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Lauro Trevisan - Só o Amor é Infinito

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Nota Este livro foi scaneado por Ricardo Mauricio Beskow e Fernando de Paula

Zamboni e corrigido por Fernando de Paula Zamboni; para uso exclusivo de deficientes visuais, de acordo com as leis de direitos autorais. Para este fim se utilizou de um sintetizador de voz. Portanto o livro pode conter erros de diagramação e outros.

Maio de 2002. Fim da nota

LAURO TREVISAN

SÓ O AMOR É INFINITO

Editora e Distribuidora da Mente Santa Maria - RS - Brasil Capa: Sérgio Miguel e Juan T. Amoretti Direitos reservados: Pode transcrever textos avulsos, desde que cite a obra e o

autor.

Lançamento em setembro de 1988

Pedidos: Editora e Distribuidora da Mente Rua Tuiuti, 1677 - Caixa Postal: 955 97015-663 - Santa Maria - RS - Brasil Fone: (055) 221.6020 - Fax: (055) 221.7184

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SÓ O AMOR É INFINITO Lauro Trevisan é famoso no Brasil e Exterior, por suas Jornadas sobre o Poder da

Mente, tendo escrito 30 livros até 1994, além de livretos, mensagens, poesias, e uma série de fitas cassete e de vídeo. Além de conferencista e orador empolgante, que arrasta multidões, é sucesso também na literatura, desses fenômenos que acontecem de raro em raro. Só o seu livro “O Poder Infinito da Sua Mente” já atingiu a venda de oitocentos mil exemplares e foi traduzido para várias línguas. Escreveu, ainda, livros infantis, de humorismo e de poesias. E, agora, penetra, com força incrível e capacidade criadora que nada deixa a desejar aos grandes ficcionistas, pelos domínios do ROMANCE.

O autor é jornalista, pós-graduado em Filosofia, com cursos de Psicologia, Parapsicologia, Teologia, Psicotrônica, Bioenergética, Análise Transacional, Administração de Empresas e muitos outros.

Conseguiu alcançar uma profunda compreensão das Forças Interiores e da fé, pois é sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana. Veja o que ele escreveu a respeito deste romance:

“Estou lançando mais um livro, pela Editora da Mente. Trata-se de um gênero literário pelo qual ainda não havia incursionado: o romance.

Coloquei todo o engenho e arte para dar ao público uma obra que arraste o leitor, jogando-o no mundo maravilhoso dos sentimentos, das emoções, das situações dramáticas, das conturbações da vida, dos grandes feitos, do amor e da violência, da justiça e da injustiça...

Uma história semeada de poesia, de ternura e de bondade; momentos em que a vida dá um toque de felicidade e de elevação; situações em que o diálogo sobre os diversos aspectos da vida trazem mensagens que penetram na alma.

Pode ser que este livro seja motivo de contradições para algumas pessoas, mas não para você, que tem uma elevada compreensão da vida humana e dos seus grandiosos mistérios.

Todas as pessoas que leram a história ficaram emocionadas e gostaram demais. Você verá como a grandeza do coração consegue transformar as desgraças e maldades em

impulsos para belas realizações. Há pessoas, como você e como um dos personagens do romance, que conseguem recolher

as pedras jogadas no caminho e com elas construir um mundo bonito.

Muitas vezes, a gente se perde pelos labirintos da educação, da religião, dos hábitos e costumes, e esquece que só o amor é infinito.

Sim, aí está o título do livro: “Só o Amor é Infinito”. Este livro precisa ser lido com espírito superior, liberto de preconceitos, lembrando

intimamente que tudo passa neste mundo: “Só o Amor é Infinito.”

(trecho de um depoimento do autor, publicado na Revista Nacional)

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CAPÍTULO 1

Eram seis horas da tarde. Segunda-feira. O telefone tocou.

- Boa-tarde! Quem é que está falando? - perguntei. - Você não me conhece. Mas, eu conheço você. Apenas estou ligando para

informá-lo de que lhe mandei um pacote, com algo muito especial. - Mas, quem é... Desligou. Era uma voz feminina. Coloquei o fone no gancho e olhei pela janela

do quinto piso do Palácio da Mente. O pôr-do-sol estava lindo e poético. Um anjo invisível, artista do céu, pincelara de laranja, lilás e ouro o horizonte. O sino da catedral tocou as ave-marias e eu senti uma imensa paz de espírito. Respirei e expirei três vezes, mentalizando saúde, paz, amor, Deus. Era a chave que me abria as portas do infinito.

Dezoito horas, para mim, sempre significou o momento cósmico do dia, o instante misterioso e fascinante em que é descida a ponte levadiça que liga o lado de fora com o lado de dentro, o interior com o exterior, o alto com o baixo, o de lá com o de cá. Senti-me, de repente, numa estrela distante, toda feita de encantamento, suavidade e poesia. E orei por todas as pessoas que vivem no meu planeta.

No dia seguinte, à mesma hora, o telefone tilintou novamente.

Era aquela voz feminina:

- Você já sabe quem está falando. - Não, ainda não sei - respondi. - Gostaria de ter o prazer de saber o seu nome. - Você vai saber. Mas, somente depois de receber o pacote que lhe enviei. - Pelo menos, me diga: qual é o mistério contido nesse pacote? - Você é muito curioso - brincou ela. - Diante do suspense que você está colocando, quem não seria curioso? - Tudo tem a sua hora - sentenciou a voz, e desligou. Nunca me tinha acontecido uma coisa dessas. Estava realmente intrigado: quem

seria essa mulher? Qual seria o conteúdo do pacote? Comuniquei-me, pelo telefone interno, com a Maria Odete e com o Mazoni, do depósito da Editora, e ninguém sabia de pacote nenhum. O sino da catedral badalou o ângelus e eu entrei pela ponte levadiça que me foi estendida. Neste momento, vi o meu coração abrir-se e abrigar, como num palácio de luz, milhares e milhares de pessoas, que entraram em sintonia de prece e de meditação comigo. Mais uma vez acreditei que o reino dos céus está em mim. Ao retornar às atividades, voltei à correção das provas de um novo livro, esquecendo completamente o episódio do pacote. Não sei se no outro dia a mulher ligou, porque às dezoito horas eu estava no Parque Oásis, situado a dez quilômetros de Santa Maria. Confesso que são tantos os telefonemas e cartas que recebo que não dei maior importância a esse caso. Talvez fosse até uma brincadeira. Sim, porque neste mundo tem gente para tudo.

Na quinta-feira, às dezoito horas, estava escrevendo um artigo sobre um fenômeno parapsicológico, acontecido num lugarejo do interior. Chamaram-me para atender urgente uma pessoa que estaria com o espírito do noivo, que tinha morrido dias atrás, por causa da ingestão exagerada de melancia, segundo comentários daquela gente. Que eu saiba, melancia só pode matar se cair de muito alto na cabeça de alguém. Mas, esse não era o caso. Perguntei aos homens que vieram buscar-me se não se tratava de uma jovem. Era isso. O espírito do namorado incorpora nela e ela fala com a voz do rapaz. Esta é uma interpretação do fenômeno, mas não é a única, e não é a minha - respondi-lhes. Eles me olhavam aflitos e espantados.

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- Sim - disse-lhes - trata-se de uma jovem sensitiva, em estado de desequilíbrio emocional, que, ao entrar em transe, provoca o fenômeno. Nada tem a ver com a religião e sim com a Parapsicologia - concluí.

Eles acreditaram, desacreditando. Fizeram-me lembrar aquela piada castelhana: “Yo no creo en las brujas, pero que

las hay, las hay”. Quer dizer: “Eu não acredito em bruxas, mas que existem, existem”. Tomei o carro e fui ver a jovem. Era tarde da noite. Tivemos que deixar o veículo

na estrada e seguir a pé pelo campo, até chegar numa casa pobre, de gente humilde. Muitas pessoas na casa. Expliquei à jovem que se tratava de um fenômeno comum e e que nunca mais iria repetir-se. Foi o que aconteceu. Nem bem terminara de atender a este caso, avisaram-me que, numa casa a cerca de quinhentos metros, o fenômeno, a que eles chamavam de incorporação, estava acontecendo com um rapás. Fomos até lá. Era uma noite muito escura e, de vez em quando, os sapatos atolavam em banhados. O homem que ia na frente carregava um lampião velho, que pouco iluminava.

O rapaz estava deitado. Foi trazido à sala e eu pude ver um moço, sensitivo, no último grau da depressão. Não me admirava, agora, que tivesse tentado suicídio diversas vezes. Conversei com ele, dei-lhe ânimo, libertei-o do mal e fomos embora.

Dias depois, informei-me a respeito da jovem. Nunca mais acontecera o fenômeno, mas a família havia-se mudado para outro lugar. Há pessoas que pensam que o fenômeno se deve ao lugar e, por isso, vão embora.

O telefone tocou. Lembrei-me da mulher misteriosa. Era ela. - A, boa-tarde! - Já estava-me esperando? - Não, mas sabia que era você, a dama das dezoito horas. - Você não está dando importância ao que lhe digo, más eu tenho certeza de que

vai gostar demais. - Como pode ter certeza? - Porque conheço seus livros e sua filosofia de vida. Acredito, até, que é a única

pessoa que pode dar o valor que merece o pacote que lhe enviei. - Por certo, não se trata de mais um pacote do governo brinquei. - Você é muito brincalhão! - Claro, a vida é uma festa! Ela riu.

- Mas, voltando ao assunto - tornou a voz, do outro lado - eu penso que vai dar ao pacote o destino que realmente ele merece. Amanhã vou

telefonar-lhe novamente. Se ainda não recebeu o pacote, explicar-lhe-ei do que se trata. - Está bem! Nem mesmo no dia seguinte o pacote apareceu. Fiquei pensando que poderia

estar com o endereço errado. À tarde, completei a revisão das provas do novo livro e dediquei-me a escrever os artigos que são publicados semanalmente em alguns jornais do país. Quando o sino da Catedral tocou as ave-marias, olhei instintivamente para o telefone.

Hoje, por certo - pensei - vai terminar a novela da dama do pacote. O telefone tocou. Solicitavam-me uma palestra sobre a violência urbana. Era a repercussão de um

trabalho, que publicara, chamando a atenção para esta verdadeira guerra deflagrada pelos delinqüentes contra a população desarmada. E apontava algumas soluções.

Novamente o telefone tocou. Agora sim era a dama do pacote.

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- Boa-tarde - disse ela, com voz descontraída e alegre. - Boa-tarde! É uma alegria sentir que você está bem-disposta e cheia de energia. - É que estava lendo o seu livro “O Poder Infinito da Sua Mente”. É muito bom.

Levanta o astral e dá uma força na gente. Estou gostando. - Obrigado - falei - você é muito gentil. - E o pacote? - perguntou ela. - Nada. - Ainda não chegou? - Não. - Pois, então, vou explicar-lhe do que se trata. Meu marido e eu resolvemos

construir uma casa num terreno que havíamos adquirido há muito tempo, e estava tomado de capoeira, restos de construção, lixo, de tal sorte que contratamos os serviços de uma retro-escavadeira para limpar tudo e preparar a área. Fiquei encarregada de acompanhar o serviço. A máquina desbastou o capoeiral e passou a fixar as garras naquele monte de restos de tijolos, telhas apodrecidas, caliça, imundície de todo tipo. De repente, a pá da retro afundou num vazio, a ponto de espantar o operador. Puxou a pá para um lado e para outro, e o buraco foi-se ampliando. O homem parou a máquina e eu fui verificar de perto. Parecia uma casa soterrada. Viam-se paredes encardidas, móveis deteriorados, assoalho apodrecido, portas em decomposição. Era tudo muito estranho.

Liberei a retro-escavadeira e resolvi entrar sozinha no meio daqueles escombros. Agarrei-me nuns restos de parede e saltei sobre o piso, carcomido pelo tempo. Tive a impressão de estar numa varanda antiga. Havia sinais de móveis apodrecidos. Numa face da parede, ainda estava um crucificado de bronze. Encontrei, também, uma estátua de Santa Terezinha. Andei alguns passos e vi uma porta com a fechadura totalmente enferrujada. Forcei com o pé e a porta desmontou-se aos pedaços. Entrei numa espécie de biblioteca, porque havia armários em ruínas, com livros e papéis embolorados e carcomidos pelas traças. Das cadeiras, só restavam pedaços de madeira.

Mais para o lado desta sala, havia outra repartição que, pelos restos de móveis, dava a entender que fora um quarto de dormir. Do colchão, apenas sobraram as molas enferrujadas. Remexi alguns escombros e encontrei o criado-mudo, de madeira de lei, bem conservado. Abri a gaveta e achei um calhamaço de folhas datilografadas em bom estado, porque, além de tudo, estavam fechadas, dentro de uma pasta de couro. Comecei a ler e me interessei demais pelo assunto da história. Confesso-Lhe que não saí de lá antes de ler o livro todo. Imagine você, eu sentada no criado-mudo de uma casa soterrada, e lendo aqueles papiros surrados pelo tempo. Pensei que alguém podia se interessar pela história e me lembrei de você.

Como se lembrou de mim, se não me conhece?

Conheço-o pelos escritos e tive uma intuição. Logo que chegar o pacote, leia a história e depois me dê sua opinião. Eu achei a narrativa muito linda e emocionante. Chorei bastante. Acredito que você também gostará.

Alguém bateu à porta e entrou com um pacote para mim.

Alô - interrompi-a - espere um momentinho, que estou recebendo, neste instante, um pacote. Pode ser o tão falado.

Rasguei a embalagem e realmente aí estava a pasta de couro com um denso volume de folhas datilografadas em seu interior. Na primeira folha havia apenas esta frase:

“Só o Amor é Infinito”

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- Sim - tornei a falar ao telefone - é o pacote que você mandou. - Pois bem - concluiu a dama das dezoito horas - está cumprida a minha missão. Espere aí um pouquinho - gritei apressado. Ligarei outro dia. Adeus. E desligou. Eu já não resistia de tanta curiosidade. Abri a pasta de couro a fim de ler pelo menos o início da história. Não parei mais. Quando terminei a última linha, meu rosto não continha a emoção, os olhos

estavam cansados, o relógio da parede batia vinte e uma horas e eu acabava de realizar uma longa e fascinante viagem no tempo.

Esfreguei os olhos, espreguicei-me na cadeira, relaxei o corpo e pensei que a história poderia ser publicada.

Verdadeira? Imaginária? Se pudesse ver os escombros da casa - pensei – seria pelo menos mais um

argumento de comprovação. O telefone tocou. Atendi. - Boa noite! - disse a famosa dama do pacote. - Você, de novo?! - exclamei. - Eu sabia que você ia começar a ler o livro e não pararia mais. Apenas dei tempo

para concluir a leitura. - Muito bonita a história. Realmente emocionante e cheia de belas passagens. - Vai publicar? - Antes eu queria ver as ruínas dessa casa, de onde você diz que recolheu o livro. - Não se preocupe. Se você publicar a história, um dia lhe mandarei todo o

material que recolhi no meio daquelas ruínas. - Está bem. Um abraço a você e os meus votos de que um dia possa conhecê-la

pessoalmente. Quando sair a primeira edição. Um abraço também a você. Felicidades e sucesso.

Desligou. No dia seguinte, chamei a Maria Odete e o Emídio e determinei o encaminhamento da publicação.

Hoje a coloco nas suas mãos. Será que você vai gostar também?

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CAPÍTULO 2

Domingo. Oito horas da noite. Uma noite fria de outono. As ruas da pequena cidade de Alvores estavam em burburinho. O povo se dirigia para a igreja matriz onde o novo pároco iria apresentar-se à comunidade. Há quatro meses a igreja permanecia fechada, desde o falecimento do padre Charles Henkin. Depois de muitos apelos ao Bispo, finalmente Alvores recebia seu novo pároco, um mocetão másculo, simpático e inteligente, recém-formado pelo Instituto Teológico de Rosandur. A igreja estava cheia. De fiéis e de curiosos. Após as primeiras preces da missa, o novo pároco ouviu a carta do apóstolo Paulo aos coríntios, leu o evangelho em voz alta, fez o sinal da cruz e apresentou-se à comunidade:

“A paz esteja com vocês. Fui chamado para conviver com vocês e aqui estou. Meu nome é Maurício Dollá. É muito possível que estejam esperando um sacerdote santo, perfeito, dado a elevados gestos de heroísmo. Eu sou apenas um homem de Deus, que aqui chego com a honesta e sincera disposição de ajudar a todos e a cada um em tudo o que puder.”

Um pequeno ruído no fundo da igreja fez com que o padre suspendesse por frações de segundos suas palavras. Era uma jovem elegante, loira, cabelos caindo pelos ombros como uma suave cascata de mel. De fisionomia abatida, veio seguindo pelo corredor central, pouco se importando com os olhares curiosos que a miravam como se fosse um animal raro. Sentou-se no primeiro banco. Só então as atenções gerais se voltaram novamente para o pregador:

“Não serei tão presunçoso a ponto de dizer que não tenho falhas. Quem não as tem? Há, no entanto, muita gente que não admite o mínimo erro num ministro de Deus. E há gente mais rigorista ainda, que passa o dia tentando caçar defeitos para ter a honra de contar a todo mundo que o padre não é lá essas coisas... Suponho que não seja justo e nem cristão pensar e agir assim. Sempre é bom relembrar que o sacerdócio é divino, mas o sacerdote é humano. Nem anjo, nem ser sobrenatural. Homem. Conhecem a história do apóstolo Pedro? Negou o Mestre três vezes e nem por isso Jesus deixou de fazer dele a pedra principal da Igreja. Estejam certos, porém, de que buscarei, de todo coração, servir, ajudar, amar, estar junto, nas horas de alegria e nas horas de tristeza. Onde houver uma alma angustiada, onde houver um coração sofrido, onde houver alguém necessitando de apoio, aí procurarei estar eu. As portas de minha casa estarão sempre abertas, em qualquer hora do dia e da noite, para receber os gritos de socorro de quem quer que seja.”

A jovem do primeiro banco estava pendente dos lábios do pregador. Logo que fixou os olhos naquele rapagão vigoroso, bronzeado, de cabelos negros e olhar suave, que aí estava a quatro metros de distância, todo vestido de branco, sentiu um golpe interior que não sabia explicar. Uma espécie de fascínio todo especial.

As palavras, tão diferentes das que costumava proferir o falecido padre Charles, iam penetrando, uma a uma, no fundo do seu coração. Com aquele vozeirão fanhoso e cheio de sotaque, ao padre Charles agradava sobremaneira investir contra os maus hábitos e pecados do povo de Alvores. Já o padre recém-vindo, que aí estava pela primeira vez diante dela, nada mais fazia do que reconhecer suas limitações e oferecer sua dedicação para ajudar aos que a ele quisessem recorrer.

Pôs-se, então, a recordar os tristes acontecimentos daquele dia. Seu noivo Corrégio, filho do doutor Onofre Álbarus, mais uma vez dera o maior vexame,

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despedaçando as últimas resistências de sua alma. E ela se perguntava pela milésima vez porque ainda não rompera definitivamente com ele. Mau caráter, dado à bebida e aos tóxicos, Corrégio era um rapaz insuportável. Naquela tarde de domingo - a jovem lembrava agora pedaço por pedaço – ele fora vê-la completamente bêbado. Claro, tinha que se recusar a recebê-lo. Os pais, no entanto, reprovaram ferozmente sua atitude e quiseram forçá-la a abrir as portas para o moço, afinal Corrégio era filho de uma das mais tradicionais e ricas famílias de Alvores.

Ferida em sua dignidade, ela resistia em recebê-lo, e o rapaz xingava, esbravejava, engrolando as palavras. Por fim, não conseguindo conter o assédio da família, foi à sala,com extremo desgosto. Parecia sentir, ainda agora, o fogo provocado no rosto pelo bofetão que ele lhe dera. Era mais um capítulo doloroso de seu desventurado noivado. Instintivamente, colocou as mãos no rosto, como se o noivo estivesse aí na igreja para bater-lhe novamente. Até este momento, não sabia como tinha conseguido agüentar tanto. Ou melhor, sabia sim, mas estava acima de suas forças livrar-se da opressão de seus pais e do pai dele. Principalmente este, tudo fazia para que saísse o casamento. O filho criava-lhe tantos problemas e vexames que o casamento era visto como uma forma de livrar-se da responsabilidade sobre ele.

E Silvana - assim se chamava a jovem do primeiro banco reviveu na mente mais uma vez o drama daquela tarde. Jogando a porta na cara do rapaz, fugiu para o quarto e lá ficou trancada até as oito horas da noite, num choro desesperado. Nem mesmo quando os pais quiseram obrigá-la a ir à missa, dera sinal de vida.

Nas horas mais terríveis de sua confusão mental, pensava até em acabar com essa vida desgraçada. Quando, porém, a casa ficou vazia e o silêncio se fez completo, ela voltou a si e, por fim, resolveu refrescar a cabeça na friagem da noite. E foi à igreja.

Agora ela lembrava como entrou no templo, feito uma autômata, seguindo pelo corredor central, alheia a tudo e a todos. E estava satisfeita por ter vindo. Ali, diante dela, a poucos passos, um personagem estranho, envolvente, conseguia atrair sua atenção e sensibilizar seu íntimo, tão machucado pelas agruras da vida.

“E como um bom e leal amigo - continuava o pregador estarei no meio de vocês onde houver alegria, onde houver festa, bem como nas horas em que a dor e a desgraça baterem à porta de cada um. Eu quero caminhar junto. Eu quero partilhar. Eu quero dar-me a todos, com minhas qualidades e defeitos, com minha boa vontade e com minhas fraquezas. Espero que me aceitem. Amém.”

. . Após a missa, o padre Maurício Dollá acomodou-se tranquilamente na

escrivaninha de sua sala e passou a ler o jornal, com uma xícara de chá do lado. Estava satisfeito. Acreditava que seu primeiro contato com o povo fora positivo. Embora soubesse que o velho padre Charles não fosse dado a palavras carinhosas e a gestos humanos, porque, para ele, isto significava fraqueza de caráter. Maurício não esperava que sua forma simples de ser e de falar pudesse provocar desagrados no povo. Enfim, cada um, cada um dizia para si, enquanto sorvia um gole de chá - e a última coisa que eu faria neste mundo seria pôr os pés num pedestal.

Alguém bateu à porta. Era a jovem do primeiro banco. - Boa noite. - Boa noite. Maurício ficou surpreso, mas não o demonstrou. Baixando um pouco a cabeça,

ela mostrava-se nervosa e tímida. E as palavras saíram um tanto trêmulas de sua boca, bem delineada pelo batom:

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- Padre, eu vim aqui porque suas palavras, na missa, me impressionaram. O senhor disse coisas que nenhum padre disse na igreja até hoje. Eu... desculpe... estou um pouco nervosa... Maurício percebeu que ela tinha problema. O tom de voz, a palidez do rosto, a traíam.

- Tenha a bondade, senhorita, passe aqui. Vamos conversar calmamente. Gostaria até que me desse sua opinião sobre o que falei na igreja. Sabe, eu sou novo aqui nesta terra.

A jovem sentou-se diante da escrivaninha.

- Não aprecia um chazinho? Está gostoso. - Obrigada. Depois de um breve silêncio, ela falou:

- Desculpe se o estou perturbando. É que o senhor disse que suas portas estavam sempre abertas. Abertas dia e noite. Para receber, quer dizer, para ouvir as pessoas com problemas... com angústias...

- É isto mesmo - encorajou-a ele. Silvana olhou para a poltrona revestida de fazenda escocesa e deixou cair seu

pesadelo:

- Eu tenho um problema... - Calou-se envergonhada. O rubor subiu às faces. - Conte comigo, minha filha. Vamos conversar de amigo para amigo. Ouvirei com

a maior atenção e respeito. Eu vejo uma grande tristeza em seus olhos. Noto que chorou muito. Não é verdade?

Maurício fez a interrogação quase num sussurro, para inspirar confiança. - É, padre. Eu estou caminhando para a desgraça e não há forma de evitá-la. Isto

me desespera. Após uma pequena pausa, perguntou, sem levantar os olhos:

- O senhor acha que a gente deve casar com um moço que não gosta e que não presta, só porque é muito rico e de família tradicional?

- Continue, por favor. - É o meu caso, padre Maurino. - Maurício. Maurício Dollá. Mas, isso não tem importância. Prossiga, por favor. - Eu ouvi mal na igreja. Desculpe. - Não, nada de se desculpar, minha filha - sorriu afavelmente o padre. - Pois, a minha história é muito longa. Acho que o senhor vai se chatear. - Absolutamente, fique tranqüila. - Sabe, eu sinto que o mais importante, no casamento, é o amor, é encontrar um

jovem com quem a gente se entenda, com quem a gente sinta a emoção de estar junto. Meu sonho é casar com alguém que me respeite, que reparta comigo a liberdade e o amor. Eu queria tanto estar ao lado de um noivo que tivesse coração, que fosse terno, que se sensibilizasse, por exemplo, diante de uma noite de luar... Enfim, não sei explicar... Por favor, não se ria de mim. Estou confusa.

- Nunca iria rir-me de algo tão humano e tão lindo, como isso que você está falando - animou-a Maurício, afastando o jornal mais para o lado.

- Mas, meus pais acham que eu estou fora da realidade. Eles dizem que o mais importante é a segurança econômica, o dinheiro,o bem-

estar, a posição social. Que o resto é bobagem.

- Eles são eles, você é você. Nada impede que procure alguém que sinta e viva os mesmos sentimentos que você, não acha?

- Mas, tudo é diferente, padre Maurício.

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E a jovem, agora mais desinibida, contou-lhe toda sua triste história, a longa história de um noivado sem amor e sem esperança.

- E o que menos importa nisso tudo, padre, sou eu. Ninguém pensa em mim. O que vale é unir as duas famílias, satisfazer as ambições dos outros. O senhor já imaginou o que é ter que viver o resto da vida com um cafajeste, viciado, mau-caráter?

- Compreendo. - Será que compensa? Será que eu tenho obrigação de ceder, de ir para o sacrifício

como uma ovelha, para que se tente regenerar, às minhas custas, um toxicômano e para que minha família esteja unida ás riquezas de outra família? A vida é uma só, padre. E curta. O que é que eu faço? Diga-me, pelo amor de Deus.

- As palavras da jovem soavam carregadas de angústia.

- E por que você não toma a decisão que lhe parece mais adequada? - Se fosse assim tão simples... Para mim não existe outro caminho. Não há

escolha. Sei que deverei dar adeus às minhas ilusões. Mesmo que quisesse, não teria forças para superar a agressão e a pressão que seriam exercidas contra mim. Afinal, eu não sou de ferro...

Maurício conversou longamente com Silvana. Aos poucos, foi fazendo com que ela emergisse do abismo e sentisse que tinha forças para vencer seu próprio derrotismo. Fez-lhe ver que a vida pertence a cada um e a Deus, e todos têm o direito de buscar a própria realização e ser feliz.

Minha filha - concluiu, por fim, Maurício, com toda a convicção - você pode e deve sair deste túnel escuro. Você mesma tem dentro de si forças para enfrentar todos os obstáculos à sua felicidade. Acredite. Você não é a primeira e nem será a última a ter que lutar contra a correnteza. Reúna todas as suas forças e jogue-se na água. Com fé. Com coragem. Com grandeza de alma. Com a convicção de estar salvando sua vida.

Silvana permaneceu em silêncio por alguns momentos. - Padre, eu saio daqui renascida. Palavra de honra. Um vulcão de decisões já está

fervendo dentro de mim. Nem imaginava que existisse tanta força no meu interior. Parece milagre. Reze por mim. Hoje mesmo vou romper o noivado e libertar-me deste pesadelo...

- Não preferiria pensar um pouco mais? - Pensar eu já havia pensado há muito tempo. O que me faltava eram forças para

tomar uma decisão. - Que Deus a ilumine - sorriu Maurício, pondo a mão no ombro dela, para dar-lhe

mais força e segurança. - Eu rezarei por você. … Na casa de Silvana, seus pais André e Margarida conversavam com Corrégio.

Havia prenúncios de tempestade. Silvana abriu a porta, deu boa-noite e foi para o quarto.

- Silvana, venha cá! - chamou asperamente seu André, com aquela sua voz viscosa e grossa.

A jovem tornou à sala: - Nem precisava me chamar. Eu viria para a sala, mas não para fazer aquilo que

vocês estão pensando - disse a moça, sentando-se numa poltrona. - O quê?! - exclamou, entre estupefato e surpreso, seu André. - É isto aí que ouviram. Eu quero aproveitar o momento em que estão os três

reunidos para dizer ao Corrégio que, a partir de agora, está terminado nosso noivado. - Nunca! - explodiu o pai.

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- Você está doida! - exclamou dona Margarida, franzindo a testa já enrugada pela idade.

- Não seja besta! - xingou Corrégio, não levando a sério as palavras da noiva. - De nada valerá qualquer oposição. Estou decidida e não voltarei atrás. Sou maior

de idade, responsável por mim, e vou cuidar da minha vida. Silvana falava firme como uma rocha, coisa que jamais imaginara poder fazer.

- Nós somos noivos e vamos casar - determinou Corrégio, certo de que suas palavras eram uma ordem que seria cumprida de qualquer maneira.

- Corrégio - estourou a jovem, levantando com firmeza o dedo indicador - não pense que estou brincando. Até agora eu fui um joguete de você e de meus pais. Graças a Deus, consegui acordar em tempo. Daqui para frente eu mesma vou cuidar da minha vida. Tome a aliança, que para mim não tem mais sentido.

Incontinenti, alcançou a aliança ao Corrégio, que se recusou a recebê-la. Silvana, então, atirou-a sobre o casaco do moço, que permaneceu, por instantes, imóvel e de boca escancarada.

- Mas, o que é isso, querida! Você nunca foi assim! - exclamou ele, como que sacudido por um ciclone. - Você não pode fazer isso comigo. Está certo que eu tenho muitos defeitos, mas eu amo você. Meu pai já está aprontando a nossa casa, com todo o luxo e conforto. Tudo vai ser maravilhoso. Você está dando uma de idiota, menina!

- Já falei - retrucou a jovem, completamente impassível. - Não pode ser - insistiu o rapaz. - Quem é que andou pondo minhoca na sua

cabeça? Diga-me quem foi o desgraçado, que eu mato esse animal. Silvana ficou calada.

- Olhe, minha filha - recomeçou seu André - você não sabe o que está fazendo. Lembre-se que não é fácil encontrar um marido com... Seu André titubeou. Por fim, concluiu, bastante envergonhado:

- Com... tanto prestígio e dinheiro, digamos assim. - Ora, papai - revidou a jovem - amor não se compra e nem se vende. Amor é ou

não é. De mais a mais, eu sei muito bem quem é o Corrégio, e dê graças a Deus que consegui parar em tempo.

Corrégio estava nervoso e descontrolado:

- Dona Margarida, me traga um uísque. Para aturar tamanha burrice, só mesmo com a cabeça cheia de fogo. Não é possível! Esta história não está bem contada...

- Minha filha - tornou, gravemente, seu André - alguém mandou você tomar esta decisão?

A moça nada respondeu.

- Eu não entendo mais nada - continuou o pai. - Perder um casamento destes é a coisa mais incrível que eu já vi na minha vida.

E seu André reconstruía mentalmente os longos anos de vida dura e cheia de privações que passara para sustentar a família. Somente agora, depois de muito sacrifício, conseguira uma casa com certo conforto. Era bem verdade que Silvana também possuía um carro, com o qual ia diariamente à Faculdade de Filosofia. Mas isto, ela mesma conseguira a duras penas, com muita economia, lecionando em qualquer lugar que fosse possível. Quando dona Margarida voltou com o uísque, encontrou a sala em silêncio. Corrégio não se conteve. Em dois goles sôfregos e esganados, enxugou o copo que lhe fora servido. Dona Margarida, então, depositou o litro sobre a mesinha, ao alcance do rapaz.

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- Olhe, cabeçuda - voltou a insistir o moço - você não tem capacidade e nem autoridade para decidir sobre sua vida. Seus pais já resolveram que vamos casar e é isso que vai acontecer, querqueira, quer não.

Tomou o litro de uísque e encheu novamente o copo. Sem gelo.

- Se você está pensando que eu sou palhaço, está muito enganada e vai se arrepender demais. Você quer dar uma de valente, mas não passa de uma imbecil, uma cavalgadura, entendeu?

E, alterado pela bebida, acrescentou com extrema agitação:

- Depois de tanto tempo de namoro e de noivado, você vai casar comigo na marra, entendeu, sua filha da...? Dona Margarida levou um susto.

Não diga isso, que me ofende, Corrégio - recriminou timidamente a mãe. Desculpe - engrolou o moço - é que essa coisa me deixa maluco. Ela pensa que

vai escapar assim no mais. Mas, não vai, não.

Com licença - pediu Silvana, levantando-se. - O que tinha a dizer, já disse. Não há porque continuar a conversa. Boa noite! E, antes que alguém tentasse contê-la, tratou de sair às pressas da sala.

O sangue e o álcool subiram violentamente à cabeça do rapaz que, num ímpeto, jogou o copo de uísque na jovem. Mas, Silvana não estava mais lá e o copo foi espatifar-se na parede. Acometido de furor, Corrégio levantou-se e correu porta afora, rosnando, xingando e ameaçando.

. . . No seu quarto, vestida com uma lingerie azul, Silvana estirara-se na cama,

tentando pôr ordem em seus pensamentos. A transparência suave de sua veste traçava, sob a luz fraca da lâmpada de cabeceira, os contornos do corpo, bonito e bem delineado. Por instantes, mirou-se com olhares de sensualidade, como a elogiar-se intimamente. Mas, a pressão dos últimos acontecimentos voltou a conturbar a sua mente. A calma aparente desapareceu, dando lugar a um turbilhão de imagens incontroláveis. Uma névoa de amargura começou a toldar seu coração e ela sentia-se assim como um aeroporto fechado devido ao denso nevoeiro.

Quase sem dar-se conta, levantou-se e foi à janela. Devia ser tarde, porque sentiu em si aquele friozinho refrescante das madrugadas, que a reconfortou. A noite estava salpicada de estrelas. Lá, mais para o sul, a lua, como um viandante solitário e lânguido, vagueava por entre as nuvens, borrifando de luar as árvores, as flores, os telhados, as paredes, a rua. E o rosto de Silvana também foi beijado e acariciado pelo luar.

Envolvida por uma ternura que nunca havia experimentado, seu pensamento transformou-se num andarilho solto e liberto, assim como a lua lá em cima. Ah, como é linda a vida contemplada com os olhos da liberdade e da paz - pensou ela. E seu coração estremeceu de repente: a imagem do padre Maurício surgira à sua mente como por encanto. Que estaria fazendo ele agora? Claro, dormindo o sono da paz, depois de cumprido o seu primeiro dia de Alvores. Que padre! E a jovem lembrava o fascínio que ele exercera sobre ela desde o primeiro momento em que o vira na igreja. Depois, a longa conversa, o conforto moral, o extraordinário espírito humano e compreensivo. Aqueles olhos calmos e profundos, como um oceano cheio de mistérios... Aquele corpo forte e másculo... Na sua imaginação, Silvana sentia-se abrasada, incandescente. Era como se estivesse vivendo um pôr-do-sol colorido e cálido dentro do seu coração. Ah, como era bom falar com o padre Maurício, embeber-se de seu olhar, sentir o abrir e fechar de seus lábios trazendo lindas palavras, como se fosse o abrir e fechar de uma

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flor vermelha, transcendendo perfume! Ah, como era bom... Como era bom... Como era bom... Um galho seco de árvore caiu de repente, diante de sua janela, quebrando o silêncio da noite. A jovem sentiu um choque e voltou a si bruscamente. Quase envergonhada de seus pensamentos, recolheu sua imaginação, fechou a janela e atirou-se na cama.

Era uma hora da madrugada.

Só Deus sabe quanto tempo levou para adormecer. A algumas quadras, lá no alto da colina que marca o centro de Alvores, alguém ainda permanecia em vigília. O padre Dollá. Recostado na cabeceira da cama, seus pensamentos reviviam todos os acontecimentos do dia, do seu primeiro dia dessa cidade que ainda lhe era totalmente desconhecida. E procurava desvendar os mistérios desse povo. Por mais que se embrenhasse numa análise de sua nova paróquia, sua imaginação sempre voltava àquela jovem que vira no primeiro banco da igreja e que depois fora à sua sala contar a história do desventurado noivado. Passando a mão pela densa cabeleira, se perguntava como era possível que ainda existissem casos como esse. Jogar pela janela todos os sonhos e ilusões de uma jovem na flor da idade em troca de interesses, nos quais, na verdade, não encontrava valor nenhum. “Ou eu estou num outro planeta - dizia de si para si - ou o mundo está virado ao avesso.” E o vulto loiro e bonito da jovem assomava, como por um passe de mágica, e se aproximava de sua cama. Talvez, no fundo, sentisse vontade que fosse realidade. Ele vira nela um coração maravilhoso. A tristeza daquele semblante aveludado e fresco machucara-o muito, muito mesmo.

- Queira Deus - sussurrou ele, estendendo-se na cama e puxando as cobertas até o pescoço - que ela tenha forças para enfrentar a sua timidez e o medo dos outros e consiga decidir com convicção e fé seus próprios caminhos. Senhor, dá uma mãozinha firme para esta jovem!

... Na manhã seguinte, já muito cedo, seu André e dona Margarida estavam

sentados na cozinha, em confabulações. O assunto não podia ser outro.

- Sabe, mulher - comentou ele, assoprando o café que estava fumegante - é preciso fazer alguma coisa. Que é que vai dizer o doutor Onofre quando souber de tudo o que aconteceu ontem?

Dona Margarida limpou o rosto com o avental.

- Olha, André, a Silvana nunca teve boca para nada... Daí que eu acho que tudo não passa de um capricho dela, fácil de resolver. A

mulher franziu os sobrolhos. - Para mim é o contrário. Se ela agüentou durante tanto tempo e de repente teve a

coragem de dizer basta, é porque tomou uma decisão de ferro, que ninguém vai dobrar. - Ah, ninguém vai dobrar! - repetiu, incrédulo, seu André. - Jogo minha cabeça

que hoje vai ser tudo diferente. Ontem ela estava com a cabeça quente, você sabe o que aconteceu.

Três batidas na porta. Dona Margarida tirou o avental e foi atender. - Era o doutor Onofre Álbarus. Sua voz soou rude e cavernosa.

- Bom-dia, dona Margarida.

- Bom-dia, doutor Onofre. Entre, tenha a bondade. E, sem mais delongas, dona Margarida perguntou:

- O Corrégio lhe falou sobre o que aconteceu ontem?

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- Falou - respondeu o doutor, entrando. - E é por isso mesmo que eu vim aqui a esta hora.

- Pois, olha, chegou em bom momento. Ainda agora eu estava conversando com o André sobre o assunto, na cozinha. Passe, por favor.

O médico foi conduzido até a cozinha. Enquanto seu André alcançou uma cadeira, dona Margarida tratou de preparar-lhe um cafezinho.

- Eu simplesmente não acredito - começou o doutor. - Nem nós. Mas, aconteceu - confirmou seu André. - Eu quero falar com a menina. Compreendo a sua irritação, mas deve haver

algum mal-entendido. Garanto que não é bem assim... - ponderou o doutor Onofre, servindo-se do cafezinho.

- Eu não garanto mais nada... - ajuntou dona Margarida. E foi chamar Silvana.

- Puxa, que pessimismo, dona Margarida! - exclamou o médico, enquanto a mulher deixava a cozinha.

Depois de um pequeno silêncio, apenas entrecortado pelas baforadas do cigarro do velho André, o doutor Onofre voltou a falar:

- Eu não vejo nenhum problema maior. Claro, meu filho pintou o quadro com as cores mais negras possíveis, mas acontece que o coração sempre dá uma dimensão maior a tudo. Veja o senhor, seu André, ela não vai querer perder esta oportunidade de fazer um casamento de alta sociedade, como se diz. O senhor sabe, as mulheres são muito vaidosas por natureza e fazem de tudo para sobrepujar as demais. Eu as conheço bem. Além disso, nós todos, que estamos interessados nessa união, formamos uma prensa a que ninguém pode resistir sob pena de ficar totalmente esmagado.

Seu André encarquilhou a testa. Dona Margarida voltou à cozinha.

- Eu sei o que é a vida - continuou o doutor. - A juventude pensa que a vida é feita de sonhos floridos, na base de um amor e uma cabana e pronto. Pura ilusão... Pura ilusão... Olhem agora aí para a rua: que é que vêem? As pessoas andando feito loucas em busca de dinheiro. Trabalham, dão duro noite e dia, passam noites sem dormir porque se venceu a promissória ou a duplicata e não sabem de onde vão tirar o dinheiro... E, depois, eu sou médico, tenho um hospital, e sei do drama por que passam tantas famílias para pagarem operação, hospital, remédios... Essa é a realidade da vida, seu André e dona Margarida. Essa é que é a vida que Silvana não conhece...

- Eu conheço bem mais do que o senhor imagina - emendou Silvana, entrando na cozinha.

- Ah, você estava aí - exclamou afoito o doutor. - Bom-dia, Silvana. Até foi bom você ter ouvido, assim não precisorepetir

especialmente para você.

O doutor Onofre derramou um leve sorriso pelos lábios. A jovem permaneceu séria.

- Você deve estar surpresa por eu ter vindo a estas horas da manhã - começou o médico, tirando os óculos e fazendo-os girar como uma hélice. - É que meu filho me contou tudo que aconteceu ontem.

- É isso aí - confirmou a jovem. - Eu tenho certeza de que agora você está pensando um pouco diferente. Afinal, o

travesseiro sempre foi bom conselheiro, e não acredito, aliás ninguém acredita, que você possa continuar levando a sério aquela decisão. Já falei para o Corrégio ser mais atencioso com você e beber menos...

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- Isso o senhor já falou uma centena de vezes e não é desta vez que vai dar resultado - cortou a jovem, com um pouco de impaciência, já prevendo que a conversa seria longa e enfarada.

- Você está nervosa, minha filha - observou o médico. - Eu não estou nervosa. Apenas quero que me deixe em paz. Eu quero começar a

viver. - Viver! Palavra cheia de ilusões! - advertiu o doutor, baixando e levantando a

cabeça pausadamente. - Viver! A juventude pensa que viver é cheirar as flores, correr pelos campos, escalar morros de blusa aberta ao peito, sem compromissos, sem responsabilidades, sem pensar no amanhã. A juventude sonha com um amor romântico e poético que se consuma na entrega dos corpos à luz flácida do luar... Mas quem é que vai pagar as roupas que vestem... a casa onde moram, a luz, a água, a comida, o pão, os remédios, enfim aquele cortejo sem fim de gastos e mais gastos? Veja, Silvana, apenas quero ajudar você a pensar. O Corrégio pode lhe dar alguns aborrecimentos, mas, em compensação, você viverá em bela casa, com posição social, terá tudo o que quiser, enfim você poderá usufruir da vida com tudo aquilo que as jovens de sua idade ambicionam.

Silvana queria deixar o médico falar à vontade. Mas, de súbito, decidiu-se de forma diferente. E resolveu acabar com o assunto:

- Doutor Onofre, fico-lhe muito agradecida pelo interesse por minha felicidade. A vida traça caminhos que nem sempre agradam a todos. Mas, a minha vida é minha e eu é que vou escolher o meu caminho. Espero que o senhor, o Corrégio, meu pai, minha mãe, respeitem a minha liberdade e os meus anseios.

E, olhando para o relógio:

- Bem, desculpe, devo andar, está quase na hora da aula. Até logo. E sem esperar resposta, Silvana saiu da cozinha às pressas, tomou os livros e

desandou porta afora.

- Bom, nada mais tenho a fazer aqui - resmungou o doutor, levantando-se. - Sinto muito - desculpou-se dona Margarida. O doutor Onofre Álbarus recolocou os óculos, pôs instintivamente as mãos nos

bolsos, tirou-as, dando mostra de nervosismo e, despedindo-se, rompeu rispidamente:

- Esta menina não está pensando sozinha. Eu hei de descobrir o desgraçado. Aí, sim, ajustaremos as contas. Até amanhã.

Silvana dirigia-se a toda pressa para a Faculdade quando, de repente, mudou de idéia e tomou outro rumo. Minutos depois, apertava a campainha da casa do padre Dollá e esfregava as mãos nervosamente.

- Oh, Silvana, bom-dia! Entre. - Padre Maurício, a barra está pesada. Ontem à noite terminei com o noivado,

devolvi a aliança ao Corrégio, mas estou sofrendo uma pressão terrível... Dá vontade de desaparecer da face da terra.

- Você está muito nervosa. Maurício pensou um pouco. - Veio de carro? - Sim. - Quem sabe, então, a gente daria uma saída por aí. Um solzinho gostoso e um

contato com a natureza poderiam ajudar a refrescar a cabeça, não acha? Ou você tem aula agora?

A jovem sorriu graciosamente.

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- Aceito sua sugestão. Enquanto o carro saía da cidade e tomava o rumo da serra, de onde se

descortinavam os mais belos panoramas da região, Silvana ia contando a Maurício tudo que lhe acontecera nesses dois dias. Depois de ouvir muito atentamente o relato da jovem, ele exclamou vivamente impressionado:

- Estou realmente admirado da sua determinação. Confesso que você me deixou surpreso. Depois de tanto tempo presa a uma situação que detestava, mas de que não conseguia se livrar, onde é que você arranjou tanta força para este passo inabalável? Eu sei que todos temos um potencial de poder interior capaz de transportar até montanhas, como disse o Mestre, mas conseguir acionar esses poderes não é tão fácil assim. Concorda?

- Concordo.

- Então, posso saber onde foi que conseguiu tanta força? - Pode. - Onde? - No senhor. Maurício olhou para ela e sorriu benévolo. - Bondade sua, Silvana. Eu apenas ajudei você a enxergar a situação e a ver o

caminho a seguir. As forças saíram de dentro de você. Há muita gente que sabe o caminho que deve tomar e, no entanto, não encontra coragem suficiente para enveredar por ele.

- Assim como eu - interveio ela. - Meu namoro com Corrégio sempre foi tumultuado. Eu sonhava com um amor profundo, que se fundisse e iluminasse, que perfumasse uma caminhada a dois e que semeasse sonhos de desejos na saudade das ausências. Mas, Corrégio cada dia me decepcionava mais. Duro, insensível, fanfarrão, parecia um troglodita comigo. Muitas vezes entrava em minha casa bêbado. Bêbado, padre, o senhor pode imaginar o que é isso? Se fosse uma ou outra vez, claro, a gente poderia compreender e aceitar. Mas, ultimamente, era quase uma constante. Todas as vezes que eu tentava desfazer o namoro, recebia uma carga maciça por parte de meus pais e da família dele. Fui contemporizando; não tinha coragem de assumir uma decisão que iria contra tudo e contra todos. O noivado foi resultado de uma manobra. Veja o senhor: numa noite de Natal, nossa casa estava muito enfeitada e preparada para uma festa como nunca tinha acontecido. Eu havia viajado e fizera de tudo para chegar em casa para a missa da meia noite. Fiquei deslumbrada diante de tudo o que via. É Natal, minha filha. E todo Natal sempre traz boas surpresas - disse minha mãe. Após a missa do galo, foi juntando gente lá em casa. O doutor Onofre parecia o dono da festa. Corrégio estava ao meu lado. De repente, o doutor Onofre tomou a palavra e falou mais ou menos assim: “Meus amigos, esta é uma noite muito importante. Não só por ser Natal. É que eu, bem como o seu André e dona Margarida, temos o imenso prazer de anunciar oficialmente o noivado de nossos filhos Corrégio e Silvana. Que Deus os abençoe e sejam muito felizes.” Imagine o senhor como fiquei eu no meio dos brindes, das palmas e da festa que se estabeleceu. O senhor acha que eu teria coragem de levantar e dizer: Não, não é verdade, isto tudo é uma palhaçada?!

- Pobre Silvana! - exclamou ele, com muita pena. - O senhor nem supõe o que é ter que ficar durante horas a fio ao lado de uma

pessoa que a gente não ama. Não tem graça, não há assunto, tudo é chatice. - E o rapaz não percebia que você não gostava dele? - Percebia. Mas, ele gostava de mim. Por outro lado, era uma questão de glória

para ele casar comigo. Não sei porquê... Vivia correndo atrás das meninas o dia todo aí

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pela cidade... Por que não me deixava em paz? O senhor pode ter a certeza de que ele não vai se dar por vencido. Não sei o que pretenderá fazer, mas ele é pior do que carne de cobra...

O carro fazia uma longa curva em torno de um cerro. Em cada dobra do morro, novas e surpreendentes paisagens se ofereciam aos olhos dos dois. Lá embaixo, um imenso lago de águas calmas, abrigando grandes bandos brancos de garças nas ramagens que sobressaíam da água. Perto da estrada, uma verdejante colina, toda ensolarada.

- Olha lá, Silvana, que lugar poético! Aquela colina verdejante... Que coisa linda! - O senhor não conhecia? Quem sabe, a gente dá uma chegadinha até lá? Está

disposto? - Como não? Sabe, eu sempre fui ardoroso escalador de montanhas. Eu gosto de

montanhas, de rios, de lagos, da natureza, enfim. Eu gosto de esporte; até quero ver se consigo praticar semanalmente algum esporte aqui na cidade.

- Vai ser um escândalo - brincou ela. - Enquanto se dirigiam para a colina, Dollá tecia elogios à prática esportiva,

afirmando que o esporte alegra o espírito, deixa o corpo bem-disposto e descarrega os nervos.

Até mesmo esta linda paisagem alivia as tensões nervosas. A calidez do sol, o verde desta grama, a serenidade daquele lago lá embaixo, a alegria esvoaçante dos pássaros, a grandiosidade incomensurável dessas montanhas aí diante de nós, tudo enleva e emociona, tudo faz a gente abrir a alma e sentir-se dentro de um mundo maravilhoso. E fraterno. Bem diferente da poluição da cidade, que nos sufoca, que nos oprime e que nos aperta a cabeça.

Sentados no alto da colina, os dois contemplavam agora, em silêncio, a paisagem ensolarada. Lá embaixo, à esquerda, um camponês conduzindo suas vacas para a pastagem. Na pequena enseada do lago, um velho e um menino entrando numa canoa e saindo a remar animadamente. O silêncio era apenas entrecortado, vez por outra, pelo trinar de algum pássaro mais afoito e por algum carro que subia ou descia a serra.

Que lugar calmo este! - falou Maurício, com os olhos a dominarem toda a extensão do lago.

Realmente. Apenas os carros perturbam de vez em quando a paz deste recanto. Olhe, lá vem vindo um carro a toda. Que sujeito maluco... Estas curvas são um perigo... Olhe lá, padre Maurício, olhe lá como vem vindo aquele carro... Uma loucura...

Os dois olharam perplexos para a estrada. O motorista parecia desmiolado. De súbito, Silvana arregalou os olhos e deu uma forte palmada na perna de Maurício, como querendo acordá-lo de seu silêncio, e exclamou:

- É o Corrégio! Em poucos instantes o rapaz desapareceu na Curva do Diabo, passando como

um bólido sobre o viaduto.

- Agora o senhor já tem uma pequena imagem do rapaz. Maurício ainda estava abismado.

- Descer a serra nessa doideira, só mesmo um suicida ou um assassino - murmurou ele como se estivesse falando sozinho.

- Ou um biruta, padre. - Bem, quem sabe a gente retornaria agora? - sugeriu delicadamente Maurício. -

Creio que deu para você acalmar-se bastante e até mesmo enxergar a vida com outros olhos. Que me diz?

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- Ah, eu não gostaria de sair nunca daqui... Eu adoro ouvir o senhor... Nem sabe quanto bem me fazem suas palavras...

- Posso lhe dizer uma coisa?

- Pode. - O senhor tem um coração maravilhoso! - Peço a Deus que assim seja. Mas, sempre que precisar de mim, às ordens.

Afinal, eu acredito no significado de uma frase que li há muito tempo: A maior felicidade é fazer os outros felizes. Enquanto se dirigiam para o carro, Corrégio entrava que nem louco no hospital Santo Onofre, à procura do pai. O doutor Onofre estava na sala de operações.

- Eu quero falar com meu pai - disse, com impaciência, para a enfermeira, tentando entrar na sala de operações.

- Não pode entrar. O doutor Onofre está operando e o caso é muito grave. Aguarde um pouco aí na sala do lado.

- Você não manda nada aqui. Eu quero falar agora, entendeu, agora mesmo com meu pai. Diga para ele. Vá lá, minhoca branca, ligeiro.

O doutor Onofre veio até a porta. Como o filho falasse em altos brados, conduziu-o à salinha do lado.

- Corrégio estava furibundo:

- Agora descobri tudo. Eu sabia que tinha minhoca no meio de tudo isso! A porta se abriu e a enfermeira avisou:

- Doutor Onofre, a pressão da paciente está baixando demais. Seria bom o senhor voltar à cirurgia e tomar algumas providências.

- Quem sabe o que seria bom sou eu, entendeu? - respondeu-lhe, com rispidez, o doutor.

- O rapaz tornou a falar desabridamente:

- Sabe onde é que eu vi a Silvana ainda agora? - Onde? - La na colina da serra. Imagine, a essas horas... A porta entreabriu-se novamente e a enfermeira, muito sem jeito, informou:

- Doutor Onofre, a pressão está a zero. Acho que a paciente não vai resistir. O médico irritou-se:

- Você não tem nada que achar. O médico sou eu. Que espere. Todos têm hora para morrer.

- Corrégio não se continha:

- Mas, o pior não é isso. A menina estava com o padre Dollá. Os dois juntinhos. Esse sujeito vai me pagar. Eu mato ele. Cafajeste. Ordinário.

- Acalme-se, meu filho. Deixe para mim, que vou botá-lo fora desta cidade numa semana.

- De que jeito? - Eu sei como. Na quinta-feira vai haver uma reunião do conselho da igreja. Foi

convocada pelo próprio padre. Ele mesmo cavou a sua sepultura. Eu vou instruir, instigar, e até mesmo forçar os conselheiros para que despeçam o padre e requeiram outro pároco ao Bispo.

E, levantando-se, concluiu:

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- Agora vá, Corrégio, e comece a trabalhar neste plano. É o mais simples. E o mais eficiente.

O doutor Onofre dirigiu-se apressado para a sala de cirurgia.

- Como está a paciente? - indagou, preocupado, ao aproximar-se da mesa. - Estava, doutor. Morreu. O médico ficou bastante perturbado intimamente. Nada mais podia fazer. Antes

que a consciência o fustigasse, voltou as costas e tratou de sair, enquanto dizia para a enfermeira-auxiliar:

- Avise ao marido e aos filhos que a mulher infelizmente não resistiu à operação. A enfermeira respondeu-lhe, com mal disfarçada ironia:

- Seria bom que o senhor mesmo avisasse; o senhor pode explicar melhor. O doutor Onofre voltou-se irritadíssimo:

- Está demitida. Passe no departamento de pessoal e acerte as contas. Lá fora, o marido e quatro filhos aguardavam, com a maior ansiedade, o

resultado da operação. A paciente era mãe de oito filhos, formando os três últimos uma escadinha de três anos, dois anos e o caçulinha com seis meses.

Diante da infausta notícia, o desespero foi geral.

Mãezinha! Mãezinha! - gritavam os menores, enquanto que o pai batia os punhos contra a parede, totalmente desnorteado.

Mas, o cirurgião não podia dar-se ao luxo de fixar este quadro de tristeza e de luto. Saiu do hospital na maior pressa, com o intuito evidente de dar início à sua campanha de intrigas junto aos conselheiros da igreja. Era preciso envenenar-lhes a mente para que transformassem o novo pároco numa persona non grata em Alvores. Visitou Giron Vidal. Diante da hesitação de Giron, lembrou-lhe muito discretamente:

- Não esqueça que o senhor tem duas promissórias minhas já vencidas há algum tempo.

Mais tarde, se encontraria com Aidor Serpe e, se fosse necessário, lhe lembraria o negócio sujo feito com a viúva Aurélia Lorps, em que se apropriara indevidamente do terreno onde construíra o edifício Santa Inocência. Edifício Santa Inocência, ironia de nome.

Na casa paroquial, o padre Dollá perguntava à cozinheira, dona Ermelinda, sobre o velho Josias, que ainda não aparecera.

- Está no cantinho dele, meio amolado - respondeu ela.

- Cantinho?! Onde é que ele mora? - Mora lá no depósito de coisas velhas, atrás da igreja. - Maurício rumou para lá. Fez a volta pelos fundos da nave central e adentrou

por um porão escuro e sombrio.

- Seu Josias! - gritou. - Estou aqui, padre Maurício. Siga pelo galinheiro, dobre à esquerda, por trás do

depósito de móveis velhos. Era a voz bastante encatarrada de Josias, que, lá do fundo, ensinava o caminho

do seu cubículo. O padre Dollá quase não acreditava. Como era possível jogar alguém naquela espécie de masmorra? ! Finalmente encontrou o sacristão, estendido na cama. Com aquela barba comprida e mal aparada, parecia um antropóide.

- É aqui que você mora? ! - perguntou o padre, sem acreditar no que via.

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- Mas, não está ruim, padre. O senhor sabe, eu já sou um traste quase imprestável...

- Quem é que meteu você aqui? - Foi o Presidente Financeiro do Conselho Paroquial. Ele disse que, pelo que eu

fazia, a igreja, quando muito, podia dar este cantinho e a comida. Eu acho que não presto para nada mesmo, padre Maurício, e não quero ser um peso para a igreja.

- E a roupa? - A roupa eu mesmo lavo. A gente tem que se virar, não é mesmo, padre? - Pelo amor de Deus, seu Josias, vou tirar você daqui agora mesmo.

Josias relutou:

- Não faça isso, padre Dollá. A igreja não pode gastar comigo. Eu estou bem aqui.

- Isto é desumano. A igreja está com dinheiro aplicado na poupança. E exclamou, sacudindo a cabeça:

- Dinheiro na poupança para Deus e um homem vivendo como rato nos porões de depósito desta mesma igreja. A uma ordem do padre Dollá, dona Ermelinda limpou, varreu e lavou um antigo quarto de hóspedes que existia à esquerda da cozinha. Arrumou a cama e avisou o padre Maurício:

- Está tudo pronto. Os dois se dirigiram para o embolorado quartinho em que se encontrava Josias.

Agarraram o velho e o conduziram para o novo quarto, limpo, arejado, decente, agradável.

- Voltando-se para Ermelinda, mandou que recolhesse todos os pertences do sacristão e os trouxesse para o quarto.

- Daqui para frente - concluiu o padre - quero que as roupas de Josias sejam lavadas e passadas a ferro como as minhas. Ah, antes que me esqueça, chame o médico.

- Deve ser gripe e fraqueza, padre Maurício - ponderou a cozinheira. . - Não importa. Vejamos o que o médico dirá. Enquanto isso, prepare-lhe um chá

bem saudável e gostoso. Maurício aproveitou o resto da manhã para fazer uma verificação geral em todas

as dependências da igreja e da casa paroquial. Examinou os livros, procurando inteirar-se do movimento religioso e da situação administrativa. De resto, na reunião que marcou para quinta-feira com o conselho paroquial, pretendia ser informado com mais detalhes de todos os programas comunitários que estavam sendo realizados sob a direção e orientação da paróquia. Ainda não conhecia, a não ser através de breves contatos, os membros do conselho escolhido ao tempo de seu antecessor. Mesmo que não fosse imediatamente, achava que deveria ser eleito novo conselho, onde evitaria que alguém pretendesse fazer parte do mesmo apenas para prestígio, sem dar a devida contribuição que o cargo demanda. Com aquele espírito aberto e liberto, imaginava que a felicidade da vida estava no prazer de servir e de viver, sem preconceitos e sem intenções escusas.

Maurício, sentado num bloco de cimento, começou a pensar em si. E sentiu que tanto lhe dava alegria o diálogo com o Cristo na liturgia da missa, como a prática descontraída e gratificante de um futebol, de uma escalada de montanha ou de uma tarde de natação no lago. Extremamente jovem de espírito, sua alma e seu corpo sabiam vibrar com acontecimentos simples. De coração sensível, tinha o dom de compreender as situações mais diversas da vida humana. Para um químico, uma lágrima poderia significar a composição de água e sal; para o médico, um sintoma de

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dor; para um machão, seria fraqueza; mas, para ele, a lágrima assumia uma dimensão profunda, trazendo para o mundo exterior, mesmo que de forma discreta, a emoção do que se passa no recesso íntimo e misterioso do coração. Por isso, ele costumava, com toda a delicadeza, seguir o caminho das lágrimas para atingir a ferida interior e, então, tentar curá-la ou aliviá-la. Isto, porém, que ele sempre considerou seu ponto forte, muita gente poderia apontar como seu ponto fraco. Mas, teriam importância para ele as opiniões dos outros? Havia aprendido, no curso de Psicologia e na escola da vida, bem como nas páginas do evangelho, que o importante era sentir-se bem consigo mesmo. Toda pessoa que se sente bem consigo mesma, vive feliz, ainda que as tempestades de fora busquem destruir seu mundo interior, florido e belo. Por outro lado, ele sabia que se render a uma estrutura exterior, que nada lhe significava intimamente, seria entregar-se ao inimigo, frustrar-se e deixar-se afundar na estagnação interior. Alvores se apresentaria muito em breve como incomum campo de batalha. E o desafio haveria de exigir-lhe uma resposta clara e decidida. Com todas as conseqüências. Os prenúncios estavam aí.

. . . Vinte horas. Presságios de chuva. Temperatura pesada. Tão pesada como o

ambiente na casa de Antônio Augusto Faller. Depois dos incontrolados gestos de dor e de sofrimento provocados pela informação da morte da sua esposa, lá, diante da sala de cirurgia, Antônio Augusto teve que conter a crueza da desgraça a fim de encaminhar tudo para que sua companheira tivesse um sepultamento decente e digno. Já, à noite, ao lado do caixão, seus olhos pareciam ressequidos. Recebia as condolências com um muito obrigado que mal-e-mal aflorava aos seus lábios arroxeados. Cerca de dez pessoas estavam em torno do caixão, silenciosas, sabe Deus pensando no quê. Talvez rezando. Fora, alguns homens conversavam à boca pequena debaixo de um velho cinamomo.

De repente, todos silenciaram. Era o doutor Onofre que vinha chegando. A surpresa foi geral. Nunca foi visto em velório algum, principalmente de família de poucos recursos.

Aproximou-se de Antônio e deu-lhe os pêsames.

- Sinto muito. Infelizmente a doença estava adiantada demais e não foi possível salvá-la. Fizemos de tudo. - O médico falava alto o suficiente para ser ouvido pelos presentes. E como eu sabia quanta falta ela faria nesta casa!

- Lutei desesperadamente contra a morte. Fui vencido. Que Deus a tenha no céu e lhe dê muita coragem, Antônio!

Passando o braço nos ombros do infeliz viúvo, saiu com ele para uma salinha anexa.

- Fique aqui um pouco. Isto faz bem ao senhor. Ajuda a descontrair a tensão. Trouxe-lhe comprimidos para acalmá-lo nesses momentos em que precisa ser forte, principalmente por causa dos filhos.

- Muito agradecido, doutor. - E, quanto ao hospital e à operação, não vou cobrar-lhe nada.

Antônio Augusto ficou surpreso. O doutor Onofre tinha fama de unha-de-fome, na cidade.

- É que a gente deve solidarizar-se nessas horas. Depois de uma pausa premeditada:

- O Padre Dollá já esteve aqui?

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- Não, ele virá amanhã para a encomendação e o enterro. - Bem diferente do falecido padre Charles... - sacou o doutor, procurando servir-se

do momento para entrar no assunto que lhe interessava realmente. - O padre Charles era piedoso e sempre atento em distribuir os sacramentos onde lhe fosse possível.

- Este novato nem sequer veio até aqui. É por isso que existe um movimento generalizado na cidade para mandá-lo embora. Há muita queixa...

- Mas, faz tão pouco que chegou, talvez ainda não tenha organizado seu trabalho... - ponderou Antônio Augusto, com voz quase sumida.

- Como o senhor sabe, na próxima quinta-feira haverá reunião do conselho paroquial, do qual o senhor faz parte.

- Precisamos da sua colaboração... E o doutor Onofre procurou alinhar todos os argumentos que lhe vinham à

mente para conseguir o apoio de Antônio Augusto. Este, a custo podia prestar atenção ao que o médico lhe dizia, em momento tão inoportuno, quando a esposa estava sendo velada na outra sala e sua imagem não lhe saía da mente.

Proveniente de um quarto, os dois ouviam o choro dos filhos, chamando desconsolada e inutilmente pela mãe.

Quando o médico despediu-se, Antônio Augusto dirigiu-se ao quarto das crianças e procurou ficar alguns momentos com elas, tentando acalmar-lhes a crueldade da dor.

Ao retornar para a sala do velório, encontrou Marisete, a jovem enfermeira que fora despedida pelo doutor Onofre.

- Meus pêsames, seu Antônio Augusto - disse ela baixinho. - Foi lamentável o que aconteceu. Eu não sei como pode haver tanta irresponsabilidade e frieza numa pessoa assim...

Antônio Augusto olhou para ela perplexo, sem entender coisa alguma.

A jovem puxou-o discretamente para um ponto solitário da sala e confidenciou-lhe, com amargura:

- Eu estava lá na sala de cirurgia. Sua esposa poderia salvar-se muito bem, a não ser que surgisse algum imprevisto mais grave. Aconteceu que o doutor Onofre deixou a cirurgia para atender o filho que, em altos brados, pedia para falar com ele. Durante a conversa com o filho, foi avisado por duas ou três vezes de que a senhora estava piorando e a pressão ia baixando a zero. Quando voltou à operação, a coitada estava morta...

Antônio Augusto desandou num choro convulso. Voltou e beijou a face pálida e inerte de sua esposa.

- Desculpe, seu Antônio Augusto. Este não era o momento de contar isso. Enfim, acho que todos temos a hora certa para morrer. Deus há de olhar pelo senhor e pelos seus filhos, esteja certo...

Marisete não sabia como fazer e nem o que dizer para aliviar o ferimento profundo que provocou no coração do viúvo. Rezou um pouco em silêncio e retirou-se discretamente.

Na manhã seguinte, uma pequena multidão de pessoas assistia às orações do padre Dollá. Não se ouvia o ruído nem de uma mosca. Não só pela emotividade do momento, como também porque era a primeira vez que muitas pessoas viam aquele padre de tez bronzeada e fisionomia simpática. Depois de rezar preces de fé na

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felicidade da outra vida e no amor do Pai Celestial para com a alma que a Ele se apresentava, aspergiu água benta e falou:

“Meus amigos, a hora é de dor e de sofrimento, reconheço.

Mas, bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados, - disse o Mestre. Na verdade, a morte é um mistério e uma escuridão, não para quem parte, mas apenas para os que ficam, ainda mais quando são atingidos, de forma quase insuportável, um marido na plenitude de seus dias e oito filhos recém-despertando para a vida. Eu sinto muito e meu coração parece sufocar-se, digo a verdade. Mas, a consolação está em termos certeza de que este ser querido, que partiu, foi chamado por Deus para a felicidade de uma nova vida sem dor, sem lágrimas e sem sacrifícios.

Choremos, então, por nós - como disse Jesus às mulheres de Jerusalém. Quanto à que partiu, afirmou o Cristo: “Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor, porque possuirão a vida eterna”. É a morte, pois, que traz a vida. Felizmente, não se trata de um desaparecimento para sempre, mas de uma passagem para uma vida feliz, preparada por Deus para todos os seus amigos; por isso, logo mais, o seu Antônio Augusto e todos os filhos estarão reunidos novamente com a Elisângela no reino do paraíso. A ausência é breve, e isto conforta e reanima. E o fato de saber que ela está ausente, mas viva e muito bem, olhando lá de cima para os seus, há de restabelecer a alegria a esta família e há de ajudá-la a prosseguir nesta caminhada com mais força e com mais entusiasmo.

Rezemos para que assim entendamos o mistério da morte e para que assim seja.”

… À noite, Maurício estava lendo em seu gabinete de trabalho, quando soou a

campainha.

Era Silvana:

- Boa-noite.

- Boa-noite. Entre. Como é que foi de Faculdade? - Bastante bem. Tivemos aula de Psicologia e gostei muito. Só que eu devo

confessar que, de vez em quando, meu pensamento subia a serra e ia parar no alto de uma colina...

Maurício sorriu complacente. Depois, fez de conta que estava brabo:

- Olhe, ponha ordem nessa cabecinha senão eu é que vou levar as culpas no fim do ano...

- Não se assuste - retrucou ela, rindo-se. - O senhor vai ver que no fim do ano já estarei com o anel de doutora no dedo.

- Mas, que às vezes ficava vagueando com a mente lá pela serra, isto é verdade. Aquele lago calmo e imenso... as garças... os pescadores... o camponês... ainda me lembro de tudo... E me lembro de modo todo especial de alguém que estava ao meu lado. Sabe que sonhei esta noite com o senhor? Foi um sonho que me deixou assustada. Acordei em sobressalto. Meu coração parecia que ia saltar para fora. Sinceramente, só consegui dormir com a luz acesa.

- Puxa vida, que será?! - exclamou, curioso, Maurício. - Arre, eu sou uma boba, nem devia ter tocado neste assunto! Bem, agora que

comecei, vou contar. Eram altas horas da noite e o senhor foi chamado para atender um doente. Teve que andar bastante, passou pela cidade, atravessou um bairro e seguiu pelo campo, foi longe, sozinho, no meio da escuridão. Na volta, foi assaltado por um

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bando de bandidos que o deixaram estendido no chão. Saí correndo para socorrê-lo, e quando fui erguê-lo, me acordei... Bah, nem quero me lembrar... Coisa horrível... Tome cuidado, padre Maurício... Deus o livre de uma coisa dessas...

- Se acontecer, você vai me socorrer, não foi isso que aconteceu no sonho? Então, creio que estarei em boas mãos brincou ele. E acrescentou: - Mas, não vai me dizer que tirou curso de oniromancia.

- Bem, padre, já vou andando; ainda tenho que preparar um exame para amanhã. A jovem levantou-se. - Então, você veio aqui só para me assustar? - brincou ele. Silvana apertou-lhe a mão, dizendo, com muito sentimento:

- É que não desejo que isto aconteça, padre Maurício. Nunca. Eu gosto muito do senhor. Gosto mesmo.

Num ímpeto incontido, colocou as duas mãos no rosto de Maurício e beijou-o.

- Calma, Silvana! - exclamou, sem jeito, o padre, desvencilhando-se instintivamente da jovem.

- Boa-noite - disse ela, saindo, quase a correr, porta afora. Maurício sentiu, por instantes, toda a sensualidade daquele corpo enlaçado no

seu. Era uma carne quente, que o queimava. O coração entrou em ritmo descompassado. Que era aquilo?! Passou a mão no rosto como querendo apagar a maciez daquele beijo, mas ele continuava penetrando sua pele.

- Meu Deus! - sussurrou ele, passando o lenço na testa úmida e ardente. Quando a inquietude atingiu o paroxismo total, saiu, torturado pela angústia, à procura de refúgio na igreja.

Uma pequena lamparina iluminava fugazmente um grande Cristo pregado na cruz.

Ajoelhou-se. Ergueu os olhos súplices para o Cristo e desabafou:

“Senhor, que é que eu faço? Ajuda-me a entender o que Tu queres de mim, porque eu não consigo sequer alinhar os pensamentos. Sinto um fogo abrasar-me todo... E Tu aí a dizer-me: Não pode! Não pode! Tu queres que eu fuja do amor como duma serpente venenosa. Então, por que foi que puseste amor dentro do meu coração? Não, não fui eu quem o pediu, tem paciência. Aconteceu. E agora? Se Tu sabias que eu não podia amar, não deverias ter criado o amor em mim. E nem a capacidade de amar. Olha, Senhor, Tu ateaste fogo no meu coração e agora queres que eu o apague de qualquer maneira? Tu queres que eu faça de conta que não existe aquilo que Tu fizeste existir em mim? Oh, meu Deus, por que terei que sufocar o amor que Tu puseste em mim? Tu o acendeste para quê? Por quê? Só para me incendiar? Não, não acredito que seja para Te deliciares com meu sofrimento. Tu não és sádico! Ah, Senhor eu preciso de forças para resistir! Mas, resistir a quê? Ao amor? Então, é o amor coisa má? Não foste Tu que criaste o amor? Senhor, estou estraçalhado... Deixaste meu coração num vulcão de desejos... Não, já não sei mais se foste Tu ou o quê... Mas, Te peço encarecidamente: dá-me paz. Eu quero paz. Eu preciso de paz, antes que arrebente... Sim, meu Deus, eu sei que Tu amaste. Amaste muito. Mostra-me, então, como é que se faz. Eu sei que o amor é essencial a qualquer criatura, sob pena de secar, mirrar, endurecer, transformar-se em pedra. Mas, amar como? E o que fazer do amor que entra sem ser chamado e toma conta de todo o ser? Estou na escuta, Senhor. Espero a tua resposta. Por favor.”

Maurício aquietou-se. Descansou a mente. Aos poucos foi-se acalmando o incêndio interior. Era paz ou era trégua? Antes de ir para o quarto, foi visitar o velho Josias, que ficou tão surpreso quanto satisfeito. Com muito esforço conseguiu conter a

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emoção que este gesto tão amável lhe provocou. O padre Maurício percebeu que, por baixo daquela pele encarquilhada e endurecida pelo tempo e pelas agruras da vida, existia um coração muito sensível. Sentou-se na borda da cama e passou a conversar longamente com Josias. A solidão daquele homem talvez fosse irmã gêmea da sua própria solidão.

Dollá já não estava mais agitado. Aquele desabafo diante do Cristo, tão impetuoso e avassalador como se tivesse rompido a barragem de uma represa e a avalanche se lançasse em fúria incontrolável pelo rombo provocado, fizera com que as águas voltassem ao nível de equilíbrio. Agora seu coração parecia um lago sereno, plácido, envolvido por uma suavidade inusitada.

A conversa com Josias lhe fazia imenso bem. Aí estava um homem contando, de maneira simples e conformada, a história triste de um amor que nunca conseguiu tomar para si, sofrendo durante muito tempo a trituração diária de seu próprio coração.

- Não sei se essa solidão e esse martírio que a vida impôs ao meu coração não me deixaram rabugento e duro. É o que me dá medo. Porque eu sei que a frustração sempre deixa marcas cruéis na gente. Eu peço a Deus diariamente para que ele crie em mim o milagre das flores e dos pássaros... Vou lhe contar um segredo, padre Maurício. Talvez seja uma bobagem, mas para mim teve um valor e um resultado maravilhoso. Se não fora isso, é certo que a minha conversa com o senhor seria bem diferente, tão azeda quanto tomate podre. Aprendi a fazer um exercício. Este exercício o pratico ainda hoje. Se eu sou alguma coisa de útil e agradável, devo, sem dúvida, a este exercício, que hoje, digo a verdade, faço com prazer. Por sorte, comecei a praticá-lo ainda durante as crises que ameaçavam secar o meu coração. Em resumo, o exercício é este: contemplar, todos os dias, durante os momentos que me são possíveis, as flores que encontro; sentir-lhes a beleza, a candura e o perfume. Contemplo também os pássaros e procuro trazer para dentro de mim a alegria dos gorjeios, a leveza de seus vôos, a felicidade de descerem à terra e subirem ao azul do céu. À noite, passei a sentir as estrelas e deixar-me ser afagado pelo luar. Olhe, padre Dollá, foi o melhor meio que encontrei para achar gosto na vida e cultivar a sensibilidade e a bondade dentro de mim. Hoje eu estou velho, mas meu coração é cheio de sangue, de carne e de seiva, não sei se o senhor me entende...

- Entendi tudo, meu bom amigo. E aprendi muito, na hora em que eu muito precisava - acentuou o padre, como que extraindo as palavras de um mundo distante e misterioso.

Depois de ficar algum tempo em silêncio, Maurício indagou:

- O médico ainda não esteve aqui? - Não, senhor. - Não esteve? ! - tornou Maurício, desconsolado, sem pretender nova resposta. - E

a dona Ermelinda serviu-o bem? - Não se preocupe, padre Dollá. Eu já estou bem. Dona Ermelinda foi muito

atenciosa comigo. De fato, já me restabeleci. Amanhã posso reiniciar os trabalhos. - Se lhe for possível, peço a gentileza de preparar a sala para a reunião que se

realizará com o conselho paroquial. E se não for pedir demais para sua saúde, gostaria muito que participasse. Afinal, como velho sacristão, e como homem de boa capacidade de ponderação, sua presença será útil nesta primeira reunião. Por certo, você poderá esclarecer muita coisa sobre a administração anterior. É que eu ainda não estou por dentro da vida religiosa e social da nossa igreja.

- Pode deixar, que farei tudo isso.

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Maurício deu boa-noite e dirigiu-se para o quarto. Abriu a janela e deixou que o céu estrelado penetrasse no aposento.

… Quando Silvana chegou em casa, dona Margarida a esperava na varanda.

- Silvana, o Corrégio esteve aqui. Queria falar com você. A jovem encolheu os ombros:

- Ele já desapareceu da minha vida. Espero que saia do meu caminho. - Por falar em caminho - aproveitou propositalmente a mãe - ele viu você lá na

colina da serra junto com o padre novo. - E daí? - perguntou a moça, sem dar importância à revelação. - E daí que ele estava furioso. Disse que foi o padre que estragou o noivado.

Estava uma fera. - Eu não tenho nada que dar satisfação para ele. Eu sou livre, sei o que faço e não

será esse mau-caráter que vai querer ensinar-me o que devo ou não devo fazer. Dona Margarida passou as mãos pelos cabelos da filha e falou visivelmente

apreensiva:

- Mas, minha filha, você sabe o que está fazendo? Seu pai também irritou-se muito quando o Corrégio lhe contou o que viu.

- Mamãe - desabafou a jovem, com evidentes sinais de desagrado e aflição - será que eu não sou capaz de cuidar da minha vida? Eu tenho a cabeça no lugar e sei responder pelo que faço.

Graças a Deus, a fase de obscurecimento mental já passou. A senhora e o papai, ao invés de me forçarem a fazer aquilo que querem, seria mais justo e mais humano se me ajudassem a ser aquilo que eu quero. Afinal, é preciso dar-se conta de que cada um tem um caminho a seguir. Pelo amor de Deus, respeitem o meu caminho.

Dona Margarida ficou em silêncio. Na verdade, não sabia o que responder. Silvana tomou um copo de leite e retirou-se para o quarto.

A noite estava linda. Lá fora os grilos cantavam ao luar.

Mais ao longe, o coral das rãs cortava o silêncio majestoso da natureza. Silvana abriu a janela e correu as cortinas. Apagou a luz do quarto para sentir-se totalmente envolvida pelos mistérios da noite. Porque imaginava que os mistérios da noite seriam parecidos com os mistérios do seu coração. Deixou que a brisa vinda do arvoredo brincasse no seu rosto e nos seios quase nus. Queria mesmo que o suave vento da noite chegasse até o seu coração para refrescá-lo um pouco. Mas, já não estava excitada. O vulcão que explodira em seu coração e se derramara com impetuosidade inaudita por todo o corpo já estava mais abrandado. Ainda não entendia de onde partira aquela força avassaladora e irresistível que a lançara no rosto de Maurício. Mas, não se arrependera. E ela recordava aquela célebre frase de Pascal: O coração tem razões que a própria razão desconhece. A verdade nua e crua era que sentia uma imensa ternura por ele e isso poderia ser impossível, inadmissível e o que mais se quisesse dizer, mas era verdadeiro. Na sua confusão interior, Silvana não conseguia imaginar o que se passara no coração do sacerdote. E se ele tivesse odiado aquele encontro e nunca mais a quisesse ver? E se ele não entendesse a profundidade espontânea e incontrolável de seu gesto e a tomasse como uma histérica de quem deveria fugir? E se tivesse sentido nojo e repugnância como se fosse uma atitude insensata?! Não podia ser... Ele era sensível e humano o suficiente para entender e respeitar seu gesto... Pelo amor de Deus, eu não fiz por mal - sussurrou ela de si para si. Mas, ninguém ouviu a sua explicação. Apenas a lua pareceu entender o seu brado, surgindo por entre as nuvens

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para envolvê-la no beijo branco do luar. Surpreendida por aquele quadro de beleza que despontara no céu, Silvana ficou a contemplar embevecida a caminhada nostálgica da lua, na suave solidão do firmamento. Será que minha vida há de ser uma caminhada solitária pelo mundo? - perguntava-se. E respondia para si mesma: Se é para ser, que seja. Mas, há de ser como a lua, cheia de luz, cheia de poesia, esparzindo raios de amor, assim como a lua está fazendo lá em cima com as estrelas. Lembrou-se, então, de Maurício. Ah, aquele corpo robusto e sadio! Aquele rosto quente e cheio de vida... Aquele delírio inimaginável que arrepiara todo o seu corpo, num segundo... Mas, tudo fora tão fugaz... Tudo lhe parecia tão inatingível... Fechou a janela. Era preciso tentar fazer as pazes com o sono. Porque amanhã seria outro dia.

… Na quinta-feira, às vinte horas, já estavam na sala os cinco conselheiros e o

sacristão. O doutor Onofre era o mais empertigado. Cochichava baixinho, ora para um, ora para outro.

O velho Josias tentava apurar os ouvidos, mas nada conseguia apanhar.

Quando o padre Dollá chegou, deu um alegre boa-noite e convidou todos a sentarem. Ele sentou-se na ponta da mesa. A seguir, colocaram-se Aidor Serpe, Pierre Malreaux, o doutor Onofre Álbarus, Antônio Augusto Faller e Giron Vidal.

O padre Maurício tomou a palavra:

- Meus amigos, como se trata de um primeiro contato com o conselho da igreja, faço questão que o seu Josias também esteja conosco, pois ele pode esclarecer alguma coisa, já que há muitos anos é sacristão e acompanha de perto a vida religiosa de nossa comunidade. Seu Josias, tenha a bondade, sente-se aqui à minha esquerda.

- Enquanto o velho Josias dos Santos sentava-se, o doutor Onofre fez um gesto de total desagrado.

- Bem - começou o padre Dollá - devo dizer-lhes que é um imenso prazer poder tê-los comigo nesta noite. Alguns eu já conheço. Mas, peço a gentileza de cada um se apresentar, assim eu guardarei com mais segurança os nomes aqui na cabeça e no coração, porque as pessoas que eu mais prezo e em quem mais confio são, sem dúvida, os conselheiros. Contem com minha total amizade. Juntos caminharemos, juntos nos alegraremos, juntos vibraremos, juntos colheremos os resultados de tudo que for feito nesta comunidade. Os senhores se considerem meus amigos... e meus irmãos. Aliás, eu sempre me encantei com uma frase do livro dos Provérbios, que diz assim: “Há amigos que são mais queridos que um irmão.” (18-24) Então, comecemos pelo senhor. Chama-se...

- Chamo-me Aidor Serpe. Sou comerciante, tenho armazém na Rua Martim Cândido, 156, a duas quadras aqui da igreja.

Depois da apresentação de cada um, o padre Maurício passou a explanar os assuntos:

- Os senhores fazem parte do conselho criado durante a gestão do padre Charles. Segundo os estatutos, deveria haver nova escolha do conselho dentro de um mês. Mas, eu não vejo porque se deva fazer isto, uma vez que agora é que vamos começar a trabalhar juntos. Eu faço questão de que os conselheiros sejam o meu braço direito e estejam sempre dispostos a carregar o piano, como se diz. Na verdade, é por isso e para isso que os membros do conselho são sempre selecionados a dedo. Tenho certeza de que nos daremos muito bem. Vamos trabalhar em harmonia e com muita alegria, cada um relevando as falhas dos outros, porque os defeitos de cada um pertencem ao seu

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mundo íntimo e a prestação de contas é feita a Deus. Assim, começaremos por liquidar pela raiz qualquer espécie de discórdia, de fofoca e desentendimento, não acham? Bem, eu já estou falando demais. Quero que todos falem francamente, sinceramente, porque assim a gente se entende melhor.

Houve silêncio na sala. O pároco sentiu que, por trás deste silêncio, alguma coisa não andava bem. Chegou até a repensar rapidamente suas últimas palavras a ver se não dissera algo que pudesse gerar mal-entendido.

- Então - cortou o silêncio o doutor Onofre, agitando-se, nervoso, na cadeira - eu, como presidente do conselho, por certo devo ser o primeiro a falar. O senhor disse para a gente ser bem franco; é o que vou ser quando começo dizendo que, infelizmente, o senhor não está sendo bem aceito aqui em Alvores. Há um movimento na cidade que visa mandá-lo embora. Desculpe a dureza da minha fala, nesta hora, mas a franqueza exige que a gente se ponha dentro da realidade. Nós tentamos desfazer os boatos desabonadores, mas tudo foi em vão; eles foram longe demais. É que o falecido padre Charles era muito rigoroso em matéria de moral, e o povo, talvez por isso, está julgando o senhor com extrema severidade sobre seus envolvimentos por aí. Já que se trata do bem da igreja, acreditamos que o senhor não se oporá em deixar Alvores o mais breve possível e nós, de nossa parte, faremos empenho para que o Bispo nos mande de imediato outro pároco.

Um silêncio pesado caiu sobre a sala.

- Eu concordo com o doutor Onofre - disse, rouquenho e inquieto, Pierre Malreaux.

Antônio Augusto agitou-se na cadeira e falou, com certa timidez:

- Bem, eu acho tudo isso muito prematuro e até mesmo desumano. Esse negócio de diz-que-diz-que, se é que realmente existe, não deveria ser levado em conta por gente de maior formação, como nós. Se o padre Dollá devesse preocupar-se com tudo que se pode dizer dele, acabaria preferindo ficar trancado em quatro paredes para evitar falatórios e, assim mesmo, falariam mais ainda, achando que ele teria tomado esta atitude porque devia estar acontecendo alguma coisa de grave na sua vida. Eu não concordo, portanto, com a opinião do nosso presidente.

- Se me permite - interrompeu bruscamente o médico, temendo que Antônio Augusto pusesse por terra seus planos - eu acho que o senhor estava por demais envolvido com a doença e com a morte de sua esposa, por isso não está muito a par dos acontecimentos. Aliás, fez bem em dedicar seu tempo à esposa. Eu mesmo, e o senhor deve lembrar muito bem, fiz questão de não lhe cobrar nada de hospital e tudo o mais. Mas - continuou o doutor, com ferina insinuação - sempre que a doença pode voltar a bater à porta da família...

Antônio Augusto não conseguia segurar-se:

- Mas, a justiça, o dever e o amor devem ser uma exigência cristã para todos e não só para o padre Maurício. Por exemplo e aqui Antônio Augusto retribuiu a linguagem ferina do outro um doente na mesa de operação não pode ser abandonado por causa de negócios e assuntos particulares... O doutor Onofre mordeu os lábios, com raiva.

- De minha parte - tomou a palavra o comerciante Giron Vidal - estou pelo que disse nosso presidente, que, afinal, é uma pessoa de destaque e de responsabilidade.

O padre Maurício deixava correr livre a conversa, pois era-lhe muito interessante conhecer profundamente a cada um dos que ali estavam. Percebera as intenções do médico e queria ver até aonde a situação iria chegar.

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Serpe entrou na conversa, mexendo-se e remexendo-se como quem estava totalmente inseguro do que iria dizer:

- Eu soube que nosso padre gosta de esporte, gosta de meninas, anda passeando de carro por aí, bem acompanhado e coisa e tal. Ora, isso vai estourar, como uma bomba, em nossa cidade.

- Já estourou - aparteou o doutor Onofre. - Creio que para evitar escândalo - prosseguiu Aidor Serpe - o padre deveria pedir

demissão e ir para outro lugar mais liberal... O silêncio caiu novamente na sala. Duas moscas sobrevoavam a mesa de modo

irritante. Notava-se que os demais conselheiros não se sentiam com coragem para falar.

Então, o velho Josias pediu licença: - Eu tenho um modesto depoimento a dar. Como sabem, o Presidente do Conselho

Financeiro me dera um pequeno quarto nos porões da igreja para morar. Meu trabalho seria pela comida. Nunca me queixei. Mas, fiquei impressionado com a bondade do padre Maurício: me retirou de lá, me deu quarto na casa paroquial e tomou todos os cuidados durante a doença que me acometeu ainda nesta semana.

- Não vejo razão para falar isto - interveio o doutor pois, ao invés de ser elogio, na verdade depõe contra o pároco:

- primeiro, porque você estava bem remunerado pelo que fazia e, segundo, porque o dinheiro da igreja é para ser empregado no apostolado...

- Seu doutor, o senhor é livre para pensar como quiser, não vamos brigar por isso - frisou Josias, reavendo a palavra mas eu quero dizer que o padre Dollá é maravilhoso, tem um belo coração. Os senhores não conhecem nem migalhas do seu mundo interior. Esse negócio de querer julgar já no primeiro encontro, imaginem só, baseando-se em suposições e conversas de comadres desculpem o termo, é que eu também quero ser franco - eu acho que, além de ser injusto e anticristão, é ridículo. Afinal, isso aqui é um conselho a serviço da religião de Jesus Cristo e foi o próprio Cristo quem disse: “Não julgueis e não sereis julgados. Com a mesma medida com que medirdes, assim sereis medidos.” Além disso, estou perplexo com o que vejo aqui: esses mesmos homens, que deveriam ser os primeiros a solidarizar-se com o sacerdote recém-vindo, se atiram sobre ele com a indisfarçável intenção de expulsá-lo da cidade! Isso não se faz nem para cachorro! Falhas, fraquezas, tudo faz parte da bagagem de cada um de nós, filhos de Adão e Eva. Meus amigos, o padre Maurício tem inteligência e formação suficientes para saber o que faz, não queiramos ser mais realistas do que o rei. Eu gostaria de perguntar, por fim, com que autoridade alguém se acha com o direito de investir contra ele. Em nome do quê?

Ninguém ousou dizer nada. Agora o silêncio tinha o gume de um punhal. O padre Maurício puxou para diante de si os livros da paróquia e falou com

absoluta serenidade:

- Os senhores mesmos perceberam que o assunto morreu por si. Mesmo que tudo fosse verdade, nós pertencemos a uma religião que, acima de tudo, é amor. E o amor procura unir, ao invés de dispersar; o amor procura compreender, ao invés de condenar; o amor procura esquecer o mal, ao invés de proclamá-lo aos quatro cantos; o amor procura ser fiel, ao invés de trair; o amor procura aproximar, ao invés de afastar; o amor procura a justiça, ao invés da falsidade; o amor procura a paz, ao invés de insuflar; o amor, enfim, procura semear alegria e bem-querença e não a tristeza e o ódio. Sejamos os últimos a julgar e os primeiros a perdoar. Ou melhor, segundo a grande sabedoria do Mestre, nunca julguemos ninguém, porque não existe no mundo alguém tão onisciente a

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ponto de saber o que se passa no interior de cada um. Eu venho trazer e pregar a libertação interior, a grandeza de coração, a paz de espírito e a felicidade de seguir o melhor caminho, caminho este que seja, ainda aqui na terra, um pedaço do paraíso. E é por esse caminho que nós vamos seguir, mesmo que tropecemos nas pedras e nos arranhemos nos embrulhos da vida.

Uma coisa é certa, meus amigos, quem for inocente que atire a primeira pedra. Era o que nos ensinava o Mestre. Não nos detenhamos a amaldiçoar a sombra, mas sigamos alegres e confiantes pelos caminhos da luz. O que importa, pois, é a disponibilidade permanente de fazer o bem; o que importa é a boa vontade; o que importa, acima de tudo, é a disposição interior com que fazemos as coisas e não o tamanho dessas realizações. Antes de sermos cristãos, sejamos humanos. Sim, muito humanos. Como Cristo foi humano e sensível a ponto de amar a pecadora Madalena, o pecador Zaqueu, o bom ladrão, e dizer: “Publicanos e meretrizes entrarão no reino de Deus antes que vós.” (Mt 21, 31).

Todos estavam de olhos baixos. O padre Maurício concluiu:

- Creio que podemos deixar os assuntos administrativos para a próxima reunião. Nessa ocasião vamos repartir as atribuições sociais, religiosas, litúrgicas e financeiras, pois eu conto com a prestimosa colaboração dos senhores. Mais do que com a colaboração, eu conto com a amizade de cada um. E não se preocupem com os que quiserem me chamar de pecador. Pior seria se eu fosse perfeito: poderia contrair a mania de não entender e nem tolerar a fraqueza. Muito obrigado pela presença. Boa-noite. Que a bênção de Deus acompanhe os senhores.

Todos se levantaram. Não com os ânimos carregados como quando chegaram. Parecia incrível, mas alguns se sentiam mais leves, até mesmo mais contentes interiormente. Haviam descoberto que servir a religião não é andar com um azorrague nas mãos para punir os pecadores, mas ter o espírito aberto e alegre para semear o amor, a paz e a bondade.

Nem todos, porém, saíram com essas intenções.

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CAPÍTULO 3

Na residência do doutor Onofre Álbarus o clima era irrespirável. Em cada canto brotavam faíscas de ódio e de vingança. O médico atravessava noites de insônia, enquanto seu filho Corrégio largava-se em noitadas de bebedeiras. Os encontros se davam apenas na hora das refeições e aí eram discutidos à exaustão os resultados negativos da reunião do conselho paroquial.

- Esses ratos medrosos - berrava Corrégio, erguendo os braços, com os punhos fechados. Mas, não é preciso desesperar-se, meu filho. Com calma, nós chegaremos lá. A vida me ensinou que devagar se vai ao longe...

- Sim, devagar se vai ao longe - observou o rapaz - mas depressa se vai mais longe ainda. Agora eu é que vou resolver esta situação a meu modo. Vou mostrar com quantos paus se faz uma canoa.

- Veja bem o que vai fazer e como vai fazer - ponderou o médico. - Olhe que nós temos uma posição a zelar. Tudo pode ser feito, mas com inteligência. Nesta selva moderna vence quem pode mais. Deixe para mim.

Era uma hora da tarde. O doutor Onofre foi tentar uma breve sesta e Corrégio saiu para a rua.

Silvana, nessa mesma hora, seguia para a Faculdade. Enquanto dirigia o carro na monotonia das ruas quase desertas, pensava em Maurício. Sentia uma imensa vontade de encontrar-se novamente com ele. Pediria desculpas e abriria seu coração. Afinal, ele tinha que compreender as incoerências de um coração jovem.

Há momentos em que o coração salta, como o cervo das montanhas, e a gente tem que correr atrás dele para segurá-lo. Isso é, até, bonito; não há mal nenhum - pensava ela. Sim, é preciso ver a vida com olhos simples, alegres, espontâneos, amorosos... Mas, onde é que anda o meu pensamento, santo Deus! - exclamou ela, tendo a impressão de que acordava de um longo devaneio. - E se eu escrevesse uma carta para ele? Talvez seja bem mais fácil dizer tudo que estou pensando e sentindo. Sim, uma carta seria melhor. De início, ele poderia ficar chocado, mas, depois, quem sabe, pensando com mais calma, encontraria alguma boa palavra para mim... E, agora, vou lá ou escrevo?

Quando Silvana se deu conta, já estava estacionando o carro defronte à Faculdade. Tomou os livros e mergulhou no mundo inesgotável da ciência.

À noite, o padre Maurício entretinha-se em conversa com dona Ermelinda e o velho Josias. Depois de brincar, dizendo que ainda ia casar Josias com dona Ermelinda, foi saindo para o seu gabinete com o sacristão a fim de trocarem idéias sobre a reunião do conselho.

- É incrível - refletia Dollá - como o nosso cristianismo é ainda truculento. Do tempo em que se ficava três horas rezando dentro da igreja e se saía a formar rodinhas e falar mal de todo mundo. No fim das contas, somos nós, os cristãos, que criamos a imagem de que a religião seria como um bando de bruxas caçando e excomungando hereges e pecadores. Aliás, nem o Cristo escapou disso e acabou sendo crucificado como herege, revoltoso e infiel. Ocorre que já se passaram quase dois mil anos, cheios de lições e de ensinamentos, e está na hora de se aprender alguma coisa. Infelizmente - raciocinou Josias, coçando a barba – o coração humano é muito mais complicado do que pode medir nossa vã filosofia, isto para falar ao estilo de antigamente. Embora vivamos uma época de adiantados meios de comunicação - voltou a comentar Maurício

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- dificilmente as pessoas conseguem apreender a Verdade redonda, completa. Cada um se baseia na visão de seu ângulo, verdadeiro como parte, mas incompleto no todo. Depois de um longo diálogo aberto e franco, ambos se retiraram para seus aposentos.

Onze horas da noite.

Debaixo da porta do quarto de Maurício havia uma carta.

Em sua casa, o doutor Onofre estava muito nervoso. A cama parecia queimar-lhe o corpo. Virava-se e revirava-se em vão. Não adiantava fechar os olhos. A imagem daquele homem moribundo perfurava-lhe as vistas. De dentro do peito subia uma ânsia amarga e nojenta e ele se sentia como Judas Iscariotes fugindo em desespero pelas ruas de si mesmo. Sua vontade férrea se diluíra, sua superioridade social se esboroara... e ele se contorcia como um verme em cima das brasas.

Ao toque da campainha, dona Ermelinda levantou-se estremunhada de sono e foi atender.

- Por favor, eu queria que o padre fosse à minha casa, porque meu pai está passando muito mal.

Era um rapaz de barbas negras e limpas. Trajava blusão de lã. Lá fora fazia um frio cortante.

- Não dá para esperar até amanhã de manhã? - perguntou a porteira, preocupada com o sacrifício que teria que fazer o padre Maurício.

- O doutor Onofre Álbarus disse que ele não resiste até o amanhecer e insistiu para que chamássemos o padre ainda nesta noite.

Em poucos instantes, Maurício desceu com a maleta que sempre usava para o atendimento religioso de casos graves.

Vestiu a japona que sua mãe lhe dera no último aniversário e afundou na escuridão.

Uma hora da madrugada.

O rapaz o conduziu até o bairro Santa Terezinha.

Era uma casa humilde. A família estava reunida em torno do agonizante. Via-se que, do ponto de vista da medicina, nada mais havia a fazer.

O padre Maurício entrou silenciosamente, abriu a pasta e tirou o ritual, o vaso do óleo dos enfermos e a água benta. Proferiu pausadamente as preces da unção dos enfermos, enquanto ungia a testa, a mão esquerda, a mão direita, o pé esquerdo e o pé direito.

E pedindo a Deus saúde para o corpo e perdão para a alma. Depois, tomou o crucificado na mão e aproximou-o dos lábios do moribundo. Este, num gesto quase imperceptível, beijou o peito do Cristo.

Era o sinal sensível do arrependimento. Para Dollá, aquele gesto significava a redenção de sua alma. Para os outros, poderia ser apenas um beijo ritualístico, mas, para o sacerdote, esse beijo realizava o milagre de apagar todos os pecados e maldades cometidos ao longo da existência; em outras palavras, significava a reconciliação amorosa com Deus. Era o passaporte para o céu. Segundo a certeza do padre Maurício, o moribundo acabava de vestir o traje de gala para o encontro com o Criador, se ocorresse o desenlace.

O rapaz quis acompanhar o padre, no retorno para casa, mas este poupou-lhe o sacrifício:

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- Não, muito obrigado. Fique aqui e acompanhe os últimos momentos de seu pai. É o melhor que pode fazer. Eu sei o caminho da volta.

- Dando uma bênção geral a todos os que estavam no quarto, desejou boas melhoras, confortou a família e se retirou.

O frio da noite açoitava seu rosto. Apesar da japona, sentia um aperto gelado na espinha. Apressou o passo para aquecer o corpo. Levantou a gola da japona até o queixo e lembrou-se de sua mãe e das palavras que ela proferira quando contou-lhe que desejava ser padre: “Meu filho, você pode ser o que quiser, desde que seja feliz.” E ele se considerava feliz. Há poucos instantes, o sacrifício da caminhada, do frio e do sono interrompido, fora, em muito, suplantado pela imensa alegria interior que sentiu por ter levado paz de espírito a um moribundo e conforto a uma família aflita. Ao sair, o reconhecimento dos familiares... Tudo isso sensibilizara seu coração.

Envolto em seus pensamentos, percorria ele uma das ruas mais escuras do bairro Santa Terezinha quando, subitamente, percebeu algumas sombras se aproximarem em disparada, como se fossem vampiros da noite.

- É ele! Foi o único grito que explodiu na noite, com a fulminância de um raio. Antes que

pudesse dar-se conta do que ocorria, um bando de celerados jogou-se furiosamente sobre ele, como lobos vorazes, desencadeando uma tempestade de murros, bofetões, pauladas e facadas. Maurício não teve tempo para nada. Foi agarrado, lanhado, rasgado, cortado de cima a baixo, arrebentado a porretaços, e atirado como morto na sarjeta. Com o mesmo mistério com que apareceu, o grupo sumiu na escuridão. Um veio de sangue foi se formando por entre as pedras da rua.

Silvana foi despertada por um movimento estranho e confuso em sua casa. Vozes à surdina. Passos apressados para cá e para lá. Esfregou os olhos. A luz da varanda traçava uma risca de fogo embaixo da porta. Levantou-se. Havia medo em seus passos. Colou o ouvido na porta, na tentativa de ouvir o que se falava. Entre outras vozes, sobressaía o tom cavernoso do doutor Onofre. Que pretenderia ele àquela hora da madrugada?

“Deve estar morto...”

As vozes seguiam embaralhadas e indistintas:

“... atentado... padre Maurício...”

Silvana desesperava-se. A conversa chegava ao quarto de forma confusa e entrecortada. Teve vontade de abrir a porta.

Mas, conteve-se. Podia ser pior. Neste jogo de xadrez de sons, conseguiu perceber que houve um atentado contra o padre Maurício. Mas, onde? Pelo amor de Deus, onde? Seus lábios tremiam. Era impossível sair em socorro sem saber para onde.

O doutor Onofre continuava com sua voz fanhosa e ininteligível. Para sorte da jovem, a dona Margarida perguntou nitidamente:

- Mas, onde é que foi isso? A resposta veio imediata:

- Ouvi falar que foi na Rua Santa Efigênia, esquina com Presidente Lincoln. Lá no Bairro Santa Terezinha. Silvana não esperou mais nada. Vestiu-se às pressas, tomou a chave do carro e saltou a janela.

Com o pé enterrado no acelerador, percorreu as ruas da cidade em frenética disparada. As ruas, a estas horas da madrugada, estavam desertas. Fez a volta na Praça

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da Matriz rangendo as rodas, entrou pela Travessa Brasil na contramão e tomou a Avenida Europa. Em poucos instantes chegou no Bairro Santa Terezinha. A Rua Santa Efigênia estava totalmente às escuras, mas, já a uma distância de cem metros, os holofotes do carro se projetaram sobre um homem estendido na sarjeta. Era ele. Saltou do carro e gritou horrorizada:

- Padre Maurício! Ajoelhou-se nas pedras sujas e encostou a mão no coração dele. Ainda pulsava.

Só então percebeu que não teria forças para colocá-lo no carro.

- Meu Deus, ajudai-me! Reuniu todas as suas forças e conseguiu aproximá-lo da porta direita. Abriu-a,

inclinou totalmente o banco para trás e suspirou quase desanimada. Maurício gemia, num fio de voz.

- Coragem, padre Maurício! - sussurrou ela, chorando. O sangue e os ferimentos formavam uma horrenda crosta no rosto dele. A roupa,

rasgada em vários lugares, estava ensopada de sangue. Uma cena trágica e dolorosa.

Por fim, Silvana deu-se a um esforço sobre-humano e conseguiu estendê-lo no banco.

Sem perda de tempo, abalou-se em alta velocidade para o hospital. Um atendimento imediato talvez pudesse salvá-lo.

Ao chegar ao hospital Santo Onofre, correu para a portaria e pediu uma maca para transportar a vítima. O porteiro veio até o carro e, vendo que se tratava do padre Maurício Dollá, disse que não podia recebê-lo.

- Como?! - exclamou, perplexa, Silvana, não acreditando no que estava ouvindo. - É isso aí. Estou proibido de receber o padre. Ordem da Direção. Não há vaga no

hospital. Silvana se deu conta de toda a trama. Diabolicamente bem feita.

- Mas, ele está morrendo! - implorou, com lágrimas nos olhos.

- Não posso. Você sabe, se eu o receber, perco o emprego. - Além disso - completou ele, olhando a vítima - creio que nada mais pode ser

feito...

A jovem estava a ponto de desesperar-se. Não era possível ver seu amigo, seu querido amigo, morrer, e morrer em seu carro sem nada poder fazer. Seria a suprema tragédia de sua vida.

Que fazer?

Gritar para a cidade toda, diante de tamanha desumanidade?!

Um lampejo quase milagroso em sua mente deu-lhe uma idéia. Entrou no carro e dirigiu-se para a casa de Marisete, uma enfermeira especializada, sua amiga. Seria o último recurso para salvar a vida daquele homem.

Depois da terceira batida forte na porta, Marisete abriu cautelosamente a janela.

- Silvana?! Que você quer a estas horas?! A voz de Marisete traduzia espanto e estranheza.

- Abra, pelo amor de Deus, Marisete! Assaltaram o padre Maurício no bairro Santa Terezinha e eu o recolhi nas últimas. Está aqui no carro. Por tudo que há de mais sagrado no mundo, vamos tentar salvá-lo.

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- Mas, por que não o levou para o hospital? ! - perguntou a enfermeira, sem entender a situação.

- O hospital não o quis receber. Depois lhe conto. Por favor, me ajude, vamos tentar fazer alguma coisa.

Ao ver o estado deplorável da vítima, Marisete exclamou:

- Que horror! Tomaram Maurício com o maior cuidado e, num esforço muito grande, o

conduziram para dentro da casa. Marisete estendeu um lençol sobre a mesa da varanda e aí depositaram o padre Dollá, ainda sem sentidos.

Puseram água a aquecer e recolheram todo o algodão, gaze, mercúrio, água oxigenada e tudo o mais que havia na casa.

Silvana pôs-se a cortar a roupa de Maurício, com muita delicadeza, não só por causa das partes coladas no corpo, como também para evitar que se abrissem outras veias.

Marisete começou a limpar cuidadosamente o rosto retalhado e cheio de edemas. Ela tinha prática e realizava seu trabalho com segurança. Silvana se empenhava ao máximo em ser-lhe útil. Às vezes desandava numa crise de choro. Mas, recuperava a calma e passava a mão suavemente pelo rosto dele, proferindo palavras de conforto e encorajamento.

Aos poucos, ele foi voltando a si. Abriu os olhos e fechou-os, contraindo-se de dor.

Marisete sentiu a reação dele e murmurou satisfeita:

- Ele vai se salvar. Está reagindo. Silvana respondeu com uma pequena torrente de lágrimas a cair-lhe pelo rosto.

Com uma toalha molhada em água morna, o trabalho se tornou mais eficiente e mais suave. À medida que as manchas de sangue coagulado eram retiradas, podia-se avaliar melhor a gravidade dos ferimentos.

- Você disse que o hospital não quis recebê-lo? - perguntou a enfermeira. - Pois é, o plantão disse que estava proibido de receber o padre e, se o recebesse,

seria despedido. - Banditismo! - xingou, baixinho, Marisete. - Só quero ver o que vai acontecer com você quando o doutor Onofre souber que

atendeu o padre... - Eu não trabalho mais no hospital. Fui despedida. Marisete fechou o rosto com dureza. Silvana voltou-se surpresa:

- Não diga?! Mas, o que houve?! - O doutor deixou uma paciente no meio da cirurgia para ir conversar com o filho

dele e, quando voltou, a paciente havia morrido. Como eu lhe fiz uma observação qualquer, me despediu na mesma hora. É um mau-caráter.

- Como o filho dele! Maurício já estava consciente e suportava dores agudas. Dava a impressão de

estar todo estraçalhado.

- Coragem! - murmurou-lhe, ao ouvido, Silvana. - Tudo vai dar certo. - Onde é que estou? - perguntou, com voz sumida. Silvana aprestou-se a responder:

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- Na casa de uma enfermeira. Fique tranqüilo. O hospital não quis recebê-lo, mas, com a ajuda de Deus, o senhor ficará completamente bom.

- Tenha um pouquinho de paciência - falou, com bondade, Marisete. - Nós precisamos limpar todos os ferimentos; isto é importante.

- Obrigado! - murmurou ele. O sangue estancara. Havia, no entanto, muitos hematomas profundos, que

deixavam grandes manchas arroxeadas na pele. O rosto estava duramente castigado. No olho esquerdo havia uma inchação escura. O peito apresentava diversos cortes profundos e muitas machucaduras mais ou menos sérias. As coxas, as pernas e as costas, com dolorosas arranhaduras.

- Tudo está em saber se aconteceu algo de grave por dentro - cochichou, à meia voz, a enfermeira.

- Saber como? ! Silvana pensava nas portas barradas do hospital.

- Deixe para mim. Graças a Deus, esses anos de experiência no hospital e no atendimento aqui em casa me trouxeram muitos conhecimentos. Se houver algum osso fraturado ou fora do lugar, eu sei quem poderá resolver o problema.

E, olhando para o trabalho feito, decidiu:

- Agora, Silvana, vamos colocar o padre de costas. Assim, devagarinho. Com jeito. Pronto.

Enquanto o corpo girava, Maurício sentia como se um montão de pedras estivessem se desconjuntando dentro dele. Gemeu sufocadamente.

O trabalho recomeçou. Difícil. Doloroso. Vagaroso.

O relógio da varanda deu quatro horas quando, finalmente, deixaram Maurício em paz.

- Agora - observou Marisete - vamos deitá-lo na minha cama. Dar-lhe-ei calmantes para adormecer. De manhã cedo irei até a farmácia comprar mais algodão, gaze e outros remédios.

- Você é maravilhosa - disse-lhe Silvana, comovida. - É questão de humanidade, Silvana. Afinal, somos cristãos. Além disso, trata-se

de um padre, isto é, de uma pessoa que tem uma presença muito importante na comunidade. De mais a mais - e a enfermeira sorriu com ternura - trata-se de uma pessoa muito cara a você.

Silvana permaneceu um pouco pensativa. E desabafou:

- É... Acho que sou a culpada disso tudo... Com muita calma e cautela, carregaram Maurício até a cama de Marisete que, por

fim, exclamou:

- Graças a Deus, tudo bem. Ele deve ter sentido bastante dor, mas agora poderá dormir.

Dito isto, foi até a cozinha buscar um copo de água. Silvana ficou guardando a cabeceira da cama.

- Padre - falou a enfermeira com o copo de água e dois comprimidos na mão - por favor, tome esses comprimidos. Maurício abriu os olhos. Conseguiu engolir os calmantes.

- Agora durma. O pior já passou. Nós cuidaremos do senhor. E a enfermeira sorriu para ele:

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- Pode ver que não existe só gente ruim neste mundo... Maurício buscou retribuir o sorriso. Seu rosto parecia calmo, mas percebia-se que

sofria muito.

- Muito obrigado... por tudo... - sussurrou, com voz débil. - Estamos felizes por poder ajudá-lo. Agora não fale mais. Trate de dormir. Marisete saiu para a cozinha. Silvana inclinou-se até a testa de Maurício e deu-lhe

um beijo. Sem querer, deixou caírem duas lágrimas no rosto dele. Havia muita bondade no olhar.

Ao chegar na cozinha, Marisete passou a descrever-lhe o estado geral do paciente.

- Se não fosse você socorrê-lo em tempo, não sei, não. Talvez tivesse morrido como um cão, na rua...

A enfermeira sentou-se ao lado do fogão. Cruzou as pernas, procurando uma posição cômoda. Era moça feita. Cerca de vinte e dois anos de idade. De rosto bem torneado, cabelos negros, olhos azuis, tez bronzeada. Busto firme. Notava-se que ela gostava de si mesma. E isso a tornava agradável, porque o bom humor e a bondade fluíam ao natural de dentro dela. Ofereceu uma cadeira para Silvana.

Ao sentar-se, só então Silvana percebeu que estava com a roupa toda ensangüentada:

- Bah! Veja o meu estado. Vou ter que lavar este vestido agora mesmo. - Então, vista o meu chambre. Está no roupeiro. Silvana trocou a roupa e dirigiu-se ao tanque, situado ao lado esquerdo da porta

da cozinha.

Marisete olhava para a jovem, tentando imaginar o que poderia existir dentro daquele coração. Perguntou com suavidade na voz:

- Você gosta dele? - Muito! Sabe, eu gostaria que você me contasse alguma coisa sobre ele. Eu sou católica,

vou à igreja quase todos os domingos, mas nem todos os padres conseguem dizer alguma coisa para mim. Eu me sinto bem com aqueles que trazem mensagens mais otimistas, mais humanas, que tocam o coração.

- Você quer se referir às mensagens que animam, que valorizam o ser humano, que incentivam, que elevam, enfim que fazem a gente amar a vida e amar a Deus?

- Sim, porque eu busco a igreja para receber forças espirituais, para levantar o espírito, para encher de luz os cantos do coração que estejam na sombra do desânimo e da depressão. Se recebo uma bateria de ameaças sobre o inferno, sobre os males do mundo, sobre os erros e fraquezas da humanidade, ao invés de levantar o meu astral, me comprime, me angustia, me desanima.

- Concordo com você. Ao invés de se pregar contra o mal, dever-se-ia pregar o Bem.

- É verdade. De tanto falarem sobre o mal, carrega-se a impressão de que o mundo é mau, de que a humanidade é má, de que o mal é mais forte do que o Bem, o que é um equívoco inadmissível.

- É mesmo - consentiu Silvana - e aí fica-se a vida inteira lutando contra moinhos de vento. Eu acredito é no Bem e não no mal. Para mim o mundo é mundo de Deus, a humanidade é humanidade de Deus, pois foi ele que os criou. O mal não é nada mais do que a sombra, ou seja, a ausência da luz. Basta iluminar e a sombra desaparecerá.

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- Quem nos vê nesse papo pode até pensar que somos doutoras da Igreja - brincou Marisete.

- Mas, um pouquinho de razão nós temos, não é verdade? - A gente passa a semana na luta, atendendo a mil coisas, carregando a mente

com problemas e preocupações e pensa ir à igreja no domingo para recarregar as baterias, refrescar a mente e o coração, receber forças e energias superiores, para enfim, estabelecer a fé na vida e encher de sol o coração.

- Voltando ao assunto, na noite em que o padre Maurício tomou posse, eu estava de plantão no hospital. Como é ele?

- Ele é extraordinário. Queria que você tivesse ouvido as palavras que proferiu na noite em que se apresentou ao povo. Não apareceu como um profeta tempestuoso e rígido, a descarregar raios e anátemas, mas como um amigo disposto a ajudar, um amigo honesto e sincero, cheio de boa vontade, reconhecendo, no entanto, suas limitações e fraquezas. Disse que as portas do seu coração e da sua casa estariam sempre abertas para os que sofrem, para os angustiados, para os abatidos e desanimados. Disse que queria caminhar junto de cada um... Assim ele foi falando...

Gostei. Palavra, que gostei. A simplicidade, a bondade e a boa vontade aproximam mais do que a autoridade e o pedestal, como se diz. Eu aprecio realmente um padre de espírito aberto e arejado, que entende que a Verdade pode ser muito mais ampla que a visão que ele mesmo tem.

Descendo a voz para um tom confidencial:

- Silvana, acho que em breve vou pedir um conselho a este padre. Se eu conseguir coragem, claro.

- Pode ir, Mari, ele é muito bom. Ele compreende as situações... - Mas... é que o meu caso não é nada cristão... Você nem imagina, Silvana... Eu

estou num beco sem saída... É que... É que... A enfermeira estava encabulada e as palavras não saíam, ou melhor, ela

titubeava se devia ou não contar. Mas, o segredo lhe pesava demais e acabou desabafando:

- É que... já estaria na hora da menstruação e... nada. - Deus me livre... Eu não posso, não quero, não aceito, de forma alguma. Sou

solteira. Não tenho sequer condições... Mas, pelo amor de Deus, nem falemos nisso, credo!

- Uma coisa posso lhe dizer, Mari. Se você for pedir uma palavra para ele, não se arrependerá.

Silvana pendurou a roupa atrás do fogão a fim de secar mais depressa. Lavou as mãos na pia e disse:

- Marisete, você deve estar cansada. Pode ir deitar-se, que eu cuido do padre Maurício.

- Bem, eu vou dar uma descansadinha. Daqui a uma hora, me acorde. Claro, se ocorrer algum problema, me chame a qualquer momento. Ambas se dirigiram, na ponta dos pés, até o quarto em que estava Maurício. Ele dormia. Marisete retirou-se, então, para o outro quarto e deitou-se. Silvana permaneceu de vigília.

Encostou-se à parede e ficou a contemplar aquele corpo todo machucado. Seus pensamentos voaram, num relance, até a esquina da Rua Santa Efigênia e ela viu novamente os holofotes do seu carro iluminarem um corpo jogado na sarjeta como se fosse um criminoso abatido na calada da noite. Recordou a corrida desesperada contra a morte rumo ao hospital e, depois, à casa de Marisete... Que anjo bom lhe teria

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soprado este nome precisamente no momento em que sua mente se encontrava confusa e atordoada?

Maurício mexeu-se na cama. Abriu os olhos devagarinho.

Os lábios se moveram para dizer alguma coisa. Silvana se aproximou.

Obri...ga...do... pela... car...ta... A jovem ficou comovida. Num gesto meigo e feliz, pôs o indicador na boca,

fazendo sinal de silêncio:

- Pss! Nada de falar! - sussurrou afetuosamente. Maurício sorriu levemente e fechou os olhos, tentando conciliar o sono.

… Às sete horas da manhã, Marisete foi acordada. Tudo andava bem com Maurício.

Prepararam o café e o tomaram. Após, enquanto Marisete saía para a farmácia, Silvana encarregou-se de levar o desjejum ao doente.

Eram nove horas quando Maurício abriu os olhos.

- Bom-dia - disse-lhe a jovem. - Vou buscar o café. A muito custo, Maurício sentou-se na cama, apoiado por quatro travesseiros.

Parecia moído até os ossos.

Silvana sentou-se na beira da cama e pôs-se a servi-lo:

- Prefere mais café ou mais leite? - Metade - murmurou ele, com um suspiro de dor. Maurício ingeria os alimentos muito vagarosamente e com grande esforço.

Silvana baixou os olhos e pediu perdão:

- Sinto muito o que aconteceu. Eu... eu sou a culpada de tudo... Desculpe. Maurício ergueu os olhos, com muita pena, e falou, num fiapo de voz, que se

perdia no fundo da garganta:

- Não pense nisso... Nada tenho a... perdoar... e sim... a agradecer... Se não fosse você... teria morrido... na rua... abandonado...

As lágrimas rolaram dos olhos de Silvana. Maurício se comoveu:

- Não chore... Você é maravilhosa... Marisete chegou com volumoso pacote nos braços. Depositou-o sobre a mesa e

perguntou:

- Como é que vai o nosso doente?

- Acho que está se recuperando muito bem - respondeu Silvana, recolhendo a bandeja do desjejum que Maurício acabara de tomar e se dirigiu à cozinha.

- Isto é ótimo - considerou Marisete, acompanhando Silvana. - Precisamos ver se nada de grave está ocorrendo por dentro. Devemos ficar alerta quanto a isso. Acompanhar os sintomas que porventura surgirem, como febre, vômitos e outros sinais.

Silvana permaneceu pensativa e preocupada.

- Que é que houve? - indagou a enfermeira. - Mari, e agora o que é que vamos fazer? Afinal, ele está em sua casa... Devemos

avisar na casa paroquial ou não?

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- Bem, quanto a ficar aqui, não tem problema. Agora, quanto a avisar ou não... não sei... Que é que você acha? - Silvana ficou a pensar. Buscava analisar a situação. Por fim, expôs:

Olhe, é certo que os promotores do atentado não vão fazer alarde do desaparecimento da vítima. Tudo aconteceu em alta madrugada e eles entendem que ninguém foi testemunha do fato. O doutor Onofre e seu filho, que, sem dúvida, foram os mandantes do crime, por certo deixarão que os acontecimentos venham à tona... Ainda mais que eles alimentam a certeza de que o padre morreu... Bem, na casa paroquial vão dar falta do padre e aí é claro que alertarão a cidade. Por outro lado, quando souberem do acontecido, quererão levar o padre a fim de que lhe seja administrado um tratamento mais especializado e, então, ocorrerá o pior: todo o povo saberá do atentado e ninguém segurará os comentários... Até mesmo a imprensa tratará de explorar o assunto...

Ambas ficaram em silêncio. Silvana foi até a janela, abriu as cortinas e quedou-se a contemplar o jardim banhado de sol.

Uma rosa vermelha pendia sem vida de um ramo e a jovem sentiu um arrepio, como se a flor fenecida significasse um mau presságio... Não, ele não irá morrer, pensou ela.

Marisete tomou a palavra:

- E se perguntássemos a ele? Foram até o quarto.

- Bom-dia - saudou-o a enfermeira. - Espero que esteja se recuperando bem. Gostaríamos de saber se devemos avisar na casa paroquial. Fale baixinho, com calma, sem esforço.

Ele ficou calado por instantes. Remexeu-se com muito cuidado, suspirou profundamente e falou:

- Eles sabem que eu saí... para atender um doente... Se não forem avisados... alarmarão a cidade... Seria bom trazer aqui o... Josias... Então, a gente conversa. As duas se retiraram.

- Mari - observou Silvana - se eu for, poderei despertar suspeitas, uma vez que lá em casa já se deram conta de que eu desapareci. Quanto a você, poucos a conhecem...

- Deixe que eu vou, sim. - Tome um táxi, Mari. Eu pago. A enfermeira saiu e Silvana aproveitou para tirar seu carro da rua e conduziu-o

para os fundos da casa, estacionando debaixo de duas laranjeiras.

Na casa paroquial, o velho Josias recebeu a informação e se dispôs a acompanhar imediatamente a enfermeira. Antes, porém, pediu para dona Ermelinda não dizer nada a ninguém, a não ser que o padre saiu para serviço pastoral.

Enquanto o táxi percorria as ruas, Marisete contou-lhe, por alto, o que tinha acontecido. Josias lembrou-se, então, das duas pessoas estranhas que tinham ido até a casa paroquial perguntar pelo vigário.

Meia quadra antes de sua casa, Marisete mandou parar o táxi e ambos desceram. Josias caminhava muito preocupado. No fundo, tinha um terrível pressentimento de que iria encontrar seu amigo morto.

Ao ver o padre Maurício naquele estado lastimável, não conseguiu dominar seu espanto:

- Padre Maurício! Mas, que barbarismo! Não é possível!

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Maurício fitou-o com bondade. Espraiou um leve sorriso, como a dizer que o pior já passara, e contou, com um fio de voz:

- Até nem sei... como é que estou vivo... Se não fossem elas... - Soube, por esta jovem, que o hospital não quis recebê-lo. Um crime pior do que

o outro... - Existe de tudo neste mundo, Josias... Mas, também, existe gente boa e

generosa... - ajuntou, voltando o olhar para as duas moças. - Sei que o senhor está bem atendido aqui, mas, se quiser ir para a casa paroquial...

ou se quiser que traga um médico de outra cidade... Josias não queria desgostar as duas jovens, por isso falava com tato, apalpando os

termos.

Marisete interveio:

- Creio que, de momento, não há necessidade de maior preocupação. Estamos de sobreaviso sobre possíveis problemas internos de gravidade.

Silvana olhava em silêncio para Maurício. E pensava nas palavras do velho. Então, argumentou:

- Aqueles que pretendiam matar o padre, por certo estarão de olho na casa paroquial. Morto ou vivo, pensarão eles, deverá ele ser conduzido para lá. E, possivelmente,estão preparando uma onda de boatos a fim de conseguir, pela maledicência, aquilo que não conseguiram pela força. Acho bom deixarmos o padre Maurício aqui enquanto houver ferimentos que exijam cuidados especiais. Depois, a gente veria o que fazer.

Os olhos de Josias luziram. Era a vigorosa inteligência do velho que se dava conta de toda a trama de que fora vítima seu amigo. E, uma idéia iluminou-lhe a mente:

- Neste caso, podemos confundir os assassinos e deixá-los de faro perdido. Todos os olhos se fixaram naquele barbudo que falava como um estranho

personagem do Velho Testamento:

- Se o padre Maurício estiver de acordo, ficará aqui até o restabelecimento total. Enquanto isso, para os que quiserem saber do padre, eu direi que viajou para um curso especial e voltará dentro de alguns dias. Será o mesmo que por água fria na fervura. É certo que deixaremos impunes os bandidos, mas quer-me parecer que denunciar à polícia só conturbaria a situação, uma vez que levantaria uma onda de boatos na cidade e poderia oferecer chances aos inimigos de armarem mais alguma complicação. Para mim, desculpem o juízo temerário, é gente importante que está metida nisso...

Josias silenciou. Passou a mão na barba e ficou pensativo. E triste. Seus olhos pareciam vagar por algum mundo distante. Depois, sentou-se na cama e perguntou baixinho:

- O senhor está de acordo? Maurício abriu os lábios devagarinho e deixou escapar um sorriso

condescendente. Seus olhos fitavam com admiração aquele velho que até pouco tempo estava apodrecendo nos porões da igreja.

… Na residência de Onofre Albarus havia reunião permanente. Corrégio jurava que

o padre estava morto. Nenhuma notícia, no entanto, corria pela cidade. Silêncio total. Insuportável. Como por encanto, o padre desaparecera. Teria sido enterrado às escondidas? Ou fora levado para sua terra natal a fim de ser dado à sepultura

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condignamente? Quem sabe, teria sido recolhido e salvo por alguém? Era possível até que estivesse na casa paroquial. Por que não? Recolhido a um quarto, estaria convalescendo sem que ninguém tomasse conhecimento do que havia acontecido. Mas, por que motivo não teriam comunicado à polícia? O doutor Onofre se defrontava com um intrincado enigma. Apesar das inúmeras explicações do filho, não podia confiar nele. Talvez, até estivesse bêbado naquela noite. Pela milésima vez, Corrégio, como é que você fez? O rapaz encheu de novo o copo de uísque e voltou a contar o que acontecera. Sua voz já estava bastante engrolada e as palavras saíam aos solavancos, com certa dificuldade.

O pai se irritou:

- E quando é que você vai parar de beber? Está na hora de criar juízo, ouviu? Eu estou cansado de passar vexame por sua causa. Veja quantos aborrecimentos este maldito vício está me trazendo. Pare de beber e fale como gente!

O rapaz segurou o copo na mão e arrancou um sorriso idiota e irônico ao mesmo tempo:

- Eu bebo com a minha boca, entendeu? Agora, só porque o caso ficou misterioso, eu é que tenho que agüentar o seu nervosismo?

Aproximou-se do pai, ergueu o copo e resmungou:

- Calma, velho, tome um pouco pra passar essa agonia... O pai alçou-se num acesso de fúria, arrancou o copo da mão do rapaz e jogou-o

com raiva no chão, esparramando cacos de vidro e bebida por toda a sala. Incontinenti, saiu lívido de raiva pela porta dos fundos.

... Na casa de Silvana, a apreensão tomou conta do casal desde a manhã do dia do

atentado, quando a moça não foi encontrada em casa. Depois de muitas ponderações, André e Margarida chegaram à conclusão de que o desaparecimento da filha poderia ter algo a ver com o atentado. Afinal, ela desapareceu naquela mesma noite e não voltara. Já estavam cansados de informar o doutor Onofre de que ela ainda não tinha aparecido. Que explicação poderiam dar? Eles sabiam tanto quanto o médico: a moça sumira e não voltara. Era tudo. Teria ela ouvido a conversa daquela madrugada e fora socorrer o amigo? Nesta hipótese, deveria saber se ele estava morto ou vivo. Ela teria a chave do mistério. Naquela manhã, como faziam costumeiramente, André e Margarida conversavam na cozinha. O assunto, há dias, era o mesmo.

- Eu acho que essa história não vai acabar bem - disse o velho André, recostando-se na cadeira preguiçosa.

- Em todo caso, nós não temos nada a ver com isso. O problema é do médico e do filho dele - comentou Margarida, olhando para fora da janela.

Dos fundos da casa, descortinava-se um amplo vale, onde agricultores mantinham plantações de trigo e imensos pomares de pêssegos, laranjas e peras. Na depressão mais abrupta do terreno, uma sanga formava uma pequena lagoa, cercada de juncos e densa grama. O sol iluminava fartamente o vale todo. Margarida percorria a paisagem com os olhos embevecidos. E a nostalgia do seu coração se projetava sobre aquele panorama bucólico. Quando umagarça levantou vôo do lado esquerdo da lagoa e subiu o vale, como um ponto branco a perfurar o azul do céu, ela sentiu como se o seu coração estivesse sendo carregado pelas asas daquele pássaro. A lagoa estava calma. Apenas, numa pequena enseada, as águas, de vez em quando, formavam ondas concêntricas. Foi, então, que ela viu dois jovens sentados entre os juncos, na beira da água. Viu quando eles se beijaram longamente e se deitaram sobre a espessa grama. O

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rapaz foi subindo suavemente para cima da jovem, deleitando-se num profundo beijo que fundia, à distância, os dois rostos num só rosto. Depois, ele desceu a beijar repetidamente o pescoço e o pequeno vale formado pelos seios. Abriu a blusa da jovem, sacou o sutiã e desencadeou uma torrente de beijos nos seios. A moça se retorcia como uma cobra e passava as mãos pelos ombros, pelos cabelos e pelos quadris do rapaz. Quando ele abriu a saia dela, dona Margarida fechou a janela, toda envergonhada, e foi preparar o café.

Bateram à porta.

- Velha, estão batendo - avisou seu André, sem nenhuma vontade de atender. A esposa foi ver. Era Onofre Álbarus. - Entre, doutor, a casa é sua. Vamos até a cozinha tomar um cafezinho. - Muito obrigado - respondeu polidamente o médico. E o seu André? Como é que

vai com a diabetes? - Ora, ele é meio relaxado no regime, o senhor sabe. Mas, vai indo... - Na cozinha, o médico encontrou-se com o casal. Era o que queria. Depois de

rodear a conversa, perguntou, com fingida indiferença:

- E a Silvana? - Não apareceu - resmungou seu André. - E nem posso imaginar o que está se

passando com ela... - Seu André - começou o doutor, meneando a cabeça com acenos de preocupação

- acho que o senhor devia tomar alguma providência. Afinal, ela é sua filha. Boa coisa não deverá estar fazendo.

- E o que é que o senhor acha que eu devo fazer? - Por exemplo, informar a polícia. - Não vejo razão para tanto - redargüiu o velho. - Pelo menos por enquanto, pois

ela é maior de idade e, às vezes, sai para cursos intensivos, essas coisas da Faculdade, o senhor sabe como é...

- O doutor Álbarus não gostou da resposta. Sem muita paciência entrou de rijo:

- E, se ela está envolvida no atentado do padre? Note o senhor que ela desapareceu precisamente naquela noite...

- A gente não pode saber, não é mesmo, doutor Onofre? Diante das investidas do médico, instintivamente o velho André ficou na

defensiva. Mas, Onofre insistiu com veemência:

- É possível que a gente esteja aqui num quebra-cabeça e a sua filha tramando ao avesso por aí, às escondidas. O caso é grave e o senhor não pode ficar de braços cruzados.

- Olhe, doutor, eu já sou velho e doente. Silvana tem idade, tem estudo, sabe o que faz e...

- Não sabe coisa nenhuma - cortou, com voz ferina e cavernosa, o médico. - Se soubesse, não estaria envolvida com este padre; se soubesse, não teria rompido estupidamente o noivado com meu filho. E tem mais: sinto muito, mas sou obrigado a dizer-lhe que, se o senhor e a dona Margarida não tomarem providências urgentes, poderá surgir uma onda na cidade de que a moça fugiu com o padre...

Onofre voltou-se para os dois com os olhos faiscando diabolicamente.

- Fique calmo, doutor - reagiu, muito assustado, seu André - nós vamos tomar providências.

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- É isso mesmo - complementou, também assustada, dona Margarida. - A gente vai sair atrás da Silvana. Fique descansado, doutor.

- Está bem, vou aguardar, com impaciência, os acontecimentos. Levantou-se e foi saindo. Já na porta, virou-se para dona Margarida, que o

acompanhou, e disse incisivo:

- Assim que tiverem qualquer notícia, me avisem. Até logo.

- Fique tranqüilo, doutor. Faremos isso. Mas, ele nem ouviu a resposta. Já estava na rua.

Ao cair da tarde, na hora em que os sinos tocavam a avemaria, Silvana abriu a porta da frente e entrou em casa. Dona Margarida, que estava cerzindo na cozinha, ficou tão surpresa que nem sabia o que dizer.

- Boa-noite, mamãe. Tudo bem? Dona Margarida deixou cair no chão a roupa que estava no colo e falou, bastante

atrapalhada:

- Minha filha? ! A moça deu um beijo na face da mãe e observou:

- Ué?! Por que tanto susto? Imaginava que eu não voltaria mais para casa? Não é a primeira vez que eu viajo, a senhora sabe.

- Mas, filha, não fica bem desaparecer por alguns dias sem avisar. Nós estávamos muito preocupados com você.

- Preocupados comigo?! Puxa vida, mamãe! Com toda a educação que recebi, com todos os estudos de colégio e Faculdade que tenho, com tudo que li e ouvi até hoje, com a inteligência, a força e a vontade que Deus me deu, será que ainda assim não seria capaz de guiar os meus passos?

- Ah, Silvana, você fala tão complicado que me deixa confusa! Eu sei que muita moça saiu por aí e acabou voltando para casa com mil arrependimentos e se escabelando de raiva.

- É a vida, mamãe. Cada um tem a vida que constrói para si. Se um animal é criado em liberdade total e deixado pelos pais ao sabor da própria sorte para que faça a sua vida por conta e risco, será que nós, com inteligência e tudo, precisamos ficar dependendo dos pais até o fim da vida? Está na hora de pensar diferente, mamãe.

- Filha, não fale difícil. Você sabe que eu não tenho estudo. - Desculpe, mamãe. É que eu penso muito sobre isso. - Mas, antes você não pensava assim - insistiu a mãe. - De fato, mamãe. Eu nem sei como é que vivia de olhos fechados para a

realidade. Acho até que estava dentro de um funil. Graças a Deus, tudo mudou. - Para melhor ou para pior? - tornou dona Margarida.

- Que pergunta, mamãe... Houve silêncio entre as duas. Silvana pôs manteiga numa fatia de pão e saiu para

o quarto. Tomou a mala debaixo do armário e começou a colocar algumas roupas.

Dona Margarida entrou no quarto.

- Ué?! Você vai viajar de novo? - perguntou, muito intrigada.

- Vou, mamãe. Ficarei fora alguns dias. Neste momento chegou seu André com um pacote de verduras nas mãos. Ao ver

aberta a porta do quarto da filha, entrou.

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Não se conteve:

- Mas, filha, fugindo de casa com esta idade?! Silvana parou um instante seu trabalho e respondeu, com calma:

- Boa-tarde, papai, antes de tudo. Eu não fugi de ninguém. Com tudo que aprendi de vocês, e na escola, creio que deveriam até exigir que eu saiba me conduzir, por conta e responsabilidade, na vida, não é verdade? É o que estou fazendo.

- E a história do padre Maurício? - inquiriu ele, sem rodeios e com voz dura na garganta.

- A história do padre Maurício deve ser perguntada a ele. eu conheço a minha história - retrucou a jovem, tentando frear a irritação.

- Onde é que está o padre? - tornou a calcar o pai. - Pergunte na casa paroquial, ora. - Não enrole a conversa, filha. Sei que você é estudada, mas eu não sou nenhum

idiota. Você desapareceu de casa na noite em que houve o atentado contra o padre. - Eu venho chegando agora. Gostaria que me contassem o que é que aconteceu.

Por certo, o senhor é que deve estar com as novidades... O velho André estava com a figura carrancuda do doutor Onofre na cabeça e isso

o deixava nervoso e exasperado. Foi até a janela, pigarreou e cuspiu para fora. Olhou a paisagem, sem interesse, e voltou a martelar:

- O doutor Onofre acha que você sabe algo sobre o desaparecimento do padre. Ele está nos pressionando para que façamos você contar tudo o que sabe.

- Papai, o senhor não percebe que o seu Onofre e o filho dele se meteram na nossa vida de família? O senhor não vê que eles vêm aqui e fazem e acontecem em cima da nossa dignidade? O senhor não percebe isso?

De repente, seu André pareceu sentir-se nu diante de sua filha. Aquelas verdades despiram sua autoridade e ele viu que sua estatura diminuiu até chegar às dimensões de um verme. Os vermes começaram a roer-lhe o peito e o sangue subiu-lhe à cabeça. Entendeu que precisava reagir a fim de não se apequenar diante da filha e da mulher. Como havia aprendido desde pequeno, a irritação e a voz áspera seriam a melhor forma de recompor sua autoridade:

- Fique sabendo que o doutor Onofre é um homem de bem e de prestígio social. E fique sabendo também que você não está agindo corretamente. Trate de mudar de vida, porque eu não vou permitir que o meu nome seja emporcalhado depois de velho, entendeu?

Seu André saiu do quarto aos trancos e barrancos e dirigiu-se à janela da cozinha para tentar conter o acesso de tosse. Dona Margarida seguiu os seus passos e preparou-lhe uma xícara de café com leite.

Silvana tomou a mala, enfiou-a no bagageiro do carro e partiu.

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CAPÍTULO 4

Maurício, graças ao seu físico robusto e sadio, reagia de maneira surpreendente. Apenas alguns ferimentos mais profundos exigiam cuidados especiais. Marisete desvelava-se em atenções para evitar que irrompesse alguma infecção ou gangrena, o que seria trágico. Silvana ajudava como podia.

Naquela noite, depois de darem a janta ao enfermo, voltaram para a cozinha, pois havia assuntos a serem acertados.

Marisete sentou-se à beira do fogão, cruzou as pernas, tomou um cigarro e pôs-se a discorrer:

- Sabe, Silvana, vou confessar-lhe uma coisa: eu me sinto compensada pelos sacrifícios. Esta convivência que tivemos os três, como foi saudável para mim! Você nem imagina. A vida solitária numa casa tem os lados bons, mas tem os aspectos negativos. Eu tenho a nítida impressão de que agora eu me sinto mais gente, mais humana, mais sensível, compreende. Não sei como explicar...

- Eu compreendo... - Mas, falemos de outro assunto - recompôs-se a enfermeira, cuja timidez não lhe

permitia abrir o coração naquela hora. - O padre Maurício já está convalescendo. O estado dele é ótimo, pode acreditar. A cicatrização dos cortes vai acontecer gradativamente. Com um pouco de cuidado, ele já poderá dar alguns passos.

Depois de uma breve pausa, continuou:

Pois, eu pensei o seguinte: amanhã você já pode viajar com ele para a minha casa de praia. Conforme lhe disse, lá você encontrará a casa totalmente mobiliada e equipada. O lugar é bastante ermo, de modo que ninguém irá perturbá-los. Leve todo o material que preparei na maleta e aplique as compressas, a gaze, o metiolate, o mercurio cromo, os antissépticos, assim como eu fazia aqui. Coloquei também comprimidos para acalmar a dor e tranqüilizantes para o sono. Use-os somente se for necessário.

Sorveu a fumaça do cigarro com vigor e deu-se ao prazer de ir expelindo bem devagarinho. Parecia estar pensando em alguma coisa secreta. Inclinou a cadeira para trás e acrescentou:

- Eu gostaria de acompanhá-los, mas, como fui despedida do hospital, preciso refazer minha vida. Já arranjei tudo. Abrirei aqui uma farmácia com ambulatório. Com os conhecimentos que tive na Faculdade e a boa experiência no ramo, acredito que terei sucesso. Será uma nova opção para o povo, o que é ótimo.

E com um largo sorriso, completou:

- Felicidades, Silvana. A jovem acadêmica ficou comovida. Num ímpeto, aproximou-se da enfermeira e

beijou-lhe a face. As lágrimas, que caíram do seu rosto, penetraram no rosto de Marisete, como se fosse o carimbo do afeto e do reconhecimento.

Voltaram para junto do padre Dollá. Marisete puxou a carteira e ofereceu um cigarro:

- Fume, para provar que já pode viajar. Dollá sorriu e agradeceu.

- Já combinamos tudo - disse Silvana, sentando-se na cama. - Esta madrugada vou levá-lo até uma casa de veraneio que a Marisete tem na Praia do Pontal. Assim, não haverá o risco de ser descoberto o seu paradeiro. O senhor precisa recuperar-se em paz.

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- E os estudos? - perguntou Maurício. - Não se preocupe. Já acertei tudo. De mais a mais ajuntou ela - o senhor vale

mais do que três quilos de ciência. Maurício recostou-se na cama e acrescentou em cima da brincadeira da jovem:

- É como diziam os sábios latinos: primum vívere, deinde filosofare. - Agora encardiu tudo! - exclamou, rindo-se, a enfermeira. - Não dá para traduzir

este inglês? Maurício desandou numa risada solta:

- Não é inglês, Marisete. É latim. E explicou:

- Significa, traduzindo literalmente, o seguinte: primeiro viver, depois filosofar. Às quatro horas da madrugada, Maurício foi acomodado, com muitas

precauções, no banco da frente, totalmente reclinado. Três cobertores e quatro travesseiros permitiam que ele se estendesse de maneira mais ou menos confortável.

- Pronto - disse Marisete, inclinando-se sobre a janelinha do veículo. - Está cumprida a minha missão. Boa viagem.

E brincou:

- Espero que me tenha assegurado o céu pelo trabalho que fiz...

Dollá sorriu. Depois, realmente emocionado, disse:

- Marisete, pelo que você fez, merece, sem dúvida, o céu. Eu nunca poderei agradecer-lhe o suficiente. Que Deus conserve você com esse coração bondoso. Fique feliz, porque você tem um tesouro dentro de si: você é humana. Queira Deus que nunca perca a ternura que mora em você. Nem mesmo diante dos maiores infortúnios. Seja feliz, Marisete. Muito obrigado.

As lágrimas corriam das faces da enfermeira. Era a primeira vez que alguém lhe falava assim. Como num filme de dois segundos, ela reviveu a história do seu último baile e o problema que carregava dentro de si...

Afastou-se do carro e deu boa viagem, mais uma vez. - Obrigado - respondeu Maurício. - Obrigada - gritou Silvana, já com o carro em andamento. … Era ao amanhecer quando Silvana e Dollá chegaram à Praia do Pontal. A casa

situava-se sobre uma pequena colina verdejante. Uma casa de alvenaria, com cozinha, dois quartos, salinha e banheiro. Os móveis estavam todos nos devidos lugares, porém bastante úmidos e embaciados. A primeira coisa que a jovem tratou de fazer foi limpar o quarto e preparar a cama para que o enfermo pudesse descansar confortavelmente depois da viagem estafante. Em seguida, deu-se ao mister de limpar todas as demais dependências. Ligou a geladeira e pôs água no fogão para preparar um café especial.

Deu uma olhada no quarto e viu que Maurício dormia. Enquanto a água esquentava, saiu para fora. Em torno da casa, um amplo pátio gramado. Nos fundos, alguns eucaliptos e pinheiros formavam divisa com o terreno vizinho. Rente às árvores, a garagem de madeira. Abriu-a e colocou o carro. À esquerda da porta dos fundos, o tanque de lavar roupas. Conforme Marisete lhe explicara, foi até o canto direito do muro da frente e ligou registro da água.

Lá embaixo, o mar. A praia estava deserta. As casas circunvizinhas, fechadas.

Um vento bastante frio açoitava a colina.

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Mais para a direita, lá ao longe, podia notar elevados contrafortes de rochas, dando a impressão de um castelo medieval. No alto, um farol com o pisca-pisca ligado.

Com o coração refrescado pela beleza e pela poesia da paisagem, Silvana voltou para a cozinha. A água estava quente. Antes de preparar o café, espiou para o quarto. Maurício abriu os olhos.

- Bom-dia - cumprimentou-o em tom de brincadeira. Se Vossa Excelência Reverendíssima me permitir, servir-lhe-ei um café a la Vaticano.

O padre riu-se muito. - Bom-dia! Espero não dar muito trabalho para a Excelentíssima Doutora Filósofa,

Digníssima Diretora desta Casa de Saúde. Quanto ao café, se não lhe ficar demasiado incômodo, sentir-me-ei sobremodo honrado em ser servido por Vossa Excelência.

Ambos riram-se a valer. Era um bom começo.

Quando Silvana voltou com o café, acompanhado de bolachas, mel e algumas fatias de mortadela, Maurício sentou-se na cama, com evidentes sinais de cansaço. Ao tentar acomodar o travesseiro nas costas, espremeu o rosto de dor.

- Será que tem alguma costela quebrada? - perguntou a jovem, muito preocupada. - Acho que não. Depois de uma tempestade de cacetadas, não é de um dia para

outro que as coisas vão para os devidos lugares... Enquanto Maurício servia-se, ela passou a descrever-lhe o panorama que se

descortinava desde a casa: as residências abandonadas, o mar e a praia lá embaixo, as rochas, o farol...

- Vou tratar de melhorar logo, porque o lugar é irresistível para umas caminhadas - frisou ele, bem-disposto, lembrando-se das grandes escaladas de montanhas que fizera em sua vida.

Terminada a pequena refeição matinal, Silvana observou-lhe:

- Agora o senhor deve dormir até o meio-dia. Está muito cansado. Eram nove horas. A jovem tomou um livro, abriu a cadeira preguiçosa, passou

um pano para tirar o bolor provocado pela umidade e estirou-se a fim de aproveitar o tempo na leitura. Não tardou muito, porém, e pegou no sono. Duas horas depois, o formigamento, que lhe tomava as duas pernas, fê-la acordar-se. Olhou o relógio. Onze horas. Levantou-se, num salto, e foi até o quarto. Ao tropeçar numa cadeira, que estava fora do lugar, Maurício acordou.

- Desculpe - disse ela. - Ainda não conheço bem a geografia deste quarto. Mas, queria avisar-lhe que vou dar um pulo até o supermercado para comprar alimentos e produtos de cozinha. Chavearei a porta. Aproveite para puxar mais um soninho.

À medida que percorria as prateleiras do supermercado, Silvana selecionava tudo que achava necessário para as refeições.

Já em casa, empenhou-se na operação-almoço, lamentando muito seus fracos conhecimentos de culinária. Andava para cá e para lá, do fogão à mesa, da mesa à pia e novamente ao fogão, como um general no comando da batalha. Mas, somente a uma da tarde conseguiu levar a refeição ao doente.

- Só peço a Deus - falou ela, fingindo seriedade – que esta comida não alcance os objetivos que os malfeitores não conseguiram. Aconselho-o a rezar bastante antes de pôr os alimentos na boca.

- Não tem perigo - redargüiu ele. - Diz a alta medicina mundial que bicho ruim não morre...

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Silvana almoçou junto, ao pé da cama. Seus olhos transbordavam de contentamento.

- Meus parabéns - felicitou-a ele, descansando o garfo no prato vazio.

- Meus parabéns lhe dou eu - retrucou a jovem - por ter conseguido comer este almoço. Os dois riram.

Recolhendo a bandeja, ela sugeriu:

- Acho que poderíamos fazer assim: o senhor descansa até às quatro da tarde. Depois faremos os curativos. Eu estarei aí fora apanhando um pouco de sol. Se precisar de algo, por favor me chame.

- Está bem. Obrigado. Silvana ajudou-o a deitar-se. Seu rosto, quase colado no rosto dele, sentiu o calor

de sua respiração. Acomodou-o nas cobertas, apanhou a bandeja e desabalou para a cozinha.

Depois de lavar a louça, deitou-se ao sol. Estava muito cansada. Antes que o sono a prostrasse, deixou-se envolver pela recordação dos últimos acontecimentos. Jamais poderia imaginar que um dia estivesse numa casa de praia, longe do mundo, cuidando da saúde de alguém que a empolgava pela cultura, personalidade, beleza e bondade. Como são os caminhos da vida - pensava ela.

O sono foi descendo suavemente, transportando-a para um outro paraíso, num outro mundo inimaginável.

Às quinze e trinta, Silvana já estava diante do fogão, esquentando a água. Dispôs uma mesinha ao lado da cama de Maurício e sobre ela alinhou todo o material necessário para os curativos. Marisete não esquecera nada. Maurício a observava em silêncio. Silvana arredou os cobertores e os lençóis, com cuidado. Ajudou-o a tirar delicadamente o casaco do pijama e passou aos curativos.

- Se doer, por favor me avise - suplicou ela - porque eu não tenho prática.

- Não tenha medo - tranqüilizou-a ele. - Você é uma ótima enfermeira. Ela procurava agir com o máximo de cuidado e leveza. Cada gemido parecia

uma faca a cravar-se dentro dela mesma. Conduzida pela força e pela sabedoria misteriosa do coração, conseguia realizar um trabalho que nunca imaginara saísse tão bem. Apenas titubeou diante do corte profundo que ainda estava aberto na direção do coração. Ficou lívida. Sem querer, sua imaginação exacerbou o perigo. Sentiu assim como se tivesse que atravessar um profundo abismo sobre uma perigosa pinguela.

- Coragem! - sussurrou Maurício, percebendo a hesitação da moça. Pedindo a Deus para que tudo saísse bem, ela empregou-se no curativo daquele

ferimento com redobrada atenção e delicadeza. Foi bem. Sentiu um grande alívio, que foi se transformando numa alegria indizível. Parecia que tinha alcançado um milagre. O rosto transfigurou-se e, como que puxada por uma mão invisível, inclinou-se e beijou as bordas daquele ferimento. Sentiu um rubor subir pelas faces e por isso não olhou para ele. Não quis olhar. Teve medo. Vergonha. Prosseguiu, então, com muita calma no trabalho, pondo o máximo de habilidade nas mãos. Nas extremidades do corpo, os ferimentos não ofereciam maiores cuidados. Apenas uma inchadura no joelho esquerdo era o que havia de mais grave e doloroso. Foi percorrendo, um por um, os cortes das pernas, dos pés, das costas. Quando terminou, ele estava cansado e dolorido. Mas, Silvana sentiu-se realizada. Seu trabalho surgia diante de seus olhos como algo maravilhosamente bem-feito. Apesar da sua inexperiência.

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- Agora é bom que o senhor descanse. Deve estar exausto. Vou apagar a luz e deixá-lo em paz. Bom descanso!

- Obrigado. Você fez um belíssimo trabalho. Parabéns. Silvana sorriu contente e retirou-se.

Lá fora, o sol declinava no horizonte sobre o rochedo do farol. Dentro em pouco, o farol iria cortar pela metade aquela imensa bola alaranjada. Embaixo, as ondas do mar, no seu fluxo e refluxo constante, espreguiçavam-se sobre a areia e voltavam a recolher-se sobre si mesmas. Era uma paisagem realmente linda. No cipreste da frente da casa, os pardais cantavam com alegria e disposição.

A calma dominava o ambiente. E a paz do crepúsculo desceu sobre Silvana. No meio da paz, porém, uma certa ansiedade mordia o seu coração. Sem querer, seus olhos se fixaram num ponto qualquer e sua mente começou a entrar numa nebulosa, assim como um avião que procura sair das nuvens para encontrar o azul límpido e sereno do céu. E o céu agora estava cheio de sol e de nuvens brancas. Sentia-se radiante, tomada de uma felicidade que transcendia o seu corpo e parecia iluminar totalmente o seu mundo.

Concentrada na profundeza dos seus devaneios, abençoava a vida, lembrando uma frase de Leon Tolstoi: “A vida é Deus e amar a vida é amar a Deus” .

Deixou-se ficar por mais alguns momentos e voltou para dentro. Estava na hora de pensar na ceia daquela noite.

. . . Felizmente, o tornozelo do pé esquerdo desinchou e os demais ferimentos

cicatrizavam a olhos vistos. O rosto de Maurício voltara ao seu aspecto sereno e jovial. O corte, situado nas fronteiras do coração, fechara-se e exigia apenas cuidados superficiais. Ele convalescia bem. Após cinco dias, já levantava e exercitava os primeiros passos em torno da casa.

Naquela quinta-feira, jantaram na cozinha.

A noite bordara-se de estrelas. A lua perambulava, como peregrina do céu, salpicando pó de luar sobre as colinas, as ramagens, as areias e estendendo um brilhante tapete de prata sobre o azul-escuro do mar. Era uma noite tépida, bastante rara naquela época do ano. Do outro lado da janela, os grilos enchiam de cricris o silêncio da noite. Mais ao longe, as rãs, acomodadas na mornidão das águas estagnadas, davam-se a longos diálogos monótonos.

Após a ceia, Dollá foi para o quarto, enquanto a jovem tratou de lavar a louça, guardando tudo nos devidos lugares. Colocou a chaleira no fogão para esquentar a água. Preparou chá com torradas e levou para o doente. Maurício ainda não estava dormindo.

Recostou-se na cabeceira da cama. Silvana ajeitou-lhe o travesseiro nas costas.

- O senhor está melhorando rapidamente - disse ela, sentada na cama a segurar-lhe a bandeja. Seus olhos buscavam os olhos azuis dele.

- Graças a Deus - concordou ele. - Assim você tem menos incômodos comigo. Não é incômodo nenhum - retrucou ela, com viva satisfação na voz.

- Você é admirável - sussurrou ele, mexendo o açúcar que depositara no chá. - Deixar tudo, Faculdade, vida social, família, tudo, para vir aqui neste fim de mundo cuidar de um doente, só é possível numa pessoa desprendida e cheia de sentimento cristão...

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- Nem uma coisa, nem outra - corrigiu ela. - Não ponha santidade, nem heroísmo e nem abnegação no que eu faço.

- Então, que motivo lhe dá tanta força? - perguntou ele, cheio de curiosidade. - Faço pelo prazer de fazer. Só isso. Maurício ficou em silêncio. Quando voltou à realidade, tomou um pedaço de pão

torrado, molhou-o no chá e ingeriu-o. Ao erguer a xícara, segurou-a no ar e confidenciou:

- Imagino o que se passa no seu interior.

Fez uma pausa e acrescentou:

- A vida é uma festa. - Sim - disse ela - a vida, para mim, é uma linda festa, cheia de bandeirinhas, luzes

e chafarizes no meu coração. Maurício sorveu o líquido verde-claro vagarosamente e descansou a taça na bandeja. Serviu-se novamente de torradas.

- Porque o meu coração está cheio de amor - completou Silvana. Olhou para ele e arriscou:

- Posso fazer-lhe uma pergunta?

- Pode. Quantas quiser. Depois de um breve silêncio, a jovem corou e perguntou muito desajeitadamente:

- O senhor me... ama... quero dizer... gosta de mim? Maurício fechou os olhos, reclinou-se mais para trás e ficou concentrado durante

alguns segundos. Segundos que, para ela, pareciam uma eternidade. Ela, então, arrependeu-se de ter feito a pergunta. Mas, agora era tarde. Só restava ouvir a sentença.

- Silvana - começou ele, pondo muita bondade e muita paz na voz - você sabe, eu sou padre...

- Mas, eu não estou fazendo a pergunta para o padre cortou ela, com vivacidade. Pois bem, então façamos a distinção: como padre, estou acima de todos os

amores e, ao mesmo tempo, no meio de todos os amores, para elevá-los até Deus, que é a fonte suprema e inesgotável do amor. Eu me sinto feliz como padre. Sinto enorme alegria em poder dar uma dimensão divina à caminhada tantas vezes atribulada dos homens. Isso torna a gente feliz. Isso dá sentido à minha vida...

- E como homem? - atalhou ela, ansiosamente. - Bem, o homem que existe em mim é o homem que existe em todas as pessoas... - O senhor acha que o amor humano é ruim? - Longe disso. O amor foi a coisa mais grandiosa que Deus criou. Porque é preciso

dar-se conta de que foi Deus quem criou o amor humano, carnal, o amor que avassala o coração e penetra todos os poros da carne. Se Deus não o tivesse criado, esse amor não existiria. E, se Deus criou, é porque é bom. Embora não seja o único e nem o mais importante. O grande erro de todos os séculos foi interpretar essa prazerosa interação íntima de dois seres como algo de reprovável ou de dimensão irracional. Imagine você a sublimidade desse momento em que uma sinfonia divina explode nos mais excitantes acordes... Imagine você a bondade e a sabedoria divina ao distribuir às criaturas humanas esse dom inexplicável que fazem que duas pessoas, num instante de milagre, se tornem um só coração, uma só carne, um só sentimento, uma só chama, que se perde nos domínios de um paraíso indizível.

- Mas, nem todos pensam assim - comentou a jovem.

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- Muita coisa passará debaixo da ponte antes que a humanidade acerte seus verdadeiros caminhos. Por que existem desvios sexuais, estupros, crimes de amor? Fala-se que a liberalização da mulher trará como conseqüência a desagregação do casamento.

- Não poderia ocorrer precisamente o contrário?

- Não entendi. - O casamento assenta sobre areia quando as pessoas casam levadas apenas pela

ansiedade de se desvendarem intimamente uma à outra. Passados os primeiros tempos de efervescência interior, terminada a aventura fascinante da descoberta sexual do outro, os dois se verão a braços com uma vida plana, rotineira, que não estava em seus sonhos doirados. Pois bem, a liberalização fará com que as pessoas casem quando se sentirem maduras, emocionalmente sólidas, desejosas de um lar estável, calmo, onde serão dadas primazias a outros valores mais ponderáveis e menos tempestuosos.

Maurício remexeu-se na cama, dando mostras de cansaço. Respirou fundo, como a reunir mais um pouco de alento e continuou:

- Bem, este assunto é vasto demais. Poucas palavras só podem torná-lo controvertido e explosivo. Talvez você tenha ficado mais confusa. Mas, numa outra oportunidade conversaremos mais amplamente sobre este tema, ou melhor, discutiremos, porque você é universitária e, sem dúvida, terá a sua opinião a respeito.

Maurício envolveu-se nas cobertas. A noite ia alta.

- Só que o senhor não respondeu à minha pergunta... - murmurou ela, tomando a bandeja para levá-la à cozinha. Apagou a luz e saiu.

Silvana demorou-se mais do que de costume na cozinha. Não conseguia lavar as xícaras, os pires, as colherinhas. Sua imaginação fugia

continuamente, procurando repensar as palavras de Maurício. Quando voltou para o quarto, ele dormia a sono solto. A longa conversa o cansara realmente. Despiu a blusa e a saia e vestiu a lingerie cor-de-rosa. Deitou-se cuidadosamente, para não fazer ruído e puxou as cobertas até o pescoço. Não sabia se dormia ou se repensava a conversa com Maurício. Fora um assunto muito interessante. Agora veio-lhe à mente a pergunta que fizera a ele e se sentiu uma idiota.

Coisa de adolescente isso de perguntar se ama ou se gosta recriminava-se ela. Mas, na verdade, fora graças à indagação infantil que nascera aquele assunto tão bonito.

- Ah, também, - resmungou silenciosamente para dentro de si - ninguém vai querer que eu seja perfeita, certinha, sem emoções, que nem uma tábua! A vida tem que ser levada na simplicidade, sem complicações. Que mal tem em fazer uma pergunta de adolescente? Sim, mas eu sou uma universitária... Está bem, mas o amor é uma criança... Agora os pensamentos se tornavam confusos, sinal de que o cérebro estava pedindo descanso. Adormeceu.

Pela manhã, muito cedo, Silvana levantou-se e foi para o banheiro. Entregou-se a um banho reparador. A água morna começou a refazer as energias. Enquanto se enxugava, teve vontade de cantar. Sentia uma espécie de euforia e encheu a cabeça de pensamentos positivos. Estava ótima. Demorou-se bastante em secar os cabelos e depois dedicou mais cinco minutos ao penteado. Enrolou-se na toalha e foi ao roupeiro escolher um vestido simples e elegante, aquele azul com raias brancas, que lhe caía bem no corpo.

Quando abriu a porta da cozinha para respirar o ar fresco da manhã, olhou o relógio. Seis horas. Muito cedo. Chaveou a porta e saiu para um passeio até a praia.

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Um clarão vermelho-azulado para o lado do ocidente anunciava o nascimento do sol. As plantas estavam úmidas de orvalho. As pequenas flores amarelas, que proliferavam junto à grama, guardavam carinhosamente gotículas de água. Era como se elas chorassem de emoção e de prazer ao receberem as primeiras luzes doiradas do alvorecer. De pés descalços, caminhou e correu pelas areias da praia. A brisa refrescante do amanhecer fazia-lhe bem à mente e alegrava seus pensamentos.

Pôs os pés na água do mar. Quase estremeceu de frio. Continuou a caminhar pela praia.

O sol agora bateu em cheio no seu rosto e a calidez matinal deu-lhe novo ânimo. Abriu os braços para abraçar todo o sol que pudesse e respirou fundo por diversas vezes. Quase sem dar-se conta, começou a falar, com os olhos radiantes de luz:

- Sol querido, bom-dia! Vem aos meus braços... Vem ao meu coração e ilumina-o. Tu és meu amigo, tu me trazes alegria, paz e amor. Por isso, eu abro o meu coração para que tu entres. Vem. Inunda minha alma. Fica comigo. Põe em mim este teu brilho de felicidade. Eu quero ser feliz. Eu quero amar. Eu quero paz. Vem, sol, me acompanha. Dá-me alegria. Alegria. Muita alegria. Acaricia o meu rosto. Sem medo. Beija o meu corpo. Sem medo. Vem, sol querido, eu te amo!

Havia um rebrilho na areia. As águas tornaram-se mais claras. Silvana tomou o caminho da casa. Estava na hora de preparar o café. Maurício estava acordado e meditava. - Um dia - refletia ele - quando o mundo acabar, desaparecerão as religiões, os

credos, os dogmas, os hábitos e costumes, as nacionalidades, tudo. Apenas subsistirá o amor. Porque só o amor é infinito.

- Bom-dia. Está na hora do café - exclamou alegremente Silvana, aparecendo na porta, com a bandeja na mão.

- Bom-dia - respondeu Maurício. - Pelo jeito, hoje você levantou com toda a corda.

- Pois, já fui à praia, passeei, curti o sol, e estou cheia de energias. - Muito bem. Acho que eu também posso caminhar hoje até o mar. O tempo está

bom - observou, acomodando a faca e a xícara na bandeja. Quando os dois saíram em direção à praia, ela perguntou timidamente.

- Quer apoiar-se em mim? - Obrigado. Vou testar minha capacidade física. - Mas, não pode facilitar. - Felizmente, já me sinto restabelecido, exceto, é claro, aqueles hematomas mais

profundos, que ainda inspiram um certo cuidado. No mais, é questão de tempo. Como diz o ditado, devagar se vai ao longe... E vou lhe dizer uma coisa, Silvana: ainda nesta semana chegarei até o farol. Duvida?

- Sei que é forte. Mas, vale também para o senhor aquele ditado bíblico que diz que o mundo não foi feito num dia...

- Pois, para provar-lhe meus conhecimentos de latim, posso acrescentar este: “Natura non facit saltus.” Não arregale os olhos. Vou traduzir para você: a natureza não faz saltos; quer isso dizer que tudo cresce, se desenvolve e se refaz gradativamente, ao natural, sem saltos. É o caso dos meus ferimentos.

- Mas, ninguém está querendo que seus ferimentos cresçam e se desenvolvam...

- Oh, você está espirituosa! Sabe, quando eu estudava no seminário, gostava muito do mar. Saía a nadar ao largo, enfrentando as ondas como se fossem um exército a ser dominado.

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- Eu adoro o mar... - exclamou, a meia voz, a jovem. - Gosta de nadar? Não é isso. Eu adoro o mar porque ele enche meu coração de poesia. Eu sinto o

encantamento do pôr-do-sol refletido nas águas azuladas... Sabe, eu me emociono ao ver a lua banhar-se nas águas à noite... O sol da manhã inundando de luz e de calor as águas e as areias... Ah, a grandeza e o fascínio do mar!

Silvana falava com exaltação, desinibida, como se estivesse sozinha.

Ao chegarem em casa, perto do meio-dia, uma grande surpresa os aguardava: diante da porta, conversando animadamente, estavam, na espera, Marisete e Josias.

- Oh, que surpresa! - gritou Maurício, levantando as mãos em sinal de alegria. Quis apressar o passo, mas tropeçou. Por sorte, Silvana chegou a tempo de o segurar.

- Calma, padre Maurício - sorriu o velho Josias. A alegria foi total. Trouxeram as cadeiras para o pátio ensolarado e, enquanto os

três conversavam animadamente, Silvana foi preparar o almoço.

- Eu vou ajudar você - dispôs-se Marisete. - Não, Marisete, fique à vontade. Você está cansada. Deixe o almoço por minha

conta. Marisete, porém, já estava na cozinha. Posso imaginar que você já está saturada

de panelas argumentou sorridente a amiga, tomando as batatas para descascar.

Lá fora, Maurício e Josias teciam considerações, ora sobre a convalescença, ora sobre a situação existente em Alvores.

- O Corrégio, filho do doutor Onofre - comentou Josias esteve por três ou quatro vezes lá na casa paroquial, querendo arrancar, de qualquer maneira, até mesmo com ameaças, notícias sobre o seu paradeiro. Afirmava, todo rompante, principalmente quando estava bêbado, que eu devia saber onde o senhor se encontrava.

- E você? - Eu simplesmente dizia-lhe que o senhor tinha ido viajar e que o resto não era da

conta dele. Não acha? Ora, onde é que se viu! Como se o senhor precisasse dar satisfação a ele de tudo o que faz. Pipocas! O sujeito chegou ao ponto de dizer que me arrancava a barba a unha se não dissesse onde o senhor estava. Nem dei bola. É um fedelho metido a besta...

- Ele não tem idéia do que aconteceu comigo após o atentado? - Creio que chegaram à conclusão, ele e o pai, de que o senhor está vivo e que

agora deveria estar em algum lugar sob os cuidados de Silvana. - Por que Silvana? - Porque é claro que sabem que ela desapareceu de casa. - De fato. E se o porteiro do hospital contou o acontecido naquela noite, as

conjecturas poderiam realmente caminhar para estas suposições. - Se não for indelicada a pergunta, o que é que pretenderia fazer depois de

restabelecido? - Você sabe, Josias, que eu sou um moço decidido e procuro me colocar acima das

maldades e das provocações. Sempre busquei cultivar um espírito desportivo, entende. Para cada elemento ruim que deparo no caminho, encontro cem bons e, por isso, seria incoerência, e até covardia, se a força da maldade pesasse mais na minha balança.

- Então, o senhor voltará para Alvores - concluiu o velho, satisfeito, muito satisfeito.

- Sim, voltarei. Pretendo fazer muita coisa por aquele povo. A conversa foi interrompida por Silvana, que anunciou:

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- O almoço está na mesa. A refeição transcorreu dentro de um ambiente alegre e cordial. Marisete e Josias

contaram que retornariam no dia seguinte, muito cedo.

- Após o almoço, Maurício foi sestear. Estava cansado da caminhada que fizera pela manhã. Os outros três estenderam esteiras no gramado e ficaram apanhando sol. Marisete deu os parabéns à Silvana pela espetacular recuperação do seu paciente. E contou sobre o andamento da instalação do seu ambulatório e da sua nova farmácia. A conversa foi longa e agradável. Eram dezesseis horas quando apareceu Maurício. Silvana ajeitou-lhe um cobertor e travesseiro e ele recostou-se junto do grupo.

Foi servido o chá.

À noite, após a janta, Marisete procurou Maurício e disse-lhe:

- Gostaria de falar um pouco, a sós, com o senhor, se não estiver muito cansado. - Esteja à vontade - respondeu-lhe, sentando-se na cama, com dois travesseiros

acomodados nas costas.

A enfermeira sentou na borda da cama.

- Sabe, padre Maurício, eu gostei muito do senhor, por isso resolvi expor-lhe o meu problema. O senhor é uma personalidade aberta e isso me inspira confiança.

Maurício olhou-a com bondade, encorajando-a a se abrir.

- Eu, como é que vou começar, eu tive há alguns dias um encontro com um rapaz. Sentimo-nos atraídos um pelo outro e fizemos amor. Agora, a menstruação já devia ter vindo e não veio. O senhor me entende? Isso é o fim!

- Por quê? Quem sabe, vocês pudessem casar e ser felizes. Veja, nada há de tão trágico.

- Padre, para que enfeitar a conversa? Para ser mais precisa, já conversei com o rapaz, mas ele não quer nada com nada. Ele amou naquela hora, sem compromissos de vida. Se eu for falar de novo, ele vai dizer que o problema é meu, que ainda não está a fim de casar, que já está numa outra jogada e outras coisas assim. Além disso, nem sei onde é que ele mora e nem me interessa saber. Afinal, eu sou maior de idade, sabia o que estava fazendo. Cabe-me resolver a minha situação. Infelizmente, nesses casos, quem leva a pior é a mulher. Mas, é preciso aprender a ser gente, enfrentar as situações e ir em frente...

- Quem leva a pior ou a melhor? - A melhor?! - exclamou ela, sem entender. - Sim, porque um filho é sempre um mundo de amor e de alegrias. Mas, o que é

que você pensa fazer? - No caso que esteja grávida, eu não posso ter filho agora, não tenho condições,

não quero. Já falei com um médico de Pomelândia e na quinta-feira da semana que vem, às sete horas da manhã, deverei me submeter a uma intervenção especial, lá mesmo no consultório dele, à Rua Ludwig Von Beethoven, 123. Ele me tranqüilizou dizendo que não há nenhum perigo, porque o caso é simples demais. Além disso, afirmou que tem experiência de muitos anos...

- Mas, ao médico não é permitido fazer isso... - Bem, o problema do médico é do médico. Eu é que não vou julgá-lo e nem

dizer-lhe o que é que deve ou não deve fazer. Só ouvi falarem que ele faz este tipo de trabalho por uma frustração, uma espécie de recalque. É que nunca conseguiu ter filhos. Talvez sinta alguma compensação doentia, sei lá...

- E você?

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- Eu lhe pergunto: quando é gerada a criatura humana? - No instante em que se unem o espermatozóide e o óvulo? Depois de um dia?

Dez dias? Trinta dias? Se o senhor não tem certeza, não afirme nada...

- Você já pensou o quanto lhe seria agradecida essa criaturinha se você a fizesse viver? Você seria feliz e ela seria feliz. A maternidade é um milagre que escapa ao poder humano. Quem pode condenar um ser inocente que se forma no seio materno? Ninguém.

- Talvez você tenha medo de que seja obstáculo para um futuro casamento. A sociedade mudará de opinião. Se tem tanta gente que adora cachorros e gatos e pássaros e papagaios e os cria em casa, é fácil compreender que uma criaturinha humana que pensa, que sorri, que chora, que fala, que brinca, traz muito mais alegria e felicidade!

- Mas, padre, quem é que disse que eu estou grávida? Eu não sei e nem quero saber. O que eu quero é livrar-me deste pesadelo. As palavras são muito lindas para os outros... Mas para quem toca...

- E o que é que você quer de mim? Marisete ficou um instante cabisbaixa. Respirou fundo e falou:

- Eu... tenho medo de morrer. Já ouvi falar de hemorragias... infecções... coisas assim. Eu tenho medo. Muito medo. Eu não quero morrer.

- E você acha que eu evitaria uma tragédia? - Eu não tenho pai, nem mãe. A jovem estava com lágrimas nos olhos.

- O senhor me inspira confiança e coragem - continuou ela. Havia um tom de súplica em sua voz:

- Pelo amor de Deus, não me deixe sozinha. Peço-lhe essa caridade. Por tudo o que lhe fiz.

Maurício ficou triste. Sentia tanta pena da jovem e uma vontade imensa de estar a seu lado, dando-lhe força. Mas, e a Igreja?

- Marisete - murmurou ele, muito pesaroso e contrariado você sabe o que a Igreja pensa disso... e eu sou sacerdote...

- Não quero saber a opinião da Igreja e nem estou falando com o sacerdote - cortou ela, pondo toda a força do desespero na voz. - Eu procuro um amigo, me entenda! - exclamou, em prantos. Maurício permaneceu em silêncio.

De repente, sem esperar pela resposta, a jovem saiu do quarto, ferida em seus brios. Sentiu vergonha de ter suplicado e chorado. Foi para o banheiro.

Às cinco horas da manhã, Josias e Marisete entraram no quarto de Maurício para as despedidas.

- Seja muito feliz, Marisete. Vou rezar por você! - disse Dollá, apertando com suavidade a mão direita da jovem.

- O senhor acha que rezar vai resolver o meu caso? - perguntou ela, com profunda amargura nos olhos.

Josias se despediu, desejando rápidas melhoras ao amigo.

Quando o carro desapareceu na curva, o silêncio voltou a reinar naquele recanto da Praia do Pontal.

...

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No domingo de manhã, Silvana levou Maurício à missa, de carro. Era um dia ensolarado. Durante a liturgia, ele sentiu seu pensamento voltar a Alvores. Viu-se diante do altar, a igreja toda iluminada, ele se apresentando ao povo pela primeira vez. Uma jovem no primeiro banco. Loira. Insistente. Triste.

- Vamos, padre Maurício, a missa terminou. Era Silvana que o puxava pela manga do casaco, despertando-o da sua profunda

abstração.

Depois de um breve colóquio com o Cristo, o jovem sacerdote retirou-se da igreja.

- Que você acha de irmos hoje à tarde até as rochas do farol? - perguntou Maurício, durante o retorno.

- Se o senhor se sentir com coragem, seria ótimo - Respondeu ela. - Pois bem, vou dar uma descansadinha agora até a hora do almoço e depois

sairemos. Silvana procurou retardar ao máximo a hora do almoço a fim de dar tempo para

que ele descansasse bastante. Passava de uma hora da tarde quando almoçaram. O sol penetrava em profusão pela janela da cozinha. A temperatura estava amena. Talvez uns vinte graus.

Quando iniciaram a caminhada, Silvana colheu uma flor de margarida e disse, muito disposta:

- Agora vamos fazer o jogo do bem-me-quer e mal-me-quer. E começou a desfolhar, uma a uma, as pétalas brancas da flor, dizendo,

alternadamente, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer...

Quando chegou perto das últimas pétalas, exclamou:

- E agora? Falta bem pouquinho... - Bem, agora - sugeriu ele, sorridente - agora jogue fora a flor e pergunte-se a si

mesma. - Está bem, vou me perguntar: Silvana, será que o Maurício gosta de você? Olha,

o Maurício é um cara muito legal, ele gosta de todo mundo e, como Silvana faz parte do mundo, é certo que ele gosta de Silvana. Se ele ama Silvana? Bem, aí a coisa complica, porque ele se esforça para mostrar só uma face, a face do padre. É que ele, do alto de sua Teologia, nunca quis se aventurar a descer a considerações simples, essas que crescem a poucos centímetros do chão, assim como a flor da margarida. A margarida é uma flor que dá a vinte centímetros da terra, mas até hoje nenhum teólogo conseguiu fazer uma flor igual... O Maurício ainda não aprendeu que o verdadeiro padre é aquele que sofre, sente, vive, queima, sobe, cai, levanta, tropeça, porque este é capaz de compreender, de dar uma palavra que alcance as feridas do coração... O Maurício, na sua luta ferrenha contra os exércitos de Dom Quixote, prefere acabar endurecendo-se, insensibilizando-se, pregando-se numa estátua de cem metros de altura para ser glorificado pelos seus. O Maurício não quer ser homem, ele quer ser Deus. E desse Deus eu tenho medo...

A jovem calou-se. E se deu conta de que a conversa fora longe demais. Por que entrar de novo por esses caminhos? - perguntou-se intimamente. - Até parece uma obsessão - foi a resposta que encontrou para si mesma.

Maurício, calmamente, começou a falar:

- Mas, se a Silvana prosseguir em seu raciocínio, deverá dizer que não foi só a Teologia e nem só a Igreja quem colocou Maurício num pedestal, se é que isso pode ter

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acontecido. Foi o povo também. Foi a multiplicação das silvanas, dos joãos, dos pedros... Foi a rudeza e a intolerância deles, que jamais admitiram que o padre pudesse descer de seu pedestal... E o policiamento implacável em cima de suas atitudes talvez o tenham acuado para dentro da sacristia. Se houve a desumanização do padre, de quem é a culpa?

- Da margarida - respondeu ela, dando uma gargalhada. - Essa flor danada só veio criar caso. Vamos bater nela? - Não - respondeu Maurício, descontraindo-se - numa flor não se bate nem com

uma mulher. Eram três horas da tarde quando chegaram no alto do farol. Desceram até a

beirada do precipício formado pelas rochas. Lá embaixo, as ondas azuladas açoitavam com veemência os rochedos, fazendo saltar para o ar um chuvisco de escumas. Era lindo o panorama. O gramado exuberante estendia-se até a dobra da rocha. O sol da meia-tarde iluminava e aquecia a paisagem, pondo paz e felicidade no coração dos dois. Algumas gaivotas iam e vinham sobre as ondas, dando um toque de encantamento e emotividade ao cenário. Valera a pena o percurso de cerca de três quilômetros, por entre dunas, cerrados e mangues. Os dois caminharam em silêncio ao longo da borda do precipício, sentindo as emoções da aventura.

- Que lindo! - exclamou Maurício, sentindo o frescor do vento revolver a camisa azul-marinho aberta ao peito.

- Nunca vi uma coisa igual! - explodiu, entusiasmada, a jovem. Sentaram-se a alguns metros das rochas e do farol. O gramado era suave como

um tapete. Maurício permaneceu alguns minutos sentado, deleitando-se com a eloqüente visão que se descortinava daquela altura. Depois, estirou-se na grama, num gesto de quem se espreguiça e busca um estado de relax.

Silvana permaneceu sentada. Continuava embevecida diante de tanta poesia. O ambiente era todo feito de um silêncio majestoso. Apenas lá embaixo o mar fluía e refluía contra as rochas, numa batalha ruidosa que duraria até o fim dos tempos.

- Que bom estarmos aqui - falou Maurício, abrindo os braços sobre a grama. Esta frase lembrou-lhe um trecho do Evangelho que narra o acontecimento da

transfiguração de Jesus, diante de Pedro, Tiago e João, ocorrida exatamente no alto de um monte, talvez tão lindo como esse... Pedro, enlouquecido pela ventura, exclamou: Que bom estarmos aqui. Façamos três tendas para morarmos neste lugar...

Quando Maurício abriu os olhos, não viu mais Silvana. Ergueu-se um pouco. Lá estava ela, numa encosta escarpada, tentando apanhar alguma coisa. Muito feliz, veio correndo, com algo na mão.

- Um presentinho. Era uma linda flor amarelinha, de perfume delicado e, ao mesmo tempo, agreste.

Maurício contemplou, por algum tempo, a florzinha e depois colocou-a no bolsinho da camisa.

- Muito obrigado - murmurou ele, feliz e emocionado. - Que Deus faça você sempre assim, como é. - Qualquer pessoa faria isso... - observou a jovem, recostando-se ao lado dele e

beijando-lhe a mão direita. - Qualquer pessoa não - contestou Maurício. - Há muita gente que não enxerga

nem sequer um edifício de vinte andares. A agitação, o recrudescimento da luta pela subsistência e a extremada

valorização dos bens econômicos, fazem com que uma imensa multidão se atropele, se

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escorrace e se embruteça cada vez mais. Quase ninguém mais encontra tempo para si, para as belezas da vida, para a contemplação de uma flor... A dureza do asfalto e do cimento matam a sensibilidade e transformam o homem em pedra.

E, passando a mão sobre os cabelos dela, acrescentou com ternura:

- Deus queira que esta criaturinha aqui sempre se sensibilize aos encantos de uma flor!

Silvana sentiu, como num passe de mágica, uma doce emoção dentro de si. Seguiu por essa réstia de sol e penetrou nas profundezas iluminadas do seu coração. Não sabia explicar nem para si o que estava curtindo. Era como uma imensa felicidade radiante; era, assim, como se uma fada juntasse as emoções do amor, da alegria, da felicidade, do prazer, da exaltação interior numa única fusão e explodisse tudo dentro do seu coração. O reino dos céus deve ser isso dentro de mim - pensou ela.

E deu-se conta, talvez pela primeira vez, que o amor é um estado de ser; transcende o corpo e surge como essência do ser humano. Com relações sexuais ou sem relações sexuais, este estado de alma é o próprio paraíso, a extrema felicidade de viver, o auto bastar-se, a plenitude infinita incandescendo o finito...

- Você está em êxtase! - impressionou-se Maurício. A jovem voltou a si. Na verdade, não estivera fora de si. Pelo contrário, fora o

momento em que estivera mais dentro de si, em contato com a Luz, com o Sol deslumbrante.

- Sinto-me mais feliz do que nunca. Até parece que o meu corpo está em estado de luz.

As estrelas já brilhavam no céu quando Maurício e Silvana chegaram em casa. O vento mudara e o frio cortante os fazia tiritar. Era uma das mudanças bruscas de temperatura, tão comuns nessa estação do ano.

Silvana preparou o banho quente para Mauricio e foi pôr a chaleira no fogo. Haviam combinado tomar café nesta noite. Após o banho, Maurício sentiu-se reconfortado. O calor voltara a aquecer-lhe o corpo.

Silvana já o esperava para os curativos. Eram apenas quatro, todos eles de menor importância.

Lá fora, o frio esfuziava gelado.

Enquanto ele descansava, após os curativos, Silvana foi ao banho. A água quente deu-lhe enorme prazer e demorou-se bastante debaixo do chuveiro. Aos poucos, o frio que comprimia seus ossos, como uma prensa de ferro, foi cedendo e o calor a excitou. Sorria e solvejava, enquanto a espuma do sabonete se desfazia ao contato com a água cálida.

Enxugou-se, agasalhou-se bem e foi preparar o café. Devia ser um café reforçado. Afinal, haviam caminhado bastante e o frio era intenso.

- Puxa vida, que frio bárbaro! - exclamou Silvana, levando café, pão, bolachas, mel, salame, queijo e manteiga, numa bandeja, para o quarto de Maurício.

- Eu poderia ter ido à cozinha - disse ele, ao ver a jovem entrar com toda aquela bateria.

- Nada disso. O frio está terrível. O senhor poderia transformar-se no mais novo picolé da Praia do Pontal. Vamos tomar aqui o café. Certo?

- Para mim, a idéia não é má - sorriu ele, fazendo uma alegre careta. café. - Nem para mim - ajuntou ela.

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A bandeja foi colocada sobre a cama, entre os dois. - Cansou muito, hoje? - perguntou ela, servindo-lhe o Bastante. - Chega de

açúcar? - Está bom. Agora pode deixar, que eu mesmo me sirvo de pão com manteiga.

Silvana, então, tratou de servir-se também. - Se parar o vento, pode dar geada - comentou ela. - Eis o mais novo barômetro do Pontal. - O senhor não entende de vento?

- Claro, existem três espécies de ventos: vento em popa, vento-virado e vento a favor.

- E vento norte, não existe? - tornou ela, rindo-se. - Há três espécies de vento norte: mormaço, preguiça e mau humor. - Já que o senhor está inspirado, me diga algumas espécies de vento sul.

- Pois... há também três espécies de vento sul: frio, resfriado e gripe. - Agora só queria saber se homem que fala do vento é ventoinha ou ventureiro. - Puxa, que menina sabida! Você é um monumento filosófico! Os dois riram bastante. A conversa decorreu alegre e descontraída, durante o

café. Terminada a refeição, Silvana levou a bandeja para a cozinha e voltou a fim de reforçar as cobertas da cama dele. Tomou o cobertor que estava em sua cama e o estendeu sobre Maurício.

- E você? - perguntou ele, preocupado. - Tem mais aí no roupeiro. Apagou a luz do quarto e foi lavar a louça. A casa estava totalmente fechada, mas

o vento assobiava pelas frestas das janelas. Ela estava muito feliz. Seus pensamentos perambulavam pelas bordas das rochas... Sentia uma onda de emoção positiva que ia e vinha, dentro de si, como as ondas do mar. Recordou os instantes maravilhosos que viveu na colina verde do farol. Feita a limpeza na cozinha, o melhor programa era deitar. O frio estava de triturar os ossos. Entrou no quarto. Vestiu o chambre de lã e desprendeu os cabelos, que lhe caíram soltos pelos ombros. Foi até o guarda-roupa buscar um cobertor. Não havia nenhum.

- E agora? - pensou ela.

Sentou-se na cama. Não se animou a deitar: um lençol e uma colcha de chenil de nada adiantariam contra o frio que a esmagava.

Criou coragem e acordou Maurício:

- Não tem mais cobertor no roupeiro. Por favor, eu estou morrendo de frio. - E, então, quer que lhe dê a unção dos enfermos? - Não, quero parte nesses cobertores. Tomou o seu travesseiro e deitou do lado dele, refugiando-se debaixo das

cobertas.

- A Filosofia não ensina a solucionar os problemas decorrentes de massas geladas que se deslocam no ar, chamadas, pela plebe ignara, de frio? - perguntou ele, com um sorriso nos lábios.

- Claro. Foi a Filosofia socialista que me ensinou que o que é seu é meu também, por isso cá estou eu participando de suas cobertas. E a Teologia... o que é que diz?

- A Teologia condena a aproximação da mulher. - Condena, mas gosta. Aliás, nem poderia condenar. O homem não nasceu da

mulher? E o nascimento não é fruto do amor? E o amor não foi criado por Deus?

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Ela se divertia com a ambigüidade das colocações.

- E o que é o amor? - indagou ele, sem dar-se por vencido. - A jovem ficou por instantes em silêncio. De súbito, um sorriso brejeiro brincou

en seus lábios. Aproximou-se dele e disse:

- Por palavras não sei explicar, mas vou dar-lhe um exemplo. Jamais alguém ficou sabendo que tipo de exemplo aconteceu nessa noite fria da

Praia do Pontal.

... De manhã cedo, quando Maurício acordou, Silvana já tinha levantado e fazia

ginástica diante da janela.

- Bom dia - disse ela, bem animada e alegre. - Bom dia - respondeu ele, com certa tensão na voz e no rosto - Parece que você não está bem - murmurou ela, apreensiva. - Gostaria que voltássemos para Alvores, após o café. - É essa a sua vontade? - É. Silvana quedou-se pensativa.

- Está bem - disse, por fim, com voz fraca e trêmula. Foi, então, para a cozinha. Pôs a chaleira no fogão.

Aproveitou o tempo do banho dele para arrumar as malas e deixar a casa em ordem. Quando ele saiu do banho, estava mais disposto e disse:

- Pode tomar seu banho tranqüilamente, que eu mesmo vou preparar o café. - Obrigada. Ela não controlava a perplexidade. Entrou no banheiro, ansiosa por ficar sozinha.

A água quente do chuveiro começou a reanimá-la lentamente. Enquanto passava o sabonete pelo corpo, buscou pôr ordem em seus pensamentos. E se fixou na repentina decisão de Maurício. Claro, um dia teriam que retornar, e esse dia estava próximo, mas por que teria que ser assim? Lembrou-se de tudo que acontecera à noite. Era uma recordação agradável e excitante.

À medida que a água lhe esfriava a cabeça, foi se dando conta de uma coisa: Maurício deve ter-se sentido derrotado pelo corpo. Por certo, ele entendeu que perdera uma batalha e não queria perder a guerra. Mas, que batalha? ! Que guerra? !

Antes que a frustração e a melancolia se abatessem sobre seu ânimo novamente, Silvana ligou, com raiva, a água fria e, quase batendo os queixos, terminou de enxaguar-se.

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CAPÍTULO 5

Caía a tarde. Alvores já se recolhia para dentro de suas casas. Maurício atravessou calmamente a praça. As folhas secas do outono moviam-se à sua passagem. O céu acinzentado prenunciava chuva. Entrou na igreja pela porta da frente. Caminhou vagarosamente através do corredor central, envolvido pela penumbra do templo. Lá no fundo, a luzinha escarlate dava um toque de mistério ao ambiente. O grande Cristo de madeira, ao lado do altar, parecia estar sendo afagado e aquecido pela névoa avermelhada.

Apenas o ruído seco de seus passos ecoava pela nave. Ultrapassou os degraus da mesa da comunhão e parou, por instantes, diante do altar. Atravessou a sacristia e saiu para o pátio interno existente entre a igreja e a casa paroquial. Percorreu a galeria exterior e abriu a porta do seu gabinete de trabalho. A sala estava à meia-luz. Correu as cortinas e ficou a olhar vagamente para a rua.

Acendeu a luz. Sobre a escrivaninha havia uma carta, com as armas do bispado de Rosandur. Tomou-a, sem pressa, e abriu-a.

O vigário-Geral, Monsenhor Teófilo Santoro, o convocava, em nome de Dom Filpo Verenski, para uma audiência, no dia 12 de junho, às 10 horas, quando seriam tratados assuntos pertinentes à sua pessoa. “Pertinentes...” Deu uma risadinha amarela. Agora não lhe restava dúvida de que, durante a sua ausência, a trama campeara livre e estendera seus tentáculos para mais longe.

Voltou à janela e se quedou longo tempo abismado em seus próprios pensamentos.

Tornou a atravessar a galeria e foi cumprimentar dona Ermelinda. Quanta festa! Josias, que trabalhava na despensa, fazendo limpeza geral, ao ouvir a voz do padre Maurício, saiu às pressas para dar-lhe as boas-vindas.

- Graças a Deus que está bem! - exclamou ele, todo sorrisos. - E vamos recomeçar o trabalho com ânimo renovado. - Isto mesmo. Há muito que fazer. Ontem estive visitando as famílias da margem

esquerda do lago. - Muito bem! - elogiou-o Maurício. - Precisamos ir ao encontro dessa gente

humilde. Também eles são filhos de Deus e merecem nosso apoio e nossa palavra. - Ah, antes que me esqueça, veio uma carta para o senhor. Está sobre a

escrivaninha. Tenho maus pressentimentos... Já a li. Maurício ficou em silêncio. O velho não quis perguntar nada; afinal, se ele

quisesse dizer alguma coisa do conteúdo, falaria.

Mas, o silêncio confirmou-lhe de que boa coisa não havia dentro daquele envelope com as armas do bispado de Rosandur.

À noite, Dollá pensou em deitar cedo. Passou os olhos pelas páginas dos jornais, folheou a Revista Teológica, que acabara de chegar, e demorou-se um pouco na leitura de um boletim da Conferência Nacional dos Bispos.

Tilintou a campainha. Era Silvana. - Boa noite - saudou ela. - Boa noite, Silvana.

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- E os curativos? Não sou mais ninguém? - Olhe, Silvana, já tomei muito do seu tempo. Você fez demais. Talvez, até, se

tenha prejudicado em alguma disciplina escolar por minha causa. Agora, a dona Ermelinda vai-se encarregar dos curativos. Eu nem sei como agradecer a sua bondade. Mas, sente-se, por favor.

- Não tem nada que agradecer, padre Maurício. Eu faço tudo para... pagar os meus pecados - sorriu ela, sem jeito. Mas, mudando de assunto, meus pais me disseram que o doutor Onofre lhes contou que o Bispo vai mandar chamá-lo.

- Eu sei - confirmou ele, sem dar maior importância ao assunto. - O senhor sabe? - Recebi carta do bispado. - E aí? - indagou, ansiosamente, a jovem. - É isto aí. Veremos o que eles querem... - Ai, meu Deus! - exclamou ela. - Que não seja nada contra o senhor! - Calma, Silvana. Para que se afogar em copo d’água? Toda a maldade que vem

de fora só atinge a quem abre o coração para recebê-la. Eu prefiro abrir o meu coração para a paz, para a bondade, para a alegria, para o amor, para as flores, para as belezas da vida. Pode alguém roubar-me o brilho das estrelas e a poesia das noites de luar? Não, Silvana, não carregue, por favor, a maldade dos outros dentro de você, porque, então sim, você ficará perturbada e a vida se tornará um inferno.

- É... O senhor fala bonito... - Acredite em mim, Silvana. - Eu soube, lá em casa, que o doutor esteve falando pessoalmente com o Bispo.

Boa coisa não pode ter dito. Aquele homem é uma cascavel. - É simplesmente um pobre infeliz que está lutando contra si mesmo - corrigiu

Maurício. - Bem, o senhor deve estar muito cansado. Até amanhã. Ao chegar à porta, fez de conta que se lembrou de algo:

- Ah, aqui tem uma coisa para o senhor! Pôs um papel cor-de-rosa nas mãos de Maurício e desapareceu na escuridão da

noite.

Era um bilhetinho escrito à mão:

“Pensei muito no senhor. Estou com medo de que venha a sofrer por minha causa. Perdoe-me por tudo. Adeus. Silvana”.

. . . Marisete olhou pela décima vez o relógio, com extremo nervosismo. Estava

sozinha na sala de espera. As paredes pintadas de cinza-escuro pareciam cair sobre ela. Um conjunto de móveis trançados de palha era tudo o que havia ali.

A jovem não conseguia ficar dois minutos sentada. De vez em quando alguns gemidos agudos atravessavam a porta do consultório e perfuravam seus ouvidos, deixando-a trêmula e apavorada. Sentia-se como uma condenada. O coração ofegante e as pupilas dilatadas deixavam nela a marca do terror. Cada grito lancinante que vinha lá de dentro dava-lhe a impressão de que estavam matando alguém.

- Ai, meu Deus! - exclamava à meia voz. - Por que é que o padre Maurício não veio? Será que faz parte dos ensinamentos de Jesus abandonar as pessoas nas horas em que elas mais necessitam? O que faço é certo? É errado?

Não estou pedindo o julgamento de ninguém: estou pedindo socorro. Não pedi que ele assumisse o meu ato; só queria que me ajudasse, me fizesse companhia...

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Coração de pedra... Padre insensível... Em nome de quê e de quem?... De uma tese teológica?... De um preconceito?...

Os gritos continuavam a atravessar a sala e ela se encolhia de pavor. Tinha vontade de fugir. Quase sem se dar conta, sentou-se numa cadeira e seus lábios pálidos começaram a suplicar a misericórdia e a proteção de Deus...

De repente, a porta de entrada se abriu. Era Maurício que chegava. - Ah, que bom! Que bom! - exclamou ela, atirando-se nos braços dele. - Que

bom!... Que bom!... As lágrimas rolavam abundantes das faces da jovem.

- Você pensou bem, Marisete? - Perguntou ele, preocupado. - Por favor, padre Maurício, não me torture. O médico abriu a porta:

- Pode passar. A jovem tomou Maurício pela mão e entrou por um corredor escuro.

- Por aqui - assinalou secamente o doutor, passando à frente dos dois e dirigindo-se para uma sala à esquerda do corredor.

No centro da sala, uma mesa de exames coberta com roupa branca. Ao lado, um armário de metal, já enferrujado nas regiões descascadas, mostrava, através de suas portas abertas, uma gama variada de instrumentos cirúrgicos. A parede antigamente era amarela. À direita de um velho roupeiro, bastante carcomido pelo tempo, havia um pequeno banheiro para o qual Marisete foi conduzida pela enfermeira, a fim de despir-se da cintura para baixo.

O médico pôs-se a preparar os instrumentos. Permanecia de costas. Melhor, pois Maurício não estava a fim de conversar.

Marisete foi deitada de costas, devendo permanecer em posição incômoda, uma vez que as extremidades ficavam caídas na ponta da mesa. Ela tremia de pavor. E agarrava-se fortemente nas mãos de Maurício.

- Não tenha medo. Relaxe - disse o médico, com voz gutural e encatarrada. - Médico?... Maurício não acreditava que aquele homem era médico. Não usava

luvas e parecia displicente na esterilização dos instrumentos. Ficou sabendo, depois, que se passava por médico, mas não era. A clínica era clandestina.

O homem colocou uma bacia embaixo, no chão, e sentou-se como se fosse lavar os pés da moça. Ia começar a operação.

- O senhor não vai anestesiá-la? - perguntou Maurício, preocupado. - Eu sei o que faço, seu moço - respondeu ele, mal-humorado. E acrescentou: -

Você é que devia saber o que fazia... Maurício teve vontade de largar um soco no velho. Depois de aplicar uma

pomada anestésica, ele atarrachou um aparelho e começou o trabalho em silêncio, de cara fechada.

Marisete de vez em quando contorcia-se.

De repente, ela sentiu um violento pique na altura do útero, deu um grito de dor e desmaiou. Uma torrente de sangue desandou sobre a bacia.

O homem ficou com a frente do avental totalmente respingada de vermelho. Agora sim parecia um açougueiro. E Maurício teve vontade de dizer-lhe isso.

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Ao ver o estado da moça, o homem levantou-se e saiu da sala. A enfermeira e Maurício puseram-se a abanar Marisete, que estava ainda desfalecida. Quando ela voltou a si, ele reiniciou o trabalho.

A paciente gemia. E se agarrava em Maurício como se fosse morrer.

- Ajude-me, pelo amor de Deus, que vou morrer! - exclamou ela, em desespero, a certa altura.

Mas o operador prosseguia, implacável e frio. Maurício tentava dar coragem à jovem. Ela suspirou fundo. Seus lábios moviam-se suavemente. Ela rezava. Sabe Deus com quanto fervor.

- Coragem, Marisete - murmurou ele - já vai terminar. - Ai! - urrou ela, de repente. - Doutor, pelo amor de Deus não rasgue o meu útero.

Pare com isso, que eu não agüento mais. Pare... Pare... Pare... Maurício sentiu que o pulso começou a sumir e tornou a abanar a jovem.

O operador continuava impassível. Quando ela voltou a si novamente, estava pálida e sem forças.

- Não se assuste. Tudo vai indo bem - resmungou o homem, com sua voz de taquara rachada.

O sangue escorria às soltas. Maurício teve medo que a hemorragia não pudesse ser estancada, como acontecia em muitos casos, levando a pessoa à morte. E começou a assustar-se realmente:

- Doutor, o senhor tem certeza de que vai tudo bem mesmo? - Ei, menino - rosnou ele - até você está com medo? Dê coragem a ela... e fique

quieto. Maurício agradeceu intimamente a Deus por ter vindo. Sua presença nesta hora

representava uma obra de caridade. E imaginava o desespero de Marisete se estivesse agora sozinha, em perigo de vida, longe de sua cidade. Se o que ela estava fazendo era errado, agora não vinha ao caso. Era problema dela e somente a ela caberia prestar contas a Deus e dar as suas razões. Não lhe cabia julgá-la. O que ele estava fazendo? O ato humano e cristão de assisti-la e de inspirar-lhe confiança em Deus diante de seus sofrimentos e do eventual perigo de morte. Lembrou aquele velho axioma teológico que se deve odiar o pecado, mas amar o pecador.

Minutos depois, o médico colocou um chumaço de algodão e disse que estava tudo pronto.

A enfermeira ajudou Marisete a sentar-se e, depois, a vestir-se.

- Agora fique sentada aqui até que se sinta com coragem e com forças para ir embora - disse ela, e retirou-se para ver como estava a outra paciente, que ainda gemia na sala do lado. Marisete estava fraca, tonta, o mundo girando ao seu redor. Maurício ficou de pé, junto dela, com as mãos pousadas delicadamente sobre seus ombros. Finalmente, depois de meia hora de descanso, ela quis ir embora. O homem nem se dera o trabalho de tirar a bacia da sala e ela olhava com horror para aquela sangueira toda.

A enfermeira os conduziu até outro compartimento, próximo da saída, e disse:

- Podem ficar à vontade. Quando acharem que dá para ir embora é só sair por esta porta. Se precisarem de mim, por favor me chamem. Retirou-se.

Quando Marisete sentiu-se reanimada, perguntou:

- Como é que o senhor veio?

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- A Silvana me trouxe de carro, mas não sabe qual a razão da minha vinda até esta cidade. Disse-lhe que tinha um assunto importante a resolver e que me apanhasse diante da estação rodoviária por volta das nove horas. Mas, se você achar melhor, voltaremos de ônibus.

- Não, Silvana é uma boa amiga. Quando senti que o senhor não viria, lembrei-me que devia ter pedido a ajuda dela. É uma moça estudada e esclarecida... Quanto falta para as nove horas?

- Vinte minutos. - Então podemos ir. Já está tudo pago. - Apóie-se em mim - sugeriu ele. - Você está muito fraca. Em poucos minutos, o táxi deixou-os diante da rodoviária.

- Não sei como agradecer-lhe. O senhor é maravilhoso. Sensível. Amigo. Que Deus o conserve sempre assim. Fiz o que devia, como gente, como amigo, como cristão. De resto, nunca esquecerei o que você fez por mim... Creio que devo a minha vida a você... Eu também... - suspirou ela.

Silvana já estava lá e ficou surpresa ao ver Marisete com Maurício.

- O que é que houve?! Você está tão pálida... – admirou-se Silvana, quando a amiga entrou no carro.

Assim que o veículo arrancou na direção de Alvores, a enfermeira começou a contar-lhe, com muito esforço na voz:

- Você se lembra quando eu lhe falei do que acontecera durante um encontro que eu tive com um rapaz... Durante algum tempo houve silêncio dentro do carro.

. . . A reunião do bispado de Rosandur estava marcada para as nove horas da

manhã. Faltavam seis minutos quando o padre Maurício tocou a campainha do palácio episcopal e foi seguindo por um corredor decorado no estilo barroco. Atravessou uma ampla varanda.

- Pode descer esta escada, que já o estão esperando na sala de reuniões, ali embaixo - disse a recepcionista que, pelo porte, devia ser uma freira, muito embora trajasse como leiga.

Uma escada bastante escura, forrada de tapete bordô, o conduziu diretamente a um salão de estilo medieval. A primeira impressão de Maurício foi a de que transformaram um porão antigo, feito de paredes rústicas e janelas ovaladas, em sala de conferências.

Por trás das janelas, podiam-se ver trepadeiras, cactos e folhagens, que tornavam o recinto obscurecido, como se fosse um antro de conjurações. Mas, era local silencioso e calmo. No fundo da parede, um grande crucificado, em madeira de cedro. O piso estava forrado com tapete de veludo da mesma cor da escada.

O Bispo e o Conselho Episcopal já estavam a postos em torno de uma longa mesa oval, situada no centro da sala. Tanto os rostos como o ambiente pareciam sérios e circunspectos.

Quando Maurício se aproximou, apontaram-lhe uma cadeira e, de imediato, o senhor Bispo fez o sinal da cruz em voz alta, no que foi acompanhado por todos. Mauricio sentia-se como um peixe fora d’água e sua mente não conseguia concentrar-se na invocação do Espírito Santo, feita pelo Vigário-Geral, Monsenhor Teófilo Santoro, cinqüenta e cinco anos de idade, cabelos brancos de tanto ambicionar o báculo episcopal, segundo se comentava, à boca pequena, nos meios clericais.

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Maurício levou quase um susto, quando o ruído abafado das cadeiras o trouxe à realidade.

Dom Filpo, Bispo de Rosandur, de sessenta e três anos de idade, rosto decaído pelo tempo e corpo flácido pelo diabetes que o torturava há mais de vinte anos, tomou a palavra, no centro da mesa, e falou, com voz serena, mas cansada:

Convocamos esta reunião, com a presença de nosso irmão Maurício, animados pelo zeloso intuito de resguardá-lo das insídias do demônio e de proteger o bom nome da santa Igreja. Que as bênçãos de Deus nos acompanhem e o divino Espírito Santo nos ilumine.

- Amém! - Responderam todos, em coro. - Passo, então, a palavra ao Vigário-Geral, Monsenhor Teófilo. -O Vigário-Geral mexeu-se na cadeira, colocou os óculos, puxou uma folha de

papel para junto de si, e começou:

“Reverendíssimo padre Maurício Dollá. Sua Excelência Reverendíssima o senhor Bispo Diocesano e seu insigne Conselho Presbiteral, tomados de profunda amargura e compaixão, sentem-se no indeclinável e sacrossanto dever de se dirigir a Vossa Reverendíssima no sentido de apontar-lhe o melhor caminho para a sua salvação e para a defesa do rebanho de Cristo. As medidas que este Conselho torriou, é escusado dizer, visam unicamente o seu bem, porquanto estamos todos nós empenhados em livrá-lo das penas do inferno e dar-lhe oportunidade de, longe dos tentáculos do mundo, poder, pela oração e pela penitência, retornar ao seio imaculado do Senhor. Por um dever de justiça, cumpre-nos apontar-lhe as razões das medidas que serão tomadas em seu benefício:

1) Ao tomar posse da igreja de Alvores fez sermão incondizente com sua dignidade.

2) Desfez o noivado de dois jovens em vias de casamento, mudando, com intenções escusas, a idéia da jovem.

3) Dissolveu e ridicularizou seu próprio Conselho Paroquial, que tentava abrir-lhe os olhos sobre a má imagem que sua presença provocava junto ao povo da cidade.

4) E, por último, teria desaparecido da cidade com uma jovem, deixando o rebanho, que lhe fora confiado, à mercê da própria sorte.

Desta forma, ficou determinado que Vossa Reverendíssima deverá retirar-se de Alvores com a máxima brevidade e partir para o pequeno povoado de Espigão do Inferno, onde, convivendo com a pobreza, a miséria, a solidão e a ignorância, possa reaver sua alma para Deus.

Com as bênçãos do Senhor, Dom Filpo Verenski, Bispo de Rosandur e seu Conselho Episcopal.”

Maurício, de início, ficou branco, como se estivesse no último grau de leucemia.

Aos poucos, porém, à medida que a leitura ia se desenrolando com aquela voz monótona e fanhosa do Vigário-Geral, foi cobrando ânimo e sua mente começou a trabalhar em sua própria defesa. Lembrou-se de sua fama como inteligência brilhante nos tempos de seminário e tratou de alinhar suas considerações. Afinal, respeito não era sinônimo de subserviência, pensou ele, e, embora ainda um tanto perturbado, aproveitou o momento em que o senhor Bispo perguntou se tinha algo a dizer, para dirigir-se aos presentes:

Em primeiro lugar, elogio o espírito de justiça e de amor para comigo, bem como o incontestável interesse pelo meu bem e pela minha salvação eterna.

O Vigário-Geral percebeu os ressaibos de ironia que azedavam as palavras de Maurício e engoliu em seco.

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Apenas - continuou Maurício - gostaria de lembrar que a justiça mais elementar determina que, antes de ser dado o veredicto, sejam ouvidas as partes interessadas e envolvidas. Eu não fui ouvido. E poderia simplesmente citar-lhes o velho axioma latino, aprendido nos bancos do seminário: quid gratis datur, gratis negatur. O que se afirma gratuitamente, gratuitamente pode ser negado, para os que já esqueceram o latim. Mas, apenas para raciocinarmos, suponhamos que eu tenha incorrido nos deslizes mencionados. Não seria de se supor que a santa mãe Igreja e seus ministros agissem com amor e compreensão, procurando ajudar, apoiar, dar tanto maior amparo quanto maiores forem os problemas? Como agiu a mãe de Santo Agostinho? Não ficou rezando e esperando, com paciência e extremo amor, durante dezoito anos? Ou alguma biografia narra que ela o expulsou de casa, já aos primeiros desmandos do filho? E o pai do filho pródigo, cuja história é tão maravilhosamente contada por Jesus, jogou o filho porta afora e nunca mais o quis ver, ou foi tudo diferente? E, agora, aqui, o que fez a nossa santa mãe Igreja? Enxotou seu filho, assumindo os interesses dos agressores e acusadores.

- Com licença - interveio o Vigário-Geral - nós tomamos posição tendo em vista que o senhor fez...

- E quem disse que eu fiz? - cortou, com veemência, Maurício. - Creio que já é tempo de começarmos a praticar, em casa, pelo menos a justiça, se não temos forças suficientes para praticarmos o amor e a tolerância.

- Mas, o nosso julgamento - observou, com calma e firmeza, o Cônego Valfredo Sprintz, de setenta e dois anos de idade, tirando o cachimbo da boca - se baseou em fatos concretos, já do domínio público.

- Julgamento?! - revidou Maurício, com ânimo. - Se me permite, citarei aqui de cor e salteado as palavras textuais de Jesus Cristo, segundo o depoimento histórico do evangelista Mateus, capítulo sete, versículos de um a quatro: “Não julgueis e não sereis julgados. Pois, como julgardes, assim sereis julgados; e com a medida com que medirdes medir-vos-ão a vós. Por que vês um argueiro no olho do teu irmão, ao passo que não enxergas a trave de teu próprio olho? Ou, como dizes a teu irmão: Deixa-me tirar-te do olho o argueiro - quando tens uma trave em teu próprio?”

- Meus parabéns por sua aguda memória e conhecimento bíblico - acentuou, com velada malícia, o Vigário-Geral - mas o senhor há de convir que a nossa missão é seguir as normas da Igreja...

- As normas da Igreja, posso admitir que estejam seguindo, mas não as normas e ensinamentos de Jesus Cristo.

- Por quê? - perguntou, curioso, o Cônego Giusepe Saleroni, que estava sentado à direita do Vigário-Geral.

- Porque - respondeu Maurício - porque Jesus Cristo, ao que me consta, agiu e ensinou bem diferente do que os senhores estão fazendo. Jesus Cristo não condenou a adúltera e os senhores estão condenando; Jesus atraiu carinhosamente para si a pecadora Madalena e os senhores estão me enxotando para os cafundós do inferno; Jesus Cristo não julgou o ladrão que estava sendo crucificado a seu lado, na cruz, e lhe ofereceu o paraíso em troca de um simples gesto de bondade, e os senhores me julgaram arbitrariamente e me condenaram às traças; Jesus Cristo...

- Sim, mas escute um pouquinho - interrompeu-o o Vigário-Geral, com visíveis sinais de inquietação - não se trata aqui de um cristão qualquer. O senhor é um ministro de Deus, foi colocado como luz para o povo e, por isso, o seu caso é muito mais sério, pois poderá pôr a perder o rebanho de Cristo...

- Muito bem - tornou o padre Dollá - e São Pedro não foi nomeado por Cristo seu sucessor e primeiro papa? Não seria, então, sobre ele que cairiam os olhares dos demais

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apóstolos e dos cristãos de todas as gerações? E, no entanto, na hora em que devia testemunhar o Cristo, negou-o covardemente por várias vezes.

Cristo o condenou? Não o condenou e nem o destituiu. E Judas Iscariotes não era um apóstolo? Não cometeu a barbaridade de trair o Mestre pelo preço idiota de trinta moedas? E Jesus o condenou e o expulsou da Igreja? Pelo contrário, teve palavras de carinho, tentando tocar-lhe o coração, na hora em que era traído por um beijo.

Pelo que vejo, essa Igreja, que os senhores, tão ciosamente, procuram defender e resguardar, não é a mesma Igreja que foi fundada por Jesus. Ou eu não entendo mais nada.

Houve um silêncio pesado na sala.

Maurício dobrou com calma a folha de papel que estava diante dele - todos os participantes da reunião tinham uma folha de papel diante de si - e pôde ver, incrustada na madeira da mesa, a imagem medieval de um crucificado. Só agora percebeu que cada lugar tinha um crucificado embutido na mesa. Esta visão inesperada o surpreendeu. Olhou para o Cristo e ficou sem saber se o Mestre aprovara ou desaprovara suas palavras.

- O senhor está nervoso e isso é compreensível. Era o Vigário-Geral que retomava a palavra, dando um tom de benevolência à

voz.

Quem, no entanto, estava nervoso era o próprio Vigário Geral, que continuou incisivo:

- Mas, nós precisamos pôr um ponto final nesta discussão. O senhor quer-nos passar por ridículos, mas não esteja certo de que o conseguirá.

Em nome do senhor Bispo e em nome do Conselho Presbiteral, eu lhe pergunto: o senhor vai negar-se a ir para onde foi transferido?

- Não. - Ainda bem - descansou o Vigário-Geral, enxugando a testa com o lenço. - Com uma condição - observou Maurício. - Diga - adiantou-se o Cônego Sprintz, largando uma gostosa baforada de

cachimbo pelos ares. - Com a condição de que cada um dos senhores que se considerar inocente assine

embaixo do documento. - Isto é ridículo! - explodiu o Vigário-Geral. - Pois é - sorriu Maurício - pimenta nos olhos dos outros é colírio. - É um desrespeito à autoridade! - irritou-se Monsenhor Libério Magnus. Era a

primeira vez que falava e explodira como uma bomba-relógio. - Lembre-se que a autoridade é a voz de Deus. Ou não aprendeu isso no

seminário? - acentuou o Cônego Giusepe Salerom. - Voz de Deus?! - Maurício franziu os sobrolhos, com pena. - Antes que a

autoridade entenda que está falando pela voz de Deus deve se inquietar muito. Muito mesmo. Eu nunca acreditei que, pelo simples fato de alguém ser autoridade, Deus faça a besteira de encampar todas as afirmações e assinar embaixo. Precisamente por ser autoridade é que ela deve se perguntar mil vezes se esta é a vontade de Deus. É muito fácil largar a responsabilidade em cima do Pai Eterno. Deus tem costa larga, mas exige um mínimo de bom senso da parte de seus ministros. E é bom a gente se indagar friamente se, por trás do escudo de Deus, não se ocultam motivos de ressentimento, de inveja, de frustração, de sadismo, de ambições, de vingança... Imaginem os senhores

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quantos milagres por dia Deus teria que fazer se quisesse tornar suas as afirmações e determinações das autoridades.

O senhor Bispo, que permanecera calado e atento durante todo o tempo, levantou, com bondade, a mão direita, como a pedir paz, e falou com afabilidade:

- Dileto filho, nós o amamos e o respeitamos muito. Nunca nos animou pisar sobre sua dignidade. Mas, entenda que o senhor é engrenagem de uma grande estrutura, que é a Igreja. Se essa engrenagem se romper, somos obrigados, inclusive por questão de sobrevivência, de trocá-la por outra, mesmo com todo o carinho que devotamos a essa engrenagem estragada...

O Bispo calou-se.

Maurício sentiu um fogo irresistível dentro de si e não se conteve:

- Com todo o respeito, Excelência, se comparamos a Igreja com uma máquina, poderemos ser triturados pela máquina. Para mim, Igreja é vida, Igreja é gente, Igreja é contingência, Igreja é caminho. Não me refiro à Igreja como termo abstrato, significando o depósito da Fé, mas essa massa humana caminhando, tropeçando, caindo, se erguendo, se ajudando e seguindo sempre o cajado do Cristo que aponta o destino eterno da Felicidade. Fico-lhe muito grato, no entanto, por ter-me chamado de filho dileto. Chamando-me de filho, colocou-se como pai. Pois, o que faria um pai, nesta situação? Pai, assim entendo eu, é quem busca dar abrigo ao filho e protegê-lo até onde seja possível. Ou estou errado? Eu acredito que todo padre que erra, sabe que erra e sofre por isso. Não creio mesmo que seja necessário apontar-lhe o dedo em riste. Ninguém tem certeza de que desta água não beberá amanhã. Mas, o que muitas vezes acontece é que existe uma matilha de lobos vorazes à procura de qualquer deslize para deleitar-se no prazer de devorar as vítimas.

E, então, pode acontecer o que aconteceu aqui: quem tem certeza da veracidade das acusações que me imputam? Quero que me entendam: não estou dizendo que existe nos senhores má vontade, ou maldade. Neste caso, também eu estaria julgando indevidamente. Penso, no entanto, que poderia haver mais bondade, compreensão, tolerância, perdão, diálogo, espírito de justiça e, principalmente, amor. Sim, amor, por que não? O amor - disse o Mestre - perdoa todos os pecados. Acredito, até, que existam todas essas qualidades em cada um, mas cometeram o grande erro de ouvir só um sino e por aí tomar a decisão. Acontece que diante dos senhores está um filho, um irmão cheio de boa vontade, inspirado pelos mesmos ideais. Alguém veio como pai, como irmão, como amigo, perguntar-me alguma coisa? E, se alguma pessoa mal-intencionada inventou tudo isso de que me acusam?

O Bispo baixou os olhos. Era um bom homem e devia estar refletindo profundamente em tudo o que ouvira. O Cônego Sprintz continuava a lançar nuvens de fumaça em direção ao teto. Havia mal-estar entre os presentes. Alguns se olhavam, dando a entender que a reunião deveria ser encerrada. O Vigário-Geral sentiu a sua falha e isso o martirizava. Na verdade, em toda a sua vida, e nas dezenas de casos semelhantes, jamais a situação descambara para um impasse de tal porte. Na maioria absoluta, os padres recebiam a transferência como condenados e saíam a cumprir as determinações, com medo de que qualquer palavra pudesse significar revolta contra a autoridade e isso decretasse o ostracismo total e a condenação eterna.

Depois de alguns momentos de angústia generalizada, Maurício tomou novamente a palavra:

- Mas, eu partirei para o Espigão do Inferno.

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O Monsenhor Teófilo Santoro, Vigário-Geral, esqueceu-se de conter a tempo um sorriso vitorioso, que foi alojar-se no canto direito da boca, deformando-a por instantes.

O padre Maurício levantou-se rápido, para alívio geral, cumprimentou a assembléia com uma breve inclinação na cabeça e retirou-se.

Às dezoito horas, Maurício estava em Alvores. Atravessou novamente a praça fronteira à matriz, agora totalmente suja de folhas amarelentas e secas, e entrou na igreja. Apenas duas lâmpadas e a lamparina ao lado do altar-mor estavam acesas. Ele apreciava a penumbra da igreja, porque lhe enchia a alma de paz e predispunha seu espírito para a prece. Mas, não estava com vontade de rezar.

Estava, isto sim, com vontade de xingar Nosso Senhor. Bem que tudo poderia ser diferente se, acima de tudo, vigorasse no mundo a lei do amor. Mas, não. Primeiro, deveria vir a disciplina, depois a rigidez de conduta, depois a perfeição, depois o espírito de oração, depois o espírito de imolação e, depois, se sobrasse espaço e tempo, viria o amor. Ao olhar, porém, para o enorme Cristo crucificado, percebeu que ele nada tinha a ver com a forma pela qual alguns dos seus ministros se conduziam. Seus braços abertos ainda insistiam com veemência que tudo o que ele queria era amor, somente amor, acima de tudo amor. Sim, porque só o amor é infinito.

Transpôs a sacristia e seguiu para o seu gabinete. Josias o cumprimentou e avisou-o de que a Silvana estivera à sua procura e passaria mais tarde. Maurício estava tão amargurado, que abençoou este recado.

Subiu ao quarto e, displicentemente, foi recolhendo seus pertences mais indispensáveis e os colocou na mala.

Quando o velho sacristão o informou de que a jovem estava à sua espera, Maurício avisou que não jantaria em casa e se dirigiu para o gabinete.

Antes de mais nada, Silvana percebeu a tristeza que envolvia o semblante dele.

- Mas, o que houve? ! - exclamou perplexa e penalizada. - Tudo bem, Silvana. Depois de um instante de hesitação:

- Você tem algum compromisso esta noite? - Não. - Gostaria de sair um pouco com você. Talvez poderíamos dar um passeio de

barco no lago. Preciso sair, desapertar-me, senão eu rebento... - Vamos - disse ela, levantando-se pressurosa. - A acadêmica o conduziu até o pequeno ancoradouro do lago, onde,

normalmente, havia dezenas de barcos encostados.

Dollá desamarrou a corda que prendia o Gaivota, um barco bastante amplo, enxuto, com três remos no seu interior.

O lago estava calmo. No céu, a lua brincava de noiva com sua imensa veste branca, que descia até a superfície das águas. As estrelas luziam no alto e os seus piscares se refletiam sobre o lago, como se debaixo das águas estivessem realizando uma imensa procissão de velas acesas.

Era uma noite suave e nostálgica. Enquanto o barco deslizava, quase sem fazer ruído, os chorões ficavam lá na beirada, debruçados, com suas largas cabeleiras soltas, dando a impressão de profetas da noite a chorar sobre o muro cristalino do lago.

- O senhor está triste... - sussurrou a jovem.

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- Já está passando! - respondeu Maurício, remando devagarinho, como se não quisesse perturbar a paz do lago.

Silvana olhou para o rosto dele e viu que estava molhado de lágrimas.

- Eu estou do seu lado - disse ela suavemente, tirando-lhe o remo das mãos. Maurício tentava evitar as lágrimas.

- Imagino o quanto estará sofrendo! - exclamou ela, tentando enxugar-lhe o rosto. Ela estava ansiosa por perguntar-lhe o que acontecera, mas sentiu que era mais

delicado não colocar o bisturi numa ferida que ainda sangrava muito.

Depois de algum silêncio, Maurício desabafou:

- Você nem imagina o quanto vale a gente ter um ombro para se apoiar na hora em que a casa cai.

Silvana estava tão perto dele, mas, ao mesmo tempo, sentia que estavam separados por um abismo do tamanho dos mistérios que fervilhavam na alma dele. Que poderia fazer senão dar-lhe apoio, muito apoio, neste momento?

Aos poucos, o sufocamento e a angústia terrível, que o prensavam como uma barra de ferro, foram cedendo suas amarras e ele passou a sentir-se aliviado. Era como se um vendaval tivesse penetrado dentro dele, revirado tudo ao avesso, derrubado, estraçalhado, retorcido e afogado numa avalanche avassaladora. Mas, o vendaval estava passando, as águas baixavam, e, agora, ele já podia ver algumas estrelas no céu de sua vida.

- Silvana - falou, por fim, Maurício, colocando a mão direita da jovem entre as suas mãos - muito obrigado pela sua companhia. Se não fosse uma comparação inadmissível, eu estava me vendo como o Mestre na noite do Jardim das Oliveiras, abandonado pelos discípulos, ao sabor dos seus próprios sofrimentos.

Quando a gente ouve e sente o coração das pessoas, talvez se tenha que dizer com Jesus que “pecadores e meretrizes entrarão no reino de Deus antes que vós”.

Silvana se esforçava pra entender o que ele dizia, mas não conseguia ligar coisa com coisa. Tinha, porém, a impressão de sentir-se como pára-raios dele e isso a tornava ainda mais solidária e acolhedora.

- Você tem qualidades admiráveis - reconheceu Maurício. - Só existe um mundo bom dentro de si, por isso você violentará os céus e alcançará a tenda do Pai, digam os outros o que disserem.

- Não sei se mereço esses elogios, porque você é uma pessoa com quem todos se sentem bem. Você é alegre, inteligente, simpático, agradável, bondoso, coração nobre, irradiante de luz. Sim, Maurício, qualquer pessoa faria por você o que estou fazendo. Onde quer que você vá, sempre estará cercado de pessoas que lhe querem muito, porque sua aura é atraente, é toda feita de luz radiante.

Maurício sentiu-se confortado pelas palavras da jovem. E disse:

- Peço a Deus que assim seja. Mas, você pode ter a certeza de que longe é um lugar que não existe. Onde quer que eu esteja, rezarei muito por você.

- Puxa, até parece que você vai embora daqui... Não desejo que você vá embora. Nunca.

Havia um tom de medo e de súplica nas suas palavras.

Maurício ficou silencioso, contemplando a noite enluarada e a calma campestre do lago mergulhado na escuridão da noite. O barco estava parado. A poesia e o encantamento da paisagem trouxeram uma profunda emoção de paz nos dois.

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Seus olhos estavam cheios de céu, de estrelas, de luar, de lago, e ambos abençoaram a vida, dizendo-se em silêncio que o amor e a solidariedade sempre realizam o milagre de perfumar e florir até mesmo caminhos pedrentos e espinhosos.

Com certeza, neste instante, se imaginaram habitando uma daquelas estrelas que brilhavam no céu, onde só existia luz e felicidade.

Permaneceram longo tempo no convés do barco e Maurício acreditou mais uma vez que, para cada lágrima de sofrimento, sempre há uma lágrima de felicidade.

… Sábado, à tardinha, Silvana procurou Maurício. Ouvira seus pais falarem em

novo pároco para Alvores. A conversa partira do doutor Onofre. Somente agora ela começava a entender o significado das palavras de Maurício, quando estavam no barco, e a causa dos seus sentimentos misteriosos. Enquanto aguardava na portaria, uma frase percutia como martelo em sua mente: “Longe é um lugar que não existe. Onde quer que eu esteja, rezarei muito por você”.

A porta abriu-se.

- Ah, seu Josias, boa-tarde! O padre Maurício? Ouvi comentários de que seria substituído e teria que ir embora. Claro que são boatos, seu Josias, mas...

- Não são boatos, Silvana - disse, com tristeza, o velho. - O padre Maurício não está mais em Alvores. Foi embora para muito longe... - Ah, não! - exclamou a jovem, atônita e pálida. Depois, tentando segurar as lágrimas, tornou a perguntar:

- Para onde? - Foi transferido. - Sim, mas para onde? - insistiu ela, angustiada e nervosa. - Lamento muito, Silvana, mas eu tive que prometer por Deus Nosso Senhor que

nada diria a ninguém. - Nem a mim? - Nem a você. Sinto muito. Muito mesmo. Josias era sincero em suas palavras e Silvana respeitou o seu silêncio, mesmo

porque seria inútil insistir. Ficaram calados por algum tempo. Havia muita tristeza no semblante de ambos. Parecia que tudo não passara de um breve sonho, agora desfeito repentinamente como uma bolha de sabão, sem deixar vestígios.

Quando a jovem dispôs-se a sair, o velho meteu a mão no bolso do casaco e tirou um envelope:

- Ele deixou isto para você. - Muito obrigada, seu Josias. Até amanhã. Silvana tomou o envelope e deixou a casa paroquial. Caminhou lentamente,

desanimada, em direção à praça. As folhas secas, amontoadas ao longo dos passeios, e o céu cinzento, carregavam ainda mais a sua tristeza. Sentou-se num banco. A praça estava deserta e úmida. Abriu o envelope. Dentro estava a florzinha amarela que ela havia apanhado nas rochas da Praia do Pontal. Somente a flor. Apenas a flor. Mas, bastava. Estava dito tudo. Fechou os olhos e ficou pensando, sonhando, devaneando. Somente quando os sinos badalaram as ave-marias é que a jovem voltou a si e saiu andando pesadamente. Ao chegar em casa, trancou-se no quarto. Odiaria qualquer espécie de conversa. Tudo nela eram reminiscências de um passado tão perto, mas que lhe parecia tão distante. Nada conseguia aliviar o tremendo vazio que se formara no seu interior.

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Atirou-se na cama e lá ficou a contemplar a florzinha amarela, com os olhos marejados de lágrimas.

No dia seguinte, o povo encheu novamente a igreja para receber o novo pároco. O segundo depois da morte do padre Charles.

Era o Monsenhor Herculano Máximo, de sessenta e cinco anos de idade. Rígido, austero, de pouca conversa. Como o exigia a situação.

Silvana cometeu a ingenuidade de perguntar ao Monsenhor pelo paradeiro do padre Maurício e foi enxotada com um xingão seco e ferino, que lhe ficou ardendo na alma como bofetada.

À noite, após a missa do novo pároco, Corrégio voltou a procurar Silvana, como se agora o caminho estivesse finalmente aberto para uma reconciliação. Por mais que a mãe batesse à porta de seu quarto, ela não saiu.

- Mas, ela será minha! - resmungou o rapaz e foi embora.

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CAPÍTULO 6

Depois de três dias de viagem exaustiva e monótona nos velhos trens que demandavam à fronteira, finalmente o padre Maurício chegou ao pequeno povoado de Espigão do Inferno. Empoeirado até os miolos, com a barba por fazer, rosto caído de cansaço, ele parecia um raro exemplar da fauna humana. Estava todo doído das longas horas de sacolejamento dos vagões. Gente pobre e mal-encarada entrava e saía do trem, como se a chegada do comboio fosse uma festa naquele lugar. Alguns casebres alinhavam-se ao longo da estação. Lá no alto, a cerca de um quilômetro para cima de uma encosta árida e cheia de erosões, podia ver a torre gosmenta e envelhecida da igrejinha.

- Só pode ser lá - pensou ele. - Não viu nenhum carro. Apenas uma carroça puxada por dois cavalos, que logo

se encheu de gente e partiu, levantando grossa coluna de poeira.

Maurício tentou fazer uma idéia da região. Era tudo seco, envelhecido, estranho. Teve a impressão de ter descido de um disco voador num mundo sombrio e inóspito. As sombras pardas do entardecer abalaram ainda mais o seu ânimo. Teve vontade de chorar.

E de esperar aí, sentado nos bancos imundos da estação, o próximo trem e retornar para a sua terra natal. Subitamente, porém, sacudiu o torpor, agarrou com raiva a mala, colocou-a nas costas e pôs-se a subir a encosta íngreme e pedrenta.

No bar da esquina, alguns homens barbudos e rotos ficaram na porta a observar, com curiosidade, aquele estranho, que vestia diferente e que andava diferente.

Teve que descansar várias vezes. A subida era difícil devido ao pedregulho solto na terra esbrugada.

No alto do Espigão, só a velha igrejinha e, ao lado, a casa do padre, encardida, vetusta, as paredes quase totalmente descascadas. Apenas uma árvore, caindo de podre, à esquerda da casa. A desolação da natureza era total e deprimente. Lá embaixo, no entanto, do outro lado do morro, um imenso lago, comprimido pelas rochas abruptas, mudava um pouco a agressividade da paisagem.

Na enseada, muitos barcos, alguns miseráveis, outros mais bem equipados e até mesmo com velas enfunadas. Ao longo da enseada, estendendo-se para o norte, enfileiravam-se os casebres dos pescadores.

Espigão do Inferno vivia dos minguados recursos da pesca. A terra, madrasta e seca, nada produzia, a não ser algumas ervas ralas, mais para a banda direita do lago, onde uma dezena de cabras tentavam defender a vida.

Maurício bateu à porta da casa do padre. Uma senhora idosa veio atender. - Boa-tarde. Sou o novo padre destinado a esta paróquia. - Ah, sim - respondeu a senhora - um momento que vou avisar o padre Keningan. Instantes depois, voltou a senhora, abriu bem a porta e pediu para Maurício

entrar. Era realmente uma casa muito pobre. Móveis carcomidos pelo tempo e pelo calor. Atravessou um pequeno corredor escuro, em que o assoalho rangia soturnamente, e foi conduzido ao quarto do padre Keningan.

Ele estava deitado. Velho, doente, magro, cabelos brancos em desalinho, com dois sulcos largos na testa. A barba estaria por fazer há duas semanas. Seus olhos, no entanto, luziam com energia. Recostou-se na cabeceira da cama, que rangeu como madeira velha, e olhou, com surpresa, para o recém-vindo:

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- Você?! - exclamou, com voz rouca e acabada. - Boa-tarde, padre Konrad Keningan. Vim aqui ajudá-lo. Keningan continuou a fitá-lo com uma expressão quase de pavor. Maurício ficou

intrigado:

- Por que é que o senhor ficou admirado? - Você?! - tornou ele, com espanto. - Você, um moço forte e cheio de vida, foi

mandado para este fim de mundo miserável? ! - Mas, o senhor merece um ajudante - tornou Maurício, com bondade - afinal, já

trabalhou tanto e não podia ficar aqui abandonado. Fique certo de que seremos bons amigos.

- Ah, meu filho, agora é tarde. Já estou acabado. Não sirvo nem para companheiro. Sou nervoso, rabugento... E o que é pior: essas pedras de Espigão do Inferno já endureceram o meu coração. Quer saber de uma coisa? Eu já não presto mais para nada.

Naquele quarto malcheiroso, o padre Keningan dava a impressão de um traste apodrecido. O colchão de palha de milho chegava até a levantar pó, quando ele se mexia bastante. À direita da cama, uma velha cômoda com quatro gavetas caindo aos pedaços.

Do lado esquerdo, um velho criado-mudo, com alguns vidros de remédio e um copo, não muito limpo. O breviário, a bíblia e o terço estavam empilhados atrás dos remédios. Acima da cama, a parede descascada, com um crucificado preso num prego retorcido para cima. O roupeiro, semi-aberto, tinha duas velhas batinas, algumas roupas remendadas e um par de botinas grosseiras.

Maurício percebeu que muita coisa devia ser feita de imediato. Não era possível deixar um ser humano nesta petição de miséria, ainda mais tratando-se de um irmão de religião.

É... Você deve estar-se perguntando como é que eu vim acabar os dias por aqui, neste inferno tórrido e agreste...

- O senhor é um herói - acentuou Maurício, impressionado com o que via. - Um condenado, meu caro - explodiu Keningan. – Um condenado. Por causa do

meu temperamento rígido e perfeccionista, o Bispo perdeu a paciência e me mandou comer o pó que o diabo amassou aqui neste deserto de fogo...

E quer que eu lhe diga mais? - prosseguiu o velho, com voz arfante e pesada. – Tenho certeza de que não foi a piedade do Bispo que lhe mandou para cá...

Depois de segundos de silêncio, ele puxou a respiração do fundo dos pulmões e bradou exaltado:

- Você também é um condenado! O velho caiu pesadamente sobre si e começou a arfar, sufocando-se. Maurício o

socorreu com presteza, tomando-o pelas costas e erguendo-o um pouco a fim de aliviar a respiração. Keningan estava pálido como uma vela. O rosto salpicado de gotículas de suor.

Quando Maurício quis estendê-lo novamente na cama, ele resmungou, com aspereza:

- Deixe que eu deito sozinho. Não sou inválido. Você ainda vai me ver atravessar o lago Tiruê a nado...

Fechou os olhos e permaneceu imóvel, como se estivesse dormindo.

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Maurício retirou-se do quarto. A mulher estava na cozinha e ele começou a colher dados:

- Você é empregada da casa paroquial? - Não, senhor. - Ele não tem empregada? - Não, senhor. - Então, que é que você faz aqui? - Eu faço o que posso, senhor padre. Aqui não pára empregada nenhuma. O padre

é muito nervoso. Ele quer tudo do jeito dele. Além disso, o pior é que ele tem uma doença ruim e ninguém está a fim de.. O senhor sabe, não é?

- Sim, sim - respondeu Dollá, com vontade de dizer que não sabia coisa nenhuma. - Eu, o senhor sabe, não é, tenho família e não posso ficar aqui todo o tempo...

Mas, a gente vem aqui sempre que dá no jeito, pra não deixar esse pobre homem aí jogado às traças, como cachorro empestado...

- E o médico? - Olha, seu padre, ele passa por aqui a cada dois ou três meses mais ou menos, não

é... Bem, como já está escurecendo, se o senhor me permite, não é, vou tomando o rumo da minha casa. Meu marido deve estar voltando da pesca e ainda não preparei a janta. Mas, se o senhor precisar de mim, não é, mande-me chamar. Eu moro na terceira casa de quem desce para o lago, assim pendendo para a direita, não é. Eu sou a dona Racinda.

A mulher já estava na porta, quando deu uma rápida parada, voltou-se, e falou:

- Ah, já ia me esquecendo: em cima do fogão está a janta! Sobre um velho fogão à lenha havia uma panela e uma chaleira encardida. À

esquerda do fogão, uma mesa surrada e duas cadeiras de palha. Mais adiante, um armário antigo, fechado com tramela de madeira. Na parede, acima da mesa, um quadro encascurrado da Última Ceia.

Levantou a tampa da panela. Um pouco de arroz e três batatas-doce requentando era o que havia. Ativou o fogo. Levou, então, as batatas e o arroz para Keningan e disse:

- Enquanto o senhor come, vou preparar um chazinho. - Com licença.

Sem se perturbar com a expressão azeda e reprovatória do doente, voltou para a cozinha. Fez uma espécie de reconhecimento da situação. A pobreza era total. Um pouquinho de açúcar, de sal, de arroz, um pão bastante envelhecido, banha, salame, uma latinha de café e um pequeno pacote de chá. Nada mais encontrou. No meio disso tudo, os talheres amontoados.

Durante o chá, Keningan traçou as primeiras determinações para o novo ajudante:

Amanhã o senhor poderá visitar a capela de São Paulo, na costa oeste do lago. Daí, basta seguir dois quilômetros por água e chegará até o pequeno povoado de Navegantes. Faz muitos meses que essa pobre gente não recebe a visita do padre. Também, de que jeito? - xingou ele com raiva. - Virado num saco podre aqui, como é que eu poderia ir ver aquela gente?

- Padre Keningan - ponderou calmamente Maurício - o primeiro cristão que deve ser atendido... é o senhor.

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- Eu sou padre e sei me entender com Deus Nosso Senhor. Vá ver aqueles miseráveis, que nascem, se ajuntam e morrem no pecado!

Maurício procurou acalmá-lo:

- Claro, padre Keningan, toda essa gente será atendida. Mas, como cristão e como irmão seu, antes de tudo preciso dar-lhe um modo de vida mais humano e mais digno.

- O quê?! - vociferou ele, ofegante. - Você, um padre jovem, sadio, inteligente, ficar aqui cuidando de um pobre velho imprestável?! Isso não! Seria abominável desperdício de forças e de tempo.

As últimas palavras mal-e-mal saíram da garganta, pois o velho sentiu faltar-lhe o ar e começou a agitar-se desesperadamente na cama. Maurício acudiu-o novamente, abanando o rosto com um pedaço de revista que encontrou sobre a cômoda. Quando o doente recuperou o fôlego, deixou-se cair exausto na cama e fechou os olhos.

O calor atravessou a noite. Apenas pela madrugada refrescou um pouco. Não afeito a temperaturas tão elevadas, Maurício levantou cedo, preparou o café para o doente e desceu até a enseada do lago a fim de falar com Racinda sobre a possibilidade de conseguir uma jovem para trabalhar na casa paroquial e dar assistência ao padre Keningan.

Racinda o acompanhou pelas casas. Ninguém se dispunha a ir morar lá em cima. A situação do padre Keningan era por demais conhecida. Maurício não desanimou. Era indispensável arranjar alguém para que a vida do enfermo se tornasse mais humana. Finalmente, depois de percorrer quase todos os casebres, conseguiu a jovem Eliane Somat, de dezoito anos, que concordou e teve o consentimento dos pais, com a condição de retornar, à tardinha, para casa. Já era muita coisa.

Quando o padre Keningan viu a moça e o padre Maurício de calças arregaçadas, metidos numa limpeza geral, teve novo acesso de irritação e quis saber com que dinheiro o povo iria pagar a empregada.

- Isso deixe para mim - respondeu amavelmente Maurício. - À tarde, vieram mais duas senhoras, vizinhas da Eliane, para ajudar na limpeza.

Depois de sacar carradas de lixo, teias de aranha e pó, puseram-se a lavar todas as dependências da casa. Maurício provava a capacidade de seus músculos puxando a água do poço.

O quarto do padre Keningan foi limpado de canto a canto. As gavetas da cômoda repregadas e as roupas, já emboloradas no roupeiro, foram retiradas, escovadas e colocadas ao sol. Era quase ao fim da tarde quando conseguiram terminar a limpeza. As roupas sujas e encardidas ficaram para ser lavadas no dia seguinte.

Agora sim dava gosto penetrar no quarto do doente. A cozinha também ficou mais decente. O quarto de Maurício tornou-se habitável. Não tinha mais aquele cheiro agudo e azedo de bolor.

Aos poucos, Maurício foi ensinando a Eliane a cuidar melhor do doente; mandou trocar as roupas de cama pelo menos de três em três dias, e até deu-lhe as dicas para alguns pratos diferentes de comida. Ao fim de alguns dias, até Keningan achou que assim estava bem melhor.

No domingo, quando o sininho da igreja bateu para a missa, às nove horas, não havia mais de dez pessoas nos bancos, a maioria gente idosa, de lenço na cabeça.

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Ao aproximar-se do altar, Maurício sentiu um profundo abatimento. Então, viera enterrar sua vida nesses cafundós do inferno para atender uma dúzia de velhas decrépitas?!

Um nó esquisito apertou-lhe a garganta e, somente com muito esforço, conseguiu conscientizar-se do valor de cada criatura humana diante de Deus. Mas, naquela tarde, desceu até a estação de trem e entrou no bar da esquina. Estava regurgitante de pescadores e sentiu que a sua igreja teria que se transferir para esse bar no próximo domingo. Eles eram pescadores de peixes e ele teria que ser pescador de almas, como seu antecessor, o apóstolo Pedro. E, como todo bom pescador, sabia que seria inútil lançar as redes em águas que não têm peixe. Os peixes estavam aí e não lá em cima.

A curiosidade em torno do novo padre era muito grande e não foi difícil fazer amizade com aquela gente. Passou a tarde ouvindo histórias de pescadores e de enchentes terríveis.

Ao chegar em casa, Eliane já estava com o café preparado.

- O padre Keningan já tomou café? - perguntou Maurício. - Sim. - Como passou ele o dia? - Mais ou menos. Começou a sentir fortes dores na região do peito. Fiz-lhe um chá

e parece que ajudou um pouco. - Muito bem, Eliane - elogiou-a ele. - Você é esperta e inteligente. - Mas, acho que não vou ter paciência para agüentar o padre Keningan. O senhor

sabe - disse ela, com certo ressentimento nem em toda a minha vida não ouvi de meus pais as xingações que ele me deu num dia apenas.

- Ele é doente, Eliane, precisa compreender isso. Leve na esportiva. Tente achar graça de tudo e você vai ver que ele não é tão nervoso assim.

- Vou tentar, padre Maurício. Enquanto ele tomava café, ela ficou mais para trás a fitá-lo com admiração.

- Que moço simpático! - pensava com seus botões. - Que é que você está pensando? - perguntou Maurício, vendo que a jovem

permanecia mergulhada em longo silêncio. Alguma coisa não está bem? - Estava simplesmente contemplando o senhor... - disse ela, bastante encabulada. -

Não sei como é que teve coragem de vir parar aqui nesta solidão. - Não há solidão, Eliane. O padre Keningan existe. Você existe. Há tanta gente

esparramada por aí. Todos são filhos de Deus e merecem a presença de um sacerdote.

- Mas, eu acho que o senhor não foi feito para isso aqui... Maurício continuou a tomar seu café em silêncio.

- Já está escurecendo - disse ela. - Vou para casa. Até amanhã. - Até amanhã, Eliane. E muito obrigado por hoje. Eliane desceu a encosta rumo à sua casa, pensando em Maurício. A emoção que

sentiu ao vê-lo pela primeira vez ainda sacudia seu coração. Em vão tentava imaginar por que motivo ele viera parar em Espigão do Inferno.

Claro, podia ser por dever sacerdotal, uma vez que o velho vigário se encontrava enfermo, mas alguma coisa lhe dizia que poderia existir outra causa. Quem sabe, um desengano na vida... Por que não? Afinal, quantas histórias ela tinha ouvido de gente que se decepcionava da vida e se enfiava no isolamento de algum fim de mundo...

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Maurício continuava a tomar calmamente seu café. Sua preocupação agora era conseguir dinheiro para dar melhores condições de sobrevivência ao padre Keningan, pagar a empregada, adquirir alimentos e certos produtos indispensáveis para a casa.

Até agora, o padre Keningan vivia de pequenas esmolas e doações. Já fazia bastante tempo que não se levantava para distribuir os sacramentos e rezar missa dominical na igreja. A não ser algumas pessoas mais chegadas, o povo já pouco se lembrava dele.

Viver de batizados, casamentos, missas, enterros? - perguntava-se Maurício. - Além de o povo estar praticamente desprovido de recursos, poderia dar a impressão de que viera apenas para arrancar dinheiro daquela gente.

Na manhã seguinte, manteve uma longa conversa com a Eliane, enquanto ela esquentava a água e preparava o café.

- Eliane, pelo jeito o povo daqui vive apenas da pesca... - É. A terra não dá nada. Só para o lado da barra do rio Tiruê é que as terras são

um pouco melhores. Ele recostou a cadeira contra a parede e tornou a indagar:

- E o que é que fazem com o peixe? - Muito peixe é vendido seco, em postas. O seu Jerusa, lá do bar, tem sempre

caixas de gelo onde ele põe o peixe que compra e manda de trem para outras localidades. Mas, os negócios são pequenos. O senhor vê, todo mundo vive na pobreza.

- E escola? - Tinha uma lá embaixo, perto da estação, mas está fechada. Falta professora. - E você gostaria de ser professora? - De que jeito? Não tenho dinheiro para estudar. - Isto se resolve. O importante é ter vontade. Depois de um breve silêncio, Maurício teve uma idéia:

- E se eu quisesse ser pescador também, você acha que alguém me emprestaria um barco e me ensinaria o ofício?

- Vou falar com o meu pai. Ele é pescador há mais de quarenta anos. Conhece o lago e o rio Tiruê como a palma das mãos.

- Estou com fome - gritou o padre Keningan, lá do seu quarto. Eliane tratou de preparar às pressas, com certo nervosismo, o café para o doente.

Maurício a observava. Era uma jovem de tez queimada, rosto bem configurado, os cabelos bastante descuidados, a roupa muito simples, mas limpa.

Após o café, Maurício desceu até o lago. Foi apreciar os pescadores que ainda se encontravam na margem preparando ou consertando suas redes e espinhéis.

Com o andar dos dias, passou a pescar com o velho Jonatam, pai da Eliane. Jonatam já beirava os sessenta anos. Sua barba espessa estava salpicada de branco. Os cabelos sim, totalmente encanecidos. Mas, era um homem bem-disposto. Todas as manhãs tomava seu barco e saía ao largo em busca de pescados. Nunca voltara sem nada.

Em conversas que se prolongavam muitas vezes até tarde da noite, Maurício já estudava com os pescadores a possibilidade de estabelecerem uma espécie de cooperativa de peixes a fim de aproveitar melhor o pescado e vendê-lo com mais lucro. Fez algumas viagens de trem com o intuito de conhecer as cidades vizinhas que tivessem possibilidade de consumir o produto. O sistema de acondicionamento do

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peixe foi melhorado e ampliado. O pequeno mundo de Espigão do Inferno ganhava nova vida.

... A notícia correu por toda parte. Neste domingo haveria um acontecimento

inusitado. O novo padre, que poucos conheciam, iria rezar missa no bar do seu Jerusa. Para aquela gente, era a coisa mais incrível do mundo misturar Jesus Cristo com cachaça e rapadura. Além disso, de vez em quando saía cada briga naquele inferninho, de mandar gente para o cemitério.

Às dez horas daquele domingo, o padre Maurício colocou uma mesa no meio do bar e pediu para encostarem as demais junto às paredes do salão. Ele era o primeiro padre que pisava naquele boteco e todo o povo estava surpreso e curioso. A maior parte dos presentes eram homens de idade e rapazes. Poucas mulheres, duas ou três moças, entre elas a Eliane.

Todos olhavam o padre vestir os paramentos na frente deles e achavam tudo muito esquisito. Depois que acenderam uma vela, Maurício levantou o braço, pedindo silêncio. Alguns ainda bebiam e conversavam junto ao balcão.

- Vamos botar a tramela na língua, gente, porque o padre vai começar os acontecimentos!

Era o Jerusa, que batia com um copo no balcão e chamava a atenção dos presentes.

- Meus amigos - começou o padre Maurício, com um sorriso afável nos lábios - vocês devem estar estranhando tudo isso. A igreja está lá em cima e eu venho rezar com vocês aqui dentro de um bar. É que nosso grande Mestre Jesus Cristo, no tempo em que peregrinava pela terra pregando sua mensagem, sempre ia aonde havia gente. Eu sei que o povo gosta de estar aqui, nos domingos, por isso Jesus está aqui, com vocês, neste domingo. E o Mestre está realmente satisfeito. Ele vai passar uns momentos com vocês, vai sentir os sofrimentos e os problemas de cada um, vai ouvir as queixas e as dificuldades, e vai, podem crer, trazer paz e alegria a cada um de vocês. Este bar está se tornando, nesta hora, a casa de Deus. E será abençoado, como todos vocês serão abençoados. Sabem, o Cristo tinha uma simpatia muito especial pelos pescadores. Seus melhores amigos eram pescadores do lago de Genezaré. Certa vez, eles passaram a noite inteira lançando as redes e nada apanharam. De manhã, quando encostavam os barcos, muito desanimados, Jesus apareceu junto deles e pediu para que lançassem as redes novamente. Eles sabiam que de nada adiantaria, pois os esforços da noite foram infrutíferos. Mas, em nome do Mestre, levados pela amizade que os unia ao Mestre, resolveram atender seu pedido. E o incrível aconteceu: fizeram a maior pescaria de todos os tempos. Encheram os barcos a ponto de estarem para afundar, como contam os Evangelhos. Vocês são pescadores e filhos de pescadores: nem imaginam, então, a alegria de Jesus em poder passar estes momentos na convivência agradável de vocês. Que grande amigo e protetor vocês têm! Um amigo vivo, tão vivo como eu, como vocês. Ele quer conversar com cada um; ele quer, acima de tudo, ajudar vocês. Vamos, pois, conversar com o Mestre agora, através desta santa missa. Certo?

Maurício rezou uma missa muito simples, buscando a participação de todos. Tornou o momento muito íntimo e cheio de emoções. E o povo ficou contente. Terminada a cerimônia, passou a trocar idéias sobre a melhor forma de comercializar o peixe. Afinal, era disso que viviam e seria de extrema importância tratarem de vender mais e melhor, para melhorarem o nível de vida, que andava baixo naquelas regiões.

Pela tardinha, o padre Keningan chamou Maurício. Estava nervoso e agitado:

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- Padre, o que é que o senhor fez, esta manhã? É verdade que rezou missa lá naquele inferninho imundo? Eu nunca pus os pés naquele lugar fétido, que explora os pobres coitados na base da cachaça e da briga! Aquilo é um antro de perdição, meu padre. O senhor cometeu uma injúria grave contra a pureza e a divindade de nosso amado Senhor Jesus Cristo, misturando-o com cachaceiros, beberrões, blasfemadores e gente do mais baixo calão... É uma vergonha! Uma desmoralização!

O padre Keningan tremia e o suor descia pelas faces cadavéricas. Era só continuar mais um pouco e teria um ataque.

Maurício gostaria de lembrar ao zeloso velhinho que Jesus Cristo esteve com pescadores, adúlteros e gente de baixo calão. Desceu até eles para buscá-los, como o fez com a ovelha tresmalhada, deixando as noventa e nove, que já estavam bem protegidas no aprisco. Gostaria ainda de dizer que lá embaixo colocou o Cristo no meio dos homens, ao passo que aqui na igreja colocaria o Cristo no meio de paredes vazias.

A Eliane entrou com um chá bem quentinho e saboroso.

Maurício foi à janela. Ficou a contemplar a velha igrejinha encardida e solitária. E imaginou que o mundo e a igreja de Keningan haviam parado no tempo e no espaço.

Não quis permanecer por mais tempo no quarto, para não irritar o velhinho. Quase sem fazer ruído, saiu. Alguns minutos depois, a jovem seguiu os passos dele.

- Sinto muito o que o padre Keningan disse para o senhor... - Ele é doente - ponderou Maurício. - Pode acreditar, o povo está contente com o senhor. Ela falava com suavidade, embora seu rosto denotasse uma palidez febril.

Quando se voltou para ela, Maurício notou que ela não estava bem.

- Você está doente? - perguntou preocupado. - Um pouquinho de dor de cabeça. Não é nada. Se o senhor me permite, volto para

casa e esteja certo de que amanhã estarei bem. Maurício passou a mão com bondade nos cabelos dela e disse:

- Vai, filha, vai descansar. Se amanhã persistir o mal-estar, mande-me chamar. - Até amanhã, padre Maurício. Ele caminhou para os fundos da igreja e quedou-se a contemplar a jovem que

descia a encosta árida e poeirenta. Permaneceu por longo tempo embebendo-se da suavidade do pôr-do-sol. O calor era intenso. Há dois meses que ele estava aí e ainda não havia chovido uma vez sequer. Voltou para dentro de casa, deu uma olhada no doente, que estava dormindo, e saiu a andar solitário em direção à pequena estação de trem. Seus passos eram vagarosos, pouco lhe importando se chegaria lá embaixo ou não. O que ele queria era ficar a sós consigo mesmo. A aridez e a falta de vida naquele lugarejo, de vez em quando o sufocavam e ele buscava o refúgio de sua própria convivência interior, enchendo seu mundo íntimo de pensamentos alegres, otimistas e saudáveis. Era um exercício que sempre dava resultado, e ele persistia fazendo-o, pois não queria que a solidão o transformasse num homem neurótico e revoltado. O exemplo vivo e duro do padre Keningan estava aí diante de seus olhos, e não gostaria que a vida o fizesse um segundo Keningan. Claro, sua mente era bem mais esclarecida e seu mundo mais amplo do que o mundo já esclerosado do padre Keningan.

Agora ele se colocava que o grande drama de qualquer pessoa seria parar no tempo e no espaço, conflitando-se com um mundo em rápidas transformações. Havia algo, no entanto, que o intrigava: por que encontrou tanta dificuldade em conseguir uma pessoa para cuidar do padre Keningan? Afinal, ele dera a sua vida pelo bem deste

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povo e o ajudou a caminhar para o Além, com fé e coragem. É certo que sempre existem, numa comunidade, pessoas caridosas, capazes de doar-se em benefício dos necessitados. Mas, o padre Keningan não tinha ninguém. A não ser aquela senhora, a dona Racinda, que dedicava algumas horas ao padre, para que não morresse abandonado como um cão raivoso. Que haveria de oculto e misterioso nesta cortina de silêncio e isolamento?

. . . Quatro meses se passaram. Eliane, a jovem cheia de vida e de beleza já não era

mais a mesma. Cansava-se facilmente e sentia, ao fim do dia, um esgotamento a ponto de perder as forças cada vez que tinha de subir e descer o morro. Emagrecera muito e seu rosto lívido demonstrava que algo de sério estava se passando com ela. Maurício percebeu a evolução cruel de seu estado de saúde e estava muito preocupado. Chás e remédios estavam sendo tentados, mas os resultados eram mínimos. Pensou, então, em levá-la até a cidade vizinha para uma consulta médica. Felizmente, chegou o doutor que, a cada dois ou três meses, percorria aquela região e, após examinar Keningan, foi ver a Eliane. Maurício contou-lhe tudo sobre a evolução do mal. O médico examinou, tornou a examinar, e ficou por instantes parado, tentando encontrar uma solução para o enigma. Foi para a janela e ficou a apreciar, absorto em suas elocubrações, a calma crepuscular do lago. A casa do velho Jonatam era bem limpa. Poucas peças, o suficiente para o casal, a filha Eliane e o rapaz de vinte anos de idade. O quarto da jovem era bem cuidado. Algumas caixas forradas de pano xadrezado serviam para guardar pertences. Na parede de madeira, um quadro da Virgem Maria com o menino Jesus no colo e um crucifixo bonito que ganhara de presente do padre Maurício.

- E, então, doutor? - perguntou o padre Maurício, aproximando-se do médico, junto à janela.

- Consegui diagnosticar alguns problemas internos. - E o que é que a gente deve fazer? - indagou, ansiosa, dona Lírides, mãe da

menina. - O doutor abriu a maleta mais uma vez e tirou alguns remédios. Em seguida,

escreveu uma receita, complementando o tratamento.

- Ela deve tomar estes remédios conforme a indicação na receita. Veja, os primeiros aqui da lista já os deixo para vocês. Os outros devem ser adquiridos na cidade de Bom Vizinho. Ela deve permanecer em repouso até passar a febre.

- O que é que ela tem, doutor? - perguntou Jonatam. - O diagnóstico aponta algumas infecções agudas de origem desconhecida. Vamos

ver se este tratamento consegue debelar o mal. Maurício ficou com a lista dos remédios que deviam ser comprados em Bom

Vizinho e saiu com o doutor.

Pelo caminho, o médico explicou que se tratava de um mal desconhecido. E podia afirmar que a situação era realmente grave. Tão grave que não havia esperanças de recuperação.

Maurício assustou-se. Passou nervosamente as mãos pelos cabelos e sugeriu:

- Mas, ela é tão jovem... - Meu amigo - disse-lhe o médico - o senhor é relativamente novo nesta região. Eu

visito este lugar há mais de dez anos. - A cada dois ou três meses passo por aqui. Só desta vez é que demorei mais de

quatro meses, porque estive doente. Posso garantir-lhe que existe um mistério... não sei se devo contar-lhe ou não.

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- Pode falar - animou-o Maurício, com voz firme. - Já que o senhor quer, vou falar. Mas, não me faça culpado pelas noites de

insônia e de medo que o atormentarão. - Fale! Maurício não estava interessado em medir as conseqüências da revelação do

médico. O fantasma da doença da jovem já o atormentava demais e ele tudo faria para que ela se restabelecesse, afinal fora a única pessoa que se dispusera a ajudá-lo nos cuidados ao padre Keningan. Ele aprendera a querer bem à jovem e tudo faria para que ela voltasse à plenitude de seu vigor e de sua beleza.

O doutor Milano ficou um momento indeciso. Embora denotasse idade além dos cinqüenta anos, estava bem conservado. Parou numa das curvas fortes da subida do espigão e, olhando para o lago, falou calmamente:

- Que paisagem linda, padre! Cada vez que eu venho aqui não me canso de apreciar a poesia e a paz que este lago me infunde.

- Doutor, eu quero saber sobre a doença - atalhou Maurício, lutando com todas as suas forças para ser calmo e polido.

- Pois bem, meu caro padre, tenho percebido que as poucas pessoas que viveram na casa paroquial, lá em cima, foram acometidas de um mal cujas causas até hoje não consegui apurar. O senhor sabe que, em medicina, o que importa é atacar as causas. Nesta situação, procurei aliviar as conseqüências. Mas, infelizmente...

O médico calou-se.

- Mas o quê? - inquiriu nervosamente Maurício, pegando, com força, no casaco do doutor Milano.

- Todas... morreram. - Não! - urrou Maurício, voltando-se que nem doido para a borda do barranco. O médico não disse nada. A tarimba profissional ensinou-o a esperar que o

primeiro impacto de qualquer notícia trágica subisse e descesse a níveis normais, antes de proferir a segunda palavra. As grandes emoções sobem e descem, explodem e acalmam, como as avalanches das grandes enchentes, se bem que as avalanches do espírito são mais vertiginosas.

Naquele mesmo instante, Maurício viu-se enterrando a pobre Eliane e voltando para casa com o decreto de sua própria morte assinado. Sentiu ganas de gritar e gritar até soltar o nó que o sufocava.

Mas, as águas da avalanche desceram como subiram e ele foi emergindo para o mundo interior, que lhe dava as forças com as quais sempre contava para as horas difíceis.

- Onde o senhor acha que se situa o mistério: na doença do padre Keningan ou na velha casa?

- Está lá, onde eu não sei. - E, agora, o que é que eu faço? - Espero encontrá-lo vivo na minha próxima visita - respondeu Milano, fazendo

humor negro. … - Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto,

viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre. Depois de benzer o féretro e traçar um lento e triste sinal da cruz, o padre

Maurício acrescentou:

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- A sua alma e a de todos os fiéis defuntos, pela bondade de Deus, sejam felizes para sempre na outra dimensão. Amém.

Fechou o livro, já molhado de lágrimas. Olhou com profunda amargura o caixão que era baixado à sepultura, no pequeno e pobre cemitério de Espigão do Inferno. Tomou o lenço e enxugou as lágrimas. Um nó doloroso apertava sua garganta, mas recolheu as últimas reservas de coragem e falou ao povo:

- Esta surpresa que a vida me reservou aqui neste longínquo lugarejo é dolorosa demais para mim. Vim aqui na esperança de semear a vida... e acabei semeando a morte. Aqui está uma jovem, na flor da idade, rica de bons sentimentos e de caráter...

Aqui está o que restou de uma jovem que quis dar um pouco de si para alívio e conforto de um pobre sacerdote doente, acabado e solitário numa velha casa... Aqui está uma menina, cheia de ilusões pela vida, uma menina cujo destino incompreensível eu mesmo acabei traçando, para minha própria dor... Eliane, me perdoe. Eu sei que você me perdoará, porque eu conheço a grandeza do seu coração. Mas, nesta triste hora, eu suplico a você: diga a seus pais que também me perdoem e entendam que nós dois só queríamos fazer a caridade de ajudar um doente a enfrentar, como gente, seus últimos dias...

As lágrimas caíam abundantes do rosto de Maurício. Jonatam e Lírides também soluçavam convulsivamente. O rapaz, no entanto, permanecia de rosto duro e raivoso.

Maurício continuou:

- Pois, eu Ihes asseguro que os caminhos de Deus são muitas vezes inexplicáveis, mas são sempre bons, e é absolutamente certo que esta jovem foi habitar a morada de Deus, que é a morada do amor total e da felicidade. Agora ela já não sofre mais. As nossas lágrimas, então, revertem para nós mesmos, que perdemos a convivência de uma criatura cuja presença agradável e bonita dava mais poesia e amor a esta região tão seca e tão árida. Tenhamos, porém, a convicção e a fé profunda de que um dia nos reuniremos a ela e a todos os nossos entes queridos que já se foram e, então, formaremos uma grande família feliz. Eliane, nos espere, e olhe por nós todos lá de cima. Amém.

Maurício fez o sinal da cruz.As últimas pazadas de terra caíram sobre a cova onde fora depositado o caixão. E uma procissão triste e desolada começou a buscar o caminho de suas casas silenciosamente. Quando Maurício deu por si, estava sozinho diante da sepultura rasa, com a terra revolvida, como se a jovem lutasse para sair daquela escuridão estranha em que a meteram.

Caminhando pesadamente pelo corredor pedrento do cemitério, situado à direita da igreja, na encosta, ele estava abatido e frustrado. A morte aparecia diante de seus pensamentos como uma inconseqüência da vida, ou melhor, como um equívoco fatal na construção do homem. Assim como quando falha uma peça a máquina pára, assim ter-se-ia dado na fabricação do homem, máquina delicada, imprevisível, insubstituível. Mas, as palavras do Mestre:

“Quem crer em mim, ainda que esteja morto, viverá”, vieram à mente para confortá-lo. Realmente - pensava agora ele - tem que haver algo de melhor no além-morte. Seria uma injustiça gritante fazer com que uma jovem, cheia de sonhos e de vida, acabasse sendo roída pelos vermes só porque resolveu fazer uma obra de caridade... E eu - gritou ele para dentro de si - que faço aqui neste inferno se não acredito na outra vida?!

Maurício agora nem sabia para onde andava. Seus sapatos arrastavam-se no pedregulho, sem rumo. O calor era sufocante. Com o casaco jogado sobre os ombros, abriu a camisa e deixou que uma miséria de vento refrescasse seu peito sofrido. As

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palavras do médico - duras e terríveis como uma sentença de morte - ecoavam agora em seus ouvidos.

- Não - reagiu interiormente, expulsando os pensamentos negros - eu sou vida, eu sou luz, e a vida supera a morte, como a luz espanta as trevas.

Agora Maurício lembrava o Mestre, que afirmara: “Vim para que tenhais vida; e vida eterna”.

- Sim - ponderou ele - a vida continua. Aqui e lá em cima. Levantou a cabeça, ensolarou os caminhos e seguiu em frente. Parou um pouco

para arrancar um raciocínio que emergia lá do fundo da mente: Penso, logo existo, como dizia o filósofo Descartes. Pois bem, existo, logo penso. E se penso, exerço o meu poder criador, porque sou o que penso. Aqui está a solução: criar pensamentos de vida, de alento, de alegria, de força interior, de coragem, de ânimo. Sim, vou agora mesmo encher de sol o meu coração. Vamos, Maurício, força, alegria, olhe para frente, veja esta estrada bonita e grandiosa que você vai percorrer. Nada de parar à beira do caminho. Se você colocar sol na sua mente, sua vida estará cheia de sol.

De repente, um grito penetrante e agudo chegou até ele:

- Maurício!

Voltou-se rapidamente e olhou na direção da estrada da estação. Não podia acreditar. Não, aquilo tinha que ser uma alucinação provocada pela morte da Eliane. Alongou os olhos, forçando as pálpebras.

- Maurício!

Agora sim não havia dúvida. Era ela. Era Silvana que vinha subindo a encosta, com um saco de couro às costas. Ao ver Maurício descer a largos passos em sua direção, ela largou a mala no chão e saiu correndo ao seu encontro, caindo, tropeçando, mas irradiando uma incontida emoção.

- Silvana! - exclamou ele, perplexo. - Maurício! - explodiu ela, abraçando-o com alegria. Depois de momentos, ambos voltaram a olhar-se de frente, apenas as mãos

unidas. Havia muita felicidade no olhar deles.

- Silvana! Como veio parar aqui?! - Longe é um lugar que não existe - sentenciou a moça. - Mas, fim de mundo é um lugar que existe - brincou ele. - Passei muito tempo, como detetive, tentando descobrir o seu paradeiro. Seu

Josias e a dona Ermelinda não quiseram dizer. O novo pároco irritou-se quando lhe perguntei. Então, imaginei que a ordem devia ter partido do bispado de Rosandur e procurei fazer amizade com um padre que mora lá. Certa noite, o convidei para um jantar. Depois de uns bons vinhos, ele me contou. E estou aqui. Pelo amor de Deus, isso é um fim de mundo...

- Você acha que eles iriam me mandar para o paraíso? - Que lugar, puxa vida! - E você ainda não viu nada - sorriu ele. - Maurício, você está com a fisionomia abatida. Percebi desde o instante em que o

vi. Posso saber o que se passa? É por minha causa? - Agora passa a ser também por sua causa... Pairava um mistério na voz dele.

- Pode falar - disse a jovem, com ansiedade e medo.

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Maurício contou-lhe a história do padre Keningan, a morte da Eliane e as revelações do doutor Milano.

- Então, você está correndo o risco de ser a próxima vítima... - exclamou ela, com viva preocupação.

- É. E você não pode ficar aqui. - Mas, eu quero ficar. - É loucura, Silvana. Você é jovem, cheia de vida, nada encontrará neste inferno a

não ser miséria, calor, solidão e... Maurício calou-se. - E a morte... - concluiu ela. - Não importa. Se uma jovem como a Eliane pôde ter

a coragem de dar a vida, por que não eu? - É terrível demais este fardo para você! - E você não me ajuda a carregá-lo? Os dois seguiram para a casa paroquial. Silvana estava decidida. Fizera os

maiores sacrifícios para chegar até este lugarejo perdido no mundo, e nada haveria de abater-lhe o animo. Quando entrou na casa paroquial, teve um susto. Parecia-lhe estar entrando numa casa assombrada.

Silvana foi conduzida ao padre Keningan:

- Esta é a moça que vai cuidar do senhor no lugar da Eliane. Chama-se Silvana. O padre Keningan olhou-a de cara amarrada e sobrolhos franzidos.

- Tudo farei para que o senhor tenha muito conforto e melhore rapidamente - disse ela, com um sorriso franco nos lábios, tentando conquistar a simpatia do velho sacerdote.

- Espero que não seja preguiçosa como a outra, que há dias não aparece - xingou Keningan. - Olhe só o jeito que me deixou...

- Padre Keningan - observou polidamente Maurício - a Eliane não era preguiçosa. Ela adoeceu e... morreu.

As últimas palavras Maurício as proferiu com a voz embargada pela emoção. Por um triz que não explodiu numa torrente de lágrimas. Keningan recebeu a notícia como uma bomba e ficou de olhos arregalados. Uma prensa invisível tolheu a sua respiração e ele agitou-se desesperado pela falta de ar. Maurício e Silvana ergueram-no um pouco e abanaram o rosto até que a respiração voltasse ao natural. O velho esborrachou-se na cama, o rosto lívido, a testa com grossas bagas de suor.

- Desculpe! - foi só o que conseguiu engrolar. Eram dezenove horas e Silvana ainda não tinha tomado banho. Colocou seus

pertences num pequeno quarto improvisado, ao lado da cozinha, e foi para o banheiro. Maurício a esperou na cozinha. Colocou a chaleira no fogão e sentou-se numa velha cadeira de palha, inclinando-a contra a parede. Sua mente estava congestionada de imagens e os últimos acontecimentos se entrecruzavam com violência, deixando-o sob forte tensão emocional. Revivia as cenas tristes e cruéis da morte da Eliane, o último adeus dela para ele, um adeus comovido que ela quis representá-lo através de um beijo na sua face direita. Ah, que beijo misterioso, formado por uma amálgama indizível de amor, de dor e de despedida... Ah, aquele beijo ainda o consumia, tomando as formas mais extravagantes. Ele tinha a certeza de que aquele beijo ardente de febre significavam o adeus a um ente querido. Lembrou-se, então, do que fizera diante daquela surpresa inesquecível: inclinara-se sobre ela, as lágrimas jorrando incontrolavelmente de seus olhos, e a beijara na face febril, murmurando: “Nos veremos lá no céu...”

- Você está chorando - disse Silvana, entrando na cozinha.

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Como que acordando de um sonho distante, ele comentou, com melancolia:

- Eu estava me lembrando dela. - Ela devia ser muito querida! - Era um anjo. Não podia ter morrido. Minha Teologia não consegue explicar esta

tragédia... - E a fé não explica? - Somente a fé, Silvana. E a minha fé está na crença de que a morte, na verdade,

não existe. A vida é espírito e o espírito não morre. Portanto, a pessoa, continuando viva, passa desta dimensão para uma outra melhor, a que eu dou o nome de Paraíso.

- Viver realmente é estar lá. A Eliane, tão meiga, tão bonita, tão prestativa, tão agradável, reforçou a minha certeza de que lá é muito melhor do que aqui. Mas, em qualquer circunstância - completou ele - importa levantar sempre a cabeça e ver as coisas boas que continuam acontecendo.

- Que coisas boas? - Você, por exemplo. E tantas maravilhas deste lindo mundo de Deus. - Eu?! - exclamou ela, sem entender o que ele queria dizer. - Sim, você. Você sabia que este lugar era um inferno e quis vir; você sabia que a

viagem era longa e penosa e resolveu enfrentá-la; você ficou sabendo que correrá o risco de ser sepultada ao lado da Eliane e não se assustou; você ficou sabendo que cuidar do padre Keningan era um tremendo desafio à paciência e aceitou o desafio; você sabe que este lugar é um inferno, capaz de torrar a seiva exuberante da juventude e, mesmo assim, quer ficar. Dê o nome que quiser dar a isto, eu nunca deixarei de chamar de grandeza de alma.

- O amor é a força mais poderosa do mundo! - exclamou a jovem, com exaltação. - Na verdade - filosofou ele - o amor foi a força todo poderosa que criou o

universo e o faz girar para o leste eterno. E é o amor que constrói o mundo de cada um. Maurício levantou-se e foi à janela. A noite estava bordada de estrelas. O luar

derramava uma neblina prateada sobre a encosta, pondo respingos de luz no pedregulho saliente do morro.

- Estou com fome - vociferou o padre Keningan. Felizmente, Silvana já tinha tudo pronto. Tomou a bandeja e dirigiu-se de

imediato ao quarto do doente.

- Desculpe, padre Keningan - disse ela, depositando a bandeja sobre a cama. - Hoje foi um dia cheio de acontecimentos; além disso, é o meu primeiro dia...

Ele não disse nada. Parecia amuado. Silvana ajudou-o a tomar o café e pôde perceber que sua saúde estava muito ruim. À primeira vista, até, achou grave demais o estado dele. Alimentava-se com muito esforço, os olhos cadavericamente encovados, os ossos das costelas saltando para fora.

Quando voltou para a cozinha, alertou Maurício para a gravidade da doença de Keningan.

- É, o velho leão está se entregando... Silvana lembrou-se de uma coisa:

- Você não tinha dito a ele nada sobre a doença e a morte da Eliane? - Quis poupá-lo desta dor. Não me contive, porém, quando ele insultou a

coitadinha, justamente poucas horas depois do sepultamento... Achei que era preciso mostrar-lhe que o mundo é bem mais amplo do que as dimensões do seu leito. Não sei se fiz mal...

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Depois de permanecerem silenciosos por alguns minutos, Silvana perguntou:

- E amanhã? - Bem, amanhã eu pretendo ir pescar com o velho Jonatan, pai da Eliane, afim de

confortá-lo um pouco ou, pelo menos, fazer-lhe companhia. - E eu tratarei de atender o padre Keningan. Há muita coisa por fazer... … O dia estava límpido e agradável. A muito custo, Maurício convenceu Jonatam a

sair para o lago e, então, toda a família veio junto a fim de tentar esquecer um pouco o golpe terrível que a morte da jovem provocara em cada um deles. E, agora, o barco singrava lépido e tranqüilo pelas águas mansas do lago. As velas enfunadas davam maior desenvoltura à embarcação.

- Para onde vamos? - perguntou Jonatam Júnior, o rapaz que ainda olhava com raiva para o padre Maurício, como se ele fosse o culpado pela morte de sua adorada irmã.

- Para qualquer lugar - respondeu o pai, encolhendo os ombros. - Eu não tenho vontade para nada.

- Bem posso imaginar o quanto o senhor está sofrendo. - Tudo foi tão de repente... Sabe, às vezes eu pergunto a Deus: por que fizeste

isso? Puxa vida, com tanta gente ruim atrapalhando este mundo, por que vieste buscar um ente tão querido, tão bom, que estava realizando uma obra de amor e de caridade precisamente para um de teus ministros... Se gostavas tanto da Eliane, bem que podias ter olhado também para seus pais... E o que mais nos aborrece, padre Maurício - atalhou, com desânimo, o velho Jonatam - é que Deus não dá resposta nenhuma.

Talvez nós possamos dizer que a resposta de Deus é diferente da nossa. É como se diz por aí que Deus escreve direito por linhas tortas.

- Eu não entendo, padre Maurício - tomou a palavra a senhora Lírides - por que Deus quis tirar de nós essa filha tão querida... tão querida... tão querida...

Ela não conseguiu continuar. Desandou num choro convulso. Houve silêncio dentro do barco.

- Eu não acuso a Deus - rompeu o rapaz com cenho franzido de indignação - eu acuso o padre Maurício. Porque, não venha com conversa besta, o senhor sabia que as pessoas que trabalharam na velha casa paroquial para o padre Keningan, durante a doença dele, todas elas morreram. O senhor sabia que a minha mana estaria condenada à morte e, mesmo assim, a levou para aquela casa assombrada. O senhor é um assassino!

O rapaz tremia, com ganas de pegar o padre e jogá-lo dentro d’água. - Meu filho, não fale assim - repreendeu-o a mãe, enxugando as lágrimas com a

gola do vestido. Maurício interferiu:

- Eu respeito os sentimentos do Jonatam Júnior. Palavra, que respeito muito. A revolta que vai dentro dele é uma expressão forte e viva do imenso amor que ele tinha pela Eliane. E isso só pode ser realmente elogiável. O que eu vou lhe dizer, Júnior, você pode acreditar ou não, mas é a pura verdade: eu tomei conhecimento das mortes que aconteceram misteriosamente, só agora através do doutor Milano. Ao perguntar-lhe se o caso da Eliane era grave, ele abanou a cabeça e me contou o que acontecera com as pessoas que foram trabalhar lá em cima, desde a doença do padre Keningan. Eu jamais esconderia um fato tão grave como esse para quem quer que se determinasse a servir ao enfermo. Veja, lá em cima já está uma jovem cuidando do doente, mas, antes de tudo,

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eu a alertei sobre o fenômeno. Afinal, eu creio que a vida é o dom mais precioso que cada um tem.

- E como é que vai o padre Keningan? - perguntou o velho Jonatam, querendo mudar de assunto.

- Está bastante mal. - Ah, aquele padre veio enterrar-se aqui nesta miséria! - Coitado! Ele sabia que nada ou pouca coisa podia esperar desta região sem

futuro e, no entanto, permaneceu firme, durante muitos anos, semeando fé e religião por todos os cantos. Olhe, eu tenho pena do padre Keningan e seria uma calamidade deixar aquele pobre homem sozinho e abandonado naquela casa... Foi por isto que consenti que minha filha fosse dar-lhe um pouco de assistência... Enfim, ele nos casou, ele batizou a Eliane e o Jonatam.

Maurício ponderou:

- É que, por instinto, nós temos a tendência de olhar a vida com olhos terrenos. Mas, se a olhássemos sob o prisma da fé, ficaríamos bastante resignados, porque agora é certo que a Eliane está vivendo a plenitude da felicidade. Ela está habitando a morada de Deus, junto com os avós que já se foram, junto com os parentes e amigos, e um dia estará com todos nós, não é verdade?

- O senhor é um mentiroso - estourou o rapaz, virando o rosto para a popa do barco.

Mauricio olhou para ele e ficou com pena:

- Jonatam, como você, eu também estou muito doído, muito machucado por dentro. Eu sofri a morte de sua irmã como se fosse minha própria irmã. Eu sinto muito, Jonatam... Muito mesmo...

… Domingo à tarde. Maurício contemplou fascinado o imenso espelho das águas e

convidou Silvana para um passeio de barco a fim de conhecer as belezas do lago Tiruê. O calor ainda era forte. Desceram o espigão, até a enseada. O barco do velho Jonatam estava atracado. Maurício já tinha prática no manejo do barco: içou as velas e deixou que o vento os levasse. As águas estavam plácidas e transparentes. O vermelho-alaranjado do pôr-do-sol refletia-se na superfície líquida, pondo tons doirados nas águas. O barco deslizava sem direção e sem rumo.

- Este lago faz-me lembrar o lago de Alvores. A diferença está nestas margens crestadas e áridas - disse Silvana, alongando as vistas para todos os lados. Além da extensão, é claro.

- É, o lago de Alvores tem mais vida, mais verdor. - E mais poesia - completou ela. - Aí é que eu não concordo. A poesia só existe a partir de dentro para fora. Não é

o lago que é poético; a gente é que coloca poesia no lago... - Vejo que a sua filosofia está bem adiantada. Existencialismo. Tudo no mundo

existe a partir das pessoas. São as pessoas que põem vida nas coisas. Está certo. As pedras, os lagos, as estrelas, o sol, a lua, não podem dizer que existem e nem podem reconhecer-se no mundo: nós é que os descobrimos para a vida, porque existimos...

- Mas, não esqueça que a poesia, antes de existir na mente, brota do coração. Só um coração cheio de amor sente poesia e enlevo em qualquer coisa...

- Realmente - anuiu Silvana - para quem não ama, o mundo é um deserto sem vida e sem sentido.

- Por isso que se diz que amar é viver. - Maurício - perguntou a jovem, curiosamente - você ama?

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- Demais - respondeu ele. - Amo a vida, amo este lago, amo as estrelas, amo o sol, amo as criaturas, amo as flores, amo os habitantes desta terra, amo Keningan, amo você, amo...

- Finalmente - interrompeu-o ela. - Ao menos em último lugar você me ama. Isso me deixa satisfeita, mesmo que seja a última da lista...

- Não, Silvana - corrigiu ele - eu não pus ordem na enumeração. O amor não se processa por hierarquias. O amor é uno, total, pleno, indivisível, universal.

- Não entendi. - Por exemplo, amando você eu amo as estrelas; amando as estrelas, eu amo você;

amando você e as estrelas, eu amo a Deus... - Que raciocínio lindo! A jovem estava realmente empolgada. Lá longe, na última dobra do lago, o sol

afundou-se, doirando totalmente as águas e pondo um toque de encantamento na natureza. Depois de silenciarem por momentos, ele voltou seu pensamento para Alvores:

- E Alvores, como é que vai? - Já lhe contei tudo. Dos meus pais, do seu Josias, da dona Ermelinda, do pároco,

do médico, do Corrégio, da Marisete... - Que mais?

- E o Corrégio, perdeu aquela obsessão maligna? - Eu tenho pena dele e do pai. Estão deixando a vida escapar por entre os dedos.

Você nem imagina como o rancor massacra o interior de uma pessoa. O ódio destrói todas as belezas da vida e coloca aridez e pedras no caminho... Isso eu aprendi com você. Obrigado, mestre.

Ele sorriu. E acrescentou:

- Quando se descobre todo o sofrimento que existe no rancor, amar se torna tão simples como respirar. Silvana concordou com a cabeça.

- E os seus pais? - tornou Maurício. - São ótimas pessoas, sabe? - Mas, se deixam levar... - Como você - observou ele. - No começo. Agora não. Criei personalidade. - Pois, eles não tiveram as condições que se ofereceram a você. No céu começaram a brilhar timidamente as primeiras estrelas. O calor, porém,

era ainda forte e agressivo.

- Eu gostaria de tomar um banho - disse ela, olhando para a maciez cálida da água. - Não é por falta de água - brincou ele. Sem dizer palavra, a jovem despiu a blusa alaranjada e as calças de brim.

Dobrou-as com cuidado e colocou sobre o banco.

Descalçou os chinelos e jogou-se na água, pois já estava de maiô.

- Espero que não seja necessário socorrê-la... - Vai ter que vir mesmo - gritou ela, fazendo de conta que se afogava. Maurício passou a mão na água e viu que estava muito convidativa.

- Está legal. Venha! - falou ela, nadando com alegria para cá e para lá, em torno do barco.

Em rápidos movimentos ele tirou a camisa, os sapatos, as meias e as calças. Já estava de calção, que o tinha colocado por precaução, para caso de emergência. Seu

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corpo vigoroso e bronzeado balançou-se por instantes na proa do barco, diante da contemplação extasiada de Silvana e, em seguida, mergulhou com classe.

- Está realmente gostoso - observou ele, voltando à tona. Silvana aproximou-se de traição e empurrou-o para baixo da água. Quando ele

tornou à superfície, os dois riram-se a valer. Não vou fazer o mesmo com você para que não morra afogada. Mas, tem um detalhe: este terá que ser o banho mais rápido do mundo, pois está anoitecendo e o padre Keningan não pode ser descurado.

- É verdade - concordou ela, subindo de imediato no barco. Maurício fez o mesmo. A água escorria-lhe pelo corpo. Puseram-se, então, a fazer

ginástica para enxugar mais depressa.

Atracaram o barco na enseada e saíram a correr com grande disposição morro acima, fazendo uma aposta para ver quem chegaria antes. Não houve vencido nem vencedor: chegaram juntos, quase botando os pulmões para fora.

Enquanto Maurício foi para o chuveiro, Silvana empregou-se com entusiasmo na preparação do jantar. Já tinha deixado tudo a meio caminho e, em poucos minutos, o padre Keningan servia-se da refeição.

Depois, Maurício foi conversar com o doente e ela foi para o banho.

- Como é que está, padre Keningan? - Nada bem. Já estou achando que não vou mais levantar daqui. - Vai sim, sem dúvida - animou-o Maurício. - Bem que gostaria - resmungou ele. - Eu não me conformo em ficar aqui

chocando, quando teria tanta coisa a fazer por essa gente... Eu me sinto dentro de uma jaula...

- O senhor já fez muito - consolou-o Maurício. - Faz quinze anos que estou metido nesta esquina do mundo - começou a contar o

velho pároco. - Quando cheguei, havia apenas uma capela velha, que mais parecia um pardieiro, lá embaixo, perto da estação. Com enorme esforço, consegui construir esta igreja e esta casa aqui. Procurei fazer de tudo por esta gente.

Keningan parou ofegante.

- O povo lhe quer muito bem. - É... o povo. Sim, o povo... Calou-se. Maurício notou que era para recolher um pouco da força felina do leão.

Ele continuou:

- Sim, o povo... me quer bem... Mas nunca recebi a visita lá de cima. Maurício entendeu o que ele queria dizer e ficou calado.

- Desde que me jogaram para cá, por causa de um insucesso financeiro na administração da paróquia de Santa Apolônia, em Rosandur, nunca mais fui lembrado pelos que vivem na civilização...

- Mas, eu fui enviado para ajudá-lo, padre Keningan. O doente resmungou, incrédulo. Quando terminou de jantar, Maurício levou a

bandeja para a cozinha. Silvana chegou daí a instantes, ainda ajeitando os cabelos.

- Agora chegou a nossa vez de jantar - disse ele. - Padre nasceu para fazer penitência - retrucou ela, de brincadeira. - Mas, não agora - rebateu ele. Durante o jantar, Maurício voltou ao assunto que lhe martelava a cabeça:

- Silvana, você pensou bem no risco que está correndo?

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- Pensei. - Por favor, lembre-se da Eliane. Você tem toda uma vida pela frente. Gostaria

que raciocinasse de cabeça fria, porque o perigo de contaminação aqui é muito sério... - E você? - perguntou ela, devolvendo-lhe o problema. - Eu fui enviado. - Mas, poderia recusar-se a obedecer. - Poderia. - Então, se você acha que não se deve arriscar a vida, aconselho-o a sair deste

lugar amaldiçoado e... - Não é amaldiçoado - cortou ele, com vigor. - Não existe lugar amaldiçoado. O

que existe é um fenômeno natural que está desafiando a nossa capacidade, nada mais. Descoberta a causa, tudo será muito simples de solucionar. Um ovo de Colombo...

- Se você for para outro lugar não menos necessitado de assistência espiritual, estará cumprindo sua missão e, ao mesmo tempo, evitando danos à sua saúde. Porque você, como teólogo de fama internacional - ela sorriu maliciosamente - há de concordar que não é lícito arriscar a vida, que é um dom de Deus, e a ele cabe impor os limites que achar necessários. Falei?

- Eu aceitei o desafio. Pelo menos enquanto o padre Keningan, coitado, estiver vivo, ficarei com ele. Seria desumano abandoná-lo à morte, como um bicho-do-mato.

- Pois, eu ficarei também. Ele precisa de mim. - E se você morrer, de quem é a culpa? - Estarei junto com a Eliane, esperando você. Houve alguns minutos de silêncio. Ouvia-se apenas o roçar dos talheres.

- Pois bem, Silvana, admiro sua coragem... E, ao mesmo tempo, tenho medo. Eu também tenho medo...

- Silvana, amanhã farei uma viagem pelo lago até a desembocadura do rio Tiruê a fim de visitar algumas pequenas comunidades. Ficarei fora alguns dias. Você tem coragem de ficar sozinha cuidando do padre Keningan?

- Vá tranqüilo. - Se acontecer algo de muito grave, peça para algum pescador, que tenha barco a

motor, para ir buscar-me. Uma estranha sombra acinzentada começou a descer lentamente sobre a jovem.

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CAPÍTULO 7 Maurício retornou cansado, mas satisfeito, de sua longa viagem pelos pequenos

povoados e vivendas ribeirinhas do Tiruê. Sentiu de perto a alegria e a simplicidade daquela gente pobre e humilde. Mas, voltou para casa com uma grande preocupação: segundo o depoimento dos velhos moradores da região, as fortes e constantes chuvas que estavam caindo nas cabeceiras do rio Tiruê traziam um prognóstico muito assustador. Havia previsão de enchente. Algumas famílias já se haviam mudado para lugares mais altos a fim de não serem colhidas de improviso. O rio subira um metro e meio. Mas, o lago se conservava bastante calmo. Parecia alheio aos acontecimentos que se sucediam no seu velho afluente. Em Espigão do Inferno a temperatura tórrida amainou um pouco. À noite, o calor declinou significativamente e algumas nuvens mais afoitas transitavam pelo céu, como se fossem patrulha avançada de uma grande força invasora. A mudança de tempo deixou o padre Keningan mais nervoso e agitado.

- Alguma novidade? - perguntou Maurício, depositando a malinha de viagem em cima da mesa da cozinha.

- A primeira novidade dá para notar, não é mesmo? Maurício deu uma risada e acenou positivamente para ela.

Durante a ausência dele, Silvana dera-se ao trabalho de fazer uma remexida total na casa. Procurou consertar os móveis velhos, reajustou algumas cadeiras, arejou o ambiente e redistribuiu o mobiliário. A casa mudou de aspecto.

- Vejo que você não aprendeu apenas filosofia na vida... - Aprendi também a remendar a pele de uma pessoa disse ela, lembrando-se da

Praia do Pontal. Ambos riram.

- Quer saber de uma coisa? - Ela falava com alegria. - É só conseguir um dinheirinho e ainda vou pintar esta casa. Maurício pegou a vassoura pelo cabo, como se fosse um violino, e começou a cantar:

- Parabéns a você... Nesta idéia querida... Muitas... - Quero água - berrou Keningan, lá do seu quarto. Silvana apressou-se a levar-lhe um copo de água. Ao retornar, Maurício

perguntou-lhe:

- Como está ele? - Está se atrasando bastante. Vou vê-lo.

Maurício e Keningan trocaram algumas palavras. O velho pároco denotava fraqueza acentuada. Mas, procurava conservar a majestade do leão enjaulado. Quis saber pormenorizadamente tudo sobre a viagem de Maurício. E fazia seus apartes, acrescentando conselhos e diretivas, talvez para sentir-se ainda pároco de Espigão do Inferno. Maurício o compreendia. E procurava valorizar os sentimentos dele. À noite, depois que o doente jantou, Maurício e Silvana sentaram-se à cozinha para jantar e conversar. Era uma forma de fazer passar o tempo e esquecer a solidão daquelas paragens.

- Sabe quem é que me procurou? - perguntou, de repente, a moça.

- O quê? Alguém procurou você? Quem poderia ser... Por mais que Maurício desse tratos à bola, nenhum nome lhe ocorreu.

- Jonatam Júnior.

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- Ele?! - Sim, chegou desajeitadamente, encostou-se na parede da casa, aí fora, e me

perguntou se eu sabia que as pessoas que atenderam o padre Keningan tinham morrido de doença misteriosa. Eu lhe disse que já sabia, que você tinha me alertado. Já sei...

Ele ficou quieto, me olhando com perplexidade. Notei que ficou realmente assombrado. No dia seguinte, apareceu de novo e encostou-se na parede... puxou uma conversa qualquer, perguntou se eu sabia pescar, coisas assim...

- Sabe de uma coisa? - Ele acabou me ajudando a fazer essa arrumação toda aqui na casa. Maurício se confirmou mais uma vez de que todas as pessoas são bem melhores

do que o demonstram.

… Alta madrugada. A noite estava feia. Os relâmpagos faiscavam no céu e os

trovões ribombavam para o lado das nascentes do rio Tiruê. Chovia torrencialmente em Espigão do Inferno. Maurício acordou-se em sobressaltos. Ouvira fortes pancadas, mas não tinha certeza se era sonho ou realidade. Novas batidas na porta. Levantou-se às pressas e foi ver o que havia.

Alguns vultos envoltos em longas capas pretas aproximaram-se: Padre Maurício, a enchente está grossa e estão pedindo socorro lá para as bandas do povoado de Tiruê. Fala-se em famílias ilhadas.

- Ninguém foi socorrer aquela gente? - Aqui no Espigão ninguém está a fim de enfrentar o temporal e a enchente. Maurício agasalhou-se bem e desceu com os homens para a enseada do lago. Um

grupo de pescadores o esperava. Ele estava decidido a ir em socorro das vítimas.

- Há notícia de pessoas em perigo? - perguntou Maurício ao grupo. - Sabe-se que pelo menos uma família está sobre as águas, numa árvore,

esperando socorro - respondeu um pescador. - Quem vai comigo? - indagou Maurício, olhando para o grupo. - Ninguém se mexeu. Havia medo em todos os semblantes.

Talvez estivessem pensando, antes de tudo, em suas próprias famílias...

- Pois, eu irei de qualquer maneira! Sem dizer mais nada, retornou à casa paroquial. Ninguém podia imaginar o que

pretendia ele. Quase uma hora depois, surgiu Maurício no meio da escuridão. Os relâmpagos mostravam outra pessoa a seu lado. Quando se aproximou do grupo, todos viram, com assombro, que era acompanhado por uma jovem. Sim, apenas uma jovem, quando seriam necessários braços fortes, rijos e afeitos às asperezas do lago e do rio.

- O senhor vai mesmo? ! - perguntou o velho Jonatam, coçando a barba com apreensão.

- Vou. Há gente precisando de ajuda. - Mas, o senhor vai naufragar. O tempo está horrível tentou dissuadi-lo o seu

Jerusa, do bar. - Qual é o melhor barco disponível? - perguntou Maurício, sem perder tempo. - Esse aí. Já está pronto. O tanque de combustível está cheio, o motor está bom. É

o único que pode tentar enfrentar a fúria das águas. Era o barco do velho Jonatam. O Karina.

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Quando Silvana seguiu Maurício e pôs os pés no barco, Jonatam Júnior, que não desprendia os olhos da moça, gritou espantado:

- Silvana, não vá! Você vai morrer afogada! Não vá! Não vá!

- Calma, Jonatam! - gritou ela, com nervosismo na voz. Devo acompanhar o padre Maurício. Precisamos salvar uma família...

- É impossível, Silvana - suplicou o jovem, aproximando-se do barco. - Você vai morrer... É loucura... O padre vai matar você... como fez com a Eliane...

O rapaz estava transtornado. O pai agarrou-o pelos ombros e tentou acalmá-lo:

- Calma, meu filho! É uma obra de caridade que ela vai fazer. Lembre-se que aquela família poderia ser a nossa.

- Tchau, Jonatam - gritou ela. O barco afastou-se, enquanto o grupo, escondido sob as longas capas negras,

totalmente ensopadas de água, abanava melancolicamente para os dois.

- Você quer desistir? - perguntou agora Maurício. - Ainda há tempo. - Não - respondeu ela. - Então, seja o que Deus quiser - bradou ele, pondo muita coragem na voz. Em largas passadas o barco afundou na escuridão. As águas estavam levemente

agitadas. Amarrado no mastro principal, o lampião era como uma estrela solitária na imensidão escura. Maurício traçou uma diagonal imaginária e alinhou o barco na direção da desembocadura do Tiruê. Tinha cerca de nove quilômetros pela frente, até chegar ao delta do rio. Depois de navegar durante meia hora, as ondas começaram a agigantar-se diante do barco, jogando-o violentamente para cima e para baixo. Maurício agarrava-se vigorosamente ao leme, buscando manter o barco de proa contra as vagas. Silvana servia-se de uma lata de querosene para jogar fora a água que se acumulava no piso do barco. Os relâmpagos riscavam o negror da noite, mostrando, aos olhos aflitos de ambos, uma montanha líquida de cor azul violácea.

- Falta muito para chegarmos? - perguntou, assustada, a jovem. - Para chegarmos aonde? No povoado de Tiruê ou na eternidade? - retrucou ele,

sem saber se falava sério ou se brincava. - Eu estou com medo - murmurou ela. - E quem é que não teria medo no meio deste vulcão de água? Lá longe, na enseada do lago, o grupo encapuzado ainda se quedava estático,

com o olhar fixo numa minúscula luzinha alaranjada que subia, descia, desaparecia e tornava a aparecer como um milagre de ressurreição. Poucos acreditavam que o barco retornaria. Quando, porém, a luz sumiu e não tornou a brilhar, todos fizeram o sinal da cruz e voltaram para suas casas.

Ao chegar em casa, o velho Jonatam entregou a capa, totalmente encharcada, para a esposa e disse com tristeza na voz:

- Amanhã vou precisar do terno preto. - Para quê? - perguntou, curiosa, dona Lírides. - Vamos ter velório. Um grande homem. Ninguém de nós teve coragem de se

meter nesse inferno de tempestade e ele foi. Sem muita prática. - Sozinho?! - tornou dona Lírides, apavorada. - Ele e uma jovem. Imagine você: uma moça para ajudá-lo. Próximo à desembocadora do rio Tiruê as águas agitavam-se com extrema

ferocidade. Enormes vagalhões avançavam rugindo e jogando o barco para cima e para

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baixo como uma casca de noz. Maurício e Silvana agora enfrentavam a luta mais terrível de toda a viagem.

- Ai, meu Deus, socorrei-nos! - implorava, aterrorizada, a moça.

Silvana - gritou ele - pegue aquela corda ali - amarre-se no mastro principal, senão você vai ser jogada para fora... Rápido, pelo amor de Deus!

- Como é que eu faço? - chorou ela, caindo cada vez que tentava se aproximar do mastro.

- Força! Agarre-se com raiva e enrole a corda. Isso... Assim mesmo... Bravo! Agora tente dar dois nós.

As ondas estavam furiosas. Silvana afrouxou um pouco os laços da corda a fim de abaixar-se para deitar fora a água que já se acumulava perigosamente no fundo do barco. De repente, um vagalhão adernou a lancha e por milagre não a virou. Os dois rezavam baixinho, com a voz apertada pela angústia. A muito custo ele conseguiu repor o barco em posição de combate.

- Ai - gritou ela, horrorizada, arregalando os olhos olhe aí um monstro que vem contra nós!

Maurício voltou os olhos como um gavião e percebeu que se tratava de um enorme tronco de árvore.

- Vamos desviar, senão estamos perdidos. Pegue o remo e faça qualquer coisa - rugiu ele como um leão.

Não havia tempo para assustar-se. Tudo dependia de força, coragem e rapidez. E de sorte. De muita sorte. Como um louco, acelerou ao máximo o motor e guinou o barco para a esquerda, confiando desesperadamente que não surgisse um vagalhão neste preciso instante. O barco inclinou-se, rangeu a ponto de arrebentar, correu alguns metros na crista de uma onda escumejante e depois, obedecendo a uma brusca manobra de Maurício, tornou a endireitar a proa na direção de uma gigantesca coluna de água que se avolumava sempre mais diante de seus olhos arregalados.

Mas, o tronco desapareceu atrás do barco.

- Senhor! - gritou, transido de pavor e quase sem forças. - Tu que acalmaste a tempestade do lago de Genezaré, tem piedade de nós...

Acorda enquanto é tempo e salva-nos! O seu brado foi sufocado pelo rugir das ondas.

- Não tenho mais forças - gritou a jovem, caindo junto ao mastro. - Coragem, Silvana! Já estamos quase fora da rebentação. Agüente mais um

pouquinho. Mas, ela já estava desmaiada. Maurício tratou de superar-se. Sozinho, no

comando do barco, pôs-se a lutar como um bravo contra todas as forças do inferno. Para sua felicidade, dentro de instantes o barco ultrapassava as últimas barreiras da tempestade e deslizava por uma baía de águas mansas, à esquerda das correntes furiosas do rio. Diminuiu a marcha do motor e foi acudir Silvana, que ainda jazia desmaiada. Desamarrou-a e a estendeu na parte mais elevada da popa. Molhou levemente a testa da jovem. A pouco e pouco ela foi voltando a si. Ao ver Maurício à sua frente, sorriu.

- Tive um pesadelo - murmurou. - Sonhei que tínhamos naufragado e que nós dois lutávamos desesperadamente no fundo das águas. Eram águas escuras e sufocantes como tinta preta de sapatos...

- O que importa é que estamos salvos - disse ele, com satisfação.

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Silvana reanimou-se rapidamente. Somente então, quando tudo silenciava ao redor, puderam ouvir um grito lancinante. Maurício chamou com toda a força. Ouviram mais uma vez um grito fraco e distante. Sem perda de tempo, alinharam o barco na direção da voz. Apesar do lusco-fusco do amanhecer, tiveram a impressão de divisar um vulto lá adiante. Era a cumeeira de uma casa e alguns galhos de árvore. Maurício acelerou o motor. Ao se aproximarem, puderam ver uma mulher encarapitada na forquilha da árvore.

Havia ansiedade na respiração de Silvana. Agora ela achava que valera a pena todo o sacrifício. Graças a Deus, podiam salvar alguém. Encostaram o barco junto ao tronco e socorreram a mulher. Só então se deram conta de que ela segurava contra o peito uma criança. Silvana tomou nos braços a criança e Maurício ajudou a mulher a descer até o barco. Teve que segurá-la nos ombros e baixá-la com todo o cuidado, porque ela estava sem forças. Estendeu a sua capa sobre a popa e debruçou sobre ela a mulher. Silvana tirou as roupas molhadas da criança, envolveu-a num casaco de lã e a recostou ao lado da mãe, que permanecia de olhos fechados, a respiração difícil e ofegante.

A margem distava cerca de meio quilômetro e Maurício resolveu atracar a embarcação a fim de acender um fogo, fazer café, secar as roupas e dar o atendimento urgente que o caso requeria. O dia amanhecia. A chuva parara. Escalaram uma pequena encosta rochosa, onde as pedras pareciam mais secas. A mulher e a criança foram deitadas sobre as capas de Silvana e Maurício. Aos poucos o fogo começou a aquecer o ambiente. Depois de alimentada, a criança reanimou-se, o que não aconteceu com a mãe, que estava em extremo estado de prostração. Maurício olhou para o barco e viu, ainda preso no mastro, o lampião, herói da noite, que se mantinha aceso e vigilante. Felizmente o sol apareceu e os ventos amainaram. A região estava transformada num mar de água. Não se via uma casa na redondeza. A criança começou a reagir ao calor. A mulher, porém, continuava tremendo, febricitante e pálida.

- Acho bom partirmos logo para Espigão a fim de darmos toda a assistência a esta mulher. Ela não está nada bem. - O Karina percorreu alguns quilômetros de margem para ver se havia alguém necessitado de socorro.

O rio estava alto, mas as águas acalmaram a fúria desatinada da noite. Apenas o encontro das águas correntosas do rio com as ondas do lago trouxeram algumas dificuldades ao barco. Maurício teve que dirigir com o máximo cuidado para não ser devorado pelas águas, precisamente agora que retornavam sãos e salvos. Alguns pedaços de madeira, barrotes de casas, galhos, criavam constante perigo, obrigando-o a usar toda a perícia. A mulher agora gemia baixinho. O rosto lívido e desfigurado era a própria imagem viva da dor. De vez em quando olhava com carinho para o filho e depois tornava a cair numa modorra total.

Silvana se dedicava aos cuidados da mulher e do pequeno. A certa altura, a mulher abriu os olhos e sorriu, com um sorriso de profundo agradecimento, embora seus olhos demonstrassem imensa tristeza.

- Muito obrigada... - Graças a Deus, também seu filho se salvou - disse-lhe Silvana, buscando

reanimá-la. - Sim... meu filho... - sussurrou ela, sem forças. – Será o único sobrevivente da

família... Meu marido e os outros dois filhos morreram afogados, quando a canoa

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virou... O rio estava violento... Ele quis levar os dois para a margem e depois voltaria para buscar-nos...

Ela calou-se um pouco. Suspirou fundo, e disse com os olhos rasos de lágrimas:

- Eu... eu vi a canoa virar... Eu os vi morrerem afogados... meu Deus! Caiu para trás, fulminada pela dor da recordação.

- Coragem! Eles estão no céu - consolou-a Maurício. Afinal, um dia todos teremos que morrer... Eles apenas a precederam e ficarão esperando pela senhora...

- Por pouco tempo... - disse melancolicamente ela. - A senhora viverá muito tempo, tenha coragem. Seu filho precisará do seu apoio,

de seu carinho. Não desanime, por favor. Deus é grande... Maurício derramava palavras de ânimo, com pena, com bondade, com carinho.

Silvana passava as mãos pelos cabelos da mulher. O pequeno dormia.

Eram já quinze horas. O sol iluminava o lago, dando brilho à cor barrenta das águas. Graças a Deus, a enseada do Espigão do Inferno não estava longe.

De repente, a mulher sofreu um estremecimento e sua respiração foi sumindo lentamente:

- Eu vou morrer... Só lhes peço um favor, pelo amor de Deus. Tomem o pequeno e criem-no como filho... Ele não está batizado... Deus lhes pague...

A voz foi se apagando, como a chama de uma vela. E os dois, mal-e-mal a ouviram repetir, num fio de voz:

- Como um filho... Como... um... filho... - Eu sou sacerdote - disse-lhe Maurício. - Quero que Deus a acompanhe nessa

viagem para junto de seu marido, de seus filhos...e de Deus. Tirou um pequeno crucifixo do pescoço e deu-o para ela beijar, o que fez com

extrema piedade.

- Eu te perdôo todos os teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Enquanto Maurício traçava o sinal da cruz sobre o corpo, a pobre mulher exalava o último suspiro, voltando o rosto ternamente para o filhinho. Maurício e Silvana se comoveram até às lágrimas.

- Por quê?! Por quê?! - se perguntava, chorando, a jovem. Bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor murmurou Maurício. - Agora, o que importa é que salvamos uma criança. E uma criança é o tesouro mais precioso do mundo...

Tomou o pequeno no colo e ficou a olhá-lo com carinho. De repente, assustou-se. O mesmo susto que a jovem tivera momentos antes. O susto de assumir a responsabilidade sobre aquela criança. Não disseram nada, mas seus pensamentos giravam em torno de uma idéia fixa: que diriam os outros ao verem uma criança na vida deles? Maurício olhava o rostinho do pequeno, mas seus olhos denotavam preocupação. Quando a criança sorriu, abrindo as bochechas como se fosse um botão de rosas, ele não agüentou e sorriu também de felicidade. Alcançou-o para Silvana. A moça também sorria.

… No domingo, após a missa, o nenê foi batizado. Os padrinhos foram o velho

Jonatam e sua esposa. O nome Maurissí era uma mescla de Maurício com Silvana. O batizado foi assistido por centenas de pessoas, que vieram cumprimentar os heróis daquela noite. O feito ficou por muito tempo na boca do povo.

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Mas, a vida continuou no seu ritmo normal. Silvana dedicava seu tempo entre o padre Keningan e a criança. Maurício empregava o melhor de suas forças a serviço do povo, procurando não só levar a mensagem do Cristo à população como também melhorar o nível de vida daquela gente. A Cooperativa de Peixes já era uma realidade.

Aos poucos, ele aprendeu a compreender e a amar aquele lugar ardente e madrasto. Maurissí crescia mimoso e sadio, oferecendo momentos de alegria e felicidade aos seus pais adotivos. Tudo andava muito bem. Até mesmo o padre Keningan estava um pouco mais animado.

Certo domingo, no entanto, quando Maurício e Silvana retornavam, com o pequeno, da casa de Jonatam, onde foram tomar o chá da tarde, perceberam extremo nervosismo no padre Keningan. Ele se agitava no leito, falava sozinho, xingava, dizia coisas.

- O que houve? - perguntou Maurício ao doente. - O que houve? - estourou ele. - O que houve? Acabou a farsa. Foi tirada a

máscara. Quer saber? Você foi enxotado para cá a fim de se redimir de seus pecados. E o que é que fez? Trouxe a mulher.

- Calma, padre Keningan, vamos devagar. O senhor está mal-informado. O que acon...

- Chega de conversa. Não admito que aqui nesta paróquia, em que procurei durante anos formar o povo dentro da honradez e da decência, venha o senhor, um ministro de Deus, um homem que devia dar o exemplo, gerar escândalo dentro da minha casa. Mande embora essa mulher. Mande embora. Mande embora.

Keningan urrava. O rosto estava lívido e o suor descia abundante pelas faces. Padre Keningan, esteja certo de que essa intriga só pode ter partido de uma pessoa mal-intencionada.

- O senhor é um homem maduro e esclarecido; acredito, pois, que procurará cientificar-se melhor das acusações. Veja, o senhor mesmo sentiu na carne o quanto dói uma injustiça.

Keningan mantinha-se carrancudo. E insistiu com dureza:

- Por que motivo, então, o senhor trouxe essa moça de fora? Não tem gente aqui em Espigão do Inferno que possa me atender? Não tem? Não tem?

A pergunta era provocante.

- Para lhe ser sincero, só consegui a Eliane e, por causa da morte dela, ninguém mais quer morar nesta casa... Graças a Deus que aqui está a Silvana para dar-lhe toda a atenção que sua idade e saúde merecem. E Silvana sabe que está correndo risco de vida...

- E essa criança... não tem nada a ver com vocês? - perguntou ele, com mordacidade.

- Já lhe contei toda a história, padre Keningan. Quer que a repita? Maurício já estava para perder a paciência. Respirou fundo várias vezes a fim de

controlar-se. Padre Keningan, fique tranqüilo. Não há...

- Não ficarei tranqüilo enquanto não mandar essa mulher embora. Mas, ela precisa cuidar do senhor. - Eu não preciso de ninguém. Estou bem. Eu sei me cuidar sozinho. Mande

embora antes que eu faça um escândalo neste povoado... Silvana ouvia tudo na outra sala e chorava silenciosamente. Maurissí dormia no quarto.

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Keningan estava ofegante. Falara com agressividade, despertando nele o velho leão que jazia adormecido. Agora, sentia-se sufocado, sem respiração. Maurício ergueu-o um pouco e o abanou com força até que recobrasse o fôlego.

Quando saiu do quarto, encontrou a moça deitada na cama, em prantos. Um silêncio pesado caiu entre os dois. Na verdade, ele não sabia o que dizer-lhe. Bem podia imaginar o golpe lancinante que atravessara o coração dela, porque o seu próprio coração também estava sangrando. No primeiro instante, parecia derrotado.

- Silvana! - sussurrou suavemente, passando as mãos pelos cabelos dela. Ela estava deitada de bruços, com o rosto enterrado no travesseiro. Não se

voltou.

- Eu sinto muito... muito mesmo. Mas, não pensemos mais em coisas ruins. Você sabe, depois da tempestade sempre vem a bonança. Tenha coragem. Aconteça o que acontecer, ninguém poderá roubar ou destruir aquilo que você tem dentro de si. Não fique assim. Relaxe. Você é o que pensa que é. E sei que dentro de você só existe bondade, alegria, tolerância e felicidade. Levante a cabeça!

Maurício tomou a jovem nos braços e a fez voltar-se para ele. Havia uma imensa mágoa nos olhos úmidos dela.

- Não se torture, Silvana. Não ponha pensamentos negros dentro da alma, porque, então, sua vida será um túnel escuro e sem saída. Pelo contrário, ponha luz, sinta-se feliz por ter enfrentado a morte aqui dentro desta casa. Sinta-se a heroína daquela noite tempestuosa, cuja coragem esteve acima da coragem de todo este povoado. Você ajudou a salvar uma vida... Você não é um ser desprezível. Você é maravilhosa. Você é uma criatura admirável. Só eu sei quanto valor você tem. Por que se perturbar diante da hipocrisia e da maldade?!

- Ah, Maurício! Você sabe como procuro fazer o bem. Eu não estava cuidando, com todo o carinho, do padre Keningan? Então, por que ele me condena e me enxota?! Ah, Maurício, eu não entendo a sua Igreja...

- Todos podem errar, Silvana. Todos erram. Você tem os seus erros, eles têm os erros deles. Não é, porém, porque existem os erros que a verdade e o bem deixarão de existir.

- Mas, eu nunca tentei destruir ninguém! Silvana, vamos deixar os outros com seus próprios pesadelos. Por que trazer o

drama interior deles para dentro de nós? A verdade é que a vida cicatriza os males e, das lágrimas, faz brotar nova vida, cheia de sol, de alegria, de felicidade... Para isso, no entanto, é preciso dar um salto no escuro... e acreditar... com força... mesmo contra tudo e contra todos...

- Está bem, eu vou-me embora. E o Maurissí? - O Maurissí está na idade em que precisa, acima de tudo, de uma mãe. - Boa-noite, Maurício - disse ela secamente. - Amanhã tomarei o trem... para

nunca mais... Maurício ergueu-se desconsolado. Ficou olhando por momentos aquela pobre

criatura, tão machucada por dentro, e saiu devagarinho, sem dizer palavra.

Ao ver-se sozinha no quarto, Silvana desandou em pranto copioso, como se as torrentes da alma se despencassem de repente. Afundou mais uma vez o rosto no travesseiro para que ninguém fosse testemunha do seu sofrimento. No outro quarto, Maurício não conseguia conciliar o sono. Embora os olhos estivessem secos, por dentro havia um vendaval tentando derrubar todos os seus pensamentos de calma, de esperança e de fé... Buscava agarrar-se em qualquer fiapo de luz... mas a escuridão e a

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amargura desciam implacavelmente, apertando-o numa prensa sufocante. Então, veio-lhe à mente a imagem do lampião no mastro do barco, derramando um pouco de claridade no meio do temporal... Tinha que haver um lampião na sua alma... O pequeno Maurissí dormia, alheio ao furacão que se abatia sobre seus novos pais...

… Maurício olhou para o relógio. Quatro horas da manhã. Ele sabia que às oito

horas partiria o trem. Levantou-se e, pé ante pé, foi ao quarto de Silvana. Não podia aceitar que a jovem partisse carregando um grande desgosto na alma. Claro, sabia que os sentimentos dela estavam ontem fora de controle e queria que essa despedida não levasse a marca da frustração e do desengano.

- Silvana - cochichou ao ouvido da jovem.

Ela voltou o rosto para ele. Não estava dormindo. Talvez nem dormira a noite toda. Maurício sentou-se ao seu lado. Suas mãos, leves como plumas, afagavam os cabelos dela. A jovem ficou impassível por instantes e, depois, atirou-se impetuosamente sobre ele, desatando uma torrente de lágrimas. Este gesto cortou o coração de Maurício, que procurou acalmá-la, passando a mão no rosto dela. Aos poucos, o granito que se formara no coração da moça foi-se desfazendo, como a neve se desfaz sob o calor do sol. Os dois se entenderam nesta linguagem silenciosa e sentiram que a vida ainda era bela, apesar de tudo.

- Silvana, o reino dos céus está dentro de você e não aqui neste lugar. Você parte, mas viaja sempre dentro do seu planeta interior, que é o seu paraíso. Por isso, longe é um lugar que não existe, lembra-se?

- Vou lembrar-me disso. - Eu rezarei por você. - Obrigada. - Cuide bem do nosso... Filho... Não tenha vergonha de chamá-lo de filho,

Maurício. Foi Deus que o colocou nos nossos braços e não é pecado nenhum... parece que você ainda carrega o trauma da inquisição medieval na cabeça.

Súbito, o trem apitou lá embaixo, na estação. O apito da locomotiva soou como uma facada. Dentro de uma hora o trem partiria. Silvana saltou da cama e foi aprontando tudo com a máxima rapidez. Em poucos minutos, ela descia a ladeira com a criança no colo, enquanto Maurício carregava a mala.

- Vai dar tempo - disse ele, procurando conter a pressa. - Adeus, Espigão do Inferno! - exclamou ela, volvendo os olhos para todos os

lados. - Por certo, não será para sempre. Um dia Maurissí virá contemplar a região que o

viu nascer e o barco que o tirou da morte. O barco que lhe deu novos pais - murmurou ela, acariciando o rostinho do pequeno.

O trem apitou pela segunda vez. Dentro de minutos, partiria. Maurício pensou que era melhor assim, porque nada mais duro do que a angústia de uma despedida prolongada. Chegaram. Sem perda de tempo Silvana entrou no trem e se acomodou. Soou o terceiro apito. Longo. Lancinante. E o trem se pôs em marcha. Para Maurício, que se plantara na pequena plataforma a acenar com a mão, aquela parecia uma marcha fúnebre. Quando o comboio desapareceu na curva, os braços caíram pesadamente e ele se surpreendeu com o rosto banhado em lágrimas. A estação estava deserta. A passos lentos, foi saindo para a rua. Deu uma chegadinha no bar do seu Jerusa.

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- Oh, padre Maurício, como vai o senhor? - perguntou o vendeiro, com um largo sorriso nos lábios. Bem, obrigado. E o senhor?

- Tudo bem, graças a Deus. Ainda não tive oportunidade de cumprimentá-lo pela façanha que fez no outro dia, enfrentando a enchente para socorrer uma família. Posso dizer-lhe com sinceridade: o senhor é muito benquisto aqui. Nós precisávamos mesmo de um padre como o senhor, assim, amigo, popular, humano, simples. Muito bem.

- Puxa vida, seu Jerusa, o senhor me deixa encabulado sorriu Maurício, sem muita vontade.

- Mas, mudando de assunto, ontem o senhor teve visita de fora, não é? - Ontem? - Sim, um rapaz bem-vestido, bem-falante, que disse que era seu velho amigo e

queria fazer-lhe uma visitinha. Perguntou-me onde ficava a casa paroquial. - Sim... - Era um moço de cabelos pretos penteados para trás, bigodes grandes, isso aí. Maurício teve absoluta certeza de que era o Corrégio. Estava tudo explicado.

Ainda bem que viajara de retorno no trem da tarde, senão iria encontrar-se com Silvana. Se é que viera de trem.

- Mas, o senhor não quer tomar alguma coisa? - Hoje não, seu Jerusa - respondeu ele, procurando sair o mais depressa possível a

fim de ficar a sós com seus pensamentos. - Pôs-se a subir o espigão, a passos lentos, cabeça baixa, meditando sobre os

acontecimentos que, da noite para o dia, mudaram toda a situação. E esse lugar nunca lhe parecera tão longínquo como agora.

Seu pensamento, então, correu atrás de um trem que cortava coxilhas e várzeas, alongando-se, como minhoca, na direção do sul. Pobre Silvana! - pensava ele. - Por que há homens tão desumanos e duros em seus julgamentos?! Em nome de que lei e de que filosofia o padre Keningan poderia encontrar paz de espírito depois de pôr a correr, daquela forma, uma criatura de Deus, não mais pecadora que a Madalena, que a adúltera, que a mulher do poço de Jacó, que o ladrão pregado na cruz ao lado do Mestre... Será que a Igreja de Cristo é uma sociedade de homens perfeitos? Se fosse uma sociedade de homens perfeitos, quem poderia, de sã consciência, ter lugar nessa sociedade? O Bispo de Rosandur? O Vigário Geral? O padre Keningan? Mas, julgar sumariamente e condenar é sinal de perfeição? E a suprema perfeição não estaria no mandamento do perdão? Então, por que é que tudo teria que acontecer como aconteceu?! E Maurício caminhava, parava, seguia, tropeçava. Pensando. Pensando. Pensando. Ao chegar em casa, Keningan se agitava nervoso. Estava com fome. Maurício foi à cozinha preparar-lhe um café reforçado.

- A mulher já se foi? - perguntou o doente, com olhar superior, sentindo-se como um herói defensor da pureza dos costumes do povo e da Santa Mãe Igreja.

- Já. - Ainda bem. - Só que agora terei mais dificuldade de atender o povo e cuidar do senhor ao

mesmo tempo. - Não precisa se preocupar comigo. Eu sei cuidar de mim. Pode dedicar-se inteiramente ao povo. Espero que agora - e ele deu uma

entonação muito dura à palavra agora - tenha mais tempo para o povo...

Keningan não se entregava. Seu espírito forte e duro sobrepunha-se até mesmo à crescente debilidade do corpo. Maurício tentou conseguir uma empregada. Ninguém quis assumir o risco, uma vez que a morte da Eliane correu de boca em boca. Falava-se

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em assombração. Maldição. Tanta coisa. Maurício, então, desdobrava-se. Mas, a sua preocupação constante era o doente, que agora decaía a olhos vistos. Certo dia, Maurício o encontrou caído, os olhos encovados, a respiração arquejante, o aspecto cadavérico. No dia seguinte, quando foi levar-lhe a sopa, os olhos do enfermo faiscavam:

- Padre Maurício, o senhor não está atendendo o povo como devia. Hoje de manhã esteve aqui uma senhora dizendo que o filho está às portas da morte e o senhor ainda não foi ver a criança. Ela nem sequer está batizada.

- Mas, eu não sabia - ponderou Maurício. - Então - vociferou Keningan, com voz sinuosa e encatarrada - o que é que está

fazendo aqui? O velho parou, exausto. Arrancou todo o resto de fôlego que possuía e

continuou, com o rosto afogueado:

- O senhor acha que o povo vem aqui em procissão à sua procura? Keningan proferiu com tanta explosão essas palavras que caiu sem forças, para

trás, dando com a cabeça no respaldar da cama. Maurício o agarrou com presteza, mas ele dava urros de dor. Um galo avermelhado formou-se na nuca. Maurício tratou de pôr em prática todos os seus conhecimentos para aliviar a dor. Keningan, porém, estava fora de si e bradou:

- Deixe-me em paz e vá batizar a criança, antes que ela morra! Estava sem forças. Fechou os olhos e não se mexeu mais. Maurício não sabia o

que fazer. Era preciso ficar e era preciso ir. Tomou a maleta e se dirigiu, a toda pressa, até o bar do Jerusa, onde conseguiu um cavalo. Devia agir com a maior presteza, não só porque a criança passava mal, mas, principalmente, porque a situação do padre Keningan lhe parecia muito grave. Felizmente, a criança havia se recuperado bastante e foi com muita alegria que a família assistiu ao batizado, esperando, com muita fé, que essa bênção a ajudasse a restabelecer-se completamente. Agora ele só se preocupava em chegar à casa o mais rápido possível. Era por volta das dezoito horas quando devolveu o cavalo e pôs-se a subir a encosta escarpada. Entrou correndo em casa, colocou a maleta sobre a mesa e foi ver o doente. De olhos esbugalhados, imóvel, Keningan parecia uma estátua. Maurício tomou o pulso e auscultou o coração, com terrível pressentimento. Tarde demais. Keningan estava morto. O corpo ainda quente. Desesperado, o jovem sacerdote dava murros na parede. Por que não chegara minutos antes? As sombras da noite penetravam pela janela e ele se sentiu aí como um derrotado. Lembrou-se de dar-lhe a absolvição sob condição e correu para a igreja a fim de dar o toque de finados. O som lento, pesado e lamentoso do sino chamou a atenção dos moradores, que foram saindo de suas casas a perguntar-se quem é que tinha morrido. Devagarinho, uma procissão de gente foi subindo o espigão. O passamento já era esperado, mas, mesmo assim, o impacto da morte de Keningan sacudiu os sentimentos daquela boa gente. Foram tomadas todas as providências. O velho Jonatam foi buscar o caixão, enquanto Maurício, sozinho, lavou e vestiu o morto, pondo-lhe os paramentos brancos da missa. Às nove horas da noite houve missa de corpo presente na igreja e, depois, o velório se prolongou durante toda a noite. De hora em hora, o sino dobrava a finados. A notícia se espalhou célere e no dia seguinte uma multidão veio acompanhar o velho pároco à sua última morada, atrás da igreja. Maurício estava triste. Muito triste. Não conservava mágoa nenhuma em seu coração. Apenas desejava ardentemente que Deus tivesse Keningan no Reino dos Céus, pelo qual lutara tanto.

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Às quatro horas da tarde era rezada missa de despedida naquela mesma igrejinha que durante anos ouvira a voz profética e dura de um homem que se demolia na ânsia de aperfeiçoar os caminhos do povo de Deus. Aquelas mãos inertes, aqueles olhos fechados, aquele coração estancado, aquele cérebro esvaziado, era o que restava de um homem rigoroso e perfeccionista. Um homem sem medo. Mas, quem poderia jurar que não se tomara de pânico ao pisar o limiar da eternidade? Eternidade, o grande enigma de Deus. Qual seria o tamanho exato da justiça do Criador? Nos seus pensamentos, Maurício teve pena do velho Keningan. E pediu ao Pai por ele. Enfim, esse homem fora um herói nessa terra desgraçada e madrasta. Quem poderia negar que a dureza e a agressividade da vida não tenham sido as culpadas pelo enrijecimento das fibras e da sensibilidade daquele homem? Sem dúvida, Deus lhe terá dito: Vem cá, meu velho resmungão, entra aqui de uma vez no reino da paz e da felicidade!

Keningan foi enterrado numa sepultura pobre, de pedras brutas, construída às pressas atrás da velha igreja que ele construíra.

Quando o silêncio da noite caiu sobre o Espigão do Inferno, o povo já tinha ido embora e Maurício caminhava solitário para cá e para lá, ao redor da igrejinha. O lago, lá embaixo, estava calmo. A estaçãozinha de trem, do outro lado, estava vazia. Apenas alguns grupos de pessoas, que vieram prestar a última homenagem ao falecido, percorriam a rua empoeirada. Maurício pensava agora em colocar toda a sua juventude a serviço daquela gente. Sentia que era preciso descer até o povo, já que o povo se esquecera de subir até Deus. Começaria, antes de tudo, por incutir uma nova imagem de Deus. Aquele povo sofrido e castigado precisava conhecer um Deus bom, amigo, acessível, compassivo, com rosto feito de sorrisos e de lágrimas, enfim um Pai de olhos amorosos e gestos de perdão. Na sua meditação, ele entendia que a imagem de um Deus implacável e justiceiro acabaria criando angústia diante das fraquezas de cada um e poderia gerar o afastamento do homem no intuito de evitar um confronto com a Justiça Divina. A noite descera e ele entrou em casa. A solidão e o vazio moravam em cada peça. Apesar de sua formação superior, ele sentiu-se comprimido por dentro. Uma espécie de tristeza gelada, que o apertava. Demorou-se um pouco no quarto de Keningan: a cama desarrumada, os lençóis caindo para o lado, os remédios sobre o criado-mudo, o rosário amontoado no chão. Ajuntou o rosário e colocou-o sobre a cômoda. Recolheu os lençóis e as fronhas para queimar tudo. Foi então que viu um pedaço de papel no meio da roupa de cama. Tomou-o na mão. Era um bilhete escrito em letras horríveis pelo padre Keningan:

“Padre Maurício, estou morrendo. Tenho medo. Sinto-me pequeno diante de Deus. Perdão por tudo, não guarde mágoa contra mim, por favor. Reze por mim. Adeus.”

... A casa paroquial agora começou a tornar-se ponto de reuniões e encontros.

Grupos se reuniam com freqüência, estudava-se religião, debatia-se a melhor forma de acelerar o progresso de Espigão do Inferno. De vez em quando eram promovidas peixadas festivas. Tudo parecia andar bem. Até o dia em que Maurício recebeu uma correspondência com o brasão da diocese de Rosandur.

- Finalmente levantarão meu exílio - pensou ele, acreditando que o azar não poderia ser tanto durante tanto tempo.

- É de se supor - dizia para si mesmo - que também lá para as bandas da civilização as pessoas mudem um pouco. Garanto que foram suspensas as penas do inferno. Maurício riu-se da expressão e pôs-se a rasgar a sobrecarta. Estava disposto a

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esquecer tudo. Enfim - resmungava ele de bom humor - todos têm o sacrossanto direito de errar na vida.

Desdobrou a folha de papel e leu:

“Revmo. Padre. Laudetur Jesus Cristus. Profundamente consternados com o passamento de nosso dileto irmão Konrado Keningan, unimos

nossas preces às preces do povo de Espigão do Inferno, a quem Sua Revma. dedicou a vida apostólica durante tantos anos.

Mas, entristeceu-nos sumamente, no entanto, tomarmos conhecimento de que V. Revma. deixou aquele idoso sacerdote, gravemente enfermo, abandonado à própria sorte, a ponto de vir a falecer sem a sua assistência. Seria justo e humano pensar que V. Revma. desse amparo e acolhimento cristão ao seu irmão, principalmente nas horas angustiantes e decisivas que antecedem o desenlace. E o que fez V. Revma.? Saiu de casa, só retornando quando nosso querido irmão jazia morto sobre o leito.

Padre Maurício, que Deus tenha pena de sua alma desfigurada e endurecida. Seu comportamento desumano mereceu nossa reprovação total. Diante deste doloroso fato, agravado pela reincidência em fatos anteriormente condenados, sentimo-nos no indeclinável dever de transferi-lo com toda a urgência para a cidadezinha de Montes Brancos, no sul do País. Rogamos ao Senhor Onipotente e misericordioso para que faça com que V. Revma., isolado no retiro gélido e branco daquelas regiões nevadas, possa reencontrar-se consigo mesmo, com sua consciência e com Deus.

Esperamos que sua despedida de Espigão do Inferno não seja tão solitária e fria quanto a morte de nosso amado irmão Keningan.

Seu em Cristo, Monsenhor Teófilo Santoro, Vigário-Geral.”

Maurício dobrou a carta vagarosamente, aturdido pela inesperada surpresa.

- Até quando, Senhor?! - foi só o que conseguiu dizer. Estava desconsolado.

- Afinal, meu Deus - desabafou ele, entrando na igreja eu não sou um pedaço de pau, não sou um animal, não sou um verme para ser pisoteado a cada instante... Eu sou gente. Eu sou um ser humano, tão sensível como eles lá. Tão pecador quanto eles lá. Tão cheio de boa vontade quanto eles lá... Por que esta carga para cima de mim? Tudo tem limites, meu Deus.

Mauricio calou-se. E o eco das suas últimas palavras o assustou. O sangue começou a descer do rosto e, a pouco e pouco, a tempestade foi amainando no seu interior. Seus olhos giraram pela igreja e acabaram se fixando num grande crucificado. Teve a nítida impressão de que o rosto de Jesus foi ganhando vida e os lábios se moveram para dizer-lhe:

- Calma, meu amigo. Se eu não tivesse sofrido, não teria ressuscitado. Para cada lágrima de sofrimento você tem reservadas cem lágrimas de alegria. Por que se preocupa com os acertos e desacertos dos outros? Cada um tem o seu próprio tamanho interior. Se você julga e amaldiçoa sem mais nem menos, não está incorrendo no mesmo erro que está condenando? Calma! Ponha sol no seu coração. Lembre-se que o paraíso é um estado mental.

- Está bem, Mestre, mas seria muito melhor, se todos se dedicassem a agir conforme os teus ensinamentos, quero dizer, com justiça, com tolerância, com lucidez, com amor.

- Mas, é preciso reconhecer que o estágio mental dos seres humanos varia muito de um para outro. A luz está aí para todos, mas a receptividade dessa luz depende da abertura de cada um. Foi por isso que meu Pai resolveu preservar a felicidade e o amor, colocando-os dentro de cada um, a salvo das tropelias e equívocos vindos de fora. Saiba, no entanto, que eu gosto muito de você. Irei junto com você.

Maurício quedou-se estático. Arregalou os olhos. Aproximou-se bem do crucificado. Lá estava ele inerte, como sempre. Fora verdade ou fora alucinação? De

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qualquer forma, o milagre acontecera: estava calmo, cheio de paz, iluminado interiormente. Estava bem. Saiu para fora da igreja e pôs-se a contemplar o pôr-do-sol lá para as bandas do lago. Atrás de si, encostado na parede da igreja, estava o túmulo do padre Keningan.

- Meu caro Keningan - disse ele - tu sabes que não foi assim. Faze qualquer coisa por mim... Vai, amigo, olha para mim lá de cima.

. . . Naquele domingo a missa foi rezada no bar do seu Jerusa. As dependências do

estabelecimento estavam superlotadas e o povo se derramava pela rua e pelo lado de fora das janelas. À hora do sermão, Maurício fez o sinal da cruz e falou:

“Meus queridos amigos e amigas. Este é um momento muito importante na minha vida. E muito emotivo. Quero recordar, sensibilizado, três pessoas falecidas aqui: a jovem Eliane, que perdeu a vida na quadra mais linda e florida, em cumprimento de uma obra de generosidade pessoal; a mãe do pequeno Maurissí, que passou a noite tempestuosa heroicamente, dando a vida para que seu filhinho vivesse; e o padre Keningan, que permaneceu durante tantos anos nesta região inóspita e difícil, ele que poderia ter optado por outro modo de vida mais condizente com sua cultura.

Meus amigos, como é bom a gente lembrar o bem que os outros fazem! Isto nos anima e nos impulsiona para frente e para o alto. Alguns poderiam perguntar por que é que hoje eu preferi rezar esta missa aqui no bar. Porque foi aqui que começamos a nos encontrar com Deus, desde a missa daquele distante domingo, e porque é bom que seja aqui a última missa que rezarei em Espigão do Inferno. Hoje estou me despedindo de vocês. Sinto muito. Muito mesmo. Recebi determinação superior e deverei partir amanhã. Estejam certos de que guardarei esta terra e cada um de seus habitantes em meu coração. Aqui aprendi muita coisa importante para minha vida. Peço que me desculpem por todo o bem que deveria ter feito e não o fiz. Enfim, todos somos humanos. O ideal está sempre um pouco adiante de onde estamos, não é verdade? Mas, o que vale é o amor e a boa vontade que tenho por vocês. Que Deus abençoe a todos e a cada um de vocês. Amém”.

O padre Maurício traçou mais uma vez o sinal da cruz e prosseguiu a missa, recitando o “Creio em Deus Pai, todo-poderoso” .

Enquanto o povo acompanhava a oração, ele notou que os rostos estavam sombrios de tristeza. Esforçou-se muito para conter as lágrimas, que tentavam aflorar na ponta dos olhos. Depois da cerimônia, ninguém o deixava em paz. Todos queriam saber como era possível que isso acontecesse, logo agora... E ele se esforçava intimamente para dar uma resposta que não ferisse a sensibilidade daquela boa gente. Recebeu convites para o almoço e para a janta. Havia tanta gente que queria dar-lhe demonstrações de carinho.

Ao meio-dia, almoçou com a família de Jonatam.

À noite, recusou qualquer convite, pois desejou ardentemente estar só e percorrer os lugares mais emotivos para o seu coração.

Passou algum tempo no espigão a contemplar o vasto panorama, iluminado vagamente pelo luar; lá embaixo, o lago sereno, tingido de azul-marinho; do outro lado as luzes da estação, do bar, das casas alinhadas à margem da rua. Lembrou o dia em que chegou, só e desconhecido; lembrou o dia em que chegou Silvana, exausta e empoeirada; olhou para a casa paroquial e reviveu todos os acontecimentos.

Caminhou até o túmulo do padre Keningan e ficou com pena de ver aquele homem jogado aí dentro da terra...

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Foi até o cemitério e parou, por momentos, diante da sepultura da Eliane. Chorou. Seguiu mais para baixo e foi rever a cova rasa em que depositaram a mãe do Maurissí...

Desceu lentamente a encosta, a caminho do lago Tiruê. Tomou o barco menor do velho Jonatam e saiu remando com suavidade para não despertar aquele mundo liquido de seus sonhos misteriosos...

A noite estava linda. Muito linda. Uma profunda emoção o envolveu e ele sentiu-se assim como Alice no País das

Maravilhas. Mergulhado em tantas reminiscências, nem ele soube quanto tempo ficou a navegar sem rumo. Ao atracar o barco, ouviu passos.

- A estas horas?! - pensou. Era Jonatam Júnior.

- Você por aqui?! - exclamou, surpreso, Maurício. - Sei que o senhor veio se despedir do lago - disse o rapaz. Maurício se admirou do tom da voz do moço. Nunca conseguira desfazer a

profunda mágoa que a morte da Eliane provocara no jovem. Na sua formação rude, ele descarregava toda a sua revolta contra Maurício.

- Padre Maurício - começou o rapaz, dando a entender que queria confessar algo muito importante - eu vim me despedir do senhor... e pedir desculpas... por tudo... Havia lágrimas no rosto do rapaz. Ambos ficaram abraçados por momentos, misturando as lágrimas e conciliando os sentimentos.

Era uma hora da madrugada.

Às sete horas da manhã, o café já estava pronto, na cozinha da casa paroquial, preparado pela dona Lírides. Maurício acabava de recolher seus pertences. Tomou café, juntamente com toda a família do velho Jonatam, que o acompanhou até a estação.

O trem já havia apitado duas vezes quando lá chegaram. O movimento era intenso. Muitas pessoas estavam na gare para despedir-se. E no interior da estação uma verdadeira multidão de gente se acotovelava, querendo aproximar-se de Maurício, para levar-lhe o último adeus. O jovem sacerdote ficou surpreso. Nunca lhe passara pela cabeça que alguém fosse à estação, pois já se havia despedido publicamente durante a missa. O seu Jerusa estava afobado. Rompia a barreira humana, pedindo passagem, ansioso por chegar até Maurício. Portava algo na mão.

- Padre Maurício, chegou esta correspondência para o senhor. Ele reconheceu a letra. Guardou a carta no bolso e continuou desejando toda

felicidade às pessoas que vinham dar-lhe o último abraço.

Terceiro apito. Maurício entrou rápido no trem.

Quando o comboio começou a sacolejar, abanou para todos, no adeus, quem sabe, para nunca mais... Permaneceu ainda por longo tempo submerso num mundo vago e nostálgico. Depois, pôs a mão no bolso e tirou a carta:

“Alvores, 18 de dezembro Maurício Desejo, de coração, que esta carta encontre você muito feliz e cheio de saúde. Lembro, com

muito carinho, todos os momentos que passamos juntos, conversando, trabalhando, meditando, brincando, passeando, curtindo as boas coisas da vida.

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Quando cheguei em Alvores com o Maurissinho, as más línguas se encarregaram de espalhar maledicências, mas eu já me sinto num outro plano e nem esquentei a cabeça. Cada pessoa tem o seu próprio tamanho interior e algumas são tão pequenas, que vivem no submundo da calúnia e do ódio. Um dia, no entanto, também essas criaturas hão de mergulhar na luz e aí verão as maravilhas que existem na alma de todo ser humano.

Puxa vida, isso nem parece carta. Tem mais o feitio de uma tese filosófica, não acha? Apenas falei isso para dizer-lhe que sigo, aqui em Alvores, a minha vida com muita alegria, de cabeça erguida, ocupando meus espaços dentro da comunidade. Eu sou feliz, porque cultivo a felicidade dentro de mim.

Quero dizer-lhe que jamais esquecerei tudo o que aprendi de você. Acredito que o momento mais lindo da minha vida foi quando o conheci. Você ampliou ao infinito a grandeza do meu mundo. Hoje sou outra pessoa, graças aos seus ensinamentos, à sua paciência, à sua tolerância, à sua bondade e ao seu espírito aberto e liberto. Até mesmo nos momentos em que a felicidade fazia explodirem em mim as emoções sensuais, você sabia ser uma presença iluminada, sem traumas e sem recalques.

Como eu admiro você! Além de tudo, você é um mestre. Um mestre até mesmo estranho no mundo de hoje,

porque sempre procura ver e mostrar o lado bom e positivo de tudo.

Sabe, Maurício, eu vivo em dois mundos: um é esse mundo de todas as pessoas, esse de casa, do trabalho; o outro é bem diferente: é um mundo em que me transporto com facilidade, quando tudo está quieto, sem ninguém por perto. É um mundo cheio das mais belas flores coloridas, um mundo de muito amor e felicidade.

É lindo, fascinante. Um mundo de sonho e de verdade. E este mundo foi criado por você.

Não quero, com isso, dizer que estou apaixonada. Não é isso. Quero dizer que quando a gente encontra um tesouro, deve usufruí-lo. Você é um tesouro muito raro. Qualquer pessoa sentirá a sua atração benfazeja, porque nada atrai mais do que o amor. E você é amor. Por isso, você vê com naturalidade quando essa energia superior encandece outras energias, também grandes na sua própria dimensão, e imanentes da energia infinita. Parece que estou falando difícil, mas sei que você me entende.

O mundo, os gestos, a vida, os atos humanos são lindos para quem tem a alma iluminada. Onde há luz, tudo é luz.

Mas, chega de filosofar. O Maurissinho está muito querido.

É um tesouro que eu cuido com todo amor.

Estou dando a ele aquela educação positiva que você mesmo daria. Mas, não esqueça que você prometeu ser pai adotivo dele. Nada de ficar com vergonha. Pelo contrário, o mundo todo devia felicitar você por tamanha bondade e desprendimento. Lembre que longe é um lugar que não existe. Mentalize e ore por nós.

Devo confessar-lhe que, quando cheguei, meus pais queriam enxotar-me de casa, dizendo que eu era a vergonha deles...

Santa ignorância! Mas, em tudo sempre existe o lado bom, pois foi aí que resolvi ter a minha casa própria, onde vivo como quero e não atrapalho ninguém. Ela é o meu paraíso. Aqui, seguidamente recebo a visita da Marisete. Por sinal, ela queria tanto ficar com o Maurissinho. Talvez fosse um pouco de remorso pela lembrança do passado, sei lá...

E você, como é que vai? Cuide-se bem. Reze sempre a Deus para conservá-lo com saúde...

E o padre Keningan, como está? Foi uma pena eu não poder continuar cuidando dele. Puxa vida, ele não podia ter feito aquilo comigo. Bom, mas já passou... Desejo que se recupere totalmente.

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Bem, acho que a carta está longa demais.

Receba o meu abraço carinhoso. Você é um AMOR. Claro, com letras maiúsculas.

Silvana.”

Maurício fechou a carta e ficou rememorando as palavras.

Uma névoa indefinível de paz descia sobre seu coração. E ele começou a sentir a vida numa amplidão infinitamente maior do que as dimensões de seu pequeno mundo. E se perguntava: teria Silvana acrescentado algo mais à sua vida, aos seus sentimentos, ao seu espírito de tolerância e de compreensão? Teria ampliado sua visão do mundo e dos mistérios insondáveis dos corações? Teria acrescentado alguns pontos à sua própria medida de felicidade e de amor?

O trem continuava sua marcha monótona e sonolenta, alheio às pessoas que conduzia e às árvores e animais que animavam a paisagem ao longo do caminho de ferro...

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CAPÍTULO 8

Quando Maurício chegou em Montes Brancos, parecia-lhe ter penetrado a solidão do limbo.

Era o dia vinte e quatro de dezembro, véspera de Natal. Fazia mais de dois anos que a pequena comunidade pedia um sacerdote. Para o povo, este era o melhor presente de Natal dos últimos anos. O frio estava terrível. Três graus abaixo de zero. A neve caía gélida e esfiapada, formando flocos sobre os telhados, as árvores, os muros. As ruas estavam cobertas por um longo e espesso lençol branco.

Maurício, ao contemplar a paisagem de Montes Brancos, na véspera do Natal, lembrou-se dos presépios cobertos de algodão que se faziam nos tempos longínquos da sua infância. Montes Brancos parecia uma cidadezinha perdida no cosmo. As poucas pessoas que saíam à rua estavam agasalhadas com felpudos abrigos de lã.

A notícia da chegada do padre correu alviçareira. Barcos percorriam as regiões ribeirinhas do lago Niraka avisando o povo. Trenós subiam e desciam montanhas de neve levando a boa nova por toda parte: naquela noite haveria missa do galo. Os sinos bimbalharam alegremente desde as dezoito horas, a intervalos de hora em hora.

Maurício foi conduzido à casa do diácono Vânio Iris, onde se hospedaria até ser-lhe entregue uma residência especial.

A neve continuava caindo. Era uma raridade naquela época do ano. Os mais velhos recordavam que pouquíssimas vezes ocorrera esse fenômeno no Natal. As casas de madeira, com as cumeeiras em ponta, ofereciam uma cena poética de rara beleza.

O abatimento inicial que a natureza fria provocara em Maurício, agora já se desfazia diante da aproximação da festa do nascimento de Jesus. E a felicidade irradiada nos olhos daquela gente simples e boa animava seu espírito.

À meia-noite, a igreja estava repleta de gente encapotada até a ponta do nariz. Maurício sempre sentira uma profunda emoção na missa do galo. Mas, dessa vez, parecia que estava num outro mundo, diferente e fantástico.

Após a missa, foi convidado para tomar chocolate quente com tortas típicas da região. As famílias, reunidas na casa do diácono, estavam muito curiosas para saber um pouco de sua história e achavam inacreditável que existisse um lugar tão quente como Espigão do Inferno. Por seu lado, Maurício aprendeu muito sobre nevadas, refúgios e salvamentos.

Depois de alguns dias, recebeu uma casa para morar, por conta da comunidade de Montes Brancos. Aconchegante, feita de madeira de cipreste, a casa ficava a dezenas de metros da igreja. Na frente, dois ciprestes e algumas folhagens castigadas pelas nevadas extemporâneas; ao fundo, um pequeno bosque de árvores nativas. Era uma residência muito agradável.

Inicialmente Maurício procurou conhecer os costumes daquela gente. Quando o tempo melhorou e a temperatura subiu, fez uma viagem com o Vânio através dos lagos formados pelo degelo e visitou todas as populações ribeirinhas.

Em janeiro, fevereiro e março, meses quentes, em que a neve se abriga apenas nos cumes das montanhas e em alguns bolsões mais raros, ele percorreu as encostas e as pequenas povoações isoladas nos vales.

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Sem dúvida, era uma vida dificil e sacrificada. Mas, ele era forte e enfrentava a dureza com espírito alegre. Aprendera a estar sempre de bom humor e radiante; este estado mental positivo tornava agradável o seu viver. A imponência das montanhas e a grandeza dos cenários extasiavam sua alma, tornando seu exílio uma aventura fascinante.

… Padre Maurício, tem visita na sua casa. Era a dona Madalena, a vizinha, que o avisava da janela da casa. Maurício vinha

chegando de uma viagem realizada no refúgio norte do Cerro Cajado, onde fora ver um doente.

Dona Madalena abrira a casa para a visita.

- Quem poderia ser? - pensava ele, apressando o passo. - Oh, Silvana! Que surpresa inacreditável! Não é possível! Os dois se abraçaram comovidos.

- Veja o Maurissí, como já está grande! - disse ela, com imenso contentamento. - Mas, como é que pode?! - exclamava ele, quase não acreditando no que via. Sabe, a última carta que eu lhe escrevi com o endereço de Espigão do Inferno veio

de volta com uma anotação que você tinha sido transferido. Procurei, então, aquele meu amigo lá da cúria e ele me contou que você fora designado para este lugar... Mas, santo Deus, isto aqui é um outro planeta! Puxa vida, o que é que houve desta vez?

- Fui acusado de negligência pela morte de Keningan... - Oh, o padre Keningan morreu? ! - É... - Bem, eu notava que ele estava decaindo muito. Maurício contou-lhe o que acontecera.

- Que injustiça! - clamou a jovem. - E você? - perguntou ele, tratando de mudar de assunto. - Eu passei bocados difíceis quando cheguei em Alvores, com a criança. Você

sabe, Alvores é uma cidade pequena e as más línguas se encarregam de espalhar boatos e mexericos... Fiquei desolada, com tanta maldade. Depois, pensei: o problema é de quem fala mal e não meu. Não devo entrar em sintonia com a maldade. Procurei colocar a cabeça no lugar. Lembrei-me de seus ensinamentos e disse para mim mesma: a vida é minha, eu é que devo saber de mim. Não posso deixar que algo de fora perturbe o meu interior. Se o meu coração estiver cheio de sol e de flores, ninguém poderá destruí-los, a não ser que eu mesma queira ou permita. Então, resisti. Esqueci. Procurei engajar-me na vida de todos os dias. A Marisete e seu Josias sempre foram meus grandes amigos e minha força.

- E por que veio parar neste mundo gelado? A moça sorriu:

- O mundo não é gelado. É sempre um paraíso. Agora foi ele quem sorriu. E brincou:

- Você sabe por que este lugar é muito frio? - Não! Porque este lugar foi descoberto há milhões de anos e nunca mais o cobriram. Silvana achou graça da piada. E acrescentou:

- Pensei que você fosse dizer que aqui é tão frio que as galinhas, ao invés de botar ovos, botam sorvetes e picolés.

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- Sabe o que é que estou pensando? - disse ele, entusiasmado. - Colocar uma fábrica de picolés? - Não, agora estou falando sério. Montes Brancos tem uma escola fechada por

falta de professor e... - E você acha que eu devo abrir a escola. - Que tal? - Concordo. - Está feita a mais recente contratação de Montes Brancos tornou a brincar

Maurício. - Agora vamos comemorar, com antecedência, a inauguração da escola.

Ele foi para a cozinha e preparou chocolate quente. A mesa estava farta.

Maurissí estava com fome e adorou o chocolate.

.. .. Quando Maurissí completou quinze anos, era um jovem forte, alegre e de boa

educação. Muito inteligente e vivaz, dava trabalho à professora, que outra não era senão sua mãe.

A adolescência, que muitas vezes decorre tumultuada na vida dos jovens, para Maurissí transcorria normal e tranqüila. Já ia muito longe o dia em que ele dera um grande susto à Silvana:

- Mamãe, todas as crianças têm pai? Onde é que está o meu pai? - Silvana mudou de cor. Teve vontade de dizer que o pai tinha morrido e pronto.

Notou, porém, que Maurissí já estava em condições de entender a sua verdadeira história.

- Maurissinho, você tem uma história muito linda. Parece uma história de fadas. É... Porque você não nasceu; você foi trazido por Deus... numa noite terrível de enchente e de tempestade...

- O quê?! - cortou o garoto. - Eu não nasci? - Espere aí um pouquinho... Eu fiz apenas uma imagem. Claro que você nasceu...

Mas, a sua história começou com um milagre de Deus... Uma coisa tão maravilhosa que eu nem sei como começar... Chego a ficar emocionada...

E, realmente, Silvana estava emocionada. - Uma noite o padre Maurício foi acordado a altas horas da madrugada. Alguns

homens o avisaram de que havia uma grande enchente no rio Tiruê. O rio Tiruê desembocava num grande lago. Perto do lago ficava o povoado de Espigão do Inferno, um lugar muito quente e muito pobre. Pois, os homens foram acordar o padre Maurício e disseram que havia uma família em perigo, isolada pelas águas da enchente. O padre Maurício queria ir salvar as vítimas, mas ninguém quis ir junto. O tempo estava horrível e todos tinham medo de que o barco naufragasse. Eu me decidi a acompanhar o padre Maurício. Naquele tempo eu estava lá em Espigão do Inferno, cuidando de um padre muito velho e muito doente. Então, saímos de barco. Os relâmpagos riscavam o céu. Era uma noite horrível. As ondas jogavam o barco para cima e para baixo, como uma casca de noz... Foi terrível, meu filho. Não naufragamos por milagre de Deus.

- Conta, mãe. - Graças a Deus, conseguimos atravessar o lago e, lá longe, muito longe, ouvimos

pedidos de socorro... - Tinha gente morrendo?

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- Tinha gente em perigo. Seguimos na direção dos gritos e encontramos, num galho de árvore, uma mãe com uma criança no colo. Embaixo, as águas da enchente subindo, subindo...

- Ela tinha uma criança? - Ela passou a noite inteira debaixo do temporal, segurando a criança, que era seu

filho. Nós salvamos os dois. Mas, a mãe estava muito fraca e morreu dentro do nosso barco.

- Coitadinha! - E, antes de morrer, ela disse: “Eu vou morrer. Peço-lhes, pelo amor de Deus, que

tomem o pequeno e criem-no... como um filho.” Veja, Maurissinho, que coisa linda: aquela mãe morreu para salvar o filhinho.

- Pobre daquela mãezinha! - exclamou Maurissí, com muita pena. - Mas, também, quanto ela não sofreu naquela árvore para segurar o filhinho, não é mesmo, mamãe?

- É... E quanto não terá rezado para que Deus salvasse pelo menos o filho... - E o pai? - O pai morreu afogado, coitadinho! - Mãe, eu queria ver aquela criança. Onde é que ela está? A senhora deixou lá

naquele lugar? Silvana estava comovida. - Não, eu nunca abandonei aquela criança. Também o padre Maurício fez tudo que

pôde por aquele pequenino ser que Deus pôs em nossos braços. - Então, onde é que ela está? - Aquela criança é você, querido! - disse Silvana, abraçando o garoto, com

lágrimas nos olhos. Maurissí desvencilhou-se bruscamente dos braços de Silvana e saiu correndo

para fora de casa. Tinha nove anos de idade. Silvana ficou estática, vendo ruir, num instante, todo o seu esforço... Ele não entendera. E, agora, por certo, a rejeitaria por não ser a verdadeira mãe...

- Ah, meu Deus! - chorou ela, sozinha. - Depois de tudo que fiz por ele, será que vai me detestar?

À noite, quando ela se deu conta, o garoto já estava na cama. Como sempre fazia, foi até ele para cobri-lo bem e dar-lhe um beijo de boa-noite. Ainda estava triste e abalada. Inclinou-se para dar-lhe o beijo e, então, o garoto a agarrou com as duas mãos pelo pescoço e disse:

- Desculpe, mamãe... Sabe, eu fui falar com o Papai do Céu lá na igreja e xinguei ele porque deixou meu pai e minha mãe morrerem. Ah, eu xinguei ele, mamãe! Aí, sabe o que o Papai do Céu me disse? Disse assim: Olha, meu filho, Papai do Céu gostava tanto de você que não lhe deu só um pai e uma mãe. Deu-lhe dois pais e duas mães, e tão maravilhosos que você se queixa de boboca. Você não é um infeliz. Você é um menino muito importante pro Papai do Céu. Por isso é que teve dois papais e duas mamães... e por isso é que foi salvo assim, por milagre... Fique contente... E saiba que quem salvou você foi também o Papai do Céu e a Mamãe do Céu. Viu como você é querido? Viu? E aí o Papai do Céu me disse: Vá lá e peça desculpa para a sua mãe. Então, eu esperei que a senhora viesse aqui.

Silvana chorava e ria ao mesmo tempo. O garoto se levantou e beijou, com todo o carinho, as faces afogueadas da mãe. Nesta hora, ela sentia-se compensada por todos os sacrifícios que passara neste mundo.

O tempo foi passando e Maurissí já estava com quinze anos. Era um rapazote sadio e feliz. Geralmente o primeiro na escola e muito destacado nos esportes.

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Mas, naquele outono, tudo começou a mudar. Passou a ficar nervoso e solitário. Parecia torturado por alguma coisa secreta. A angústia se projetava em suas atitudes.

Silvana conversou com Maurício a respeito. Este já havia percebido e observava atentamente o jovem a fim de detectar a causa da mudança. Na verdade, ele sabia que a adolescência era uma idade instável, em que todo jovem procura firmar-se, usando até, muitas vezes, formas desconcertantes. Mas, não era menos verdade que ele e Silvana usaram os melhores métodos de abertura e sinceridade para com o rapaz, de maneira a não perturbar seu desenvolvimento equilibrado. Agora, no entanto, algo de anormal estaria ocorrendo.

Um dia, aconteceu o pior: Maurissí desapareceu de casa.

Apenas deixou um bilhete, em cima da cama, com estes dizeres:

“Vou fazer uma viagem muito importante para mim. Não se preocupem. Já sou gente. Voltarei. Maurissí.”

Silvana ficou desesperada e queria sair à procura do rapaz.

Maurício deixou a cabeça esfriar e ponderou:

- Olhe, Silvana, se ele fez isso é porque realmente se trata de algo muito importante para a vida dele. Pode ser que seja importante por causa da idade e das suas angústias existenciais. Creio que o melhor caminho é deixar que ele tente resolver seus problemas. Nós demos uma educação adequada, suave, inteligente, firme e bondosa. Ele não iria agir sem uma razão muito forte.

- Que razão? ! Diga-me: que razão? ! Ela estava debulhada em prantos.

- Não é possível, Maurício! E se ele nunca mais voltar?! E se morrer atirado por aí?! Ah, não, por que é que ele foi fazer isso conosco?! Você acha que a gente merecia um tratamento desses?!

- Eu acredito nele. Ele tem inteligência, força de vontade, discernimento, e saberá resolver as situações que surgirem. Talvez, até, esta seja uma aventura em que queira se provar que é homem. Tudo pode passar pela cabeça de um adolescente.

Silvana passava os dias muito aflita. Um peso a aniquilava diariamente e ela até perdera a vontade de viver. Seus olhos sempre se alongavam em direção à estrada e à estaçãozinha de trem. Maurício ficou preocupado com ela e procurou instirar-lhe fé e confiança:

- Silvana, não se aflija. Nós demos amor e uma boa educação ao Maurissí. Ora, uma árvore boa não pode produzir frutos maus. Amor produz amor. Você plantou amor no coração do pequeno, portanto não vai colher ódios e nem desprezo. Confie nele. Embora, para você, que é muito madura e esclarecida, a atitude dele pareça injustificada, para ele, de acordo com o alcance de sua mente em maturação, pode significar um ato correto, necessário, bom e importante.

- Sim, Maurício, mas nada justifica. - Claro, para você, para nós. Para ele, no entanto, pode existir algo na cabeça que

torne justificável e bom o que fez. - O quê? Me diga: o quê? - Esperemos. Com fé, com mentalizações de amor e compreensão. Eu não me

preocupo, porque sei que toda árvore boa produz frutos bons, como ensinou o Mestre. - Estou preocupada e com medo. - São pensamentos negativos, que só fazem mal a ele e a você. Você sabe que nós

somos um no universo, portanto, todo seu pensamento sobre ele, ou dirigido a ele, estará

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atuando na sua mente. Medos e preocupações agem prejudicialmente. Preces de amor e proteção divina agem beneficamente. Mentalizações de carinho, de bondade, de confiança e de retorno atuarão nessa direção na mente do rapaz. Pense que ele precisa da sua força, do seu apoio, da sua ajuda e invoque o Pai Celestial para que o conduza pela mão, ilumine os passos dele e o traga de volta são e salvo. E muito feliz e amoroso. E assim será.

Silvana ficou em silêncio para analisar os ensinamentos de Maurício. E começou a colocá-los em prática de imediato, pois o seu rosto adquiriu uma luz estranhamente bela, seus olhos subiram ao Alto e, com certeza, ela falava ao filho palavras de amor e de proteção. A partir de então, Silvana sentiu-se liberta, confiante, alegre e positiva.

. . . As primeiras nevadas do inverno já começavam a cair e, dentro de alguns dias, as

estradas estariam praticamente interrompidas.

Certa noite, bateram à porta com força. Silvana acordou sobressaltada. Seu instinto agitou-se e alguma coisa lhe dizia que se tratava de Maurissí. Enquanto vestia o chambre, um terrível medo de que algo de grave teria acontecido com o rapaz punha-lhe um tremor incontrolável nas pernas. Saiu às pressas e abriu a porta.

Dois homens traziam um fardo às costas. Antes que eles falassem, Silvana reconheceu o filho e atirou-se desesperada sobre o rapaz:

- Meu filho! Meu filho! Não me digam que está morto, pelo amor de Deus! Maurissí estava gelado.

- Ele está sem sentidos, mas está vivo - disse um deles, tentando acalmar Silvana. Maurício já vinha chegando quando levaram o rapaz para junto da lareira e

atiçaram as chamas. Silvana trocou-lhe as roupas molhadas pela neve e enrolou-o em grossos cobertores.

- Nós o encontramos a dois quilômetros daqui, na estrada de Nevadas. Já estava sem sentidos.

- Ah, meu Deus, nem sei como agradecer-lhes. Os senhores salvaram meu filho. Deus há de recompensá-los. Muito obrigada.

Silvana chorava.

Maurício também estava profundamente comovido. A idéia de que Maurissí poderia ter sido encontrado morto, enregelado, o apavorava.

- Meus amigos, os senhores praticaram uma maravilhosa obra de amor cristão. Salvaram a vida de Maurissí. Salvaram uma vida... Somente Deus poderá pagar-lhes devidamente...

- Que é isso, padre Maurício! Fizemos o que devíamos fazer. Qualquer pessoa aqui em Montes Brancos faria o mesmo. A dureza da vida nos ensinou a sermos solidários uns com os outros.

Quem falava isso era o mais velho dos dois, um homem barbudo, já de meia idade.

- Muito obrigado, mais uma vez - agradeceu Silvana, feliz da vida. - Professora Silvana, nada tem a agradecer. Pela senhora nós faríamos qualquer

sacrifício. Sabe, eu tenho dois filhos na escola com a senhora. Os Laíres, se lembra? Era o outro que falava, esfregando as mãos no fogo da lareira.

Silvana foi preparar chocolate quente.

- Bem, missão cumprida - disse o barbudo, fazendo menção de se retirar.

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- Fiquem aqui mais um pouco. Nós vamos preparar-lhes uma janta bem quente - pediu Maurício.

- Oh, muito obrigado, padre Maurício! É que lá em casa já estão nos esperando preocupados. Boa-noite!

Silvana tornou a eles e lhes agradeceu mais uma vez:

- Boa-noite para os senhores e Deus lhes pague! - Boa-noite, vão com Deus - disse Maurício. O rapaz, aos poucos, voltava a si. Abriu os olhos, tentando localizar-se. Quando

viu Silvana e Maurício ao seu lado, sorriu, e este sorriso encheu de sol o coração da mãe. Este sorriso significava tudo que ela queria do rapaz. Maurício também estava radiante. O calor do fogo e os cobertores reanimaram Maurissí.

- Oh, valentão - brincou Maurício, sacudindo os cobertores - pelo jeito, a neve não estava muito gostosa, não é mesmo?

Aquela preocupação inicial que sombreava o rosto do jovem, denotando grande receio de ser recebido com repreensões, se desfizera diante da atitude amorosa e cordial de Silvana e Maurício.

- Você se salvou por um milagre - disse-lhe Silvana, beijando-o no rosto ainda gelado.

- Pela segunda vez - sussurrou ele, misteriosamente. Agora tenho certeza de que foi pela segunda vez...

- Por quê? - perguntou ela, sem entender. - Não me perguntaram por que eu fiz esta viagem e aonde eu fui. Conheço vocês e

sei que levariam bastante tempo para me perguntar. Por delicadeza. Mas, eu conto. É que eu estava tão aflito, que precisava fazer esta viagem. Não quis dizer o motivo porque vocês não mereciam este sofrimento.

Calou-se um pouco para respirar e continuou:

- Mas, agora eu vou confessar tudo, tudo mesmo. Estou tão feliz... Tão feliz... - Se você está feliz, mais ainda nós - ajuntou Maurício, passando as mãos nos

cabelos do rapaz. - Pois... me assaltou uma dúvida terrível sobre a história que contaram dos meus

pais e da minha vida... Seria verdade? Não seria? Eu não conseguia dormir sossegado, não conseguia estudar, não conseguia mesmo ver vocês com aquele amor da infância. Pensei... Pensei... E resolvi viajar até Espigão do Inferno... para conferir. Perdão... Peço que me perdoem... Como fui insensato e malvado para com vocês...

- Você chegou até Espigão do Inferno? - perguntou, assombrada, Silvana. - Cheguei, contei a história para o velhinho da venda, um tal de Jerusa, e ele ficou

tão contente que me abraçou com lágrimas nos olhos. Levou-me para a casa dos meus padrinhos, o senhor Jonatam e a dona Lírides. Foi como se chegasse um rei. Quanta festa!

Quanta alegria, meu Deus! Agora era Maurissí que não continha as lágrimas. - O velho Jonatam ainda está vivo? - indagou Silvana. - Mal-e-mal pode caminhar. - E o Jonatam Júnior? - perguntou Maurício. - Mandou-lhe um grande abraço e outro para a mamãe. - Já casou.

- Que bom! - exclamou ela. - Eles não se cansavam de perguntar por vocês. Contaram-me toda a história

daquela noite de temporal. Maurissí olhou com entusiasmo para os dois e exclamou:

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- Vocês são extraordinários, heim?! Lá em Espigão a história de vocês corre como uma lenda...

- Acho que apenas cumprimos um dever de humanidade e solidariedade - comentou Maurício. - Assim como aqueles homens fizeram com você esta noite...

- Viu como Deus paga as boas ações?! - observou Silvana, passando a mão no rosto de Maurissí.

Enquanto ela caminhava da lareira para o fogão, Maurício se entretinha com o rapaz:

- Então, o seu Jonatam e a dona Lírides vão bem? - Mais ou menos. Ele passa mais deitado do que de pé. Mas, está lúcido e teve forças para me mostrar o Karina, aquele barco que você

usou naquela noite da enchente. O barco está velho, encostado, mais guardado por relíquia do que por serventia.

- E como foi que você se perdeu na neve? - quis saber Silvana. - Eu vinha vindo de ônibus. A estrada começou a ficar ruim por causa da neve. A

certa altura, o ônibus não pôde mais prosseguir e disse que ia voltar para Nevada. Algumas pessoas que moravam por perto desceram e saíram a pé. Disseram-me que Montes Brancos ficava perto; então, eu também resolvi chegar até aqui a pé. Os demais passageiros voltaram com o ônibus. Quando a noite desceu, a neve começou a cair novamente. Eu andava com toda a pressa para chegar o mais cedo possível, mas fui perdendo as forças... fui perdendo as forças... até que... não sei mais nada. E aqui estou.

Silvana trouxe chocolate quente, torradas, queijo, manteiga e salame.

- Mas, eu tenho uma notícia para vocês - disse o jovem, com certo ar de mistério. - Notícia boa ou ruim? - perguntou Silvana, preocupada. - Depende de vocês. Para mim é boa. Maurício estava muito curioso:

- Vamos, qual é a notícia? - Eu pensei em ser padre. - Os dois ficaram perplexos.

Maurissí fechou os olhos para não ver a reação de ambos. Na verdade, havia nos três um misto de felicidade e, ao mesmo tempo, de melancolia. A melancolia da separação.

- Você disse que pensou - observou Maurício. - Pensou bem, mesmo? - Pensei... Mas, eu não vou ser como você, uma ovelhinha que vai para onde for

enxotada, sem dizer más nem més... - Desaforo! - xingou, com brandura, Silvana. - Eu acho que dedicar a vida em beneficio das pessoas deve ser uma coisa linda e

agradável e nada tem a ver com esse negócio de ir para Espigão do Inferno, Montes Brancos e aonde o diabo perdeu as botas...

Maurício deu uma risada de complacência. - Eu quero trabalhar onde posso realizar-me. Onde gosto. - E você não viria atender o povo de Montes Brancos? perguntou Silvana. - Não. Nunca. Houve silêncio na sala, apenas quebrado pelo crepitar da lenha no fogo. Maurício

percebeu que estava na hora de encerrar essa conversa, afinal muita água ainda teria que passar por baixo da ponte, como diz o provérbio.

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- Bem - concluiu ele - está na hora do errante das neves ir para a cama, porque ainda está geladinho. Amanhã conversaremos muito. O mundo não foi feito num só dia, não é mesmo?

… Quando o inverno terminou, a neve começou a deslizar para os lagos e as

estradas se tornaram muito perigosas. Mas os veículos já começavam a trafegar de Nevadas para Montes Brancos e outras regiões que ficaram isoladas durante o inverno.

Certo dia, um grave acidente ocorreu na estrada próxima de Montes Brancos. O padre Maurício foi chamado com urgência, porque o motorista do automóvel acidentado gritou pelo seu nome. O automóvel estava prensado na dianteira de um caminhão. Quando Maurício chegou, havia um grupo de pessoas ouvindo o motorista do caminhão, que se agitava muito nervoso, dando mil explicações:

- Esse cara estava doido... ou bêbado... Imaginem que ele fechou essa curva pela esquerda, em alta velocidade. Não é possível... Não é possível...

E o motorista barbudo continuava exclamando:

- Este sujeito é um louco. Eu não tenho culpa... Para mim, ele estava bêbado... Maurício viu o automóvel totalmente destroçado. O caminhão tinha o pára-

choque afundado contra o motor. Apenas algumas escoriações no corpo do motorista.

Estirado na estrada, lavado em sangue, desfigurado, morto, o motorista do automóvel.

Maurício debruçou-se às pressas sobre ele para dar-lhe o perdão dos pecados e viu, estarrecido, que era o Corrégio. O Corrégio!

O motorista do caminhão aproximou-se e disse:

- Quando eu fui socorrê-lo ele só disse uma coisa que eu entendi: Maurício, mais ou menos isso...

Maurício viu que nada tinha a fazer. Mandou avisar a polícia de Montes Brancos e Nevadas para que o corpo do inditoso fosse transladado de avião para Alvores.

Ao saber do acidente, Silvana rezou por aquele pobre infeliz, que passara a vida lutando contra moinhos de vento.

... O bilhete deixou Silvana em desespero total. Pálida, abatida, não podia aceitar

tamanha desgraça:

- Não é possível! Não é possível! Meu Deus! - exclamava ela, numa incontrolável tensão nervosa.

Fez um chá, para acalmar-se. Nada, porém, conseguia pôr ordem na barafunda que se instalou em sua mente. Tudo podia acontecer no mundo, menos isso - pensava ela. E bradava, entre lágrimas:

- Por quê?! Por quê, Senhor?! Ela olhava para o recado deixado sobre a mesa. Ali estava o papel com letras que

iam assumindo formas gigantescas, agressivas, hediondas:

“O padre Maurício está preso. Foi considerado mandante do assassinato de Corrégio. Mas, acalme-se, está sendo providenciada sua defesa.”

Mais uma trama. Ela já imaginava de quem teria partido. Conhecedora da aldeia e seus caboclos, supunha que o doutor Onofre teria acusado Maurício de ter provocado o acidente que culminara com a morte do filho. Desta forma, além de causar impacto

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favorável ao filho, em Alvores, estaria conseguindo seu objetivo de eliminar com seu maior inimigo. Silvana viajou de imediato para Nevadas, onde se encontrava detido Maurício. Queria ser forte para dar-lhe coragem, mas, ao entrar na prisão, atirou-se nos braços dele e chorou longamente.

O guarda, que estava junto às grades, deu alguns passos para trás para não ver mais nada.

- Não se perturbe - disse, por fim, Maurício. - Tudo vai dar certo. Não há absurdo maior do que este. A verdade será restabelecida, disto eu tenho certeza.

- Mas, é um vexame... você na cadeia... é uma loucura... - Tudo pode acontecer neste mundo - murmurou ele. Mas, não é por isso que eu

vou ser pior. Estou com a consciência tranqüila. Sou inocente e a verdade prevalecerá. - Ai, meu Deus!

- Calma, Silvana. É questão de horas. Ou de dias. - Mas, você nem foi julgado nem nada, como é que o puseram na cadeia? ! - Bem, isso deixemos para depois... quando os acontecimentos vierem à luz. Em Alvores, o fato estourou como uma bomba. O doutor Onofre fez questão de

divulgar por todos os meios possíveis a prisão de Maurício. Corrégio surgiu como a vítima inocente de um atentado inominável.

Josias ouviu as notícias e não se conformou. Foi até a farmácia da Marisete. Ambos acharam que se tratava de uma trama repelente.

- Isso é uma estupidez - irritou-se a enfermeira. - É inaceitável. Totalmente inaceitável. Que homenzinho terrível, puxa vida! - Esse homem tem um cachorro louco e uma cascavel dentro do coração. Mas, nós

temos que fazer alguma coisa, não acha, seu Josias? - Sem dúvida. - Pensei em falar com o doutor Geraldo Scott, que é um grande advogado e nosso

amigo. Sei que ele costuma cobrar caro por seus serviços, mas eu me acertarei com ele. ... Depois de uma ampla conversa com Maurício, Geraldo Scott foi para o Hotel

Nevadas a fim de alinhar os fatos e estabelecer sua estratégia de ação. O caminho mais curto seria encontrar o motorista do caminhão que colidiu com o carro de Corrégio.

Scott percorreu todas as oficinas mecânicas de Nevadas.

Nada. Ocorreu-lhe, então, chamar pelo rádio.

No dia seguinte apresentou-se no Hotel Nevadas um senhor barbudo, rosto vermelho, dizendo-se o motorista do caminhão.

Eu detesto esse negócio de advogados e testemunhação, porque só serve para amarrar a gente e complicar a vida. Mas, quando li no jornal a versão que deram ao caso, fiquei fulo de raiva. Por isso, quando ouvi a chamada pelo rádio, por sinal vinha vindo de caminhão para Nevadas, achei que era meu dever ajudar a esclarecer o fato e libertar o padre inocente. Puxa, o padre não tinha nada com o acidente. Eu até nem o conheço. Isso que espalharam é uma imbecilidade do tamanho do mundo.

O doutor Scott encontrou a maior dificuldade para que o caso fosse julgado o mais breve possível. Havia, no entender dele, alguma coisa de anormal que estava emperrando o processo.

Por fim, Maurício foi julgado e libertado.

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Scott voltou para Alvores decidido a dar uma lição ao acusador. Processou-o. E conseguiu arrastá-lo às barras do tribunal.

Diante das provas e do resultado do julgamento de Nevadas, pouca resistência puderam oferecer o bando de advogados contratados por Onofre. E, finalmente, a justiça o pegou pelo pescoço, lançando-o na prisão. A notícia foi divulgada em manchetes, restabelecendo a verdade em torno do bom nome de Maurício e pondo às claras a verdadeira face do já encanecido médico de Alvores.

Quando Marisete foi ao escritório do doutor Scott para acertar as contas, este a fez sentar-se e, muito sorridente, disse-lhe:

- Sabe, gostei de defender a causa do padre Maurício. Que homem extraordinário! Até nem sei como é que um homem desses pode ficar enterrado naquele fim de mundo.

- Pois, o exílio dele começou no dia em que o doutor Onofre e seu filho resolveram persegui-lo implacavelmente. A história é muito longa, doutor Geraldo.

- Eu soube muita coisa e por isso resolvi fazer justiça. - Mas, doutor Geraldo, eu queria acertar as contas. O padre Maurício é meu

grande amigo, fez muito por mim, e agora eu quero retribuir um pouco, pagando todos os seus gastos. Quanto é, doutor?

- Já está tudo pago. - Não pode! O padre Maurício já lhe pagou?! Mas, eu lhe disse que era eu quem ia

pagar?! - Não, Marisete, o padre Maurício não pagou. E nem você vai pagar. Esqueça a

conta. - O que?! - exclamou ela, entre perplexa e emocionada - o senhor não vai cobrar nada?! - Não. Quando Marisete molhou as faces dele com as lágrimas que lhe corriam pelo

rosto, ele também não resistiu.

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CAPÍTULO 9

O inverno começou rigoroso. As famílias trataram de fazer as suas provisões a fim de enfrentar um longo período de isolamento.

Silvana continuava lecionando apenas para um pequeno grupo de crianças e jovens do povoado, uma vez que a neve barrava todos os caminhos. Nos dias em que o tempo se apresentava mais violento e tempestuoso, as aulas eram suspensas.

Maurissí já se ordenara sacerdote em Rosandur e viera rezar uma missa especial em Montes Brancos.

O padre Maurício concelebrou e Silvana leu a epístola. A igreja estava repleta. O povo aplaudiu de pé quando o jovem sacerdote se dirigiu ao altar, e considerou o fato como um acontecimento daquela comunidade. Na hora do ofertório, muita gente se encaminhou até o altar para levar seu presentinho ao neo-sacerdote. Quando Silvana se levantou para levar-lhe, também ela, um presentinho, ele arregalou os olhos, muito surpreso. Não resistiu à curiosidade e abriu o embrulho muito bem decorado em papel-fantasia. Ao ver uma miniatura do barco Karina, aquele mesmo barco que lhe restituíra a vida por milagre e lhe dera novos pais, ele não conteve as lágrimas e abraçou comovido sua mãe, beijando-a na testa. Em seguida, abraçou o padre Maurício, que também estava vivamente emocionado.

À hora da palavra de Deus, quem falou foi Maurício. Recordou a história de uma mãe protegendo uma criança nos galhos de uma árvore enquanto uma chuva torrencial desabava do céu e as águas subiam assustadoramente... Depois, recordou a história de um rapazinho recolhido e salvo por gente deste povoado, num segundo milagre de Deus.

E acrescentou:

“Bem-aventurados aqueles que têm coração sensível às belezas visíveis e invisíveis da vida, porque estes encontram felicidade no sacerdócio. Meu querido Maurissí, peço a Deus que você seja sempre simples e bondoso, de alma aberta às boas coisas da vida.

Você deve ter aprendido na Universidade que é bom ser importante, mas saiba que é muito mais importante ser bom. Porque a bondade cativa, a bondade ilumina a mente, a bondade atrai amor, a bondade aproxima as pessoas, a bondade, enfim, é o caminho mais curto para chegar ao interior das pessoas. Eu poderia dizer que, se a bondade não é sinônimo de amor, é, na verdade, a base e o sustentáculo do amor. Antes de pensar em ser santo, pense em ser bom, apenas bom. Porque há muitos que procuram a santidade passando por cima dos fundamentos humanos e se esquecem de que Deus se mostra, antes de tudo, na face de cada criatura. A melhor oração a Deus é o amor pelo outro. O caminho mais curto para chegar a Deus é pelo coração do outro. Como poderá alguém dizer que ama a Deus se não ama seu irmão, que é imagem de Deus?

Querido Maurissí, antes de tudo seja bom e tudo o mais lhe será dado por acréscimo.”

E o padre Maurício continuou a falar, com emoção, sobre a vida daquele jovem e sobre o que ele significou em sua vida e na vida de Silvana.

Maurissí ouvia tudo comovido. Seu coração estava profundamente tocado. Sentia, a cada palavra do padre Maurício, como a vida era maravilhosa, como o mundo era bom, como as pessoas eram boas, como ele era tão feliz, tão feliz! E, do fundo do coração, agradeceu a Deus por tudo.

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Outra missa muito comovente foi realizada por Maurissí em Espigão do Inferno. Infelizmente, o velho Jonatam tinha morrido, mas dona Lírides e Jonatam Júnior o acompanharam até o altar.

Maurício e Silvana também acompanharam Maurissí naquela ocasião. Foi um lindo dia de festa e de reencontros.

Como última lembrança de Espigão, Maurício quis passear pelo lago com Silvana e Maurissí, numa viva evocação daquela tarde em que o novo sacerdote havia nascido para eles.

No dia seguinte, Maurissí rezou uma missa especial em memória de sua mãe, de seu pai e de seus manos falecidos por ocasião da enchente.

Fez uma visita à sepultura de sua mãe e plantou uma roseira.

Ao voltarem para Montes Brancos, Maurissí passou mais uns dias com seus pais adotivos.

O assunto preferido dos dois sacerdotes era a pastoral.

Quando Maurissí disse para Maurício que se sentia impelido para os grandes centros, onde pudesse pôr em prática seus modernos conhecimentos de pastoral, Maurício lembrou-lhe:

Meu caro, não deixe que a fumaça da fama lhe suba pela cabeça. Escolha o lugar que quiser, mas nunca esqueça que as pessoas que vivem em lugares pobres e distantes têm o mesmo valor que as pessoas que habitam os sofisticados aglomerados urbanos.

Cristo amou a todos indistintamente, não sei se você me entende.

- Entendo - respondeu Maurissí - mas, o senhor entenderá também que eu sou jovem e tenho imensas energias para empregar num vasto campo de ação.

- Que Deus o acompanhe... Maurissí partiu.

… Três batidas fortes na porta. Maurício foi atender. - Padre Maurício, desculpe incomodá-lo, mas eu queria ver se o senhor pode ir até

a encosta do cerro Pináculo para batizar minha filhinha que está passando mal. Maurício olhou para fora. Dia cinzento e gelado. A neve se acumulava ao longo

da rua e se debruçava sobre os telhados das casas. As montanhas, mais ao longe, estavam totalmente cobertas de neve.

- Sim, eu vou. Ele sabia que nesta resposta estava um gesto de heroísmo. O tempo estava

realmente péssimo. O pai e o filho esperaram na sala e Maurício foi buscar a maleta. - Vai sair? - perguntou Silvana. - Sim, vou batizar uma criança muito doente, na encosta do cerro Pináculo. Ela ficou pensativa. Depois, ergueu-se e disse resoluta:

- Eu vou com você. - De maneira nenhuma - exclamou Maurício. - É uma viagem muito perigosa e

dificil. O dia está pesado e o tempo vai nevar. - Por isso mesmo, eu vou com você. - Com esse frio terrível? !

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- Por favor, Maurício. Eu sei que a subida do cerro Pináculo é muito dificil. Você poderá precisar de alguém. Eu quero estar do seu lado.

- Não se preocupe. - Não adianta, Maurício, eu não ficaria em paz aqui. Os quatro se encaminharam para o trapiche do lago Niraka. O frio estava

cortante.

- Vocês vão na frente e nós iremos atrás com o Albatroz. - disse Maurício para os dois.

-Isso mesmo - disse o mais velho. - Atracaremos na Pedra do Corvo, o senhor conhece?

- Conheço - respondeu Maurício. Maurício e Silvana entraram no Albatroz.

- Este barco fez-me lembrar de um outro - comentou ela. - Eu tive o mesmo pensamento. Maurício deu partida no barco.

Depois de alguns minutos de silêncio, ela murmurou:

- Estou com pressentimento. - Fique tranqüila. Eu já conheço estas regiões. O lago estava calmo e, sem dificuldade, chegaram à Pedra do Corvo. Daí para

diante, a escalada seria a pé. O pai e o filho mais velho puseram-se a subir em frente, em direção do primeiro refúgio daquela face da montanha. Alguns pontos da montanha já apresentavam terra nua, o que indicava o início do degelo. Pequenos rios correntosos desciam vigorosos, chocando-se, escumejantes, contra as pedras. Algumas folhagens, mais ousadas, brotavam cá e lá. Era o início da primavera. Não fora o mau tempo daquela semana e a escalada seria bem mais fácil e tranqüila. Era preciso, no entanto, muito cuidado e atenção para não se despencar.

Quando chegaram ao refúgio, Silvana dava mostras de muito cansaço. Afinal, já estava com um bocado de anos pelas costas.

A criança estava mal. Reunidos na calidez daquela casa, que servia também de abrigo para os escaladores de inverno, Maurício fez o batizado na presença de toda a família. O nome da criança? Bem, Silvana não conseguiu dissuadir os pais quanto ao nome que quiseram dar à mimosinha.

- A senhora tem um nome muito lindo - disse a mãe para Silvana - e eu e meu marido queremos, acima de tudo, que o seu sacrifício, de ter vindo, seja comemorado na nossa filha. Ela se chamará Silvana.

Silvana, no fundo, estava muito feliz. Este pequeno gesto de bondade a comoveu. E chorou. Maurício se admirou do estado de espírito de Silvana: por que estaria se emocionando de forma tão inusitada?

Às duas horas da tarde, os dois se despediram da família e puseram-se a caminho. A descida, se tudo corresse bem, levaria cerca de duas horas. Ou até menos. O tempo continuava carrancudo. Quando pararam à beira do borbulhante regato, Silvana aproximou-se de Maurício, olhou-o radiante de felicidade e exclamou:

- Como a vida é linda! Prosseguiram a caminhada. Ela estava extenuada, mas procurava não o

demonstrar. Desceram uma baixada, subiram pela encosta, dobraram à direita e escalaram um pequeno pico, muito irregular, com neve enganchada por entre as

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pedras. A neve que se derretia formava uma massa deslizante assaz perigosa. De repente, Silvana resbalou e deu um grito de horror.

Maurício voltou-se para segurá-la, mas era tarde. Ela rolara por entre as pedras esbrugadas e molhadas, indo estatelar-se lá embaixo, a cerca de vinte metros. Ele desceu desesperadamente o declive abrupto, pouco se importando com o perigo.

- Silvana! Silvana! Seu grito se perdia nas rochas. Em poucos instantes, estava junto dela. O sangue

rolava por entre a neve, formando a imagem de um coração. Maurício agarrou-a pelas costas. Ela sangrava muito. Havia um profundo corte na testa. Com imenso esforço abriu lentamente os olhos e disse, num fio de voz:

- Adeus... Lá em cima... nos encontraremos... Com a alma estraçalhada, Maurício traçou sobre ela o sinal da cruz, dizendo:

- Silvana, eu te perdôo todos os teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Vai com Deus!

Tirou o crucifixo do peito e deu-lho para beijar. Ela beijou com amor, abriu os olhos mais uma vez e morreu com um leve sorriso espraiado nos lábios. Maurício ajoelhou-se em prantos e beijou-lhe a testa ensangüentada.

Sentiu, então, uma montanha de dor amassar-lhe o peito e gritou, em desespero, com os braços para os céus... Somente o eco respondeu o seu grito. E o silêncio pesado das montanhas caiu sobre ele. Deixou-se quedar ali, como uma estátua de dor. Mil pensamentos negros passaram por sua mente. As lágrimas rolavam, o coração estava em pedaços e sua voz continuava a gritar:

- Não... Não... Não... Por quê, Senhor?! Por fim, quando seu espírito aquietou-se e a tempestade interior amainou um

pouco, fez o sinal da cruz, tomou Silvana nos braços e desceu, chorando, a encosta em direção ao barco.

Parecia um profeta carregando a ovelha do sacrifício às costas.

Depositou-a carinhosamente no Albatroz, beijou-lhe ainda uma vez a face e lançou o barco a uma velocidade nunca atingida até então. Anoitecia quando o Albatroz atracou no trapiche de Montes Brancos. Com Silvana nos braços, ele começou a subir na direção do povoado. De fisionomia transtornada, os cabelos caídos para a frente, ele andava como um condenado, quase caindo ao peso de tanto sofrimento.

O povo, à medida que foi percebendo a tragédia, começou a sair de suas casas e a acompanhar em silêncio, como se fosse um funeral. A boa vizinha Madalena recebeu o corpo de Silvana num pranto convulsivo. Ela mesma quis encarregar-se do corpo da inditosa e fez de tudo para deixá-la linda no caixão trazido da Casa Funerária do povoado. Maurício foi à igreja desabafar-se com o Cristo. Era muita dor para ele agüentar sozinho. Durante toda a noite a igreja permaneceu aberta para o velório e as famílias iam e vinham, depositando flores e preces para aquela que fora a grande amiga e benfeitora de Montes Brancos. Pela manhã, um grupo de alunos de Silvana, com seus uniformes brancos, acercaram-se do caixão, com lágrimas nos olhos. Cena tocante. Era a triste despedida, para nunca mais. Durante a missa de corpo presente, o povo continuava a desfilar diante do féretro, os lábios mexendo-se numa prece ininteligível. Enquanto a cerimônia do adeus se realizava na igreja, um grupo de homens cavava uma sepultura no alto daquele mesmo pico que tirara a vida de Silvana. Uma grande cruz de ferro já estava plantada. Maurissí ainda não chegara. Era uma hora da tarde e o enterro já se dirigia para o trapiche. Alguns barcos alinhavam-se

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atrás do Albatroz. Maurício quis que ela fosse enterrada naquele mesmo pico da montanha em que perdera a vida, ela que sempre amara as montanhas e a natureza.

E Maurissí? Maurício já perdia as esperanças de que ele viesse e chegasse a tempo. Colocado o corpo no Albatroz, Maurício já acionava o motor, quando viu surgir, lá no alto, um mocetão robusto, trajando terno escuro. Maurissí. O jovem sacerdote desceu correndo e se atirou nos braços de Maurício. Ficaram longo tempo abraçados, as lágrimas rolando pelas faces. Agora, o barco já deslizava suavemente, puxando um longo cortejo. Maurissí, depois de permanecer algum tempo em oração diante de sua mãe, abriu o caixão e demorou-se a contemplá-la, em lágrimas. Ele parecia conversar silenciosamente com a mãe. Maurício fingia ocupar-se com o timão do Albatroz para não rebentar de dor diante daquela cena. Vez por outra, Maurissí passava a mão carinhosamente pelo rosto de Silvana. Ela ainda conservava um leve resquício de seu último sorriso.

Às vezes, ele mesmo se surpreendia murmurando:

- Mamãe... Mamãe... Como pôde acontecer... Chegados à Pedra do Corvo, a procissão começou a escalada. O dia estava

ensolarado, exatamente ao contrário do que acontecera no dia anterior. Lá de cima, o grupo, que preparara o local da sepultura, pôde vislumbrar a longa fila que vinha se aproximando, como se fosse uma imensa cobra coleando pela encosta. Uma vez lá em cima, Maurício abriu o ataúde para que Maurissí desse sua última bênção. Ele se aproximou, abençoou, e se inclinou para beijar pela derradeira vez o rosto de quem tanto o amara na terra...

- Adeus, mamãe... olhe por mim lá do céu... O pranto não lhe permitiu dizer mais nada. Maurício rezou as preces,

agradecendo ao Pai por recebê-la na sua casa divina, e pediu para fecharem o caixão. Então, falou:

“Pouco tenho a dizer nesta hora. Que Deus pague a todos os que a acompanharam até esta última morada, no silêncio lindo dessas montanhas. Muito obrigado aos amigos que se dispuseram espontaneamente, num gesto tão carinhoso, a vir preparar a sepultura. Esta cruz de ferro aqui ficará sempre de braços abertos para proteger os viandantes destas paragens.

E a você, Silvana, o adeus dos seus alunos e do povo. O adeus de seu filho Maurissí. O meu adeus. Até o céu. Amém.”

Era indescritível a emoção desta cena de despedida. O corpo de Silvana foi baixado à rústica sepultura. Antes que o povo começasse a descer, George Grégori, pai da criança batizada no dia anterior, pediu um instante de atenção:

- Ontem o padre Maurício e a professora Silvana vieram até minha casa para batizar minha filhinha, que estava muito mal.

- Hoje, graças a Deus, ela está melhor. Até parece que este sacrifício produziu um milagre. Mas, por gratidão e respeito à senhora Silvana, minha filha foi batizada com o nome dela. Agora, eu peço a todos que, sempre que olharem para este pico, chamem-no de Pico de Silvana.

O povo acenou afirmativamente com a cabeça.

Maurício e Maurissí foram os últimos a deixarem o Pico de Silvana. Mil recordações afluíam à mente de ambos. Ali ficava enterrada, em definitivo, uma longa história de emoções, de amor e de generosidade.

Desceram, por fim, à Pedra do Corvo e tomaram o Albatroz.

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- E agora, sem mamãe, o senhor pretende ficar em Montes Brancos? - perguntou Maurissí, depois de um longo silêncio.

- Você não quer assumir o lugar dela aqui? - Não, senhor. É muita solidão. - Mas, é uma linda solidão branca, que brinca na alma de toda essa gente. - Desculpe, mas não quero ficar.

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CAPÍTULO 10 Os anos se passaram e Maurício se afeiçoara demais àquela gente. Nas longas

noites de inverno, ele escrevia mensagens, livros, artigos. Uma editora de Nevadas levara os originais de dois livros para publicá-los.

De vez em quando, recebia a visita de Maurissí, que se punha a ler e a apreciar os originais, fazendo suas observações. Passavam, não raro, longas horas discutindo aspectos e perfis psicológicos da vida moderna.

No verão, Maurício escalava freqüentemente o Pico de Silvana, levando sementes e mudas de plantas típicas da região. Em torno da grande cruz de ferro, uma bela e florida vegetação já se esparramava pela encosta abrupta. Seus melhores momentos de meditação aconteciam lá no silêncio majestoso da montanha.

A cada aniversário da morte, subia até o pico e celebrava missa. Depois ia visitar a pequena Silvana, filha do casal Gregori. Era uma vida calma e feliz. Até um dia. Um trágico dia. Pelas ruas de Montes Brancos as pessoas corriam gritando. E a dramática notícia entrou como um raio por dentro de todas as casas: uma avalancha de neve se despencara do Cerro Caravela e soterrara algumas famílias. Maurício chefiou a equipe de salvamento.

Andaram duas horas de barco pelo Lago das Gaivotas e tomaram o rumo do Cerro Caravela. Embaixo, no vale, moravam as famílias vitimadas. Ele as tinha visitado no último verão. Quando chegaram, dezenas de pessoas já estavam trabalhando para desobstruir a montanha de neve que se abatera sobre as casas. Algumas vítimas haviam sido retiradas com vida. Mas, a operação-salvamento era perigosa. Grossas camadas de gelo continuavam a cair de tempos em tempos.

Maurício e alguns companheiros decidiram-se a enfrentar o ponto mais dificil. Por diversas vezes correram o risco de serem soterrados pela avalancha, que continuava a desandar de cima. Mas, tinham a impressão de que estavam muito próximos da cumeeira de uma casa e era possível encontrar pessoas com vida.

Quando a situação se tornou insustentável, os homens desistiram. Esperariam até que acalmasse a fúria das avalanches.

Maurício, no entanto, prosseguiu, com coragem, o trabalho. Sua intuição lhe dizia que logo mais poderia salvar algumas pessoas.

- Parar? - pensava ele - e se algumas pessoas perderem a vida, precisamente porque eu parei?

Apesar das observações dos mais experientes, ele era todo bravura. Algumas pessoas o olhavam com admiração. E foi, então, que um deles gritou apavorado:

- Saia, padre Maurício! A avalancha! Tarde demais. Ele tinha sido tragado. De olhos esbugalhados, o grupo viu

Maurício desaparecer tragicamente debaixo de uma montanha de pedra e de gelo.

- O fim de um homem de coragem - pensaram alguns. - Atenção - berrou, com voz dura e incisiva, um velho barbudo, de rosto curtido

pelas intempéries - quem tem coragem no peito, que me siga! Ao trabalho. Custe o que custar. Vamos salvar o padre, nem que tenhamos que ficar aí, com ele.

- Vamos! - gritaram todos, como se tivessem ficado hipnotizados pelas palavras veementes do líder.

Era um grito de guerra e eles se atiraram ao trabalho com fúria e determinação. Um deles, sempre o mais cansado, ficava de sentinela a fim de alertar toda a vez que

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alguma camada de gelo mais perigosa se despencasse na direção dos escavadores. O trabalho se prolongou até o anoitecer, quando, exaustos, não tinham mais forças para nada. Um mensageiro fora enviado a Montes Brancos a fim de avisar a população do acidente com o padre Maurício. No mesmo dia, os noticiários de todo o País divulgavam a tragédia.

Maurissí, que se encontrava na Capital, dando um curso de Psicologia Conjugal, suspendeu tudo e tomou o primeiro avião que decolava para Nevadas.

Em Alvores, Marisete e seu esposo ouviram a notícia e voaram imediatamente para o sul.

A noite no vale do Cerro Caravela estava terrivelmente fria. O vento, cortante como lâmina de aço, fustigava os rostos abatidos. Todos se aqueciam ao redor do fogo, onde uma ovelha estava sendo assada. Enquanto jantavam, os olhos se fixavam na montanha de neve. Não havia mais condições de trabalho. Mas, o barbudo levantou-se decidido e, com os olhos chamejantes de força, bradou:

- Quem tiver coragem de dormir enquanto um amigo jaz no meio da neve, que fique aí. Esta é uma ordem só para os bravos:

- Ao trabalho. Ninguém ficou. Diversos lampiões iluminavam vagamente o ponto de escavação e o grupo

retomou o trabalho com ferocidade inaudita. Era preciso mexer-se sempre mais e mais, para não enregelar. Mas, o trabalho estava produzindo resultados e, ao amanhecer, esperavam encontrar Maurício a cada momento. Os que estavam esgotados e tiritantes de frio recolhiam as últimas forças, na expectativa de encontrar o corpo da vítima.

Intimamente, com o passar das horas, alguns pensavam em desistir, já que ninguém mais acreditava que Maurício pudesse ser encontrado com vida.

O sol começava a bater nas encostas do Cerro Caravela, quando o barbudo gritou como um boi morrendo no matadouro:

- Está aqui! E o eco repetiu seu grito pelas canhadas brancas.

Todos pararam seus instrumentos e se aproximaram, com respeito, enquanto o barbudo agarrava o corpo inânime de Maurício nos braços e descia até a fogueira, que agora queimava os últimos gravetos.

- Pobre homem! - exclamou o barbudo, meneando a cabeça. Fez-se silêncio de morte.

Mas, o barbudo refez-se e tornou a dar ordens:

Acho importante não perdermos tempo. O padre Maurício deve ser levado em seguida para Montes Brancos.

Todos concordaram.

Eu, porém, ficarei aqui com um grupo para terminarmos de encontrar as famílias vitimadas pela avalancha. Talvez, pela tarde, estejamos em Montes Brancos para o enterro.

... Em Montes Brancos, uma verdadeira multidão aguardava a chegada do corpo do

padre Maurício. Quando o Albatroz atracou no trapiche do lago Niraka, o povo desceu até lá e pôs-se a acompanhar o cortejo. Maurício foi velado na igreja. Perto do meio-dia,

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chegaram, quase ao mesmo tempo, Maurissí, Marisete e o marido. O velho Josias, já alquebrado pela idade, mandou uma pequena flor, através da enfermeira, para ser colocada no peito do seu inesquecível amigo.

De Nevadas, veio uma caravana de turistas e curiosos para assistir os funerais e saber como aconteceu a tragédia. Depois da missa, às três da tarde, oficiada por Maurissí, uma imensa multidão acompanhou o féretro até o Albatroz. Uma nuvem de tristeza pairava em todos os semblantes.

Maurissí sabia que ele queria ser enterrado no Pico de Silvana, e a procissão de barcos, capitaneados pelo Albatroz, seguiu para a Pedra do Corvo.

Lá em cima, ao lado da cruz de ferro, uma menina de nome Silvana, aguardava o corpo, com lágrimas nos olhos. E se prometia intimamente fazer do Pico de Silvana um lindo jardim florido, onde viria muitas vezes passear, estudar, rezar, meditar.

Maurissí, Marisete e o esposo contemplavam, abatidos, o corpo sem vida de Maurício, no caixão aberto dentro do barco. Parecia um sonho e eles não queriam acreditar.

Maurissí chorava em silêncio.

O sol brilhava no cerro Pináculo e sua luz se derramava sobre o Pico de Silvana.

Uma grande massa humana subiu a encosta íngreme e se esparramou em torno do pico, dando a visão de uma cena do Antigo Testamento.

Aberto pela última vez o caixão, o padre Maurissí rezou os salmos da Igreja, concluindo: “Obrigado, Senhor, porque o recebeste na tua morada celestial, inundando-o de luz e de felicidade, para sempre.”

O povo, de chapéu na mão, respondeu, contrito:

- Amém. Maurissí fez o sinal da cruz, passou o lenço nos olhos, suspirou fundo e falou

com a voz embargada pela emoção:

“Meus amigos e amigos do padre Maurício. Aqui se fecham as páginas de uma das mais belas histórias destas paragens.

Não vou contar a vida deste homem, que me adotou como filho, depois de me salvar numa enchente tenebrosa... Não, não vou contar a emocionante história de amor, que termina aqui aos pés desta cruz... Não vou dizer que, se sou alguma coisa na vida, devo-o ao carinho e ao espírito humano e generoso destas duas criaturas que descansarão para sempre aqui, talvez em eternos colóquios de paz e de bondade. Não tenho forças para dizer quem ele foi... Só sei dizer que ele foi um homem que muito amou... muito sofreu... e muito fez pelos outros. Um homem que conseguiu transformar as pedras do seu caminho em construções benéficas, alegres e abençoadas. Um homem que soube ser feliz em qualquer lugar.

Incompreendido?... Sim. Desconhecido?... Sim. Mas, somente por aqueles que não sabem enxergar os valores que residem no coração das

pessoas. Aqui está um grande homem. Eu o amei muito... muito.” As lágrimas rolaram de seu rosto como uma torrente, obscurecendo sua visão.

Depois de instantes de emoção silenciosa, prosseguiu:

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“E, agora, acredito que ele morreu como sempre quis se portar: como um herói. De coração aberto, de alma simples como uma flor, de espírito generoso e sem preconceitos. Aqui repousará, no convívio da natureza que ele sempre amou.

Padre Maurício, agora quero dizer-te uma coisa...”

Novamente as lágrimas interromperam suas palavras. E, num esforço ingente, concluiu:

“Sim, eu quero agora dar-te a resposta que sempre quiseste ouvir: Eu fico em Montes Brancos. No teu lugar. Amém.”

A multidão não resistiu às lágrimas.

O ataúde estava sendo fechado, quando um grito angustiado ecoou no meio da multidão.

- Por favor, não fechem. Não fechem. Eu quero ver. Eu quero ver. Alguém tentava abrir caminho desesperadamente. Era o Jonatam Júnior. Ao

saber da morte, abalara-se que nem doido, lá de Espigão do Inferno, para ver seu amigo pela última vez.

Estancou abruptamente diante do caixão, ficou paralisado de emoção e, depois, atirou-se sobre o corpo de Mauricio, chorando como criança...

… As primeiras sombras do anoitecer desciam sobre o Cerro Pináculo, quando os

barcos começaram a sair da Pedra do Corvo, tomando o rumo de Montes Brancos.

Maurissí ainda se deixava permanecer, solitário como uma estátua de tristeza, diante da cruz de ferro, cuja sombra atravessava as duas sepulturas, como se o próprio Cristo traçasse sobre elas o sinal da cruz.

Desceu o íngreme caminho da encosta, sentindo-se pesado como as montanhas que o cercavam. Apenas o ruído cavo das suas botas misturava-se com os ruídos interiores da sua alma sofrida.

E, quando o último fiapo de sol brilhou na sua face, ele percebeu que essa luz misteriosa penetrou até o fundo do coração, iluminando-o. Descobriu, então, que no seu coração moravam ainda, muito vivos e muito amorosos, Silvana, sua mãe, e Maurício, seu pai. E sentiu, como um milagre, que a vida era linda... mais linda do que antes... porque eles, os três, agora caminhariam intimamente juntos, semeando amor, bondade, paz e felicidade, pelos caminhos do mundo...

***FIM***