Leal, Victor; Leal, Glauber. a Técnica e a Produção Da Sociedade Capitalista

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Considerações sobre a técnica e a produção do capitalismo.

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    A TCNICA E A PRODUO DA SOCIEDADE CAPITALISTA

    Victor Andrade Silva Leal1

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB

    [email protected]

    Glauber Andrade Silva Leal2

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB

    [email protected]

    GT1: Natureza, Sociedade e Trabalho

    Resumo

    Este artigo derivado do esforo terico da pesquisa monogrfica do curso de geografia

    apresentada Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia no ano de 2014. A centralidade do

    debate visa compreender a sociedade como fruto de mltiplas determinaes na formao dos

    modos de produo. Nosso objetivo geral analisar a categoria tcnica e sua determinao na

    formao social. Para objetivar anlise, foi feito um breve recorte histrico, destacando o

    perodo entre o sculo XVI e XVIII, que culminou na I Revoluo Industrial, na Inglaterra. A

    anlise do perodo foi feita em cima do surgimento da cooperao simples, a passagem desta

    para a manufatura e a insero da maquinaria na produo, subsumindo realmente o trabalho ao

    capital.

    Palavras chave: Tcnica. I Revoluo Industrial. Produo da Sociedade.

    1. Introduo

    A exposio deste trabalho prev trs momentos. Na primeira parte, fizemos um rpido recorte

    histrico retratando as mudanas no processo de produo de bens desde a cooperao simples

    baseada no trabalho assalariado, iniciado por volta do sculo XV, passando pelo

    desenvolvimento da manufatura at chegar na I revoluo industrial. Na segunda parte tentamos

    expor, de forma breve e clara, o conceito de tcnica segundo autores que reivindicam a

    concepo materialista da histria. Em seguida, analisamos como esta categoria se insere

    objetivamente dentro do processo de produo capitalista e a funo que ela ocupa nesse

    processo. Na terceira parte, levamos a discusso para a tcnica inserida no modo de produo

    1 Graduado em Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,

    membro dos grupos de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Polticas de Reordenamentos Territoriais

    (GPECT/UFS-CNPq) e Trabalho, mobilidade do trabalho e relao campo-cidade (DGUESB/CNPq).

    2 Graduado em Licenciatura Plena em Histria pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e

    Ps-graduando em Histria, cultura, poltica e sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da

    Bahia.

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    burgus para alm do cho da fbrica, o que ela , o que representa. Precisamos ver que ela

    cumpre sua funo histrica como determinada coisa, como capital, e sob essa funo, se torna

    oposta, como inimiga, ao trabalhador.

    O objetivo principal discernir um pouco sobre o papel que a tcnica ocupa no modo de

    produo capitalista, dentro e fora da fbrica. Assim, pretendemos analisar mais amplamente a

    determinao que a tcnica tem sob a produo das superestruturas do capitalismo e suas esferas

    sociais. Levantamos o debate sobre o fetichismo da tcnica na sociedade atravs da afirmao

    de autores como Bukhrin (apud LUKCS, 1989). Segundo o

    autor, a tcnica possui um desenvolvimento autnomo das relaes de produo,

    determinando, em ultima instncia, o desenvolvimento histrico das estruturas sociais.

    importante deixar claro que essa pesquisa se fundamentou na compreenso de mundo

    particular do materialismo histrico e dialtico, levando em conta a prioridade da matria sobre

    a ideia (LESSA; TONET, 2011, p. 33). Nesta concepo:

    [...] o mundo dos homens nem pura ideia nem s matria, mas sim uma sntese de ideia e matria que apenas poderia existir a partir da transformao da realidade (portanto, material) conforme um projeto previamente ideado na conscincia (portanto, possui um momento ideal) (LESSA; TONET, 2011, p. 41).

    Logo, para o materialismo histrico e dialtico, a ideia e a subjetividade fazem parte da

    existncia, mas elas no se confundem com a realidade objetiva. Uma no , digamos, mais

    real do que a outra. Sem a materialidade natural no poderia existir a conscincia dos homens

    (LESSA; TONET, 2011, p. 41). Mas sem a ideia, a sociedade tambm no poderia sequer

    existir, pois o prprio processo de interao com a Natureza depende da formulao de ideias e

    a relao destas, por meio das aes humanas, com a realidade objetiva.

    Porm, em ltima instncia, a realidade objetiva que determina a conscincia dos

    homens, bem como, na histria do mundo, a existncia da primeira precede existncia da

    segunda, afinal, essa j existia em sua forma de Natureza pura bem antes de existir seres

    humanos conscientes. Logo, uma possui o momento predominante em relao a outra. Assim,

    o materialismo histrico visa explicar a conscincia do Homem por sua existncia, e no esta

    por sua conscincia (ENGELS, 2008, p. 88).

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    importante frisar que, ao estudar qualquer objeto ou fenmeno, no podemos deixar

    de lado o processo histrico pelo qual se desenvolve. Se considerarmos o mundo real como

    fruto de diversas relaes, para compreend-lo preciso buscar em seu devir o que forneceu a

    base material para suas gneses e como, a partir da, ele se desenvolveu historicamente. Abdicar

    dessa anlise correr o risco de compreender os fenmenos como dados e/ou eternos.

    Compreender, por exemplo, a sociedade capitalista em sua forma atual sem buscar em sua

    gnese e em seus processos as determinaes que permitiram seu atual status, seria insuficiente.

    2. Um aporte histrico pr-Revoluo Industrial

    primeira vista, a transformao do fator tecnolgico bem clara, e se analisarmos

    superficialmente o fenmeno da primeira Revoluo Industrial, iremos concluir que aps as

    grandes mquinas a vapor serem inseridas no processo de produo, a sociedade capitalista

    alavancou um desenvolvimento rpido e dinmico de um novo modelo econmico, poltico e

    social. A questo que engatilha este trabalho precisamente se o fator tecnolgico foi, de fato,

    o que determinou todas essas transformaes em ltima instncia.

    O modo de produo anterior ao capitalismo foi o feudalismo. Muito embora existisse

    uma minoria de artesos e outros trabalhadores livres, no modo de produo feudal o trabalho

    era fundamentalmente servil (LESSA; TONET, 2011). Os senhores dividiam as terras entre

    aqueles que no as possuam, e ao fim de um perodo determinado, recolhiam parte da produo

    que os servos tinham realizado.

    A expanso martima proporcionou um acumulo de capital aos comerciantes, chamados

    nessa poca de burgueses (aqueles que viviam nos burgos, zonas perifricas das cidades

    feudais). Esse acmulo de capital proporcionou que os burgueses posteriormente adquirissem

    meios de produo que, naquela poca, ainda se constituam os mesmos que os artesos usavam.

    A burguesia passou, ento, a contratar trabalhadores em suas oficinas.

    Com isso, h o incio de uma mudana no paradigma da mo de obra. Lessa & Tonet

    (2011) consideram que:

    Com as grandes navegaes (sculo 15 e 16), surgiu um mercado mundial que possibilitou burguesia europeia acumular capital na escala necessria para transformar progressivamente o arteso medieval, que trabalhava em sua oficina, com suas ferramentas, sua matria-prima e com a posse do produto final, em um trabalhador assalariado justamente porque perdeu a posse de todo o resto, menos de sua fora de trabalho (p. 64).

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    A partir da, se inicia a explorao de classes tpica do sistema capitalista, atravs de

    uma forma de organizao de trabalho chamada cooperao simples3. Consequentemente, duas

    novas classes sociais comeam a surgir a partir das relaes de produo:

    a emergncia, por um lado, de uma classe exploradora prpria da sociedade burguesa (proprietria dos meios de produo e de subsistncia), com um projeto hegemnico ainda em seu incio. Por outro lado, a mercantilizao das relaes de trabalho, transformando os antigos servos, escravos ou camponeses em trabalhadores assalariados, expropriados e livres para o capital (ROMERO, 2005, p. 74).

    Porm, Romero tambm destaca que a cooperao simples muito mais antiga que o

    capitalismo e suas respectivas classes. Antes mesmo de existir burguesia, os homens j

    exploravam uns aos outros pela cooperao simples. Mas essa explorao apresentava

    caractersticas distintas forma de explorao burguesa. Segundo o autor, a cooperao simples

    em outras pocas era baseada no trabalho forado. J a forma burguesa, o trabalhador acredita

    ser livre para escolher trabalhar, ainda que constrangido a isso, graas a expropriao histrica

    dos seus meios de produo (ferramentas, terras) pela burguesia.

    Dessa forma, a dominao de classes se aprimora significativamente e o trabalho se torna

    subsumido4 ao capital. Este domnio e se realiza, antes de tudo, para atender as necessidades do

    capital. De uma forma da cooperao simples outra, h uma [...] substituio das relaes

    pessoais de dominao por relaes mercantis de dominao (ROMERO, 2005, p. 75), e isso

    s possvel graas reificao5 das relaes pessoais, com a insero da lgica da mercadoria

    na compra de fora de trabalho. As condies materiais definem a funo social do indivduo

    e no mais o inverso (ROMERO, 2005, p. 74).

    3 Em geral, a cooperao simples uma forma de trabalho onde diversos artesos so incumbidos de

    trabalhar em uma mesma oficina, em uma mesma produo, utilizando as ferramentas artess como

    meios de produo.

    4 A subsuno uma espcie de dominao, onde o elemento subsumido realiza sua reproduo baseado

    em interesses do elemento que o domina. Dessa forma, ao afirmarmos que o trabalho subsumido ao

    capital, dizemos que as realizaes do primeiro vo de contra a sua prpria essncia para atender os

    caprichos do segundo. Para mais detalhes, ver Romero (2005).

    5 A reificao se refere a uma coisificao do ser vivo, das relaes sociais. A transformao do trabalhado concreto em abstrato o torna apenas objeto em uma relao de troca, deixando de lado suas qualidades teis, suas particularidades. A partir da, o trabalhador apenas considerado como o que ele somente para o capital, fora de trabalho vivo que pe em prtica a produo de mais-valia. Para mais detalhes sobre esse processo, ver Marx (1983, p. 70-78).

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    O que podemos perceber com tudo isso que a organizao do trabalho comea a mudar

    (fundando a forma genrica do trabalho assalariado) independente de alguma mudana no meio

    tcnico. Nesta perspectiva, a histria do trabalho na sociedade no se confunde com a histria

    da tcnica, mesmo ambos estando vinculados ao mesmo processo de produo e

    transformao da natureza em bens utilizveis para a humanidade.

    Ainda segundo Romero (2005), a forma de organizao social do trabalho assalariado no se

    desenvolveu plenamente durante a cooperao simples, que era amplamente limitada no

    domnio do capital sobre o trabalho. Para sair de uma subsuno formal a uma subsuno real,

    a relao de capital tinha que atingir a produo pela grande indstria, ou seja, a Revoluo

    Industrial. Mas ainda no havia condies materiais para tal mudana radical no meio tcnico.

    Por isso, entre a cooperao simples e a grande indstria houve um perodo intermedirio, o da

    produo atravs da manufatura.

    Mas antes de entrarmos em detalhes, importante percebermos que, da cooperao simples

    manufatura nenhuma revoluo tcnica no processo de produo acontece. Pelo contrrio, as

    ferramentas utilizadas nas oficinas permanecem as mesmas.

    No que se refere ao regime de produo, vemos que a manufatura, por exemplo, apenas se distingue em suas origens da indstria gremial do artesanato mais pelo nmero de operrios empregados ao mesmo tempo e pelo mesmo capital, nmero que na manufatura maior. No se fez mais do que ampliar a oficina do mestre arteso. Por tanto em princpio, a diferena meramente quantitativa (MARX apud LUKCS, 1989, p. 47).

    Alm disse, vale apontar que a manufatura no descende diretamente do artesanato, mesmo

    tendo uma base tcnica idntica.

    a reunio dos trabalhadores na oficina no foi (...) obra de pactos amistosos entre iguais. A manufatura no nasceu no seio dos antigos grmios; foi o comerciante que se transformou no chefe da oficina moderna e no o antigo mestre dos grmios. Quase em todas as partes travou-se uma luta encarniada entre a manufatura e os ofcios artesos (MARX apud ROMERO, 2005, p. 89-90).

    Alm dessa mudana quantitativa de operrios, mesmo na permanncia da base tcnica,

    tanto Lukcs (1989) quanto Romero (2005) tambm apontam que, qualitativamente, a

    organizao do trabalho se transformou dentro e fora da oficina. Essa mudana se deu pois na

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    manufatura quando surge um importante aspecto para o desenvolvimento das relaes

    capitalistas, a diviso manufatureira do trabalho, ou a diviso do trabalho em detalhes.

    Foi graas ao acmulo de capital pela expanso martima e pelo acmulo de relaes sociais

    pela nova face da cooperao simples que, em meados do sculo XVI se iniciou o perodo de

    predominncia da manufatura, que perdurou at o fim do sculo XVIII, no incio da Revoluo

    Industrial.

    A grande mudana da manufatura para os perodos de produo anteriores, como j dito, foi o

    amadurecimento da diviso do trabalho e, com ela, a criao do trabalhador coletivo. A diviso

    do trabalho pode ser dividida em trs aspectos.

    [...] a primeira aquela que denota a separao entre campo e cidade, que Marx denomina de diviso social do trabalho em geral. A segunda, a diviso social do trabalho (combinao da diviso especial do trabalho). Distingue os ramos de produo de uma determinada sociedade. E, por fim, temos a diviso manufatureira, aquela que surge no interior das oficinas (ROMERO, 2005, p. 95).

    A diviso do trabalho especializa a atividade do trabalhador nesses trs aspectos, trabalho da

    cidade ou do campo, em um ramo de produo, e em apenas uma parte dela. O trabalhador

    agora cumpre apenas uma funo dentro de todo um processo social de trabalho, no servindo

    de nada individualmente. Ao contrrio do artesanato, um nico indivduo no responsvel

    pela fabricao do produto, mas sim uma parte dele. Seu trabalho, individualmente, produz

    apenas uma parte do valor de uso, uma matria prima para outro trabalhador. Apenas na etapa

    final da produo a mercadoria fica pronta, e apenas todo esse trabalho coletivo a produz.

    O trabalhador deixa de ser individual para ser social, criando o trabalhador coletivo. Porm,

    toda a matria prima, as fontes de energia, os trabalhadores e qualquer outro fator de produo

    apenas est reunido pelo capital e para o capital. Os indivduos no se unem na oficina por

    verem necessidade de trabalharem juntos, e sim por uma condio imposta pelo capital (como

    j vimos, a necessidade de expropriao dos trabalhadores os deixou sem terras e ferramentas).

    Em outras palavras, o trabalho social se torna um trabalho para o capital.

    Outro fato marcante tambm a criao de um trabalhador puramente intelectual dentro das

    oficinas. Esse trabalhador se encarregaria da tarefa de conceber a produo, enquanto os

    trabalhadores manuais em apenas execut-la. A separao entre concepo e execuo um dos

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    fatores fundamentais para o domnio da burguesia, pois amplia o estado de alienao dos

    indivduos a nveis mais amplos. Ainda mais:

    Quando falamos em diviso entre concepo e execuo no estamos afirmando que o trabalho manual perde todas suas capacidades intelectuais, Nosso objetivo indicar a insero de um trabalho puramente intelectual como uma atividade especializada da diviso do trabalho, com a constituio dos trabalhos tcnicos-cientficos (ROMERO, 2005, p. 102).

    Apenas depois de pouco mais de dois sculos aps o incio da predominncia da produo

    manufatureira, no fim do sculo XVIII, a primeira Revoluo Industrial acontece na Inglaterra,

    revolucionando os meios tcnicos e implementando de uma vez o trabalho assalariado em sua

    fase mais desenvolvida. A partir desse perodo a sociedade entra na fase que conhecemos como

    sociedade capitalista. Com a insero das grandes mquinas, o capital passa a ter domnio

    completo sobre o processo de trabalho e os indivduos que o compe.

    3. A funo da tcnica como capital

    Analisando este conceito dentro de uma concepo materialista da histria, impossvel

    chegar a uma compreenso mnima se abstrairmos o prprio momento histrico que ele est

    inserido. Logo, para entendermos a tcnica precisamos consider-la como parte da sociedade

    capitalista que vivemos. Marx no concebe o estudo da tcnica e da cincia como uma

    totalidade em si, mas apenas como uma dimenso do capital (ROMERO, 2005, p. 16). um

    discurso comum que vemos desde autores atuais quanto antigos, como apontam Lukcs (1989)

    e Lessa (2011) em suas crticas, de que a tcnica tem, em si, potencial de libertao do trabalho

    na medida em que aumenta a produtividade do trabalho produtor de valor de uso. Mas se isso

    fosse verdade, o desenvolvimento tcnico que temos desde a insero da maquinaria no fim do

    sculo XVIII no seria suficiente para diminuirmos as horas de trabalho dirio absoluta e

    relativamente? Porm, a revoluo que ocorre no processo de produo atravs da relao

    capitalista nos mostra justamente o contrrio (MARX, 1984).

    Mesmo antes da revoluo industrial, a base tcnica da produo da cooperao simples

    e da cooperao baseada na diviso do trabalho se transformou em outra forma histrica que

    antes, no artesanato, se diferenciava dessas. As ferramentas de trabalho se colocaram frente ao

    trabalhador como capital e, dessa forma, se tornaram um meio para a expropriao de mais-

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    valia do trabalho excedente que o operrio realizava. Mas nessas duas formas de produo a

    tcnica enquanto capital ainda era imatura, e apenas subsumia o

    trabalhador formalmente. com a I Revoluo Industrial que essas caractersticas

    aparecem com muito mais intensidade.

    Mesmo os representantes confiveis da Economia Poltica (MARX, 1984, p. 60) no

    negam esse aspecto no poupador de trabalho que surgem com o progresso tcnico na

    sociedade, e enxergam a real escravido que a insero da maquinaria pode provocar nos

    operrios que so constrangidos a vender sua fora de trabalho e operar as grandes mquinas

    poupadoras de trabalho. Porm, enxergam tambm, como perspectiva, que esse seria um

    problema temporrio e transitrio, pois a economia gasta em um setor iria ser investida em

    outros setores onde se empregaria mais trabalhadores. Alm disso, diziam tambm que o

    aumento da produtividade iria baratear o preo (valor) das mercadorias at a, assertivamente

    e que isso possibilitaria que mais trabalhadores pudessem comprar essas mercadorias mais

    baratas, tendo a outro efeito positivo (MARX, 1984, p. 60-61; ROMERO, 2005, p. 118-119).

    De certo, Marx (1984) aponta que a liberao de trabalhadores de um setor atingido pela

    insero da maquinaria cria em certos momentos outros setores antes inexistentes. A prpria

    produo baseada nas mquinas a vapor cria diretamente o setor produtivo de mquinas a vapor.

    A princpio, essa produo era artesanal ou manufatureira. Com o passar do tempo as prprias

    mquinas comearam a ser produzidas tambm por outras mquinas. Isso faz com que

    trabalhadores sejam empregados nessas produes. Alm disso, com a produtividade de peas

    de roupa atravs da mquina a vapor, por exemplo, a necessidade de matrias primas e produtos

    secundrios tambm aumenta proporcionalmente. Ou seja, se antes eram produzidas 100

    camisas por dia e agora produz-se 500, a matria prima tambm tem que ser produzida cinco

    vezes mais. Logo, os trabalhadores da produo de algodo iriam aumentar em cinco vezes

    proporcionalmente.

    Essa uma verdade apenas relativa, pois esse aumento dos trabalhadores em outros

    setores anteriores e a criao de outros setores tambm ser atingido pela insero da

    maquinaria, despedindo novamente os trabalhadores. Alm disso, novos setores possveis para

    a humanidade, como podemos imaginar, so limitados pela finitude social. Por mais que a

    burguesia crie produes de luxo, Uma parte maior do produto social transforma-se em

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    produto excedente e uma parte maior do produto excedente reproduzida e consumida em

    formas mais refinadas e mais variadas (MARX, 1984, p. 59).

    Porm, muito dessas novas produes no chegam a empregar muitos trabalhadores,

    criando cada vez mais massas de trabalhadores desempregados que servem como um exrcito

    industrial de reserva e vivem no pauperismo a merc das qualidades sociais mnimas. E isso

    tambm proporciona que muitos desses trabalhadores, antes produtores de valor de uso, se

    tornem outro tipo de trabalhador, a classe servial (MARX, 1984, p. 59-60).

    A todo instante a produo capitalista demite e contrata trabalhadores em antigos e

    novos setores, sejam eles produtores ou no de mais-valia. Alm disso, a maquinaria tambm

    transforma essencialmente a classe trabalhadora empregada, pois:

    O aperfeioamento da maquinaria exige no s a diminuio no nmero de trabalhadores adultos ocupados para alcanar determinado resultado, mas substitui uma classe de indivduos por outra classe, uma mais qualificada por uma menos qualificada, adultos por crianas, homens por mulheres. Todas essas mudanas causam constantes flutuaes no nvel do salrio (URE apud MARX, 1984, p. 50).

    Esses dois processos antitticos de demisso e admisso mesmo sob nova

    configurao fazem parte do mesmo processo de desenvolvimento tcnico capitalista.

    As contradies e os antagonismos inseparveis da utilizao capitalista da maquinaria no existem porque decorrem da prpria maquinaria, mas de sua utilizao capitalista! J que, portanto, considerada em si, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, enquanto utilizada como capital aumenta a jornada de trabalho; em si, facilita o trabalho, utilizada como capital aumenta sua intensidade; em si, uma vitria do homem sobre a fora da Natureza, utilizada como capital submete o homem por meio da fora da Natureza; em si, aumenta a riqueza do produtor, utilizada como capital o pauperiza etc. (MARX, 1984, p. 56-57).

    A insero da mquina transforma totalmente a necessidade do capital sob o trabalho. A

    mquina, sendo um verdadeiro autmato, no exige mais que o trabalhador manuseie as

    ferramentas com sua fora e habilidade. A prpria mquina planejada e programada para que

    ela mesma realize a atividade praticamente s. Cabe ao trabalhador apenas vigi-la, repor

    matria prima com a qual ela trabalha ou at aliment-la de sua fonte energtica como carvo

    etc. A necessidade de um trabalhador qualificado, que domine todo o processo de produo,

    como antes era no artesanato, deixa de existir na maquinaria empregada enquanto capital e os

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    trabalhadores, simples em seu processo de aprendizado, o qual qualquer um poderia obter

    rapidamente, tem seu salrio desvalorizado mais uma vez6. Alm de ser fcil de aprender as

    tarefas simples para o cotidiano do trabalho dentro da fbrica, uma quantidade maior de

    trabalhadores est disposta a assumir o emprego, j que o uso da maquinaria os transformou

    em desempregados, fazendo tambm com que o preo da fora de trabalho tambm diminua

    por presso social do exrcito industrial de reserva.

    possvel perceber at aqui que a tcnica dentro do capitalismo no serve apenas para

    o processo de produo de riqueza material, como ocorre em todos os momentos histricos da

    sociedade se a considerarmos abstrada do modo de produo. A tcnica cumpre a funo de

    capital na medida em que est subordinada ao processo de valorizao do mesmo. Sem inserila

    neste processo, de nada vale ao capital investir em novos meios de produo, pois para eles isso

    s traria prejuzo, indo de contra a sua prpria existncia. Esse processo de valorizao do

    capital, por si, s acontece atravs da explorao do trabalho pelo capital, de uma classe pela

    outra, e os meios de produo tm que tomar formas cada vez mais intensas para que a parte da

    jornada de trabalho que o operrio produz para pagar seu salrio se torne relativamente e

    absolutamente menor, enquanto a jornada de trabalho em si se prolongue extensiva e

    intensivamente (ROMERO, 2005, pp. 117, 124, 130-135, 165-166; MARX, 1984, pp. 7, 9, 22-

    25, 28-39).

    Dessa forma, potencializando o processo de valorizao do capital, as mercadorias

    produzidas por uma nova tcnica se transformam, assumindo uma composio a qual o trabalho

    morto aumenta sua quantidade relativa. De certo, se se aumenta a produtividade do trabalho e,

    na mesma quantidade de tempo, se passe a produzir uma maior quantidade de mercadorias que

    antes, o valor de cada mercadoria individual reduzido absolutamente. Porm, o valor de uma

    mercadoria possui uma composio dupla.

    6 Sobre o custo do aprendizado do ofcio e sua repercusso no valor da fora de trabalho Marx (1982) diz que, para o objetivo do livro (Salrio, Preo e Lucro) no era necessrio considerar o tempo gasto nesse aprendizado, pois era quase insignificante, sendo apenas a aquisio de mercadorias que possibilitem sua reproduo social e biolgica, bem como o da sua prole como relevantes para calcular o valor da fora de trabalho (p. 160). sabido que tal livro apenas foi escrito para servir de base a uma conferncia realizada pelo autor em 1965 na Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT), e de certo Marx relevou esse custo, pois na sociedade em que ele se encontrava ele j era, em geral, irrelevante.

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    Parte do valor de uma mercadoria advinda da transferncia do valor das foras

    produtivas (matria prima, desgaste da maquinaria, materiais secundrios como o carvo, o leo

    etc.). Outra parte surge na produo da mercadoria mesma, e acrescida graas ao trabalho

    diretamente despendido nela. Sobre a transferncia de valor cristalizado, Marx (1984, p. 17-22)

    afirma que o trabalho necessrio para criar os meios de produo transferido para as

    mercadorias que elas fazem parte. Por exemplo, se for necessria meia hora de trabalho para

    tratar um quilograma de linho e esse linho for matria prima para a produo de um casaco, esse

    tempo de trabalho transferido ao valor do casaco.

    A esse valor deve ser acrescido tambm o desgaste da mquina utilizada, que calculada

    pela quantidade de tempo que esta permanece ativa em sua vida til dividido pela quantidade

    de artigos que ela produz nesse tempo. Alm de outros materiais como botes, linhas, agulhas,

    carvo para dar fora motriz mquina a vapor, etc. Suponhamos que todos esses valores juntos

    forneam mais meia hora de trabalho transferido para o valor do casaco. Aqui j temos uma

    hora de trabalho na constituio do valor do artigo.

    Esse foi o valor que permaneceu constante e apenas foi transferido para outra mercadoria

    mais acabada7. Por isso esse investimento chamado de capital constante. A nica coisa que

    pode fazer variar o valor do casaco a fora de trabalho propriamente dita, em outras palavras,

    o capital varivel. Se um trabalhador demora uma hora para a feitura do casaco, este vai conter

    uma hora de valor advindo do capital constante, e uma hora de valor do capital varivel. Assim,

    metade de seu valor constituda de cada um dos dois, totalizando duas horas de trabalho

    necessrio para a produo de um casaco.

    Porm, se uma maquinaria de melhor qualidade investida enquanto capital constante,

    essa repartio do valor pode se transformar relativa e absolutamente. Se agora, uma mquina

    gasta menos tempo na produo da matria prima linho, por exemplo, e fornece o mesmo

    quilograma de linho a 20 minutos, bem como o desgaste com outros materiais na produo do

    casaco tambm diminua inclusive o prprio carvo, considerando a mquina a vapor, j que

    ela precisa de menos tempo ativa para produzi-lo, e estes gastos tambm somem mais 20

    minutos, temos aqui apenas 40 minutos de capital constante transferido para a mercadoria.

    7 Desconsideramos aqui o desgaste perdido com matria prima ou a energia motriz no gasta, bem

    como outras coisas que podem se perder no processo de produo.

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    Considerando tambm uma mudana tcnica na prpria produo do casaco, agora o

    trabalhador demora apenas 20 minutos para produzir o mesmo artigo, o total de tempo

    necessrio para a produo total do casaco a metade de antes, uma hora. Esse tempo cai

    absolutamente, mas no s isso.

    Antes, o casaco possua metade de valor advindo do capital constante outra metade do

    capital varivel. Agora dois teros (40 min.) do casaco so constitudos pela transferncia de

    capital constante e apenas um tero constitudo de capital varivel (20 min.). Existe aqui

    tambm um decrscimo relativo na quantidade de trabalho despendido diretamente na

    confeco do casaco, sendo que a unidade do casaco necessitar cada vez menos de

    investimento em capital varivel e cada vez mais em capital constante.

    A tcnica assume nesse processo um papel antagnico ao do trabalho, o papel de capital,

    e no funciona como fora emancipadora para o ser humano, como seria se tivssemos analisado

    ela abstrada de sua forma histrica. Neste caso, ela aparece como seu inimigo direto. Essa

    relao entre trabalhador e meios de produo uma exposio da prpria luta de classes entre

    capital e trabalho. Os trabalhadores tomaram conscincia deste problema em diversos

    momentos, chegando a tomar a ao direta de destruir as mquinas, pois elas aparentavam ser

    as culpadas pela diminuio de quantidade e qualidade de trabalho nas fbricas (MARX, 1984;

    ROMERO, 2005).

    Evidentemente que culpar as mquinas pela intensificao das desigualdades sociais

    caracterizou um momento e imaturidade do movimento operrio, afinal, preciso tempo e

    experincia at que o trabalhador distinga a maquinaria de sua aplicao capitalista e, da,

    aprenda a transferir seus ataques do prprio meio de produo para sua forma social de

    explorao (MARX, 1984, p. 47).

  • 13

    4. A tcnica no desenvolvimento histrico da sociedade

    De todas as ms interpretaes do pensamento de Marx, talvez a mais chocante seja aquela que faz dele um determinista tecnolgico (HARVEY,

    2014, p. 157).

    Seguindo o caminho que trilhamos at agora, devemos examinar mais de perto o papel

    que a tcnica ocupa na produo da sociedade no modo de produo em que vivemos hoje.

    Tambm se o desenvolvimento da sociedade no perodo anterior a Revoluo Industrial foi

    determinado em ltima instncia pelo acmulo de relaes de produo atravs das mudanas

    da organizao do trabalho, ou, em outra perspectiva, se a transformao da tcnica

    proporcionou tais mudanas estruturais na sociedade. Para isso, devemos nos focar em tentar

    entender o que fundamental para essas transformaes, ou seja, quais so suas fundaes, suas

    bases em que se aliceram. Ainda que tanto as relaes sociais quanto as inovaes tcnicas

    tiveram papeis importantssimos para o desenvolvimento histrico da sociedade, preciso

    investigar em qual dos dois est o momento predominante de tal desenvolvimento, e quais

    esferas sociais se subordinam em maior grau a esta predominncia.

    Lukcs (1989), seguindo a concepo materialista da histria, para quem a tcnica

    apenas uma parcela das relaes de produo, sendo ela uma parte, um momento naturalmente

    de grande importncia, das foras produtivas sociais, mas no , simplesmente, idntica a elas,

    nem [...] o momento final ou absoluto das mudanas dessas foras (p. 45, grifo nosso). Para

    Lukcs, o que determina a produo da sociedade, sua histria e suas diferentes esferas, o

    processo de trabalho por completo, no um fator isolado dele. Neste mesmo sentido, Marx

    (1983, p. 150) afirma que os elementos simples do processo de trabalho so a atividade

    orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. A forma com que esses trs

    elementos esto organizados, ou seja, como eles so realizados, determina em ltima instncia

    a produo da nossa sociedade.

    Mas devemos ter cautela quanto essas determinaes, pois muitos so as crticas ao

    materialismo histrico que confundem as determinaes com absolutismos consumados.

    muito comum ouvirmos em palestras, salas de aula ou eventos acadmicos, de tericos que

    pouco entendem sobre o marxismo dizer que dentro dessa concepo exista um nico

    determinante para os fenmenos, criando um estado de causa e efeito. O prprio Santos (1980,

    p. 32-36) faz diversas associaes do pensamento de Marx com o positivismo, e em certas

  • 14

    ocasies, tratando-os como um pensamento unvoco. Contrapondo essa crtica nas palavras do

    prprio Engels (2010), um dos fundadores dessa compreenso cientfica:

    [...] De acordo com a concepo materialista da histria, o fator que em ltima instncia determina a histria a produo e a reproduo da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos mais do que isto. Se algum o tergiversa, fazendo do fator econmico o nico determinante, converte essa tese numa frase vazia, abstrata, absurda. A situao econmica a base, mas os diversos fatores da superestrutura que se erguem sobre ela [...] exercem tambm sua influncia sobre o curso das lutas histricas e determinam, em muitos casos predominantemente, a sua forma (p. 103-104).

    Nota-se que muito mais que uma relao de causa e efeito. Logo, mesmo afirmando

    que, para o marxismo, a forma que o trabalho se organiza na sociedade determina em ltima

    instncia a reproduo desta, no podemos afirmar que a nica determinao existente, e

    como o prprio Engels coloca, nem sempre a que predomina.

    Essas mltiplas determinaes, para a concepo do materialismo histrico, que do

    suporte na produo da sociedade. A esfera econmica, ou seja, a organizao do processo de

    trabalho, apenas colocada em ltima instncia. Se no pensarmos dessa forma, cairemos no

    erro comum da relao de causa e efeito, sem perceber as determinaes dialticas das

    contradies inerentes s necessidades postas pelas relaes sociais no curso da realidade

    concreta.

    Assim, h duas relaes que Lessa (2011) demonstra que precisam ser analisadas para

    entendermos, por mais que superficialmente, como funciona esse processo. 1) A relao entre

    a esfera econmica e a totalidade social tem como momento predominante a economia, pois

    nessa esfera parcial da totalidade que a relao entre o homem e a Natureza realizada. Assim,

    a totalidade social acaba por ter que, predominantemente, agir para que o processo de trabalho

    seja reproduzido tal como . 2) J a relao entre a totalidade social e as outras esferas sociais

    parciais (como a poltica, cultura, educao, sade, ideologia etc.) tem como momento

    predominante a totalidade social. Existe nesta e naquela relao certa reciprocidade, a totalidade

    social tem sua influncia sobre a esfera da economia, bem como as outras esferas parciais

    tambm exercem suas influncias sobre a totalidade. Mas elas no so, aqui e ali, momentos

    predominantes.

    Por conta disso que podemos perceber que, por influenciar diretamente a totalidade

    social, e indiretamente as esferas parciais, estas se encontram em sentido concomitante aos

    interesses econmicos. Por exemplo, a esfera poltica e o seu Estado tomam, em grande medida,

  • 15

    decises administrativas que privilegiem o grande capital; ou a sade e a educao serem

    tratadas mais como mercadorias para a acumulao de mais-valia e meios de reproduzir a

    sociedade tal como ela do que como bens teis para a sociedade; ou at a produo ideolgica

    e cientfica nas universidades e outros centros de pesquisa que visa financiar mais os estudos

    que lhe deem algum retorno econmico.

    Mas voltamos a afirmar, e que fique claro, no uma relao de causa e efeito. Tambm

    afirma Lessa (2011) que:

    No apenas desta estrutura categorial est excluda a possibilidade de uma nica e exclusiva causa de qualquer fenmeno social, como ainda no h qualquer possibilidade de esta causa nica residir na tcnica (nos meios de trabalho) ou na cincia. Em todo processo histrico h sempre e necessariamente um momento predominante, mas isto completamente distinto de qualquer causa determinante nica (p. 264).

    O trabalho assalariado, em seu estado germinal, ou seja, antes na insero da maquinaria

    no processo de produo, cumpre um papel de seu prprio catalizador, intensificando ainda

    mais sua objetividade. Isso acontece pois o acmulo dessas relaes germinais de

    assalariamento que proporcionam a insero da mquina a vapor posta enquanto capital na

    relao de produo. (ROMERO, 2005). O trabalho, ato que deveria ser emancipatrio para o

    ser humano, acabou se tornando sua prpria priso. Uma parte dessa priso materializada nas

    tcnicas. A cooperao simples e a cooperao baseada na diviso do trabalho permitiram com

    que as tcnicas fossem cada vez mais aprimoradas e desenvolvidas. Mas tambm vimos que

    elas no so apenas ferramentas, meios de trabalho. Assim como o trabalho no apenas

    trabalho da relao capitalista, trabalho abstrato (LESSA, 2011), as tcnicas tambm so

    mais que apenas tcnicas, figuram como capital, e s podem ser consideradas como tal. Logo,

    o desenvolvimento tecnolgico, aqui, representou o desenvolvimento do capital. E esse

    desenvolvimento que forneceu o fortalecimento da tcnica em sua forma de capital.

    Lessa (2011) tambm critica, em outros autores que tomam como seguro e comprovado

    que o desenvolvimento tecnolgico o que determinaria o desenvolvimento histrico (p. 254),

    o fetichismo da tcnica. Para ele:

    Tal concepo condiz com uma verso banalizada da histria do capitalismo segundo a qual, por exemplo, teria sido a descoberta da mquina a vapor a gnese da Revoluo Industrial [...] [e ela] ignora que a descoberta da mquina a vapor ocorreu no memento em que a existncia de um mercado mundial

  • 16

    suficientemente amplo e organizado, historicamente indito, se articulou presena de massas de trabalhadores expulsas do campo e dispostas a trocar sua fora-de-trabalho por salrios. Foi o desenvolvimento das relaes capitalistas em escala planetria e, mais imediatamente, na Inglaterra, que tornou possvel e necessria a transio das manufaturas indstria. Foi neste momento que a mquina a vapor tornou-se til e foi desenvolvida. As causas da Revoluo Industrial no coincidem com a descoberta da mquina a vapor; so a ela anteriores (p. 254-255, grifo nosso).8

    Se tentarmos buscar a explicao das esferas da realidade por uma base real, deixando

    de lado sua origem e desenvolvimento, estamos deixando de lado tambm a perspectiva

    dialtica da realidade, da luta dos contrrios, bem como da histria. No podemos consider-la

    de forma que o seu desenvolvimento ocorresse igual em todos os momentos da histria

    (ROMERO, 2005, p. 126-127). Se se consideramos a tcnica com um carter fetichista, ou seja,

    como esfera autnoma da sociedade, poderemos interpretar equivocadamente uma histria

    universal a partir dessa autonomia tecnolgica.

    Em uma histria universal, as determinaes do desenvolvimento tecnolgico seriam compreendidas para alm das formaes sociais de cada poca, ou seja, para alm da histria. Ou pior, o desenvolvimento tecnolgico seria ele prprio a determinao do movimento histrico. As etapas histricas seriam explicadas em funo de descobertas e invenes tecnolgicas (ROMERO, 2005, p. 20-21).

    A concepo fetichista da tcnica, ao coloc-la como fundamento das determinaes

    sociais e do desenvolvimento da histria, falha como de tantas outras maneiras ao responder

    qual o fundamento do prprio desenvolvimento da tcnica? (LESSA, 2011, p. 262). Ela seria,

    ento, uma entidade mitolgica racional que manipula o mundo como o titereiro manipula sua

    marionete? Segundo Lessa (2011), muitos dos autores, a serem questionados sobre isso, fogem

    da pergunta se abrigando nos confins da cincia. Mas segundo ele, isso apenas transfere o

    problema. Pois, se a cincia, e no mais a tecnologia, deve ser considerada a causa

    8 Lessa afirma duas vezes que a descoberta da mquina a vapor aconteceu apenas quando ela foi inserida no processo de produo, mas j vimos que ela precedeu esse momento. Sem riscos de uma m interpretao dessa afirmao com o que j vimos, entende-se por descoberta a insero nos meios de produo da mquina a vapor.

  • 17

    determinante do desenvolvimento histrico, qual seria o fundamento do desenvolvimento da

    prpria cincia? (p. 262).9

    Dentro das bases marxistas, nas quais ns nos apoiamos, a tecnologia deve ser

    considerada frente s relaes de produo de cada formao social especfica (ROMERO,

    2005, p. 123). Desconsiderar o momento histrico no entendimento da tcnica pode nos levar a

    entend-la de forma abstrata, carente de determinaes, deixando de lado seu papel histrico

    para a sociedade.

    Seguindo essa ideia, devemos compreender que a anlise marxista da tcnica deve ter

    sempre como base terica as relaes de classe, que so as bases reais do movimento histrico

    (ROMERO, 2005, p. 126). Sendo assim, como podemos entender a tcnica atravs da luta de

    classes?

    A constante briga pela parcela de valor na produo entre burgueses e operrios

    constitui um movimento da luta de classes. E a que a tcnica entra.

    No capitalismo, a tcnica no apenas um instrumento do processo de trabalho, como ocorria nas formaes sociais pr-capitalistas, mas um instrumento do processo de valorizao, implicando e determinando uma relao especfica de domnio e de explorao do trabalhador aquela da subsuno real , que decorre das prprias condies econmicas e do emprego dos meios de produo (ROMERO, 2005, p. 124).

    Logo, o desenvolvimento da tcnica permite que a burguesia aumente a produtividade

    das indstrias, fazendo com que o operrio produza cada vez mais, e no ganhe,

    necessariamente, um maior salrio por isso. o que Marx (1983; 1984) chama de aumento da

    mais valia relativa. E isso acontece por que as foras produtivas no sistema capitalista tem

    como elemento que a distingue o fato de ser capital, diferente das foras produtivas de outras

    formaes sociais (ROMERO, 2005, p. 121). Ao investir mais em capital constante (meios de

    produo que no so o trabalho humano, como a matria prima, energia, galpes, transporte e

    a prpria tcnica), e menos em capital varivel (trabalho humano exclusivamente), a classe

    9 Ainda sobre essa fuga desses autores, Lessa (2011) chega a afirmar que no so poucos, entre os autores que estudamos, os que se referem a uma revoluo tcnico-cientfica ou expresses do gnero (p. 262). Curiosamente, mesmo sem aparentar no conhecer o gegrafo Milton Santos, ele d um tiro certeiro sobre suas formulaes.

  • 18

    burguesa aumenta o valor que expropriado do trabalhador no processo de produo e,

    consequentemente, empurra-o para uma situao cada vez mais discrepante de pobreza relativa.

    No obstante, o progresso tcnico no capitalismo cria um aumento da produtividade da

    fora de trabalho, servindo para que o trabalhador reproduza mais rapidamente o seu valor.

    Trata-se de diminuir a:

    [...] parte da jornada em que ele [o trabalhador] trabalha para si mesmo, a parte retribuda de seu tempo de trabalho; e de prolongar, mediante a reduo desta, a outra parte da jornada, aquela em que ele trabalha grtis para o capitalista, a parte no retribuda da jornada de trabalho, seu tempo de sobretrabalho (MARX apud ROMERO, 2005, p. 117).

    De fato, a substituio da ferramenta da manufatura pela mquina industrial, no

    processo produtivo, cria um princpio objetivo que mudar por completo suas bases. Esse

    princpio toma por completo as rdeas do trabalho, definindo de uma vez por todas, em

    quantidade e qualidade, a jornada de trabalho. Como diz Marx (1983):

    O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho o resultado de uma luta multissecular entre capitalista e trabalhador. Entretanto, a histria dessa luta mostra duas tendncias opostas. Compare-se, por exemplo, a legislao fabril inglesa de nosso tempo com os estatutos ingleses do trabalho do sculo XIV at bem na metade do sculo XVIII. Enquanto a moderna lei fabril reduz compulsoriamente a jornada de trabalho, aqueles estatutos procuravam compulsoriamente prolong-la. Sem dvida, as pretenses do capital, em seu estado embrionrio, quando ele ainda vir a ser, portanto, em que ainda no assegura mediante a simples fora das condies econmicas, mas tambm mediante a ajuda do poder do Estado [...]. Custou sculos para que o trabalhador livre, como resultado do modo de produo capitalista desenvolvido, consentisse voluntariamente, isto , socialmente coagido, em vender todo o seu tempo ativo de sua vida, at sua prpria capacidade de trabalho, pelo preo de seus meios de subsistncia habituais, e seu direito primogenitura por um prato de lentilhas (p. 215).

    Aqui perceptvel a comprovao de duas das nossas afirmaes anteriores. A primeira

    sobre as mltiplas determinaes sociais, ao se falar no Estado que busca afetar a reproduo

    social atravs do vis poltico. Essa esfera age deliberadamente da extenso da jornada de

    trabalho, defendendo a classe social exploradora. E a segunda sobre a relao da luta de classes

    com a tcnica no capitalismo, ao notarmos que s a subsuno real, que aparece aps a insero

    de uma nova tcnica das bases materiais da produo da sociedade, permite o prprio

  • 19

    trabalhador livre se submeter a esse perodo dado da jornada de trabalho ditado pelo

    capitalista e pelo Estado moderno, seu fiel companheiro.

    O que devemos voltar a nos questionar por agora : Qual esfera da realidade determina

    essa totalidade social a qual nos referimos? Por qual motivo essas jornadas de trabalho so to

    definidas para serem inseridas da melhor forma possvel no processo de produo? Por que os

    seres humanos ainda continuam a utilizar o trabalho assalariado para poderem se reproduzir

    enquanto sociedade? Bem, e se voltarmos mais ainda na essncia disso tudo e nos perguntarmos

    por que o homem est organizado em sociedade?

    Vivemos em uma sociedade complexa, cheia de indivduos dos quais nunca teremos

    contato direto nenhum, e mesmo assim insistimos em viver nela. Porm, mesmo no

    estabelecendo esse contato direto, somos imediatamente dependentes de muitos deles. Podemos

    perceber isso mais concretamente se pensarmos na produo de alimento que chega s nossas

    casas sem ao menos conhecermos seus produtores. E desse pensamento ainda se desdobra todas

    as outras mercadorias que utilizamos, todos os produtos do trabalho humano que, em algum

    espao e em algum tempo, foram produzidos, distribudos e consumidos por ns. Precisamos

    viver em sociedade, pois sozinhos ou em pequenas tribos no conseguiramos dar conta de toda

    essa imensa produo a qual estamos presos e dependentes tal como o fogo depende do consumo

    oxignio para continuar existindo.

    A organizao da sociedade em sua totalidade, ento, tem como objetivo que essa

    produo social continue ocorrendo, por isso nos organizamos nela, para podermos produzir

    socialmente. A produo de riquezas cresce consideravelmente com o trabalho humano social,

    em propores que, individualmente ou em pequenos grupos, no teramos condio de manter

    o mesmo nvel de produtividade. Essa produo fruto da necessidade de nos reproduzirmos,

    isso , de atendermos nossas necessidades imediatas. Porm, toda essa produo socialmente e

    tecnicamente desenvolvida nos d a possibilidade de realizarmos outras atividades, j que agora

    no precisamos gastar tanto tempo na feitura de alimentos, roupas, casas e outros artigos de

    primeira necessidade. H aqui a possibilidade de se produzir a cultura, msica, teatro, cincia,

    educao e outras esferas sociais. Mas todas elas esto dependentes da produo da economia,

    ou seja, da realizao do trabalho.

    Se, como vimos, a realizao do trabalho parte de uma necessidade, que gera mais

    possibilidades (LESSA; TONET, 2011), podemos finalmente nos perguntar, de quem so essas

  • 20

    necessidades? Em outras palavras, se a produo da nossa sociedade baseada nas necessidades

    que temos e nas possibilidades que criamos com isso, como as mquinas, objetos e tcnicas

    poderiam determinar como, o que, quando etc. produzir? Admitir isso tambm admitir que a

    tcnica (ou a cincia, como vimos) teria sua prpria racionalidade, e que ela, conscientemente,

    estaria determinando nossas aes enquanto transformadores da Natureza. As relaes sociais

    entre os homens, nesta concepo [fetichista da tcnica], passam a ser decorrncia dos meios

    de trabalho (LESSA, 2011, p. 262). Mas nossas necessidades, por mais artificiais que elas

    sejam, so necessidades humanas, no do meio tcnico, e apenas elas sem perder de vista as

    condies objetivas as quais nos encontramos, para no cairmos em preposies idealistas

    poderiam determinar, em ltima instncia, como nossa sociedade pode ser produzida.

    5. Consideraes Finais

    Ao fim dessa anlise, pudemos observar que o processo de transformao radical da

    sociedade durante a I Revoluo Industrial no foi causado pela insero da tcnica, mas pelas

    transformaes nas relaes de trabalho. Para isso, no podemos considerar essa revoluo

    constituda apenas no fim do sculo XVIII, devemos compreend-la por todo processo anterior

    a ela que fez com que, paulatinamente, as relaes de produo estivessem maduras no que se

    refere ao domnio do capital ao trabalho.

    Os resultados, por mais que parciais, dessa pesquisa so de fundamental importncia na

    construo do debate da cincia geogrfica e demais cincias da sociedade. Compreender os

    limites da determinao da tcnica na produo da sociedade capitalista tambm nos aproxima

    do entendimento sobre a produo capitalista do espao, sendo este objeto central da Geografia

    e conceito de grande valor para outras cincias como a sociologia, economia e histria.

    Contudo, o estudo sobre a tcnica no teria nenhuma serventia sem a compreenso da

    realidade onde ela est inserida. O recorte histrico do perodo anterior a I Revoluo Industrial

    feito aqui foi determinante para o esclarecimento da nossa problemtica, o papel da tcnica na

    produo das mudanas estruturais da sociedade. Contudo, os resultados dessa pesquisa so

    apenas parte da compreenso sobre tais mudanas estruturais, a tcnica parte da totalidade

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    objetiva da produo social, e jamais pode explicar sozinha toda essa realidade presente no

    nosso recorte histrico. Porm, nosso trabalho parte da construo terica que tem como

    objetivo o debate dentro do materialismo histrico e dialtico sobre a produo social do espao.

    6. Referncias Bibliogrficas

    ENGELS, Friedrich. Cartas de Engels Contra a Vulgarizao do Materialismo Histrico. In:

    Cultura, Arte e Literatura: Textos Escolhidos / Karl Marx e Frederich Engels. So Paulo:

    Expresso Popular, 2010.

    ______. Trabalho e Proletariado no Capitalismo Contemporneo. So Paulo: Cortez,

    2011.

    HARVEY, David. Os limites do Capital. So Paulo: Boitempo, 2014.

    LESSA, Srgio; TONET, Ivo. Introduo Filosofia de Marx. So Paulo: Expresso Popular,

    2011.

    LUKCS, Gyorgy. Tecnologia e Relaes Sociais. In: Bukhrin: Terico Marxista. Belo

    Horizonte: Oficina de Livros, 1989.

    MARX, Karl. Para a Crtica da Economia Poltica; Salrio Preo e Lucro; O rendimento

    e suas fontes. So Paulo: Abril Cultural, 1982.

    ______. O Capital: Crtica Economia Poltica. Volume 1, Tomo I. So Paulo: Abril Cultural,

    1983.

    ______. O Capital: Crtica Economia Poltica. Volume 1, Tomo II. So Paulo: Abril Cultural,

    1984.

    ROMERO, Daniel. Marx e a Tcnica: Um estudo dos manuscritos de 1861-1863. So Paulo:

    Expresso Popular, 2005.