suas mãos e adivinha todos os perigos que correm aqueles que se aventuram sem saber por onde vão. Já foi obrigado a descer a encosta a correr, sem sapatos,1091101 LAURINDA ALVESpara alcançar um ou outro rapaz que se assustou com as pedras ou ficou preso nas margens. Viu com os seus próprios olhos homens de barba e peito feito, chorar como meninos perdidos por terem desafiado a força da água. A estes, Ezequiel não deu palavra para não os deixar envergonhados. Puxou-os para fora e, sem grandes eloquências nem sermões, mostrou-lhes outro caminho mais certo. Virou-lhes as costas

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sempre com elegância e respeito porque lhe faz muita impressão ver um homem tremer de medo.Ezequiel não tem medo de nada. Já foi mordido pelos lacraus 38 vezes mas continua a andar descalço pelo campo. Tem um par de sapatos de atacadores que guarda religiosamente atrás da porta da entrada para pôr quando vai à vila de bicicleta. Confessa que gosta de pedalar descalço, sente-se mais livre, mas põe sempre os sapatos por respeito aos outros.Desce à vila uma vez por mês e traz um saco de plástico cheio de embrulhos de papel pardo. Queijo em fatias, pacotes de bolachas espanholas que são as únicas de que gosta, dois pães muito grandes para guardar no armário de madeira e ir cortando todos os dias, margarina para cozinhar, latas de sardinha em conserva, um quilo ou dois de fruta avulsa e carne escolhida e cortada de propósito para ele pelo Amadeu do talho, homem de poucas falas e muitas atenções.Ezequiel faz o que tem a fazer na vila e volta o mais depressa que pode para casa. Ninguém se lembra de o ver à conversa no café ou sentado como os outros homens nos degraus da igreja velha, no largo. Põe tal ar de pressa nos gestos que consegue sempre ser aviado antes do resto da freguesia, que se arrasta, mole, de balcão em balcão numa conversa bafienta.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1111Com uma energia invulgar, Ezequiel ata o saco de plástico cheio ao guiador da bicicleta, enrosca melhor o chapéu na testa, acena ao velho Amadeu e mete-se a caminho. Pedala com método e salta da bicicleta à entrada da ponte. Gosta de passar ali o seu bocado, a ver como vai o rio. Leva a bicicleta pela mão e demora, na margem de lá, o tempo que lhe parece necessário para a contemplação mas, também, para tomar balanço para a subida.Ver o senhor Ezequiel pedalar sem hesitações numa subida íngreme como aquela que o leva de volta à casa da fraga é um poema. Muito direito, muito composto e muito concentrado. Como se contasse mentalmente cada movimento, cada respiração e todas as pedras do caminho.Chegado a casa, desata primeiro os sapatos e, depois, o saco de plástico. Desaparece na penumbra da casa e durante uns minutos ninguém sabe dele. Quando volta para o degrau da soleira, traz um canivete na mão,

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uma fatia de pão acabada de cortar e duas sardinhas pousadas em cima. Senta-se e volta à vida.0 prazer com que se deixa embalar pelo som da água durante tardes inteiras, concentrado no fio do horizonte, a medir as horas pela altura do sol faz dele um homem diferente de todos os outros que se conhecem por ali. Mais sonhador, mais poético e, até, um bocadinho mágico. Ezequiel sabe caminhar em silêncio, como os índios, e consegue aparecer sem se fazer anunciar. E por isso que parece mágico.Nas noites de lua cheia nunca se deita na cama. Fica à porta de casa, sentado, e só quando sente os ombros vergar e os olhos quebrar é que se levanta para endireitar as pernas e procurar a esteira prateada que a lua desenha no chão para se1121 LAURINDA ALVESestender. Nos dias de Inverno deixa a porta de madeira que cobre a janela quadrada da entrada sempre puxada para trás. Para que a lua espalhe a sua luz dentro de casa e ele possa dormir naquela esteira.Um dia perguntaram ao senhor Ezequiel se sabia que havia homens noutro lado do mundo que já tinham ido à Lua. Ouviu em silêncio, cismou naquilo e encolheu os ombros.- Eles que façam o que quiserem à Lua deles mas deixem a nossa aqui em paz.A máxima certezaDez da manhã, aeroporto de Maputo. A imagem mostra dois rapazinhos de costas, vestidos de igual, debruçados sobre a varanda do aeroporto em conversa de amigos.- Gostamos muito de aviões. Achamos que um dia havemos de subir mas podemos ficar emocionados.- É! Mesmo se o avião não subir para o ar podemos ficar muito emocionados porque queremos ver como é que é dentro do avião.- Estamos a ouvir comentar pessoas, a dizer que dentro do avião tem o quê e mais o quê, mas queremos acreditar por ver.- E avião também é uma coisa que não sobe na hora que quiser. É uma coisa que custa muito dinheiro e por isso não temos a máxima certeza de podermos subir. Por isso, no dia que subirmos podemos ficar muito

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emocionados ou, até mesmo, podemos desmaiar por termos subido no avião.1131141 LAURINDA ALVES- 0 avião faz admirar muito as pessoas! Porque é que oavião sobe? As asas não abanam, quê?! É por isso que queremosacreditar como e que o avião anda sem abanar as asas. É isso. - Estou-me a imaginar se eu estivesse lá dentro. A estashoras estaria a chorar por estar contente. Aliviado.- Se você fosse piloto, no primeiro dia você pode chorar? - Posso!Lucas e Helder, moçambicanos, o mesmo ar de meninos de escola no passatempo preferido: ficar horas esquecidas na varanda do aeroporto, a ver chegar e partir os aviões.0 diálogo foi filmado numa manhã de sol e ficou registado para sempre.No vídeo mas, também, no nosso coração. Por cem anos que viva jamais esquecerei o sorriso infantil com que aqueles dois tentavam imaginar como seria um avião por dentro. E os gestos dos braços a sublinhar a incredulidade numa máquina capaz de voar sem abanar as asas.Lucas e Helder, amigos do peito, cresceram juntos no bairro de Mavalane, um amontoado de lata e madeira nos subúrbios de Maputo. 0 primeiro que se vê mal o avião aterra. Vivem sem brinquedos no quarto, água na casa de banho ou luz na cozinha, entre paredes de cartão.- Acho que nasci cá em Moçambique e não sei como hei-de dizer mas não gostei do meu país, porque os trabalhos de cá não me agradam.- Eu, se crescer, gostaria de ser piloto de avião e ser futebolista ao mesmo tempo. Jogar futebol na selecção de Moçambique, representar o meu país e levantar para cima.- Eu quero ser jornalista. Não há-de falhar esse curso dejornalismo porque é a coisa que já estou a ver que é boa para mim. Já vi que as pessoas vestem-se bem para comentarem coisas que aconteceram noutros países. Acho que eu também posso estudar para aprender como é que se faz aquilo, ter aquela voz de falar bem.A candura comove e a ambição desarma. Andar de avião e levantar a vida para cima é quase tudo o que querem aqueles dois moçambicanos filmados por Graça Castanheira há um par de meses. «Céu Aberto» foi

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muito mais do que um filme sobre as crianças de Moçambique. Foi um poema.Colado ao «Céu Aberto» de Graça Castanheira, passou pela segunda vez na SIC, o documentário devastador sobre «Os Meninos de Angola» da autoria de Cândida Pinto. Premiada e muito aplaudida, esta reportagem tem alguns anos.No coração do Cuito, Jovete, menino de doze anos, olhos grandes e corpo apoiado numa perna boa e outra de plástico, confessou que não sonhava porque «não é fácil sonhar». Atingido por uma mina anti-pessoal, Jovete ia à procura de qualquer coisa que lhe matasse a fome. Encontrou uma mina. Não se queixa mas confessou, com ar nostálgico, que o seu grande desgosto era não poder voltar a andar de bicicleta.Silva António, outro menino angolano, assistiu à guerra na praça da cidade de Uíge, no norte. No meio dos tiroteios, conseguiu voltar a casa mas não encontrou lá ninguém. Infiltrou-se no avião das Nações Unidas e escapou com vida. Passado muito tempo ainda não sabia da família e tinha muitas saudades da irmã «muito pequena».Já não chorava mas também não conseguia rir (nem sonhar) como os meninos de Moçambique. Dizia apenas que gostava1161 LAURINDA ALVESde crescer e «ter um escritório para escrever cartas às pessoas. Para longe».Neste momento Helder e Lucas, Jovete e Silva António estão, sem saber, de partida para Portugal. Cândida Pinto e Graça Castanheira embarcaram para os ir buscar e trazer, por uns dias, a Lisboa. Vão ser eles os convidados especiais do Parlamento Infantil que celebra este ano o Dia da Criança.Felizmente para nós, que os ficámos a amar, tanto a Cândida como a Graça levaram consigo uma câmara de filmar. Assim podemos voltar a vê-los e ter a máxima certeza de estar perto do Helder e do Lucas quando entrarem dentro do avião e sentirem que voam mesmo sem abanar as asas.Dona Luciana e os seusdoze filhos

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Quando alguém entra em sua casa, não consegue vê-la nem ser visto por ela. Os olhos de quem chega, cegos pela luz do dia, precisam de se habituar ao escuro. Os dela não, já estão habituados às sombras negras e aos contornos difusos. Dona Luciana deixou de ver pouco tempo depois de ter enterrado o seu último filho.Entre rapazes e raparigas, Dona Luciana teve doze filhos. Desejados, amados e para sempre queridos, nenhum dos filhos de Dona Luciana ficou para a acompanhar até ao fim. Nem um único para lhe segurar o braço ou dar a mão quando precisa de encontrar o caminho. Ano após ano, foram sucumbindo às doenças ou, quem sabe, às saudades que tinham uns dos outros, e Dona Luciana levou mais de metade da sua vida a chorar.Chorou cada um dos filhos com a mesma saudade, embora com todos eles tenha vivido um tempo diferente. Ao longo da sua vida muitas pessoas vieram para consolar a pobre Dona1171181 LAURINDA ALVESLuciana, mas a verdade é que Dona Luciana sempre se sentiu uma mulher rica.Sentada no seu canto, à esquerda de quem entra, depois de descer um degrau, muito quieta e pensativa, Dona Luciana é a imagem viva da esperança. Magra, distinta e de pulsos finos, nada naquela figura revela fraqueza ou desalento. Os ombros, elegantes e muito direitos, não vergaram ao peso da idade. Muito menos ao fardo da sua vida. Dona Luciana carrega uma cruz pesada mas não deixa que ninguém perceba. Apenas aqueles que, como ela, se sentam no chão e, com ela, passam a maior parte do tempo sabem como foi duro tudo o que ficou para trás. A estes, os apóstolos do movimento Comunhão e Libertação e seus grandes amigos, Dona Luciana trata como se fossem filhos. Outros filhos.- Deus levou-me toda a minha família mas deu-me outra em troca.É assim que Dona Luciana agradece as visitas e a ajuda. Quem a conhece sabe que o diz com gratidão e sem esperar nada de volta. A verdade é que são os amigos que têm a agradecer tudo aquilo que aprendem com ela. 0 exemplo, a dignidade, a fé e a convicção de que Alguém olha pelos que precisam.

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Depois de enterrar o último filho, Dona Luciana ainda foi obrigada a despedir-se do marido, o homem que permaneceu, inabalável, ao seu lado e aquele em cujo ombro depositou as lágrimas e a confiança. No dia em que já não havia mais ninguém em casa com quem pudesse estar nem nada no mundo que valesse a pena ver, Dona Luciana ficou cega, mas, realmente, não deixou de ver. Passou a ver apenas o essencial, que, como se sabe, é invisível aos olhos.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1119Sessenta anos de imagens muito nítidas na memória, com cópias muito bem guardadas no coração, é tudo aquilo que alimenta os dias de Dona Luciana. A solidão não pesa, a tristeza não encontra lugar e a casa de Dona Luciana continua cheia como nos dias felizes. À sua volta juntam-se nuvens de amigos para a ouvir falar de tempos antigos. Chamaram-lhe, durante muitos anos, "biblioteca ambulante" e, ainda hoje, Dona Luciana faz justiça à lenda e recita de cor poemas, episódios da História ou, mais simplesmente, canta com voz cristalina, músicas de todos os tempos.Cada minuto que se passa ao lado de Dona Luciana é precioso, como preciosos são os seus conselhos, a sua maneira infantil de rir e a leveza com que aceita tudo o que lhe acontece. Não é resignação, não é dor disfarçada, não é, sequer, uma presunção de superioridade moral. E, acima de tudo, uma fé inabalável e uma convicção de que, cedo ou tarde, se vai encontrar com todos aqueles que ama.Dona Luciana foi líder do movimento da Legião de Maria, Dona Luciana viajou por Moçambique inteiro, Dona Luciana espalhou a sua fé e o seu exemplo pelos quatro cantos do país. Mesmo no auge do sofrimento, tinha uma palavra de consolo para aqueles que, dizia ela, «sofriam certamente muito mais do que eu». A verdade é que a todos era dificil imaginar sofrimento maior do que perder, um por um, todos os doze filhos. Mesmo tendo aprendido que a perda de um filho é a única dor que o tempo não apaga nem cura, Dona Luciana faz tudo o que está ao seu alcance para aliviar as dores dos outros, e a verdade é que consegue.No antigo Bairro do Indígena, em Maputo, na sua casa1201 LAURINDA ALVESpobre, sem luz nem outros móveis para além de uma mesa, duas cadeiras e uma enxerga, sem ver mais nada do que sombras negras e contornos

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difusos, Dona Luciana é uma mulher verdadeiramente rica e a melhor amiga que alguém pode ter.As mãos e os gestosPoucas coisas me fascinam tanto como os gestos de certas mãos. Lembro-me de, na infância, ir com a minha mãe a uma retrosaria na Baixa e ficar esquecida a um canto do enorme balcão de madeira escura com os olhos fixos nos gestos dos senhores que arrumavam e desarrumavam mil e uma caixas de botões, puxavam com movimentos enérgicos, mas delicados, os panos enrolados e muito pesados, sempre colocados em prateleiras altas e a maneira concentrada como esticavam e mediam com um metro preso do lado de dentro do balcão, a fazenda que as senhoras encomendavam para fazer os fatos.Tudo me parecia uma dança, um extraordinário bailado feito de precisão e sincronia. Por mim não me importaria de ir todos os dias um bocadinho àquela retrosaria, pois aquela mímica dos senhores impecavelmente vestidos e de mãos cuidadas que atendiam por detrás do balcão me enfeitiçava.A paixão com que puxavam um pouco de tecido a mais1211221 LAURINDA ALVESpara que as senhoras pudessem tocar na fazenda, o inclinar agradado de ombros sobre o pano de «pura lã», o sorriso satisfeito até à maravilha com que abriam inúmeras caixas de botões, fitas e fitinhas até encontrarem o tom certo ou o tamanho adequado e, finalmente, a educação e maneiras irrepreensíveis com que tratavam as senhoras e meninas que chegavam para serem atendidas, sempre me atraíram naquelas lojas. Ainda hoje dou por mim a atrasar o passo e a deixar passar à frente clientes que chegaram depois, por puro magnetismo. Ou, se calhar pelo mesmo voyeurismo infantil com que me deixava encantar e ficava esquecida ao canto do balcão a imaginar uma vida inteira vivida a atender clientes, a enrolar e desenrolar panos, a arrumar tudo nas gavetas certas, a distribuir sorrisos, a receber o dinheiro, a guardá-lo na caixa registadora e a esticar simpaticamente o pescoço para prestar atenção à cliente seguinte.

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Ainda hoje me comove a paixão com que os vendedores de tecidos, botões, fitas «estraford» e forros fazem o seu trabalho. Um dia atrás do outro, cumprem o mesmo ritual, vendem as mesmas coisas e atendem, tantas e tantas vezes, as mesmas clientes como se fosse a primeira vez. Eles próprios quase como crianças encantadas com as brincadeiras das compras. Como quando perdíamos horas, a fingir que um monte de folhas, um pouco de terra misturada com água e umas pedras avulsas eram os bens de primeira necessidade que tínhamos para vender aos nossos pais e amigos. Tanto fazia se eram para comer ou deitar fora, o importante era o ritual de vender, receber o «dinheiro», dar o troco e voltar a juntar tudo outra vez, para fazer igual, até mais ninguém se prestar a ser freguês e termos, nós próprios, que acumular funções.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1123Fascinam-me os gestos antigos e floreados dos senhores das retrosarias, mas não só. Nas pastelarias, por exemplo, também existem senhores delicadíssimos, de pinça de bolos permanentemente na mão, alheios ao mundo e entregues à preciosa missão de verificar, tabuleiro por tabuleiro, se os bolos estão bem arrumados, se é preciso encostar melhor os pastéis de nata, se os queques estão junto com os bolos de arroz, se as empadas precisam de espaço entre si, se os folhados estão dispostos da maneira mais certa e sedutora ou se algum tabuleiro já pode «ir para dentro» deixando um espaço mais confortável aos bolos em exposição. De cada vez que entro numa destas pastelarias demoro ao balcão, hipnotizada pelo mistério daqueles gestos, pelo amor dispensado aos pastéis e, acima de tudo, pela dedicação de uma vida inteira assim vivida atrás de um balcão de doces e salgados.Com atenção, percebe-se sempre quem tem verdadeira paixão por aquilo que faz. Melhor, quem tem o dom de se entregar ao que faz e de pôr em cada gesto o melhor de si mesmo.Há pouco tempo, na pastelaria da frente, enquanto um dos senhores de calças pretas e camisa branca arrumava cientificamente os bolos, outro, mais velho, de pulsos quebrados e finos, lavava o tabuleiro da máquina do café. Com extrema delicadeza, segurava e lavava um tabuleiro de aço inoxidável e desinteressante como se se tratasse de uma peça única de cristal. E foi o gesto deste senhor velho, cansado e seguramente pouco

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recompensado, que me fez lembrar todos os outros. Aqueles anónimos a quem devemos a elegância e o enlevo de sermos tratados como príncipes, sendo a eles que pertence a coroa.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1125Cão solteiroTodos os anos aparecia na praça na mesma altura. Chegavacom o seu «pião mágico», instalava-se para ficar e era como setrouxesse o Verão com ele. Passava a fazer sol todos os dias.As crianças faziam uma roda à sua volta e vinham mulheres de lenço atado no queixo dar-lhe as boas-vindas. Os homens, encostados ao muro, acenavam de longe. Alexandre, homem franzino e de poucas palavras, limitava-se a sorrir e a baixar a cabeça em sinal de cumprimento.Solene e quase majestoso, Alexandre avançava pela praça até ao canto que já era seu e pousava a trouxa no chão de pedra. Com gestos lentos mas precisos, montava o «pião mágico», um improviso de ar medieval que o acompanhava para todo o lado e com o qual consertava os pratos e loiças partidas que lhe apresentavam durante aqueles três meses de Verão.0 «Ti Lexandre», como era conhecido em Aldeia Velha, andava de terra em terra com aquela parafernália a consertar124cacos. Plantava-se na praça principal de cada aldeia e montava tudo direitinho. Era um homem sem idade nem família. Às vezes trazia um amigo, o exuberante amolador de facas que cantava de manhã à noite e enunciava pelas ruas os seus talentos.- Amoladoooor! De facas, tesouras e mulheres!!Quase não trocavam uma palavra e, talvez por isso, entendiam-se muito bem. Pareciam, até, grandes amigos. 0 Alexandre, sempre de cabeça a meia haste, esboçava um sorriso de cada vez que o amolador berrava com mais ênfase aquela parte das mulheres. De resto permanecia num silêncio quase grave.As mulheres, alheias à presunção do amolador de facas, iam e vinham num corropio que transformava o largo da praça num lugar ainda mais aconchegado. Como se, de repente, morassem todas na mesma casa e fossem todas mães dos mesmos filhos. Enquanto esperavam que o

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amolador lhes devolvesse as facas e as tesouras conversavam e riam. Baixavam o tom de voz quando alguém passava e, sem pudor nem discrição, teciam comentários sobre o ombro.Alexandre era como se não visse nem ouvisse. Debruçado sobre a sua máquina, respondia a tudo com cinco palavras e todo o vagar.- Vamos ver o que posso fazer.Sem pressas nem aflições, mirava e remirava cada peça de barro que lhe entregavam. Separava os cacos, voltava a unilos, media os intervalos, tomava o peso e pousava tudo num banquinho de madeira atrás de si. Não passava papel nem pedia o nome a ninguém. Conhecia os pratos e os donos. Sabia de cor a quem pertenciam e de onde vinham. Fazia o trabalho com paixão e deixava-se ficar por ali até ao entardecer, hora1261 LAURINDA ALVESem que levantava os olhos para o céu, ajeitava o cinto das calças, punha o casaco aos ombros, um cigarro ao canto da boca e mudava de lugar. Encostava-se ao balcão do café da esquina e tomava conta de si.Na manhã seguinte, Alexandre estava na praça antes de ninguém. 0 zumbido do «pião mágico» e o som cavo do barro a ser trabalhado sobre uma tábua grossa dava uma composição de sons inesquecível. Espalhava-se no ar como aquelas ondas de calor quando se levantam do chão. Ou o som das cigarras quando se ouve perto do mar. Dava uma ilusão de eternidade. Suspendia o tempo e perpetuava o Verão.0 «pião mágico» era uma máquina artesanal com um pedal de madeira a puxar umas cordas que faziam girar uma roda dentada que empurrava um grande pico de ferro para cima e para baixo. Quando não estava a ser preciso, o pico ficava pousado no centro da tábua, muito quieto. Ao lado, Alexandre tinha sempre um alguidar pequeno com uma massa pastosa e encardida própria para passar sobre os pratos.A maneira como o pico subia, e descia e furava com precisão pratos e travessas de barro antigo onde, depois, Alexandre punha uma espécie de agrafos era fascinante. As crianças eram capazes de ficar horas esquecidas a olhar para o «pião mágico». Hipnotizadas pelos gestos do homem e, porventura, inibidas pela ausência de palavras, sentavam-se no chão de pedras e ficavam por ali em silêncio. Os pratos entravam desfeitos e saíam inteiros. Impecavelmente redondos, sem cantos nem arestas, consertados

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como tesouros, e era isso que os prendia àquele homem. Sonhavam com o dia em que eles próprios pudessem dar ao pedal, puxar o pico para cima e para baixo e, acima de tudo,UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1127lhes deixassem pôr as mãos dentro daquele alguidar mágico. De cada vez que um prato inteiro era pousado em cima de folhas de jornal velho, mudavam de posição, comentavam, davam risinhos e contavam segredos. Alexandre percebia tudo e gostava daquele entusiasmo, mas fingia não ver nem ouvir. Preferia assim.Um dia veio uma senhora velha, de meias grossas pelo joelho e saia de fazenda preta que deixava ver a linha das meias e dos joelhos. Avançou pela praça com as mãos dadas sobre o colo e um saco de asas enfiado no pulso. Vinha com ar perguntador.- O Ti Lexandre que porcaria é essa que põe nos pratos?- Unto de grilo, sebo de aranhão e cocó de cão solteiro!- E como é que vocemessé sabe se o cão é solteiro?- Pergunto-lhe!0 circoHá, na sombra que acentua o contorno da arena do circo, tanta magia como no centro, onde tudo brilha e a luz desenha uma aura em cada movimento. Nessa meia lua de penumbra aparecem e desaparecem os artistas e nela persiste o mistério daquilo que não vemos, mas podemos adivinhar.Ninguém se detém na figura dos homens de ar eslavo e fato-macaco laranja que esperam o sinal para avançar e dobrar o oleado que cobre a terra batida. Poucos reparam na mulher de meia-idade, pernas cansadas e saltos altos que segura nos arcos de ferro por onde hão-de saltar os cães e todos os animais da noite. Muito poucos se concentram no andar gasto do senhor de camisa de lamé azul, casaco de festa com lustro e sapatos de verniz empoeirados com que aparece a anunciar os artistas e os seus números noite após noite. E, no entanto, também eles são a alma do espectáculo. Sem eles o circo ficaria infinitamente mais pobre e sombrio.- Senhoras e senhores, meninas e meninos muita atenção!128UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1129

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Vamos assistir ao momento mais culminante da noite: o artista precisa de silêncio e muita concentração.Os tambores aumentam, o artista já está em cena e sobe a pulso a corda que o eleva ao ponto mais alto, o «mais culminante», onde existe uma teia de fios, traves e baloiços de onde se há-de lançar com o vigor de quem desafia o abismo. 0 som do tambor evolui à medida que ele atinge o cimo e pára no momento exacto em que respira fundo e toma balanço para as incríveis acrobacias que faz no ar.0 silêncio pesa agora sobre a plateia cheia de crianças e adultos de olhos em alvo. Todos ficam suspensos na respiração do artista que se lança no vazio e é salvo no segundo exacto em que estende a mão para segurar o baloiço que a «partenaire» atirou do lado de lá.De «collants» brilhantes e fato de cetim justo, muito decotado, a «partenaire» estica muito uma perna à frente da outra e levanta os braços acima da cabeça, num gesto de agradecimento pela proeza. Depois muda de perna, mantém a pose e agradece para o outro lado da arena. Divididos entre o vaivém do acrobata, o fato cintilante da «partenaire», a intensidade da música que anuncia cada movimento perigoso e as andanças na penumbra onde se prepara já o próximo número, os presentes vibram com o espectáculo.Muitas palmas, a voz que agradece e vinca o nome e «origem estrangeira» dos artistas e ainda mais palmas.Quando os acrobatas desaparecem na sombra, a arena já está protegida por grades de ferro e um tumulto de homens de bata e chaves de parafusos nos bolsos verifica se está tudo em ordem. Eis que o senhor de fato lustroso sai da penumbra e1301 LAURINDA ALVESavança uns passos para anunciar as «feras»! Tigres que viajaram do outro lado do mundo para estar ali naquela noite. Feras «amansadas pelo invencível domador», de nome russo, que também ensinou os cavalos de há pouco e treinou o lama e a avestruz que se exibem de forma cómica na arena antes que a noite acabe.0 espectáculo evolui como estava previsto e cada silêncio cava mais fundo o medo das feras ali tão perto. Na plateia uma multidão de crianças

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permanece atenta, umas de boca aberta de pasmo e outras num bocejo exausto de quem não consegue assistir a tanto sobressalto.Os artistas sucedem-se até ao intervalo em que o domador de feras se transforma em vendedor de espadas de Jedi, iluminadas com luz néon, a «partenaire» enrola algodão doce atrás de um balcão improvisado e o palhaço ajuda a montar e desmontar ferros. 0 senhor que anuncia o espectáculo senta-se no escuro, dobra o corpo sobre os joelhos e tira um lenço do bolso para limpar a testa. Visivelmente cansado nem repara nas crianças que passam à sua volta, enfeitiçadas pelas espadas de Jedi que o domador ergue no ar. A senhora de pernas cansadas e saltos altos que segurava nos arcos de ferro, fazia de palhaço rico e também de ajudante de domador transporta agora consigo um daqueles tabuleiros com fitas de lado para pendurar no pescoço. Vende rifas e bandeirinhas e tudo aquilo que poderia parecer triste ou desconsolado continua a ser um espectáculo de profissionais extraordinários. Tão extraordinários e tão versáteis que não se importam que os vejam na mesma noite vestidos do direito e do avesso. Na luz e na sombra. E é também por isso que gosto tanto de ir ao circo.A casa da falésia0 muro baixo, de pedra sobre pedra, abriga a casa que parece pequena mas se estende num terraço de xisto até à beira da falésia. Paredes caiadas, telha antiga e um rumor de vento que trespassa as folhas das árvores junto ao muro, onde o buxo acompanha o contorno irregular da pedra.0 portão de madeira abre-se do lado de dentro, passando o braço por cima da cancela, cuja aldraba o tempo enferrujou.No terraço de trás crescem lilases, buganvílias e uns pés de jasmim.A casa está voltada para o mar e todas as janelas se abrem para o céu. Como se estivessem suspensas na vertigem de azul infinito que paira sobre aquela falésia.Existe uma porta de lado, ao fundo, que devemos abrir devagar, pois o que encerra corta a respiração. Uma escarpa negra, gigante, afilada sobre o mar extenso de onde se desprende1311321 LAURINDA ALVES

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uma névoa fina e salgada, que tinge o ar de azul cinza. Um cenário de filme, uma imagem mais que perfeita. Um poema!A porta fecha-se com cuidado, sem fazer barulho, para não quebrar a poesia. Os passos não têm som, abafados pela pedra macia, de tão quente. Apetece ficar ali para sempre. Viver e morrer. Permanecer em silêncio, no êxtase daquela luz sublime.0 terraço desenha o contorno exacto da arriba e acaba num outro, mais pequeno, em degrau, abrigado num muro ainda mais baixo que o da entrada da casa. Um muro que protege mas não esconde. Apenas duas filas de pedras antigas, pousadas umas sobre as outras a anunciar o limite.Nesse terraço existem duas mesas quadradas de madeira, encostadas ao degrau de pedra que separa as duas plataformas de xisto amarelo. Nessas mesas não há nada para além de marcas de sal e vestígios do tempo. Servem para pousar o livro, de cada vez que sopra o vento ou o Sol muda de ângulo.Nesse terraço o mundo parece perfeito e infinitamente belo em cada instante. Os dias demoram a passar.À medida que o Sol afunda no mar, o horizonte vai ficando de um cinzento-púrpura, que espelha sobre as ondas cada vez mais indolentes. As sombras tornam-se pálidas no chão e um manto de nuvens ameaça cobrir o céu, que se levanta do lado de trás da falésia.As portas e as janelas estão abertas e, de casa, chega um som tranquilo. Como tudo, como sempre. 0 sol, a pique, inunda as paredes de amarelo, os quadros reflectem a luz do poente e tudo naquela casa dá uma ilusão de eternidade.Ursula lê, sentada na sua sala branca, de frente para o marUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1133e para os vasos de barro que ela própria quebrou e espalhou pelo terraço. Joachim tem os óculos postos e escreve na mesa onde guarda os papéis e as cartas importantes. Escreve e divaga, pois sobra-lhe tempo.Não tem memória do dia exacto em que descobriu aquele lugar divino mas sabe que nunca mais deixou de pensar nele. Sonhou que havia de voltar para ficar. Voltou e ficou.Vivem os dois como nos filmes, num romance perpétuo onde cada silêncio, cada gesto e cada palavra dita têm sentido. Abrem a casa de

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madrugada para deixar entrar a luz e só voltam a fechá-la depois de cair a noite. Não têm guardas nas janelas nem trancas nas portas. Muito menos grades ou muros altos. Vivem de porta aberta e chaves na fechadura e não imaginam a vida de outra maneira.Ela colecciona livros e ele colecciona quadros. Durante a noite liga o computador e faz os seus negócios. Deitam-se tarde, acordam cedo e vivem em paz, num ritmo claro. São conhecidos de todos e por eles amados, como se pertencessem àquele lugar. Como se tivessem nascido entre eles e nunca tivessem habitado um país frio e distante que, ali, poucos conhecem.Alinham a sua vida com a da pequena vila onde moram; vão ao mesmo mercado, usam a mesma língua, partilham os mesmos costumes. Nos dias de festa, Joachim acompanha os pescadores, conversa e bebe com eles até lhe faltarem as forças. Depois, sobe a pé até ao cimo da falésia, senta-se no terraço de casa e deixa-se ficar. E é em noites assim que se esquece que já teve uma vida, vivida noutro lugar.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 135João Assis PachecoTem ar de dezassete anos, cara muito lisa, olhar atento, sorriso infantil, gestos tímidos e uma voz tão natural que não parece verdade. Sem saber bem porquê, pouso o comando e interrompo o "zapping". Atraída pela imagem de um rapaz, permanentemente filmado em muito grande plano, que fala do pai e de tudo o que fez com ele antes de morrer, afundo no sofá. Apetece-me ouvir o que está a contar.Não sei quem é mas sei que, em televisão, quase ninguém fala assim porque o instinto raramente sobrevive ao nervo. A câmara assusta como o fundo de um poço, o microfone amplia cada inspiração e os fios eléctricos prendem a atenção. A ele não. Continua a falar com uma naturalidade irresistível, como se tivesse esquecido a luz encarnada. Ou, melhor, como se nunca tivesse reparado nela.Fala do pai sem quebras na voz e sempre com o mesmo134sorriso. Como se tivesse vindo com ele pela mão e soubesse que estava ali, do outro lado, à sua espera. E, no entanto, o pai morreu há alguns

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anos na sua livraria preferida, a desfolhar páginas avulsas de livros espalhados pelas prateleiras.0 rapaz tem, como parece, dezassete anos e chama-se João. É, afinal, o filho mais novo de Fernando Assis Pacheco e foi convidado para meia hora de conversa no Canal 2 da RTP.Raramente vejo televisão e confesso a minha ignorância em matéria de programação. Desconhecia a existência de «Portugalmente» e não faço a mais pálida ideia da sua regularidade ou formato. Tropecei neste programa por acaso, numa segunda feira às nove da noite, hora em que não se espera nada de interessante.João Assis Pacheco seduz pela maneira tranquila como conta pequenas histórias e comove pelo detalhe de cada descrição. Percebe-se que herdou do pai o gosto pela vida mas, acima de tudo, o talento para viver a vida como gosta. Fala de casa da avó, do cheiro e das saudades de Pardilhó, a aldeia para onde volta sempre que pode. Diz coisas maravilhosas sobre toda a sua família e conta como, sem saber, passou um fim de semana inteiro a despedir-se do pai em Coimbra. Confessa que nunca mais foi o mesmo desde o dia em que o pai morreu mas admite que nunca tinha pensado bem nisso. Apenas sabe que o claustro da Sé Velha passou a ter outro sentido.Sem nunca desfazer o sorriso atento e gentil, João Assis Pacheco volta à infância e, a pedido, recorda como eram os tempos em que Jorge Amado era visita de casa.«Era um homem muito simpático. Contava-me histórias e dava-me presentes que eu adorava. Um dia apareceu com uma1361 LAURINDA ALVESpista de automóveis e fiquei muito contente. Foi um privilégio conhecer um homem tão interessante aos doze anos.»Sem nunca pretender comparar-se ao pai, João admite que, tal como ele, é capaz de andar mais de cem quilómetros para ir jantar a uma tasquinha.«As pessoas também são feitas de sítios onde se sentem bem e com os quais se identificam.» João, por ele, gosta desvairadamente de uma aldeia perdida em Trás os Montes cujo nome exacto me escapou (Louçã?) onde se levanta de manhã muito cedo para procurar, «com a ajuda do Fernandinho», míscaros escondidos na terra coberta de geada.

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«Lembro-me de ter comido um galo no forno com esses míscaros que apanhámos, de manhãzinha, no pinhal e lembro-me do frio duro dos Invernos de Trás os Montes.»João Assis Pacheco tem, apesar da idade, uma memória transbordante, cheia de cópias bem guardadas no coração. Agradece ao pai o exemplo que lhe deu em vida e, especialmente, todos os livros que lhe ofereceu. «Eram sempre para a idade certa. Adorei os do Salgari. Não conseguia parar de ler: lia no autocarro, a caminho da escola, nos intervalos e à noite, na cama, mesmo quando já estava a morrer de sono. 0 meu pai nunca me leu nada do que tivesse escrito e só descobri a sua poesia depois de ter morrido. Se calhar ele achava que eu não percebia.»0 pudor com que Fernando Assis Pacheco guardou para si a sua obra é eloquente do amor que tinha pelos filhos. Ao contrário de Narciso, Assis Pacheco não gastava muito tempo com o espelho. João não se lembra sequer de o ter visto escrever na sala nem de o ouvir ler em voz alta aquilo que escrevia.UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1137Guardava para si o acto de escrever por sentir que lhe pertencia inteiramente. 0 resto, que era quase tudo, partilhava com os outros, especialmente com aqueles de quem verdadeiramente gostava.Fascinada com o discurso de um rapaz ainda sem barba que usa apenas palavras simples e acompanha cada frase com um sorriso luminoso e um olhar doce, fiquei suspensa na televisão até ao fim do programa. Aposto que lá no lugar onde está, Fernando Assis Pacheco também viu e se comoveu porque, na verdade, o seu filho João é um poema.Joseph BrodskyFevereiro foi o mês da morte de Joseph Brodsky. Morreu num mês bisonho e frio, tinha 56 anos e foi, com Camus, um dos escritores mais novos de sempre a receber o Nobel de Literatura.Escritor, poeta, crítico, ensaísta e «memoirist» russo, Brodsky

foi distinguido aos 47 anos de idade por ser «um poeta que,

nascido numa cultura, se tomou mestre noutra». Na verdade

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Joseph Brodsky pensava em russo e sentia como sentem as almas

russas, mas escrevia em inglês. Como se fosse esta a língua em

que falava consigo próprio e com aqueles que deixara para trás.

Joseph Brodsky nasceu poeta e, embora o pai evitasse o

assunto, a mãe percebeu tudo no dia em que o filho chegou a

casa e declarou que não voltaria mais à escola. Tinha 15 anos,

viviam os três numa assoalhada e meia de um prédio majestoso,

cujo desenho fora o acontecimento arquitectónico do início138UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1139do século em São Petersburgo e cultivava uma roda de amigos extraordinários. Boris Pasternak, Anna Akhmatova, Osip Mandelstam e Marian Tsvetayeva eram alguns dos seus amigos.A assoalhada e meia onde vivia com os pais tinha apenas 43 metros quadrados, mas era, em todo o caso, um privilégio. Depois da Revolução, a política obsessiva de «condensação» da burguesia criara uma casta de funcionários públicos cujo propósito exclusivo era andar de fita métrica na mão a medir escrupulosamente a área de cada prédio existente. Uma vez encontradas as áreas, cabia-lhes dividir os metros por cada cidadão e foi assim que se encontrou a medida certa: nove metros quadrados por pessoa. 0 passo seguinte foi erguer tabiques e paredes de contraplacado dentro de antigos quartos, salas e salões e atribuir a cada família a sua nova morada. Da noite para o dia os apartamentos passaram a ter medidas exactas e, onde antes moravam famílias comuns, passaram a coabitar centenas de pessoas que nunca se tinham visto.Com a ironia que o caracterizava, Brodsky não resistiu a escrever sobre os imponderáveis desta incrível matemática: «Se existe no espaço um lado infinito, não é tanto pelas possibilidades de expansão mas pelas de redução.»

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A Alexandre Brodski e Maria Volpert foi concedido o privilégio supremo da multiplicação do espaço não por nascimento, já que eram judeus, mas porque a lei mandava somar as áreas dos apartamentos que cada um possuía antes do casamento. Uma vez que essa soma ascendia aos 43 metros (mais do que os 18 estabelecidos por decreto), receberam um suplemento de meia assoalhada e foi assim que tiveram direito a outra amplitude de gestos. De resto, pais e filho partilhavam1401 LAURINDA ALVESa mesma cozinha e a mesma casa de banho com as dezenas de cidadãos a quem foram atribuídos os espaços regulamentares da lendária pérola arquitectónica que marcara o início do século em São Petersburgo.«Os nossos vizinhos eram bons vizinhos, por um lado porque eram boas pessoas e por outro porque todos trabalhavam e permaneciam ausentes durante grande parte do dia. À excepção de uma única, não eram delatores; até era uma proporção certa para um apartamento comunitário. Mas mesmo esta(...) era cirurgiã na policlínica e, de vez em quando, dava-nos um conselho médico, guardava-nos lugar na fila para conseguirmos um produto raro nas lojas de alimentação ou supervisionava a nossa sopa.» Brodsky escreveu tudo isto anos mais tarde, muito distante daquele apartamento, daquela mulher e daquela situação irreal. Escreveu sem rancor e com a nostalgia de quem recorda o melhor e o pior dos anos que ficaram para trás. Nesta passagem, aliás, Brodsky evoca um verso de Frost para dizer que, afinal, ser sociável é perdoar.Joseph Brodsky deixou a escola e começou a trabalhar na morgue de Leninegrado para ganhar dinheiro. À noite vagueava pelos bares e declamava em «soirées» de poesia. Anna Akhmatova, a grande poeta russa, reparou nele e apresentou-o ao pequeno círculo de amigos a que chamava o seu «coração mágico». Brodsky encontrou-se pela primeira vez na vida e, aos 18 anos, deixou a morgue para começar a publicar.A poesia que editava fazia sucesso, mas o entusiasmo que provocava entre os adeptos do que escrevia revelou-se inversamente proporcional ao interesse das autoridades pela sua pessoa. Apreendida a obra, Joseph é levado ao tribunal sobUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1141

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a terrível acusação de «parasitismo social». 0 julgamento foi de antologia e Savelyeva, o juiz, ficou para a História.- Qual é a sua profissão?- Poeta.- E qual é a sua ocupação permanente?- Julgava que era uma ocupação permanente.- Quem lhe deu autorização para ser poeta?- Ninguém. E quem decidiu que eu pertencesse à raça humana?Condenado a cinco anos de trabalhos forçados na tundra gelada de Norinskaya, uma variante da Sibéria, Brodsky foi para sempre impedido de «exercer uma profissão para a qual não tinha as qualificações necessárias».A sentença correu mundo e o escândalo abreviou-lhe a pena. Um ano e meio depois voltou a casa, mas nunca deixou de ser perseguido. Em 1972, com 32 anos, foi expulso e nunca mais pôde voltar ao seu país. Pior, os pais jamais voltariam a vê-lo, pois de cada vez que pediam um visto de saída era-lhes negado com um carimbo de «viagem sem interesse». Morreram muitos anos mais tarde, na mesma assoalhada e meia que partilharam com o filho único. Joseph Brodsky sabia que o sonho de Maria Volpert e Alexandre Brodski era voltar a ver o filho. Ele próprio alimentava o mesmo sonho. Nunca mais se viram. Nunca mais voltou, mas, como ele próprio escreveu, não faz mal porque «os poetas voltam sempre. Em pessoa ouno papel».Mark RothkoApaixonei-me pela pintura de Rothko há muitos anos, em Madrid, quando vi os seus quadros gigantes, cujas cores e proporções me deram uma sensação de eternidade.Uma certeza de existir mundo para além deste mundo. De haver um tempo suspenso sobre este tempo.Eram quadros de cores inventadas. Pareciam umas, embora fossem outras. 0 azul grisalho como a cinza, o preto da cor exacta da ameixa escura e seca, o encarnado-rubro como que tingido de romã, misturado de vinho e violeta, o castanho como terra lavrada e o branco de porcelana para dar a luz e, ao mesmo tempo, desenhar a sombra.

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Eram quadros vigorosos, poéticos e intensos como os estados da sua alma. Uns quase púrpura, outros quase negros, outros quase secretos, todos denunciavam os gestos do pintor na sua abstracção do mundo objectivo. Do mundo que estamos habituados a ver.Olhando com tempo e atenção ainda era possível acom142UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1143panhar o movimento imperceptível do pincel quando passa sem arrastar a tinta, só para compor a textura. Aqueles quadros de misteriosa geometria, de rectângulos fluídos que se diluem no horizonte, transmitem uma paz imediata e uma alegria infinita. Não sei bem porque, mas a pintura de Rothko comove-me da mesma maneira que me comove a escrita de Brodsky. Apetece contemplar e guardá-las para sempre.A maneira clara como Rothko pintava, a forma sublime como sobrepunha as cores e fabricava os tons, o génio com que, já no fim, deixava uma moldura branca, sem tinta, na própria tela e a abstracção prodigiosa que fazia do mundo real fascinaram-me em Madrid e como ainda hoje me fascinam.Se me perguntassem o que mais gostava de ter em casa, diria sem hesitar: um quadro de Rothko! Mais nada. Aliás, uma pintura dele não deixaria seguramente lugar para mais nada. Se um dia pudesse pedir um desejo material, seria seguramente este. Se pudesse pedir dois desejos, então pedia o quadro da Menez com que sonho e acordava e adormecia todos os dias a olhar para eles.Sei que, para alguns, Rothko é um pintor razoavelmente desinteressante. Não falo, claro, dos especialistas, que, mesmo não apreciando o estilo, conhecem exactamente o valor e a medida de um talento de mestre. Falo das pessoas que, como eu, olham para a pintura e se deixam tocar. Ou não.As formas geométricas de Mark Rothko, os seus eternos rectângulos, as telas aparentemente bicolores, quase divididas ao meio, as cores fortes e a subtileza do traço não deixam margem para sentimentos dúbios. Ou se amam ou se ignoram, mas é impossível ser indiferente.144 LAURINDA ALVES

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No início Mark Rothko pintava sobre papel e era de tal forma obsessivo com a sua pintura que algumas aguarelas têm mais de vinte esboços. Rothko estudava milimetricamente cada ângulo, cada cor e cada fibra do papel onde aplicava a tinta e a veia. No fim dos anos 40, Mark Rothko evoluiu do surrealismo para o abstraccionismo, do papel para a tela, dos «gouaches» para o óleo e inaugurou então a sua fase gloriosa de grandes quadros com grandes rectângulos vibrantes de cor, luz e sombra.Estes rectângulos são, aliás, a sua melhor assinatura e, na época, ficou muito claro que a pintura em telas de grandes dimensões passou a ser a forma de expressão privilegiada deste pintor de origem russa.Marcus Rothkowitz nasceu em 1903, em Dvinsk, na Rússia e foi o último de quatro filhos. 0 pai emigrou para os Estados Unidos quando ele tinha apenas sete anos e só passados três a mãe conseguiu chegar a Portland e voltar a reunir a família. Um ano depois o pai morre e a mãe permanece em Portland com os quatro filhos. Aos vinte anos Marcus decide estudar em Nova Iorque e despede-se da família com quem jamais voltará a viver. Em Nova Iorque aprende a pintar com Max Weber, no Art Students League, e revela, na sua arte inicial, o estilo expressionista do mestre. Aos trinta anos, um ano após o primeiro casamento, Marcus volta a Portland para a sua primeira exposição de desenhos e aguarelas assinadas Mark Rothko. Do Verão de 1933, o ano da apresentação pública, até 1970, o ano da sua morte, Rothko não passou um só dia sem pintar.A imagem do seu último «atelier» em Provincetown, Massachusetts, onde se suicidou na manhã de um fim de Fevereiro, era a imagem mais forte de um doçumentário extraordinárioUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1145sobre a sua pintura que vi há um par de anos na televisão. 0 chão estava todo manchado de tinta antiga, pisada. De tal maneira manchado que parecia, ele próprio, uma pintura expressionista dos primeiros tempos. Neste programa o realizador sobrepunha as paisagens de Rothko às suas telas e era maravilhoso verificar como a paisagem transparecia e as linhas negras que dividem o espaço correspondiam ao fio do horizonte.Mark Rothko suicidou-se por estar doente e sem forças para pintar. Não sabia viver sem o «atelier», as suas tintas e as suas telas. Não conseguir levantar o braço para segurar no pincel foi mais do que pôde suportar e só

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por isso decidiu pôr um fim a tudo. Ou quase tudo, porque a sua alma permanece viva para sempre.A tocadora de harpaPrimeiro houve uma cerimónia solene e comovida e, só então, foi anunciada a tocadora de harpa. Entrou em silêncio, cumprimentou o presidente e os anfitriões com uma vénia discreta e esperou que lhe trouxessem a harpa. Com gestos elegantes ajustou o banco à sua altura e inclinou a harpa sobre o colo. Suspensos naqueles seus modos delicados, os presentes permaneceram imóveis e atentos.Concentrada no infinito, esboçou uma sequência de gestos antes de tocar com os dedos nas cordas. Como se desenhasse no ar a música antes de a tocar. Alheia a tudo à sua volta fez soar as primeiras notas de música e ninguém ficou indiferente ao som que se desprendia daquela harpa celestial.Com uma delicadeza de anjo, Stéphanie Manzo abriu um meio sorriso, inclinou ligeiramente a cabeça sobre o ombro e entregou a sua alma. Tocou prodigiosamente e todos ficámos tocados pelo movimento subtil dos dedos, a conjugação de146UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1147sons e a magia de um instrumento em que a música se tece como num tear.Não será por acaso que associamos o céu ao som da harpa. Não é por acaso que crescemos a imaginar anjos gordos de caracóis redondos, sentados em nuvens de algodão a tocar pequenas harpas. Sem outro som a acompanhar, uma harpa é sinónimo de paz instantânea, de virtude imediata. É impossível ficar imune a um som tão puro, tão luminoso e, ao mesmo tempo, tão intenso e trabalhado. A maneira elaborada como os dedos extraem sons distintos de cada uma das cordas em que tocam, a elegância da própria harpa e a entrega total que esta exige ao músico revelam uma combinação espantosa e impossível de descrever.Hipnotizantes, músico e instrumento, seduzem a plateia e obrigam a um silêncio devoto que ninguém se atreve a quebrar. Nem quando há uma pausa. Transportados para outro mundo, somos embalados por aquele som mágico, aquela visão do Paraíso, e ficamos a pairar sobre ele.

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Distante das emoções de quem assiste, a tocadora de harpa ouve a sua música, dança imperceptivelmente com ela e acompanha o som apurado com pulsos finos como o caule dos lírios. A intimidade com que toca um instrumento ao mesmo tempo poderoso e delicado dá uma ilusão de facilidade. Na verdade muito poucos foram dotados para esta arte.Tocar harpa é extraordinariamente dificil e começa logo pela posição do corpo que é obrigado a permanecer em equilíbrio instável da primeira à última nota. A harpista precisa de criar uma tensão fisica capaz de amparar a harpa e, ao mesmo tempo, firmar os pés nos pedais e soltar braços e mãos para tocar.1481 LAURINDA ALVESVistos da plateia, os gestos daquela harpista eram tão fluidos, tão naturais e tão leves que tudo parecia espontâneo. E, no entanto, é fácil adivinhar as horas de estudo, o tremendo desconforto físico e o escrúpulo com que cada nota musical é tirada daquele magnífico instrumento.Ao contrário do que acontece com a guitarra (outro instrumento de cordas) em que é dada ao músico a possibilidade de olhar para as mãos enquanto toca e, de alguma forma, visualizar a maneira como a sua música evolui, na harpa o grau de dificuldade é enorme uma vez que o ângulo vertical, associado ao número de cordas, torna quase impossível essa visualização.As mãos movem-se por sensibilidade em relação às cordas e tudo nelas faz diferença. A textura da pele, o tamanho, o desenho das unhas e o lançamento dos dedos, influenciam a qualidade sonora. Aliás, a própria estrutura das mãos é determinante para a arte já que exige dedos esguios, finos e delicados. Existem muito poucos homens tocadores de harpa porque desde o princípio dos tempos se estabeleceu uma relação musical muito feminina com a harpa.Stéphanie Manzo, a harpista daquele fim de tarde solene no palácio, lembra-se de ter começado a sonhar com uma harpa na infância, por ter um fascínio especial pelas lendas da mitologia grega. Tinha sete anos e gostava particularmente do deus Apolo e da sua lira. Quis tanto ser como ele e tamanha foi a dedicação e o talento que, 20 anos passados, se revelou uma verdadeira deusa. Real, fascinante e tangível.Felizmente para nós, simples mortais.

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Ensaio sobre a banalidadeAndré Coorte-Sponville, filósofo e escritor francês, elaborou recentemente um ensaio sobre a diferença entre o amor próprio e o amor por si. Aparentemente indiferente, esta subtileza faz, na verdade, toda a diferença. Senão vejamos.Na revista Psychologies, onde assina uma página mensal, Coorte-Sponville lembra uma conversa com uma amiga psiquiatra para sublinhar que «a saúde psíquica começa quando aceitamos a nossa vulgaridade, quando reconhecemos a nossa própria banalidade, quando renunciamos ao nosso estatuto de excepção».Parece fácil dizer mas é incrivelmente difícil de realizar e só por isso a saúde psíquica é tão rara: «porque as pessoas são demasiado narcísicas para se amarem tal qual são».Secretamente todos sabemos que precisamos muitas vezes de nos recriar, de nos inventar para nos aceitarmos. É muito mais fácil gostar de nós próprios se olharmos apenas ao nosso lado luminoso, se dermos diferentes pesos e medidas aos defeitos1491501 LAURINDA ALVESe virtudes e se acreditarmos profundamente, como Pascal, que o «eu não é o indivíduo que sou mas aquele que acredito ser.»Dividido entre os conceitos de amor próprio e amor por si, é Cocote-Sponville quem cita Pascal para reforçar esta ideia de que não devemos confundir amor próprio com amor por nós mesmos.«0 amor que devemos a nós mesmos é o chamado amor por si e faz parte da caridade: amar o próximo como a nós mesmos pressupõe que nos amemos como a um próximo». Ou seja o amor por si consente o amor pelos outros. Já o amor-próprio, no entender dos pensadores, distingue-se por ser radical: «não se trata de se amar a si próprio mas de não amar mais ninguém do que a si próprio».0 breve ensaio sobre a banalidade que faz André Cocote-Sponville tem interesse na medida em que lembra como correm separadas estas duas águas e nos dá uma dimensão mais aguda da força e da fraqueza que encerram dois conceitos aparentemente tão idênticos.

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«0 amor por si é uma força e uma virtude: é aceitar a sua existência e saber ser feliz com ela. Já o amor próprio revela uma certa fraqueza e alguma incapacidade de amar os outros, de os amar verdadeiramente tal como são e não pelo bem que nos fazem ou esperamos que nos façam».Que dihcil que é concretizar esta realidade e tomar consciência desta nuance. E que delicado parece assumir, como propunha Simone Veil, que «amar um estranho como a si mesmo implica, como contrapartida, amar-se a si mesmo como um estranho».Para muitos, toda esta questão é irrelevante e não mereceUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1151dois pensamentos mas parece-me essencial na medida em que acredito profundamente que grande parte do equilíbrio mental e emocional resulta da renúncia interior a um estatuto de excepção. Aceitar que somos pessoas vulgares, seres absolutamente banais e cheios de imperfeições pode ser o primeiro passo para a saúde psíquica de que fala Coorte-Sponville.Por outro lado, realizar que o amor-próprio, tal como ficou definido, é uma espécie de mentira perpétua em que vivemos e nos dá a ilusão de que somos grandes quando nos sabemos mais pequenos, pode representar uma enorme conquista interior. Ou, pelo menos, ajudar a medir o tamanho e a forma do narcisismo de cada um.Calvin & Hobbes- Porque é que estás a cavar um buraco?- Ando à procura de tesouros escondidos! - Que encontraste?- Umas quantas pedras sujas, uma raiz esquisita e unsvermes nojentos.- Logo à primeira tentativa?- Há tesouros por toda a parte!

A cena passa-se no jardim, entre o lendário Calvin, enterrado até ao pescoço, sujo até à náusea, de pá na mão a escavar um buraco, e o famoso Hobbes, prudentemente debruçado sobre o buraco, patas apoiadas nos joelhos e olhar intrigado.No momento em que Calvin declara que há tesouros por toda a parte e estende a Hobbes uma pedra ainda cheia de terra, este segura-a com um

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sorriso de satisfação, perplexo por ter sido tão fácil encontrar a primeira pedra preciosa.152UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1153Basta uma pedra e uma minhoca para estes dois imaginarem um mundo fantástico, cheio de aventuras e perigos. A verdade é que Calvin e Hobbes vivem permanentemente emboscados num mundo àparte, prodigioso e sem limites, do qual apenas regressam para as miudezas da burocracia familiar.Lavar as mãos, comer a sopa, ter maneiras à mesa, aturar a professora, estudar a lição, tentar seduzir a mãe, convencer o pai e ir para a cama a horas são obrigações chatas e acessórias que só servem para os distrair do essencial. Calvin e Hobbes têm mais que fazer.No mundo deles não existem fronteiras. Cruzam os céus com extraordinária leveza e conquistam o universo com superior talento. Têm uma capacidade infinita para enfrentar monstros, descobrir tesouros e inventar novas regras para os jogos.Mesmo sem filhos, qualquer pessoa é capaz de reconhecer nas loucuras, pânicos e irreverências de Calvin um pouco de si mesmo. Assim como perceber que a prudência lógica e avisada de Hobbes nos é familiar.Um e outro alternam permanentemente os humores, os medos, os desafios e as acusações. Calvin consegue ser destemido, presunçoso e delirante, mas também cobarde, fraquitolas e choramingas.Hobbes, por seu lado, é uma figura genial. Um tigre de peluche, com nome de filósofo aparentemente inerte e sem interesse, que se revela na intimidade do quarto ou das brincadeiras, e desata a falar e a dar ordens ao amigo inseparável. Hobbes é o amigo imaginário, o nosso lado espertinho e desembaraçado mas, ao mesmo tempo, a consciência aguda das nossas fraquezas e pavores. Hobbes é capaz de obrigar Calvin1541 LAURINDA ALVESa avançar para o inimigo enquanto ele fica escondido atrás de uma árvore.Calvin e Hobbes são muito mais do que personagens de banda desenhada. Existem para além das tirinhas de papel onde foram inventados.

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Como disse Bill Watterson, o criador, «uma coisa é certa: os rapazinhos, tal como os tigres, andarão a deambular por todo o território que conseguirem alcançar».A «assurance» de Bill Watterson é perfeitamente justificada já que decorre de um conhecimento profundo dos tiques e subtilezas de um mundo de fantasia, quando decalcado a partir da realidade.Devo a Bill Watterson e aos seus queridos Calvin & Hobbes horas infinitas de leitura descontraída, divertida e, até, comovida.Constatar que vivo com um duplicado perfeito do Calvin (por acaso o seu Hobbes chama-se Natas), que todos os amigos da escola que passam lá por casa brincam e dizem frases que parecem saídas dos livros e que, até na maneira como enfrentam, argumentam e se opõem ao mundo dos crescidos são, em tudo, iguaizinhos às figuras de Watterson, é perturbante e dá que pensar. Acima de tudo porque a lógica dos seus argumentos é de tal maneira demolidora que nos quebra a autoridade e, muitas vezes, deixa pouca margem de sobrevivência.Bill Watterson fez muito mais do que uma caricatura da realidade. Dissecou a relação que uma criança em idade escolar estabelece consigo própria, com os pais, os amigos e o resto do mundo com uma ciência rara e, depois, desenhou tudo com um talento infinito e uma ironia explosiva, de rebentar a rir.É por tudo isto que adoro os livros de Calvin & Hobbes e seiUM DIA ATRÁS DO OUTRO 155de cor todas as histórias principais. Como aquela em que, sentados no quarto todo desarrumado, Calvin desabafa, esticando os braços com gestos enérgicos:- A mãe quer que eu limpe o quarto. E demais! Nãoaguento este totalitarismo! Vou tornar-me dissidente!- Pode-se ser dissidente da família?- Porque não?! Nunca me filiei neste grupo! Nem sequerfui consultado! Eles são só meus pais porque me TIVERAM! - Uma conspiração biológica, hein?Dizer «não»Educar uma criança para ser, no futuro, um cidadão responsável, solidário, capaz de dizer «não» ao consumo de droga ou evitar outros

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comportamentos de risco é a maior aposta dos pais modernos. Não é fácil esta tarefa, mas acredito que é possível converter a miragem em realidade.Uma das correntes teóricas em vigor e aquela que, porventura, me parece mais inteligente e eficaz na prevenção da toxicodependência, é a que vinca a necessidade de ensinar as crianças a dizer «não»!Ao contrário do que muitos pais imaginam, não é fácil fazer este tipo de educação. A tendência para dizer «não» da maior parte das crianças nada tem a ver com esta estratégia pedagógica, uma vez que a resistência que as crianças oferecem nas «fases do não» se prende com questões próprias do crescimento, da construção da sua auto-imagem e da relação com a autoridade dos pais.156UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1157A aprendizagem do «não» consciente é radicalmente diferente e tem a ver com o grau de vulnerabilidade à opinião dos outros. Explico melhor. A idade em que os adolescentes ficam mais expostos aos comportamentos de risco coincide com a idade em que são mais vulneráveis à apreciação do grupo e à vontade dos seus pares.Na adolescência, os pais são quase sempre uns chatos incorrigíveis, uns seres que existem apenas para proibir, impor regras e limites. Na adolescência, que é, por definição, a idade de todos os perigos e desafios, o grupo tem uma influência determinante no comportamento de cada um.A maior parte dos jovens começa a fumar porque os amigos fumam, a beber porque os amigos bebem e a consumir drogas porque os amigos consomem. Isto para não falar dos ídolos modernos cujo comportamento também pode ser imitado de forma mais ou menos consciente nestas idades.0 facto de existir a chamada «pressão do grupo» (por vezes óbvia mas, muitas vezes, invisível ou demasiado subtil) não deixa muita margem aos adolescentes para se sentirem confortáveis na sua pele. Acontece-lhes frequentemente pactuar com situações com as quais não concordam inteiramente por falta de coragem em enfrentar o grupo. Ou melhor a crítica negativa do grupo.

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Embora aos nossos olhos pareça fácil ser diferente na adolescência, entre adolescentes não é assim tão fácil. Uma vez escolhida a «tribo», há que saber manter os códigos e acompanhar as condutas, caso contrário correm sérios riscos de ser apontados a dedo ou excluídos pela dita «tribo». Daí a compulsão de certos tipos de comportamento, que variam da1581 LAURINDA ALVESobsessão pelas marcas de roupa (que os obriga a gastar quantias astronómicas de dinheiro para estar à moda e não ficar mal vistos) à atitude negligente ou provocadora dos grupos mais «hard».Seja no dia-a-dia ou em situações extremas, os jovens sentem-se muito observados pelos seus pares e, quase sempre, «obrigados» a fazer as coisas como eles gostam. Ou exigem.Por experiência própria ou proximidade física, todos sabemos que o comportamento dos jovens é, em grande medida, ditado pelo grupo ao qual pertencem ou gostariam de pertencer.Por tudo isto e porque esta vulnerabilidade é um clássico e foi sobejamente estudada, vale a pena ter consciência e jamais cair na tentação de a desvalorizar.Na sequência desta verdade incontornável, especialistas na área dos comportamentos chegaram à conclusão de que a melhor maneira de prevenir comportamentos de risco é criar uma auto-imagem tão forte e estruturante que seja capaz de dar forças para enfrentar o mundo. E rejeitar aquilo que não interessa nem ajuda a crescer ou a ser mais feliz.Em Portugal já há vários anos que esta estratégia foi adoptada por algumas escolas e centros pedagógicos e os resultados têm sido muito positivos. A estratégia é muito simples e consiste em fazer jogos e encenações onde as crianças são levadas a escolher caminhos e fazer opções claras e conscientes. Sem nunca ouvirem pronunciar palavras como droga, cigarros ou outras, estas crianças são envolvidas de forma subtil numa teia que se tece à sua volta e lhes dá uma extraordinária autonomia e vontade de optar por um percurso que é só seu.Nestes jogos, as crianças são postas perante várias hipótesesUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1159

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e é-lhes exigida uma escolha exclusivamente de acordo com a sua consciência. Apesar de o fazerem em grupo sentem-se muito confortáveis para decidir conforme a sua vontade. 0 facto de o fazerem em grupo mas bem amparadas e sem medo da avaliação dos outros transmite-lhes uma auto confiança incrível.Esta estratégia, aliás, pode e deve ser complementada em casa, pelos pais e restantes educadores, de uma forma incisiva, que passa pelo reforço permanente da confiança em si próprios e nas suas capacidades.Um filho muito amado e valorizado sente-se sempre melhor consigo e com o mundo do que outros a quem ninguém dá o devido valor. Ensinar um filho a dizer «não» e a rejeitar tudo aquilo para que não sente vontade nem vocação é um trabalho diário, subterrâneo e consciente. Não vale a pena esperar que os filhos cresçam para ir com eles ao Casal Ventoso mostrar os efeitos devastadores da droga. É inútil fazê-lo, e a prova é que em algumas famílias começou por existir um caso dramático e, apesar do terrível exemplo de sofrimento, o drama estende-se contagiando irmãos e primos.Só começando muito cedo a treinar as crianças a ser firmes nas suas convicções e a ter a consciência daquilo que valem e querem é possível evitar comportamentos imponderados ou por imitação. Não vale a pena sequer falar de droga porque não entendem. Vale mais investirem conceitos lógicos como o «sim» e o «não»!Olhos que ouvemTem uma cara perfeita, uma boca desenhada para sorrir devagarinho, com atenção, olhos profundos, perturbadores e misteriosos, um ar vagamente triste e a distância de quem, de tanto se concentrar no essencial, parece um pouco distraída.0 silêncio que se desprende da sua imagem frágil e doce acentua o mistério e a cerimónia com que olhamos para ela.É ainda mais bonita do que na fotografia da capa do seu livro de bolso, onde parece uma musa, um ser divino e inspirador.Emmnanuelle Laborit, actriz de teatro e cinema, prémio Moliere de 1993, neta do cientista Henri Laborit e autora de «Le cri de Ia mouette» (ed. Robert Laffont), um livro absolutamente extraordinário, tinha 22 anos quando tirou aquela fotografia. Foi o seu ar distante e poético que me

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prendeu da primeira à última linha. 0 ar naturalmente sedutor de quem se perdeu e se encontrou, de quem riu e chorou, de quem sabe, porque sente, que nada na vida acontece por acaso.160UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1161Hoje, Emmanuelle Laborit tem 27 anos e a beleza permanece. 0 silêncio à sua volta também.Surda profunda de nascença, Emmnanuelle só usa as palavras para escrever. Fala sem som, por gestos, com umas mãos que abrem e fecham, avançam e recuam desenhando no ar um movimento permanente e fascinante. Como uma dança ainda mais misteriosa que o seu olhar.Hipnotizada pelos gestos mas, também, pela tranquilidade da sua figura, sento-me de frente para ela. Para aqueles olhos que nos olham de maneira diferente e prescrutante. Intrigante, também, pois sentimo-nos ao mesmo tempo confortáveis e expostos. Como se pelo olhar nos medisse a alma.Na realidade é isso que Emmanuelle faz, trespassa-nos com aqueles seus olhos que ouvem e, no fim, deixa-nos com a certeza (e o estranho alívio) de que ficou a conhecer-nos melhor por dentro do que por fora.A sua presença é forte mas não intimidante, embora exista entre nós uma distância que nunca se quebra. Um mundo de diferença que nos separa. Um abismo de coisas não ditas nem vividas que jamais recuperaremos.Emmanuelle Laborit veio a Lisboa a convite da Associação de Famílias e Amigos dos Surdos e da editora Caminho para apresentar a versão portuguesa de «0 Grito da Gaivota», o seu livro autobiográfico. Veio, também, para dar um testemunho vivo a muitas pessoas que, como ela, nunca ouviram nem falaram.Silenciosa mas incrivelmente incisiva, Emmanuelle é um exemplo de força interior. A sua capacidade de acreditar na vida, de sonhar e cumprir todos e cada um dos seus sonhos é notável e deixa-nos com uma profunda sensação de desperdício1621 LAURINDA ALVESpor todas as horas e minutos que vivemos distraídos. Duas horas de conversa silenciosa foi o tempo que durou a nossa entrevista. Diria que, mais do que uma entrevista, aquele tempo foi, para mim, uma

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extraordinária lição de vida. Através de um intérprete falámos de tudo e nada. Do silêncio, do mar, do trabalho, dos sonhos e dos pesadelos, do dia e da noite, da alegria e da tristeza. Daquilo que interessa e daquilo que não interessa, do que pesa e do que já não tem mais peso.Durante a infância Emmanuelle foi uma criança cheia de medos e perplexidades, encerrada num impenetrável mundo de silêncio no qual só havia espaço para ela e para a mãe.Tudo à sua volta era uma estranha combinação de gestos, vibrações e ruídos indecifráveis que a aprisionavam e inquietavam. Para escapar a esta prisão, para mostrar aos outros que existia, Emmanuelle gritava. Dava gritos de angústia, de revolta e de aflição. Gritos de criança perdida. Gritava como gritam as gaivotas quando precisam de chão.«Le cri de Ia mouette», («mouette»-gaivota soa exactamente como «muette»-muda), o nome do seu livro não é senão um espelho desta existência sobressaltada, desta vida vivida em silêncio, na ausência total de vozes, sons e música.Para os ouvintes é desconcertante ver a maneira como fala e escreve Emmanuelle Laborit. A maneira como fala dos sentimentos, como revela as emoções, como vai aplacando os medos e se constrói a si própria.Laborit viaja pelo mundo inteiro e sente-se uma pessoa incrivelmente realizada. Actriz de cinema, filma e viaja a um ritmo vertiginoso mas a vertigem não a consome. Alimenta-a, dá-lhe força para seguir em frente e ignorar que este mundoUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1163não foi desenhado para pessoas incapazes de ouvir o mais vago som.Para nós, ouvintes, que somos capazes de atravessar uma vida inteira sem nos cruzarmos com um surdo e sem esbarrarmos naquele muro de silêncio, é um privilégio conhecer, ler e ver como ouve e fala alguém como Emmanuelle Laborit.Li, pela primeira vez, o seu livro há três anos e, mesmo sem a conhecer, nunca a consegui esquecer. Agora que a conheço percebo porquê.Oceano PacíficoAgora que o Verão está a acabar, começa a nostalgia dos sons que me acompanham durante este tempo em que parece que nada se faz e tudo acontece. 0 som irreal das cigarras, o rumor da palha quando sopra o

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vento, o eco metálico do comboio que corre ao longo da praia para a última paragem do Algarve, o apito estridente que lança antes da passagem onde nos obrigamos a parar sempre, o silêncio da areia ao fim da tarde, as ondas quando perdem o vigor e se deixam morrer devagarinho, as vozes que se desencontram no ar, a água que escorre pela terra, o murmúrio seco das folhas das figueiras sedentas, a luz amarela, rente ao mar, a dar outra definição ao mundo e aos seus barulhos. Tudo isto é o Verão, um tempo arrastado, amolentado, que dura tão pouco e demora tanto a voltar.No Verão os dias rendem o dobro e estendem-se como o mar, para além do horizonte. A lua emerge tingida de um164UM DIA ATRÁS DO OUTRO 1165vermelho púrpura indefinível e sobe tão alto e tão depressa que temos a ilusão de poder acompanhá-la. De subir com ela.Para mim o Verão acaba num lugar muito quieto e plano, quase lunar, onde damos, primeiro, uma curva para a direita e, logo a seguir, outra no mesmo sentido, que nos afasta irremediavelmente do mar. Nesse lugar tenho sempre a certeza de que estou a voltar e nada me pode devolver o tempo e o caminho que vão ficando para trás. Na última curva ligo sempre o rádio do carro para me esquecer que o mar está cada vez mais longe.Há anos sem fim que oiço, naquele lugar, a mesma voz tranquila falar no mesmo tom, usando as mesmas pausas de sempre. 0 prodígio tem um nome e um efeito incrivelmente pacificador. 0 barulho das ondas com música em fundo contagia e transporta-nos imediatamente para outro tempo e outro espaço. A voz branda e grave de João Chaves atira-nos para um passado remoto, uma idade em que a vida se vivia de outra maneira e nada nem ninguém podia adivinhar o rumo que teria.Lembro-me de ouvir aquela voz de culto quando tinha dezassete anos e, depois, de forma avulsa aos vinte e, uma vez por outra, aos trinta. Não sei há quantos anos existe o Oceano Pacífico mas, se me perguntassem, diria desde sempre. Não imagino como seja o João Chaves pois nunca consegui dar uma cara àquela voz nem uma imagem àquele som que, para mim, mudam conforme os estados de espírito. A voz e a música de João Chaves

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são uma espécie de banda sonora de longa metragem. Acompanham o filme inteiro de uma vida. Da nossa vida.0 som do genérico é tão aconchegante como o sótão de madeira de casa de uma avó onde ficam guardadas para sempre166 LAURINDA ALVESas fotografias de família, os fatos antigos e todos os tesouros da nossa infância. A voz que anuncia as músicas e pontua as noites soa infinitamente familiar e tudo parece tão perfeito àquela hora que nos esquecemos que estamos a voltar. Que o melhor vai ficando para trás.Não sei bem se gosto de todas e cada uma das músicas que passam no Oceano Pacífico mas também não me parece importante saber. 0 programa vale, acima de tudo, pela conjugação daquela voz inconfundível e daquele som envolvente. Durante um par de horas o carro pode deslizar pela estrada sem nos darmos conta. Não há cansaço, não há nostalgia, não existe nada para além do momento.Para quem, como eu, ainda não se reconciliou com a ideia de não existir mais Verão (nem conseguiu ainda preencher o vazio deixado pela XFM), ouvir o Oceano Pacífico é, porventura, a melhor maneira de ficar em paz.("Oceano Pacífico" é um programa da RFM entre as 22h00 e as 02h00)0 melhor ladrão do mundoA casa fica mesmo no alto da serra, aconchegada entre pedras primitivas e castanheiros antigos. Existe um muro e um portão mas é possível contorná-los e entrar sem ninguém ver. A casa é simples mas bonita e como está muito isolada é natural que dê cobiça.Há pouco tempo o dono chegou para passar uma temporada e reparou que havia qualquer coisa diferente na sua casa. Aparentemente estava tudo impecável, mas mesmo não sabendo explicar bem porquê sentiu um ligeiro desconforto. Na cozinha, por exemplo, verificou que uma pequena instalação eléctrica que andava há meses para consertar estava como nova. Na casa de banho, outro exemplo, as toalhas permaneciam arrumadas mas postas de maneira completamente diferente do costume. Nos armários havia um casaco que não era seu, um par de calças escrupulosamente esticadas que não se lembrava de ter comprado1671681 LAURINDA ALVES

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e, até, uns sapatos que não lhe cabiam nos pés. Debaixo da cama, no lugar dos chinelos de quarto, um vazio e, atrás da porta, no sítio do roupão, apenas o cabide.Habituado à arrumação e aos mimos da sua querida Milagres imaginou que tudo aquilo se devia ainda ao Natal. Era noite e esperou pela manhã seguinte para desvendar o mistério. Entre abraços e votos de boas festas atrasados percebeu que nada daquilo se devia à velha senhora Milagres.- Homessa, quais surpresas. Então vocemecê está cá há uma semana e nem consigo dar-lhe uma palavra quanto mais um presente.Abreviando a coisa, na ausência do dono instalara-se em casa um ladrão muito bem educado que conseguiu iludir tudo e todos. Desde a senhora Milagres aos ajudantes do senhor Augusto, o mestre de obras que ficara de acabar um muro de tijolo ao fundo do jardim.Durante uma semana inteira o ladrão comportou-se como se fosse o dono da casa. Por incrível que pareça era noctívago como ele, acordava para o pequeno almoço à hora do almoço, demorava horas a tomar banho e dava longos passeios a pé que o afastavam de casa nas horas do expediente. De tal maneira os horários se pareciam com os do dono da casa que, embora nunca o vissem, pressentiam-no e não chegavam a estranhar os modos.Lá do fundo, entre tijolos e cimento, o Sr. Augusto viu-o um par de vezes a espreguiçar-se no terraço, a ler o jornal de roupão e chinelos e, imagine-se, até a acenar-lhe. De cada vez que chegava mais perto de casa para trocar umas palavras não tinha resposta mas o som do chuveiro ou as portadas fechadasUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1169tranquilizavam-no e acabava por se ir embora a pensar que o patrão estava no duche ou a dormir uma sesta. E neste enredo se passou uma semana inteira. No fim, o ladrão foi-se embora e a única coisa que levou com ele foi o roupão, os chinelos de quarto e uma muda de roupa nova. Para trás ficaram as calças penduradas, os sapatos e, como sinal de agradecimento, a tomada da cozinha arranjada. Isto para não falar da delicadeza com que abriu e fechou portas sem partir um único vidro ou danificar a fechadura.0 exemplo deste ladrão lembra-me uma história antiga sobre outro ladrão que conseguiu viver oito anos no sótão de um casarão sem nunca ser

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descoberto. As senhoras, duas irmãs, começaram por implicar uma com a outra sempre que desaparecia queijo da despensa, pão do armário ou sumia o bolo da véspera mas acabaram por desistir, conformadas com aquilo que imaginavam ser apetites clandestinos mútuos. Durante anos viveram intrigadas com situações equívocas mas o mais que se atreveram foi a desconfiar uma da outra.Passados dez anos sobre a primeira discussão acerca do meio presunto que desaparecera sem deixar rasto, receberam uma carta do tribunal a notificá-las como testemunhas abonatórias do senhor Firmino Hilário. Como nunca tinham conhecido ninguém com esse nome mas também não eram pessoas para desrespeitar a lei, vestiram-se a rigor e apresentaram-se em tribunal. 0 homem que estava a ser julgado chamava-se Firmino Hilário e era acusado de roubar. Resumindo o que se passou naquele dia no tribunal, o dito Firmino Hilário chamara as senhoras ao tribunal para que dessem um testemunho do seu bom comportamento.1701 LAURINDA ALVES- Mas como é que podemos fazê-lo se não o conhecemos nem nunca ouvimos falar de si?E foi então que o ladrão desfiou um rosário de acontecimentos domésticos e familiares que avivaram a memória das duas senhoras.- Lembram-se de ter desaparecido meio presunto? E o queijo e os bolos? E das discussões que tinham por causa dos programas da TV? E daquele dia em que a menina Teresinha ficou de aparecer e nunca mais chegava e depois souberam que tinha tido um desastre?E por aí adiante. No fundo o senhor Hilário queria apenas que testemunhassem que tinham vivido oito anos com um homem em casa que, apesar de ladrão, era tão honesto que nunca se atrevera a tocar em nada que estivesse fora da despensa.- E já agora - disse, no final, o senhor Firmino Hilário, - se não for pedir demais, como é que ficou a menina Teresinha?A minha avó LaurindaHerdei da minha avó Laurinda este nome extraordinário (com o qual, confesso, demorei anos a reconciliar-me) e guardo dela a memória de uma mulher admirável e única na bondade, no humor e no espírito de aventura.

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A minha avó Laurinda nasceu no ano de 1900 e viu e viveu tudo aquilo que foi dado ver e viver às pessoas da sua geração e que, de uma forma grosseira, se pode resumir a uma sucessão de ciclos de guerra e paz. A tempos de vacas gordas e vacas magras. A alturas em que, para uns, tudo era racionado e para outros muita coisa abundava. Em que os ricos enriqueciam e os pobres empobreciam.Quando a minha avó Laurinda foi pela primeira vez à praia, já casada e mãe de família, levava um vestido inteiro, comprido, de corpete justo, saiote branco de linho grosso e calças de folhos por baixo mas os homens já se atreviam nos seus fatos de banho de alças que deixavam as pernas, os braços e parte do peito a1711721 LAURINDA ALVESdescoberto. Olhando para aquele espectáculo e de saia elegantemente arregaçada para molhar os pés, a minha avó Laurinda não conteve o riso e comentou com as filhas mais velhas que «nunca na vida tinha visto tantos homens nus».À casa da minha avó chegava todo o tipo de gente. 0 sapateiro e o ajudante que se instalavam por temporadas para fazer sapatos para a família inteira (treze filhos nascidos mas apenas onze vivos, sem contar com os pais e os funcionários da casa), as costureiras que passavam meses a fazer batas para a escola, fatos novos para os mais velhos, a adaptar os que deixavam de lhes servir para passarem para os mais novos, a virar casacos do avesso porque como elas diziam «a fazenda era boa demais para se estragar e os casacos ficavam como novos», a mudar golas e punhos às camisas de algodão do meu avô e a emendar bainhas, remendar calças e renovar cortinas e tudo o que fosse preciso naquela casa luminosa, de paredes de granito, muros caiados e um enorme pátio no meio. Essas praticamente viviam lá em casa o ano inteiro pois havia que tratar da roupa de Verão e Inverno. 0 sapateiro não, esse fazia de empreitada dois pares de sapatos para cada um, fazia cópias impecáveis de sapatos «estilo inglês» para o meu avô que era muito alto e calçava 46, número impossível naqueles tempos. Trabalhava pela noite dentro, à luz de candeias, a cozer e a dar forma ao couro e, no fim, arrumava muito bem as caixas das ferramentas, enroscava os frascos de cola que tinham

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um cheiro intenso e permanecia pela casa muito para além da sua estadia e partia sem dizer para onde ia. Era um homem calado que dizia apenas o essencial para fazer render o tempo e o dinheiro.Todas estas pessoas davam um movimento e uma alegria aUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1173uma casa já de si animada e feliz. 0 meu avô vivia apaixonado pela minha avó e a minha avó nunca teve olhos para outro homem. 0 melhor de tudo, fosse do que havia na mesa, fosse do que havia na sala ou fosse apenas do seu tempo de mãe de onze filhos que ela própria deitava e aconchegava nas camas, era sempre para ele.A dedicação e a ternura com que se tratavam, as gargalhadas que davam juntos e os momentos de silencio em que o meu avô, sentado no seu eterno cadeirão, lia o jornal da primeira à última folha e a minha avó cismava, olhando para o fogo que ia avivando, sempre com a mão pousada no seu braço são imagens que jamais conseguirei apagar da memória. Por serem eloquentes de um amor eterno mas, também, por representarem um exemplo difícil de reproduzir nos dias que correm em que poucos casais envelhecem juntos naquele estado de paixão e cumplicidade.A minha avó Laurinda tinha muitos pobres a quem protegia, vestia e alimentava. Todos os natais se faziam naquela casa inúmeros cabazes com ceias para distribuir pelos que nada tinham e era um ritual de pais e filhos ir entregá-los em mão e desejar um santo Natal, ficando sempre um pouco à conversa ou levando remédios para os que sabiam doentes.Um dia chegou a casa da minha avó um homem que nunca tinha aparecido naquela terra e a quem a minha avó mandou entrar para a cozinha e servir uma sopa e um prato quente como sempre fazia com os que batiam à porta para pedir. 0 homem vinha com ar abatido e sentiu-se muito reconfortado com as atenções e bondade com que foi recebido. No fim da refeição, já mais recomposto pediu para chamar a minha avó.- Queria agradecer-lhe o que fez por mim e gostava de1741 LAURINDA ALVESfazer alguma coisa por si. Pode pedir o que quiser pois tenho muito jeito de mãos.

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Apanhada de surpresa, a minha avó disse que não precisava de nada mas ele insistiu e, devota como era, a minha avó Laurinda acabou por dizer:- Faça-me então uma imagem de Nossa Senhora que assim rezamos por si.- Sim senhora. Mal tenha a imagem volto cá.A minha avó nunca mais se lembrou da promessa mas passados dois meses o homem bate à porta com um embrulho para entregar. A minha avó que esperava ver uma imagem delicada e bonita de Nossa Senhora olhou para a escultura de madeira com cara de homem e ar de muito sofrimento e não se conteve:- Mas que Nossa Senhora tão feia!- Acha que é feia e não dá para Nossa Senhora? Então não há prejuízo nenhum. Se não serve para Nossa Senhora, fica para Senhor dos Passos!E foi assim que em casa da minha avó ficou para sempre guardado um Senhor dos Passos sofrido e desfigurado a quem todos rezávamos como se fosse Nossa Senhora.Véspera de NatalTinha seis anos e tudo o que recordava, naquele tempo, era um sonho antigo, de cores desbotadas mas contornos bem definidos. Era ainda bebé, a mãe pegava-lhe ao colo e embalava-a até adormecer. Cantava com uma voz doce, muito baixinho, e era no esforço de voltar a ouvir a sua voz que o sonho se desvanecia. Vivia com esta imagem colada à pele. A mesma pele onde a mãe deixara gravada, para sempre, uma cicatriz.Durante uma das suas longas ausências, a filha ficara com a mesma fralda. Uma semana inteira sem que alguém se lembrasse de a mudar. No dia em que a mãe voltou, ao retirar o que restava de um destroço imundo, arrancou o bocado de pele que se colara ao elástico da fralda. Ela não se lembra de ter chorado, e de cada vez que passava os dedos pela marca da mãe fazia-o distraída e já sem dor. Talvez até com saudades. Aquele vinco fundo e indelével era, afinal, tudo o que lhe restava da mãe que um dia partiu e se esqueceu de voltar.1751761 LAURINDA ALVESAos seis anos vivia com a avó e um tio doente e cuidava deles sozinha. Levantava-se cedo e fazia, primeiro, um lume capaz de aquecer as mãos e a casa. Antes que fosse dia tinha de arrumar, cozinhar e tratar dos poucos

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animais que havia para alimentar. Corria de um lado para o outro, as mãos sempre geladas, a testa crispada e o cabelo emaranhado pelo vento. Fazia tudo sem um pensamento.Às sete da manhã acordava a avó para os primeiros comprimidos do dia. Contava-os, dividia-os pelos dias da semana e guardava-os em caixas separadas para nunca se enganar. A avó tomava tudo com um sorriso velhinho e agradecido e voltava a pousar o olhar cego na almofada. Então ela dava-lhe uma mão e, com a outra, segurava-lhe na testa para conversarem as duas sobre nada.0 tio olhava para elas sem esboçar um gesto.. Nascera profundamente doente e assim permanecia. Era ela que .o ajudava a vestir-se e o levava pela mão até à esquina onde todos os dias parava a carrinha que recolhia velhos e deficientes para os depositar num lar onde a maior ilusão era ver o tempo passar.Havia outro tio naquela família, um homem amargo, impiedoso e de maus vinhos, capaz de bater na avó, no tio doente e na menina de seis anos. Fazia-se anunciar pelos passos pesados e ela estremecia com a casa. Ao princípio escondia-se atrás da avó, mas depressa percebeu que era pior. Cega e indefesa, a avó apanhava do tio sem saber porquê.Os dias em que este homem se esquecia de ir a casa eram os únicos dias felizes daquela família. Enquanto a neta curava as feridas dos outros, esquecendo-se sempre das suas, a avó contava histórias antigas de pessoas que sofreram como elesUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1177sofriam. E era naquele desamparo que se consolavam e ganhavam alento para o dia seguinte.Quem olhava para ela dava-lhe dez anos. Chegaram a pensar que teria pelo menos quinze, dado o tamanho da responsabilidade. Na verdade, envelhecera sem dar por isso. Acordava demasiado cedo e adormecia demasiado tarde, e nessa amplitude cabia o dobro dos anos.Embora tivesse crescido depressa, a sua vida corria muito devagar. Passou um ano e depois outro e a avó ficou ainda mais doente. Dava-lhe xarope, fazia canjas quentinhas e aquecia-lhe os pés com uma garrafa de água a ferver que embrulhava numa camisola velha, mas a avó não ficava melhor. Num dia de chuva, três dias depois da última visita do tio perverso, a avó

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velhinha esboçou um gesto silencioso como que a chamar a neta para a sqa cabeceira. A menina chegou-se mais perto, pegou-lhe na mão e sossegou-a. Cantou baixinho, apavorada sem saber porquê, até que começou a sentir a mão da avó a arrefecer na sua. Durante muito tempo não foi capaz de olhar para ela. Segurava aquela mão como o náufrago se agarra a uma bóia. Não chorava porque não compreendia sequer que podia chorar.Depois daquele dia a menina passou a viver ainda mais sozinha. Primeiro levaram a avó, depois vieram buscar o tio doente e nunca mais apareceu ninguém. Nem sequer o tio mau.Passou algum tempo, e ela cada vez mais assustada com a extensão das noites e a solidão das horas. Um dia anunçiaram que a vinham buscar para um lar e sentiu-se perdida. Vendo o alinho em que vivia naquela casa sozinha, a mulher que veio buscá-la jurou que havia de lhe encontrar uma mãe verdadeira. Tanto procurou que encontrou.1781 LAURINDA ALVESNa véspera de Natal, a menina arrumou as suas coisas e sentou-se num banquinho de pedra à espera. E foi a partir desse dia que eu, que conheço a menina, a mãe e o seu anjo da guarda, posso garantir que nunca mais houve tristeza nem solidão naquela vida.A despedidaComo sempre a janela pequena ficou aberta para deixar entrar a luz do pátio. Reflectido nas paredes caiadas, o luar daquela noite iluminava todas as sombras e desenhava os contornos de cada coisa. Os degraus de xisto, o chão de granito, o musgo seco entre as pedras quadradas, as talhas de barro, os vasos de flores, as buganvílias crescidas, a água parada no tanque, o eterno pássaro preto debruçado, o limoeiro. Esperei pelo silêncio da madrugada e empurrei devagarinho o vidro mais para trás. Precisava de ouvir pela última vez aquele rumor vegetal das folhas quando estremecem com a brisa. Como se guardassem segredos e, secretamente, os passassem entre si. Fiquei ali esquecida a tentar lembrar-me de tudo. Do primeiro dia, da chuva, do vento, do sol, dos risos e das lágrimas. Dos últimos anos e de cada dia passado.Olhei para cima e vi como o azul do céu parecia dissolver-se entre a luz cintilante das estrelas e a claridade hesitante do

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179i1801 LAURINDA ALVESdia que se anunciava. As folhas deixaram de bater umas contra as outras o silêncio pesou e começou a doer. Era a última madrugada naquele pátio de luz e sombras onde, em cada noite, uma vozinha infantil ficava suspensa a contar as estrelas. E a dar-lhes um nome.Não sei quanto tempo passou, não havia nada nem ninguém para perguntar, tudo na casa parecia adormecido. Como se os deuses tivessem parado de respirar e, naquela ilusão de eternidade, tudo fosse ainda possível.Caminhei sem destino, entre paredes e janelas, degraus de pedra e tectos redondos, de mestre, cujas mãos recordo como se fossem as minhas. Vejo-o sentado nas tábuas de madeira a medir o espaço entre cada tijolo escuro, com marcas de dedos arrastados e vestígios de gatos errantes que, no campo, pisaram o barro ainda por secar. Lembro-me de o ouvir descrever a sua ciência. De o ver subir e descer com vagar para ter a certeza que um tijolo encaixava no outro e desenhava uma abóboda sem ser preciso mais do que uma linha de cimento e muita arte.Acendo uma vela para não perturbar a quietude e, naquela luz trémula, revejo a sucessão de dias e noites que me parecem um filme. As cores, as vozes, os lugares de cada um, o som do fogo, as músicas preferidas, as palavras ditas e as que ficaram por dizer, os abraços, a força do calor, o peso da chuva, o ninho de pássaros com oito ovos pequeninos, os malmequeres roxos, a sombra dos sobreiros, o poço escuro, as romãs apanhadas do chão, o perfume das laranjeiras, o gosto do azeite, a consistência das horas e de cada teia de aranha, o pão, o fumo que espalhava o cheiro no ar, a luz do fim do dia, o vale, o recorte das árvores ao longe, os passeios eternos, os encontros e os deUM DIA ATRÁS DO OUTRO 1181sencontros, os amigos e aqueles que foram mais queridos, tudo me trespassa agora a memória. Não quero chorar.Vagueio para não parar e porque também não quero adormecer. Não na última noite. Sei que não volto e preciso de sentir que tudo o que fica não me pertence mas está intacto. As paredes onde ficaram gravados todos os

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gestos e plasmados todos os risos têm a cor da cal. Estão mornas, como sempre, e deixam uma marca branca na palma das mãos. Uma marca que não se apaga e permanece durante muito tempo agarrada à roupa. Quando lá vivia lavava as mãos com água e sabão mas agora apetece-me ficar assim, as mãos manchadas e a roupa branca de pó.Há uma claridade suspensa no horizonte que quebra o silêncio. É a hora em que os mosquitos acordam, cegos pela luz, e batem contra as janelas fazendo um barulho aflito de quem precisa de um lugar onde a noite ainda seja possível. Atordoados, investem contra os vidros e morrem antes de amanhecer. Encosto-me ao vidro e estendo bem a mão para perceberem que existe ali uma matéria intransponível. Não vale a pena. Continuam à procura da noite, incessantemente, como se o dia lhes fosse insuportável. Percebo-os e afasto-me da janela.Há naquela hora um mistério indizível, um entendimento perfeito, uma possibilidade de ser tão feliz ali como em qualquer lugar. Acredito e consigo não chorar.Abro a porta do corredor devagarinho, sem fazer barulho, e procuro a luz que vem do fundo. Depois empurro a porta do único quarto que nunca ninguém fechou e sento-me na cama que está vazia, encostada à parede a ouvir o som quente de uma respiração profunda e infantil. Observo como cresceu e1821 LAURINDA ALVEScomo foi ficando tão diferente do que era quando dormiu pela primeira vez naquele quarto. Penso que não dei conta de serem assim tantos anos e fico muito quieta a olhar para a cama desfeita onde dorme e descansa parte da minha vida. Talvez acabe por chorar. Vê-lo ali tão pequeno e tão grande, alheio ao fim daquele tempo, sossegado por se sentir acompanhado, com um sorriso meio desenhado faz-me feliz. E é por ele que rezo e é por ele que agradeço e é com ele que me despeço de uma casa onde sei que permaneço.