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G érard L ebrun A PACIENCIA DO CONCEITO E nsaio sobre o discurso hegeliano Tradução

Lebrun, Gerard. A Paciencia Do Conceito

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Ensaio sobre o discurso hegeliano

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Page 1: Lebrun, Gerard. A Paciencia Do Conceito

G é r a r d L e b r u n

A PACIENCIA DO CONCEITOE n s a io s o b r e o d is c u r s o h e g e l ia n o

Tradução

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© Editions Gallimard 1972

T ítu lo original em francês: La patience du concept

© 2000 da tradução brasileira: Fundação Editora da U N ESP (FEU)

Praça da Sé, 108 01001-900 - São Paulo - SP

Tel.: (O x x ll) 3 2 4 2 -7 171 Fax: (O x x ll) 3 2 42 -7172

w w w .editorau nesp.com .br feu @ editora.unesp.br

CIP - Brasil. Catalogação na fonte Sindicato N acional dos Editores de Livros, RJ

L49pLebrun, Gérard, 1930-1999

A paciência do conceito: ensaio sobre o discurso hegeliano/G érard Lebrun; tradução de Silvio Rosa Filho. - São Paulo: Editora da UNESP, 2006.

Tradução de: La patient du concept: essai sur le discours hégélien Inclui bibliografia î ’ISBN 85-7139-648-5

1. Hegel, G eorg W ilh elm Friedrich, 17 70 -18 3 1. I. T ítulo.

06-3949. C D D 193

C D U 1(43)

Editora afiliada:

A sociación de Editoriales U niversitarias de A m erica Latina y el C aribe

A s s o c ia ç ã o B r a s ile ir a de E d ito ra s U n iv e rs itá r ia s

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Para João Carlos Q uartim de M oraes.

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" . . . Vorstellungen und Reflexionen ... die uns zum Voraus in dem Weg kommen

können, jedoch, wie alle andere vorangehende Vorurteile, in der Wissenschaft selbst ihre

Erledigung finden müssen, und daher eigentlich zur Geduld hierauf zu verweissen wären.

W. Logik, IV p.73

* "... represen tações e reflexões ... que podem n os surgir antecipadam ente no cam inho, assim com o todos os outros preconceitos precedentes, têm no entanto de encontrar sua resolução na própria ciência, e por isso deveriam em segu ida ser rem etidas propriam en­te à paciência." O tradutor agradece aos am igos A nderson Gonçalves e Rodnei A ntônio do N ascim en to pelas su gestões.

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SUMÁRIO

PR Ó LO G O 13

I. A CRÍTICA DO VISÍVEL 231. Autocrítica do hegelianism o de juventude 242. Reabilitação do cristianism o; a Religião manifesta; o bloqueio

representativo 323. H egel (cartesiano) e os gregos segundo Heidegger 464. Crítica da figuração e advento do sentido; signos estéticos e

lingüísticos 58

II. A S A STÚ C IA S DA REPRESEN TAÇÃO 691. A s reconciliações apressadas de Frankfurt (Vida, Am or); que a

dialética nada tem a ver com m isticism o 692. A inocência do Entendim ento e em que consiste sua operação

inevitavelm ente falsificadora 723. A ideologia representativa da linguagem; Schelling, H egel e os

sím bolos; a letra e o espirito; um logocentrism o insólito 82

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10 GÉ R A R D L E B R UN

4. A crítica do judaísm o, religião simbólica; que a tarefa da dialética não é esfumar as diferenças (Estado e sociedade civil); que não basta proscrever as im agens para rom per com a Representação 95

5. Caracterização do hegelianism o na história das relações da letra e do sentido 109

III. “A VELH A PALAVRA A T E ÍSM O ...” 1191. Com o D eus é vivido representativam ente pela consciência piedosa;

que tal contra-senso está inscrito no desdobram ento da Idéia; a lenda do panteísm o hegeliano 119

2. Função especulativa da m orte de Cristo; o cristianism o como apagamento da m undaneidade 132

3. Prom eteu não é um herói hegeliano; Hegel desdenha m enos a idéia de natureza do que repõe em questão o sentido da palavra justiça 144

4. O que é o cristianism o para que a Aufklärung tenha sido possível?; A s aventuras da palavra θεολογία e a teologia especulativa 157

5. N em ateísm o nem recuperação da teologia, o hegelianism o zom ba de nossas alternativas 171

IV. A EXPLOSÃO DA FIN ITU DE 1771. Relação sofistica do Finito e do Infinito na m etafísica clássica 17 72. Se o Finito é, o Infinito é inacessível; fragilidade intrínseca do

argum ento cosm ológico; o que ocorre com a Diferença que o cristianism o se atribuía logo de início? 182

3. A aclimatação do Não-ser no Sofista de Platão, abrandam ento do eleatism o e não reposição de seus pressupostos em jogo; um estilo inédito de questionam ento 193

4. Fixação representativa das representações e com preensão falsificadora da linguagem; a Finitude é um idioma; idéia de um Logos liberado de toda sintaxe convencional 206

V. A DIALÉTICA N O S LIM ITES DA SIM PLES RAZÃO 2251. A Skepsis e o jogo com os logoi; que o ceticism o lança um novo olhar

sobre as significações 2252. Zenão de Eléia criticava a diferença indiferente das significações;

diferença “subjetiva” e diferença intrínseca; H egel e Bergson perante Zenão 234

3. A Skepsis antiga incom preendida pelos m odernos; Hegel e Husserl perante os céticos 240

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A P ACI Ê NCIA DO C O N C E I T O

4. O ceticism o não era senão um a meia-medida; aceitava as armas do adversário 243

5. Heráclito zom bado e incompreendido; a elaboração da sintaxe da

Finitude exigia tal desconhecim ento 251

VI. A NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO 2631. A diversidade por justaposição e a categoria kantiana da comunidade;

natureza e posição da alteridade em Espinosa; do adágio “o que se contradiz não é nada” ao adágio “nada se contradiz” 265

2. Q ue a oposição real kantiana não prefigura a alteridade radical; a dialética deverá retirar todos os bloqueios da ontologia 281

3. A alternância em Fichte e o surgim ento da negatividade como paradoxo; onde a alteridade m uda de sentido e onde Heráclito deixa de ser paradoxal; que a dialética não é um jogo em que se encontraria seguram ente sua aposta 293

4. A estrutura de oposição real e o projeto idealista; a oposição real distinta da interpretação que nela o Entendim ento censura; que o hegelianism o é outra língua e não outra “filosofia” 308

VII. “A M AIS ELEVADA DIALÉTICA” 3211. O Ser (reino da Passagem), a Essência (reino do Parecer): aqui e ali, a

totalidade perm anece com o não-posta 3222. A ristóteles e a separação do Singular e do Universal; o saber hegeliano

oposto ao conhecim ento por signos 3303. A atividade do C onceito com o tradução da energeia aristotélica; a

totalidade-conceitual hegeliana, segundo A lthusser e segundo

H egel 3394. A atividade do Conceito com o Entwicklung; não-pertinência das

interpretações genéticas desta última; nem desenrolar contínuo, nem progresso temporal; consciência e vida com o aproxim ações com plem entares do Conceito 352

5. O que é a verdadeira soberania do Conceito, liberada de toda imagística; “Você é hegeliano?” - questão fútil 362

VIII. LÓGICA E FIN ITU D E 3691. O velho cenário do conhecim ento: im agem e m odelo, idéia e

conteúdo 3702. Adequação da representação com o objeto e adequação de um

conteúdo consigo mesmo: “um a significação inteiram ente outra da

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linguagem ” ; sobre algumas críticas obstinadam ente representativas da verdade-adequação 375

3. A Lógica transcendental, redobro da ontologia na lógica formal; a assom bração da "objetividade" 386

4. M etam orfose da Lógica e absorção da M etafísica na Lógica; estranheza do novo discurso; que aqui só nos exercitam os em falar o hegelianês 391

BIBLIOGRAFIA PARCIAL 4 11

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PRÓLOGO

Na origem deste trabalho há um a questão: o que pode significar o dog­

matismo hegeliano? Todo filósofo, com o se sabe, é dogm ático por aquilo que deve pressupor. Mas, de um autor que entendera abolir todo pressu­posto, ouve-se outra coisa quando se diz: a certeza ultradogm ática de habi­tar a Verdade enfim consumada, fechar a H istória e poder percorrer, com olhar de proprietário, todas as formas culturais, passadas e presentes. Contra tal pretensão, os m ais m aledicentes põem , de pronto, o leitor em alerta; os m ais bem intencionados ressaltam a irredutibilidade do desem penho he­geliano que, a seus olhos, contrabalançaria a m egalom ania do em preendi­m ento. Mas, afinal, por pouco não se chegou a duvidar de que haja dogma­

tismo no sentido m ais trivial. É o caso de Hartmann:

Q ue o dinam ism o do pensam ento volte a trazer, em direção à coisa, a

clareza de nosso olhar. A n tes de tudo, tal pretensão é evidentem ente m etafísi­

ca. Em Hegel, aliás, nenhum traço encontram os de um a dem onstração de sua

legitim idade. Para ele, a questão estava de antem ão resolvida, na base de seu

otim ism o racionalista ... É inteiram ente necessário que, pela espontaneidade

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de seu desdobram ento e de seu dinam ism o, [a Razão] represente o desdobra­

m ento e o dinam ism o espontâneos do m undo. Tal conclusão é perem ptória,

caso se concedam os p ressu postos. H egel lhes atribuía a evidência de um

truism o. C om isso, ele se colocou acim a de toda discussão, m as igualm ente

dispensou, é verdade, toda justificação. Seria ridículo desculpar o im enso dog­

m atism o de sem elhante pressuposição.1

É verdade que Hartmann coloca-se então, com o desde o início ele o precisa, do ponto de vista dos “detratores de H egel” . Basta porém replicar, como em seguida ele o faz, que a intuição de Hegel é recuperável “ sob os escom bros do sistem a” ? A lém de não ser hegeliana essa distinção entre o conteúdo e o m étodo, a questão do dogmatismo perm anece inalterada: para encontrar interesse em nosso autor, é preciso aceitar, ou não, ainda que provisoriam ente, alguns gigantescos pressupostos sobre a natureza do “Es­p ír ito ” ou do “ R eal” ? M elh or ainda, a in teressan te dem on stração de Hartmann nesse artigo (as articulações do real seriam tanto m ais esposa­das pela dialética hegeliana quanto m enos exigente ela fosse quanto à na­tureza da contradição) deixa intacta a idéia do dogm atism o hegeliano. M os­tra-se, em suma, que o autor da Lógica barateou a questão, quando chegou à descrição das coisas e das relações reais. O bom senso de Hegel está por­tanto a salvo, porém sua pretensão panlogista não parece próxim a senão de um capricho. A ssim , m uitas análises - por m ais esclarecedoras que se­jam em pontos particulares - sugerem que houve, em Hegel, um a parte irredutível de teim osia e, por vezes, despropósito. O traço característico do filósofo perm anece com o um a segurança tão m aciça que bem poderia ser derrisória e, malgrado o respeito devido a tais com entadores, às vezes se é tentado a interrom pê-los para esbravejar: “Se o senhor tem razão, o rei está nu. Por que não dizê-lo?” . Conferidas a Hegel, certas im agens são m es­m o de deixar-nos bastante estupefatos. Para nós, ainda que devêssem os passar por descendentes de monsieur Homais, vem os com dificuldade o cré­dito que seria preciso conceder a quem vira o Espírito do m undo inspecio­nar lena a cavalo, assim com o acontecia aos pastores ao encontrar a M ãe de D eus. Reconheçam os que haja um núm ero dem asiado de apresentações do filósofo - e, vale repetir, das m enos negligenciáveis - , que nos põem com dem asiada freqüência em presença de um iluminado: bastam algumas

1 N. H artm ann, “ H egel et la d ialectique du réel” , in Etudes sur Hegel; Revue de Métaphysique et de M orale, 1931, p.23.

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A P AC I ENC I A DO C ON C E I T O

bravatas tom adas ao pé da letra,2 algumas fórmulas extraídas do contexto, para com por um retrato que adula mais o profetism o de alguns, ao passo que, pelo filósofo, não teriam sido adulados. Eis um prim eiro m otivo para suspeitar da credibilidade do “ dogm atism o hegeliano” . Há um m odo de reduzir H egel a um vôo de pássaro noturno (assim com o Bergson, a urna cavalgada de viventes), que só encanta espíritos m uito juvenis, sem realçar a reputação do filósofo. Talvez m ais valha a brutalidade de Russel e de al­guns lógicos para com Hegel do que apologias im prudentes que só lhe pres­tam desserviço.

Eis aqui um segundo m otivo para suspeita. N enhum autor m erecia m enos o renom e que lhe foi dado. N inguém zom bou tanto quanto ele dos amadores de absoluto em m oeda corrente. Pelo que eu saiba, é Schelling, e não o próprio Hegel, que é posto no tripé pítico. Quando ele se admira que Schlegel e outros possam expor m eteoricam ente sua filosofia em al­gum as horas, não o faz para louvá-los. Filosofar aprende-se, sem desagra­dar a Kant: trata-se de um trabalho que exige o pesar e um a erudição pa­cientem ente adquirida - H egel o recorda à saciedade. Pensar não é pôr a cabeça entre as mãos, nem deixar que o Logos se difunda em im agens. Vale a pena insistir nisso, pois é nesse ponto que com eça a lenda do “dogm atis­mo hegeliano” . H egel teria pronunciado seu veredicto sobre as filosofias ou sobre as culturas, em nom e de um a idéia abruptamente decretada quanto à essência da filosofia ou ao sentido da história; só teria analisado os tex­tos ao confrontá-los com um dogma; só os teria lido para repartir os m éri­tos e os defeitos em razão daquilo que os autores adivinhavam ou não do Sistem a hegeliano... Verem os que, quando Hegel evoca tal atitude, é para im putá-la a Reinhold e censurá-lo por isso. De m odo m ais geral, Hegel defende-se, em todas as frentes, contra a acusação de dogm atism o. Os dog­m áticos são os outros, dos gregos a Kant, que não foram capazes de pensar o discurso por eles falado, nem de dissolver os preconceitos que lhe b lo­queavam o funcionam ento.

Hegel não se pensa, portanto, como dogmático, e isso é m uito m ais do que um a sim ples questão de humor. E que ele tem consciência de efetuar um a revolução bastante profunda do conceito de filosofia, a ponto de essa acu­sação se tornar vazia de sentido. Um inovador im pacienta-se rapidam ente

2 Por exem plo, é útil reportar-se à carta a N ietham m er de 13 de outubro de 1806, na qual Hegel evoca, sem dúvida, “o Im perador, e s sa alm a do m undo” , porém , dese jando que o exército francês deixe Iena rapidam ente e “ este jam os livres d esse dilúvio".

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ao escutar a pergunta "a título de que ele fala tão alto?” , quando poderia exibir seus títulos apenas recorrendo à linguagem, a qual toda a sua obra consiste em m ostrar a não-pertinência. O que significa tranqüilizar os que sempre pensam em partir dos preconceitos que ele se esforça em desenraizar- ruinosa concessão pedagógica. Um inovador passa por dogm ático porque não gosta de dizer, resum idam ente, nem aquilo que traz de novo nem com que direitos. "Leiam -m e", responde ele aos escrupulosos, “ e verão que já não ponho as questões como eram postas por vocês, que já não as formulo à sua m aneira". Se o interlocutor ou o leitor se recusar a admiti-lo, e qui­ser, no entanto, tentar dar conta do que o embaraça, falará inevitavelm ente em “dogm atism o” . Perguntará, por exem plo, como Hegel justifica sua filo ­sofia da imanência. Com o essa filosofia da contradição não é contraditória, se não por decisão arbitrária? Tantas questões a supor que interlocutor ou leitor com eçaram por atribuir ao autor esta ou aquela tese, que teria ele o dever de defender - supõem, portanto, que saibam os o que seja um a tese

filosófica e a que ela diz respeito, ao passo que Hegel, ao tom ar as coisas de m odo mais elevado, nos convida, notadam ente, a porm os a nós m esm os tal questão. Em suma, não se pedem provas a um hom em que nos pergun­ta o que é provar.

Esse m al-entendido bastaria para m ostrar que, na relação entre Hegel e seu leitor, trata-se daquilo que, na falta de term o melhor, será chamado de natureza do discurso filosófico. Com isso, querem os sim plesm ente dizer que é im possível julgar um a asserção de Hegel com o se estivesse referida em um código cujo objeto seria desvelar ou representar a verdade-da-coisa; estam os aqui em presença de um a linguagem que, por si m esm a e por seu funcionam ento, torna a pôr em questão a concepção tradicional e difusa daquilo que é a informação chamada filosófica. D izer que se trata da própria natureza do discurso é dizer, antes de tudo, que agora a inform ação trazida até nós não deve m ais ser considerada descritiva de estado-de-coisas ou de conteúdos dados. Com Hegel, a filosofia deixa de visar a um a "verdade-de- ju ízo” , no sentido em que Guéroult o entende:

Sem dúvida, num erosas filosofias têm precisam ente por objeto elaborar

um conceito da verdade que recuse sua definição com o adaequatio rei et intellectus

... O objeto de cada um a delas, porém , é estabelecer assim um a teoria da ver­

dade, isto é, um a representação da natureza em si da verdade. Sem dúvida,

seria possível esforçar-se ulteriorm ente para integrar a verdade da teoria, com o

conform idade à coisa, à verdadeira natureza da verdade descoberta por essa

m esm a teoria (idéia adequada, verdade transcendental, conceito preenchido

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A PA C IÊ NC IA DO C O N C E I T O

etc.). M as, para que essa redução seja a um tem po m aterialm ente possível e

filosoficam ente legítim a, é necessário, precisam ente, que o filósofo ten ha des­

velado, de m odo prévio, a natureza da verdade e estabelecido, de m odo de­

m onstrativo, que tal representação im posta por ele a nós seja efetivam ente

um a cópia em conform idade com essa natureza.3

“ Representação” , “ cópia em conform idade” : Hegel entende justam en­te liberar, desses termos, o pathos da verdade. E acreditam os que é preciso levar em conta tal ambição específica, antes de apreciar as “teses” de Hegel, isto é, repetir um pouco m enos que a Lógica é o discurso de D eus antes da criação do m undo e buscar um pouco m ais como se orientar em um texto que invalida todos os sistem as de coordenadas aos quais se está tentado a referi-lo. Tomar-se-á, com isso, o cuidado de evitar dois tipos de atitude:

J) ou pressupor que o sistem a ainda fala a língua dos filósofos que ele critica ou “supera” e assim interpretar, logo de saída, tal “superação” como o efeito de um a decisão puram ente dogmática;

2) ou se apegar - decerto, de m odo m ais escrupuloso - a um a crítica interna do texto, porém sem haver se perguntado, antes, quais critérios reter justam ente para julgar a validade das análises e das asserções de Hegel, sem haver estipulado que se assum iria (ou não se assumiria) o direito de escolher norm as que H egel tivesse recusado, sem haver enunciado expres­sam ente até onde ir, a partir de onde se deter na infidelidade aos requisi­tos do autor. N ão ocorre aqui algo com o a crítica de Descartes por Leibniz, em que a recusa do critério de clareza e distinção, a recusa de tom ar a extensão com o atributo principal da m atéria bastam para invalidar grande quantidade de proposições cartesianas. Já não se trata de afastar axiom as filosóficos em razão de sua precariedade lógica ou de sua incom patibilida­de com um conteúdo científico. D esde que um novo discurso pretende se substituir ao discurso tradicional, onde situá-lo e em relação a quais ei­xos? Essa é a única questão prévia. Ou ele é rejeitado em bloco (primeira solução), ou são escolhidas certas norm as de arbitragem (a lógica clássica, por exem plo), mas expondo-se, ao m esm o tem po, a desconhecer a profun­didade da inovação hegeliana.

Diga-se de passagem , trata-se talvez de um indício de que não seja possível explicar Kant e os pós-kantianos da m aneira pela qual os filósofos clássicos são explicados. Destes, os mais revolucionários (Descartes) per­

3 M. G uéroult, “ D escartes” , C ongrès de Royaum ont. D iscu ssion s finales. Ed. M inuit.

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tencem antes de tudo a um a tradição de discurso que suas rupturas decla­radas não conseguem interrom per nem encetar. Potius emendan quam everti:

esse adágio não define som ente o “ecletism o” leibniziano, m as a estratégia de todos os clássicos, em bora reclam em “ sem entes de verdade” já esparsas na m ais ingênua Antiguidade - conquanto se contentem em corrigir pre­conceitos, operando em um dom ínio discursivo (determinado, por exem ­plo, pela necessidade de princípios no sentido aristotélico) que não im agi­nam subm eter a exame. C om Kant, ao contrário, a “ sim ples Razão” com eça a recuar em relação ao discurso que, até então, lhe era atribuído; a crítica dos preconceitos se apaga diante da crítica das ilusões. Filosofar, portanto, já não consiste em voltar a um a sim ples “natureza” , nem a tom ar como testem unha a bona mens: bela coisa é a inocência; um a faculdade estimada,o gesunde Verstand; destes, todavia, sabe-se definitivam ente que nem Kant nem Hegel fazem grande caso. O essencial será despistar a ilusão originá­ria (dogm atism o ontológico ou “ dogm atism o da Finitude” ) e desem boscá- la em todos os seus recônditos. Essa única razão já deveria nos im pedir de olhar, com o m esm o olho, filosofia clássica e filosofia pós-kantiana: não se julga um projeto clínico com o um projeto descritivo; a verdade de um diag­nóstico concerne a um outro código que não o da “verdade-de-juízo” .

Sobretudo não querem os dizer com isso que H egel seja inatacável e sua obra constitua exceção à regra. Assim , parece-nos que Vuillem in tem perfeitam ente o direito de expor e criticar os quatro princípios em nom e dos quais Hegel relega a lógica formal “às ilusões do ponto de vista finito, próprio ao entendim ento” .4 Não faltam aspectos sob os quais seria possí­vel confrontar o hegelianism o com as filosofias ou disciplinas que ele en­tendesse “ superar” . A lém disso, é preciso saber, e m esm o estipular, que então já não se leva em conta a vontade do autor. A lém disso, é preciso tomar consciência de que ele não teria aceitado o princípio dessa contesta­ção. O jogo, sob tais condições, é perfeitam ente lícito. Parece-nos inadm is­sível, ao contrário, subentender que H egel operasse no interior do dom í­nio discursivo que seria aquele, m uito vagam ente delim itado, da philosophia

perennis - e criticá-lo sobre essa base imprecisa. Inadm issível conceder in­teresse à Fenomenología, lam entando ao m esm o tem po que ela acabe com o Saber absoluto - levantar, em Hegel, as teses julgadas excessivas ou par­ciais, sem determ inar em relação a que haveria excesso ou parcialidade. O autor tem, ao m enos, o m érito de nos interditar tais apreciações im preci­

4 M. Vuillemin, Première philosophie de Russell, p .222-6.

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sas. Com isso som os reconduzidos a nosso problem a inicial: quem subver­te as significações tradicionais, a com eçar por aquela de “dogm atism o” , m erece que leitura? Q ue regulação? Que acomodação? Com o julgar um discurso que devora, um após o outro, todos os pressupostos inform ulados que para ali o leitor importava? É possível, sem dúvida, ignorar tal ques­tão, soberbam ente; ela pode fazer que dêem de ombros. Basta, por exem ­plo, relegar o Sistem a à “ abstração idealista” , para poupar-se de toda ques­tão sobre a autonom ia do discurso filosófico que Kant tornou possível - discurso liberado de toda amarra, livre de toda cum plicidade com os obje­tos tradicionais da M etafísica especial. Falarão de descaram ento ideológico- no m elhor dos casos, de extrem a futilidade. Terão razão, aliás, se acredi­tarem saber no que vem a dar o discurso hegeliano: apogeu e fecham ento da M etafísica, canto de cisne da teologia, fantasm a ideológico... A respeito disso, quanto a nós, não sabem os tanto assim. Parece-nos som ente que o historiador da filosofia atual deve se orientar, tão bem quanto mal - quer usando o fio condutor do dogm atism o, quer procedendo às cegas - , por m eio de um a linguagem que, desde Kant, não anuncia o setor sem ântico que lhe cabe e não diz expressam ente em que ele é informador, sem que, para tanto, possa analisá-lo com o um sim ples conjunto de seqüências lin­güísticas (malgrado as vantagens m etodológicas que com portaria tal redu­ção). N essas condições, ao se falar de “ideologia” ou de “encerram ento da M etafísica", poder-se-ia recorrer só às respostas já prontas, todas as que interditam a exata form ulação desta questão: suposto que se leve a sério a pretensão de autonom ia do discurso filosófico pós-kantiano, com o com ­preender tal discurso em seu próprio solo? Ou seja, sem decidir inscrevê- lo a priori nos redem oinhos da práxis hum ana ou na linhagem de algum a h istória do Ser, deixan do tais peripécias de lin gu agem com o que em suspenso, entre o céu e a terra. Mas essa libertação do olhar, que bem pode não levar a nada e da qual os textos de W ittgenstein oferecem um a idéia bastante justa, é algo insuportável, claro, para espíritos religiosos.

Com o, portanto, com preender o discurso hegeliano sem outra unidade de m edida que não ele m esm o? Não se pretende dar resposta a uma questão tão imprecisa, mas tentar formulá-la de m odo m enos inexato. Pretende-se som ente pôr a questão da regulação que o leitor deve adotar em relação ao Sistem a hegeliano, se ele o tomar tão-só ao pé da letra. Foram portanto afastados todos os juízos tradicionais sobre o andamento global do Sistem a (monismo, otim ism o, panlogism o, pantragism o etc.). Deixando de lado tais dem onstrações, preferiu-se partir destas linhas de Alexandre Koyré, em seu ensaio sobre A terminologia hegeliana:

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20 G É R A R D L E B R U N

Pudera conhecer os lam entos de seus historiadores e com entadores, por

m ais fundados que fossem , H egel teria ao m esm o tem po se divertido e se

indignado com eles. Teria se divertido pois ... a incom preensão era, por assim

dizer, prevista pelo própria sistem a. A filosofia de Hegel, ao pretender realizar

um modo novo de pensamento, ao m arcar urna etapa nova e superior da evolução

do espírito, um passo decisivo para frente, fica claro que não poderia ser com ­

p reendida por aqueles que, seguindo seu antigo m odo de pensam ento, ha­

viam ficado para trás e não eram contem porâneos espirituais de Hegel. É cla­

ro que aqueles que não vêem o caráter positivo da negação e só podem pensar

por noções rígidas e não dialéticas não podem com preender H egel. E preciso

que adquiram , inicialm ente, a faculdade de pensar de outra m aneira que não

aquela com a qual pensaram até agora.5

Iniciação esotérica, portanto? Não, isso H egel teria proibido a si m es­mo: para se liberar das ilusões da Finitude, não há nenhum a necessidade de levantar um véu sagrado. Basta seguir o m ovim ento do texto, deixá-lo devastar nossas certezas e, assim, tom ar consciência de que já ingressa­mos, sem alarde e sem que se saiba, nesse “m odo novo de pensam ento” de que fala Koyré. Vale repetir: tal exercício não tem o m enor interesse, se não for admitido, ao m enos por hipótese, que a linguagem filosófica, quando em ancipada de toda função descritiva e de toda referência objetiva, preser­ve um “ sentido” próprio que ainda resta determ inar da m elhor m aneira por nossos m eios de investigação, porém, sem jam ais acreditar que o apelo a elem entos extratextuais pudesse ali lançar algum a luz. N ossa m eta seria atingida, caso estivéssem os convencidos de que é im possível julgar a vali­dade do hegelianism o, a não ser ao se colocar, porém consciente e expressamen­te, fora do sistema. Para extrair a originalidade do discurso que tem o nom e “Sistem a” e determ inar seus fatores, seria necessário um estudo bem dife­rente. Esse estudo é puram ente negativo. A única questão é a do abismo que separa o leitor do texto em que acreditasse ingressar de um só passo, ou, ao m enos, sem ter de transpor obstáculos outros que não os term ino­lógicos. Se o Conceito não tem um O utro fora dele, tal reabsorção de toda alteridade cria um aparente vazio em torno de si: é sobretudo a esse aspec­to que se dedicou atenção. Percorrer-se-á um planeta insólito sem reco­nhecer, nele, nada que o torne comparável ao nosso.

5 A. Koyré, Études d ’H istoire de la pensée philosophique. A. Colin, p.176-7.

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A PA C IE NC IA DO C O N C E I T O 2 1

Esse m odo de ensaiar um a abordagem - no pleno sentido da palavra “ensaio” - é inseparável de certas licenças e om issões, das quais se está consciente.

1) Não havia por que apegar-se à evolução de Hegel. Quando foram referidos os textos de juventude, tratou-se apenas de determ inar algum a posição defensiva adotada pelo autor. Aqui, a questão é som ente o Hegel de Berlim.

2) Textos foram com entados em seqüência, som ente quando se tratava de esclarecer um conceito (a “contradição” , por exem plo). Aliás, era fre­qüentem ente preferível, para distinguir um a articulação de discurso, situá- la em diferentes alturas da obra de H egel (Lógica, Filosofia da religião, com en­tário de um autor na Historia da filo so fa ...). O perigo de tal procedim ento é evidente: pode parecer que se com põe um m osaico ou, pior, dá-se o direito de provar tudo, reunindo textos esparsos e escolhidos de m odo arbitrário. Mas seguram ente esse m étodo só invalidaria um estudo sobre a “filosofia de H egel” . Ora, esta só é vista a partir do capítulo IV, sob o título de am os­tra de discurso. Urna vez mais, não se tratava de reconstituir as teses de Hegel, mas, ao contrário, m ostrar a im propriedade desse conceito e a im ­possibilidade de princípio existente em querer resum ir o hegelianism o, para lhe conferir um lugar na constelação dos sistem as. Pode ser útil, então, deixar o autor falar, às vezes em pontos dispersos, para m elhor evidenciar a especificidade de seu discurso. Bem enxergam os os inconvenientes desse m étodo, mas com o proceder de outra m aneira se o que se pretende é extrair aquilo que um cam po da palavra tem de original e de incom parável, e não fazer o inventário das estruturas de uma filosofia, ou, m enos ainda, retraçar a evolução de um pensam ento? Aí, sem dúvida, há um problem a de m étodo que foi mais nitidam ente marcado que resolvido.

3) Enfim, com o a própria possibilidade e as condições de legitim idade de um a crítica de H egel eram contadas entre as questões de diretriz, cor- reu-se outro risco: parecer versar em cega aceitação, para evitar um a críti­ca irrefletida. C om freqüência, parecerá que certas afirm ações são tom a­das por m oeda corrente, que se advoga sistem aticam ente um não-culpado e chega-se a esposar certos preconceitos do autor. E que sem pre pensáva­m os na reação “de diversão e de indignação” que Hegel teria experim enta­do com a leitura de seus críticos. Era m esm o preciso correr o risco de ha­bitar novam ente esse “dogm atism o” , para tentar com preender por que Hegel nunca o vivenciou com o tal. Logo, não se trata sequer de “sim pati­zar” com Hegel, mas de tentar rem ontar à origem da soberania que ele se outorga.

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2 2 G É R A R D L E B R U N

Apenas por tais razões, este trabalho já seria m esm o um ensaio. Ainda um a advertência, m ais indispensável que todas as outras: sobretudo, nao se pense que tenham os julgado por alto, ou, com desdém , afastado h isto­riadores, tradutores e comentadores que respeitamos. Fomos com freqüência obrigados a contestar certas interpretações: esperam os tê-lo feito sempre com a m aior deferência. Seria pueril e, sobretudo, ingrato conduzir polê­micas contra autores que contribuíram, todos eles, para esclarecer certos cam inhos do m undo hegeliano, destacando apenas as regiões que deixa­ram na sombra. Se insistim os nesse ponto, não é, de m odo algum, por pru­dência. Hoje, há gente dem ais preferindo o tom cortante de Descartes ao estilo acom odaticio de Leibniz. E nada nos parece mais frívolo que ver al­guns atacarem os “historiadores positivistas” , em nom e da história do Ser, ou o inverso, os “m etafísicos” em nom e do saber marxista, ou o inverso... Contra o espírito de intolerância, assum im os nitidam ente o ridículo do ve­lho “ liberalism o”, testem unho de modéstia, se não for de clarividência. Aviso aos detectores de ideologia: aqui, encontrarão inicialm ente a de Bergeret.

Gostaria de agradecer a Victor Goldschm idt pela benevolência que sem ­pre m e m ostrou, com o lem brança de Rennes e tam bém de São Paulo; igual­m ente, a M aurice de Gandillac, que orientou esta tese, há mais tem po do que talvez ele se lembre, visto que m e havia sugerido a idéia por ocasião de um diplom a na Sorbonne, já longínquo. Saibam, ambos, que não é por de­ferência ao uso que lhes exprim o m eu vivo reconhecim ento. Enfim, que os em préstim os feitos à tradução da Fenomenología, por Jean Hyppolite, e aos trabalhos de Jean Hyppolite e Alexandre Kojève sejam considerados uma m odesta mas respeitosa hom enagem à m em ória deles.

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I

A CRÍTICA DO VISÍVEL

Com freqüência, na intenção de acusar a inspiração teológica do siste­m a hegeliano ou as preocupações religiosas que nele perm anecem vivas, m inim izou-se a violência anticristã dos escritos de juventude. Alexandre Koyré recorda-o de m odo m uito oportuno. Em certos leitores - para não falar dos com entadores - pode tam bém ter havido um efeito de moda, com ­parável ao que acabou tornando N ietzsche tolerável aos intelectuais de obe­diência cristã: em nossos dias é tão aberrante ser anticlerical (ou tão tolo ser anticom unista) que, quando N ietzsche e o jovem Hegel falam dos pa­dres (e N ietzsche dos socialistas), é em segundo ou terceiro grau que um espírito distinto deve, certam ente, ouvir seus gritos de ódio. Denunciar seriam ente o fanatism o é mau gosto que não se poderia im putar a respei­tados pensadores.

N o que concerne a Hegel, essa edulcoração nos parece particularm en­te deplorável, o que quer que se pense dela ou do que contribuiu para m otivá-la e dar-lhe crédito. Pois dissim ula um fato: a total m odificação de interpretação e de apreciação do cristianism o que se pode observar entre os escritos de Frankfurt e os textos da maturidade. Escamoteada, a relação

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2 4 G É R A R D L E B R U N

entre Hegel e o cristianism o torna-se mais ou m enos coerente, sob a con­dição de que não se vá olhar perto demais os porm enores ou os próprios textos: um jovem atorm entado que interrogou apaixonadam ente a vida e o destino de Jesus, em seguida um professor conform ista que, m ais serena­m ente (mas dogm aticam ente, é de lam entar), fez que teologia e filosofia se confundissem . N ão é evidente que esse pensam ento foi todo ele assom bra­do pelo cristianism o? Ora, basta estar atento à veem ência anticristã do jo ­vem Hegel para se colocar ao m enos uma questão: trata-se afinal do mes- m o cristianism o (um conceito com o m esm o conteúdo e sobretudo com a m esm a função) e.xer.rarío em Frankfurt e justificado a partir de Iena? LEsprit

du christianisme [O espírito do cristianism o] anuncia as interpretações do A ( t q j í Evangelho que oporão, à dureza judaica de são Paulo, a espontaneidade de

Jesus: C risto dizia a unidade im ediata do infinito e do finito, porém essa >L boa nova se perdeu; e tolam ente se prefere adorar o hom em a m editar so-

bre sua m ensagem ... Ora, já não se encontra traço dessa interpretação nasÇfdL&r· obras de m aturidade. Se H egel continua a denunciar o apego supersticioso

à. positividade (milagres, letra da Bíblia), já não pensa em fazer dessa “posi- tividade” o núcleo do cristianism o. A partir de Phénoménologie [Fenom eno-

j f logia], o cristianism o se torna, ao contrário, a últim a aproxim ação do Sa­ber absoluto, a prim eira figura na qual a consciência chega a suprim ir "a distinção entre o seu Si e aquilo que ela contem pla". N ão só o cristianism o é reabihtadçu-£omo-4ambéffl~efoee«-^Q-filÓ5afaa-úal2a_QpQrtunidade de s e __ eyadir da antiga “pnsirividarlp" O que significa esse retorno aos tem as de juventude? E dessa questão que partiremos.

1

“Para eles, o Ressuscitado não era som ente o Amor, mas sobretudo um

indivíduo’’ , 1 escrevia H egel em Frankfurt. E nesse período opunha, à huma-

ÇmsL

1 Jugendschr. [E scritos de juventude], Nohl, p. 145. Cf. A esthetik [E stética], XIII, p. 104: “Ao antropom orfism o dos deuses gregos falta, portanto, a existência hum ana real, corpórea tanto quanto espiritual. E som ente o cristian ism o que traz e s sa realidade em carne e em espírito, com o existência, vida e atos do próprio D eus. A partir daí, honra-se e s sa corpo- reidade, a carne, m esm o que se reconheça com o negativo o sim ples natural e o sensível, e o antropom orfism o é santificado; assim com o o hom em era originariam ente a im agem de D eus, D eus é à im agem do hom em ; quem vê o Filho vê o Pai, quem am a o Filho am ao Pai; D eus pode ser conhecido em um a existência real" (trad., II, p .230 ). E sse reconhe­cim ento da superioridade do cristian ism o sobre o helenism o m ostra quanto a ruptura é total com o esp írito dos escritos de juventude.

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A PA C IE NC IA DO C O N C E I T O 2 5

p z ¿ o

nização de Jesus, a im pessoalidade dos deuses gregos (Nõhl, 401), para aí enxergar um a das formas da superioridade da religião grega sobre a reli­gião cristã: os gregos souberam elevar-se até o divino sem o rebaixar, ao passo que os apóstolos hum anizaram Jesus grosseiram ente. Zeus, quando chegava a im itar as paixões humanas, nunca deixava apagar-se a divisão entre o hum ano e o divino: é com o deus que ele se unia aos hom ens, nota o jovem H egel. O s deuses apareciam nos tem plos e nas festas, falavam no ruído das florestas; entre eles e os mortais, pactos eram concluídos. Mas com o jam ais esquecer sua estranheza? Com olhares ocultos em um pétreo sorriso, eles dom inavam o hom em grego de um a altitude m aior que a do Olim po, e sua presença “hum ana” , ironicam ente, fazia lem brar sua desu­manidade. D os m ortais, tinham apenas o sem blante. Visto que na Grécia o divino não era encontrado na m edida de um indivíduo, já era tido então com o sacrilégio que um hom em pretendesse ser o favorito dos deuses.

O que é verdadeiram ente divino pertence a cada um . D ecerto, talento e

gênio são algo de singular, próprio ao indivíduo; m as só têm verdade em suas

obras, por m ais que elas sejam universais. N os gregos, tais revelações deviam

ter m odalidades determ inadas. H avia oráculos oficiais que não eram subjeti­

vos: a Pítia, o arval etc. Porém, se essa revelação aparecesse em cada Isto, em

cada particular, em qualquer cidadão, isso se tornaria inacreditável e não p o ­

dia ser levado a sério: o daimon de Sócrates era um a m odalidade que a religião

grega não podia aceitar com o válida.2

Certam ente, celebrava-se o ginasta, o vencedor dos Jogos, com o um imortal; m as isso porque estava despojado de sua singularidade corporal: consum ido pela glória, o efebo m orria por si m esm o.3

Ora, a Filosofia da religião aprecia de m odo m uito diferente essa recusa de com prom eter o hum ano e o divino. “Com o os deuses eram m ais hum a­nos, os hom ens eram mais divinos”, a essa fórmula de Schiller, replica Hegel: ^“os deuses gregos não eram m ais hum anos que o D eus cristão; C risto é muito mais hom em ” .4 O s gregos avançaram o bastante no antropomorfismo; em contrapartida, a irredutível individualidade de Cristo não deve ser tida com o a marca da ingenuidade dos prim eiros cristãos. A o contrário, era es­sencial que a subjetividade na qual D eus se m anifesta fosse única, exclusi-

2 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p. 107.3 Fenomenología do espírito; trad. fr. II, p .241; trad, br., II, p .170.4 Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .416-7, trad, fr., p .251.

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va de todas as outras.5 Os deuses pagãos, portanto, perderam o seu prestí­gio de outrora. Para oferecer as razões de seu declínio, Hegel não se con­tenta em invocar o aviltam ento do Império Romano. Tal decadência, assim com o outra qualquer, não pode ser im putada a causas fortuitas: ela dá tes­tem unho da inevitável corrupção de um princípio. O vivo gosto pela Grécia cedeu então lugar a um olhar frio. D essa crítica da maturidade, vam os re­ter dois elem entos:

1 ) A lém do visível para onde a “Fantasia” do artista os havia transferi­do, os deuses gregos preservaram seu enigma, pois eles só se ofereciam no m odo da Anschauung, esteticamente.

A obra de arte é p osta para a intuição com o qualquer objeto exterior que

não seja experim entado e não saiba de si m esm o. A form a, a subjetividade

que o artista conferiu à sua obra é puram ente exterior; não é a form a absoluta

do sujeito que sabe de si m esm o, da consciência de si. Essa consciência de si

incide na consciência subjetiva, no sujeito que in tu i.6

Em Frankfurt, Hegel pensava que esse deus-im agem apagava o abismo judaico entre finito e infinito: “som ente uma unificação no Amor, objetivada

pela imaginação, pode constituir o objeto de um a adoração religiosa” (Nohl, 297). Isso equivale a partilhar o que em seguida será denunciado como um dos maiores preconceitos do helenismo: aos gregos bastava que os deuses lhes fossem expostos para que, com eles, tivessem o sentim ento de uma comunidade de essência. Ora, Zeus e A poio estavam nas cidades, porém, como estrangeiros de passagem: o Infinito, ao ser apresentado em sua proxi­midade com o visível, não deixava de permanecer como longínquo. Por que os gregos se deixaram enganar, eles que não foram, como os judeus, ciumen- tamente apegados aos bens carnais? E que sucumbiram a outra tentação, àquilo que Hegel denom ina a Finitude. Já que o “m undano” perm anecia como o seu único horizonte, conferiram a seus deuses - hom enagem que já Platão considerara como sacrilégio - forma visível. Forma visível, mais que forma humana. Ancorados no cpaíveoGat, que constrangimento teriam eles experi-

]m entado ao expor o sagrado? “Nada viam de negativo na naturalidade como t a l ... [Para eles] a existência natural, exterior, mundana, era a única afirma­tiva.” 7 Humanizar os deuses teria sido sacrilégio, porém, nada mais natural

5 Cf. Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p. 124.6 Ibidem , XV, p. 151.7 A esthetik [E stética)] XIII, p. 128-9; trad, fr., II, p.250.

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que os contemplar - humanos fictícios, sem dúvida, mas acolhidos na fraterni­dade do visível. Esse primado conferido à representação imaginativa dá con­ta, simultaneamente, da perfeição da arte do século V e da limitação da “Re­ligião estética” . Esta só “espiritualiza” a natureza pela metade.

2) Os gregos, com efeito, não se elevaram até o “Espírito” . Hegel nota que os olím picos haviam destronado os arcaicos deuses naturais, mas, tam ­bém, os substituíram : sua vitória era, portanto, am bígua.8 Se H élios não é mais a sim ples alegoria do Sol, nem Poseidon, a do mar, eles sem pre conti­nuam a reter, aquém de suas significações éticas, algo dessas significações primeiras. “A ssim com o os elem entos naturais, os elem entos tom ados de em préstim o ao m undo animal sofreram, nos novos deuses, um a degrada­ção, e não todavia um a elim inação com pleta.” 9 Se as divindades da idade clássica já não são sim ples sím bolos dos astros e estações, a exatidão dos ritos e o próprio ordenam ento do culto atestam que o im aginário religioso é m enos livre, m ais “ aderente” do que anacrónicam ente seríam os levados a crer: é a m ateriais “positivos” que os deuses devem seu rosto e sua h istó­ria - e esse núcleo de positividade é neles sintom ático da lim itação de toda religião “estética” . A m eio cam inho entre sua origem selvagem e sua rein- terpretação cultural, o deus perdeu, é verdade, seu sentido terrestre prim iti­vo que as sedim entações imaginárias tornaram irreconhecível. Por certo, é difícil reencontrar o sagrado dos prim eiros tem pos, quando ele está refu­giado sob tantas camadas culturais: aquilo que a moça oferece ao hóspede são m enos os frutos amadurecidos e mais os em blem as de um a intenção hum ana,10 naquelas danças rituais, os dançarinos já não estão enfeitiçados senão por seu gesto (“não se pensa, quando se está dançando” ) . N o entan­to, tais gestos e signos sempre preservam algo de enigm ático. Se a im agi­nação “poiética” rouba a independência do natural, entretanto ela não pas­sa de um a m eia-m edida - o ponto m édio entre a intuição im ediata da natureza e o puro pensam ento.11

8 Ph. Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .104-7; Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .313.

9 A esthetik [E stética], XIII, p .64; trad. fr., II, p. 195.10 Fenomenología do espírito, II, p .572-3; trad. fr., II, p .261-2; trad. br., II, p .185.11 “A fantasia é som ente o instrum ento pelo qual a consciência de si elabora o interior­

m ente abstrato ou o exterior, que é som ente um im ediato, e o form ula com o concreto. N e sse processo , o natural perde su a independência e é rebaixado até ser o signo do E sp írito que o habita, de m aneira que já não deixa senão aparecer este ú ltim o nele. A qui, a liberdade do E sp írito ain d a não é a liberdade in fin ita do p en sam en to , as

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2 8 G É R A R D L E B R U N

O escrito sobre O direito natural (1803) descreve outra forma desse com ­prom isso; nessa época, porém, Hegel ainda parece contentar-se com isso. A Cidade ética do m odelo grego é universal, ao reintegrar os conteúdos que a Reflexão oferece com o "separados e opostos” . Fora de si, porém, a universalidade ética encontra um conteúdo que nunca consegue suprim ir como tal. Esse núcleo de “realidade” é o "sistem a de carências físicas, assim com o trabalho e acum ulação reclam ados por tais carências ... o sistem a daquilo que se denom ina a econom ia política” .12 Para que seja consum ada a totalização ética, é preciso, portanto, que tal “ sistem a” não som ente se subordine ao Universal, mas que tam bém não seja m ais que a parte infe­rior do organism o ético.

C o m o tal sistem a da realidade está inteiram ente na negatividade e na

infinidade, segue-se que, em sua relação com a totalidade positiva, deve ser

por ela tratado de m odo inteiram ente negativo e perm anecer sob sua dom ina­

ção: o que é negativo por natureza deve perm anecer negativo e não pode se

tornar algo firm e.13

É possível perguntar-se, todavia, se essa tutela da esfera do trabalho e da propriedade não é a confissão de um semifracasso. Por m ais que esteja estreitam ente subordinado ao político, o econôm ico não deixa de preservar sua originalidade, se não sua independência. Por isso a “indiferença" das determ inidades (m om ento da total unificação da Cidade) não é senão um dos lados da totalidade ética. O utro lado lhe faz frente: a oposição persis­tente (bestehende) ao O utro a que ela se subm ete, sem fazer que desapareça. A Cidade ética, portanto, não é som ente um organism o encerrado em si mesm o: é seguida por seu destino econôm ico, indelével com o um a sombra. Essas páginas do escrito de 1803 lem bram certas palavras de Saint-Just, e a descrição de H egel depara finalm ente com o m esm o obstáculo que a políti­ca jacobina. “Enquanto reinarem o interesse e a avareza” , dizia Saint-Just, é im possível que as “forças políticas” da sociedade sejam naturais (relatório

essencialidades esp irituais ainda não estão pen sadas. Se o hom em fo sse pensante, de m aneira que o puro pen sam ento form asse a base, para ele só haveria um único deus. O hom em não encontra m ais as su a s essencialidades com o form as naturais dadas, im edia­tas, m as ele as produz para a representação, e tal produção é com o um m eio entre o puro pen sam ento e a intuição da N atureza: é a fantasia” (Ph. Religion [F ilosofia da reli­gião], XVI, p. 118-9).

12 Naturrecht [D ireito natural], I, p.487.13 Ibidem , I, p .488.

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HU-WkAA- -t G òaskA P ACI Ê NCI A DO C O N C E I T O 2 9

de 8 ven toso). Porém que chance teriam o interesse e a avareza de desapa­recer, enquanto o cidadão perm anecer com o proprietário? N ão é a própria organização do “ sistem a de carências” e a vida terrestre da Cidade que a desviam de sua vocação ética? Daí, ainda nesse plano, a necessidade de um com prom isso do qual a Oréstia, segundo Hegel, era a alegoria. O processo intentado contra Orestes opunha Apoio, “deus da luz indiferente”, às Erínias, em blem as das inorgânicas “forças subterrâneas” , “potências do direito que está na diferença” .14 A s vozes do A reópago estavam igualm ente divididas entre os adversários: ao m esm o tempo, decidiu-se absolver O restes (vitória da justiça política sobre os laços de sangue) e apaziguar as Erínias, que doravante teriam seu altar na Acrópole (sím bolo da conciliação da Cidade com o inorgânico). N o entanto, m esm o se for concedido a H egel que a relação do ético com o econôm ico seja o equivalente dessa tragédia no m undo m oral (Tragödie im Sittlichem ), talvez o paralelo não seja rigoroso o bastante para que o final feliz da tragédia antiga pudesse ser transposto. O próprio Hegel observa que, se o com prom isso antigo exprime a Idéia, ele o faz “ de m odo distorcido” (verzogen): “A essência corporal da totalidade orgânica não é completamente recolhida em sua divindade” .15 Indiferença da Cidade orgânica, diferença do orgânico e do inorgânico, ambas as figuras, m esm o quando coadunadas, não são integralm ente intercambiáveis - e todo o es­crito de 1803 oscila entre um hino à unidade orgânica necessária e a consta­tação de que é im possível sancioná-la. D esta vez, experim enta-se o senti­m ento de que o contingente é tenaz e o “negativo” não aceita (ainda) rodopiar lentam ente sobre si m esm o. Hegel recorda então a indignidade desse “ne­gativo” , chegando m esm o a colocar o com ércio e o dinheiro sob a m esm a suspeita que é m anifesta em Platão; isso m esm o, porém, dem onstra que não foi exorcizado. A verdadeira dialética não será ascética em palavras, nem no tom da edificação: fará com que a verdade seja decantada do sensí­vel, porém, não irá oprim i-la com o algo de “ subsistente” .

Ora, não é isso que ocorre com a Cidade ética descrita em 1803. A existência sensível ainda é a estada do homem, tanto é assim que, dela, só poderá se liberar por m eio da morte, essa negação abstrata da Finitude.16

14 Ibidem , I, p .501.15 Ibidem, I, p .505.16 A verdade do E stado é a m orte do cidadão, e a sociedade civil tem por m issão garantir

que o cidadão poderá, sem que a com unidade desapareça, desem penhar o papel que a P/i. Religion [F ilosofia da religião] assin alará para Cristo: fazer que brilhe su a divindade por sua m orte hum ana. A ssim , é preciso levar em conta aparte do econôm ico e adm itir a existência fixa e inextirpável de um pólo negativo (no sentido pejorativo). U m a vez que

6 ’•e.

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3 0 GÉ R A R D L E B R UN

Se o escravo oferece algo ao guerreiro, seu Senhor, é apenas a possibilidade desse destino, e de m odo algum o gozo: desobrigado do trabalho, o Senhor viverá sua universalidade até o m om ento em que a consumar, sacrificando ao Estado a sua singularidade. Seu elem ento é "o reino da m orte onipoten­te” . Com o alma da Cidade, nunca o Universal aparece m ais bem expresso que no holocausto das Termópiles. Som ente então o singular confessa o que ele é na Idéia: “ die Einzelnheit ais solche Nichts” .

É verdade que a própria liberdade ou a infinidade é, m as é tam bém o

A b so lu to - e seu ser singular é singularidade absoluta recolhida no C on ceito -

infinidade negativa absoluta, liberdade pura. Esse absoluto negativo, a liber-

se fez e s sa concessão à Terra, a totalidade ética aparece em su a pureza. A h istória é, por­tanto, desdobrada e duas com preensões dela são possíveis, conform e nos coloquem os na perspectiva da aparência exterior (vida cotidiana) ou da verdade substancial (E stado). De um lado, os povos serão representados em su a calm a coexistência (Nebeneinanderstellen), a vida da cidade parecerá repousar no funcionam ento da “ sociedade civil” , as guerras serão sism os episódicos, os tem pos de salvação pública, exceções; o Espírito é então descrito do lado de su a realidade inorgânica, na charneira da Sittlichkeit e da natureza. D e outro lado, é o enfrentam ento dos povos que é o essencial: isso os protegerá da preguiça em que a paz eterna os m ergulharia; o “ idealism o do E stado” atingirá sua verdade nos “tem pos de penúria” (Ph. Rechts [Filosofia do direito], § 278) e o sacrifício do cidadão revelará sua vocação profunda. Acerca desse ponto, a linguagem não m uda desde o escrito de 1803 até a Filosofia do direito (§§ 323 e 324), e a crítica do individualism o é m otivada da m esm a m aneira: o Universal, no coração da cidade, é a violência e não o trabalho, o heroísm o e não o comércio. E a rejeição de todo pensam ento político “form alista” está ligada à certe­za de que a figura do Contrato social é a extrapolação abusiva para a esfera política de relações que testem unham a explosão da Gesellschaft autêntica, o reflexo de um a vida ética doente, em que a “ sociedade civil" adquire derrisoriam ente a suprem acia. Parece portanto que o advento da dialética não m odificou o pensam ento político de Hegel, com o ela m o­dificou seu pensam ento religioso e su a interpretação do cristianism o: tanto em Frankfurt com o em Berlim, Hegel ataca a universalidade form al em nom e da m esm a intuição ética. E o escrito sobre o Direito natural m arca o m om ento em que e s sa intuição se integrou na dialética em gestação. De um lado, o E stado orgânico é confirm ado dialeticam ente em seu direito, apresentado com o concentração de si sobre si na guerra ou no em preendim ento absoluto que ele exerce sobre o social; de outro, o sistem a das carências da sociedade civil por ele engendrado é relegado ao m au negativo. A econom ia política, assegura a Filosofia

do direito, é o dom ínio do Entendim ento finito: confissão de que a dialética, se encontra o econôm ico e lhe concede um lugar no entorno da Cidade, nunca a arrasta em seu m ovi­mento. Em sum a, que Hegel conceba a h istória com o m odelo da Cidade grega ou com o o advento do Geist, o Homo oeconomicus nunca é m ais que um útil figurante. M arx condenará a desum anidade do burguês; em Hegel, ele está votado à subúm anidade do escravo anti­go. Seria falso incrim inar aqui o “idealism o": Hegel não despreza a “sociedade civil” se ­não com o organicista, em seguida, com o dialético, e ocorre que, n essas duas fases, o sistem a das carências sem pre sim boliza a Finitude egoísta e teim osa que m antém o h o­m em afastado, quer da Totalidade, quer do Universal.

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dade pura, é, em sua aparência, a M orte; é por ser capaz de m orrer que o sujeito

m ostra-se livre e eleva-se acim a de toda coação.17

É tam bém o sinal de que o sensível só pode ser consum ado como inte­ligível ao preço de urna ruptura violenta. Será esta, porém, a única saída? A m orte em com bate parece o único acesso ao Universal, enquanto não se suspeitar de que haja um a reconciliação com o sensível, m ais doce, contu­do m ais resoluta: o pensam ento.

Mas o hom em grego, retido no visível, não acedeu ao “pensam ento puro” . E na Filosofia da história, após se recompor de seu entusiasm o, Hegel parece espantar-se com isso. Os gregos, dizia ele, admiravam a natureza por­que ela lhes parecia ao m esm o tem po estranha e secretam ente “amiga” , lon­gínqua e no entanto abundante em signos. É que se deixavam fascinar pelo sentido que haviam atribuído tanto aos sonhos quanto às tempestades.

Q uando ouviam o m urm úrio das fontes, perguntavam o que bem pode­

ria ele significar; a significação, porém , não era o que podia lhes inspirar obje­

tivam ente a fonte [die objektive Sinnigkeit]. A ntes, era a significação subjetiva

conferida pelo próprio sujeito que, em seguida, iria elevar N áiade ao patam ar

de M usa ... O s cantos im ortais das M usas não são o que se ouve, quando se

escuta o m urm úrio das fo n tes.18

Tal sentido, portanto, só nascia nos confins do sensível, e se a herm e­nêutica (Auslegung) dos gregos enriquecia indefinidam ente o m undo, este perm anecia seu pretexto necessário. Sua arte foi o em blem a desse com ­prom isso entre a m atéria e a forma. Sem dúvida, na Estética, H egel admira a perfeita “consonância” que a estatuária grega soube instaurar entre for­m a sensível e conteúdo espiritual. Entretanto “consonância” , “ ajuste” são im agens ainda enganadoras de nossa relação com o Verdadeiro, e a felici­dade da expressão atingida pelos gregos não foi, estritam ente, senão ex­pressão. Por m ais indissociáveis que o conteúdo e a aparência tenham se tornado, a serenidade do deus só trans-parece em seu sorriso, a significa- ção é apenas traduzida no mármore. A pedra esculpida exprim e o PeusV com o um â tradução düplicâ '0' óñ^ ñllT ~ ggn rM l5stiñ ino~ Em suma, se a im agem (B ilã jn a õ ,^ o s ig n o , (Zeichen), ela ainda é entendida som ente pela

17 Naturrecht [D ireito natural], I, p .484; cf., I, p .452.18 Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .310.

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32 GÉ R A R D L E B R UN

estrutura-signo. “ Na beleza grega, o sensível é som ente signo, expressão, invólucro em que o Espírito se m anifesta” ,19 de m odo que, de direito, é m antida um a distância entre o significante e o significado. Essa distância será reencontrada por toda a parte em que Hegel descobrir a “Finitude”, e, para preenchê-la, é ele quem evoca a operação chamada “conhecim ento” , operação cuja legitim idade é evidente, um a vez que se acreditou reconhe­cer que houvesse um a distância. A recusa dos gregos em deixar que o divi­no se encarnasse não é senão outro aspecto dessa consistência que conce­diam ao sensível, com o um dos lados da distância: a figuração se detém ali onde ela se tornaria sensibilização integral, portanto, profanação.20 “O h u ­mano, em Deus, não forma senão sua finitude; portanto, essa religião, ou­tra vez por sua base, pertence às religiões finitas.”21 E assim que, na Grécia, o divino se m anifestou, m as “não de m aneira a assum ir essencialm ente forma hum ana” .22

2

A pós 1802, a questão do m ito da Grécia recolocou-se para Hegel. A Grécia, até então m ito de origem , é devolvida à sua im aturidade: recolocada no lim iar da história que ela inaugurou, já não aparece atrás de nós como “o paraíso do espírito hum ano” . O escrito sobre o Direito natural ainda opu­nha a d ivisão harm on iosa das ordens (Stände) na cidade grega a seu nivelam ento abstrato no direito romano:, a unidade orgânica do Singular e do Universal da qual os gregos guardaram o segredo fazia ressaltar, por contraste, o andam ento patológico do individualism o “burguês” que nas­ceu em Roma. N a Filosofia da história, o juízo proferido sobre Rom a é mais nuançado: no E stado rom ano, esb oça-se , ainda que sob um a form a aberrante, o princípio de interioridade que fazia falta aos gregos.23 Desde então, trata-se m enos do aspecto “concreto” da liberdade grega que de sua

19 Ibidem , XI, p .315; cf. Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .119.20 E e s sa convicção que é subvertida não som ente pela m orte de Cristo, m as ainda por su a

m orte ignom iniosa na Cruz: “nele, a hum anidade apareceu até o ponto extrem o” (Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .298-9).

21 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .95.22 Fenomenologia do espírito, p .552; trad. fr., II, p .240; trad. br., II, p .170.23 Sobre a n ecessária decom posição da C idade antiga, cf., Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória],

XI, p .344-5.

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precariedade: “A ssim com o os romanos, os gregos sabiam som ente que al­guns são livres, não o hom em com o tal ... a liberdade deles fora um a flor perecível, limitada, contingente e significou tam bém um a dura servidão para tudo o que é propriam ente hum ano” . Agora é a imediatez do espírito grego que m ais pesa na balança.

A im possibilidade de ir até o fim da “antropom orfização” é justam en­te um dos sinais dessa im ediatez. Desconfiança para com a hum anização do divino, .comp lacência para com o im ediato e o visível: ambas as figuras provêm da m esm a inconsciência. O deus bem pode se tornar fam iliar a nossos olhos, jam ais viver um a vida humana: a contem plação estética é. p . única m etamorfose, dn divinn t-nlerada ppln ppriaa.mento grego. Logo era

parcial opor, com o em Frankfurt, a verdade pagã ao erro cristão. O s discí­pulos, sem dúvida, pecaram por ingenuidade ao se apegarem ao persona­gem histórico Jesus, mas os gregos não teriam sido sequer capazes de co ­m eter esse falso sentido, visto que um deus não podia ser seu semelhante, mas som ente um objeto representado. A Encarnação, por m ais grosseiro que tenha sido o m odo de interpretá-la, esboçava um a significação do divi­no que a Grécia não havia entrevisto. Ousar dizer “Ele era Deus e também

aquele hom em ” é deixar adivinhar que o Finito não é tão opaco que não possa acolher o Infinito, e que é possível outra relação entre o hom em e D eus que não a contem plação, relação imaginativa, que os deixa cada qual em seu lugar. Enquanto os textos de juventude atribuem à im aginação o poder de conciliar sujeito e objeto, natureza e liberdade, agora, H egel in­siste na fragilidade desse equilíbrio: na conciliação imaginativa, o hom em perm anece o espectador de um a eternidade separada dele, perante um a obje­

tividade que as im agens dos deuses sim bolizam . Hegel escreveu outrora: “O hom em pode ligar-se ao contingente, e deve ligar a algo de contingente, o im utável e o sagrado” (Nõhl, 143). N essa “ligação” , porém, a união da significação sagrada e do suporte visível perm anece exterior. Ora, é essa exterioridade que o cristianism o apaga.

D iferentem ente da estátua grega, o Filho de Deus não representa uma essência: por sua m orte e pelo apagamento de sua presença sensível, indica qual é a verdadeira relação do hom em com a essência divina. Seu nasci­m ento, sua agonia, sua crucificação não são com o um a sucessão de im a­gens: elas expressam a relação que D eus m antém conosco. A historicidade da vida de Cristo a.in^.-.ua.divir.Q. a dim ensão que faltava, aos s ig n ifk antes ffxÕ T dãcirécia·

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3 4 G É R A R D L E B R UN

C r is t o m o s t r o u e m s u a m o r te , e m s u a h is tó r ia e m g e ra l, a h is tó r ia e te rn a

d o E sp ír i to , h is tó r ia q u e c a d a h o m e m d e v e e fe tu a r e m s i m e s m o p a r a se r e s p í­

r ito o u p a r a s e to r n a r filh o d e D e u s , c id a d ã o d e se u r e in o .24

O hom em -D eus morreu jovem: é o .sinal de que a presença terrestre não é o único intérprete de que Deus dispõe e que ele pode se revelar de outro m odo que não para o olhar.

O v e r d a d e ir o d e fe ito d a re lig iã o g r e g a e m re la ç ã o à r e lig iã o c r is t ã é q u e ,

n a q u e la , a A p a r ê n c ia fo rm a o m o d o m a is e le v a d o , a to ta l id a d e d o d iv in o ; n a

r e lig iã o c r is tã , e la s ó é to m a d a c o m o u m m o m e n to d o d iv in o .25

Enquanto as estátuas gregas eternizavam no presente estético um di­vino separado, a m orte de Jesus relega ao passado um Deus cuja “presen­ça” , a partir de então, não tem m uito a ver com a presença de que a “repre­sentação” é o modelo: o sím bolo que m elhor convém a Deus é, agora, o recuo em uma tem poralidade em que seu rosto se esfuma. A nostalgia dos discípulos m erece outra interpretação: ela m ostra que, por excelência, Deus se oferece a nós sob o m odo da ausência. A superioridade do cristianism o sobre o paganism o corresponde, em suma, à da m em ória sobre a im agina­ção.26 A Erinnerung à qual o cristão é obrigado o desvia da cilada da “Fanta­sia” ; obsedado pelo passado, deixa de ser, ao menos, fascinado pelo visível. Decerto “ a rem em oração pertence à representação, ela não é pensam ento” , e, por isso, a filosofia deverá conceber “o que a Religião representa como obra da fantasia ou com o existência histórica” .27 O cristianism o, porém, não deixa de m arcar um a etapa decisiva na depuração da “Representação” . Se a com unidade cris.tã_aind a no_lugar de contemplá-la: isso é o im portante, “O .espetáculo divinojTerrnanp- ce<fib jgtiv o ,ji a g entido de que, no coro, jx p róprio-espectador-se^bigtivpu.” 28

24 Ibidem , XI, p .421.25 Ibidem , XI, p .326.26 "A m nem ónica se apega aos preconceitos com uns que concernem à relação da m em ória

com a im aginação, com o se e sta fo sse um a atividade m ais elevada e m ais espiritual que a m em ória. A n tes, é preciso dizer que a m em ória nada tem a ver com a im agem extraída do ser-determ inado im ediato, não espiritual da inteligência, da intuição, m as com um a existência que é o produto da própria inteligência . . . ” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 462, X , p .364; trad. br., III, p .255 ).

2í==Sesch . Philo. [H istória da filosofia], XVII, p. 108.Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .416.

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O que nos é proposto, portanto, é outro retrato do cristão. Já não apa­rece esmagado pela tradição estupidam ente cegada pela presença de Jesus.Seria injusto acentuar apenas esse lado do cristianism o. O essencial é que, ¿ /u sh à w * ; indo de encontro a toda e qualquer religião, denuncia a vaidade de toda j wuraçqo. A consciência cristã iá não adora-omiilo gugjL· i á não visa ao D eus «im^diarizador..se-aãftHw-fftQdo do tEXsúdo.19 E no cristianism o o peso do ~J~

passado parece... para Hegel, um tanto m enos abusivo, desde o m om ento em que se torna o sím bolo de um a ruptura com o im aginário ^ x tin s tru - m ento de nma “polêmica rontra torlo o esplendor do m undo” .30 Logo a

n oção de “ p o sitiv id a d e , por si só, não é m ais p ertin en te . A crítica “ antipositivista” da Religião permanecia, afinal, bastante próxim a da efe- . .tuada pela Aufklärung: nela, a Revelação era reduzida a um efeito da má “im aginação” , no sentido dos Clássicos - e acabava-se julgando o conteúdo }v.específico do cristianism o apenas por seu aparelho dogm ático e institucio- nal. Ora, é preciso distinguir a Religião revelada (geoffenbarte) da Religião m anifesta (offenbare): para a re lig ião cristã, é apenas secu n d ário ser geoffenbarte, dada ao hom em do exterior. Afinal, “ tudo deve nos vir do exte­rior ... E necessário que esse lado seja tam bém reencontrado na Religião m anifesta” .31 Esta aparece no m odo da positividade, mas tal origem não perm ite preconceber seu caráter diferencial, nem a natureza do Aparecer que ali se desdobra; não lhe é essencial perm anecer prisioneira da “ sim ples representação, da sim ples lem brança” . E se o cristão com preende sua fé dessa maneira, ele se engana tanto quanto o A ufklärer que o combate. Pois confunde o acessório e o essencial, a vida do Nazareno e o fato de que esse

hom em (e, nesse caso, o dem onstrativo conta mais que a data ou o local de nascimento) era o Filho de Deus. Tal é o conteúdo especulativo em que o entendim ento do Aufklärer fica encerrado e que não é m ais confirm ado por testem unhos sensíveis quanto infirmado por um a crítica histórica.32 “C o n ­teúdo especulativo” , entendamos: conteúdo de que eu participo e que não está diante de m im com o um livro para ser lido. Ora, antes de Lutero, a Igreja, atenta unicam ente à inscrição histórica da Religião, via na Fé ape­nas um a atitude da consciência perante um conteúdo. O jovem Hegel, ao criticar a “positividade” , adm itia que a crença no Filho de D eus é do mes-

29 Cf. Fenomenología do espírito, II, p .581; trad, fr., II, p .270; trad, br., II, p .191.30 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .310.31 Ibidem, XVI, p .200.32 Sobre a traição do conteúdo religioso pelo sogenannte Rationalismus da. Aufklärung, cf. Gesch.

Philo. [H istória da filosofia], XVII, p. 112-3.

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3 6 G É RA R D L E B R UN

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m o estilo que a crença sensível; não suspeitava que ela pudesse envolver outra relação do pensam ento com a “objetividade” e suprim ir a distância que se tem o costum e de im aginar entre ambos. A crítica apaixonada da positividade ainda se exercia, portanto, no terreno da “Representação” , de m odo que escapava à relação inédita com o divino que o cristianism o ins­taura, malgrado sua positividade: não m ais o hom em perante Deus, mas o olhar hum ano que se transform ou em m om ento necessário da “presença divina". Um a vez que se tenha consciência disso, para que lam entar a n os­talgia obstinada da consciência cristã, “a triste carência de algo real, pró­prio à com unidade cristã” (Nõhl, 335)? O centro de interesse do cristianis­m o está em outro lugar: Deus, enfim, já não é m ais visível; Ele se revelou m enos ao se encarnar do que ao se despojar de seu corpo m ortal.

Erscheinen, quando se trata de Deus, não deve m ais significar assum ir um rosto, consentir em m ostrar o que se era desde sempre. E nas religiões não m anifestas que o Erscheinung se dá com o aparecimento: através do sol e das estrelas, nas religiões naturais - ou então, quando Deus é concebido “ em espírito” , “m as ainda não com o Espírito ... quando ainda não tem em si a plenitude que o torna Espírito" (judaísmo, religião grega). M as o Deus cristão, ao se encarnar óu ao criar o céu e a Terra não delegou algo d ’Ele ao Finito. Se ali se exprimiu, é à m aneira pela qual o relâm pago se exprim e e se suprim e em seu esplendor, a palavra na voz que a profere - portanto, num sentido novo da palavra expressão. A expressão, no sentido corrente, é transcrição: perm anece “ algo de inteiram ente outro” que não o Interior que ela pretende manifestar, cifra de um conteúdo que, por trás dela, guarda sua opacidade.

Í O que deve ser expressão, decerto, é expressão, m as ao m esm o tem po

tam bém o é som ente com o um signo, de m odo que ao conteúdo expresso é

plenam ente indiferente aquilo por m eio de que ele é expresso. N essa m anifes­

tação, sem dúvida, o Interior é um Invisível visível [das Innere ist in dieser

Erscheinung wohl sichtbares Unsichtbares], porém sem estar ligado a tal m anifes­

tação; tanto pode estar n um a outra m anifestação, com o um outro Interior,

reciprocam ente, pode estar na m esm a m anifestação.33

A expressão perfeita, ao contrário, anula a diferença entre o m anifes­tante e o m anifestado. E é assim que é preciso entender a Encarnação, não

33 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p.327.

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( íí bjoffc th. RdUçfé) JL· £v\<*A°çtâ*c ~)A P AC IÊ NC IA DO C O N C E I T O 3 7

com o se a pessoa de Cristo fora o sinal visível - e contingente - de um Deus que teria perm anecido aquém.

O cristianism o diz: D eus se revelou por interm édio de Cristo, seu Filho.

Inicialm ente, a representação com preende tal proposição com o se C risto fo s­

se apenas o órgão dessa m anifestação - com o se o que era revelado dessa m a­

neira fosse um outro que aquilo que revelava. Ora, em verdade, tal proposição

significa antes que D eus se revelou, que sua natureza consiste em ter um Fi­

lho, isto é, em dividir-se, tornar-se finito, perm anecendo em casa na D iferen ­

ça, intuir-se a si m esm o e m anifestar-se no Filho e em ser Espírito absoluto,

graças a essa unidade com o Filho, a esse ser-para-si no O utro; adem ais, o

Filho não é o sim ples órgão da Revelação, m as é o seu próprio con teúdo.34

Se com preenderm os som ente que D eus resolveu passar do divino ao hum ano, com o de um a a outra região lim ítrofe, na qual se tornaria acessí­vel, ou, ainda, que ele levantou o véu que o ocultava de nós (Segunda Epístola aos Coríntios), restringirem os o esplendor de sua presença, no sentido m ais m aterial da palavra presença. A data e o lugar do aparecim en­to farão esquecer que o Aparecer já não designa senão o deslizam ento do M esm o na D iferença que nele se escava. Então D eus será dito no meio de

nós, realmente presente, no sentido em que os católicos o im aginam, no pão e no vinho:

O s católicos transform am a hóstia num deus vivente. Isso não é m ais do

que o diabo desejava de Cristo: que a pedra se tornasse pão. A o contrário, é o

pão vivente da Razão que se torna eternam ente pedra.35

Reportem o-nos à análise da Eucaristia, na coletânea de N ohl (S. 297- 301). N ela m edim os o quanto Hegel, em Frankfurt, era incapaz de criticar o dogm a católico sob esse ângulo. Adm itia que, ao consum ir o pão e o vinho, o cristão se une a Deus. M as esse m esm o consum o, acrescentava, m ostra que o pão e o vinho não podem ser algo de divino. “A lgo de divino foi prom etido, m as a promessa mesma se dissolveu no m om ento em que foi pronunciada” (Nõhl, 301). D outrina que pode se fazer passar por um cato­licism o herético, em relação à crítica radical do catolicism o nos escritos de

34 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 383, X, p .34-5; trad. br., III, p .25-6.35 Verhältnis des Skeptizism us [Relação do ceticism o com a filosofia], I, p .222.

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maturidade: na Filosofia da religião, essa m esm a dissolução se torna benéfi­ca; sinal de que se estava errado em interpretar a prom essa de m odo dem a­siado “carnal” . Lam entar que a hóstia funde um instante ainda era conce­der um valor intrínseco à presença no Finito. A o partilhar então surdam ente a insatisfação dos discípulos, tal como ele próprio a descrevia, tam bém Hegel estava em busca de uma união mais durável no sensível, para além daquela união efêmera. A Encarnação só era tida, portanto, com o um a incursão sem futuro de Deus no Finito, a Revelação, como um episódio decepcionante, já que o divino só se deixa entrever no espaço de um a vida humana.

A gora se vê bem que tal decepção era o avesso de um a exigência ingê­nua. Por que o divino se m anifestaria no m odo pelo qual um rosto trai seu segredo? E, sobretudo, o que nos revelaria d'Ele? A “Representação” não traz tal questão previam ente (entendam os aqui por “ Representação” a ati­tude com um à fé ingênua e à crítica dela feita pelo jovem Hegel): para ela, a Revelação tem necessariam ente a figura de um encontro - de um estran­geiro, um a noite, em Emaús... A ssim também, a teologia nos colocou des­de sempre perante um objeto de representação cham ado “ D eus” , a respeito

do qual ela falava (über G ott). A inda assim, a teologia protestante moderna, pela exegese e pelo raciocínio, “reduziu a m anifestação de Cristo a um sim ­ples objeto de lem brança e de princípios morais; relegou D eus a um além vazio, em si desprovido de determ inações, com o incognoscível, portanto como essência não revelada” .36 Ora, tornado vazio pela teologia “ esclareci­da” , esse além é som ente a réplica da essência compacta, acerca da qual a teologia dogm ática professava que ela se tornara acessível pela Revelação: são apenas duas variações sobre o m esm o contra-senso, pois, na Revela­ção cristã, ninguém vem a nosso encontro, nada advém nessa M anifesta­ção absoluta, ela não mostra nada. Nada, a não ser que agora deixa de ter curso a relação revelante/revelado, significante/significado. A í D eus não se tor­

na m anifesto: ele é, de lado a lado, fü r sich seiende M anifestation. O que é desvelado, se a todo custo quiserem empregar tal palavra, é som ente a ne­cessidade que havia de aparecer n ’Ele, no sentido m uito estrito de ser-para-

um -Outro, a im possibilidade de ser totalm ente “ Ele” , caso perm anecesse som ente “n ’Ele m esm o”, de m erecer seu nom e se este devesse perm ane­cer ligado a um objeto que m inha representação é capaz de convocar: ne­nhum a necessidade agora de im por silêncio aos iniciados - em que discri­ção ou tagarelice poderiam concernir a Deus? Ele próprio não tem nada

36 Solgers Schriften [Sobre os escritos de Solger], XX, p .165-6.

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para nos ensinar do que Ele é ou era: Ele não é teólogo. É o teólogo que predeterm ina a essência divina com o se ela fosse algo de opaco a ser escla­recido por todos os predicados que dela se enunciam. “ D eus” - a repre­sentação que leva este nom e - é tom ado sob os encargos da linguagem cotidiana e sua ontologia espontânea, tratada com o um ente em m eio a outros. Em contrapartida, se se deixa de im aginar Deus com o um conteú­do objetivável, já não se corre o risco de parti-lo entre sua essência e sua aparência, seu antes e seu depois. A Offenbarung, bem com preendida, é justa­m ente o m ovim ento que fazia com que fossem abolidos os dois pólos ilu­sórios entre os quais se im aginava que Deus dispusesse de escolha - ela recusa a estrutura abstrata no interior da qual D eus podia ser dito ora ocul­

to, ora acessível. “A m orte do M ediador não é som ente a m orte de seu as­pecto natural; não m orre som ente o invólucro já m orto, subtraído à essên­cia, mas também a abstração da essência divina.’ ’37 A Offenbarung, com preendida em sua totalidade, anuncia no final das contas (e o fato de que ainda haja apenas anúncio é, com o se verá, a últim a defasagem que separa a Religião absoluta da filosofia) que D eus só está presente quando não é m ais represen­

tado (vorgestellt), nem como essência, nem como homem. Assim , ela nos obriga a reconhecer que a “Representação” não é a trama de todo Saber, é, no m á­xim o, um m om ento arbitrariam ente separado da O ffenbarung.

Com o ainda não tom ara consciência disso, o jovem Hegel m edia o grau de perfeição de um a religião pela conciliação que ela instaura entre subjeti­vidade, e objetividade, Finito e Infinito. Certam ente ele desprezava esses termos “reflexivos”, m as não podia dispensá-los. Assim , em sua definição da Religião positiva: “ U m a religião é positiva quando põe com o princípio da vida e das ações a representação de algo objetivo que não pode se tornar subjetivo” (Nõhl, 374). Em outros termos: é um erro perm anecer confron­tado com um a objetividade e separado dela; é preciso pôr fim a tal situa­ção. Porém, com o pôr fim a ela de outro m odo que não em palavras, se se com preendeu que a posição m esm a de um a objetividade é o efeito de uma ilusão de ótica? A teim osia na objetivação fica, então, m ais tenaz que o desejo de a suplantar.

Uma elevação completa da vida finita à vida infinita deveria deixar tão pouco lugar quanto possível ao finito e ao limitado, isto é, ao subjetivo e ao objetivo propriamente ditos ... Mas o grau de oposição e de reconciliação de

37 Fenomenologia do espírito, II, p .597-8; trad, fr., II, p.287; trad, br., II, p .204.

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que urna época é capaz é algo con tin gente ... O s povos m enos felizes não

podem atingir tal plenitude, pois, vivendo num estado de separação, os h o ­

m ens são obrigados a dirigir toda a sua atenção para a m anutenção de um dos

term os, a saber, de sua própria autonom ia. (Nõhl, Systemfragment, 350)

E a confissão de que a união dos opostos está à mercê das circunstân­cias, longe de resultar da análise da própria oposição. Por m ais violenta­m ente que tenha com batido, nesse m om ento, as rígidas oposições da Refle­xão, Hegel, de fato, assum ia os pressupostos desta últim a. Assegurava, sem dúvida, que o divino só advém de onde o sujeito e o objeto se tornaram inseparáveis, m as tal reunificação dos dois term os consistia em “deixar de lado” (belassen) a sua diferença, não em fazer com que ela se dissolvesse (auflósen) , 3 8 Q ue tenha havido Diferença, isso ficou para trás e “ superado” - se quiserem -, mas isso não foi contestado. Oferecia-se a unidade, mas sem ver que a própria busca da unidade era vã e atestava som ente que se levava a sério um a situação falsa, que se entendia ganhar um jogo do qual não se notava que as regras estavam viciadas. Em suma, a reunificação sem crítica da Diferença, dada no início, era incapaz de suprim ir a figura responsável pela oposição. Esta permanecia, portanto, a forma canônica de todo saber,

de m odo que a união com D eus estava inevitavelm ente presente com o um não-saber, sim bolizado pelo silêncio dos iniciados. “Tudo o que se diz sobre a divindade em forma de Reflexão é absurdo” (Nõhl, 318). N essa época, porém, não se concebia qual discurso poderia substituir o discurso reflexi­vo e com o o Saber poderia ser outra coisa que não conhecim ento, isto é, separação. Tais textos recaem assim sob a crítica que Hegel, em 18 17, ende­reçará a Jacobi. Jacobi teve em com um com Kant o fato de pôr fim, não tanto ao conteúdo da antiga M etafísica, mas a seu “m odo de conhecim en­to” . A lém disso, não se contentou em criticar, com o Kant, “as formas do conhecim ento finito”, m as pôs em questão o “Conhecer em si e para si” . Porém, não foi m ais longe e não pensou que valesse a pena revisar o estatu­to da Razão. D esvalorizou o “C onhecer” , mas sem se perguntar se fora legí­tim o “fazer do Entendim ento, com o fora feito até então, por assim dizer, a alma do C onhecer” . Isso quer dizer que não com preendera que sua empre-

38 "A diferença deixada de lado seria contradição; se a diferença perm anecesse fixa, então nasceria a Finitude. A s duas são independentes um a em relação à outra e, tam bém , na relação de um a com a outra. A Idéia não consiste em deixar de lado a diferença, m as em d issolvê-la: D eus se põe n essa diferença e, adem ais, a suprim e igualm ente" Ph. Religion, Filosofia da religião, XVI, p .230-1.

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sa desem bocava na “necessidade de inverter com pletam ente a perspectiva que se tom ava sobre a lógica” .39 A crítica “ antipositiva” , da m esm a manei- ra, nunca punha em questão o horizonte da “Representação” : o jovem Hegel reprovava ao cristianism o não ter consum ado a integração da vida finita e da vida infinita, mas ele não entendia por “finito” o elem ento representati­vo que a conciliação m anteria em sua plenitude. Predizia que os opostos não se uniriam na verdadeira “ crença” , mas definia esta últim a com o "a m aneira pela qual aquilo que está reunido - a m aneira pela qual um a antinom ia está unida - está presente em nossa representação” (Nõhl, 383). Ele situava o mais elevado ponto de reconciliação na felicidade estética da Grécia,“m eio dos extrem os na beleza” (Nõhl, 332): era oferecer a beleza visível '¡í

com o único critério da verdadeira religião. Todas as oposições se dissolviam no m esm o ponto lum inoso, no elem ento “estético” em que, por definição, o sacrifício do sensível nunca é com pletado. Excursão interrom pida de Deus entre nós, a Encarnação se afigurava com o fracasso: não podia sim bolizar um a união perm anente com o divino. “Tal noção, como aí se trata de um indi­

víduo, é eternam ente im possível” (Nõhl, 341).Basta passar daí à análise da consciência infeliz, na Fenomenología do

espírito, para perceber que reviravolta teve lugar. Já não se deplora a passa­gem efêm era de Deus pela Terra, nem a desproporção entre a fragilidade do indivíduo e a m issão conciliadora de que estava encarregado. O mal vem de outro lugar: da ilusão que levava a crer que a reconciliação devesse advir do sensível ou, ao m enos, sem que o sensível fosse abolido. Ora, a presença sensível, por si m esma, consagrava, ao contrário, a separação do hom em e

do divino.

N a realidade, porque o Im utável revestiu um a figura sensível, o m om en­

to do além não som ente perm aneceu, mas, decerto, pode-se dizer que se for­

taleceu; pois, se por m eio da figura da realidade efetiva singular, o Im utável,

por um lado, parece ter se aproxim ado da consciência, por outro lado, ele está

doravante para ela, diante dela, com o um U no sensível e opaco, com toda a rigi­

dez de um a coisa efetivam ente real.40

Se a Revelação contribuiu para “fortalecer” o sentim ento do além, é porque ela foi vivida com o representação: suas testem unhas não com preen-

39 Ueber Jacobis W erke [R esenha d as obras de Jacob i], VI, p .340.4 0 Fenomenología do espirito, II, p .170; trad, fr., I, p .180 ; trad, br., I, p .143.

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diam - e m esm o nunca estiveram tão longe de com preender - que Deus não

é nada mais que o m ovim ento cuja tradução do aparecer e da ausência é apenas a tradução sensível. Contem plavam com o um a coisa ou decifravam com o um texto o que deveriam ter concebido; buscavam o sentido do acon­tecim ento, ao passo que o acontecim ento já pertence ao sentido. Tal é o saber representativo, preconceito m enos fácil de extirpar que o da “positi- vidade” : é fácil contestar que Deus seja com o um m onarca absoluto, que, próxim o ou distante, acolhedor ou tirânico, só esteja presente para nós de m odo objetivo; ao contrário, pouco se pensa em suspeitar dessa evidência.

11. Mas é a ela que o cristianismo, pela prim eira vez, abalava - primeirareligião, um a vez que se aprendera a “conceber” , a dissipar os m al-enten­didos que sempre falsearam a relação com o divino. Não um a religião posi­tiva entre outras, mas a propedêutica a um a ontologia nova que fará estou­rar os pressupostos com base nos quais, outrora, se condenava o cristianismo positivo. Disso, em Frankfurt, a interpretação do cristianism o fazia um exem ­plo da reconciliação im possível; a conceitualização do cristianism o, m ais tar­de, põe em evidência a vaidade de todas as reconciliações com as quais sonhara o jovem Hegel. Todas, Amor, Vida, Beleza, eram tão "representati­

vas” quanto as religiões da escravidão às quais ele as opunha; todas se pro­punham a preencher o abism o entre o hom em e Deus, sem pôr em dúvida que, no ponto de partida, aquele teve que ser dado com o um sujeito, este como um objeto; todas supunham , portanto, um D eus parceiro, situado num além longínquo que o “ divino” , se tiver um sentido, já deveria ter suprim ido. H egel admitia, decerto, que o conhecim ento de D eus não esta­va ao alcance de um a “visão” : "a m ontanha e o olho que a vê são objeto e sujeito; mas, entre Deus e o homem, entre o Espírito e o Espírito, não há aquela falha da objetividade” (Nõhl, 312). Porém som ente após a elabora­ção do conceito de “Representação” é que Hegel adverte explicitam ente contra as m etáforas sem pre defeituosas da visão: ali m esm o onde nos asse­guram que o olhar intelectual constitui um só com o Verdadeiro que o ilu­mina, a falha da objetividade permanece amplamente aberta... Há, em Hegel, os elem entos para um a crítica da assimilação, constante nos clássicos, en­tre Saber e Luz. “A Luz, sem que ela própria seja vista, torna visíveis os objetos que ela ilum ina... O m esm o ocorre com o Espírito” . Todavia

o próprio Espírito se m anifesta e, apesar de tudo o que ele nos dá, sem pre

perm anece ele m esm o, ao passo que a luz da natureza torna perceptível, não a

si m esm a, m as o que ela não é, o que lhe é exterior; após ter saído de si m es­

ma, com o o Espírito, em seguida ela não volta, com o ele, a si m esm a e, assim,

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não adquire essa unidade que consiste em perm anecer o que ela é enquanto

está naquilo que não é ela.41

N a sim bólica hegeliana dos elem entos, a luz solar significa m enos a irrupção do <paivón.evov, e mais o irrem ediável afastam ento daquilo que é dado a ver. Adem ais, as m etáforas da Luz nunca são inocentes. Todas elas envolvem a estrutura “ sujeito-objeto”, em potência nos gregos, explicita­m ente nos clássicos: assim, em M alebranche, “um véu de obscuridade” já está levantado entre m im e a luz da Idéia, devido ao fato de que eu lhe dou acolhida e ela me m odifica.42 Não se toma im punem ente a visão sensível como referência.

O que H egel cham a Espírito não se m anifesta na m aneira pela qual se m anifesta o sensível. M uito m ais que isso: é a Erscheinung sensível que deve ser com preendida em função da Offenbarung divina, e não o inverso (como sempre fo i). Tal é a convicção que inverte a interpretação do cristianism o. N ão há, na origem, “ sujeito” próxim o ou distante de Deus: o que cham a­m os “sujeito” é spmpni-p a fpgtpmnnha qnp cnrgp quando o divino, desdo-

brando-se em “ ser-para-oufrn” suscita nrn nlfíir dn qual, grp seguida pIp se furtará. A ssim , a “representação” concebida como sim ples episódio do divino deixa de ser o referencial em relação ao qual este últim o sempre fora interpretado, e o “ sujeito” deve reconhecer que, no curso dessa h istó­ria de que ingenuam ente se acreditava o espectador, ele é som ente o prota­gonista necessário para o divino, quando este se im ediatiza e m erece ser posto, efemeram ente, com o objeto de um a representação chamada “D eus” . Este é então o m om ento do cristianism o “estético” - do catolicism o em que Deus só se anuncia por intermédio de eine imposante, sinnliche Erscheinum

vor Augenn . . . Em suma, a teologia só com eteu o erro de eternizar esse m o- m ento é fixar Deus em um ser (visível ou não). Ora, só estou dotado de visão porque a Deus (entendido agora com o m ovim ento da significação lo ­calizada que assim se denom ina tradicionalm ente) pertence “ ser-para-um- outro” . E o cpaíveoôca, correndo o risco de perder seu prestígio, deve ser

41 A esthetik [E stética], XIII, p .63.42 A expressão é de M. G uéroult em su a obra Malebranche.

43 “M uitos franceses cu ltos têm repugnância pelo protestantism o, pois lhes parece algo pedante, triste, m esquinham ente m oral, porque o espírito e o pen sam ento deveriam se haver com a própria religião; na m issa , ao contrário, e noutras cerim ônias, não é neces­sário pensar; tem -se sob os o lhos um a im ponente aparência sensível e pode-se tagarelar sem prestar atenção, ao m esm o tem po que se e stá quite com o que é n ecessário” (Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .530; trad. fr., p .323).

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reinscrito nesse Aparecer puro, um Aparecer preconcebido por nossa retó­rica de hom ens dotados de visão, desde que ela o m eça com o um “ surgi-

^ m ento” ou um “ desvelam ento” .t g e m ¿¿vida, ngQ consciência cristã que, de um a m aneira ou de ou-

^ tra, não viva, com o um espetáculo, o drama de que ela é som ente um a dasA L figuras: a Religião absoluta não é o Saber absoluto. Liberada da positividade,

ela não deixa de ser “representativa”; mais do que um a consciência infeliz, a consciência cristã é um a consciência estética incorrigível. A Reform a es­teve, sem dúvida, bem perto de marcar a ruptura total do cristianism o com a aisthésis. Na época em que o hom em aprende que o sol nunca se põe na terra,

um sim ples m onge descobre que o Isto que outrora a cristandade buscara

na terra, n u m tú m u lo de pedra, está antes no m ais p ro fu n d o tú m u lo da

idealidade absoluta de todo sensível e de todo exterior, no Espírito, em que

ele se encon tra.44

N o entanto, o próprio Lutero não conseguiu abolir o horizonte da ob­jetividade:

Lutero estabelecera vitoriosam ente que a eterna destinação do hom em é

algo que nele deve acontecer. Q uanto ao conteúdo, todavia, do que nele deve

acontecer e quanto à verdade que deve nele viver, Lutero adm itiu que deveria

ser um dado, revelado pela Religião. [De m aneira que] M esm o na teologia p ro ­

testante subsistiu a relação do Espírito com um além; pois, de um lado, per­

m anece o querer próprio, o espírito do hom em , eu m esm o - e, de outro, a

graça de D eus, o Espírito Santo.45

O cristianism o não foi, portanto, depurado até renunciar ao ponto de vista da subjetividade - tam pouco, sem dúvida, a subjetividade obstinada do judaísm o, mas sempre uma instância insular em que o hom em acredita contem plar o Verdadeiro. M esm o quando essa interioridade for decantada, no Denken cartesiano, o Aparecer do Espírito a si m esm o ainda se consum a­rá na forma e na imagem de uma presença: “No Pensamento, o Si está [prãsent] a si m esm o, seu conteúdo, seus objetos estão por assim dizer presentes

44 Ibidem , XI, p .522 ; trad, fr., p .318 .45 Ibidem , XI, p .549 ; trad, fr., p .335.

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[gegenwärtig]” .46 Tal pensam ento é a ponta mais elevada da interioridade; mas não é (sobretudo ainda não é) o desdobram ento total do Espírito; per­manece preso ao eixo de um olhar subjetivo. Anuncia-se assim a idade da A ufkläru ng: “O olho do hom em se tornou claro, sua inteligência se desper­tou, seu pensam ento trabalhou e esclareceu ... Inicialmente, esse princípio do Pensam ento adveio ainda abstratamente na universalidade".47 Assim , à m edida que, no curso da história, o Espírito se reduz a um "aparecer-a-si- m esm o”, essa autom anifestação perm anece ordenada por um espetáculo. E portanto com preensível que a Religião, votada por essência à Representa­ção, não tenha evitado o que a própria filosofia não soube conjurar.

Perm aneçam os na crítica do cristianism o. E possível m edir de quantos graus ela se deslocou desde Frankfurt. A sentença de M arx (“nós som os todos judeus”) resum e-a m uito bem, nessa época: o cristianism o se inscre- vê~ho pToluiigaineiiLo dü judaismo, religião do temor, aceitação de um a opressão transcendente. Ora, um a vez situado o conceito de Finitude, pa­rece que o judaísm o não é m ajg qnp a mpnnr arm adilhas. “ N ós som os y a\-eço todos gregos” : tal é a tara m ais profunda herdada tantn pelo cristianism o

quanto pela M etafísica clássica. Claro, os gregos só se elevaram até a Ideia, e o pensam ento cristão soube representar o que era o Espírito, mas com um a aproximação ao m enos: ao interpretar a O ffenbarung com o revelação de algo, ele continuava a lim itar o Aparecer ao (pocíveaQca e a ignorar que este Ultimo não é senão um episódio. A consciência cristã pode decerto renunciar ao sensível: ela não se livra dos hábitos contraídos na vida per­ceptiva. Ela é, portanto, um exem plo do pensamento fin ito . Pois a Finitude

não rem ete tanto à oposição abstrata da parte ao todo, do finito ao infinito, quanto ao parti pris de unilateralidade pressuposto por essa oposição e à im possibilidade (esse o sintom a mais seguro) de abandonar a regulação fenom enológica. Sempre que o Saber só puder ser descrito a partir de um face a face com o O utro, cada vez que se deixar de perguntar se essa dife- rença irncial e constitutiva ou m om entânea^há Finitude, Saber m aculado de subjetividade. Sempre tam bém que eu não puder inserir o conteúdo sem 4 vm culá-lo espontaneam ente ao desenrolar de um a vida subietiva, isto~^ colocá-lo no tem po. O cristão, por exemplo, é m enos culpado de ser assom-

hradnpplr^ai^saçfò -~cõmo lh e fo i r e p r õ v ã S Õ lü !^

ue, mais geralmente, de viver sua fé apenas na forma temporal.

46 Ibidem .47 Ibidem, XI, p .550.

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Sua própria reconciliação entra com o algo de longínquo em sua co n s­

ciência, com o algo de longínquo no futuro, assim com o a reconciliação con su­

m ada pelo outro Si se m anifesta com o algo de longínquo no passado.48

Passado, futuro, com que direito dar crédito a esses vividos? Q ualquer que seja a interpretação, poética ou científica, que neles for enxertada, com que direito supor que designem algo de que a consciência ingênua seria ao m enos a antecipação? A consciência não nos inform a sobre nada; seu m odo de apresentação - m esm o se tem um lugar e um a verdade no m ovim ento do Saber - por si m esm o não se orienta precisam ente para nenhum a verda­de; um a visada da consciência é para desmistificar, não para clarificar. Mas x> im portante é que o privilégio concedido de saída a essa figura unilateral rem onta a bem m ais longe do que ao advento da subjetividade propria- m ente dita e das filosofias do Sujeito: rem onta à restrição dissim ulada d a " presença na presença de tipo sensível. E sob essa forma que a Fimtude~~~ perm eou subterraneam ente toda a metafísica. C om eça-se então ã en trèvêr o què7~para H egel, condena a consciência representati^5iTfínitã~àH usiva- m ente assim ilada ao SaberTsêu in ti^ on ism o ^ ly fâ t^ d ê que a lfo SabèT^ubs- tltuía o "perceber e que o õThar perm anecia com o a operação de referência. Também se entrevê o que é o Saber hegeliano para todo pensam ento de origem fenom enológica (no sentido m oderno): um terrorismo.

< 0

A o m enos num ponto a interpretação hegeliana do pensam ento grego encontra a de Heidegger: o corte tradicional entre είναι e φαινεσθαι não é revelador da essência do pensam ento grego.

E só na sofística e em Platão que a aparência é declarada enganadora e,

com o tal, rebaixada. D a m esm a m aneira, o ser é elevado com o ιδεια a um

lugar supra-sensível. E m arcada a fratura, Ξωρισμος, entre o ente, puram ente

aparente neste m undo, e o ser real, em algum lugar lá no alto.49

48 Fenomenología do espírito, II, p .600; trad, fr., II, p .289; trad, br., I, p .206.49 Heidegger, Introd. M éta. [Introdução à m etafísica]; trad, fr., Kahn, p. 117.

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M as a sim ilitude dos diagnósticos, claro, se detém aí: longe de saudar no “em aranhado” do ser e da aparência a “grande época do Dasein grego” que precedeu o desfalecim ento “m etafísico” , H egel aí descobre a primeira form a histórica da Finitude. É essa com preensão da filosofia antiga que Heidegger critica, particularm ente no artigo “Hegels Bregriff der Erfahrung” [O conceito hegeliano de experiência]. Se acred itam o s em Hegel, os gre­gos pensavam o real “ som ente com o o ente” , entendido com o “aquilo que na representação im ediata se torna objetivo para a consciência” .50 A nacro­nism o que nos ensina mais sobre Hegel que sobre os gregos: é sintom ático que estes últim os sejam julgados naturalm ente como se a partilha “ sujei­to/objeto” estivesse prestes a assum ir um sentido para eles. E verdade que essa cegueira era inevitável para quem levava a “ subjetividade” a seu mais elevado ponto de realização. Hegel, pensador da “ subjetividade” , não p o ­dia ordenar o pensam ento antigo senão pelo advento dela.

Sabe-se que essa crítica, que equivale a silenciar o conceito hegeliano de Finitude, não carece de argumentos. É verdade que H egel julga a fragili­dade do pensam ento grego por sua despreocupação com respeito à “cons­ciência de si” . O “Conhece-te a ti m esm o”, observa ele, não foi senão “o surgim ento da clareza espiritual” ,51 e com brilho o destino de Sócrates bem m ostra que a cidade grega não era feita para o acolher. O verdadeiro princí­pio helénico é a Beleza - e nela o Espírito ainda não encontra o seu alicer­ce: “ali, portanto, o Pensam ento aparece com o o princípio da corrupção” .52 Logo, a Grécia será situada no ponto mais elevado da pré-história estética do Espírito, m om ento da clareza objetivada diante de um a consciência in­gênua, inconsciente de constituir-se em sua origem ... A acusação de ana­cron ism o parece, até então, m u ito bem fundada. R esta saber se daí Heidegger não tira conseqüências desproporcionais. D estaquem os um in­dício. Lendo o artigo publicado em Holzwege, freqüentem ente acreditaría­m os que o reconhecim ento da subjetividade em sua soberania é o ponto no qual convergem todas as linhas da História da filosofia, e parece que Hegel, de m aneira bastante m odesta afinal, só percorreu o resto do cam inho em que Descartes se detera.

Talvez essa circunspecção [a do aparecer do saber que aparece] igu al­

m ente, pensada de m aneira mais essencial do que Hegel poderia pensá-la, seja

50 Heidegger, Holzwege; trad. fr., Brokmeier, Chem ins, p .129-30.51 Ph. Gesch [F ilosofia da h istória], XI, p .292.52 Ibidem, XI, p.348-50.

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apenas a lem brança do esse do ens certum do ego cogito, e isso na form a de sua

am pliação para a realidade do Saber absoluto.53

Se for assim, é fácil situar a crítica feita por Hegel do cpaíveoOai e m es­mo todas as formas da Representação: verem os aí um dos efeitos da sobre­vivência da M etafísica clássica, condenação pronunciada um a vez m ais con­tra o sensível por um a subjetividade pura. M as é certo que assim seja? Em Hegel, a certeza do Saber de si e seu m odo de presença a si m esm o perm a­necem num estilo tão obstinadam ente cartesiano? Decerto é preciso reco­nhecer que tais questões podem parecer inteiram ente vãs, pois H eidegger nos ensinou tanto a com preender o Saber absoluto com o um dos últim os travestism os - o mais m ajestoso - do subjectum que se explicitava no ego

cogito. Sob essa luz, a presença do subjectum, tenaz e tão difícil de erradicar, assegura a inclusão na “M etafísica” dos pensadores que acreditavam pôr um fim nela (Hegel) ou m esm o rom per com ela (N ietzsche). E esse fio condutor é precioso para quem entende continuar visitando o país da "M e­tafísica” ou o que ele se tornou, depois que os filósofos deixaram de se dizer m etafísicos. Mas, se desde o início preferim os afirmar que as significações, de um a outro pensador, são hom ônim as de direito, se - ao m enos “para ver” ... - estiverm os atentos à vontade, explícita em Hegel, de não ter de encerrar a M etafísica nem de pôr fim a seu percurso, se nos recusam os a adm itir com o óbvio que a mesma “Subjetividade” se desdobra da Segunda

meditação até a Lógica do conceito, percebe-se então que a interpretação de Heidegger só é lum inosa ao preço de m uita som bra. Já não se com preende m uito bem, lendo Heidegger, por que a Fenomenologia é um a Fenom enologia do Espírito e não da consciência, nem por que Hegel, afinal, se obstina a destruir a noção de “Sujeito”, no sentido dado pelas filosofias que ele cha­m a de “reflexivas” . Descartes, escreve Hegel, teve o m érito de “ começar pelo Pensam ento - verdade que na forma do Entendim ento determ inado e claro” .54 Essa reserva é apenas secundária? Em suma, entre Hegel e as filo­sofias do Sujeito trata-se apenas de uma querela de família? Heidegger nos assegura que sim. E, a partir de então, o juízo feito por H egel sobre o pen­sam ento grego é facilm ente decifrável: os gregos teriam sido vítim as do afastam ento em que se achavam do Cogito. Um a vez que Descartes está no centro da explicitação hegeliana da filosofia, há, para Hegel, um a ingenui-

53 H eidegger, Holzwege; trad. fr., Brokmeier, Chem ins, p. 129.54 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XIX, p .332.

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dade grega. Essa tese é firm em ente enunciada na conferência “ H egel e os gregos” . Pela prim eira vez, diz Heidegger, o Descartes hegeliano põe o su­jeito e o objeto explicitam ente com o tais - e, em relação a essa instauração, todo o passado, para Hegel, foi som ente um longo desconhecim ento.

A relação su jeito/objeto aparece em sua p lena lu z com o oposição, com o

antítese. Em com p en sação, toda filosofía, antes de D escartes, se lim ita a

urna pura rep resen tação do o bjetivo . M esm o a alm a e o esp írito são rep re­

sentados no m odo do objeto, em bora não o sejam como tais. Por co n segu in ­

te, segun do H egel, m esm o aqui já é o su jeito p en san te que opera p or toda

parte, m as ele ainda não é com preendido como sujeito , com o o que funda

to d a o b jetiv id a d e .55

D e um lado, portanto, os pensam entos explícitos da Subjetividade: Descartes - com o qual "nós podem os gritar Terra à vista!" - e Hegel. De outro lado, um pensam ento que não estava apto a tem atizar o sujeito e o objeto como tais. Se decidirm os nos ater unicamente a essa divisão, parece inteiram ente secundário que H egel tenha situado Descartes, contra tudo e contra todos, na era "da Representação” . A ponto de, às vezes, nos pergun­tarmos o que Hegel, principalm ente, trouxe de novo em relação à desco­berta cartesiana, se ele não era sim plesm ente o consolidador dessa funda­ção. Tudo estaria decidido com as Meditações: doravante, a filosofia m oderna habita “o país da consciência de si” .56 Não é m eio-dia em ponto, mas eis finalm ente o dia - e isso é o essencial.

O u antes seria o essencial, se a “consciência de si” não perm anecesse para Hegel com o uma instância da Finitude, por ser erradicada. Se a im a­gem do nascim ento do dia bem dá conta do m ovim ento final da Historia da

filosofía de Hegel, ela não basta, então, para exprimir a com plexidade da relação entre Hegel e Descartes. E preciso, também, com preender que Hegel só confere ao cartesianism o um lugar de destaque entre outras filosofias. A ntes, é preciso levar em conta dois eixos de leitura que bem poderiam ser

55 Heidegger, Questions II, Hegel et les Grecs (trad. Beaufret-Janicaud). "Porque [a filosofia antiga] ainda não pôs os pés sobre a terra da filosofia, isto é, a consciência de si, na qual o objeto representado pode ser como tal, ela pensa o real somente como o ente. Para Hegel, Ser só vale na restrição do somente ser, pois o verdadeiramente sendo é o ens actu, o efetivo, cuja actualitas, a efetividade, reside no saber da certeza que se sabe a si mesma" (Holzwege, trad. fr. Brokmeier, Chemins, p. 130).

56 Heidegger, Holzwege; trad. fr., Brokmeier, Chemins, p.110.

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-vo lta rem o s a isso - as duas dim ensões do texto hegeliano. Doutrinariamen-

te, é incontestável que H egel com pleta Descartes: a im agem do sol nascen­te, depois em seu zénite, se im põe então irresistivelm ente, e a idéia de continuidade prevalece. Mas, discursivamente, Descartes tam bém encontra­va-se tão afastado quanto outros de pressentir o hegelianism o com o m áqui­na de linguagem . Q ue desculpem a comparação que a essa altura traçamos, já que, por ora, não encontram os outra m enos canhestra com o substituta dos conceitos que gostaríam os de esboçar, se não de elaborar, em seguida: de um lado, seria possível descrever a passagem de Flaubert ao Nouveau

Roman, conferindo-lhe o andam ento de um a gênese contínua; de outro lado, o Nouveau Roman repele Flaubert para bem longe de si, situado no m esm o nível em que o de Balzac, com o um “representativo” em relação a si. Em filosofia, com o em literatura, é fácil fazer o repertório de predecessores (e escrever a história do romance, do Ser ou da consciência ocidental - todas essas Histórias-de que ironicam ente a História da loucura de M ichel Foucault interrom peu), quando nos atemos a linhas de força temáticas ou retóricas:

isso nunca lhes falta e, de resto, tais conceitos talvez já sejam inseparáveis de um a continuidade que tem por função preservar. Bem mais difícil é de­signar “predecessores", se nos ativerm os estritam ente à concepção feita por um autor acerca do m odo de dizer que ele escolheu. Descartes, prede­cessor de Hegel, anuncia claram ente a Subjetividade: com o não conceder isso a Heidegger? Mas Descartes, “representativo” , só profere “representa­tivam ente” essa verdade. Tanto quanto quiserem , é já o sol (temático) da Subjetividade; mas é sempre, também, a noite (discursiva) da “Representa­ção” : isso os heideggerianos silenciam. Q uem sabe? Se prestassem atenção, Hegel acabaria lhes parecendo m enos rapidam ente situável, m enos subita­m ente “dogm ático”, mais desconcertante. Pois então já não é m ais evidente que o Saber cartesiano seja, para Hegel, o m odelo do Aparecer-a-si do Espí­rito, o m esm o que os gregos haviam ignorado; já não é mais evidente que H egel m eça a ingenuidade grega unicam ente pelo parâm etro do Cogito. Certam ente ele confronta os gregos com o que eles ainda não haviam pres­sentido e, é verdade, essa linguagem nos faz desconfiar: ela anuncia anacro­nism os por dem ais saborosos (o velho m aterialism o do século XVIII, tão desculpável por ainda não ser dialético). N o caso, todavia, qual é o alcance desse ainda não? H egel escreve: “ [Nos gregos], a individualidade espiritual ainda não é para si, com o subjetividade abstrata” . M as prossegue:

o princípio do espiritual ali obtém o primeiro lugar e o ser natural já não valepara si em suas formações existentes; ele não é mais que a expressão do Espí-

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rito transparecendo, reduzido a ser apenas o m eio e o m odo de existencia do

Espirito. M as o Espírito ainda não tem a si mesmo como médium para se representar

em si mesmo e para n isso fundar o seu m un do.57

A questão é a seguinte: esse texto nos autoriza a concluir que o apaga- m ento do suporte natural bastará para devolver o Espirito presente a si m esm o, em toda a sua pureza e para extrair a verdade da presença? Fre­qüentem ente é o que Hegel parece sugerir, quando fala da Grécia: ao insis­tir na distância que separava os gregos da subjetividade infinita, parece ver nesta últim a o apogeu do Espirito. Mas, se o leitor ficar com essa im pres­são, desconhecerá que será preciso m uito mais para que o Espírito tenha acesso à sua verdade. Para convencer-se disso, é m elhor se reportar a um dos textos que favorecem essa interpretação apressada.

O espírito grego, com o m eio, parte da natureza e a devolve num ser-

posto por si m esm o a partir de si; a espiritualidade ainda não é, portanto,

absolutam en te livre nem totalm ente consum ada a partir de si m esm a; seu

im pulso não vem de si m esm a ... Aqui, a atividade do Espírito ainda não tem

em si m esm a a m atéria e o órgão da m anifestação, m as carece do im pulso

natural e do estofo natural; ela não é um a espiritualidade livre que determ ina­

ria a si m esm a, m as um a naturalidade elaborada em espiritualidade - a indivi­

dualidade espiritual.58

A o descrever a incom pletude do espírito grego, nesse ponto, H egel o refere ao Espírito integralm ente consumado? A palavra “ Ó rgão” já deve suscitar dúvida: sempre que há necessidade de um “ Órgão", de um instru­m ento de apresentação, persiste um a cisão não criticada. Assim , no texto da Filosofia da religião, que citam os anteriormente: “ a Representação com ­preende essa proposição com o se Cristo fosse som ente o órgão dessa m ani­festação ... o Filho não é o sim ples órgão da Revelação, mas sim o seu con­teúdo” . A consciência de si ainda é som ente um m odo de apresentação - e um a das tarefas m ais difíceis do hegelianism o é justam ente elaborar um conceito de “presença” liberado de toda referência a uma “ apresentação” . Q ue o Espírito apareça a si no m odo da consciência de si e não por m eio de uma pedra esculpida, é sem dúvida, portanto, o sinal de um a maturação,

57 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .191.58 P h. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .314; trad. fr., p .181-2.

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não de sua m aturidade. Q ue o Pensam ento não esteja m ais afundado na Substância e tenha se tornado o ponto de partida para si m esm o, é sem dúvida um progresso, mas um progresso no interior da Representação. D oravante só há em -si na dim ensão do Para-si: logo, a presença do Espírito se purificou, mas seu m odo de presença específico não está esclarecido.

A m anifestabilidade, que a substância tem nessa consciência, de fato, é

ocultam ento; porque a Substância é o ser ainda privado do Si e porque so ­

m ente a certeza de si m esm a é para si m anifesta [u n d o ffe n b a r is t s ic h n u r d ie

G e w is sh e it sein er s e lb s t]. Com o Eu, o espírito é Essência; porém , enquanto, na

esfera da Essência, a realidade é posta sim ultaneam ente com o sendo im ediata

e com o ideal, o Espírito é, com o Consciência, som ente o fenôm eno do E spíri­

to [n ur das E r sch e in en des G e is te s ] .59

Esse Erscheinen (Aparecer do Espírito no m odo da consciência de si) é m enos enganador que a Durchscheinen (Aparecer no m odo da contem plação estética), mas ele sem pre é uma figura insatisfatória: nur Erscheinen. Per­guntávam os há pouco pelo exato alcance do ainda não hegeliano aplicado à Grécia. Reconheçam os que esse ainda não é um ainda sequer: o Espírito nem sequer chegou à idade fenom enológica, a qual, no entanto, m erece tanto

quanto a idade estética figurar nessa gênese patológica do Saber que é a Fenomenología. Distinguir-se-ão, portanto, duas escalas de apreciação: do pon­to de vista do desenvolvim ento do Espírito, do ponto de vista do advento do Saber. Deste últim o ponto de vista, Descartes foi um precursor tão “in­gênuo” quanto os gregos, m esm o que de outra maneira. Pois a suprem acia do sujeito cartesiano é também a da Representação, a redução por assim dizer oficial do Aparecer (Offenbarung) ao fenôm eno (Erscheinen) e, com isso, o desconhecim ento do fato de que este últim o é som ente a m utilação da­quele. E nesse m om ento que a crítica da Grécia assum e o seu verdadeiro sentido: essa confusão entre Offenbaren e Erscheinen, os gregos já a haviam

cometido. Em bora na Grécia a noção de Sujeito não tivesse sido esboçada ou tivesse sido apenas mal esboçada, o fato de que a visibilidade seja o m ode­lo de todo Aparecer prefigura aquilo que, mais tarde, fará do Sujeito, quan­do tiver sido elaborado, um a noção representativa. E por isso que o juízo de Hegel sobre os gregos, apesar de form ulado na linguagem do Sujeito e do Objeto, não é nem principalm ente nem apenas anacrônico. Haveria ape-

59 Fenomenología do espírito, p .612; trad, fr., II, p .304; trad, br., II, p .214. Enciclopédia das ciên­cias filosóficas, § 414, X , p .258; trad, br., III, p .184.

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ñas anacronism o se H egel tivesse lam entado, ou, mais sim plesm ente, cons­tatado - visto que ninguém pode saltar fora de seu tem po - que decidida­m ente os gregos não puseram os pés sobre “a terra natal da filosofía” . Ora, ele apenas observa que, nesse pensam ento “pré-subjetivo” , o Aparecer já era concebido à sem elhança da presença, tal com o ela é dada na visão. A n ­tes m esm o que houvesse sido efetuada a divisão do Pensam ento e do Ser, a soberania do Gegenwart e do Gegenstand estava antecipadam ente reconheci­da. M esm o que os gregos sejam assim m ensurados com o pensam ento m oderno centrado no Sujeito, não são descritos com o pré-cartesianos bal­buciantes, e a ausência (ou quase-ausência) da consciência de si está longe de bastar para a caracterização da Grécia hegeliana. A ntes, é preciso ver aí o m om ento em que a estrutura da Representação já é colocada, anterior ao recorte Sujeito-Objeto, prim eiro alicerce do pilar “fenom enológico” sobre o qual repousava toda a filosofia até a Lógica. Em suma, a idade pré-subjetiva

do pensamento f in ito . D esse ponto de vista, a divisão que Heidegger em pres­ta a Hegel (antes de Descartes - após Descartes) dá lugar a outra, mais conform e, sem dúvida, com a m aneira pela qual Hegel se compreendia:

idade da Finitude - idade da Lógica.

M as o que é afinal a Finitude, se sob essa palavra H egel envolve todo o passado pré-hegeliano? A inda terem os de retom ar essa questão. Por ora, vam os responder que há Finitude ali onde o cpoavo revov fornece a m edida do que é o Aparecer; ali onde o sensível - m esm o que ainda esteja consti­tuído com o “objeto” (os gregos), m esm o que ele já seja tom ado com o m en­tiroso (a M etafísica) - exerce um a autoridade, pouco im portando que ela seja clandestina ou não. Q ue o “pensam ento” seja oficialm ente convocado diante de um a Gegenständlichkeit, essa é a form a tom ada pela Finitude para os m odernos, a sua m aneira de com preender o Saber com o espetáculo. Ora, os pensam entos de hoje (que sem dúvida H egel teria cham ado de “fin itos”) crêem que baste, para contornar o pensam ento clássico (deno­m inado “objetivante” ou "representativo”), retornar aquém dos conceitos de Sujeito e de O bjeto. Sem dúvida, não se volta ao arcaico pelo arcaico, ao im ediato pelo im ediato - M erleau-Ponty insistia nisso em suas últim as ano­tações60 - , porém estão persuadidos de que essa volta é necessária para

60 "M as um retorno à pré-ciência não é a m eta. A reconquista do Lebenswelt é a reconquista de um a d im ensão na qual as próprias objetivações da ciência preservam um sentido e devem ser com preendidas com o verdadeiras (o próprio H eidegger o diz: todo Seinsgeschick

é verdadeiro, é parte da Seinsgechichte) - o pré-científico é som ente convite a com preen­der o m etacientífico e este últim o não é não-ciência” (Visible et invisible, p. 236).

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neutralizar o “pensam ento representativo” em toda a sua envergadura e lhe arrancar, por fim, todas as suas máscaras. Hegel ao contrário sustenta- e bastará essa única tese para tornar inatual o seu pensam ento - que não há pior ilusão: é neste mesmo lugar que é preciso buscar as instâncias de desm istificação, e nunca lá longe. Lá, nas profundezas da floresta com o no longínquo Logos grego, nunca se reencontrará m ais que os germ es do mal de que se sofre.

Sobre esse ponto, um a com paração de certos textos de H egel e de H eidegger não conduz forçosam ente a ver em Hegel o herdeiro da M etafí­sica: poderia m ostrar que ele nos põe em presença de outra crítica da M e­tafísica. Gostaríam os de tentar oferecer um exem plo. “Nós, os m odernos", escreve Heidegger, “ quando falam os de presente [gegenwärtige], querem os designar com isso ou o que é agora [das Jetzige] ... ou então pom os o pre­sente em relação com a obstância dos objetos [das Gegenständige] ” .61 Ora, o “presente”, no sentido em que os gregos da idade hom érica o entendiam e traduzirem os preferencialm ente por das Anwesende, nos libera, acrescenta ele, dessa predeterm inação. Vasta estadia para acolher passado e futuro, ele significa “ tudo o que é presença [alles Anwesende], o presentem ente pre­sente e o que é de maneira não presente [das gegenwärtig und das ungegenwärtig

Wesende]” . N esse sentido, o “presente” deixa de ser pré-assinalado, conti­nente disponível no instante em que eu vivo ou para o objeto que m e faz frente; ele “não se encontra com o sim ples fatia entre as duas faces do au­sente” . E caso se continue a traduzir esse “presente” por gegenwärtig, de- ver-se-á despojar essa palavra de suas aderências objetivantes.

O presentem ente presente, os gregos tam bém costum am cham á-lo, de

m aneira precisa, τα παρεόντα; παρά significa “ju n to ", a saber: acontecido jun to

à eclosão. O gegen [contra] em gegenwärtig significa, com o caráter dos έόντα,

algo como: acontecido na estadia, no sítio da eclosão.

A n te essa investigação, pode-se form ular da seguinte m aneira um a questão (se não, é claro, a questão) hegeliana: essa “presença” pré-objetiva que se determ ina por contraste com a “nossa” não preservou, a despeito de todas as precauções, algo de com um com nossa Gegenwärtigkeit moderna? Com preendam os bem o sentido dessa questão. E observem os inicialm ente

61 H eidegger, Holzwege-, trad, fr., Brokmeier, Chemins, p .282.

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que tam bém Hegel criticá o “presente” do pensam ento representativo, fi­xado com o um Jetzt existente no curso do tempo.

O presente finito é o A gora fixado com o ente; é d istinto com o a unidade

concreta, portanto, com o o afirm ativo, do negativo, dos m om entos abstratos

do passado e do futuro; tão-som ente, esse próprio ser não é senão o ser abs­

trato, evanescente no N ada.62

Para evadir-se do pensam ento objetivante do tempo, afastar-se-á, por­tanto, a im agem de um a linha triplam ente cindida. Mas com isso se renun­cia ao “pensam ento finito” de que a objetivação não é senão um a das figu­ras? A o reunir-se a um sentido m ais originário do “presente” , elidindo a “obstância” inclusa no Gegenwart, ali talvez só estejam se afundando ainda mais e recuando até a raiz do erro, no lugar de o desenraizar. No caso, a “presença” (Anwesenheit) dilui nosso presente (Gegenwart) objetivado: ela não procede de m aneira a aboli-lo com o ilusão e o reconduz a um sentido m enos elaborado em vez de inscrevê-lo num sentido mais vasto. Tanto aqui como ali, o retorno ao originário - ou o desvio por ele - , qualquer que seja o seu efeito de expatriação, não perm ite com preender a articulação do originado. Pois o originário - e por esse m otivo é que Hegel desconfia disso - sem pre encerra o preconceito que se propõe a extirpar, num a form a som ente m ais indecisa e m enos palpável. De resto, a em presa é vã: rem ontar ao originá­rio, desterrar o imediato, é propor-se a desatar a mediação, ao passo que se trata de a “re-com preender” . Rem ontar à “presença” no sentido grego, como tenta Heidegger, é voltar a uma “ estadia” que não é mais a “ob-stância” , mas que no entanto indica outra posição em situação, voltar a um Ver que perm anece um Ver, m esm o que “ele não se determ ine a partir do olho, mas a partir do aclaram ento do ser” .63 Decerto, as im agens podem nos expatriar; elas não nos desorientam . Ora, seguram ente não se abandona o que Hegel cham a de Finitude em geral (pensamento objetivante assim com o pensa­m ento arcaico) senão ao renunciar a tais im agens e ao despojar as palavras, sobretudo se perm anecem as m esm as, de todas as alusões ao im ediato de que estavam carregadas. A Presença (Gegenwärtigkeit), no sentido em que Hegel a entende, não é m ais velha do que nossa presença representativa; não é acolhedora de outra maneira: esta é som ente hom ônim a daquela.

62 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 259, IX, p.83.63 H eidegger, Holzwege·, trad. fr., Brokmeier, Chem ins, p .284.

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O presente finito se distingue do presente eterno, pois ele está no m odo

do A go ra e seus m om entos abstratos, com o passado e com o futuro, dele se

distinguem , portanto, com o da unidade concreta; m as a eternidade, com o ela

é o Conceito, contém seus m om entos nela m esm a e sua unidade concreta não

é, portanto, a do A gora, visto que ela é a tranqüila identidade, o ser concreto

com o universal e não o que desaparece no N ada com o vir-a-ser.64

“Presença” literalm ente inim aginável, visto que abole todas as rela­ções de localização (proximidade, vizinhança, distância), pelas quais se pre­ten da re-p resentá-la, deform an d o assim seu “A p a re ce r-se -a -s i” (Sich

Erscheinen) num Aparecer (Erscheinen) como ser-para-o-Outro. Ora, um a vez presentes, não apenas o Espírito ou o Conceito não são apresentáveis por n e­nhum a outra forma, mas é im possível ajustá-los à linguagem da visibilida­de. Suas figuras não evocam a irrupção fora de um a latência, seu desdobra­m ento não é um a “m archa linear” .65 Aceder à sua presença é renunciar a tornar a sua significação espetacular; ao m esm o tempo, com preender o que eles querem plenam ente dizer é recusar-se a deixar que, entre esses con­teúdos de novo gênero e nós que os dizem os, se tensione um a distância para os visar. Deus, por exemplo, só está presente na Com unidade quando o olhar não o procura mais, no sentido próprio e no figurado: sua invisibili­dade assegura que o sentido da Encarnação foi entendido:

64 Enzykl. [Enciclopédia das ciências filosóficas], § 202, VI, p .156. A história será com pre­endida n essa Presença despo jada de toda referência a um a escansão tem poral - d im en­são tal, que o p assad o já não é som ente acessoriam ente passado , m as, em que cada episódio , é retido com o m om ento constitutivo da Idéia: "C om o só tem os de nos haver com a Idéia do Espírito e com o consideram os tudo na h istória som ente com o seu apare­cim ento, ao percorrer o passado , qualquer que se ja su a extensão, só encontram os pre­sente; pois a filosofia, enquanto se ocupa do verdadeiro, só tem de se haver com o eter­nam ente presente. N ada para ela e stá perdido no passado , po is a Idéia é presente, o Espírito é im ortal, isto é, ele não é no m odo do que não-é-mais ou do ainda não: ele é essencialm ente A gora [¿st wesentlich je tz t ] " (P h . Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .120; trad. fr., p .66). O je tz t é evidentem ente m etafórico e não designa o instante pontual, m as tem o inconveniente de d issim ular a atem poralidade da Presença. Ora, na falta de ter prestado atenção a e s sa m utação do conceito de Gegenwärtigkeit, acusou-se H egel de ter- se colocado arbitrariam ente de um ponto de v ista eternitário, do alto do qual se veria a h istória passada se desdobrar em su a verdade. M as o problem a não é de m aneira nenhu­m a saber onde se colocar para conhecer a verdade da h istória passada; é, ao contrário, o de saber com o o Verdadeiro pode ter, aparentem ente, um passado e u m a h istória (H istó­ria da filosofia , XVII, p .35-6.)

65 Fenomenologia do espirito, p. 523; trad. fr., II, p .209; trad. br., II, p. 148.

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o Espírito é o retorno infinito em si, a Subjetividade infinita, não com o represen­

tada [nicht als vorgestellte], mas com o a divindade efetiva, presente [gegenwärtige];

não o Em-si substancial do Pai, não o Verdadeiro nessa form a objetiva do Filho,

mas o subjetivam ente presente e efetivo ... E o Espírito efetivo, Deus habitando

em sua comunidade. Jesus dizia: onde dois ou três estiverem reunidos em meu

nom e, eu estarei no m eio de vós.66

No meio de vós - e não mais diante de vós, como um objeto contem plado ou m esm o com o a lum inosidade que ele irradiava. Para com preender até onde vai a crítica da Representação, é preciso prestar atenção à oposição hegeliana do Espírito e da Luz: ali, o invisível de direito - aqui, o invisível ambíguo, “ matéria im aterial”, meio invisível que, com o meio, torna visível o ente de que, por isso m esm o, oculta o sentido.

A fora a diferença das esferas nas quais as duas m anifestações [a Luz e o

Espírito] se m ostram ativas, há esta diferença: o Espírito m anifesta a si m es­

m o e, tanto no que ele nos oferece com o no que é feito por ele, perm anece em

sua casa; a própria luz da natureza não se torna perceptível, mas, ao contrário,

torna perceptível o que lhe é estranho e exterior; nessa relação, ela sai de si

m esm a, sem dúvida, m as não retorna, com o o Espírito; por isso, ela não ob­

tém a m ais elevada unidade que consiste em estar em sua casa no O u tro .67

66 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .315.67 A esthetik [E stética], XIII, p .63; trad. fr., II, p .193. “A luz é com o o espaço, algo inseparável,

algo im perturbavelm ente ideal; a extensão absolutam ente vazia de determ inação, sem reflexão em si e, n essa m edida, sem interioridade. A luz m anifesta o O utro e e sse M ani­festar form a su a essência. M as em si m esm a é identidade abstrata consigo; é o contrário do “ ser-fora-um -do-outro” da natureza que surge no se io da própria natureza ... [N a visão], com portam o-n os então para com as co isas, por assim dizer, de m aneira só teóri­ca, não ainda prática; pois ao vê-las deixam os que su bsistam em repouso com o algo sendo, e só nos referim os a seu lado ideal. Devido a e ssa independência da v ista quanto à corporeidade propriam ente dita, ela pode cham ar-se o sentido m ais nobre. Por outro lado, é a v ista um sentido m uito im perfeito, porque o corpo, por m eio dela, não vem im ediatam ente a nós com o totalidade espacial, nem com o corpo, m as só com o superfí­cie, só segundo as duas d im ensões da largura e da altura, e é som ente dando-nos diver­so s pontos de v ista sobre o corpo que conseguim os vê-los sucessivam en te em todas as su as d im en sõ es” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 463, X, p .364; trad. br., III, p .97-8). “A luz não é, portanto, consciência de si, porque lhe falta a infinidade do retorno a si; ela é a m anifestação de si, m as não para si m esm a, apenas para o Outro. Falta-lhe, portanto, a unidade concreta consigo que a consciência de si possu i com o ponto infm ito do ser- para-si; e, devido a e sse fato, a luz é som ente a m anifestação da N atureza, não do Esp íri­to” (Ibidem, § 275; Z., IX, p .158).

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A seguinte questão bem que poderia orientar em direção à analítica hegeliana da Finitude: por que, desde os gregos, a Luz foi a condição m eta­fórica do Saber? Por que o Saber foi traído com o “ conhecim ento” ?

O que significa, perguntávam os, a reabilitação do cristianism o e o fato de que ele tenha se tornado a chave da interpretação da Grécia? Esse retor­no se tornou necessário pela tom ada de consciência da “ im ediatez” do es­pírito grego. E esta últim a nos pareceu inseparável da crítica das ontologias que, de um a m aneira ou de outra - teorias representativas do conhecim en­to ou recuo rum o ao im ediato em todas as suas formas - , tom ou o visível como referência; com isso, ela nos conduz a encarar um discurso-da-pre- sença, tão novo em relação a todos os discursos passados, que estes apare­cerão com o enraizados no imaginário, maculados de “Finitude” . Com preen­de-se então por que todas as obras de Hegel que descrevem um a Bildung6*

seguem um m esm o traçado: o do declínio do im aginário e das formas da Representação. Todas dizem , no ângulo escolhido, a passagem da im agina­ção do sentido à sua Presença. E só isso já bastaria para pôr sob suspeita o pseudo- “historicism o” hegeliano. Trata-se, em suas curvas de decantação, de arrancar o sentido a todas as suas figurações, e não de recuperar um bem de que se teria sido despossuído. Certam ente, à Fenomenología, pode- se conferir o andam ento de um a epopéia da consciência, m as não se com ­preenderá por que todas as figuras da consciência devem finalm ente ser de-

68 A Bildung hegeliana não design a tanto um encam inham ento quanto a efetivação do C on­ceito que se d á explicitam ente com o a articulação da “realidade” que parecia lhe ser oposta: “D enom inam os ju stam en te cultura o C onceito aplicado na realidade, u m a vez que ele não aparece m ais em su a pura abstração, m as unifica com o conteúdo m últiplo de toda represen tação” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .8). D o lado do indi­víduo, a Bildung terá, portanto, o andam ento de u m a ascese; ela é m enos m arcada por u m a aq u isição do que pe la renúncia ao represen tativo : cu ltivar-se é m orrer p ara a im ediatez em todas as su as form as. “Q uanto m ais culto é um hom em , tanto m ais vive ele, não na intuição im ediata, m as no m eio de todas as su as intuições e ao m esm o tem ­po n as rem em orações; adem ais, vê poucas co isas totalm ente novas; para ele, o conteúdo substancial da m aioria das co isas novas é, antes, algo já bem conhecido. Igualm ente, um hom em culto se contenta principalm ente com im agens, e raras vezes sente a necessida­de da intuição im ediata" (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 454, Z. X , p .334; trad. br., III, p .2 3 9 ). “Q uanto m ais culto é um hom em , tanto m enos ressalta em seu com porta­m ento a personalidade e, portanto, a contingência” (Ibidem, § 395, X , p .88; trad. br., III, p .68). Cf. Fenomenología do espírito, p .578-9; trad. fr., II, p.55-7; trad. br., II, p .39.

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voradas, nem por que o desaparecido m undo ético vale m ais que a Cidade no seu zénite, nem o apaziguam ento sem m elancolia que se eleva das obras tornadas vestigios. Ora, esse gosto de morte, essa soberania da m em oração- Leitmotive que talvez M allarmé tenha herdado de H egel69 - não são m oro­sas opiniões preconcebidas, mas as conseqüências da reavaliação do senti­do. O sentido não se aloja mais entre uma presença representada (o ente), um foco representante (o sujeito) e um a instancia apresentante. Nada do que se via, nem a tom ada da vista nem o horizonte da visão, deixa pressentir o que

seria o sentido assim que ele tiver advindo, pois seu advento não se encon­tra sob a m edida de um a nova regulação, ou de uma nova “atitude” , mas de um novo discurso. Pode-se exprim ir essa convicção de outra maneira. Re­

presentarse algo é renunciar à sua presença, dobrar im prudentem ente o que eu pretendo conhecer com um a espessura que, justam ente, o furta ao Sa­ber. E, por exem plo, a situação do Espírito consciente de si na Religião. Consciente de si, isto é, à distância de si, e, por interm édio desse volteio, renegando o Saber que acabava de deixar transparecer (para nós).

Enquanto o Espírito representa a si m esm o na Religião, decerto ele é

consciência, e a efetividade inclusa na religião é a figura e a roupagem [das

K le id ] de sua representação. Mas o pleno direito da efetividade não é respeita­

do nessa representação, seu direito de não ser som ente um a roupagem , mas

ser-aí livre e independente. Inversam ente, não estando consum ada em si m es­

ma, essa efetividade está n um a figura d eterm in a d a que não atinge o que ela

deve apresentar [d ie n ic h t d a sjen ig e erreich t, w as sie d a rstellen s o ll], isto é, o espí­

rito consciente de si m esm o. Para que a figura do espírito possa exprim i-lo,

ela n ã o d everia ser n a d a m ais que ele . . . 70

Porém um a figura que não fosse “nada m ais” do que aquilo que ela anuncia nada mais teria a “figurar” : redobraria o conteúdo, mas não se pa­receria com ele - e o "em sua casa” (bei-sich) hegeliano já não deve sequer ser com preendido com o “o mais próxim o de si” . Há figuras mais aproxi-

69 “D aí o gosto de M allarm é por tudo o que ainda é virtual, m as tam bém por tudo o que já e stá se realizando e desaparecendo; su a predileção pelas coisas emurchecidas, as decrepitudes, por tudo o que se resume nesta palavra: queda. E sse am or não é devido a um gosto natural­m ente ‘decadente’ ou ‘m órbido’ . Deve-se à repugnância do poeta em captar as co isas em su a atualidade, no instante em que nada m ais são do que aquilo que são, isto é, inteira­m ente num único lado do espelho” (G. Poulet, Distance intérieure, p .313).

70 Fenomenología do espírito, p .520; trad. fr., II, p .206; trad. br., II, p .145.

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m ativas, com o há semelhanças m ais vivas: com o poderia haver, ao pé da letra, figuras mais verdadeiras que outras? Quando, algumas páginas adian­te, H egel em prega a expressão figura verdadeira, logo ele se corrige: que n is­so haja “verdade” acarreta que o próprio aparelho da figuração ou da repre­sentação seja suplantado.

Se decerto o espírito chega [na religião] à sua figura verdadeira, a própria

figura [eben die Cestalt selbst] e a representação ainda constituem o lado não

suplantado, a partir do qual o espírito deve passar ao conceito, a fim de nele

resolver inteiram ente a form a da objetividade, nele que encerra dentro de si

igualm ente o contrário de si.71

A o tornar-se a sua própria figura, o sentido anula a própria estrutura da figuração. Não há portanto com prom isso entre o sentido e o visível: a eleva­ção daquele é o apagamento deste, e a linguagem da plena luz do dia, de que se serve a m etafísica do conhecim ento, é, de ponta a ponta, contra-senso. Sim, de ponta a ponta: ela insinua incansavelm ente que o Verdadeiro tem de ser

atingido e que está ao alcance de um a melhor representação. Em Descartes, encontra-se m esm o de m aneira m uito explícita a teoria dessa ilusão. D es­cartes pensa que há m elhor representação de Deus perante os que “tratam de abarcá-lo inteiram ente ... e o encaram com o que de longe” (Primeiras

respostas). Basta encará-lo mais de perto, e a clareza da intelecção compensará o fracasso - inevitável, nesse caso - da compreensão. A m etafísica do co­nhecim ento não exige mais do que isso: “Para mim, todas as vezes em que disse que D eus pode ser conhecido clara e distintam ente, nunca entendi falar senão desse conhecim ento finito e acomodado à pequena capacidade de nossos espíritos” (Ibidem). Conhecer é, portanto, dim inuir a distância. Saber será recusar acomodar-se com ela e subverter as figuras (no caso, a idéia de Deus) que a isso se acomodavam, não mais se resignar ao fato de que o sentido seja sim plesm ente apresentável. Um a significação presente não será mais um a significação enfim oferecida; ao contrário, ela dirá a vaidade de toda abordagem e de toda apresentação. Uma análise do declínio do im a­ginário, na Estética, perm itirá compreendê-la melhor.

A Arte, segundo Hegel, com enta ou se esforça em com entar a defini­ção da Erscheinung: “realidade existente que não tem im ediatam ente o seu

71 Ibidem , p .525; trad, fr., II, p .211; trad, br., II, p .149.

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ser nela mesma, mas que, em seu ser-aí, é ao m esm o tem po posta negati­vam ente” .72 A Aparência produzida pela arte reconduz o sensível, portan­to, estritam ente “ aos lim ites no interior dos quais o exterior pode ser a m anifestação da livre espiritualidade” - e nada mais, tanto quanto possí­vel; ela não deve sim plesm ente abrir uma passagem para o sentido, mas torná-lo visível “ em todos os pontos de sua superfície” .73 Essa exigência fornece à arte a sua especificidade. Ela lhe proíbe, por exem plo, ser pura e sim ples reprodução; ela lhe ordena “deixar de lado o que perm anecesse sim plesm ente exterior e indiferente para a expressão do conteúdo” .74 Esse afastam ento de tudo o que não explicita o conteúdo caracteriza a arte clás­sica, mas já Homero, quando fala da testa elevada e das pernas robustas de Aquiles, evita descrever, “ponto por ponto, essas partes na singularida­de de sua ex istên cia rea l” .75 O conteúdo da A parên cia é, portanto, a Existenz enquanto ela perdeu expressam ente a sua naturalidade. E essa futilização do que nela se oferece é que a torna atraente. O exem plo do rouxinol kantiano é contestável: no "natural” , o que m e agrada é m enos a ilusão que ele m e proporciona do que a ilusão que ele é em si m esm o .7b O conteúdo-significante a que o espectador visa na arte aparentem ente mais realista (a pintura holandesa) está inteiram ente infuso na m anifestação oferecida e, a partir daí, explicitamente esvaziado de sua cotidianidade. O conteúdo, em sentido figurado, já não está ali, em suma, senão para indi­car a anulação de todo afastam ento entre ele e seu figurativo; a lã e a seda proclam am que nelas nada mais há além da cor e da som bra - por isso a Aparência estética antecipa, exatam ente, a linguagem especulativa: o sen­tido reuniu-se a seu signo. Redobrado em sua presença, o ex- “objeto exis­tente” diz silenciosam ente a nulidade, isto é, a verdade da Existenz.77 Tal é

72 A esthetik [E stética], XII, p .173; trad. fr., I, p .154.73 Ibidem , XII, p .217 e p .213; trad. fr., I, p .193 e 190.74 Ibidem, XII, p .227; trad. fr., I, p .201.75 Ibidem, XII, p .230; trad. fr., I, p .204. Cf. XIII, p .75; trad. fr., II, p .205.76 De certa m aneira, Hegel reencontra a desqualificação kantiana da Beleza artística, p o ­

rém, diferentem ente de Kant, evita subordinar esta ú ltim a à Beleza natural. E que o prazer estético, aqui e ali, é ju lgado de m aneira inversa. Para Kant, o prazer proporcio­nado por um a obra é necessariam ente im puro: o ju ízo que eu pronuncio sobre ela dá conta, aproxim ada e forçosam ente, da finalidade intencional que guiou su a produção. Para Hegel, o defeito da obra de arte reside, ao contrário, em servir de anteparo entre m im e seu produtor, e m ascarar, de um m odo ou de outro, o trabalho ali inscrito: “Os ob jetos não nos agradam porque são tão naturais, m as porque são fe ito s de m aneira tão natural [sondem weil sie so natürlich gemacht sind.]’ ’ (XIII, p .226; trad. fr., I, p .201).

77 A terceira Crítica havia elaborado o conceito de um “A parecer" (Schein) que não eratravestism o da verdade, não m entira, m as descuido: é o selbständige Schein de que fala

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a linha “positiva” e otim ista na qual se pode, num a primeira leitura, orde­nar toda a Estética.

Entretanto se a Existenz se consum iu em Aparência, ela própria não é inteiram ente essa verdade. Ela a “d iz”, ela a mostra, mas, à maneira pela qual as almas piedosas dizem ou m ostram a vaidade da vida: perm anecendo em vida. Decerto, a inconsistência da Existenz está inscrita expressam ente na Aparência; m as nesta, precisamente, ela só está inscrita. O imediato, sem dúvida, nela se nega, porém, só se nega imediatamente. Entendam os com isso que ele persiste em se negar, que não cessa de morrer e que as obras nada mais são do que essa interminável agonia. A í estam os nós então na outra corrente - “negativa", desta vez - da Estética. À idealização, em que se insis­tia há pouco, responde a necessária incom pletude da idealização. O poeta, dizia-se, não fotografa o real, mas faz a triagem de seus porm enores. Certa­mente. Porém, por m eio desse crivo, ele só faz lim itar a profusão, que se tornaria entediante, do contingente; ao descrever o imediato, evita reprodu­zi-lo, mas o recolhe. Se o objeto é unificado num a aparência, essa unidade rege som ente a dispersão da Existenz, sem a reabsorver. Com o a arte pode­ria ir mais longe? Mereceria ela ainda o seu nome, se não fosse assombrada pela materialidade que ela transfigura? Na escultura, “o Espírito não se cap­ta senão ao se exprimir ainda no corpóreo, ... a individualidade espiritual é, portanto, aparência no elem ento m aterial” .78 Na própria pintura, “a magia das cores sempre permanece [bleibt immer noch] de m odo espacial; é um a aparência dispersa-em-exterioridade [auszereinanderseiende] e, com isso, ain­da subsistente” .79 Q ue contem plem as obras tanto quanto quiserem: “ isso não serve para nada [es hilft nichts]: essas obras de arte são e permanecem objetos que subsistem para si” , e, perante elas, m antemos “ a relação de in­tuição” .80 Som ente na poesia é que a exteriorização sensível é “reduzida ao

Schiller n as Cartas sobre a educação estética (carta X X V I), que não se tem o direito de m edir pela verdade. R esta que, para Kant e para Schiller, e sse Schein, liberado de toda referência ao ser, não deixa de se r op osto à representação verdadeira (cf. carta de Kant a Reinhold de 1 9 /5 /1 7 8 9 ), e a expressão “verdade estética” é apenas m etafórica. Para Hegel,o Erscheinung é a verdade da E xistenz. Q ue o artista selecione os porm enores ou que ele pareça im itar de perto a natureza, “a arte tem por vocação com preender e apresentar, como verdadeiro, o ser-aí em seu fenóm eno” ... (XII, p .227; trad. fr., I, p .202). J á não se d irá sequer, portanto, que a representação estética é mais verdadeira que a natureza: nela, a verdade da natureza se diz, isto é, a verdade do conteúdo que o invólucro natural só deixava entrever.

78 A esthetik [E stética], XIII, p .354; trad. fr., III, 1, p .101.79 Ibidem, XIV, p .127; trad. fr., III, 1, p .295.80 Ibidem , XIV, p. 128; trad. fr., III, 1, p .296-7.

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m ínimo, se não a zero” , e os signos perdem enfim a sua materialidade. Mas então já não se saiu do dom ínio estético? “A espiritualidade é justam ente responsável por aquilo que falta à poesia” , e esta últim a “com eça a não mais corresponder ao conceito original da arte” .81 Quando, para todo suporte, a Aparência estética m antém um “ simples signo” - ao passo que a arte “não pode se servir som ente de simples signos” 82 -, ela é tão bem devolvida à sua verdade que a arte se tornou tão im possível quanto inútil. Impossível: ela já não tem à sua disposição matéria para mostrar a nulidade do imediato. Inú­til: para que se demorar m ostrando ou sugerindo a nulidade do imediato, quando o im ediato se suprime efetivamente?

Tal é, no entanto, segundo Hegel, o com bate de retaguarda que a poe­sia em preende. Ela prepara e atrasa, sim ultaneamente, o advento do Espí- rito. Em presa ingrata que só perm anece com o “ estética” ao cegar-se para aquilo que ela anuncia objetivam ente: a m orte do elem ento sensível e a suprem acia do “ sim ples signo” . Por isso, o poeta e o esteta insistirão no caráter intraduzível do texto. Resta que ele pode ser traduzido tão bem com o m al.83 A palavra poética, dirão ainda, não está desprovida de todo elem ento estético, visto que está confiada à sonoridade da voz: o poem a deve ser recitado. Resta que ele pode igualm ente ser lido em silêncio e não mais m anter então outra objetividade estética senão a dos signos escritos - haverá de se convir, derrisória.84 Basta lerm os um poem a sem o m urm urar para que “ a A rte pertença ao passado” . A repartição, pois, é nítida: ali, sig­nos im pressos, “visibilidade para o olho” ; aqui, a inteligibilidade. A aisthesis

passou para o nível de sim ples ocasião: a miragem estética se dissipou, sua Aparência é denunciada com o um a forma representativa de que o Espírito deve acabar se liberando.

Vim os no entanto que, nessa Aparência, o significado chegava a se in­vestir integralm ente no signo. Por que então a Aparência constituía, defi­nitivam ente, um bloqueio? E a que fazia ela obstrução? A Aparência era a existência que nela trazia a sua negação, que se expunha com o existência negada. Mas a contem plação estética atesta que esse sacrifício é equívoco: é um a bem -aventurança (especulativam ente falando) não haver m ais im e­diato - e nisso é que convergem estético e especulativo; é bem -aventurança ainda maior (esteticam ente falando) que, nas obras, o im ediato não cesse de

81 Ibidem , XIV, p .233; trad, fr., III, 2, p. 17-8.82 Ibidem, XIV, p .227; trad, fr., III, 2, p .13. Cf. tam bém XIII, p .272; trad, fr., Ill, 1, p .31.83 Ibidem , XIV, p .233 ; trad, fr., III, 2, p.17-8.84 Ibidem , XIV, p .320-1; trad, fr., III, 2, p .88.

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se suprim ir - e nisso é que estético e especulativo divergem . Para m edir essa divergência e revelar em que, precisam ente, a Aparência estética é um obstáculo, basta comparar sinal estético e signo lingüístico. Neles, não é exatam ente da m esm a m aneira que a im ediatez se suprime. N o primeiro, o ente im ediato se nega: ele e aí para ser suprim ido (idealizado). N o segun­do, o ente im ediato se nega igualm ente: ele é pura e sim plesm ente suprimi­

do. 85 A Aparência é, sem dúvida, a existência anulada, mas não até o ponto

85 Aqui é preciso distinguir, é verdade, a su p ressão abstrata e a su p ressão especulativa da palavra. 1 ) C om o sonoridade, a palavra é apagada no curso do tem po: “ verba volant".

E ssa negação ainda é abstrata. 2) C om o signo lingüístico, a su pressão da palavra - traço m ateria l - é eq u iv a len te à co m p ree n são da s ig n ificação , à tran sfigu ração de su a exterioridade em interioridade. H egel faz expressam ente tal distinção: “A palavra en­quanto sonora desaparece no tempo; este assim se m ostra na palavra com o negatividade abstrata, is to é, ap en as aniquilante. M as a n egativ idade verdadeira, concreta do signo lingüístico é a inteligência, porque, por ela, o signo lingüístico é m udado de algo exterior

em algo interior, e conservado n essa form a m odificada. A ssim as palavras se tornam um ser-aí vivificante pelo pensam ento. E sse ser-aí é absolutam ente necessário a n o sso s pen ­sam en tos. Só sabem os de n ossos pensam entos, só tem os pen sam entos determ inados, efetivos, quando lhes dam os a form a da objetividade, do ser-distinto de n o ssa interioridade;

é, na verdade, com o um a exterioridade tal que ao m esm o tem po leva a m arca da su p re­m a interioridade. Um exterior tão interior é só o som articulado, a palavra. Q uerer pen sar sem palavras, com o M esm er um a vez tentou, aparece com o um a desrazão, que tinha levado esse hom em , segundo afirm ação sua, quase à m ania delirante. M as é tam bém ridículo ver, no fato de estar o pen sam ento ligado à palavra, um a deficiência do p en sa­m ento e um a desgraça; pois, em bora se pense que o inexprimível se ja ju stam en te o m ais excelente, e s sa suposição, nutrida pela vaidade, não tem o m ínim o fundam ento; porque o inexprim ível, na verdade, é som ente algo turvo, ferm entante, que só ganha clareza quando consegue chegar à palavra. A palavra, portanto, dá ao pen sam ento seu m ais d ig­no e m ais verdadeiro ser-aí” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 462, Z. X, p .354-5; trad. br., III, p .255-6). O signo lingüístico é, portanto, o único Dasein que, de ponta a ponta, se ja su a su pressão , ao passo que o som está aí inicialm ente e se apaga em seguida. A com paração das posições de Hegel e de H um boldt exigiria um estudo que nem sequer pretendem os esboçar aqui. N otem os som ente duas coisas.1) A condenação de um pensam ento-sem -palavras é com um a am bos os autores: “ É a atividade subjetiva que form a um objeto no pensam ento. Pois nenhum gênero de repre­sentações poderia ser considerado a contem plação sim plesm ente passiv a de um objeto já dado. A atividade dos sentidos deve se ligar sinteticam ente à ação interna do espírito; a representação se destaca d essa ligação - ela se torna objeto, o p osta à força subjetiva, e, um a vez percebida, retorna novam ente a esta últim a. Para tanto, a língua ê indispensável. Pois é nela que o elã espiritual abre cam inho pelos lábios e seu produto volta a nosso próprio ouvido. A representação é, portanto, colocada em um a objetividade real, sem que por isso se furte à objetividade. D isto só a linguagem é capaz: sem esse deslocam en­to sem pre sub-reptício, para o qual a linguagem colabora, que precede o retorno da ob­jetiv idade ao su jeito , a form ação do conceito seria im possível e, com isso , todo verda­deiro pensam ento. Portanto, m esm o que se faça abstração da com unicação inter-hum ana, a linguagem é um a condição necessária do pensam ento do indivíduo na m ais com pleta solidão ... A força-de-pensam ento carece de algo que se lhe assem elhe e seja, no entan­to, diferente dela. Ela é incitada por aquilo que se lhe assem elh a - por aquilo que é

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em que essa anulação se tornaria palavra. E tal inferioridade com eça a se tornar sensível quando a Aparência se amiúda em sonoridade e em seguida em palavra-poética. N ão se pode então evitar ju lgar a arte com o um a paralinguagem , e, ao m esm o tempo, ela aparece como um a infralinguagem. A ssim a música, anuladora da espacialidade e de todo suporte representa­do, nos obriga a apreciar a arte com o m eio de com unicação. Ora, devido ao fato de ela tratar o som com o um elem ento material, ela ainda é som ente um ruído da com unicação: “Decerto, os sons apresentam um a certa corres­pondência com os m ovim entos de nossa alma, mas tudo se lim ita a uma certa sim patia A partir do m om ento em que essa defasagem entre o aparecer e o dizer se tornou evidente, a arte é cada vez m ais apenas uma tentativa desesperada de m anter a materialidade do figurativo, ou, ainda, de salvaguardar a necessidade de signos que sejam som ente os índices da idealização e não, com o a palavra, a própria idealização. Cada período, cada forma da arte pode, portanto, ser descrita com o um distanciam ento espe­cífico entre o aparecer e o dizer - cada forma da poesia, pelo que ela furta ainda à prosa do Entendim ento. A essa altura, o sentido, irredutivelm ente, é mostrado como presente: ele não está, portanto, presente. E por isso que, na Estética, a prosa do Entendim ento assum e a m esm a função liberadora que outrora, na G récia de Anaxágoras, quando fez que se dissolvessem , diz

diferente dela, ela adquire um a pedra de toque da essencialidade de su a s produções internas. M esm o que o fundam ento do conhecim ento da verdade, do incondicionalm en­te firme não resida senão na interioridade do hom em , seu elã espiritual sem pre está exposto ao perigo da ilu são" (“Ueber die Verschiedenheit des m enschlichen Sprachbaues” . In: Schriften zu r Sprach-philosophie [E scritos sobre a filosofia da linguagem ]. Ed. Cotta, p .428-9).2) H um boldt in siste na sem elhança do Geist e da m atéria (im aterial) da linguagem : n esta ú ltim a, o espírito encontra o m ais apropriado instrum ento para su a consum ação. E e ste tam bém parece um traço com um com Hegel. Porém a linguagem - e e s sa é a d iferença - perm anece fora do pen sam ento (etwas ausser ihm Liegendes); instrum ento de um pen sam en to que, sem ele, perm aneceria interior “ e, por a ssim dizer, p a ssa ria sem traços [spurlos vorübergehend]’ ’ (Ibidem, p .426); ele preserva u m a esp essu ra estética e não se suprim e. O aju ste do pen sam ento , da voz, da audição, H um boldt o atribui a um a priori antropológico , “u m a d isposição da natureza hum ana original e já não pode ser explicada". Então, estam os m uito longe de Hegel, para quem a linguagem é o elemento

que não figura (e sobretudo não o instrum ento, m esm o perfeitam ente a ju stado , do pen ­sam en to), um invólucro tão transparente que deixa de ser tal. N ão há, para Hegel, ser d a linguagem : há um conteúdo integral e incessan tem ente suprim ido; ele reflete a op e­ração de supressão-do-con teúdo que é o “pen sam en to” . A ssim acha-se suprim ido o pro­b lem a clássico da relação do sentido com o signo, da idéia com o m aterial im aginário (acerca d e sse pon to , cf. G inette D reyfus, Fondem ent du langage dans la Philosophie de

Malebranche, A tas .do XIII C ongrès des Soc. Ph. de Langue française; 1966, La Baconnière).

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Hegel, as representações poético-religiosas “cuja perda não é para se la­m entar” .86 O que fascina nunca é para se lamentar: é sem pre a marca de um atraso em relação ao que poderia ser dito e rapidamente dito, sempre um signo de imaturidade. Eis-nos tão longe do “helenism o" de Frankfurt que estam os bem próxim os da frase em que M arx vincula, “ indissoluvel­m ente”, o encanto da arte grega à insuficiente m aturidade da Grécia. A arte era um a linguagem titubeante. E preciso resignar-se com isso e não acreditar que nossa prosa elíptica deixe escapar algo de “profundo” , que som ente a arte saberia exprimir. Goethe form ula com m uita precisão essa ilusão que a Estética entende dissipar:

A s letras do alfabeto podem ser um a bela co isa e, no entanto, não bas­

tam para exprim ir os sons; quanto aos sons, não poderíam os passar sem eles

e, entretanto, m uito é preciso para que consigam fornecer o sentido propria­

m ente dito; acabam os nos atendo às letras e aos sons, e não avançam os m ais

do que se nada disso tivéssem os; o que conseguim os com unicar, o que pode

nos ser transm itido, nunca é apenas a parte m ais corrente, e que não vale a

pen a.87

Se G oethe tivesse razão, a linguagem dissim ularia o inefável. Ora, é o inverso que é verdadeiro. A linguagem é sim plesm ente redutora da presen­

ça representativa. Ela nos ensina que a apresentação estética nada tem de indispensável em si, que é falso acreditar que um a inflexão sonora seja às vezes o único m eio de expressão de que dispom os. Da m esm a maneira, a escrita fonética, ao suplantar os hieróglifos, traz a prova de que os signos podem ser bem m enos que figuras extensas que ainda seria preciso percor­rer com o olhar. N em os acentos da voz, nem as m odulações do espaço são condições verdadeiram ente im prescritíveis da presença do sentido. N o m á­ximo, “figuras” no sentido pascaliano, acessos sem dúvida, mas sobretudo obstáculos à Presença. Essa convicção de Hegel é da m aior im portância no que concerne ao estatuto que cabe dar à linguagem especulativa. Com efei­to, a crítica da linguagem que sustenta esta últim a é bem diferente das outras (platônica, cartesiana, bergsoniana...). O filósofo reprova habitual­m ente a inaptidão da linguagem para fazer ver, sua im potência em rivalizar com a intuitus mentis: dizer o inefável é então o ponto de fuga de seu pró-

86 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .404-5.87 J. W. Goethe. Années Voyage de W. M eister [Anos de viagem de W ilhem M eister], Trad.

Grothuysen, Ed. Plêiade, p .985.

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prio discurso. A o contrário, Hegel reprova o fato de a linguagem de Enten­dim ento ser ainda representativa, estar ainda dem asiado calcada na visão e, assim, engendrar a m iragem do inefável, a louca nostalgia de um a “língua dos deuses", de que Kant zombava, m as que, de direito, ele não recusava.O discurso especulativo põe fim a esses sonhos e se proíbe ser a tradução im perfeita de um discurso mudo. O filósofo, em vez de se desculpar por estar condenado a dizer e não poder dizer melhor, convida seu réii.ói' lecal- ::;:ante a nâcTfflitly SE obtíliiliU em dlüéi liiál" ’ ■

É que, portanto, não se está quite com a Representação por haver pas­sado da Aparência estética à linguagem . Da falsa presença estética, nada m ais resta agora senão traços sobre o papel, ou palavras em itidas por uma voz neutra. Mas talvez isso seja ainda dem asiado para banir toda ilusão. A Linguagem, com o instrum ento representativo, não perdeu todo seu peso; os signos alfabéticos ainda retêm algo da inércia dos sinais estéticos. A prosa do Entendim ento não é, portanto, suficientem ente lím pida (longe de ser dem asiado límpida, com o disso a acusam os estetas). Ela nos libera do imaginário, mas não da letra: a presença do sentido ainda é essencialmen­

te m ediada por signos, portanto ainda a distância. Se no elem ento estético o Espírito jam ais esteve certam ente “ em sua casa” , nela não se encontra ne­cessariam ente quando se está no elem ento da linguagem . A qui já não há dissim ulação do sentido, mas ainda há sinalização e não presença plena. Seria possível dizer que a linguagem (pré-especulativa) desem penha, em Hegel, o m esm o papel que a Igreja na doutrina pascaliana dos Figurativos: 'N o s judeus, a verdade era som ente o figurado; no céu, ela é descoberta. X a Igreja, ela está encoberta e reconhecida pela relação com a figura’’ (fr.

674). Essa “relação com a figura" traduz bastante bem tal bloqueio da cir­culação do sentido que H ègel denom ina Representação. Tentarem os ver, a partir de agora, com o a especulação, lentamente, desm onta as armadilhas dessa Representação no sentido amplo. A té aqui, seguim os Hegel em sua crí­tica da representação muda, a poesia sendo apenas, afinal, a linguagem ain­da redobrada em silêncio. Só com entam os, portanto, a m editação da Feno­m enología sobre a estátua de Mnon.

Falta-lhe ainda exprim ir nela m esm a que encerra em si um a significação

interior, falta-lhe a linguagem , o elem ento no qual está presente o próprio

sentido que a preenche [das Element, worin der erfüllende Sinn selbst vorhanden

zst] ... Por isso a obra, em bora esteja inteiram ente purificada da anim alidade e

nela já não traga senão a figura da consciência de si, é a figura ainda m uda que

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carece do raio do sol nascente para ter um som, o qual, engendrado pela luz,

ainda é som ente ressonância, e não linguagem ... 88

Doravante, é a própria linguagem que vai fazer obstáculo à Presença. Para retirar esse obstáculo, não é preciso nada menos que o Saber hegeliano.

88 Fenomenología do espirito, p .533; trad. fr., II, p .220; trad. br., II, p. 156. Cf. Ph. Gesch. [F ilo­sofía da h istoria], XI, p .265.

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I I

AS ASTÚCIAS DA REPRESENTAÇÃO

i

A crítica do im aginário ainda não perm ite determ inar a essência do que Hegel entende por “ Representação” . Pois ele não se contenta em recusar os direitos da intuição sensível e do pensam ento que por ela se regula; tam ­bém as rebaixa ao nivel de figuras sim plesm ente secundárias da “ Represen­tação” . A ssim se verá que uma Religião estética (a religião grega) é definiti­vam ente m enos “representativa” que uma religião sem imagens (o judaísm o). Para com preender isso, voltem os inicialm ente à m utação que se opera na crítica do cristianism o entre o período de Frankfurt e a m aturidade.

Em Frankfurt, Hegel reprovava o cristianism o por ter visto um a difi­culdade intransponível na reconciliação do sujeito im ediato e da objetivida­de. Tal com o outrora a Cidade grega, a verdadeira Religião, dizia, deveria ser capaz de superar a cisão que se abriu entre o hom em e o “Positivo” . Som en­te quando essa esperança se m ostra vã é que parece se im por a escolha entre a fuga para fora da vida e o reino opressivo da Lei. E assim que o cristianis­mo o entende; por isso, prega a renúncia a este m undo e cinde o cidadão do

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( j l ^ ^ d L O y S l x ^ e ·— -

7 0 G É R A R D L E B R UN

crente.1 Toma como inconciliáveis a fé em Deus e a vida na cidade, o ilimita­do e a limitação.

A re la ç ã o c o m o m u n d o d e v ia to rn a r -se n e c e s s a r ia m e n te o te m o r d e su b -

m e te r- s e a se u c o n ta to , te m o r d e to d a fo rm a d a v id a , p o r q u e c a d a q u a l, e n q u a n ­

to te m u m a f ig u ra e r e p r e se n ta a p e n a s u m a sp e c to , tra i s u a im p e r fe iç ã o . . . 2

Sempre obsedado pela desproporção das realidades em presença, o cris­tão acaba forjando uma síntese aberrante: é o indivíduo Jesus, em sua con­tingência, que ele diviniza,3 e essa “união m onstruosa” de Deus e do C ru ­cificado acusa ainda m elhor a distância, longe de a anular. Daí nascem as figuras desse com prom isso neurótico, denom inado “positividade” , “ sobre- vida m uito pagã” ,4 insuportável alternância entre a certeza de que Jesus já não é e a im possível resignação perante a sua ausência. Doravante o divino está livre de toda encarnação, mas outrora ele tinha um rosto, e essa lem ­brança perm anece lancinante nos prim eiros cristãos. Assim , ocorre sem ­pre o m esm o com o cristianismo: a representação sem pre é julgada como indigna do representado. Do pão e do vinho, resta apenas um sabor na boca e o sentim ento do sagrado se duplica, por isso, com um lam ento. N e­nhum culto é m enos próprio para “representar o irrepresentável” . Em suma, Hegel deplora que o cristianism o não tenha consentido em adm itir uma solução im aginativa das oposições.

O e n te n d im e n to e o s e n t im e n to se c o n tr a d iz e m ; n a d a p o d e a im a g in a ç ã o

n a q u a l a m b o s e x is te m e se a c h a m se p a r a d o s ; e la n ã o p o d e p r o d u z ir n e n h u m a

f ig u ra e m q u e a in tu iç ã o e o s e n t im e n to s e u n ir ia m .5

Mas isso não m ostra antes que o cristianism o, tal como descrito em Frankfurt, tinha ao m enos consciência de uma dificuldade cujo sentim ento ainda não teria aflorado em Hegel? Ele se recusava a pensar conjuntam en- te termos que lhe pareciam exclusivos, a conferir-lhes proporção conser­vando a idéia cio sua desproporção. E H ege l pré-dialético, reprovava ao cristianism o tropeçar em um obstáculo cuja natureza ele próprio não pen-

1 Cf. Jugendgesch. [Escritos de juventude], Dilthey, p .183-5.2 Esprit [O espírito do cristian ism o e seu destino], Nõhl, p .110.3 Ibidem , p. 117.4 A expressão é de Proust em A lbertine disparue.

5 Esprit [O esp írito do cristian ism o e seu destino], trad. fr., p .74; Dilthey, p .183.

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A P AC I ENC I A DO C O N C E I T O ( ll

sava em analisar. Ora, a dialética nascerá do exam e desse obstáculo. Häring sublinha bem que'ela nunca visou a um a conciliação a qualquer preço, mas antes respondeu a um a desconfiança perante as conciliações apressadas: “N inguém m ais que Hegel se proibiu tal unificação vazia, tal universalida­de vazia” .6 N inguém tam pouco se vangloriou por tornar concebível o in­concebível que outros fracassaram em representar. Solger apresenta como “ inconcebível” a conciliação da filosofia e da experiência da Revelação? Decerto H egel evita responder-lhe que conseguiu forçar essa inconceptua- lidade: é a própria idéia de “ inconceptualidade” que ele critica. “Inconcep- tualidade” : eis um a dessas palavras que se em pregam “ sem conceito, ao 'Xs^

acaso[õftne allen Begriff, in’s WildeJ” :

Q u e a experiência de um a presença divina sem pre seja relegada para fora

do conhecer, eis a única inconceptualidade; com o foi m ostrado, [o conhecer]

contém nele m esm o o que deve ser diferente dele. Ora, a conceptualidade e o

conceber efetivo nada m ais são, justam ente, que essa reflexão que se fez, a

saber, que a unidade da experiência e do conhecer está contida e m esm o ex­

pressa no pensam ento do Eterno, enquanto ele perm anece uno e idêntico nas

o p osiçõ es.7

Não ocorria o m esm o em Frankfurt: com o o Begreifen era originário do pensam ento separador e da positividade,8 não havia um a terceira via entre a fusão im aginativa e a m orna justaposição dos conceitos. De um a coisa não se duvidava: que o pensam ento racional equivalesse ao pensam ento separador. Por isso ele estava condenado, sem que sua legitim idade intrín­seca tivesse sido posta à prova. Confusão que m ais tarde H egel reencontra­rá nos visionários e nos entusiastas cujas “ expectorações barrocas” admira.O que sabem eles da Razão, esses que, com o Hamann, “fazem tem pesta­de” contra a Vernunft überhaupt? Tudo o que se lhes concede é que protes­tam legitim am ente contra as, “ separações” da Aufklärung e do kantism o. M uitos textos, porém, m ostram que, a esses incôm odos aliados objetivos,Hegel prefere a Aufklärung - que é preciso ao m enos integrar antes de criti-

6 Häring, Hegels Leben, I, p .668.7 Sur Solger [Sobre os escritos de Solger], XX , p. 179.8 “A lei é essencialm ente lei de escravidão e de outra m aneira não há conceito; o conceito

é dom inação [Begreifen ist Beherrschen]. O B egriff coloca-se na categoria do senhor e do escravo" 0 · Wahl, M alheur {Le malheur de la conscience dans la philosophie de H egel), p. 154).

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7 2 G É RA R D L E B R UNÍ

car.9 N o princípio de todos esses irracionalism os, encontra-se a m esm a in­genuidade que talvez confira unidade de sentido ao term o “ irracionalis- m o” : todos aceitam com o líquidas e certas as descrições somente representa­

tivas da Razão; todos opõem reações imaginativas a uma doença do discurso, a Representação, que sem dúvida diagnosticam obscuram ente, mas da qual só acreditam curar renunciando ao próprio discurso. O esoterism o tagarela é, portanto, cúm plice do “ sadio Entendim ento” :

Se agora os que tom am o m ístico pelo verdadeiro se contentam , de m a­

neira semelhante, em ver n isso o que é m isterioso, com isso só confessam que,

igualm ente, o pensam ento só tem a significação da posição abstrata do idênti­

co; a partir daí, deve-se desprezar o pensam ento para atingir a verdade ou,

com o tam bém se costum a dizer, m anter prisioneira a R azão.10

O que é então a Representação? Por que durante tanto tem po foi ela confundida com a Razão, a ponto que, dela, só se pense poder escapar por m eio da loucura religiosa ou do entusiasm o? Enquanto isso for ignorado, nuiTCã térá sid ó lñ tH F ám eñ te “ esm agado o infam e” , visto não ter sido desem boscado. Ora, é disso que se trata também. Em nenhum sentido, em nenhum gráu dã palavra, H egel m erece ser chamado “irracionalista” ,· nem sequer confrontado com os entusiastas.

2

Distinguir-se-á a Representação no sentido amplo, entendida com o blo- queio^ôTIôncHtôTcS’Représintâçâo tal com o está circunscrita na Philosophie

de 1’esprit [Filosofia do espírito], instânciãlm eH iãtãm ênte superior à intui-- ção. Se, tanto na Representação com o na intuição, “o objeto, ao m esm o

9 “Q uanto à A ufklärung que com bate, Ham ann desconhece inteiram ente su a aspiração em fazer valer o pen sam ento e su a liberdade em todos os in teresses do Espírito, assim com o desconhece a liberdade instaurada por Kant, m esm o que esta se ja apenas formal. Sem dúvida, tinha razão em não poder se contentar com figuras nas quais desem boca tal pensam ento, m as, para dizê-lo de um a vez, ele só faz tem pestade, a torto e a direito, contra o pen sam ento e a Razão em geral, os únicos m eios verdadeiros de desdobram en­to consciente da verdade e de seu crescim ento em árvore de D ian a” (Sur Hamann [Sobre Ham ann], XX , p .253).

10 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 82, Z., VIII, p .198; trad. br., I, p .168; cf. § 31, VIII, p .165; trad. br., I, p .94.

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A PAC IÊ NC IA DO C O N C E I T O 7 3

tem po que está separado de mim, é tam bém o m eu” ,11 aí ele não está m aci­çam ente presente, mas, ao m enos, já está posto. A Representação no senti­do amplo é caracterizada de outra maneira: pelo em prego descuidado das palavras de ligação que justapõem.

D eus é e nós som os também: eis a m á unificação, a unificação sintética, a

com paração feita de m aneira arbitrária. Cada um dos lados é tão substancial

quanto o outro. Tal é o procedim ento da R epresentação. D eus é glorioso, ele

restá no alto - e as coisas finitas têm um ser, sob o m esm o títu lo que ele. Ora,

a Razão não poderia perm anecer em tal Também, em tal indiferença.

Se dizem os Deus é todo-poderoso, bom, sábio, tem os um conteúdo determ i-

nado, m as cada um a dessas determ inações-de-conteúdo é singular e indepen- j -

dente. E, TAM BÉM , esse é o m odo de ligação da Representação. Ali, decerto,

sabedoria suprema, bondade suprema são conceitos e não algo de im aginado, sen- "Q

sível ou histórico; decerto são determ inações espirituais. Som ente ainda não ^ '

são analisadas em si e as diferenças ainda não são postas enquanto se relacio­

nam um as com as outras; são tom adas apenas em sua relação abstrata, sim-

P t e c o n s i g o » ^ c / 0 x f l ¡ ^ ? l ) S

Certas figuras da Representação obrigam-nos, no entanto, a nuançar essa descrição. Assim , o Entendim ento, que parece ser sua figura teórica por excelência, é bem mais que um a instância de sim ples enumeração; pres­sente, sob a forma da Lei, a unidade das determ inações diferentes.

Ele só se d istin gu e [da R epresentação] porque põe as relações de u n i­

versal a particular, de causa a e fe ito etc., em sum a, relações de n ecessidade

entre as determ in ações isoladas da R epresentação, ao p asso que a R epre­

sen tação as deixa ju stap o stas e ligadas p elo sim ples ta m b é m , em seu espaço

in d ete rm in ad o .13

De que carece essa forma de pensam ento para se realizar como Razão? p De nada, se pensarm os num a operação que ainda lhe fizesse falta, e esta- ^

ríam os equivocados se im aginássem os aHiferença entre o Entendim ento e

« ·

\ \

11 Ibidem, § 449, Z., X, p.324; trad, br., Ill, p.232.12 Gesch. Philo. [História da filosofia], XIX, p.373; cf. Ph. Religion [Filosofia da religião], XV,

p .159.13 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 20, VIII, p.74; trad, br., Ill, p.71.

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7 4 g é r a r d l e b r u n

a Razão14 com o sem elhante à da “explicação” e da “ com preensão” . A dis­tância é bem m enor e bem maior. O Entendim ento é a Razão sob o reinoda Representação. Interrogar-se sobre seu estatuto e perguntar-se em que ele ainda é apenas um a Razão m utilada é, portanto, esclarecer um pouco mais a natureza da Representação.

A prim eira vista, o “Entendim ento” parece designar, sem mais, a ins­tância beócia do pensam ento: o equivalente aproximado do “ sadio enten­dim ento” , tal é o em prego sim ples e freqüentem ente pejorativo do termo. M as outros textos o descrevem com o um “m om ento necessário do pensa­m ento racional".

Em geral, sua atividade consiste em abstrair. Se ele separa o contingente

do essencial, tem pleno direito para tanto e aparece com o o que deve ser em

verdade. Por isso, cham a-se homem de entendimento quem persegue um a m eta

essencial. Sem entendim ento, nenhum a firm eza de caráter é possível, pois esta

supõe que o hom em se atém firm em ente à sua essencialidade individual. A

um a determ inação unilateral, todavia, o Entendim ento tam bém pode conferir

a form a da universalidade e tornar-se então o sadio entendim ento hum ano, o

contrário daquilo que é dotado do sentido do essencial.15

Curiosa essa página em que a condenação habitual dá lugar a uma sim ­ples reticência. M as os Prefácios da Fenomenologia e da Lógica vão m ais lon­ge. N o Prefácio, Hegel, após ter exaltado no advento do “puro Eu” o surgi­m ento da “prodigiosa potência do negativo” , assim ila esta últim a à “força do Entendim ento, a potência m aior e m ais elem entar" .16 É essa potência que recorta a im ediatez em “m om entos que já não têm m ais a forma da representação encontrada [vorgefundene], mas constituem a propriedade im e­diata do Si". Todavia, essa análise perm anece artificial e o elogio do Enten-

14y Som ente entre as palavras. Com efeito, “é preciso rejeitar, em todos os aspectos, o corte - / que habitualm ente se faz entre Entendim ento e Razão. Se o conceito é tido com o estra­

nho à Razão, trata-ser-^ntes, de um a incapacidade da R azão em nele se reconhecer” (lo g ik [Lógicg jT v , P-51) J

15 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 467, Z., X , p .362; trad. br., III, p .261. A cerca do “ sa ­dio entendim ento hum ano” com o conjunto dos preconceitos de um a época, cf. Wesen

ph. K ritik [E ssên cia da crítica filosófica], I, p. 185; Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .36.

16 O entendim ento, um a vez que divide e determ ina o im ediato, deve ser estim ado sem reservas (Logik [Lógica], Einleitung ["In trodução"], IV, p .40). “ O E spírito é o negativo, o que é tanto a qualidade da Razão dialética quanto do Entendim ento” (Ibidem , “ Prim ei­ro Prefácio” , IV, p. 17).

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,9- ¿ i c \

A P ACI E NCI A DO C O N C E I T O , 7 5

dim ento culm ina nesta frase ambígua: “Q ue o acidental como tal, separado

conexão com outra coisa, obtenha um ser-aí próprio e um a liberdade dis­tinta, aí está a prodigiosa potência do negativo, a energia do pensamento, do puro eu” . Considerar isoladam ente e para si m esm as as determ inações que só se encontram com outra ou em outra, tal é a operação do Entendi­m ento, sim ultaneam ente nefasta, visto que criará dificuldades arbitrárias, e benéfica, já que revela a força do conhecim ento. N esse ponto, com efeito,o Entendim ento é um a instância de decisão m etodológica, cuja obra con­siste em articular os conteúdos unicam ente como conteúdos de conhecimento,

sem levar em consideração suas relações na existência. Ora, se pensarmos que pouco adiante Hegel faz que esse m étodo passe por característico da matem ática, não é arbitrário ver nessa frase um a alusão à teoria cartesiana das naturezas simples:

Cada coisa deve ser considerada diferentem ente quando dela falam os em

relação a nosso conhecim ento e quando dela falam os em relação à sua exis­

tência real ... tais partes [corporeidade, extensão, figura] nunca existiram com o

distintas um as das outras; mas, em relação a nosso entendim ento, dizem os

que [o corpo] é um com posto dessas três naturezas, porque representam os

cada um a delas separadam ente, antes de poder julgar que todas elas se encon­

tram reunidas num único e m esm o sujeito. (Regra XII)

Sabe-se segundo que critério Descartes reconhece esses peiprimitivos: eles são tais que “o espírito não os pode dividir num ^mero em quê~ o "conhecim ento seja m ais distinto” . O que equivale a dizer q u F sE o T ã H e sW tú d ã evidências indecom poníveis no presente de meu cam ­po deP:onsciéncia, que sua "firm eza’' 6 íiaranuua peia “fixidez” da cons­ciência de si. Com isso, tocam os no que há de irrevogSLvelmentejepresenta-

tivõ~no recoftëTqïïë o Entendim ento efetua. E no instante que idealiza o A ;le isolado, uno minimo momento temporis. E espantoso que a

referência ao tem po condicione tanto o privilégio concedido ao Cogito quan­to a teoria das naturezas sim ples. Ã ta lp o n to uue essa nreseiica do temno é__como um a ameaça a ser afkstada_u.éj)reciso apagar o traço ao tem po em que_se desdobram as " longas cadeiasjde razões” ; é preciso que Deus garanta que as~èvI3encias de outrora possam passar legitim aniente comõ~evidêif-

cias prè5efitesrC 5 n 5 egíjè~BntTeHntõ~õ~pènsãmehto de Entendim ento neu­tralizar a tem poralidade? Sem dúviua, a “Juraçao " cartesiana ó som ente u m ^ n o d o ” ou uma^'maneira” no espírito, mas “uma maneira pela qual con-

do que o circunda, o que está ligado e e:

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l > c ^ b *76 G É R A R D L E B R U N

S * v ^ /

sideram os a coisa enquanto ela continua a ser" (Princípios, I, 55), e essa “ con­tinuação” sugere que a duração, com o m odo de pensam ento, é o reconhe­cim ento de um a durãçaõ inscrita “na coisa que existe” . De resto, Descartes

■' oferece a duração" com o iriãrca irrecusável e b e m real de m inha finitude: “ Não é um argum ento infalível e m uito certo de im perfeição em m eu co­nhecim ento que ele cresça pouco a pouco e aum ente por m eio de graus?”(.Meditações, III). Certam ente, nesse ponto, a duração é reconhecida com o

potência. Há portanto um vínculo entre a análise intelectualista centrada na consciência delsi e o reconhecim ento da secreta soberania do tempo: a acei­tação do tem po como um dado é um dos índices da lim itaçao do "Saber "de* ErftêrTdimento, a prova de que superou o sensível sem ter se dado ao traba- lKõ de criücárTõdõs~ os "cõncêítõs- ^ ^ ” dele n ascem T ^ Ã ssim T irE n fén di-

17 A ssim , por exem plo, o tem po que é “o C onceito som ente in tu ído” (Fenomenologia do

espírito, II, p .558 e 560; trad. fr., II, p .305 e 307; trad. br., II, p .215 e 216.) e cu ja presen ­ça a testa que o Espírito ainda não chegou a seu reconhecim ento. A exterioridade do tem po em relação ao pen sam ento , o fato de que ele apareça com o dado, é o m elhor teste do inacabam ento do Saber de si do Espírito: este ú ltim o ainda não pode conhecer su a negatividade senão na form a de im agem . E verdade que o E sp írito deve se co n su ­m ar tem poralm en te para ser em segu id a rem em orado; m as “ ele só aparece no tem po durante o tem po em que não captar o seu puro conceito, isto é, enquanto não elim inar o tem po” . A ssim a presen ça do tem po m ede o longo erro que o Espírito com etia acerca dele, enquanto se consum ava: a condição de seu desenvolvim ento efetivo era igualm en­te o sin tom a de su a inconsciência. D aí se r com preensível que o E sp írito só se faz h isto ­riador para obter a garantia de não ter m ais de ser historiador; se recupera o tem po perdido, é porque não se confunde m ais com a consciência representativa, que o d eixa­ra perdido; e porque o Conceito, “potência do tem po" (System [Enciclopédia das ciências filo sóficas], § 258 ), suprim iu o invólucro que o d issim ulava. Reconhece-se então que não há “potência” própria ao tem po, o que é um a das m ais ten azes ilu sões do p en sa­m ento m oderno. Q uer o tem po se ja apresen tado com o obstácu lo ao saber (D escartes), quer com o su a única d im ensão (Kant), ele é considerado potência. D escartes, por exem ­plo, ao pretender subtrair à m em ória o m áxim o de tem poralidade possível, co n fessa a precariedade d a ciência por ele fundada e co n fessa que o esp írito perm anece su je ito à duração da qual ele deve arrancar as certezas. H egel entende rom per com todas as for­m as d esse preconceito. Q uando escreve que a etern idade não é o que vem depois do tem po e, dela, o tem po não é um setor, im porta conferir a e s sa afirm ação to d a su a força. Tam bém Kant notava, no texto sobre Das Ende aller D inge [O fim de todas as co isas] (Ak, VIII, p .333-4), que seria absurdo falar de um instante que encerraria o tem po e in auguraria a eternidade: isso seria dar à p assagem do sensível ao eterno o andam ento de um a su ce ssão ainda tem poral. M as e s sa observação confirm a a tese segundo a qual, “ ao m enos para nós, h om en s” , não há objetividade justificável pelo tem po: “ que p o ssa advir um instante em que ce ssaria toda m udança (e, com ele, o próprio tem po), eis um a represen tação que revolta a im aginação ... , pois, para se p en sar tal estado, ainda é pre­ciso pen sar algo; m as o pen sam ento contém um a reflexão que, por su a vez, não pode advir senão no tem po” . Q uando H usserl define a “in tem poralidade" das verdades teóri­cas com o “ a on item poralidade que no entanto é um m odo do tem po” (Erfahrung und

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* \ J ^ o L o

A P ACI Ê NCIA DO C O N C E I T O

S z %Sh/x $ 4 fm ento é die als Verstand tätige Vernunft, 18 Razão retida pelas sugestões ii tivas e que, por isscTria õ lõ m ic i a plena m edida de sua força._Ajites de ser responsável por erros de fato, é responsável por um a ideologia. A o isolar os “pensam entos” e encadeá-ias-com o sim plesj3b|etos de conhecim ento. dá^créctítolTí^^ é uma estratégia ^subj e ^ a ” . É^óbvio en­tão quê, de direito, o pensam ento’ e abstrato, que, de direito, os “conhe­cim entos”""iãõ~pãrciãTs7 que çQfõm m io cio '“conhecer '’ esrá disjungido da prática. O Entendim ento aceita que algo seja verdadeiro "em m inha cabe- ç ã ^ e o “ saber” se redüzãTm TTã^Ism büição dos conteúdos num a ordem que eu posso facilm ente percorrer. Saber qüe limita, que se resigna a ser" som ente unTsabeFcTe superliaF^m ãs^superfície de que “profundidade” ?). E m su m iT ele não se m elindra por deixar outra coisa fora dele/-

Saber que falsifica, portanto, e não saber falso. N ão e inteiram ente um erro que os conteúdos de pensam ento sejam postos como fixos e invariá­veis. Não é a própria forma da invariabilidade que tem de ser recusada, nem a passagem ao conceito que é abstrato: ao afirmá-lo, sem mais preci-

Urteil, § 64), ele só faz tornar explícita e s sa tendência de todo "id ea lism o su b jetivo” , no sen tido hegeliano, tendência a desdobrar o tem po com o horizonte ú ltim o de toda ob jetividade: todo conteúdo pen sado é, devido a e sse m esm o fato, assin alad o a um m odo de tem poralidade. Certam ente, a duração dos ob jetos ideais não é a dos con teú­d os sen sív eis, m as “eles não deixam de se relacionar com o tem po, nem estão d esp ro ­vidos de toda tem poralidade [D ie notwendige Beziehung zu r Z e it ist immer d a ]" (Erfahrung

und U rteil, § 3 0 4-305). É a retom ada do tem a kantiano: o próprio intem poral envolve a tem poralidade; a etern idade nunca pode ser encarada de frente: se eu a im agino, ainda é com o um presen te repetido. A frase de H egel quer dizer exatam en te o inverso: a etern idade não tem nada a ver com o tem po; ou, antes, é errôneo confrontar a am bos, p o is a etern idade é a d isso lu ção da represen tação "tem p o ” . A n alisado com o represen ­tação do pen sam en to finito, o tem po não é, de m aneira algum a, o so lo ú ltim o de todo conhecim ento.

18 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 228, VIII, p .438; trad. br., I, p .359.19 “E aqui que o conhecim ento racional d istingue-se do sim ples conhecim ento de entendi­

m ento. E a tarefa da filosofia é m ostrar, contra o Entendim ento, que o Verdadeiro, a Idéia, não con siste em generalidades vazias, m as num Universal que, em si m esm o, é o particular, o determ inado. Se o verdadeiro é abstrato, então ele é o não-verdadeiro. A sã razão hum ana, por su a vez, vai ao concreto. É som ente a reflexão do Entendim ento que é teoria abstrata, não verdadeira, que só é precisa em m inha cabeça” (Gesch. Philo. [His-

^ - ^ t ó r ia da filosofia], XVII, p .53).20 |E so b re e s sa ex clu são de “o u tra co isa ” , ou de ou tro dom ín io , que in siste o jovem__ ' Feuerbach na esp an tosa carta a Hegel de 22 de novem bro de 1828 (Corr. [C orrespon­

dência], trad. fr., III, p .2 1 1 ss .). N ão se trata de fundar um a escola, m as de "fundar um reino" tal, que não haja m ais além . “A filo sofia que enfim captou o próprio todo num todo e o exprim iu na form a de um todo deve tam bém ter, com o efeito, que não subsista

outra coisa com a aparência, o direito, ou a preten são de ser um a segunda verdade, por exemplo, a verdade da religião etc."

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7 8 G É R A R D L E B R UN

sões, rapidam ente se oporia a pobreza do conceito à riqueza da intuição. O Entendim ento não é culpado de nada.

Visto que o Entendimento apresenta a força infinita que determina o S jj Universal, ou que inversamente, pela forma da universalidade, confere a con­

sistência fixa [das fixe Bestehen] ao que é em si e para si instável, não é portanto

culpa do Entendimento se ele não foi mais longe. É uma impotência subjetiva da Razão que deixa as determinidades nesse estado e não é capaz de reconduzi- TSs~à~un7dade, por meio da força dialética que é oposta a essa universalidade abstrata.21

D igam os antes que a invariabilidade que o Entendim ento dá aos con­ceitos é prematura:

o conteúdo [de tais conceitos abstratos] não é apropriado a essa forma; não são, portanto, verdade nem imperecibilidade. E o conteúdo não é apropriado à forma porque ele não é a própria determinidade como universal, isto é, como totalidade da diferença conceituai - ou ainda: porque ele próprio não é a forma inteira. A própria forma do entendimento limitado é, por essa razão, a forma da universalidade incompleta, isto é, abstrata.22

N esse estágio, a universalidade das essências lógicas (Unidade, Reali­dade...) ou m etafísicas (Espírito, Deus, N atureza...] é bem dita, é verdade, mas dita de um a vez por todas, de m odo que não serão m ostradas com as diferenças que elas engendram. Reduzidas à sua sim plicidade não desen­volvida, as significações são colocadas com o objetos representados, à m aneira pela qual a percepção vive e coloca os conteúdos sensíveis. Então se vê em que exatam ente são criticáveis os “ conceitos” elaborados pelo Entendim en­to: enquanto já reivindicam o estatuto das essencialidades concretas, e não enquanto delas fornecem um a aproximação, enquanto ainda im itam os ob­jetos percebidos, em sua justaposição indiferente, e não porque seriam constructa artificialm ente em placados no sensível. O drama do pensam ento de Entendim ento é destacar-se do sensível, enquanto continua a operar com a m esm a ingenuidade e sem reexam inar as representações que pro­vêm da freqüentação do sensível (o “tem po” , por exem plo). Por isso, não

C lj) Inoih [I/Spira]-^~p^n^22 Ibidem , V, p .49.

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A PAC IÊ NC IA DO C O N C E I T O 79

peca por “ intelectualism o” , mas, em vez disso, porque perm anece m ergu­lhado no im ediato.

H egel teria podido subscrever a sentença de M erleau-Ponty: longe de a percepção ser um a ciência que começa, “a ciência clássica é um a percepção que se esquece de suas origens e se crê acabada” . Mas a conclusão de Merleau- Ponty lhe parecería inaceitável: “O prim eiro ato filosófico seria portanto ... despertar a percepção e desm ontar a astucia pela qual ela se deixa esquecer com o fato e com o percepção, em proveito do objeto que ela nos entrega e da tradição racional que ela funda".23 É um a astúcia inteiram ente distinta que im porta desmontar: a que nos leva a batizar como “objetivo” e “racional” o que é som ente o desdobram ento do m undo vivido. N ão vam os incrim inar a conceitualização sob o pretexto de que ela nos afastaria do concreto ou do originário, m as a usurpação da palavra “conceito” que é aplicada superfi­cialm ente às “formas do condicionado, da dependência”,24 ao passo que tais determ inações são os produtos de um pensam ento que fez seu aprendizado no sensível. O Lebenswelt, longe de estar enterrado fundo dem ais, só preser­

va sua pregnáncia durante tem po dem asiado longo, e as críticas do “intelec­tualism o” só dão testem unho de sua incapacidade para reconhecer a pre­sença latente do “concreto” ñas formas que dele parecem se destacar. Se em H egel há desconfiança para com as ciências positivas, ela é, portanto, diam etralm ente oposta ao “descrédito da ciência” que a fenom enología tor­nou familiar: é com o rebentos do vivido que os constructa forjados pela ciên­cia m erecem ser criticados. A s ciências positivas não “ esqueceram ” o solo originário de que saíram: estão sim plesm ente sobrecarregadas por precon­ceitos m etafísicos que o Saber dissipa, Saber no interior do qual elas ocu­pam, a partir de então, um lugar indispensável:

U m a filosofia cientificam ente desenvolvida já concede, nela m esm a, o

lu gar a que têm d ireito o p en sam en to determ in ad o e os co n h ecim en to s

aprofundados; e seu conteúdo - o que há de geral nas relações espirituais e

naturais - por si m esm o conduz im ediatam ente às ciências positivas que o fa­

zem aparecer sob um a form a concreta, em seu desenvolvim ento e aplicação, a

tal ponto que, inversam ente, o estudo delas se m ostra necessário ao conheci­

m ento aprofundado da filosofia.25

23 Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, p .69.24 Cf. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 62, VIII, p .64 e § 162, VIII, p .356-7; trad, br., I,

p. 140.25 C arta a Von Raum er, 2 /8 /1 8 1 6 , Corr. [C orrespondência], trad, fr., II, p .94.

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8 0 G E R A R D L E B R U N

\J/Para o Saber, portanto, as ciências em si não serão um obstáculo a

contornar. O utro exem plo disso: a atitude para com a m atem ática, que de m aneira algum a é o indício de um parti pris anti-“cien tífíco” . A crítica da m atem ática não é m otivada pelo afastam ento em que esta-se encontra pe­rante o "m undo vivido” , mas, ao contrario, por seu enraizam ento no sen­sível. H e g e ln ã o julga a m atem ática em nom e 3 i um ideal intulcIonTsta, m as com basFn um á" intérprefãçãõTnuiiZrõm sta - a dõ 5y p a rá g r ilo ^ ãDissertation 'cieT T 'T O lD isürtaçâô'dFl 770] 26~^Tqüal ele adere. Grosso modo,

aceita a análise intuicionista de Kant, enquanto rejeita a apreciação deste últim o concernente a um a m atem ática assim definida.

O objeto abstrato [da geom etria] ainda é o espaço, um sensível não sen ­

sível; aí a intuição é elevada em sua abstração - ele é um a form a da intuição,

mas ele ainda é intuição; é um sensível, o ser-justaposto da própria sen sibili­

dade, sua pura ausência de Conceito. O uviu-se falar bastante nesses tem pos

da excelência da geom etria sob essa relação; viu-se sua superioridade no fato

de que ela se funda na intuição sensível; pensou-se que seu caráter científico

proviesse daí e que suas dem onstrações repousassem nessa intuição. A essa

superficialidade, objetar-se-á superficialm ente que nenhuma ciência provém da

intuição, m as só pode ser produzida pelo pensam ento. A intuitividade, que a

geom etria deve à sua m atéria ainda sensível, dá-lhe som ente essa form a de

evidência que possui o sensível em geral para o espírito desprovido de pensa­

m ento. E portanto de m aneira m uito in feliz que se tom ou com o um privilégio

seu caráter sensível, ao passo que ele caracteriza o pouco de elevação de seu

ponto de vista. E som ente à abstração de seu objeto sensível que ela deve [o

fato de] poder ter acesso a um a m ais elevada cientificidade e ser superior a

esses am ontoados de conhecim entos que no entanto gostam os de cham ar de

ciências . . .27

26 Texto em que se encontra um a elaboração do que Hegel cham ará “o sensível não se n sí­vel” . Q ualquer que se ja o nível de conceitualização dos conhecim entos "provenientes

""cios sen tidos (sensuales)” etiamsi (forma) absque omni sensatione, repraesentationes vocantur

sen sitivae . “ Conceptus itaque empirici per reductionem ad majorem universitatem non fiu n t

intellectuales in sensu reali, et non excedunt speciem cognitionis sensitivae, sed, quousque abstrahendo

adscendant, sensitivim anent in indefinitum ” (Ak, II, 393-4).27 Logik [Lógica], V, p .313-4. “A m atem ática tem que se haver com as abstrações do n úm e­

ro e do espaço; ora, e stas ú ltim as ainda são algo sensível, em bora e sse sensível se ja abstrato e desprovido de existência. O pensam ento, por su a vez, despede-se d e ssa ú lti­m a form a do sensível . . . ” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 19, Z., 3, VIII, p .71; trad. br., I, p .68).

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(L c w o J tji ' Y i

A PA C IE NC IA DO C O N C E I T O

x / / M s H / h K M ATEsse texto coloca um a questão: teria Hegel consentido em ver na m a­

temática um a ciência liberada_de .toda referência ao sensível? N esse caso, teria ela entrado em estado de graça junto a ele? Sem dúvida que não, visto que então ela se teria tornado o exem plar de um saber sim bólico, um a pura mãnipüTãção de signos ... Sim, mas o que é o sim bolism o, para Hegel. se­não á elisão das significações em proveito de signos traçados e, com isso, a últim a viròríã~dõ~sênsívél~s5bre um procedim ento que delas pretende dis- pensar-se. “ Voltar da linguagem ao sím bolo”, escreve Hyppolite, “ é m ani­pular o sensível com o tal, crendo m anipular significações, e aqui se produz um a espécie de viravolta dialética. O entendim ento, para criar um a lingua­gem mais pura, para negar ainda mais o sensível, só a ele acaba conside­rando e m anipulando com o tal” .28 Mas ainda aqui o esperado parece m ere­cer mais interesse que o veredicto: são os disfarces da intuição que H egel entende trazer à luz do dia. Q uer se recorra ao sensível para representar, para fundar," ou, melhor, quer se pretenda que, um a vez decodificado,, o signo baste a si m esm o, sempre se cede, segundo Hegel, ao preconceito que põe a presença a serviço dê um instrum ento de represm jação;"prejulga- se, portanto, acerca do sentido e se predeterm ina a localização onde ele se dá. E preciso dissociar essa idéia dos exem plos m uito contestáveis que Hegel fornece. Ele errou, é claro, ao restringir a m atem ática de seu tem po à es­treita im agem que fora dada por Kant ou ao proferir um juízo tão exterior sobre o cálculo sim bólico; errou ao crer que a poesia estivesse adstrita a exprim ir “conteúdos acessíveis à im aginação” . A s infelizes prediçois~de HegeT^vacuidade incurável da m atem áticC^Órte^dãTÇfTèT^Síonievidãrã prem aturas análises de essênciirque~^Tgebnstas, íógicos~ê~póetas iriam se encarregar de desm entir (e por vezes, ironia do destino, ao tom arem o pró- p n tT H ê ^ ^ Ó m o autoridade: testem unha M allarm é). Mas, aquém desses juízos parciais e datados, resta a idéia que os ordenou: som ente há conteú­dos “abstratos” para os que rom peram inteiram ente com "sua origem sênsT- ^¿^"TiHiTTÜrni^iencra provém da im üiçãõ^TcTSi!^^ não é, põr:~tãnfÜTCln l e iulnu ao sentido td jcom ó é~vivido, purificado de sedimentações, dévõTvickrab brilho da origem: é a^êTãboração^unTcõríceito nc\o cio senti­

do, iegtrimadcTpOr un;_conceito novo cia presença. Por isso, ele poderia estar mais proxim o do que parece,~lwmeni^quànto"à sua intenção, das atuais ten­tativas pós-fenom enológicas que entendem de novo situar o conceito de “ sentido” antes de fazer enfim surgir o sentido. Hegel deixa essa ambição,

28 Cf. Hyppolite, Logique et Existence, p .60-3.

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8 2 < étáThRB L E B R U i á ™ '

que afinal é platônica, para as figuras da Representação: em todos os seus graus, pressupõe-se que a inteligibilidade é indissociável de um m odo de apresentação, de m aneira que se trataria apenas de encontrar o m odo corre­to. O privilégio que se concede ao sensível “nestes tem pos” , pensa Hegel, é som ente um a das formas dessa obstinação. Ora, por que só com preende­ríamos aquilo que nos é apresentado?

m anifestação sim ples que perm anece em si m esm a.”29 M as o advento da linguagem marca um progresso, não um a ruptura: definitivam ente, a in­tuição, a imaginação e o signo dizem respeito à m esm a abstração. Se o pen­sam ento representativo, devido ao fato de que diz o sensível, suprim e a autoridade pura e sim ples que este últim o exercia sobre a consciência per­ceptiva, sua linguagem , no entanto, não desconcerta tal consciência. Por mais radicalm ente que pareça se opor ao sensível, o pensam ento represen­tativo não deixa de continuar se referindo a ele com o ao concreto. A base im ediata que critica é sim plesm ente deixada de lado e conservada, em últi­ma instância, como suporte de seus conceitos. Daí o direito que Hegel se dá de reagrupar, sob o nom e de Representação, instâncias díspares à prim ei­ra vista: com efeito, não há diferença de natureza entre a m anifestação do conteúdo na superfície do sensível (a obra de arte) e o dizer do conteúdo, entre a unificação imaginativa e a separação significante/significado tal como a com preende o locutor ordinário. Decerto, não faltam textos em que Hegel estabelece expressam ente a distinção entre ambas as figuras:

Para a intuição, a Idéia e seu m odo de apresentação estão tão estreita­

m ente ligados que am bos aparecem com o se fossem um só ... A R epresenta­

ção, ao contrário, parte do fato de que a Idéia absolutam ente verdadeira não

pode ser com preendida num a im agem e que o m odo da im agem é um a lim ita­

ção do conteúdo; ela suprim e, portanto, essa unicidade da intuição, rejeita a

união da im agem e de sua significação - e extrai esta últim a para si.30

Igualmente, quando Hegel escreve: “é nos nom es que pensam os” , ele quer dizer: é com os nom es que deixam os (ou deveríam os deixar) de imagi-

Para seu aparecer, a Representação carece apenas da palavra, dessa

29 Ph. Religión [F ilosofia da religião], XV, p.164.30 Ibidem , XV, p .155 e 151.

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A PA C IE NC IA DO C O N C E I T O 8 3

nar. “Com o nom e leão, já não precisam os nem da intuição desse animal nem sequer da imagem, mas o nome, quando o com preendem os, é a sim ­ples representação desprovida de im agem [bildlose Vorstellung].” 31 Todavia, por m ais nítida que seja a separação entre linguagem e intuição, são as afinidades que levam a melhor, pois a consciência falante desconhece a ori- ginalidade do dizer; ela com preende espontaneam ente a palavra como uma im agem adelgaçada, um a variante da presença adulterada de que, de fato, a palavra nos liberta. A im agem tinha dem asiada espessura para eventual­m ente suprimir-se em seu sentido: faltava-lhe "o ser-suprimido para expri­mir um universal determ inado” .32 Ora, tudo se passa com o se em prestásse­m os suficiente consistência à palavra, para continuar a vive-ia com o unT quase-réllexo da ÇQisa. Graças a palavra, afiguram o-nos econom izar uma indicação, ao passo que a palavra, na realidade, recusa a necessidade do ato

Õê indicação: d íahrnãu é uma aiüOsCTagem mais breve7ela sanciona a inuti­lidade da am ostragem . Quando Bergson criticar a linguagem porque ela' converte em coisas os conteúdos designados,33 estará de acordo com Hegel, com a ressalva de que essa ilusão, para Hegel, não se deve à natureza da linguagem, mas ao contra-senso representativo que acerca dela se comete"e laz da palavra um instrumento de apresentação do conceito, com o era a estátua para o sagrado. Por isso, evitar-se-á tom ar com o crítica da linguagem os textos que descrevem a ideologia instrum entalista que a ela se acrescentou.

Que é isso? Que tipo de planta é essa aí? Do ser a que se refere a ques­tão, muito freqüentemente só se compreendeu o simples nome, e uma vez que foi aprendido, estão satisfeitos e sabem o que é a coisa.34

.Se podem os estar satisfeitos ao receber como resposta o sim ples nnmp da coisa, é que estam os seguros de que a linguagem tem por função nor-

31 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 462, X, p .353; trad. br., III, p .254.32 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 458, X; trad. br., III, p .247.33 “É verdade que, quando im pom os a e sse sentim ento um certo nom e, quando o tratam os

co m o u m a co isa , acred itam o s p o d er d im in u ir su a du ração p e la m etad e . . . ” (Essai[Evolution créatrice], p. 129). “A própria linguagem , que lhe perm itiu estender seu cam ­po de operação, é feita para designar co isas e nada m ais que co isas ... M as a palavra, ao cobrir e sse objeto, ainda o converte em co isa” (Evo/. Cr. [Ibidem ], p .631). "N o terreno em que o psicólogo coloca-se e deve se colocar, o eu é som ente um signo pelo qual se evoca a intuição prim itiva (aliás, m uito confusa) que forneceu à psicologia o seu objeto: é som ente um a palavra, e o grande erro é acreditar que seria possível, perm anecendo no m esm o terreno, encontrar, por trás da palavra, um a co isa” (P. M ouvant. [La pensée et le

m ouvant], p. 1405).34 Logik [Lógica], V, p .67. Cf. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 31, VIII, p .104-5; trad. br.,

I, p .93-4.

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8 4 G É R A R D L E B R U N

— à

*

mal sinalizar um conteúdo já dado. E é pela m esm a razão que a palavra poderá, em seguida, nos aparecer com o um som vazio. N esse caso, experi­m entarão a necessidade de a "preencher" e de r e fe r i- lá ^ s e n s iverp ara pôr fim à abstração, o que é um a torma de nêsta~5e aftlndar ainda m ais.jjo is o im ediato a o q u a l recorrem é~somenté~õutro^ãspgciiTdirsituáçâõ~ã5stratà~Hèque queriam se evadir. Com o porém evãdir-se enquantcTã"linguagem é coin- preenHida^reprêsentativam ente, como um sn,Lcma de bcduaiiieilLO dtTSig- nificações isoladas? Não é voltando a um ponto Zero, em que “idéias” cer^ tam ente corresponderiam às palavras, que se devolverá à linguagem a sua plenitude, m enos ainda ao opor o joio das palavras ao trigo das coisas, mas ao tom ar consciência de que, só no interior da Representação, a disjunção entre palavras e coisas é Obvia, b nquanto o nom e é colocado “diante da coisa” (steht der Sache gegenüber) e os signos são concebidos com o m eios de acesso, de nada serve descoftflar do Verbalismo^ pois o ordenam ento repre- ’ sentativo é o único responsável pui tü>ie úlliiüu. Tal e a v erdadeira absira

ção. N unca se pensa mais abstratam ente que ao deplorar a im perfeição das ''palavrasT comb~sé~1osslnrãs pafavfãs~as cul]l7gdãs~e~nao ã~T5tfeTÓgia parasi­

tária q u S ^ é^ saíd an õs levã~a cindH rirSignõ- e- o 'co n teM o . ©5 rêsto, s lü JmentfsinceTCT5~tÕdos esseá"i5mentAr5?~ t3 í^ 1 íI õ zpõssãmõs~tudo nos d izer” , isso

entristece, com o sabemos, aos amantes ingênuos, mas constitui o deleite do ideologo espiritualista que ali vê despontar o “m istério da pessoa” . Tam- bém nesse fronte, Hegei arma-nos para "esm agar o inlam e".

M elhor se com preenderá a especificidade daquilo que é preciso cha­mar a “ ideologia da linguagem ” denunciada por Hegel, se com pararm os certas análises suas com as da Filosofia da mitologia de Schelling. Também Schelling - sobretudo ele - julga artificial a distinção form a-conteúdo. Re- cusa-se a fazer dela um a grade de leitura dos m itos.

----- 2 ^

-A Filosofia da M ito logia m ostra que o doutrinal desta ú ltim a não co n sis­

te num con tpi'ido-difprpnlp da form a e do revestim ento históricos, mas ju sta ­

m ente em sua própria historicidade. Essa identidade do doutrinal e do histo-

rico tam bém deve ser estabelecida no cristianism o. A m itologia tem que ser

totalm ente com preendida em sua autenticidade e o verdadeiro sentido, o ver­

dadeiro núcleo doutrinal tem que ser buscado do lado da com preensão literal,

não do lado da explicação alegórica; o m esm o se dá com o cristianism o.35

35 Schelling, Philosophie der Offenbarung, 9- lição, p .197.

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f . A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O v \

a lAcw Pw. w -* ipc fr'Os Evangelhos, portanto, assim com o os m itos, não contêm um a h is-

tória cujo sentido profundo terá de ser desenterrado: vão buscar o “verda- deiro~dos~dontos" fora do texto, h na própria textura da letra, na rede das analogias e sim ilitudes ali desenhadas, que o rnnt-piirin.gp ofprprp a Hpcm-

berto (Dem éter procurando sua filha seqüestrada, ísis procurando seu marido assassinado35). A atenção conferida unicam ente à “figura” (sob condição de não m ais im aginá-la com o o suporte de um conteúdo esotérico) perm ite reencontrar aí um a necessidade intrínseca. O m étodo supõe portanto que, entre a letra e o espírito, a indiferença sempre é de direito. Por isso, seria HegitiTTHrvaluiiZcU Os m onientos em que a distância entre eles dim inui (a arre grega, rieglüido1 H eueit 011 abole (o cristianism o bem com preendido, segundo H egel): essa distância m esm a é uma perspectiva do espírito.

Q uanto a Hegel, ele não rejeita tão abruptam ente com o Schem ng o princípio de um a interpretação alegórica. Seria perigoso, reconhece ele, aplicar esse m étodo a todas as m itologias e a todas as formas de arte; isso é a obra do Entendim ento que, cegamente, “separa im agem e significação” .37 O s exegetas freqüentem ente estão errados ao tratar a significação com o exterior ao texto, e a Fenomenologia critica a m isticidade que pretende atri­buir, “às representações m íticas das religiões do passado, um sentido di­verso do que oferecem im ediatam ente à consciência em sua manifestação; no caso das religiões, um sentido distinto do que nelas sabia a consciência de si” .38 A esses textos, entretanto, outros vêm contrabalançar. A o m étodo “histórico” , que aborda os m itos gregos como sim ples produtos da fanta­sia, Hegel opõe elogiosam ente o m étodo sim bólico de Creuzer, que deles sabe extrair “um a significação m ais profunda” .39 Tanto quanto quiserem, os historicistas podem reprovar Creuzer por descobrir nos m itos filosofem as que os antigos nunca tiveram no espírito: por que não adm itir que esse conteúdo perm anecia im plícito?40 Creuzer, ao considerar os m itos sím bo­los em si, teve o m érito de abandonar a superfície “exterior e prosaica” , de “levantar o véu ” que nos encobria a verdade interna. Portanto é im possível condenar o alegorism o no absoluto. Importa saber em que m om ento ele deixa de ser um m étodo pertinente.

36 Cf. Schelling, Philosophie der M ythologie, I, p .62; trad, fr., p .74.37 A esthetik [E stética], XII, p .416; Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .15538 Fenomenologia do espirito, p .575; trad, fr., II, p .264; trad, br., II, p .187 .39 A esthetik [E stética], XII, p .416; cf. Gesch. P/ii7o.[História da filosofia], XVIII, p .114-5.40 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p. 115.

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A Estética determ ina esse m om ento com precisão. O sim bólico cessa - e com ele a legitim idade de um a herm enêutica - “ ali onde a livre subietivi- dade forma o conteúdo da representação. Pois o Sujeito é o que se significa

~por si m esm o, o que explica a si m esm o” .41 Q uando é a subjetividade quê" se anuncia, “ significação e apresentação sensível, coisa e im agem iá não são mais diferentes umas das outras” . A interpretação, até então indispen­sável, cede lugar a sim ples com preensão: o sentido está diretam ente pre­sente na obra. Claro, perguntarão se a decisão que outorga esse privilégio à “subjetividade” não é puram ente arbitrária. Por que esse conteúdo, e so ­m ente ele, tornaria subitam ente transparente a linguagem que o enuncia? Com que direito m esm o supor que haja u rn s entido por excelência tal que nos seja dado sem equívoco possível.'' A Filosofia da Religião não dissipa esse sentim ento de arbitrário. E verdade, sem dúvida, que a Revelação não está reduzida a seu sentido didancoTCflatO ríaó veio anunciar a verdade d a "

7 1

m esm a m aneira pela qual Ceres trouxe a agricultura; não teve nada de um pedagogo, e seria errôneo distinguir o conteúdo doutrinal da anedota coi>~ tingente.42 Mas H egel não tem e corrigir as ingenuidades das Escrituras e pôr em relevo as defasager|g Hn tpvi-n pm i-pWãn an spntido especulativo. As-

sim, a relação do Pai com o Filho, se nos ativerm os estritam ente à imagem biológica, solm Tílo im peifeiuuilêlllê exprim e a essência de Deus: "eáSâ r ~ lação natural é som ente figurativa \bildlich1 e. portanto, nunca corresponde inteiram ente ao que deve ser expresso” .43 A í estam os portanto, ao que rece, em pleno dogm atism o: o filósofo esfreculativo, ao tom ar essa liberda­de com a letra, confessa estar mais atento ao sentido do discurso, tal como foi por ele decidido, do que ao próprio texto. Esse m étodo recai jacvb-a-. alca-- da dàs~ó5|eçoes que schefling endereça à simbólica; ela depende do proce­dim ento ” sim bólico" que Freud afastará desde o início da Traumdeutunp,44 Em suma, parece que, ao tomar com o ponto de referência a normalidade de um a religião, a coincidência entre significação e apresentação, Hegel adm i­te - ao m enos para certas épocas - a legitim idade de um a dissociação que Schelling, por sua vez, recusa totalm ente.

A esthetik [E stética], XII, p .420.42 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .104. Cf. Ph. Religion [F ilosofia da religião],

XVI, p .349. Cf. Schelling, Philosophie der Offenbarung, 2- lição.43 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .228 . Cf. ibidem , XV, p .159.44 “C onsidera-se o conteúdo do son ho um todo e procura-se substitu í-lo por outro conteú­

do que se ja com preensível e, em certos aspectos, análogo ... N ão se poderia ensinar a m aneira de encontrar e sse sentido sim bólico. O su ce sso depende da engenhosidade, da intuição im ediata” (Freud, Interpr. Rêves [Interpretação dos sonhos], trad. fr., p .92).

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A P ACI Ê NCI A DO C O N C E I T O 8 7

Mas não nos esqueçam os de que, antes de tudo, Hegel considera tal dissociação o efeito de um preconceito que o aparecim ento da “livre subje­tividade” (a estátua grega) com eça a atenuar. A essa altura, im porta não conceder excessiva im portância à oposição entre barbárie e classicism o - linguagem dos em blem as, de um lado, clareza e distinção do outro; im por­ta não esquecer que, se a representação da subjetividade substitui a sim ­ples leitura pela exigência de um a decifração, ela perm anece representação.

M as a partir de então, ao menos, a ação de mostrar põe fim à expressão, a figura deixa de ser um entrecruzam ento de indicações indecisas e a com ­preensão já não é da alçada da investigação. A o m esm o tem po que a neres- sidade da decodificação, cessa a ilusão de um longínquo inacessível de di­reito, de um a profundidade que nunca se estaria seguro de restituir. E Hegel insiste entao na m amdade dos pretensos conteúdos latentes"

N o elem ento do sensível, pode-se decerto exprim ir as determ inações mais

abstratas; nisso, porém , há confusão. A ssim com o os franco-m açons tom am

seu sím bolo por um a sabedoria profunda, no sentido em que é profundo um

poço cujo fundo não se pode ver, assim tam bém o hom em tom a facilm ente

por profundo o que é oculto: o profundo encontra-se atrás. Mas, se ele sem pre

se furta, é possível que não haja nada atrás ... O pensam ento consiste antes

em se manifestar. A clareza: tal é sua natureza, tal é seu ser.45

Por isso, a am bigüidade da formulação nunca é indício de riqueza do significado: “Q uem esconde seu pensam ento com sím bolos não tem o pen­sam ento ... O espírito não precisa de símbolos: ele tem a língua” . Ora, o sim bolism o, ao contrário, confere à linguagem um a espessura que oblitera sua função: com o o sím bolo em oldura o sentido, ele dá a pensar que a lin­guagem é algo que, por essência, precisa ser desmascarado, não que ela é feita para se anular com o elem ento independente. N isso o sim bolism o re­flete a prática espontânea da fala: o contra-senso por ele com etido (que o

45 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p. 122. "N ão se sabe de que representações as figuras [egípcias] foram os sím bolos; que não se vá acreditar, portanto, ser possível trazer algum a clareza a um a coisa obscura desde o nascim ento. O casulo seria o sím bolo da gera­ção, do Sol e de seu percurso - íbis, o sím bolo da cheia do N ilo o abutre, o da adivinhação, do ano, da piedade. O que há de estranho nessas associações provém de que elas não trans­põem um a idéia geral em um a imagem, como representam os a obra da poesia, m as, inver­sam ente, começa-se pela intuição sensível e im agina-se nesta últim a” (Ph. Gesch. [Filosofia da história], XI, p .282; trad. fr., p .162).

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h /J /ô tSL

seu próprio intérprete é até obrigado a assumir) é um exem plo da torção a que a Representação subm ete a linguagem . A ssim com o a com preensão do sím bolo é inseparável da suspeita, assim tam bém a palavra pode dar o sen­tim ento de dissipar um segredo e a ilusão de que nem tudo está dito (pois temos o que dizer) - ilusão de que a explicitação não goza de pleno direito, m as que, no m elhor dos casos, será obtida de m aneira contingente, por sorte ou por favor. O uso “ sim bólico” da palavra sugere assim que nunca estarem os no m esm o nível do saber, visto que é da natureza do signo im ­por aò leitor um a tarefa de interpretação e votar o locutor à felicidade da expressão. Q saber, isto é, a expressão unívoca, começará, portanto, para além da m anipulação dos signos.46 Tal é a “ teoria” do sentido que o sim bo­lism o pressupõe, e nisso é que Hegel vé a m áxim a deform ação do signifi- car. Pois não é verdade que a indicação por signos seja um m odelo do ad­ven to do sentido, ou m esm o um de seus m om en tos im utáveis, de tal m aneira que se poderia superá-lo (em um saber intuicionista: conhecim ento do terceiro gênero ou idéias claras e distintas), mas sem esperança de ja ­mais reabsorvê-lo. Sim bolism o e concepção sim bólica da linguagem são sim plesm ente marcas da im aturidade do significar, da im potência em si­tuar a significação noutro lugar que não em um afastam ento em relação" à letrâ1. Igualm ente, o recurso aos oráculos, nas cidades gregas, era a prova da im aturidade do pensam ento político: se os antigos, em últim a instancia entregavam -se ao destino, e porque julgavam im pensável que o “ Eu que­ro” expresso por um hom em bastasse para dar o seu objetivo à cidade.47

G É RA R D L E B R UN

46 Sobre e s sa questão, só se pode rem eter às análises de D eleuze em su a obra Spinoza et le problème de l ’expression, notadam ente, p .44-51 e 164-5.“Porém, envolta na unificação dos poderes que perm anece substancial, e s sa subjetiv ida­de da decisão deve ser em parte contingente, quanto a seu nascim ento e advento, em parte subordinada em geral; a decisão pura e sem m escla não pode, portanto, se encon­trar em nenhum ou tro lugar sen ão além d e sse s cu m es co n d icion ados; é um Fatum

determ inante do exterior. C om o m om ento da Idéia [a decisão] deve in gressar na ex is­tência, m as ter su a raiz fora da liberdade hum ana e de seu círculo, com preendido no Estado. Vem daí a necessidade de recorrer aos oráculos, ao D aim on (Sócrates), às entra­nhas das v ítim as, ao apetite e ao vôo dos p á ssa ro s p ara ali bu scar a decisão ú ltim a concernente aos grandes acontecim entos e aos m om entos im portantes do E stado . O s hom ens ainda não tinham a força de ver tal decisão no interior do ser hum ano: ainda não haviam captado a profundidade da consciência de si e ainda não haviam voltado da m aciça unidade substancial a e sse ser-para-si” (P h . Rechts [F ilosofia do d ireito], § 279,VII, p .385). A os signos am bíguos dos oráculos, Hegel opõe, na m onarquia m oderna, a subscrição do rei num ato público: “E sse nom e é im portante; ele é o cum e acim a do qual não se pode ir. Bem seria possível dizer que já ex iste u m a articulação orgânica na bela dem ocracia ateniense, porém logo vem os que os gregos tiravam a decisão ú ltim a de fen ôm en os in teiram en te ex teriores (orácu los, en tran has de an im ais, vôo de p ássa-

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A P ACI E NCI A DO C O N C E I T O

C À d g J L z y j i p ^ · £ y \

V ôo de pássaros ou entranhas das vítimas, o sentido da vida pública deviaser decifrado: im possível que a palavra do chefe, visto que ela não era um

signo opaco, fosse a detentora desse sentido. N este ponto, vê-se que o “dog­m atism o” hegeliano se corrige: a “Subjetividade” não entra em cena como um deux ex machina; ela designa inicialm ente a "renúncia ao m istério e, d o­ravante, a recusa do dever de decoditicar para compreender. O usem os en­carecer os anacronism os do autor: se a Grécia h egelia n a é culpada de algu- m a coisa, é m enos por não haver descoberto o Cogito que^por ter ainda re sp e ita d o jriê tra? Sempre "í^ èra*bãrbane enquanto n ã o s e o ü T a r dlzêr,

’ com o hfem ingwãy o fez um dia, que um bom texto é aquele de que se pode riscar qualquer frase sem que se perca o seu sentido. Esteticam ente, nada

"dá m einor idéia do advento da “Subjetividade” que um relato que vá direto ao ponto, para que a letra não toque o chão firme e o leitor não seja tenta­do a se demorar em suas belezas:48 assim, por exemplo, certas páginas de Stendhal ou de H em ingw ay nas quais tudo é dito, portanto, rapidamente dito e sem deixar traços. D aquilo que Hegel entende por “Subjetividade” , a Segunda Meditação não é senão um dos esboços: a Subjetividade é antes de tudo esse sol pleno que torna derrisórios as alusões e os enigmas, as con­fissões e os segredos do coração, toda a parte religiosa de nossa cultura. Corriò há resoluções que por si m esm as apagam todo escrúpulo, há um a/ presença do sentido que torna aberrante a própria idéia de penumbra!

Isso equivale a dizer que o Saber é a crítica radical de um conheci m ento por signos. N ão acreditem os que dê lugar a ela e substitua, por un m odo de expressão im próprio, um m odo de expressão finalm ente apro­priado: a Offenbarung é a auto-supressão da expressão. Sua linguagem , em

ros) e a natureza era, para eles, um a potência que então p ressag ia e exprim e o que é bom para o hom em . A consciência de si, naquela época, ainda não chegou à abstração da subjetividade [ao reconhecim ento de que] as co isas devem ser decididas por um Eu quero expresso pelos próprios hom en s” (Ibidem, Z., VII, p .387).

48 Daí um a das diferenças entre m ú sica e poesia: e sta últim a requer m uitas durações, m as com eça a se libertar da exigência de um a m edida: " . . . A palavra não precisa d e ssa fix i­dez, inicialm ente porque tem seu apoio na própria representação, em seguida porque não está inteiram ente na exterioridade do som e de seu apagam ento, m as conserva ju s ­tam ente a representação interna com o elem ento artístico essencial. Por isso , nas repre­sentações e sen sações que exprim e claram ente em palavras, a poesia de fato encontra im ediatam en te a determ inação m ais substan cial para m edir a pau sa , a aceleração, a desaceleração - assim com o a própria m úsica já começa, no recitativo, a se liberar da igualdade sem m ovim ento do co m passo ... E a razão pela qual se exige que haja em poesia um a m edida-de-tem po, m as não um com passo [Takt], que o sentido e a significa­ção das palavras perm aneça a potência que predom ina relativam ente a tais asp ecto s” (.Aesthetik [E stética], XIV, p .296; trad. fr., III, (2) p .69.

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oposição à da m isticidade, abole toda m iragem de profundidade: “ O segre­do cessa quando a Essência absoluta é, com o espírito absoluto, objeto da consciência ... nisso, o revelado que em erge inteiram ente à superfície é justam ente o mais profundo” .49 Em outras palavras, a com pletude atingi­da refuta toda crença em algo de tão profundo que disso só pudesse haver aproxim ação ou desvelam ento im provisado. A m eta pela qual se ordenam as figuras da Fenomenología “é a revelação da profundidade [die Offenbarung

der Tiefe] e esta é o Conceito absoluto: essa revelação é, portanto, a su­pressão da profundidade".

Com preende-se melhor, então, por que H egel não julga necessário, com o Schelling, adstringir-se a buscar o espírito som ente no nível da letra, e nunca fora dela. O verdadeiro problem a não está em que o sentido esteja som ente no texto ou fora dele, b, ao obrxgar-se a escolher entre ám bos os~ term os dessa alternativa, m ostra-se sobretudo que esta ú ltim a não foi criticada - portanto deixou-se fora de contestação a idéia tradicional quê~sF tem de um a “ significação” .

G É R A R D L E B R UN

O Espírito não consiste em ser significação, em ser o Interior, mas em sero efetivo.

Ele nunca é o que se deveria adivinhar ou descobrir (para além do tex­to, assim com o em seus vincos); ele é aquilo que abole a expressão que, pondo-o com o “Interior” , im punha ter de adivinhá-lo ou descobri-lo,50 Por isso, é ainda ilusório pretender encontrar o verdadeiro sentido inscrito na sintaxe ou na disposição dos elem entos de um relato: um a vez mais, não é o lugar da significação que é preciso mudar, é a noção que dela se forja que

I I é preciso revisar. O significado não assom bra o significante mais do que é, / externamente, associado a este último: ele é a explosão do significante como

I dotado daquela dignidade de uma instância autônoma, justificável por um exam e em separado. “Deixar que se diga” im plica que se renunciou ao pro­jeto de deter, em qualquer nível que seja, o que o texto “quer d izer” ou “queria d izer” .

/ A partir daí, o traço específico da Representação deve ser deslocado. Ao acentuarm os dem asiadam ente o estilo antiestético da niosotia especulati-

va, tal com o fizem os no início, poderíam os levar a crer que Hegel, pós-

49 Fenomenología do espirito, p .577; trad, fr., II, p .266 e 268; trad, br., II, p .189.50 Ibidem, p .584; trad, fr., II, p .275.

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A PA C IE NC IA DO C O N C E I T O

platônico, quando critica a Representação, lança antes de tudo o anátema sobre a figuração sensível com o tal, ao passo que ele critica, mais geralm en- te, a necessidade de um a expressão ou de um a figuração . A persistência de úma distinção entre o figurante e o figurado (pouco im portando imaginá- los com o enfeixados ou com o cindidos) é o que caracteriza o m odo de pen- sar representativo. Se religiões e filosofias estavam inteiram ente incons- cientes da verHãde que nelas se dizia, é que todas elas se figuravam como exprimindo um conteúdo. Q ue a expressão seja estética ou não é secundário: a confiança que se concede ao exprim i-lo com o tal mede a distância que sepa­ra o discurso representativo do Saber que o atravessa; ela explica sobretudo que, por m ais próxim o que esteja de tal discurso (o cristianism o) do adven­to do Saber, a diferença de estilo que os separa não deixa de ser um abismo, não havendo m edida com um entre com preensão representativa e com pre­ensão especulativa. Esta não é a interpretação correta sucedendo-se às in­terpretações parciais e canhestras, mas o desenlace do engano interpretativo. Já não se trata então de retirar aos signos a sua ambigüidade, nem estar em condições de visar aos conteúdos em sua plenitude, em suma, atingir a regulagem ótim a que deixasse parecer as “ coisas m esm as". Trata-se de mostrar que os signos não são instrum entos - que eles não eram as aproxi­m ações do “ significado” verdadeiro (se fizerm os questão de m anter essa palavra, com o risco de perm anecerm os na im agem de um “Interior” que estivesse à espera de ser posto à luz), mas, antes, dobras já em seu desdo - bramento, “m om entos” já do conteúdo presente desde sempre. Ou ainda: enquanto a Representação acredita/a/ar-sobre, essa fala sempre é situável no desenvolvim ento daquilo de que se fãlãl

Sem levar em conta a contínua denúncia da linguagem com o operação de sinalização, não se reterá do hegelianism o senão esta afirmação perem p­tória: sem pre é possível um a leitura unívoca do sentido. E por isso enten­de-se esse mesmo sentido que a consciência ingênua acreditava ser capaz de exprimir, de m odo que essa consciência ingênua se relacionaria com o Sa­ber com o com uma consciência sapiente. Garantia que pode ser facilmente atribuída ao mais franco dogm atism o.51 Para creditar a Hegel esse dogm a­tismo, todavia, é preciso fazer com que ele assum a a teoria “representati­va” da linguagem - já ter afastado a possibilidade de um sentido que seja o seu próprio elem ento e dispense qualquer m ediador alheio. Portanto, é pre­

51 Acerca da sobrevivência desse "dogm atism o” em Marx, cf. as páginas sugestivas de Lucien Sebag, M arxism e et structuralisme, p .l2 8 ss .

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9 2 GÉ R A R D L E B R U N

ciso já ter relegado a especulação a traduções-de ou leituras-de, com o se ela se acomodasse, por sua vez, com a distância entre o que exprim e e o que é expresso. M as, então, com o com preender a expressão “deixar que a coisa se

diga"? Se não há diferença de natureza entre a m aneira pela qual o sentido se diz - definitivam ente, Ho estágio do Saber - e a m aneira pela qual a cõns- ciência representativa o dizia, com o seria possível descrever, a não ser por m eio de um artifício, as figura? representativas- com o suas antecipações? Adm itir-se-á qtie, alem disso, o filósofoespecuíativo tenha tom ado o direi- to de transpor todas as outras linguagens na sua. Em seu Hegel, M. C hâtelet expõe essa tese com força e clareza. D e saída, para Hegel, escreve ele,

o que hoje cham am de o significante, isto é, o registro mal d istinguido em que

se entrecruzam e se im põem as condutas, as falas, os escritos, os desejos, as

reações do padecer e as conseqüências do que se convencionou cham ar de a

vontade, se inscreve com o reflexo (ou reflexão) de um a ordem .

Concedido esse postulado, prossegue o autor:

o hegelianism o adm ite com o fato de razão - p or conseguinte, com o evidente -

que todas as linguagens são hom ogêneas entre si e que o lugar de sua h o m o ­

geneidade é o de sua integração. A redução integrante que ele introduz tom a

com o princípio a idéia de que todo conjunto de significações encontra no sis­

tem a superior sua expressão adequada ... Para ele, filosofar é traduzir; e tradu­

zir é transpor num a m etalinguagem definitiva e enriquecedora.52

O bservem os que Hegel só aplica as palavras “reflexo” , “transposição", “tradução" às linguagens representativas. A filosofia, por sua vez, não trans­põe o que dizem a Arte, a Religião ou a linguagem de Entendim ento com o se se tratasse de versões defeituosas em relação às quais ela seria a versão definitiva. Ela com preende esses m odos de expressão com o peripécias, ao m esm o tem po necessárias e deformadoras, do próprio conteúdo que elas pretendiam exprimir. Filosofar não é traduzir, mas fazer explodir a ingenuida­de dos que abordam o conteúdo com o se fosse algo de traduzível - dos que im aginavam poder transcrever ou desvelar aquilo cuja natureza é manifes­

tar-se (sich offenbaren), isto é, suprim ir as estruturas de transcrição ou de desvelam ento. Prova de hiperdogm atism o, se quiserem , não, porém, em

52 Châtelet, Hegel, Seuil, p. 174.

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t f v y S ) W *,

A P A C I Ê N C l ^ M i e ^ é Í T W ^ - 9 3

todo caso, de dogm atism o no sentido usual. Não há sequer m etalinguagem hegeliana; há os teclados de expressão, as linguagens - e há o Saber, orga- nizacão dem asiado inédita do sentido para que o prefixo meta baste para distingui-lo dos discursos representativos que ele dissolve. Se se negligen- ciar essa especificidade do especulativo (e, na falta de atenção para com a diferença de natureza entre “representativo” e "especulativo” , ela é forço­sam ente negligenciada), o Saber se torna, sem dúvida, o m elhor exem plo de um Logos tentacular que o filósofo estaria encarregado de reencontrar nas falhas e nas lacunas dos discursos vacilantes que o gaguejaram. Então, mas som ente então, H egel responderia bastante bem à sinalização do lo- gocentrism o certo de si, oferecido por Foucault:

D e todo m odo, trata-se de reconstituir um outro discurso, reencontrar a

palavra m uda, m urm urante, inesgotável que do interior anim a a voz que se

ouve, restabelecer esse texto m iúdo e invisível que percorre o interstício das

linhas escritas e por vezes as em puxa. A análise do pensam ento sem pre é ale­

górica em relação ao discurso que ela utiliza. Sua questão é infalivelm ente: que

é que se dizia, portanto, no que era d ito .53 ^

Q ue é que se dizia, portanto, em verdade? O nde localizar essa voz - deve haver um a - de que será preciso pôr-se à escuta? Não pensam os que o Sa­ber hegeliano possa ser im aginado com o essa voz infalível, ou, ainda, com ­parada ao sujeito transcendental neokantiano, ao saber de sobrevôo que a obra de M erleau-Ponty nunca termina de exorcizar. Se Loeos há. este não pretende ser um a última palavra; se ele é “proferido” sem repouso, é silen­ciosam ente. à nossarevelia nevido ao fato de aue nós falamos (como cristãos, cartesianos, poetas...) e assim tornaríamos o nosso lugar, mas nunca~Hê lílàneira que rivalize com aquilo qupdivpmns -^.rpprpspntntívnmpnfp - P-qnp O

enuncie m elhor que nós. “Q ue é que se dizia, portanto, no que era dito?” A questão do Saber hegeliano sera anieti fOílimiada da seguinie maiielTarno que é que aquilo que era dito era fatalm ente mal dito, pelo fato de que ele era expresso? Pífia nuança, replicarão: não é sempre, e de m aneira a mais afrontosa, relacionar o dizer com um a norma do bem -dizer? Concedam os isso. E perm itido apreciar a questão dessa maneira, e não faltam textos de Hegel em favor dessa interpretação: p ode-se ler a Philosophie de la religión

[Filosofia da religiãoj como um alegorism o perpétuo, admitir que, sob o

í

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9 4 G É R A R D L E B R UN

olhar, de Hegel, o dogm a cristão s e jo r n a o que o verbo, a crerm os em N ietzsche, era paraje s u s , “ esse sim bolista-tipo” .54 Mas então haverá difi- culdades em com preender o desdém de Hegel para com a exegese e os exegetas; desconhecer-se-á a diferença que há entre pretender deslindar os sím bolos e esfacelar a estrutura “ sím bolo” , entre a ambição de enfim dizer, lum inosam ente, a verdade que até então se oferecia alusivam ente e a am bi­ção de denunciar o principio de toda linguagem alusiva. Hegel pratica, oca­sionalm ente, o alegorismo; mas, se sua filosofia tivesse sido apenas um alegorismo, ou um exercício de tradução, ele não teria deixado de desco­brir, por seu turno, tesouros de sabedoria nos contos e m itos. Bem se sabe que isso não ocorre, a ponto de sua taita de curiosidade parecer até escan­dalosa: os egípcios não tinham senão vagas idéias, os prim eiros cristãos não pressentiam o sentido da Revelação ... A enquête herm enêutica é rapi­dam ente encerrada: naqueles tem pos, o sentido que hoje se desdobra nao estava sequer no estado de latencia. D e m aneira algum a se trata portanto de traduzir, em nosso discurso, discursos incoativos ou m aliciosam ente eso­téricos. Eis porque a especulação não é um a doutrina nova, superior às dou­trinas arcaicas e que as suplanta, mas uma linguagem nova. Nesta, os discur- sos em itidos na antiga linguagem podem ser situados e reconhecidos, à m aneira pela qual, em um a carta de estado maior, um a m ancha escura me faz reconhecer um a cidade em que, por m uito tempo, vivi. Podem ser situa­dos, mas não traduzidos, vam os repetir: não há substituição do que deveria ser dito pelo que foi efetivam ente dito, mas substituição de um a gramática por outra, de um jogo de linguagem por outro. Não se traduz o “represen­tativo" em “especulativo” , como do alemão para o francês, mas com o uma carta geográfica “traduz” um país - e bem se vê que nesse caso o verbo é incorreto. Daí, aliás, a perfeita inocência das filosofias passadas.. Platão m ereceria ser criticado por não ter dito o que era o U niversal concreto, se obscuram ente quisera dizê-lo. Antes, porém, admirar-se-á que tenha dito, por lam pejos, em sua linguagem . N o mais, estava adstrito às regras desta última: nao se salta por sobre sua sintaxe, bem com o não se salta por sobre seu tem po, e reprovar Platão por ter falado em idiom a “representativo” seria tão burlesco quanto lhe reprovar por ter falado grego. Assim , a pri­m eira linguagem é localizável na segunda, mas sem que haja m edida co ­m um com ela: é que, de um a a outra, é diferente a análise do significar. Sempre se volta a esse ponto.

54 Cf. N ietzsche, A ntéchrist [A nti-Cristo], Paris, M ercure, p .229.

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E nesse ponto é que se pode recusar a Hegel crédito e m esm o atenção. Tanto m ais facilm ente quanto todo o m ovim ento do pensam ento contem ­porâneo nos inclina a tom ar com o fantástica sua análise do sentido e como desprovida de interesse a crítica do conceito de expressão que, por conse­guinte, ele efetua. Se, com efeito, com eçarm os a supor que a atividade sim- bolizadora é prim eira e irredutível,55 e o sentido é som ente o que resulta do jogo dos signos ou o que por interm édio deles se alinhava, é obvio que renunciam os, de urna vez por todas, a sair do aparelho sim bólico. A única tarefa, então, é a de reconduzir um sentido, sempre presum ido de m aneira dem asiado apressada pelos m etafísicos, às configurações significantes que o engendraram. O que pode então designar a própria noção de Saber abso- luto, se não a m ais pretensiosa das em presas que confiaram na idéia de significação, herdada do platonism o? O bservem os som ente que H egel te‘- ria seguram ente situado essa crítica entre os enganos da Representação: chega a ser m ais sintom ático desta últim a fazer do sim bolism o o solo últi­m o de nossa experiencia do que se deixar fascinar pelasim agens. Tentare­

m os com preender a razão disso, partindo de um exemplo: na Philosophie de

la religión [Filosofia da religião!, a confrontação do judaísmo, religião sim ­bólica, e a religião estética da G récia.

^ Em Philosophie de l ’histoire [Filosofía da historia], o judaism o aparece no declínio do m undo rom ano com o 'p r^ e d éu tícaa o ' cristianism o. A Philosophie

de la religión [Filosofia da religião], no m esm o espírito, opõe o principio ju- daico à pobreza~cTò Geisf da época imperial. Decerto, a religião romana está longe de desem penhar um papel inteiram ente negativo. Seu panteão eclético é m esm o a vala em que se reúnem os dois princípios precedentes, judaico e grego, m esm o que ali eles se corrompam: de um lado, a religião grega per­deu o conteúdo ético de seus deuses que a superstição romana rebaixa para o nível de meios; por outro lado, perdeu-se de vista o Deus único dos judeus. Porém, devido ao fato dessa dupla corrupção, o divino é pensado pela pri­meira vez com o unificação. Unificação inteiram ente superficial, fatum assimi- lador que sim boliza o poder do déspota imperial - mas, enfim, esboço de um a religião universal. Resta, no entanto, que essa unificação é sobretudo

55 Posição claram ente exposta por Sebag, op. cit., p .115-6.

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caricatural: “ ela não pode ser a unidade verdadeiramente espiritual, como na

religião do sublime” .56 Essa referência a um estágio superado é espantosa: em que o judaísm o preserva um valor exemplar, ele que foi apresentado com o a mais abstrata das religiões do Finito? A resposta parece ser a seguinte: en­quanto em Rom a advém um a osm ose entre o divino e a Finitude, o judaís- mo, inversamente, experim enta a im possibilidade que há em conciÍiá4os. Uai o mérito relativo que se lhe reconhece. Com o um povo que “possuía a intuição inteiram ente abstrata do Único para si e afastara com pletam ente de si a Finitude” poderia ter o projeto de fazer convergirem no m esm o ponto o divino e o Finito? O judaísm o, ao desesperar da unificação, deixava ao me- nos vazio o lugar da verdadeira “unidade espiritual". Enquanto a Religião romana prefigura a Religião do Espírito como religião universal, o judaísm o indica que forma esta não deverá revestir. Desse ponto de vista, portanto, lhe será concedida uma superioridade sobre as outras religiões "determ ina­das” (grega e rom ana). Mas som ente desse ponto de vista. Pois, no mais, ela é a m enos elaborada. Por que H egel a coloca no m ais baixo grau das religiões finitas? ' ~~ ' -

O que é um a religião finita? E preciso entender o term o em relação à “religião natural” . A s religiões naturais põem o Infinito com o a “base” a que o Finito só faz se adjungir (nur hinzukommt). Nelas, quando vem à luz a distinção das significações “Finito” e “Infinito”, é na forma de um a oposição entre dois entes ou pelo sacrifício de um dos lados.57 Também este era o procedim ento do eleatismo: som ente o Uno é, afirmava ele, “mas esse Uno é o Infinito não refletido em si” ; ele só representa um lado “perante o qual a m ultiplicidade do ser mundano perm anece situada” . Por isso, a supressão

56 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .157.57 “O conceito m etafísico de religião [das religiões determ inadas] define-se em relação ao

precedente, que com eçava pela unidade do Finito e do Infinito; o Infinito era a abso lu ta negatividade, a potência em si - e o pen sam ento e a essência da prim eira esfera se lim i­tavam a e s sa determ inação da infinidade. Para nós, é verdade, o Conceito, n essa esfera, era unidade do Finito e do Infinito; m as, para ela, a E ssên cia era determ inada som ente com o o Infinito, com o um a base n a qual o Finito só era adjungido. Por isso , o lado da determ inação era um lado natural. Tratava-se, portanto, de um a religião natural, v isto que, para existir, a form a exigia um a existência natural. E ssa religião já m ostrava, certa­m ente, a inadequação da exterioridade im ediata com a interioridade. N o D esm esurado, ela se evade da identidade im ediata do natural e do absoluto. A figura, estendida em D esm esura, explode - o ser natural desaparece e o Universal com eça a se tornar para si. M as a infinidade ainda não é determ inação im anente e ainda se em pregam , para sua apresentação, form as naturais exteriores e im próprias. O natural é po sto negativam ente na D esm esu ra tanto quanto ainda for ele positivo em seu ser finito em relação ao Infini­to” (Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, II).

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da Physis em proveito do Uno atesta, sobretudo, que se atribui ao segundo o m esm o m odo de ser que à prim eira.58 A s religiões “finitas" ou “determ ina­das” põem fim a essa situação. “Agora, ao contrário”, a unidade do Finito e do Infinito é a própria Essência, e o que, no estágio anterior, era tomado com o o “lado finito” oposto ao Infinito é visto com o o “m odo de determ ina­ção” (das Bestimmen) da Essência. Esta deixa de ser, portanto, das hõchste

Wesen: o ser mais elevado entre os entes im ediatos - “não um ser-para-si abstrato, mas parecer-para-si [Scheinen für sich] ” .59

A dialética da Essência é, na Lógica, a teoria dessa transform ação. En­quanto para a consciência ingênua a Essência era “ainda outra coisa atrás do Ser [noch etwas Anderes hinter dem Sein]", a dialética m ostra que a passa­gem do Ser à Essência não é de m aneira nenhum a o equivalente a uma abstração que seria efetuada sobre esse Ser. Trata-se som ente do primeiro m om ento da dialética: o essencial é oposto exteriorm ente ao inessencial. M as a Essência não tem de ser localizada como um O utro em relação ao não-essencial: ela é o ser-imediato como suprimido. Ora, a Aparência, justa­m ente, quer dizer outra coisa? Ela é an und für sich nichtige Unmittelbare.60

Um a vez que se passou pela Aparência, o im ediato já não é, portanto, dis­tinto do que é a Essência. Não o im ediato tal como entendido até agora, sólido e irrecusável - mas o im ediato consum ando seu aniquilam ento, isto

é, seu sentido. Com o tal, ele é a identidade própria da Essência, e m esm o o seu único conteúdo.

M as o Interior ou o além supra-sensível nasceu, ele provém do fenôm eno

[es k o m m t au s der E r sch e in u n g h er] e o fenôm eno é a sua m ediação, ou ainda, o

fe n ô m e n o é su a essên cia [d ie E r sch e in u n g is t se in W esen ] e, de fato, seu preen chi­

m ento. O supra-sensível é o sensível e o percebido vistos com o na verdade

são; m as a verdade do sensível e do percebido é de serem fe n ô m e n o . Se com

isso quisessem entender que o supra-sensível é, por conseguinte, o m undo

sensível ou o m undo tal com o ele é para a certeza sensível im ediata e para a

percepção, com preenderiam às avessas; pois o fenôm eno não é o m undo do

58 Crítica que retom a a de A ristóteles, quando este apresen ta os eleatas com o “m etafísicos sem o sab er": “Sequer concebiam que houvesse um a ousia fora dos seres sensíveis; toda­via, foram os prim eiros a pen sar tais naturezas necessárias, se deve haver conhecim ento ou pen sam ento , de m aneira que transferiram para as co isas daqui os d iscu rsos sobre tais seres-ali" (De Coelo, 298 b 20).

59 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, II.60 Logik [Lógica] IV, p.490.

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9 8 GÉ R A R D L E B R U N

saber sensível e da percepção com o ente [ais seiende], m as é o saber sensível e

a percepção considerados antes com o superados e colocados em sua verdade

com o interiores.61

O im ediato, portanto, à condição de pensá-lo em sua evanescência e não mais ais seiend, só tem com o significação (não direm os: “ exprim e”) o fato seguinte: a Essência é o ser doravante entendido com o negação do que até agora se entendera por “ser” - digamos de m aneira m ais breve: entendi­do com o não-ser. Tal é a significação da Aparência, quando a deixam se efetuar: a im ediatez de um novo estilo que caracteriza a Essência não é mais um a im ediatez sendo (seiende Unmittelbarkeit). A o se dissolver, a Aparência m ostra que a Essência não consiste em nada m ais que no “retorno-a-si” do Ser - sua redução, após ter se liberado da forma do im ediato.

Mas voltem os do m ovim ento das puras significações para o das reli­giões históricas. O processo que acabamos de descrever é bem o que dá às religiões “determ inadas” a sua especificidade, porém, decom posto, bloquea­do em cada etapa; a ação de m ostrar integral (a Aparência não é nada mais

que a Essência), ali, está deform ada como expressão de um conteúdo pelo outro. Primeira das religiões determinadas, o judaísm o contenta-se em enun­ciar que a existência im ediata é Aparência.62 O Finito perde sua form a posi­tiva para se tornar contingente, e Hegel ressalta a im portância dessa análise:

Já m ais concreto, o contingente pode ser ou não ser. C on tingen te é o real

que pode ser igualm ente possível, cujo ser tem o valor de não-ser. N o contin­

gente, a negação de si m esm o é assim posta; ele é, portanto, um a passagem

do ser ao não-ser; ele é, com o o Finito, negativo em si. M as, com o ele é tam ­

bém não-ser, é igualm ente a passagem do não-ser ao ser. A determ inação da

contingência é, portanto, bem m ais rica e m ais concreta que a da Finitude.63

O antigo “im ediato” se tornou, portanto, o Parecer da Essência divina e o judaísm o já não deixa subsistir o Finito como tal, contíguo ao Infinito.

61 Fenomenología do espírito, p .119; trad. fr., I, p. 121; trad. br., I, p .104.62 “D e resto, o Sublim e não é o D esm esurado que, para se determ inar e se formar, ainda

pode utilizar o dado im ediato e su a s deform ações fantásticas, a fim de sugerir um a apro­priação da Interioridade. O Sublim e, ao contrário, acabou com a ex istência im ediata e com todos os se u s m odos; não recai na necessidade de recorrer a eles para se apresentar, m as ele os exprim e com o A parência" (Ph. Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .43).

63 Ibidem , XVI, p.20.

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Entretanto, tam pouco chega a pensar que o Infinito pudesse se anunciar por interm édio do m ovim ento nadificante da Aparência. Esta m antém su­ficiente persistência para perm anecer exclusa e excludente. De um lado, o Deus único é “ excludente, sem O utro a seu lado; não tolera a seu lado nada m ais que tivesse independência” .64 Mas, de outro lado, “com o ele é som ente o Único, o Outro cai fora d’Ele, como seu m ovim ento negativo” .65 Embora a potência divina exclua a natureza em vez de a tolerar, ela confere a esse ser-negado o rosto de um ser que se encontra negado. Cabe sobretudo não entender com isso um ser independente (selbstständig): agora, não se tem um relacionam ento com um a dem iurgia,66 e o m undo é antes de tudo ser-posto, criatura - nele, o selo da dependência é indelével. Porém, por não ser m ais um dado im ediato e independente, esse m undo criado ainda não diz que ele não é nada mais que o que a Essência é; subsiste a diferença entre a Essência e o im ediato-negado, isto é, entre a Essência e aquilo que dela é - mas “para nós” - a definição. Em outros termos, há decom posição de um m ovim ento único em dois tempos: o nom e (a Essência) e o proces­so que na realidade esse nom e só nom eia (o im ediato-negado) são coloca­dos à distância um do outro. A o não considerar os conteúdos com o m o­m entos, traça-se um a distância entre eles; por receio de identificar os díspares, expulsa-se D eus de seu m odo de presença. A potência divina “não é formadora [gestaltend], de m odo tal que ela se apropriaria da realidade, mas ainda é essencialm ente um com portam ento negativo” .67 É por isso que Deus ainda é apenas “ o Senhor” .

Ora, decerto, o tem or do Senhor é o com eço, m as som ente o com eço da

sabedoria. Inicialm ente é a religião judaica e em seguida a religião m aom etana

que concebem D eus com o o Senhor. Seu defeito consiste em não fazer ju z ao

64 Ibidem , XVI, p.42.65 Ibidem, XVI, p.51.66 “A criação divina é m uito diferente do surgim ento [Hervorgehen], devido ao fato de que o

m undo surge fora de D eus. Todos os povos têm teogon ias ou, coincidindo com elas, cosm ogon ías: a categoria fundam ental d estas ú ltim as sem pre é o surgim ento, não o ser criado. A partir de Brahm a surgem os deuses; nas cosm ogonías gregas, os m ais elevados d eu ses esp irituais surgiram por últim o. E ssa m á categoria do surgim en to desaparece agora, pois o Bem, a Potência absoluta, é Sujeito. E sse surgim en to não é a relação de criação: o que surge é o existente, o efetivo, de m aneira que o fundam ento de que ele surge é po sto com o o inessencial suprim ido - aquilo que surge não é posto com o criatu­ra, com o algo que não tem independência nele, m as com o independente” (P h . Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .52).

67 Ibidem , XVI, p.50.

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1 0 0 G É R A R D L E B R UN

Finito [das Endliche nicht zu seinem Rechte kommt], em fixá-lo para si ... A o cha­

m ar D eus de o A ltíssim o, conserva-se o m undo diante de si com o algo de

firm e, de positivo - e se esquece de que a Essência é justam en te a supressão

de todo im ediato.68

“E bem ridículo” , dizia Pascal, “escandalizar-se com a baixeza de Jesus Cristo, com o se essa baixeza fosse da mesma ordem que a grandeza que ele vinha fazer aparecer” . N esse ponto, o “ esquecim ento” que Hegel reprova ao judaism o leva este últim o a assinalar a Essência na mesma ordem que a Aparência, fora dela, mas, por isso m esm o, com ensurável com ela. Esse desconhecim ento cintila nas próprias palavras: cham am D eus de o "O n i­potente” ou o “A ltíssim o” , como um a m ontanha mais elevada que sobre­pujaria as demais. Q ue im porta então que o “m undano” tenha perdido sua independência, se, em seu aniquilam ento, ele não é reconhecido com o m ovim ento de se negar, mas som ente com o um im ediato que é posto a seu serviço - que im porta que a N atureza seja decaída, se ela preserva sua fixi­dez ontológica? Reencontrarem os, em outros lugares, amostras desse m é­todo crítico: as decisões m etafísicas proclam adas de m aneira bem elevada (“D eus é tudo” , “o m undo não é nada”) têm pouquíssim o alcance, enquan­to os preconceitos ontológicos perm anecerem no lugar e as significações, m esm o rasuradas, continuarem sendo pensadas com o conteúdos invariá­veis. Assim , o judaísm o bem pode confessar que “Deus é espírito” : como ele O estereotipa na forma do A ltíssim o, justamente não deixa que Ele se m ostre como Espírito. O preconceito da Finitude retira toda seriedade da­quilo que dizem as religiões e as filosofias. Logo, não nos deixarem os abu­sar pelo aspecto terrorista da crítica do sensível que o judaísm o efetua: o im portante é que ela se exerce sobre algo cuja presença não contesta como imediato. O judaísmo, com isso, mais prolonga as religiões naturais que anun­cia o cristianism o. Para ele, é im possível entrever que a Essência já está

nesse desaparecim ento do sensível.De fato, porém, nisso não é sensato o judaísm o? E deve-se condená-lo

pela sim ples palavra de Hegel? Entre Hegel e ele, poder-se-se instaurar um diálogo cujos perigos devem ser com preendidos. A esse respeito, correre­m os o risco de dar um a idéia, em pregando um m odelo equivalente e nos perm itindo um desvio. Vamos interrom per o com entário e colocar a ques­tão: judeu ou dialético, qual é, a essa altura, o m ais m istificado? Em nom e

68 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 112, Z., VII, p .264-5; trad. br., I, p .224-5.

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C

A P AC I ENC I A DO C O N C E I T O

de que este últim o afirma a vaidade da separação entre o divino e o criado? Colocar essa questão é se recolocar no ângulo de tiro que M arx escolhe na Critique de la philosophie de l ’Etat [Crítica da filosofia do Estado]: em nome de que H egel reabsorve com tam anha desenvoltura a sociedade civil no Estado? A preponderância da sociedade civil, a separação entre o civiT e o político” são ostentadas em plena luz do dia - e nenñum a ontologia ños convencerá de que sonham os e de que nossa participação no Estado é,"a despeito das aparências da cidade burguesa, nossa verdade secreta. O que_ bem poderia ser ilusório é a identidade filosófica do ftomem e do cidadão, não sua separação. M arx parte daí: não tem os nenhum direito de tom ar a independencia da sociedade civil em relação à esfera política com o uma doença efêm era do organism o ético. Para Hegel, essa independência ê su­perficial: ele deplora a “representação atom ística, abstrata", que os nloso- fos “form alistas” nos dão da vida social, com o se se tratasse sim plesm ente de um preconceito tenaz, nascido na cabeça dos juristas rom anos, u ra , essa ‘ representação abstrata” “ é a abstração do Estado político... Decerto, ela é atom ística, m as é o atom ístico da própria sociedade. A concepção não pode s~~er concreta, quando o objeto da concepção é abstrato” .69 Por isso, o jovem M arx recusa inteiram ente o juízo de HegeJ. sobre o Estado burguês ainda abstrato. Por m ais abstrato que seja esse Estado, ao m enos ele tem o meri- tõ~He arrancar o hom em a seu falso destino de “Cidadão". E dizer pouco, portanto, afirmar que Hegel não estava em condições de compreender~seu tempo: a m editação acerca da “Politique" [Política] de A ristóteles fazia com que ele desconhecesse que o Estado m oderno “resolve o enigm a” das cons^" tituiçÕes passadas e representa um progresso n ã clanticação da coisa polí­tica. Com ele se esvanesce a ilusão grega e m edieval: propriedade, com ér­cio. sociedade ia nao passam por coisas essencialm ente políticas. Com ele , o indivíduo deixa de ser dado com o a expressão da lei; a lei, inversam ente, é a criação dos individuos,'0 e o Estado nao aparece m ais com o a “forma organizadora” . Em suma, o Estado m oderno oferece a vantagem m etodoló­gica de devolver o Estado político à sua base humana: visto que o hom em não é mais a encarnação do Estado, este últim o, doravante, já não será vivi- do como a destinação do homem. Era portanto um preconceito, da pariê de Hegel, denunciar com o aberrante a separação do civil e do político. Nis-~~ so, a crítica do jovem M arx tom a o partido do “judaísm o” contra a concilia­ção dialética julgada com o nusdfiá. “

69 M arx, I, p .283 (D ietz).70 Ibidem , I, p .231.

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)ue o cidadão m oderno se recuse a se pensar essencialm ente com o sujeito político, é para H egel, com efeito, úm dos sinais dessa teim osia na Finitude, que o judaísm o sim boliza. Uma vez que essa õbstinaçãÕ~e~reco- nnecida e denunciada, concordar-se-a que a sociedade civil só chega à sua verdade com o sim pies aparência do bstado. É som ente nêssa aEdicaça'5"qüe' o estam ento privado” (Privatstand) se oferece a nós com o “o que ele já e~ [als das, was ‘bereits’ ist]” .7] Já: vam os traduzir “ desde sem pre” , “ em verda-~ de” ..· Marx, porém , não o entende assim. Ele tom a a palavra ao pé da letra e pergunta: com o o hom em seria já a som bra do Cidadão? O que a socieda­de civil já é, sob nossos olhos, é “ um conjunto de m assas acidentais” , e, “para chegar à significação e à atividade políticas, o estam ento privado deve antes renunciar a ser o que ele já é com o estam ento privado” ·72 O J io mem, com o cidadão, não se torna nem volta a ser o que ele era eternam ente: renuncia ao que ele era há pouco, à sua família, ao seu com ércio, a suas relações privadas - a guarda nacional abandona o seu negócio. “ Sua exis- tencia, com o cidadão do Estado, é um a existência fora de sua existência na com unidade, a qual é, portanto, puram ente individual.” 73 Logo, é preciso ser m etafísico para acreditar que, ao se voltar para a coisa pública, o h o ­m em vâ reunir-se a sua verdade. Pelo contrário, ele a perde, pois a sociedãiclè civil - a dos atom os sociais - e, por enquanto, o único elem ento concreto 3ê" nossa vida. Portanto, o hom em privado de hoie certam ente não é Cida- dão por essência. A diferença entre os “ estam entos” (Stände) perdeu sua significação política e não mais corresponde apenas a um a diferença de p o ­sição social (soziale Stellung). A_ clivagem entre o civil e o político se "apro­fundou a ponto de “ a diferença dos estam entos adquirir um a outra signifi­cação na eslera política e nà esfera civil” . Com o sustentar, a partir de então, que o singular se reenco n tra n o Universal? Com o poderiam os m em bros da sociedade civil reconhecer, sem extravagância, sua “existência substan-~~ ciai” no Estado? E preciso toda a má-fé do dialético para afirmar que haja continuidade ali onde a fratura é tão nítida: "L)e nada serve não qüeréTvêr esse abisniu que é"liauh|Jüt>to e do “qual se m ostrou a existência pelo pró-^ prio fato de que foi saltado [durch den Sprung selbst]” .74

M etáfora instrutiva: então H egel teria se proposto, de fato, a reconectar

duas^ eqüengias^distintas^ Havèria a sociedade civü - e~3epozs*a^'ociedãd é

71 Ph. Rechts [F ilosofia do direito], § 303, VII, p .413.72 M arx. Ibidem , I, p .280.73 Ibidem , I, p .281.74 Ibidem , I, p .282 .

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^ - P ^ e T E N O l A DÜ C O N C E I T O

civiLreabsorvida no Estado, e a distância seria percorrida de tal maneira que, retrospectivam ente, ela parece ilusória. E que, portanto, a descrição

do desenvolvim ento da sociedade civil em Éstado tem de ser com preendi­da, antes de tudo, como um progressus: se se acreditasse em Hegel. a socie­dade civil iria realmente reunir-se ao' que ela é realmente desde sempre. Da m esm a maneira, na dialética religiosa, a confissão de n a didade_do m undo finito abriria para o reconhecim ento da onipresença do divino. Se assim fosse, portanto, seria possível perguntar, a cada etapa, se o dialético tem o direito de abandoná-la tão depressa. Mas, para que assim fosse e para que esse m étodo crítico tosse pertinente, seria preciso que houvesse um íme- diato em um primeiro tempo, a negação desse im ediato em um segundo tempo";, enfim, o resultado desse m ovim ento, Umco subsistente, em um terceiro. E"n- tão o resultado não seria m ais que resultado e o ser m ediado seria necessa- rio, não porque ele se abole, mas com o lugar de passagem - nao pela confissão

que fa z de não ser um ente, mas com o um estágio “ ente” do encam inham ento. O dialético teria então m uitas oportunidades de deixar subsistir, atrás dele,o que “ supera” . E se torna legítim o perguntar o que vale essa superação.

Mas7sè~ãssim se concede uma traietòna ao “m ovim ento","comò cõfflprgüh- der que essa história seja tam bém a de um a desm istificação, que nela não se atravesse som ente a aparência, mas que se a faça explodir em pedaços? Q u e o resultado não seja absolutam ente nem sobretudo um terminus, mas o Tundamento no qual se subm erge a aparência e que nada m ais diz do que essa subm ersão?

Esse desenvolvim ento da m oralidade im ediata, através da divisão da so ­

ciedade civil, rum o ao Estado, que se m ostra o seu verdadeiro fundam ento -

som ente esse desenvolvim ento é a dem onstração científica do conceito do Es­

tado. D ado que, no cam inho do conceito científico, o Estado aparece com o

resultado, ao passo que ele se dá com o verdadeiro fundam ento, essa m edia­

ção e essa aparência se suprim em tam bém em im ediatez. E por isso que, na

efetividade, o Estado é o que vem prim eiro .. < 5 ------------------------------------------

Sim, com o com preender que a mediação não seja algo que se suprima, mas o próprio m ovim ento de se suprimir? Esse tem a é incom patível com a im agem de um a passagem efetiva. Para não renunciar a essa im agem , con­siderando ao m esm o tem po que a dialética é a revogação daquilo que ela

75 Ph. Rechts [F ilosofia do direito], § ^ 5 6 , VII, p.327.

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G E R A R D L E B R UN

A o/vwi

percorre, concebe-se então tal im agem com o um a anamnese: um ascenso, por m eio do efêm ero e do insignificante, até a verdade que, desde sempre, assom brava essa neblina. A lém de história fantástica, a dialética se torna um a Erinnerung no sentido m ítico - que justamente Hegel criticava em Platão.

Pois de m aneira algum a o m ovim ento do Saber consiste em levar à eclosão um a verdade latente.

Em Platão, todavia, a palavra reminiscência tem correntem ente o sentido

em pírico, o prim eiro sentido - isso é inegável ... O escravo só tira a ciência de

si m esm o, de m aneira que nada m ais parece fazer senão lem brar-se de algo

que já sabia, m as de que se esquecera. Ora, quando Platão denom ina reminis­

cência esse surgim ento da ciência a partir da consciência, daí ele induz a deter­

m inação de que tal saber já foi realm ente achado [schon einmal wirklich] nessa

consciência - não som ente que a consciência detém em si, segundo sua essên ­

cia, o conteúdo do Saber, m as que ela já o possuiu com o consciência singular,

e não com o universal.76

É assim que, pensa H egel, os dados estariam viciados desde o início. O Finito em relação ao Infinito, a sociedade civil em relação ao Estado, não m ais que o pequeno escravo de M ênon em relação à geom etria, não são os invólucros de conteúdos que já se encontram ali. A ssim com o não se enca- m inha para um termo, o Saber não desenterra um a verdadê~ia~'pfgsente! Não se deve acusá-lo de queim ar etapas, tam pouco de se dar em segredo o que fingisse descobrir. Tais queixas so teriam valor se o "desenvolvim ento da coisa” tivesse o andam ento de um relato com episódios. Ora, é assim que ele é freqüentem ente imaginado, como um percurso: “ superar” [dépasser] é traduzido por “ passar além ” [passer outre] - a explicitação do^imediato é com preendida com o a substituição de um term o por outro. E, a partir de então, por que passar da significação caduca à nova significação, se não pela decisão de quem dá as cartas? Por hora a dialética parece jogar com descon-

1 tinuidades efetivas. Mas essa escam oteação é m enos im putável à desenvol- \ tura do dialético que a nossa surda resolução de não deixar o im ediato m or­d e r e continuar pensando por descontinuidades entre term os im ediatos, decom pondo previam ente a indecom ponível consum ação do sentido. Daí que os dialéticos sejam suspeitos de querer realizar proezas. Daí a defasa- gem entre a intenção que lhes em prestam e a sua tarefa efetiva. A dialética

76 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .204-5.

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^ M A K c £ o . b lM .¿ T ÍC JA P A C I E N C I A D O C O N C E I T O

não atalha nem anula nenhum a distância: deixa de pensar a diferença tendo com o pano de fundo uma distância. N ão pretende destruir o im ediato pre- sente: ela se opõe ao sentido que se concedia â sua presença. Isso é pensar 2

coisa: renunciar às abordagens, às descrições, às apreciações que a deixa- riam, ontologicam ente, no lugar. Que valem então, aos olhos do dialético, as constatações de descontm uidade que lhe são opostas: há D e u s e h á ü s coisas; há o Estado e há a sociedade civil? Esses cham ados à oraem só o atingiriam se ele se em penhasse em colm atar os abism os, subverter as dis­tâncias, o que corresponderia a deixar a tais distâncias, a tais aPism osf a consistência que o judaísm o, por exemplo^ deixa ao fin ito , precisam ente quando o nega. Ora, ao consentir com isso, o dialético se tornaria, devido a tal fato, um prestidigitador: “olhem suas oposiçoes; delas vou tazer ídenri-^ dades". O exercício seria tanto mais estonteante quanto o ponto de partida perm anecesse não criticado. Por isso, só é fácil pegar H egel em talso~ao imaginá-lo com o alguém que, inicialmente, aceita nossa topografia conceituai

para, em seguida, brincar de desfigurá-la.Voltem os agora, não à tese que H egel em prestaria ao judaísm o para

superá-la, mas à topografia do judaísm o tal como ele a descreve. Há Deus, portanto, e há indignidade das coisas; d ’Ele, nada transparece nelas: “O Único é o Senhor que a tudo domina, e ele não tem sua presença nas coisas naturais” .77 Assim , a unificação imediata de Deus e da natureza se tornou impensável: é uma vantagem , ao que parece, e com isso o judaísm o poderia parecer uma aproximação m enos infiel do especulativo do que a religião grega.78 Mas essa vantagem é contrabalançada pela im possibilidade de toda apresentação de Deus. Afinal de contas, se o judaísm o se recusa a deixar a natureza acolher o divino, é m enos em razão da im ediatez da primeira que da abstração deste últim o, que lhe proíbe todo com prom isso com o seu Outro. “A s religiões orientais - e também a religião judaica - perm anecem no conceito abstrato de Deus e do Espírito. ... Ora, na religião grega, Deus com eçou a se tornar m anifesto de m aneira determ inada.” 79 A í está, final­m ente, a superioridade da religião estética sobre a religião do Sublime. Se­ríam os tentados a atribuir a um a .concepção m ais elaborada do divino a

77 Aesthetik [E stética], XII, p .497.78 “ D eve-se confessar que a bela unificação da natureza e de D eus só tem valor para a ,

fa n ta s ia , n ão p ara a R azão . Para o s qu e a in d a fa lam tão m al da d esd iv in iz aç ão[Entgötterung] da natureza e apreciam essa identidade, seria no entanto m uito difícil, ou im possível, crer na divindade de um a vaca ou de um m acaco" (P h . Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .59).

79 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 384, Z., VIII, p .38; trad. br., III, p .28.

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1 0 6 G É R A R D L E B R U N

desconfiança que a religião do sublim e m anifesta perante as im agens de Deus; ao contrário, ela dá testem unho da ausência do conceito de “ apresen­tação divina” em geral. O judaísm o não condena tanto a presença, intuitiva de Deus quanto afasta toda idéia de sua presença. O divino nem m esm o atingiu aii o grau de diferenciação que lhe perm itiria poder “ ser com preen­dido com o Espírito e assum ir um a form a diante da intuição” .80 De m aneira que a recusa da apresentação por imagens indica som ente a incapacidade de pensar toda relação, m esm o representativa, m esm o falseada, de Deus com o m undo criado. Sua incom ensurabilidade é tal, que a intencionalidade imaginária ainda está desprovida de sentido, com o m ostra este texto-chave da Esthétique [Estética]:

Freqüentem ente se ouve falar de H élios com o deus do Sol, D iana com o

deusa da Lua ou N etu no com o deus do Mar. Ora, tal separação do elem ento

natural com o conteúdo e da personificação hum ana com o form a, assim com o

sua ligação exterior, concebida no m odelo da suprem acia do deus sobre as

coisas naturais, assim como o Antigo Testamento nos acostumou, é im possível de

aplicar às representações gregas. Pois em parte algum a se encontra entre os

gregos a expressão ó θεός τοΰ ήλίου, της θαλάσσης etc., ao passo que tam bém

eles teriam certam ente em pregado essa expressão, se tivesse sido apresentada

em sua intuição. H élios é o sol com o deus. Mas, ao m esm o tem po, é preciso

insistir no fato de que os gregos não tom avam o natural com o tal enquanto

algo já divino. Tinham , ao contrário, a representação determ inada de que o

natural não é o divino . . .81

“O Sol 'com o’ D eus” (Die Sonne “ais” Gott): o judaísm o não se elevou até a religião expressa por esse ais. Nada poderia fazer com que a m ajesta­de divina se anunciasse na infinita vaidade das coisas. A natureza estava rebaixada a ponto de não se oferecer a nenhum a transfiguração: o Espírito

80 A esthetik [E stética], XIII, p .6. Cf. Pascal, C arta a Sra. Périer, l s/4 /1 6 4 8 ; Pensées, trad. p .656.

81 A esthetik [E stética], XIII, p.60-1. “ Em nenhum a religião é possível dizer que os hom ens tenham adorado o sol, o mar, a natureza; se adoram tais co isas, é que elas perderam ju stam en te o caráter prosaico que têm para nós; v isto que e sse s ob jetos são divinos, ainda são bem naturais, porém , devido ao fato de serem ob jetos da religião, eles são ao m esm o tem po represen tados num m odo espiritual. A consideração do sol, das estre las com o fenôm enos naturais é exterior à religião. A visão da natureza cham ada prosaica [a da consciência de Entendim ento] não é senão um a clivagem u lterior" {Ph. Religion [Fi­losofia da religião], XV, p .96-7).

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não podia ser, de maneira nenhuma, “ aquilo que se m anifesta". A condenação da Erscheinung se estendia, portanto, a toda Offenbarung em geral, o despre­zo do fenom enológico entravava, desde o princípio, o desdobram ento do Conceito. O s gregos, por sua vez, acreditaram depressa demais que o divi­no transparecesse por interm édio da physis, ao passo que esta não pode ser senão um m om ento, com o a Aparência é m om ento da Essência. A arte gre­ga foi, entretanto, ao m enos a alegoria desse Scheinen especulativo. E, afi­nal, mais vale crer que o A bsoluto pode ser intuído que se resignar a ser dele exilado, m ais vale im aginar a Revelação que pensar, com Kant, que “este m undo é um livro fechado” . A abstração hebraica é total: ali não se suspeita sequer de que o divino não é nada mais que revelação-de-si. A o contrário, a presença sensível do deus grego é o primeiro esboço do divino com preendido com o “vir-a-ser-Outro-perm anecendo-Si” .

N ão basta, portanto, proscrever as im agens para sair da Representação: a provã"clisso e que ha uma desvalorizacao do sensível ainda mais ' repre- sentativa” que sua glorificação estética. No judaísm o, observa Hegel, a na- tureza nao e o reflexo do divino, mas efeito de um a fala (“Deus disse: faça- se a Luz, e a Luz se fez”). Poder-se-ia pensar que essa relação fosse m enos deform adora que a fusão equívoca do divino e da natureza na arte grega.

O Senhor, a Substância una, se exterioriza, é verdade, m as essa m a­

n eira de p ro d u ção é a exte rio rizaçã o m ais pura, ela p ró p ria in corp órea,

etérea: é a palavra, a expressão do pen sam ento com o p otência ideal sobre a

ordem da qual o existen te é p osto efetivam en te, de m aneira im ediata, num a

m uda o b ed iên cia .82

Não é nada disso, no entanto. U m a vez que a natureza é som ente o efeito da fala de Deus, à medida que, entre um a e outra, se instaura uma relação incom ensurável entre significante e significado, ela se torna, em re­lação a Deus, um O utro demasiado longínquo para que ele apareça ali. Ela “re-presenta” a Deus, mas de maneira essencialm ente alusiva: como um ser que sempre contornará a representação que dele se dê.

O Sublim e pressupõe que a significação está num a independência tal,

que o exterior é determ inado com o subm etid o,.n o sentido de que o Interior

82 A esthetik [E stética], XII, p .497; trad. fr., II, p .87.

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1 0 8 G É R A R D L E B R UN

não aparece aí [nicht darin erscheint], m as o supera de m aneira tal, que nada

m ais, justam ente, poderia ser apresentado senão esse ser-fora e essa supera­

ção ... [As coisas naturais] são apenas acidentes sem força, que decerto dei­

xam , à Essência, a possibilidade de nelas parecer, m as não de nelas aparecer

[die das Wesen in ihnen nur können scheinen, nicht aber erscheinen lassen],83

Esse fracasso da representação intuitiva é sem pre representativo: se não há equivalente sensível do divino, não é porque Deus é a dissolução do Finito e porque esse m ovim ento não seja figurável, mas porque Deus é uma significação demasiado longínqua para ser expressa. Com o dissera Kant na Analytique du Sublime [Analítica do sublim e], a im agem , então, já não pode senão exprimir sua im potência para mostrar, tornar-se o significante de sua insignificância. Ora, o judaísm o, ao m anter para toda relação so ­m ente essa não-relação, põe a descoberto, mais que outra religião, o pre­conceito m aior da Representação teológica: a idéia de que o divino é uma signi­

ficação para ser expressa. Se há em seguida um bloqueio estético, ele é devido à persistência dessa estrutura expressiva, bem m ais que à assim ilação in­gênua entre presença e representação. Certam ente as im agens nos distraem do sentido; nada obstante, aproxim am este últim o do conceito de um a M anifestação-de-si por-si. A idade estética tem, portanto, ao m enos o m é­rito de encurtar a distância expressiva. Porém, quando o divino só é evoca­do por signos cegos, a distância ainda é “abism o” e dada com o intranspo­nível. M ais que o judaísm o, portanto, nenhum a religião finita está tão afastada do Saber: ela se desvia não som ente de toda idéia do sentido com o presença integral e sem suplência, com o de toda idéia de presença, ainda que “re-presentativa” . Lim ite extrem o da clivagem entre o signo e a signifi­cação. Quando de tão longe os signos indicam o divino, é inteiram ente im ­possível pressentir que eles próprios já estão envoltos no “desenvolvim en­to” daquilo mesmo que eles tentam sugerir, que eles próprios tenham já o seu lugar na m aturação daquilo mesmo que evocam. Tal é a ilusão do pensa­m ento expressivo, aqui conduzida a seu ponto mais elevado: acreditam so ­letrar um sentido longínquo ou m ostrar um sentido próxim o, ao passo que esse discurso ou esse gesto pertencem ao ascenso do próprio sentido, à sua explicitação em andamento.

83 Ibidem , XII, p .495 e 497; trad. fr., II, p .85 e 87.

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C v f t C u ^ o - e o d U & \

A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O

< 3

Se a coisa se diz, é im possível que jam ais falemos sobre as coisas, que haja algo de elevado ou proxim o ou longínquo que possa ser corretamente expresso: a expressão correta é a quadratura do círculo. Todo dizer puro e sim ples desconhece inevitavelm ente a coisa enquanto elá^síTdiz; ¿Iê^apêr- de certamente, emvrFT linguagem represenT

fatcrd'e C[üe acrStflva é necessariam ente irresponsável: nela, só podem

ser proferidas enorm idades. Para quem sabe ouvi-la, F u m lapso gigantes-co. buas talas sempre se parecem com os aturdidos de que fala Espm osa: “m inha casa levantou vôo sobre a galinha de m eu vizin ho” . Com a diferen­ça de que sempre se acha um a filosofia representativa para assum ir o lapso

e disso fazer um a tese:

É preciso considerar com o da m ais alta im portância que se encontre um a

expressão verdadeira pelo fato que, pura e sim plesm ente, se diz do espírito:

ele é. He ordinariam ente se diz do espírito: ele é, há um ser, ele é um a co isa , um a

rea lid ad e e fe tiv a s in g u la r, com isso não se é da opinião que seja possível vê-lo ou

tom á-lo nas m ãos, ou em purrá-lo, mas se d iz no entanto tal coisa [a ber g esa g t

w ir d e in so lc h e s]; e o que se diz verdadeiram ente se exprim e na proposição de

que o ser do esp ír ito é um osso ... A profundidade, que o Espírito extrai do inte-

rior e im pele na direção do exterior, mas im pele so m en te a té su a co n sciên cia re­

p r ese n ta tiv a para deixá-la ali - e a ignorância dessa consciência a respeito do

que ela diz realm ente [w as das ist, w as es s a g t] é a m esm a ligação do sublim e e

do ínfim o que a natureza exprim e ingenuam ente no organism o vital pela con -

íunção do óreão da suprem a perfeição, o da geração, com o órgão da m icção.84

( 3

( _ V ( k ? 7 U ( * 4O que significa a rubrica "Representação” em toda sua envergadura?

A e"ssÈT questão, responderem os agora que um a figuração ou um discurscT são tanto m ais representativos quanto m enos conscientes de poderem ser reinscritos no ciclo da significação que pretendem figurar ou dizer, e de que, na realidade, são um m om ento. Assim , o m om ento estético é m ais indicativo daquilo que é o divino do que o m om ento do Sublime: ele é m enos representativo. Mas essa rormuiaçao contem o equivoco de sugerir

84 Fenomenología do espírito, p .268 e 271; trad, fr., I, p .284 e 287, II, p .268 e 271; trad, br., II, p .2 1 8 e 220-1.

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* q y i J W , - j

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que a "Representação” , no sentido hegeliano, pudesse ser apenas a reto­m ada de um conceito já antigo. A Religião, para Espinosa, não era igual­m ente “representativa” em relação à filosofia? À prim eira vista, a analogia se impõe. Mas ela trai o aporte original do hegelianism o na história das relações entre a letra e o sentido.

Q ue se deva distinguir o sentido literal do sentido verdadeiro, nem é preciso dizer, já que isso não é especificam ente hegeliano. Ainda é preciso observar que a própria idéia de um a autonom ia do sentido literal é m enos trivial do que parece. V ictor Goldschm idt m ostrou que Santo A gostinho efetuava claram ente a separação entre o inquérito sobre a verdade das coi­sas (veritas rerum) e o inquérito sobre a intenção do locutor (de ipsius qui

enuntiat volúntate): “ [E notável] constatar com que m aestria Santo A g o sti­nho faz a separação: atingir, a partir do texto, unicam ente a voluntas h istóri­ca do autor, ou tentar, a partir desse m esm o dado, ter acesso à veritas rerum’’ .85

Essa atenção para com o sentido literal segue o destino do com entário: sua inutilidade tem a m esm a m edida que a futilidade deste últim o. O u e s e pen­se na im paciência de Descartes, quando consente, a contragosto, em con­frontar o sentido claro e distinto aue confere às palavras com o sentido da tradição: devolver à linguagem sua opacidade histórica, não seria esse o m om ento de desatar as anfibologías que nela se arrastam, não seria ainda render dem asiada hom enagem ao verbo,, e m esm o dar um passo na direção do verbalism o?86 Doravante, é num a intenção crítica que assum e im portân­cia a distinção entre o simples sentido e a verdade: devolvendo à letra süá autonom ia filológica, recusa-se expressam ente a prejulgar sua verdade; aprende-se a ier o texto pondo em suspenso a verdade do que ele antecipa. E__o m om ento do Tractatus, 8 7 Reconhece-se assim um a zona de m enor senti­do que é preciso explorar anteiTde m edir a distancia - retórica ou “ imagma- tiva” - do texto em relação ao Verdadeiro, lòm ar-se-a entao, provisoria­m en te com o en ig m ático , aquilo que, para o cartesian o, basta ju lg ar

85 G oldschm idt. E xégèse et A xiom atique. In: Hommage à Guéroult p .25 , 39 ss.86 Cf. D escartes, “ Secondes R èpon ses” [“ Segundas resp o stas” ], p .377; “ S ixièm es R épon ses"

[“S ex tas re sp o stas” ], p .532ss . (Ed. P lêiade).87 “ D enom ino aqui um a enunciação clara ou obscura, conform e seu sentido é fácil ou difi­

cilm ente percebido com o auxílio do contexto e não conform e seu sentido ser fácil ou dificilm ente percebido pela Razão; po is aqui n os ocupam os do sentido dos textos e não de su a verdade. A ntes de tudo, é preciso m esm o tom ar cuidado, quando buscam os o sentido da Escritura, para não ter o esp írito preocupado com raciocínios fundados em princípios do conhecim ento natural, para nada dizer dos preconceitos . . . ” (E spinosa, Tractatus. Ed. Plêiade, p .771).

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sim plesm ente com o já verdadeiro ou já falso. Enigm ático e, com isso, digno de um exame em separado. Pois não é verdade que Deus tenha falado por interm édio da Escritura, tal como por interm édio do “ grande livro do m un­do” : nesse discurso m editado pela imaginação dos hebreus, que se tornou mais pesado devido às glosas da exegese, a clareza e a distinção já não go­zam de pleno direito; aqui, a Razão avança mascarada. É o que Blyenbergh se recusa a compreender, quando tom a por “ im possível e contraditório que os profetas tenham tido, do sentido dos pensam entos de Deus, um a idéia que diferisse da que Deus quisera que tivessem ” .88 Mas, além disso, res­ponde Espinosa, por que as parábolas e as figuras seriam sinônim os de erros? Por que querer julgar apresentações de temas práticos com o se se tratasse de enunciações de verdades? O discurso figurado tem a sua especificidade, que proíbe alinhá-lo, sem mais precauções, ao discurso teórico. Reencontram os a m esm a distinção num a carta de Galileu: “cada palavra da Sagrada Escritu­ra não é determ inada por constrangim entos tão rigorosos quanto cada efèl- f5"'5'à"Natureza".^ visto que a im aginação é inseparável do conteúdo. ~e necessário restituir o texto à sua “verdade” arcaica e ingênua, isto é, à voluntas

autêntica que o animava. A ssim , ao m esm o tem po que pensava ler como livro aberto a linguagem m atem ática da natureza, o classicism o entrevia

que era preciso resignar-se a decifrar o sentido dos textos - que entre o pedantism o dos com entadores, de que M alebranche zombava, e o cuidado único “ de esclarecer os outros e buscar a verdade” , havia lugar para uma pesquisa critica. — — . ~ —

E tudo isso dá a ver a utilidade e a extensão da crítica, pouco considerada

por alguns filósofos, aliás m uito hábeis, que se em ancipam falando com des­

prezo do rabinato e, geralm ente, da filologia.90

O elem ento histórico é som ente um aspecto dessa independência ou ­torgada à letra e ao relato, e a H istória designa o dom ínio no qual esse dizer é tem atizado. Enquanto Bossuet, cartesiano, condenava em bloco a investigação das coisas passadas e a busca “das loucuras que passaram pela cabeça de um m ortal” ,91 Bayle distingue o acontecim ento passado d aquilo

88 C arta X X (Blyenbergh a E sp in osa), p .1196-7 (Ed. Pléiade).89 Galileu, C arta a Castelli, 2 1 /1 2 /1 6 1 3 , p .384ss ., in Dialogues; Herm ann, trad. P.-H. Michel.90 Leibniz, N ouveaux Essais, III, cap. IX, § 5.91 A pud Gusdorf, Introduction aux Sciences Humaines, p .195.

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que dele se diz: cada vez m enos se lêem as histórias “ com vistas a [se] ins­truir com coisas passadas, mas som ente para saber o que se diz em cada na­ção e em cada parte sobre as coisas passadas” .

O sentido literal deve, portanto, ser da alçada de um a região bem deli­mitada. Resta porém que esse sentido im aginativo não tem utilidade posi­tiva. Exceto que se seja cético e se contente em contornar a questão, sem ­pre é preciso voltar a confrontá-la com a veritas rerum. Q ualquer que seja a independência que se queira conceder à figuração, esta últim a, afinal de contas, sem pre rem ete a ‘‘outra coisa’’ ,92 que ela só transpusera sob o efeito da ignorância ou da ingenuidade. A paciente decifração das figuras sempre traz, portanto, a sua recompensa: ela desem boca num sentido unívoco. “Ele

fez jorrar água da pedra: com essas palavras, ele quer dizer sim plesm ente que, no deserto, os judeus encontrarão fontes para saciar sua sede.” 93 N es­se ponto, Espinosa volta a ser cartesiano. Igualm ente, Leibniz faz o elogio da “ crítica” e da “filologia” , exclusivam ente até o ponto em que a atenção para com as verdades literais nos levaria a confundir o exame das verdades e o exam e dos signos.

A tribui-se m esm o a verdade a D eus, e vocês m e confessarão não precisar

de signos ... [De preferência aos signos] é melhor, portanto, colocar as verda­

des na relação entre os objetos das idéias que faz com que um a esteja com pre­

endida ou não com preendida na outra. Isso não depende das línguas e é co ­

m um a nós, a D eus e aos anjos.94

A partir do m om ento em que já não nos contentam os em recolher “o que se disse sobre as coisas passadas”, é im possível falar sem m etáfora de um a “verdade” do texto que estaria encerrada no próprio texto: nunca se terminará de relacionar esse texto com a verdade única que nele se projeta de m aneira m ais ou m enos oblíqua. A im aginação só poderia falar uma linguagem confusa: tal é o juízo de valor que então a “ crítica m ais honesta e m inuciosa” subentende. Esse desvio, ao que parece, nos faz portanto voltar a Hegel: não fizem os nada mais que sobrevoar bem alto a tradição raciona-

92 “A terceira prova é que os seus d iscursos são contrários e se destroem , de m odo que, se for po sto que pelas palavras da lei e do sacrifício não se entendesse outra co isa senão a de M oisés, há contradição m anifesta e grosseira. Logo, eles entendiam outra coisa contradi­zendo-se algum as vezes num m esm o capítulo” (Pascal, Pensées, Ed. Pléiade, p .1261).

93 E spinosa, Tractatus, p .758 (Ed. P léiade). Cf. D escartes, "Sixièm es Réponses" [“ Sextas res­p o sta s”], ponto 5; e Logique de Port-Royal, I, p. 15.

94 Leibniz, N ouveaux Essais, IV, cap. V, § 2.

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lista herdada por ele. A sco visceral da barbárie, indulgência que despreza profetas e povos inteiros cativos de seu tempo, não é esse o legado, para além da idade clássica, dos m étodos alegóricos que entendiam salvar o con­teúdo das religiões populares ou do paganismo? A “ Representação" não foi sempre para a filosofia a som bra de si m esm a e a m orada dos insensatos?

N o entanto, é im ensa a diferença entre esse conceito de “representa­ção" e o conceito hegeliano: para Hegel, ainda é um a das astúcias da Repre- sentação julgar de tão alto o “representativo". E o Entendim ento represen­tante que se arroga o direito de esclarecer o texto por m eio de significações que ele está seguro de restituir em sua pureza; é ele, por exemplo, que transform a toda m itologia ou toda apresentação artística em expressão ale­górica a e significações dadas.95 Ora, essas significações de últim a instância nao são nada mais que representações encontradas em nós: é preciso denun- ciar, nesse caso, a fragilidade do otim ism o cartesiano. Cada hom em , se en­tende o que diz, escreve Descartes, nele tem forçosam ente a idéia da coisa significada pelas palavras: “ se soube algo por m eio desses nomes, soube ao m esm o tem po o que era preciso entender por suas idéias, visto que não é preciso entender outra coisa que não aquilo m esm o que ele concebeu” .96 A dificuldade de fato é, portanto, reencontrar em sua pureza essa concepção inicial, embora, de direito, não fossem os preconceitos, ela advenha mais “facilmente” que a compreensão da figura que a apresenta (5“ Réponses [Quin­tas respostas]). A comparação a que logo Descartes recorre m ostra que essa convicção é o pressuposto da condenação clássica do “representativo” :

Tanto é assim que, quando lançam os os olhos sobre um m apa em que há

alguns traços dispostos e arranjados de tal m aneira que representam a face de

um hom em , então em nós essa visão não excita tanto a idéia desses m esm os

traços quanto a de um hom em : o que não aconteceria dessa maneira, se a face

do hom em não nos fosse conhecida de outro lugar e se não estivéssem os mais

acostum ados a pensar nela do que em seus traços . . .97

95 Cf. a crítica ao desacreditado alegorism o de Schlegel: "Entende-se o sim bólico ou o ale­górico de m aneira que um pensam ento geral sirva de base a toda obra de arte ou a toda form a m itológica; quando é extraída para si em su a universalidade, ela deve fornecer a explicação do que tal obra ou tal representação significam propriam ente. E sse m étodo se tornou m uito corrente em n o sso s d ias" (A esthetik [E stética], XII, p .419; trad. fr., II, p .20).

96 Carta de D escartes a M ersenne, 2 2 /7 /1 6 4 1 .97 D escartes, "Cinquièmes Réponses" [‘‘Q uintas re sp o stas”], p .503 (Ed. Plêiade).

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D e m aneira bastante absurda, portanto, deter-se na im agem é esque­cer que a im agem só é imagem (que ela nos apresenta um hom em e não traços de tinta) à luz da significação já adquirida que é a única a perm itir reconhecê-la com o tal, isto é, encontrar-lhe um sentido (na acepção mais literal). Por onde se vê que essa crítica do “representativo” só poderia ser, para Hegel, outro estágio do erro representativo em geral. Por que a “con­cepção” teria o privilégio de não poder enganar um espírito atento? N ão é tão nocivo deter-se nas significações quanto acreditar que a im agem se baste a si mesma? Cada hom em pensa em “ D eus” com o em “algo de bem conheci­do [ein Bekanntes], um conteúdo presente na consciência subjetiva” . “ E xa­

m in a s e o que nossa representação, tom ada com o ponto de partida, afirma d'Ele. E pressupor que, com isso, tem os todos a m esm a representação que exprim im os pela palavra Deus.” 98 Portanto, é depositar confiança nas pala­vras como se visassem a um sentido de uma vez por todas enunciável, um sentido que a explicitação pode enriquecer sem nunca fazê-lo variar nem m esm o crescer." Enquanto se partilha essa segurança, a interpretação tem por tarefa única rem ontar da letra ao sentido, que a im aginação se obstina a ignorar.

Um a vez m ais som os tom ados por um a suspeita: não estaríam os, de­cididamente, nas origens do dogm atism o hegeliano? Parece que a Idéia he- geliana habita infalivelm ente toda história, assim com o o triângulo “con­cebido” se furta à vista por sob o triângulo traçado a lápis - bem parece que H egel restrinja a iniciativa dos povos e dos artistas da m esm a m aneira que Descartes a imaginação dos estudantes. A o m enos um a diferença, to-

98 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .406 ; trad. fr., Preuves, p.86.99 “M as desde que se concebeu a idéia do verdadeiro D eus, em bora se ja possível descobrir

nele novas perfeições ainda não percebidas, su a idéia não é, no entanto, acrescida ou aum entada, m as som ente tornada m ais d istin ta e m ais expressa, tanto m ais que todas precisaram estar contidas n essa m esm a idéia que antes se tivera, visto que se supõe que ela

fosse verdadeira; da m esm a m aneira que a idéia do triângulo não é aum entada quando nele se notam várias p ropriedades anteriorm ente ig n o rad as” (“ Cinquièm es R éponses”

[“Q uintas respostas"],), contra a Troisième M éditation [Terceira m editação], § 10). “ V isto que se supõe que fo sse ela verdadeira", as palavras circunscrevem exatam ente o que H egel entende pelo preconceito representativo - e o texto diz m uito bem o que não é a explicação hegeliana. D e onde provém essa im possib ilidade de um crescim ento do sen ­tido? B uscarão su a origem do lado da com paração aristotélica entre as e ssên cias e os núm eros: ‘A ssim com o se subtrai do núm ero um a das partes de que ele é com posto ou se lhe acrescenta um a parte, já não é m ais o m esm o núm ero, m as um outro núm ero, por m enor que se ja o elem ento acrescentado ou retirado, a ssim tam bém não o será m ais a definição ou a qüididade, se a elas acrescentarm os ou subtrairm os a lgo” (Métaphysique [M etafísica], 1043 b, p .3 6 ss .).

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davia, cham a a atenção: é preciso m uito ponro. nm instante ríe InrirWpara que o triángulo concebido reaparpea snh o triángulo que era o seu

decalque ou para que se esclareça o sentido da parábola. É que a letra era

apenas urna máscara: guando esta cai. o signo ou a im agem se regulam por si m esm os na coisa concebida, o discurso figurado se ordena por si m esm o no sentido unívoco que o filósofo detinha. Há de se convir que a vitória hegeliana sobre os “preconceitos” é mais lenta de se obter e de uma difi­culdade distinta; ou melhor, a passagem pelos “preconceitos” se tornou inevitável, e inconcebível a súbita irrupção de um saber que nos assim ila­ria a Deus e aos anjos (não há mais “ luz natural” no lim iar da episteme,

assim com o não há mais “estado de natureza" na origem das cidades). Esse é talvez o índice de um a diferença toto genere entre duas atitudes que seria im prudente reconduzir a duas táticas do m esm o “racionalism o” .

Tudo muda, com efeito, desde que, por Bedeutung, já não se entenda mais um conteúdo ne varietur que se dê a um olhar mais agudo, mas urna presença tal, que necessariam ente se acha aquém das representações (ima­ginativas ou claras-e-distintas), as que acreditavam atingir um “ sentido” óbvio. Essa m utação do conceito de “ significação” acarreta duas conseqüên- cias com plem entares: 1) Toda descoberta, por mais desm istificadora que se pretenda, ignora, por essência, que ela está explicitando a nresenra do que ela re-presenta. Não pode haver representação inteiramente lúcida. 2) Em com pensação, toda figura, por m ais aberrante que pareça, nunca é um m ascaram ento com pleto, mas sempre um esboco da vresenca do sentido. Nao pode haver revresentação inteiramente dpfnrmndnrn P) qne a m ngripncia críti-

co-representativa com preendia como a projeção im aginativa de um filo so - tema será com preendido, a partir de então, com o a fase de uma “história”" que não diz outra coisa senão o conjunto dos discursos, relatos, formas de arte, em suma, dos docum entos incom pletos oue ela percorre (e por isso é que H egel não tem o sentim ento de traduzir os textos ou de forçar o seu sentido), mas recoloca cada um desses docum entos nesse crescimento do sen­

tido, cuja idéia, nas 51S Réponses ÍQuintas respostasl. Descartes recusava. Daí há uma grande distância em dizer: eu, Hegel. trago a verdade ou desve­lo a significação-enfim -verdadeira ... Q ue distância, precisam ente? Tente­m os captar em que a reeiaboração do conceito de “ significação” subverte a atitude critica. —

Em prim eiro lugar, nos relacionam os com um novo conceito de “inge­nuidade” . A ingenuidade que m edeia o justo sentido fornecido pela filoso­fia dogmática, sucede um a ingenuidade gradual em relação ao desenrolar do sentido em seu todo. O que agora se chama sentido filosófico não é mais

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G É R A R D L E B R U N

O á ^ V i * f * * ■■

rico ou mais com pleto que o sentido imaginativo: não é m ais um conteúdo fixo, mas um processo totalizante, isso quer dizer que ele integra as propo­sições que outrora exprim iam (unilateralmente) o “ sentido” tal com o èlãso preconcebiam . N isso, a leitura lYegêKãTiã*mverte a leitura critica dõ~s clás­sicos. Reportem o-nos às interpretações dadas por D escartes, Pascal ou Espinosa dos versículos das Escrituras: sempre se trata de atravessar cir­cuitos im aginativos, reunir a única significação plausível e despojá-la das “falsas belezas” que a obscureciam . Com o sabemos, tanto quanto os clássi­cos, Hegel pouco gosta de se demorar nas im agens com o tais, mas ele se

recusa a separar a im agem do sentido verdadeiro. Os in te r ^ 001"·^? WAr- dadeiro iá são sempre os m om entos; já não há letra,¿tudo é espírítp. D aí ã necessidade de deixar que surja a veritas rerum em cada~ponto do*discurso e acompanhar o lento desdobram ento deste últim o. Há m uito mais que um dcésso de maldade nas zom barias que H egel dispara na direção de filósofos apressados que resum em sua “doutrina” em algumas teses ou em algumas horas de aula.100

-E.m çpçHinrio lugar, as “ coisas ditas” não serão mais recolhidas num cem itério filológico, à parte das disciplinas que dizem ou tentam dizer a veritas rerum. Esta, com o se acaba de ver, já está esparsa por interm édio dos docum entos - e, além disso pia rãn está p.m nenhum outro lugar: já não h á mais espírito (separado), tudc/e farflODaí a noção anticartesiana de umaBildung inseparável da erudição e m esm o, por vezes, os aparentes recursos ao argumento de autoridade Aristóteles dixit , 1 0 1 Não q u e n çahpr da vprdade-.

da coisa passe pelo saber do que dela se disse: um e outro estão enredados"]

100 “ Segundo tal m aneira de ver, a filo sofia é tão abreviada quanto o era a m edicina, ou ao m enos a terapia, no tem po do sistem a de Brown, segundo o qual seu estudo podia ser acabado em m eia hora. Em M unique, talvez o senhor tenha travado conhecim ento com um filósofo, adepto d esse m étodo intensivo. Franz Baader faz, às vezes, im prim ir um a ou duas folhas que devem conter toda a essência da filosofia ... Friedrich Schlegel term i­nara su as au las em se is sem anas, sem satisfazer seus ouvintes, que esperavam um curso de se is m eses e haviam pago para tanto" (Carta a Von Raumer, 2 /8 /1 8 1 6 ; Corr. [C orres­pondência], trad. fr., II, p .91).

101 "Q ue [os autores de novas teorias] assim ilem os pen sam entos sérios e as perspectivas de outrem , a isso não se deve reprovar; bem pelo contrário, as ciências são a produção de um trabalho secular e grande cientista é quem aprendeu a ciência que lhe é contem porâ­nea e a pen sou , integrando-a. N as universidades e em outros estabelecim entos, os p ro ­fessores têm , com o prim eiríssim o dever, dar acabam ento a esse conhecim ento pensado: po ssu ir o que está aí e repeti-lo para outros. O p rogresso que prom ovem no conteúdo, m esm o quando se dá sem equívocos e m elhor que isso , não deixa de ter pouca im portân­cia em relação à m assa do que eles devem à tradição. E a condição para levar m ais longe a ciência é estar m ergulhado no estudo da ciência, tal com o esta se encontra no presente.

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Em terceiro lugar, a filosofia não diz outra coisa que os docum entos por ela restituídos. Ela não considera mais o discurso religioso um relato que teria entrevisto as significações sobre as quais ela própria lança a plena luz. Decerto que substitui, se quiserm os, um ponto de vista elevado por um ponto de vista m enos elevado, mas sobretudo não o ponto de vista mais

elevado: a im agem da altitude, ao sugerir que o cum e foi enfim atingido, deixaria escapar o mais im portante, a saber, que agora o sentido se confun­de com o encam inham ento, que as “tentativas e erros” aparentes não são

mais que sua difusão. . ^

A o falar da Idéia absoluta, seria possível ser da opinião de que, aqui, se

obteve enfim o verdadeiro, que aqui tudo deve se dar. Pode-se declam ar no

vazio, é verdade, de todos os m odos possíveis, sobre a Idéia absoluta; o verda­

deiro conteúdo, todavia, não é nada mais que o sistem a com pleto, do qual

consideram os até aqui o desenvolvim ento ... A qui ocorre o m esm o que na

vida hum ana e em acontecim entos que form am o seu tecido. Todo trabalho

visa a um a meta; atingida esta últim a, surpreendem -se por encontrar nada

m ais do que queriam . O interesse está no m ovim ento todo. A o hom em que dá

l prosseguim ento à sua vida, o fim pode parecer m uito lim itado, mas é todo o

\ decursus vitae que se encontra nele reun ido.102

Só aparentem ente portanto é que, da linguagem religiosa até a lingua­gem filosófica, o sentido variou; de fato, é o conceito de sentido que girou 180 graus: "A Idéia absoluta é, a esse respeito, comparável ao velho que decerto pronuncia as m esm as palavras religiosas que a criança; mas estas, para ele, têm a significação de sua vida toda” . Conceber o cristianism o não consistirá, de m aneira alguma, em conferir ao N ovo Testam ento um a sig­nificação inédita, mas em m ostrar que o que antes tom ávam os por uma história (rica, eventualm ente, de um a significação mais profunda) era ape­

Ora, todas e ssa s p esso as não som ente são levadas a pretender originalidade apenas por su a falta de conhecim ento, m as tal preten são, por su a vez, as torna incapazes de se proporcionarem a prim eira condição: o conhecim ento do saber dado" (Uber die Einrichtung

einer kritischen Zeitschrift, XX , p .40). “ E da autoridade que devem os partir, isto é, da cren­ça de que, por cau sa de seu renom e - com o outros, por cau sa de su a consideração num Estado, Platão e A ristóteles, m esm o se não os com preendem os (isto é, m esm o se acha­m os m au o que disseram , n o sso s pen sam entos estando agora em oposição aos deles), P latão e A ristó te le s m erecem m ais co n fian ça que n o s so s p e n sa m e n to s” (C arta a N ietham m er, 2 2 /1 /1 8 0 8 ; Corr. [Correspondência], trad. fr., I, p .191.Enciclopédia das ciências filosóficas, § 237, Z., VIII, p .447; trad. br., I, p .367.

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nas o afloramento da presença do sentido - “ Deus engendrou um Filho” . Por essas palavras, não se pede exatam ente à consciência representativa para entender outra coisa do que até agora ela entendia. Isso ela ainda p o­deria adm itir de bom grado, tal exigência não a desconcertaria. Mas a ela é

"pedido bem m ais e bem menos: tom ar consciência de que, doravante, o Deus de que se trata não é m ais a representação à qual, até agora, ela dava credito. Ora, a consciência representativa preferiria trocar sua tese antiga por uma tese nova que lhe seria proposta. Ela não tem de renegar o discur- so que m antinha, e as antigas palavras perm anecem no lugar; não se trata de abjurar. Não dizem os sequer que o sentido dessas palavras é alterado. Pois não havia sentido mutável. Tal é a única surpresa reservada pela passa­gem ao especulativo: essa lenta alteração que parece m etam orfosear as pa- lavras que em pregávam os no início, sem que no entanto devêssem os re­nunciar a elas ou inventar outras, esse é o sentido mesmo, entim despojado de sua finitude. Em suma, nada mais decepcionante para os amadores de lan­ces teatrais que a desm istificacão hegeliana: tudo estava dito, e bastava sa­ber ler: ainda era, preciso, porém, saber que tudo era D izer.

Por isso, evitaríam os ler Hegel indo diretam ente ao que ele teria de dizer no final das contas: últim o engano de uma leitura representativa que gostaria de chegar à m eta sem com bate e poupando-se dos (aparentes) des­vios. O encam inham ento cham ado Begreiffen não é som ente indispensável para com preender o que se segue, com o num a ordem das razões: na falta de tom ar esse cam inho, a verdade últim a não é m ais que um a palavra in­significante, uma “declam ação” . O que de mais vazio, por exem plo, que esta sentença isolada: “o A bsoluto é o Espírito” ? Com essa sentença nua, som ente se dará p o r s a t is fe ito um leitor que figurar “o Espírito” com o uma noção a mais. que bastasse substituir no glossário hegeliano. U ra, a espe­culação arranca-nos justam ente da lalsa segurança dos dicionários repre­sentativos; não é um catálogo de noções novas ou corrigidas que ele enten­de redigir: ela v isa , ao contrário, a dissolver todas as categorias finitas que esses d id o n á r in s enterram. Ela não pretende oferecer ao entendim ento cul­tivado noções com as quais ele poderia enfim se satisfazer, mas, a propósi­to de cada noção recebida, fazer com que lentam ente apareça, para ele, a vaidade da m aneira pela qual ele a entendia, velo fato de aue ele a entendia.

Tentar-se-á m ostrar isso com o exem plo da palavra “ D eus” , perguntando, não com o H egel reinterpféTOU, OU desm istificou, ou rem istificou Deus, mas som ente com o ele nos taz desaprender a palavra tal com o a podíam os en-

tender. Nós? Agnósticos, cristãos, m arxistas etc. Q ue importa?

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r

I I I

"A VELHA PALAVRA ATEÍSMO...”

1

A Representação é, de direito, o elem ento da Religião; assim com o a intuição e a im agem form am o da A r te .1 M esm o a R eligião m anifesta (offenbare), visto que tam bém é vivida com o revelada (geoffenbart), preserva em si um núcleo de “representado” .

A m edida que é religião revelada, no sentido de que, ao hom em , foi dada

e adveio do exterior, é religião positiva ... Esse lado é igualm ente necessário

na R eligião m anifesta ... A li onde sobrevêm o histórico, o que aparece exte­

riorm ente, há tam bém positivo, contingente que pode ser ou não ser. E isso,

1 “ O elem ento de existência do Espírito universal que, na Arte, é a intuição e a im agem , na Religião, o sentim ento e a representação, na filosofia, o pen sam ento puro e livre, é, na h istó ria do m un do, a efetiv idade esp iritu a l em to d a su a ex ten são : in terioridade e exterioridade” (Ph. Rechts [Filosofia do direito], § 341, VII, p .446).

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m esm o na Religião. Em razão do exterior e do fenôm eno que, com isso, é

colocado, o positivo está sem pre presente.2

Esse positivo, de que a religião jamais se despojará, falsifica o conteú­do que nela se anuncia. Em virtude desse fato, a Religião perm anece uma instância de expressão: ela apresenta o que seria preciso deixar dizer-se - e, com essa pecha, rapidamente desliza na superstição - , na crença nos m ila­gres ... E no entanto a Religião é um indispensável “testem unho do Espíri­to ”, pois “não se deve exigir que a verdade seja produzida filosoficam ente em todos os hom ens” .3 A Religião chega a ser, para a filosofia, aquilo que o Juízo kantiano é para o Entendimento: ela relaciona a com preensão do sen­tido com a im agem e com o exem plo. E nisso não há nada de repreensível.

Se partim os de puras determ inações de pensam ento, e não da represen­

tação, pode acontecer que o espírito não esteja satisfeito, não se sinta à vonta­

de e pergunte o que bem pode significar essa pura determ inação. Sejam as deter­

m inações “unidade do subjetivo e do objetivo", “ unidade do real e do ideal";

bem se pode com preender e saber o que são, cada um deles em si m esm o,

“unidade”, “objetivo” , “ subjetivo” etc., e, no entanto, bem se pode dizer que

não se com preende essa determ inação. N esse caso, a “ significação" é o oposto

do que considerávam os há pouco. O que se exige agora é um a representação

da determ inação-de-pensam ento, um exem plo para o conteúdo que in icial­

m ente só foi dado em pensam ento. Se encontram os um difícil conteúdo de

pensam ento, a dificuldade provém de que, dele, não tem os representação; é

pelo exem plo que ele se esclarece e que o espírito assim se torna presente

n esse conteúdo.4

Será som ente essa a marca da lim itação do espírito finito? Parece que não, de acordo com a seqüência do texto. Seria sobretudo a marca de um espírito pedante e fútil contentar-se com o “ sim ples pensam ento” ou com a “ sim ples significação” , afirmar, por exem plo, que “ Deus é Espírito", ao passo que o Espírito - sem aspas - é justamente a abolição dessa “ sim ples significação", m ovim ento de aparecer e de se dar a objetividade.5

2 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .198 e 200.3 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 381, Z., VIII; trad. br., III, p .22. cf. Gesch. Philo. [H istó­

ria da filosofia], XVII, p. 113.4 Ph. Religion [Filosofia da religião], XV, p .42 .5 “A im ediatez é, em geral, a relação abstrata a si [m esm a] e, por conseguinte, ao m esm o

tem po, identidade abstrata, universalidade abstrata. Por isso , se o Universal em e para

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Seria bem apressado, portanto, tom ar por um defeito da forma religio­sa aquilo que, nela, é exigência de com pletude. A Religião não é som ente um suplem ento para uso de ignorantes. N ão se com preenderia a natureza da Idéia divina, se se perm anecesse na definição, literalm ente correta, sem dúvida, do que é “ D eus” (“divisão consigo e recuperação de si”), sem que essa indicação fosse desenvolvida, quer dizer, vivida por uma consciência religiosa. Aqui, o culto mais ingênuo vale mais que a mais erudita teologia, e Hegel opõe freqüentem ente a nebulosidade da teologia de seu tem po à verdade que o fervor encerra.6 Os teólogos bem podem contentar-se com predicados escritos em m aiúsculas (a Verdade, o Eterno, a Unidade-essen- cial), tais palavras perm anecem palavras enquanto não ingressaram “no ele­m ento da consciência e da representação” .7

si só é tom ado n a form a da im ediatez, ele é som ente o Universal abstrato - e D eus, d esse ponto de vista, conserva a significação da E ssên cia pura e sim plesm ente desprovi­da de determ inações. Se de D eus ainda se diz que ele é “ E spírito” , isso é apenas um a palavra vazia, po is o Espírito, com o consciência e consciência de si, é d ivisão consigo m esm o e com um Outro, e, assim , “m ediação” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 74, Z „ VIII, p .180-1; trad. br„ I, p .153).

6 “V ê-se então e s sa form a abstrata em su a figuração m ais concreta, em sua m ais elevada efetividade: com o M anifestação de D eus - e não m ais no sentido abstrato e superficial, a saber, que D eus se m anifesta na natureza, na história, no destino dos indivíduos etc. ...; m as no sentido absoluto [que é o seguinte]: o hom em chegou à consciência da unidade das naturezas divina e hum ana que se acha em Cristo, unidade, portanto, que é originá­ria e divina. Por is so m esm o, tom ou consciência do que são tanto a natureza de D eus e a natureza hum ana em su a verdade, além das conseqüências daí decorrentes ... V ê-se que e ssa doutrina do cristian ism o encontrou seu refúgio na filosofia especulativa, após ter sido po sta de lado pela teo logia quase exclusivam ente predom inante na Igreja protes­tante, devido ao fato da exegese e do raciocínio - após a vinda de C risto ter sido rebaixa­da a um sim ples ob jeto de rem em oração e a m otivos m orais, e D eus, relegado num além vazio e indeterm inado em si, com o incognoscível, portanto, com o Ser não revelado” (Solgers Schriften [E scritos sobre Solger], X X , p .165-6).

7 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .43. “Ao considerar a Idéia de D eus na filosofia da Religião, também, ao mesmo tempo, tem os diante de n ós o m odo de su a representação ... A ssim , tem os o A bsolu to com o objeto, não sim plesm ente n a form a do pensam ento, m as tam bém na form a de su a m anifestação. Será preciso, portanto, captar a Idéia un i­versal tanto no sentido puram ente concreto da essencialidade em geral quanto no senti­do de su a atividade que con siste em se pôr fora, em aparecer, em se m an ifestar” . E apenas sob e ssa condição que a E ssência chega à “ seriedade do ser-outro” e su a diferen­ciação não perm anece program ática, “jogo do am or consigo m esm o” (Ibidem, XVI, p .248). "E preciso captar o eterno essencialm ente, m anifestan do-se, com o atividade; se ele é representado sem que a consciência possa atingi-lo, isto é, sem m anifestação e sem ativida­de, nada m ais resta de concreto para o conhecim ento, som ente a determ inação de um abstrato ." Pelo m esm o m otivo, serão proscritas expressões com o a existência de Deus em nós: “ N e ssa s ligações im ediatas com o Finito, D eus não é entendido em su a plenitude, m as num sentido m ais abstrato. O que ainda se vê quando se em prega, erroneam ente, no lugar de D eus, a s expressões: o Eterno, o Verdadeiro, a Essência, a Unidade-essencial. A inda

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Decerto essa Idéia é a verdade absoluta, esta é para o pensamento; mas, para o sujeito, a Idéia não deve ser somente verdade; o sujeito também deve ter a certeza da Idéia, a saber, a certeza que é própria a esse sujeito como tal, sujeito finito, empiricamente concreto, sensível.8

Todavia, por m ais necessária que seja essa atualização de Deus, não deixa de ser verdade que ela nos faz passar do além dos teólogos a um conteúdo dado objetivam ente, e “ apenas objetivam ente” , à consciência: é com o se a abstração teológica só se apagasse ao preço do contra-senso co ­m etido pela consciência religiosa. Pois é de fato um contra-senso que su­gerem certas frases que acabamos de citar. “A Idéia deve ingressar no ele­m ento da representação”, “o sujeito deve ter a certeza” ... resigna-se assim com a presença do sujeito finito e concede-se que a Idéia deva satisfazer às suas exigências; logo, retom a-se, por conta própria, a falsa descrição que foi difundida pela Representação. Esta é feita para que se evite form ular a seguinte questão: por que invocar subitam ente os direitos de um sujeito finito? De onde surge este últim o? Qual é seu estatuto? Essa questão só é posta se a presença do sujeito finito é vista com o o signo da incom pletude da Idéia divina. Incom pletude distinta daquela do estágio teológico: agora, bem se m anifesta a significação, mas tal m anifestação tem o andam ento de um espetáculo. A abstração que então persiste não provém de que o con­teúdo seja dem asiado elevado para a consciência im aginativa, mas do fato de que um a consciência finita considera a Religião m eio de ter acesso a Deus. Ora, as frases que se acaba de citar dissim ulam essa ilusão e sugerem que “o ingresso no elem ento da Representação” é um a concessão indispensá­vel feita à irredutível ingenuidade de um "sujeito finito” , não m enos irre­dutível. Adm ite-se, portanto, a presença desse sujeito, rebaixado ou glori­ficado, e não se pensa em formulâr a questão: de onde provém a necessidade de passar por um saber menor? Por que contar com um a “ doxa” ? Os dog­m áticos evitam tais questões porque se acom odam com a idéia de um obs­

táculo natural ao Saber - obstáculo que nossa natureza oporia à luz natural

que nela irrompe. E dizer pouco que se acomodam a isso, eles o exigem . A opacidade de m inha natureza sempre ressurge, na hora certa, para dar conta do obscurecim ento em m im da luz natural. Sem a garantia dessa explica­ção, é a própria noção de “ luz natural” - “faculdade ... que nunca apercebe

entendem os por Deus algo m ais que O Eterno etc.” (Solgers Schriften [Escritos sobre Solger], XX , p .181-2).

8 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .248.

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nenhum objeto que não seja verdadeiro naquilo que ela o apercebe” (Prin­

cipes, I, 30) - que estaria ameaçada. O recurso aos preconceitos do sujeito finito é a contrapartida da ausência de inquietude quanto à veracidade ori­ginária: por que iriam pôr à prova a significação da “verdade”, se bastam precauções psicológicas para “ingressar no Verdadeiro” ? É por isso que o M étodo dogm ático assum e a forma de um a passagem da ignorância à C iên­cia. Os que “ querem abordar a ciência” , escreve Descartes, parecem agir “como um homem que, ao pé de um edifício, quisesse lançar-se com um salto até o topo, seja porque desdenha a escada que a esse uso se destina, seja porque não a percebe” (Régle V [Regra V ]). U m hom em ao pé de um edifí­cio: a im agem significa que o plano da consciência natural, do sujeito finito, é dado com o adquirido. Ele será ultrapassado, m as sem ser reexam inado. Serão extirpadas as ilusões da consciência ingênua, mas sem denunciar com o ilusória a própria consciência ingênua. E esse “ sujeito finito” , apa­rente figura estável, que agora se torna o sintom a da abstração do conteú­do e do fato de que o Saber ainda está por nascer. A o nos colocarm os de saída com o “ sujeito finito” , falam os com o se o conteúdo estivesse na som ­bra, esperando para ser desvelado, com o “o conjunto de todas as coisas por serem conhecidas” , a que o M étodo m e deveria conduzir. Mas se sim ples­m ente a Ciência não tivesse nascido? E se a aparente ocultação do Saber fosse sim plesm ente Não-saber? E se fosse preciso im putar à lentidão ou ao atraso da explicitação das significações o que se atribui ao aturdim ento ou a um a fixação na infância? Se a doxa é possível, isso talvez seja apenas a prova de que a episteme ainda não está, em parte alguma, realizada. E nesse estágio é que, para a Idéia, até aqui enterrada em seu em-si, a necessidade de se opor a si m esm a (manifestar-se) é com preendida com o a necessida­de de que a Idéia se torne acessível a uma consciência - que na realidade não é senão um dos pólos dessa oposição. Com o o sujeito representativo não tom ou consciência (e com o poderia?) de que a Idéia, no percurso de seu ciclo, se acha na etapa de sua finitização, ele im agina que ela tem de lhe prestar contas, a ele, sujeito finito que é apenas um m om ento. A partir daí entrevê-se com o a atitude religiosa é interm ediária do Saber clássico na rede das ilusões representativas.

Passem os ao verdadeiro relato, depurado da am bigüidade represen­

tativa.

A Religião é também consciência; nela, portanto, tem a consciência finita,mas suprimida enquanto finita. E quando o Espírito se divide em si mesmo

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que advém a Finitude; mas essa consciência finita é momento do próprio Es­pírito, ele próprio é que é divisão de si, determinação de si, isto é, posição de si como consciência finita.9

O m al-entendido religioso está agora dissipado? Haveria a ilusão da consciência religiosa, em seguida, sucedendo-se a ela, a verdade dada pelo Saber... Mas essa descrição ainda é superficial: ela não dá conta do fato de que a ilusão está necessariam ente inscrita no advento dessa verdade. Hegel prossegue:

Mas, a partir daí, o Espirito só é mediado pela consciência ou pelo Espiri­to finito, de maneira que deve se finitizar, a fim de se tornar saber de si mes­mo por meio dessa finitização. Assim, a Religião é o saber de si do Espirito divino pela mediação do Espirito finito.

Ora, parece que essa finitização corre o risco de ser profunda o bastan­te para interrom per o curso do m ovim ento de que ela é apenas urna fase e obscurecer, por m uito tempo, a natureza do processo. A liás, falar de um “r isco ” é inexato: parecería que o avatar religioso fosse um acidente evitá­vel no percurso do Espirito. Não é o que ocorre.

Enquanto a Religião é a primeira manifestação de Deus, não mediado [não é preciso dizer somente] que a forma da Representação e do pensamento finito reflexivo pode ser a que Deus toma de empréstimo para se dar a existên­cia na consciência; mas essa forma também deve ser aquela na qual Ele apare­ce, pois só ela é compreensível para a consciência religiosa.10

O equívoco religioso é, portanto, legitim ado no interior do processo do Espirito. D e um lado, a Religião diz a historia do Espirito que, para si, efetivam ente se torna o “ Para-si” por m eio do qual, até agora, ele se definia apenas abstratam ente e em palavras; ela é o relato do “ aparecer-a-si-mes- m o” (Sich-erscheinen) que é o Espírito. De outro lado, quem relata continua

9 Ibidem , XVI, p .216. Sobre a inconsciência inerente à consciência enquanto é “ som ente o A parecer do Espírito [nur das Erscheinen des Geistes], cf. Enciclopédia das ciências filosóficas,

§ 414 e Z., VIII, p .258 ; trad. br., I, p .185 . "O objeto não aparece à consciência com o posto pelo Eu, m as com o um im ediato, um ente, um dado; po is a consciência ainda não sabe que o objeto é em si idêntico ao Espírito, que seu surgim ento na form a de um a independência aparentem ente com pleta só é devido a um a autodivisão do Espírito ."

10 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .102.

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a acreditar-se fora do jogo, com entador de um espetáculo do qual ele não sabe que, deste, o comentário faz parte. Esse Sich-Erscheinen, portanto, advém na forma de um Erscheinen, e a M anifestação, em vez de fazer explodir a parcialidade do ponto de vista fenom enológico, perm anece um a das figu­ras da fenom enología.11 Assim , a Religião oscila sem ñm entre a Offenbarung

e a Erscheinung, entre a consciência que o Espirito tom a de si e a irradiação dessa tom ada de consciencia que, então, é vivida com o um espetáculo a mais oferecido à consciência finita. O engano pertence, portanto, ao pró­prio desenvolvim ento, à m istificação, ao processo de desm istificação. E de m odo infalível que a M anifestação efetiva, ao pôr fim à abstração inicial do Espírito, inflete-se em um a representação daquilo que então é tido por algo que se dá ao olhar. Tudo se passa com o se o episódio da Divisão consigo produzisse um tal traum atism o que o ciclo inteiro, em bora se esteja pres­tes a reconhecê-lo com o tal, doravante só fizesse sentido em relação ao sujeito finito que a Divisão, provisoriam ente, fez surgir. N essas condições, o cristianism o diz bem a verdade, visto que o conteúdo do divino, pela primeira vez, identifica-se com seu desenvolvim ento (ao m enos “para nós” ) . Mas os cristãos proferem essa verdade de m aneira mentirosa: o que é es­clarecim ento da significação “D eus” , eles o com preendem com o a adjunção de um a forma acidentalm ente acrescida a seu (antigo) conteúdo; o que é dissipação da abstração teológica, eles o vivem com o um favor pedagógico que Deus Pai lhes teria feito delegando-lhes seu Filho. U ltim a vitória da Representação, a m ais sutil: representar aquilo m esm o que a denuncia como falsificadora, fazer-nos viver, espetacularm ente, aquilo cujo sentido é dizer a vaidade de todo espetáculo. Tal com o o revolucionário que, em casa, de pijama, se contenta em dizer a necessidade e a im anência da revolução, acom odando-se cotidianam ente com o velho m undo, o hom em religioso diz o que é o Saber na linguagem de que o Saber é apenas a renúncia.

11 E sse em aranhado da finitização e do ponto de v ista finito é sensível, por exem plo, nesta frase: “ D eus é assim determ inado com o sendo para a consciência. E ssencialm ente, p o ­rém, com o unidade espiritual em su a substancialidade, não som ente ele é determ inado com o aquilo que aparece, mas como aquilo que a S i aparece - portanto, como aparecendo ao

Outro, de maneira a aparecer a si mesmo nessa relação” (Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .219 ; cf. Ibidem , XV, p .215). Em sum a, a Religião é a infidelidade para com essa alternância de que ela só vê a prim eira fase (D eus aparece a um O utro). “ É verdade que o objeto da R eligião é para si o objeto infinito, que envolve nele o Todo; m as su a s repre­sentações não lhe perm anecem fiéis, v isto que, tam bém para ela, o m undo, de novo, perm anece com o su bsisten te fora do Infinito - e o que ela apresen ta com o a verdade m ais elevada deve ficar ao m esm o tem po com o insondável, m isterioso e incognoscível: um dado; e som ente na form a de um dado e de algo exterior é que ela deve perm anecer para a consciência que diferencia" (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 5, VI, p .23).

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Esse paradoxo deixa os pensam entos representativos insensíveis: que se deva conceder ao sujeito finito seu lugar, esse ponto de partida também parece tão incontestável à piedade ingênua quanto à Aufklärung; nisso, ambas defendem uma “causa com um ’’ .12 E se a Religião suspeita ou acusa o filósofo especulativo de ateísmo, é justam ente porque ela está desgarrada por esse preconceito. Incapaz de tomar consciência disso, incapaz de evadir-se dele, vai naturalmente taxar de ateísmo o que ela é im potente para compreender (de resto, o “ateísm o” já fez algum sentido, exceto para essas interpretações mutiladoras da palavra θεός chamadas de religiões?). “A piedade singular de nosso tem po” tão bem associou à representação “D eus” a ficção de uma essência extramundana, que ela “repõe em circulação aquela velha palavra ateísmo, já quase esquecida” .13 O próprio nome de “ D eus” tornou-se índice de tal exterioridade do divino em relação a nós, que a identificação entre o Saber que Deus tem de Si por intermédio do hom em e o saber que o homem tem de Deus passa por um a escandalosa deificação do homem; logo, o filó­sofo é tido por blasfemo por aqueles que só conseguiriam pensar o A bsoluto na form a de um objeto-representado. Essas almas piedosas inauguram a lenda do “hum anism o” hegeliano. Hegel julga a acusação derrisória, mas agradece a Gõtschel ter contribuído para mostrar sua inanidade. Com enta­dores de Hegel perguntar-se-ão, é verdade, se, nessa resenha dos Aforismos

de Gõtschel, Hegel não esboça um a viravolta conform ista do lado da trans­cendência cristã - com o se alguma vez Hegel tivesse se preocupado em to ­m ar partido em querelas das quais ele m ostra a vaidade. Mas é tão difícil renunciar à linguagem da Representação que se é tentado a conferi-la àquele

12 P h. Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .394-5; trad. fr., Preuves, p .73, ‘A contece no entanto - e isso é notável - que os cristãos que crêem na Bíblia só concordam com seus adversários - os hom ens de Entendim ento cham ados de racionalistas - em um único ponto: as acusações que dirigem à filosofia especulativa. O racionalism o perm anece fiel a si m esm o e conseqüente com a sabedoria de Entendim ento, subjetiva e abstratam ente sensível, quando se opõe à filosofia especulativa, com o a pen sam entos objetivos, visto que seu ponto de v ista desfigura prontam ente os resu ltados especulativos e os despo ja de seu valor. M as o supernaturalism o, com o se diz, com o sistem a da teo logia cristã, é essencialm ente diferente do racionalism o em todos o s aspectos e, por conseguinte, em su a relação com a filosofia especulativa. Logo, som ente por m eio de u m a aberração é que certos teó logos foram levados a ter um a cau sa em com um com o racionalism o e contra a filo so fia - a pon to de se tornarem racion alistas, su bm eten d o as dou trin as especulativas ao entendim ento abstrato-sen sível e desn aturando assim su a essência m ais íntim a” (Gõtschel, citado em Gõtschel Aphorism en [A forism as de G õtschel], XX , p .279- 80). Cf. Ph. Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .394-5; trad. fr., Preuves, p.73.

13 C arta de Hegel a Creuzer, m aio de 1821; Corr. [Correspondência], trad. fr., II, p .135. Cf. Ph. Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .393 ; e tam bém Gõtschel Aphorism en [A forism as de G õtschel], XX , p .292.

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m esm o que, incansavelmente, a acusa... Que julguem pelo contra-senso co­m etido os teólogos que Gõtschel crera por bem retomar.

Eles se indignam com o fato de que a especulação ouse unificar o Sa­ber de Deus (Gottes Wissen) e o ser de Deus (Gottes Sein) - e a especulação, é verdade, não diz outra coisa.14 Eles, porém, traduzem: o saber que tem os de Deus (Gott wissen) equivale ao ser de Deus (Gottes Sein). Daí não se tem dificuldade em concluir que conhecer Deus (Gott wissen) é ser Deus (Gott

sein). Contra-senso inaudito, mas revelador. Escandalizam-se com o fato de que o Eu cognoscente seja sub-repticiam ente identificado com Deus. Mas quem é esse Eu cognoscente? Q ue instância é essa que adm item com o ób­via? Um a egoidade im utável. Q uem o afirma? O Entendim ento. Ora, a ex­pressão Gottes Wissen - o Saber que Deus, em sua criatura e por m eio de sua criação, tem de Si - indica justam ente que a independência dessa ins­tância finita está doravante abolida. Os que pretendem que H egel diviniza o hom em mantiveram portanto, inconscientem ente, o privilégio do Eu finito e guardaram para o hom em um lugar fixo e positivo; sua queixa é a prova de que não refletiram sobre o que podia ser a relação com o divino, ou, ainda, de que não têm consciência de que a m aneira pela qual imaginaram essa relação não é a única m aneira de o dizer. N a linguagem deles, é necessaria­m ente um a relação entre dois termos estranhos para sempre. Porém, como não sabem que se trata de uma convenção própria a seu discurso, como nem sequer sabem que optaram secretam ente por certo campo discursivo, a anu­lação da distância entre as duas significações tom a forçosamente, para eles, o sentido de um golpe audacioso, uma identificação dos dois termos: Eu finito (subsistente como finito) = Deus (subsistente com o separado). Eis, por­tanto, o pensam ento especulativo que se torna fanfarronada ímpia. N ote­mos, de passagem , que ele será tido por “m istificação idealista” ou “pan­teísm o” ao preço do mesmo desconhecimento de sua dimensão: por todos os lados, espera-se que ele nos inform e sobre Deus ou sobre o mundo; a par­tir de toda perspectiva, as “ inform ações” que fornece parecem faceciosas, e só resta a escolha da palavra em “ ism o” com a qual ele será sobrecarregado ... Voltem os aos teólogos. Bem se vê que eles se proíbem de com preender a fórmula: “ Deus se sabe nele m esm o um a vez que Ele se sabe em mim, seu O utro” . Decerto, essa proposição anula m inha alteridade em relação a Deus, mas não significa que, m agicamente, “eu” teria-me tornado “ D eus” . É preciso afastar as significações bem conhecidas que eram utilizadas até

14 Gõtschel Aphorism en [A forism as de G õtschel], XX , p .295ss.

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aqui e colocá-las entre aspas. O Deus de que se fala agora já não é a essên­cia longínqua que designava o “ D eus” de há pouco, não é sequer um a nova versão dele; o Eu ou o H om em de que agora se escreve o nom e não é mais que hom ônim o do ser finito que a Representação entende por essas pala­vras. Não é o Deus transcendente que, inalteravelm ente idêntico consigo, além disso, se tornará ele m esm o ao se reconhecer em seu Outro; não é mais o m esm o O utro, tam pouco, o que se reconhece com o m om ento no Saber- de-Deus. Esses devires fizeram que se desm oronassem os sujeitos que pa­reciam ser seus portadores. Entrem entes, o filósofo renunciou à repartição arbitrária dos conteúdos im posta pela geografia representativa. Porém, despreocupada com essa m utação, a Representação continua a interpre­tar anacrónicam ente, na antiga linguagem , o discurso que dem onstra a sua im propriedade.

N em por isso, poderiam objetar, Deus continua tendo um O utro peran­te Ele. A Diferença só m antinha sentido durante o tem po necessário para Ele se reconhecer nesse pretenso Outro, mas ela se abole, desde que tal

reconhecim ento se consuma. Definitivam ente, a Identidade leva a melhor.Essa objeção continua não levando em conta a deiscência das signifi­

cações, que é constitutiva do Espírito.. O “ eu finito” é O utro, claro, uma vez que Deus deve ali se reconhecer; mas, em favor desse reconhecim ento que é tam bém explicitação, esse “eu” se torna m om ento do divino e perde então a independência aparente que lhe valia sua finitude. Logo, a objeção com preende com o uma operação ontológica (“operação” , no sentido ban­cário) o que é tão-só reexam e das significações iniciais. Longe de se despo­jar de seu ser finito para ser envolto dentro do ser infinito, o ex- “eu finito” , deixando de se levar onticam ente a sério, com preende enfim seu “ ser” como um papel que pode renunciar a desempenhar. E se, dando razão aos teólo­gos, tentasse tirar algum a glória por ter-se tornado Deus, por ser bem-su- cedido ali onde outros fracassaram, seria a prova de que esse incurável “ su­jeito finito” acredita tirar vantagem daquilo que, na realidade, indefere seus direitos; um a vez mais, não com preenderia o que vive. Q ue não se imagine aqui algum a fusão m ística ou um Deus devorador; seria persistir na atitu­de religiosa - no pior sentido da palavra - , im aginar o que é preciso pensar. E por isso que H egel repete que som ente o nosso apego ao Finito nos leva a acusar, no m ais das vezes de m odo falso, uma filosofia de panteísm o, quando ele não é o único responsável pelo panteísm o.

Jacobi estava muito longe do panteísmo, mas há panteísmo nesta expres­são: "Deus é o Ser em toda existência”. Ora, na Ciência, só importa o que é

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expresso, e não o que se pensa interiorm ente. Parm énides diz: “ Ser é tudo". À

prim eira vista, é a m esm a coisa e é tam bém panteísm o; no entanto, esse pen­

sam ento é mais puro que o de Jacobi e não é panteísm o. Pois ele diz expressa­

m ente que só o Ser é e que todo lim ite, toda realidade, todo m odo de existên ­

cia [Existenz] incide no N ão-ser; pois nada disso é, mas há som ente o Ser.

A ssim , em Parm énides, o que significa Dasein não é mais presente. A o contrá­

rio, para Jacobi, o Dasein vale com o afirm ativo, em bora ele seja finito; dessa

maneira, é a afirm ação na existência finita. Espinosa diz: o que é, é a Substân­

cia absoluta; o O utro são som ente os m odos, e ele não lhes assinala nenhum a

afirm ação, nenhum a realidade. M esm o da Substância espinosana não se pode

dizer que seja tão pan teísta quanto essa expressão [de Jacobi], pois, para

Espinosa, as coisas singulares perm anecem algo de tão pouco afirm ativo quanto

o Dasein de Parm énides . . . 15

Com o poderia tratar-se aqui do panteísmo, da superestim ação do Finito como tal? Quer-se marcá-lo com mais força e fazer que a consciência repre­sentativa retorne de seu extravio? Recorrendo a uma expressão que é tam ­bém representativa,16 dir-se-á que “o hom em está em Deus” para evitar que

15 P/i. Religion [F ilosofia da relig ião], XV, p .340. “ Foi dito ju stam ente, desse Eu finito, que D eus não pode ser nele e ele não pode ser em D eus, que não poderia se relacionar com D eus senão de m aneira exterior. A ss im tam bém , seria um a concepção p an teísta e in d ig­na de D eus tom ar [esse Eu] com o um a existên cia atual de D eus, v isto que D eu s deve ser defin ido, ao m enos abstratam ente, com o a Essência universal. M as a relação da cons­ciência de si com D eu s com o Espírito é bem diferente d esse tipo [de relação] panteísta: nessa relação, ela própria é Espírito e, ao renunciar à determinação excludente que possui como Uno imediato, ela se põe para com D eus em um a relação afirm ativa, espiritual e vivente. Teólogos viram pan teísm o nessa relação. E que, portanto, em m eio ao Todo, dentre todas as coisas - no núm ero das quais contam ainda a alm a e o Eu refletido em seu ser-para-si, que legitim am ente excluem de D eus, visto tom arem tais seres segundo sua realidade individual em que são fin itos - [em m eio a esse Todo, portanto], eles situam tam bém o Espírito e só o con h ecem igu alm en te com o negação de D eu s. A partir daí, não se esq u e­cem som ente da doutrin a segun do a qual o h om em foi criado à im agem de D eus; eles se esquecem sobretu do da graça divina, da ju stificação por C risto e, logo em seguida, da doutrin a do E spírito Santo que conduz sua com unidade em toda verdade e vive etern a­m en te nela. C o n tra isso, a palavra de ordem , hoje, é: panteísmo. M as se o Eu é saber do con teúdo finito, de maneira que essa própria form a pertence ao conteúdo infinito, o conteúdo então é p erfeitam en te apropriado à forma; ele não está presen te num a existên cia finita, m as no A p arecim en to absoluto de si m esm o - e isso não é o p an teísm o qu e assinala a um a form a determ inada a existên cia do d ivin o” (Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .2 26 -7).

16 U m a expressão de D eu s é representativa quando é p ressup osto que se sabe o que Ele significa ao se falar d ’Ele e fazer alusão a um a representação vaga que cada um possuiria (assim , esse D eu s “ bem con h ecido” pelos ocidentais, m as desconhecido pelos iroqueses,

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acreditem que ele “é D eus” . Tomada ao pé da letra, essa fórm ula ainda é inexata: ela parece preservar o estatuto de independência do “hom em ” . Mas ao m enos ela previne a queixa aberrante de panteísm o. Q ue os teólogos se tranqüilizem , portanto: “Conhecer Deus não é ser Deus, mas ter D eus” . Traduzir-se-á assim, para uso deles, o m ovim ento especulativo do qual nada com preenderam .

O reverendo padre N iel cita o texto sobre Gõtschel, em sua “Introdu­ção à tradução das Preuves” [Provas], mas se recusa a seguir Lasson e Háring, a “ inocentar [Hegel] de toda censura de panteísm o” .17 D efinitivam ente, escreve ele, “ a presença da diferença dentro da unidade, presença necessá­ria para que se realize a totalidade harm oniosa, é puram ente ilusória” . E, ao pé da letra, só se pode lhe dar razão: sim, a diferença é efêmera, sim, “ D eus” e seu "O u tro” acabam coincidindo. Tudo isso é indiscutível e aí nos deterem os, se com preenderm os o discurso hegeliano com o o relato de um a epopéia teológica, se não consentirm os em ler sim plesm ente os tex­tos com o a crítica das “representações” tradicionais ali m encionadas, em suma, se não pensarm os em colocar as aspas que convém. D a resenha de Gõtschel, então, nada mais resta que uma m edíocre concessão feita ao cris­tianism o ortodoxo por um panteísta mal cam uflado. Tal é o perigo a que se expõem as interpretações de H egel, quando orientadas por um a opção confessional ou política. Não que se prejulgue a filosofia do autor. E bem m ais grave: ele é julgado com o m etafísico e lhe fazem questões m etafísi­cas. N unca faltam então textos para constitu ir o dossiê de um “ H egel

que os ob jetores de D escartes por vezes lhe opõem ). O filósofo, p en sa Hegel, deve evi­tar ao m áxim o as concessões a e s sa linguagem representativa: em geral, m ais vale correr o risco da im popularidade do que adular a ideologia: “ se o que D eus é fo sse tão notório quanto o fato de que ele é, por que ainda se deveria filosofar? Pois a filosofia não pode ter nenhum outro fim suprem o senão o de conhecer a D eus. M as, se e sse com ércio com D eus não fo sse satisfatório e se ex ig isse m ais que um com ércio [Bekanntschaft], a saber, um conhecim ento, isso acarretaria que não se está ju stificado a dizer de D eus que ele faz is so ou aquilo, que ele se encarna etc. Pois tais determ inações só poderiam obter fundam entação pelo conhecim ento de su a natureza. Primeiro, e s sa m aneira de se expri­m ir tem a vantagem de ser popular, de absorver a religiosidade geral e tam bém de poder se beneficiar de certa confiança devido ao efeito im ponente que produz a palavra D eus. M as, de um ponto de v ista filosófico, ela tem inconvenientes, em particular o de não m ostrar o vínculo do que assim se atribui a D eus com su a natureza, isto é, a necessida­de d essa s determ inações ou ações e m esm o a exigência d essa necessidade, ao p a sso que é só d isso que se trata, quando se supera a religião rum o à filosofia” Solgers Schriften

[E scritos de Solger], XX , p. 169.17 N iel, Preuves, trad. fr., p. 17.

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panteísta” ou de um “ Hegel hum anista” ; sem pre é possível decom por em am bigüidades ou em equívocos o m ovim ento das significações liberadas (a fínitização é ilusória? A finitização é um m om ento necessário e “verdadei­ro” ?) e, para terminar, destrinçar o autor concedendo preferência a um gru­po de textos. E que se supõe que Hegel tenha jogado o jogo e, por sua vez, tenha fornecido um a descrição que acreditava exata de entidades de que seu leitor e ele já teriam “ tom ado conhecim ento” (Bekanntschaft). Ora, o Erkenntnis hegeliano é a destruição dessa Bekanntschaft. Com isso, estando a apreciação dos textos ancorada em conteúdos ou em pontos de vista que esses textos têm por m eta erradicar, o contra-senso é infalível a curto pra­zo: só se extrai o “ sentido” do em preendim ento tom ando expressam ente o contrapé do autor. A ssim , escreve Hegel nas Preuves [Provas]: “O m ais ex­plícito nessa revelação é que não é a chamada razão hum ana e seu lim ite que conhecem Deus, mas o Espírito de Deus no hom em ” .18 Convir-se-á que é incôm odo resum ir o sentido da obra com o segue: “A partir de então, a verdade de nossa relação com o A bsoluto consiste na reconstrução que nós

operam os nela. A afirmação do A bsoluto resolve-se na afirmação de uma certa form a de unificação do universo operada pela razão humana” (o grifo é nosso). Entrevia-se há pouco o bloqueio que, segundo Hegel, advém, com o cristianism o, da Offenbarung com o Representação. Quando se lêem cer­tos com entadores, m ede-se a potência desse bloqueio. Todas as vezes em que se em preende localizar Hegel entre os teólogos ou filosofias teológi­cas, perde-se necessariam ente, devido ao próprio fato dessa tentativa, sua con ceitu alização do cristian ism o. P an teísm o, ateísm o, sen tim en to da transcendência, todos esses diagnósticos têm em com um o fato de que par­tem do Deus fam iliar à consciência religiosa e subentendem que um filó­sofo que não faz profissão do ateísm o só poderia falar do divino ajustando- se bem ou mal a seus conceitos de velha conivência, a que as religiões instituíram com “D eus", sem que, no essencial, nada m ude nessa repre­sentação. Pressupõem , portanto, que toda filosofia da Religião se regula necessariam ente pela representação religiosa de Deus. E é deplorável que

18 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .398 ; trad. fr., Preuves, p .71 . Sobre o “ hum a­n ism o” de H egel, cf. Jacq u es d ’H ondt, “ Le D ieu-m iroir” , in YArc, n9 38. O au tor funda- se qu ase unicam ente nos tex tos de juventude, m as se pergunta, no entanto, se H egel não “ sorriu ” ao escrever que "a alienação principal vai ... de D eus à natureza e ao h o­m em ” . Se assim fosse, seria preciso confessar que as au las sobre a “ Filosofia da reli­g ião” proporcionaram a seu autor algum as horas de hilaridade. De n o ssa parte, h esita­ríam os em adm iti-lo.

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o pressuponham,19 pois isso é recusar a priori que a própria representação que o hom em faz de Deus possa ser incluída no Saber-de-si de Deus. Ora, para que ler um filósofo, se a priori se recusam a entrar em seu jogo? É preciso deixar, portanto, de querer situar Hegel entre panteísm o e cristia­nismo, ou proclam ar que esse “teólogo” era um hum anista sem o saber. É m elhor se perguntar de onde provém a força da ideologia “ dem asiado h u ­mana” , produzida notadamente pelo cristianismo de Igreja, para que se evite tão dificilm ente m edir o Saber da Religião pelas representações religiosas ou teológicas tradicionais. De onde vem que o "destino” da Igreja seja des­conhecer o conteúdo do cristianismo?

2

O cristão situa a vida de Cristo unicam ente na dimensão da história contingente; ele enraíza a religião que pratica no ensinam ento de Jesus. In­dícios, para Hegel, de que o “ lado hum ano” do cristianismo predom ina so­bre seu conteúdo.20 Se a consciência cristã concede ex officio essa autonom ia à “história exterior” e ao ensinam ento dos Evangelhos, é que ela já cindiu,

19 Sch ellin g levanta o problem a quando con testa a validade da distinção hegelian a entre Pensam ento e R epresentação: ‘A ss im , o con ceito de D eu s m esm o p ertence unicam ente à R epresentação; pois, no p en sam en to puro, D eus é som en te térm ino, resultado; ora, D eus, o que se d enom ina realm ente D eus (e creio que mesmo a linguagem do filósofo deve se deixar gu iar pelo uso comum) é som ente o que é autor, o que pode com eçar algo, o que existe antes de todas as coisas e não é um a sim ples Idéia da R azão. U m D eus in existen te já não poderia ser denom inado D eus. M as com o a existên cia não pode ser concebida pelo sim ples pensam ento, Ele, que é real, tam bém diz respeito, segun do H egel, à sim ­ples representação. E ntretanto o próprio H egel, em sua filosofia, não p odia perm anecer fiel a essa lim itação ao puro pensam ento, a essa exclusão de tudo o que diz resp eito à representação. Ele é no pen sam en to puro durante o tem po em que p erm anecer na L ó gi­ca cujos con teúd os são sim ples abstrações, nada de real. A o contrário, quando passa à realidade, à n atureza real (e tam bém para ele a filosofia da n atureza tem o valor de um a parte da filosofia, e, m esm o, parte essencial), certam ente é preciso qu e p ossa recorrer a exp licações que, segu n do sua própria concepção, d izem resp eito à R epresentação, de m aneira que já não se com preende verdadeiram ente por que ele d efine a R eligião em particular com o a form a que só contém a verdade no m odo da R ep resen tação” (Schelling, Philosophie der Offenbarung [Filosofia da revelação], I, p .172 -3 ).

20 “ E a esse lado hum ano que pertence a doutrina de C risto ... E sse substancial, esse céu d ivino universal do Interior conduz, num a reflexão m ais determ inada, a m andam entos m orais que são a aplicação desse U niversal a situações e a relações particulares. Tais m andam entos, porém , não contêm nada de extraordinário em relação a esse grau em qu e se trata da verdade absoluta: já estão con tidos em outras re lig iões e na R eligião ju daica” (Ph. Religion [Filosofia da relig ião], X VI, p .287, 2 9 1-2).

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espontânea mas arbitrariamente, dois lados: Deus, objeto do dogma - sua historia, “o solo do pensam ento universal - e a particularização, o desenvol­vim ento” . A Aufklärung e as chamadas filosofias “racionalistas" da Religião acentuaram essa separação: Kant e Fichte assimilam, de pronto, a historici­dade da Religião à história do filho do carpinteiro; tam bém eles vêem no elem ento histórico apenas a história de um indivíduo (die Geschichte eines

Einzelnen). E não decidia o próprio jovem Hegel o “ destino” do cristianismo som ente a partir da vida e da doutrina de Jesus? Tem-se o direito, pergunta agora Hegel, de julgar a Religião e sobretudo a historicidade cristã unica­m ente pela “história exterior” ? E igualm ente julgar o quadro pela moldura.

A própria Verdade absoluta, ao aparecer, ingressou num a configuração

tem poral com as condições, os vínculos e as circunstâncias exteriores desta

últim a. A partir de então, por si m esm a ela já se encontra circundada de m úl­

tiplas condições locais, históricas e de toda um a m atéria positiva. V isto que

ela é a Verdade, deve aparecer e ter aparecido; essa m anifestação pertence à

sua própria natureza eterna; é tão inseparável dela que, ao separar-se disso,

seria negada, seu conteúdo seria rebaixado a um a abstração vazia. Mas é pre­

ciso distinguir bem do A parecim ento eterno, que é inerente à essência da Ver­

dade, o lado da tem porada m om entânea, local, exterior, a fim de não confun­

dir o Finito com o Infinito, o indiferente com o substancial. D esse lado, surge

um novo espaço para o Entendim ento, em que ele vai desdobrar seus esforços

e aum entar o estofo finito; ao se dem orar nessa tem porada, encontra a im e­

diata ocasião de elevar as singularidades desta últim a à dignidade do verda­

deiro divino, a m oldura à dignidade da obra de arte que ela encerra, a fim de

poder exigir para a história finita (os acontecim entos, as circunstâncias, as

representações, os m andam entos etc.) o m esm o respeito e a m esm a fé exigi­

dos para o que é ser absoluto, h istória eterna.21

Dos escritos de juventude à Philosophie de la religión [Filosofia da reli­gião], a doutrina dos Evangelhos, quando julgada mais serenamente, é so­bretudo reposta em seu justo lugar: conjunto de indicações por vezes equí­vocas que poderiam fazer prejulgar a significação do cristianism o. Basta um exem plo para m ostrar a am plitude dessa reviravolta: o com entário, nas duas épocas, do preceito evangélico “ ama a teu próxim o com o a ti m es­m o” . Em Frankfurt e em Berlim, trata-se aparentemente da m esm a lição.

21 Prefácio à Ph. Religion de Hinrichs [F ilosofia da religião] XX, p .6-7.

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Jesus não quis dizer: “ama também a teu próxim o”, mas: abandona por ele as relações de existência (Lebensverháltnisse), dá as costas aos fins particula­res, que se torne o A m or o teu único fim. Porém, se bem que a interpreta­ção perm aneça semelhante, o preceito assum e um alcance inteiram ente dis­tinto. O Esprit du christianisme [Espírito do cristianismo] opõe o mandamento do A m or à “abstração” : o A m or suprim e a separação entre o U niversal abs­trato (o dever-ser) e a particularidade, “ ele não é a unidade do Conceito, mas a unidade-espiritual” .22 A o contrário, na Philosophie de la religion [Filo­sofia da religião], o A m or não é mais do que uma configuração abstratamen­

te aproxim ada do Reino de Deus. Certam ente, encontra-se a m esm a des­confiança para com o Ideal e o “dever-ser" utópico, mas a abstração é definida de outra m aneira e agora ela inclui o “conceito” de outrora. “A m a a teu próxim o com o a ti m esm o” , “A vós disseram ... e eu vos digo . . . ” , rompei os laços terrenos para ter acesso ao reino dos céus: seria bastante incorreto ver, nesses belos elãs, o essencial da m ensagem cristã. Tratava-se apenas de instruções polêm icas, elem entos da pedagogia representativa. Por m eio dessas injunções, Jesus entendia som ente abalar o farisaísm o judaico. E por dar-lhes dem asiada im portância é que o jovem Hegel, constatando o fracasso dessa (aparente) revolta, concluía que o cristianism o era incapaz de se acomodar às relações de existência efetivas. Essa não é a questão. E nada mais há de escandaloso, se concederm os que o Evangelho era apenas uma propedêutica ingênua: o cristianism o só parece ter fracassado se to ­m arm os ao pé da letra a “língua de exaltação” (Sprache der Begeisterung) que prom etia “um a transplantação im ediata na verdade” .23 Seria conceder cré­dito demais à ideologia do cristianism o com o uma religião que carece da reconciliação. Também seria fazer um a idéia não conceituai dessa reconci­liação. Em suma, faltava então distância a Hegel para ver na história cristã outra coisa que um a seqüência de acontecim entos centrados na vida de um hom em , as palavras que havia proferido, a esperança que havia suscitado, em seguida frustrado. Isso pouco importa: é som ente anedota acrescenta­da à Revelação, “a história exterior de Cristo tal como a não-fé (der Unglaube) também a conhece, à maneira pela qual conhecem os a história de Sócrates” .24 Essa história se acaba com a m orte de Cristo. Ora, é ali que, especulativa- m ente, tudo começa.

22 Esprit Christ [O espírito do cristianism o e seu d estino], trad, fr., p .69.23 P/i. Religion [Filosofia da relig ião], XVI, p .29124 Ibidem , X VI, p.295.

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Com a morte de Cristo começa a reviravolta da consciência (Umkehrung

des Bewusstsseins): esta gira em torno desse ponto central. A maneira que se tem de compreender [essa morte] atesta a diferença entre a compreensão ex­terior e a Fé, isto é, a contemplação por meio do Espírito ..., pois a Fé é essen­cialmente a consciência da verdade absoluta, daquilo que Deus é em-si e para- si. Ora, o que Deus é em-si e para-si, como se viu, é a Trindade, esse percurso de vida (Lebensverlauf) em que o Universal se opõe a si mesmo e permanece idêntico a si.25

Por que a m orte de Jesus se tornou “a pedra de toque em que se prova a Fé” ? Isso é mais bem com preendido se são distinguidos, da com preensão especulativa, os dois tipos possíveis de com preensão não especulativa que a ela se justapõem .

Primeira interpretação: a interpretação católica. “ Pode haver tam bém um ponto de vista em que se atém ao Filho e a seu aparecim ento.”26 Cristo foi trazido ao m undo com o este homem: daí o pesar de sua presença sensível e a veneração da hóstia. C ulto das relíquias, peregrinações, tudo é válido para reencontrar algo da antiga presença. É essa m iragem que conduzia os cruzados até o santo sepulcro, superstição que leva alguns m issionários a tom arem a sério aquelas virtudes que os selvagens, por eles evangelizados, em prestam aos ossos.27 O Esprit du christianisme [Espírito do cristianism o] via nesse recurso obstinado ao “positivo” a necessária contrapartida da abs­tração da vida cristã: certam ente, era preciso que um a ligação qualquer reu­nisse uma com unidade que nada mais cimentava. Hegel tom a agora o cui­dado de distinguir da “ com unidade espiritual” essa com unidade ávida de presença imediata.

Segunda interpretação possível: vam os chamá-la de “ abstrata” . A o m or­rer para o sensível, Deus teria depurado a idéia que devem os fazer de sua presença. E tal lição parece m esm o ser extraída de certas passagens do “ Rei­no do Filho” , na Philosophie de la religion [Filosofia da religião]. Com o desa­parecimento da singularidade imediata, dissipa-se a segunda abstração de Deus, “ a abstração da humanidade” : “Agora, essa hum anidade - que é um m om ento m esm o da vida divina - é determinada como algo que não per-

25 Ibidem .26 Ibidem , XVI, p .311. Cf., Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .479; trad. fr., p .292.27 Ibidem, XV, p .319.

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tence a D eus” .28 Mas essa renúncia à abstração ainda é abstrata e, algumas páginas adiante, Hegel volta a essa primeira aproximação: Deus, ao unir-se ao m undo, m ostrou que, “para ele, precisam ente, o humano não é algo de estranho, mas que esse ser-outro, essa diferenciação, a Finitude, é um m o­m ento n'Ele m esm o - um m om ento, é verdade, evanescente” .29 O desígnio de Deus não era nos tornar conscientes da distância em que estam os d'Ele; assim como o divino não se retirou do m undo por desdém, assim tam bém ele não fizera um aparecim ento por capricho. D e resto, esse desdém faria honra excessiva ao Finito, ao “m undano” , pondo-o ao menos com o estranho a Deus. Ora, dizer que Deus “ se revela” é dizer que o ser-outro, o Finito, não está fora de Deus. Não que seja engolido por Ele, mas “com o ser-outro, ele não im pede a unidade com D eus”,30 não que as coisas m udem de lugar, mas as palavras m udam de sentido. Sem dúvida, o cristão tem dificuldade para conceber isso, com o atribuir à Encarnação mais im portância que ao G ólgota , com o o su rgim en to da “ diferença firm em en te esta b e lecid a ” (festgehaltene Unterschied) sobrepujar a sua explosão. N o entanto, no m o ­m ento em que a diferença (Deus e o mundo) se desenlaça com o diferencia­ção é que culmina a Offenbarung: a alienação no Finito foi apenas um lampejo, o tem po de o reino da finitude aparecer com o um a figura que o divino sus­cita para tão logo apagá-la de seu rastro. E portanto a m orte que é reveladora, e não a Encarnação: esta última, passagem de Deus ao m undo, consolida antes a idéia da “diferença firmemente estabelecida” , ao passo que a m orte faz aparecer essa diferença “instantânea” . Com preende-se então que só a necessidade dessa m ostra tenha tornado possível a ilusão de um ser-outro inalterável, que está no princípio de ambas as interpretações incorretas da vida e da m orte de Cristo: é o m esm o erro, com efeito, que nos faz com ­preender a Encarnação com o a descida de Deus no Finito ou com o a sanção

\ da incom patibilidade entre Deus e Finito - a m esm a teim osa segurança de que a palavra Finito designe algo em relação ao qual Deus devesse tomar posição. Se é verdade que Deus “está em casa na Finitude” (bei sich in der

Endlichkeit), não entendam os com isso que ele teria tomado posse de um território novo. Entendam os que só havia territorium para nossa ingenuidade e Deus abole a cena na qual a Representação acreditava que ele teria apare­cido para sempre. Deus não anexa a si o m undo, bem com o não o rejeita para longe d’Ele: esses afrescos m itológicos, que a m etafísica clássica arrastava

28 Ibidem, XV, p .301.29 Ibidem , XVI, p .307.30 Ibidem , XVI, p .306-7.

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consigo, dissim ulam o sentido do relato. Deus é a crítica das significações mun­

danas - com eçando pela palavra “m undo” - , a partir das quais e por inter­m édio das quais aprendemos a visá-lo. Deus diz a derrisão de um “m undo- criado-subsistente”, em relação ao qual Ele permaneceria confinado no papel antropom órfico de Criador.

Os conceitos hegelianos em geral nada mais dizem que a precariedade dos conteúdos que acreditávamos positivos. Filosofia da Religião, filosofia da Natureza, filosofia do Espírito, esses títulos não designam nada além da recusa desses confortáveis, porém abusivos, genitivos, com os quais os sa­beres positivos elaboram um programa: ciência de Deus, do m undo, do homem, da alm a.31 A esses objetos que a nós se oferecem com a autoridade do que já está aí, o discurso especulativo não substitui outros objetos. No rosto, por exem plo, a fisiognom onia concentrava a “realidade efetiva” do homem; objetando-lhe que “o ser-verdadeiro do hom em é antes a sua ope­

ração” , H egel não tem consciência de desenterrar a essência escondida no âmago do hom em . A “ operação” é sim plesm ente o nom e dado por ele ao requestionamento do fato de que se possa alojar “o ser verdadeiro do hom em ” em um dado positivo, qualquer que seja ele. A ssim tam bém , o Espírito não é uma natureza fora da natureza, a diferença característica do animal racio­nal guindado ao cum e da série dos seres, mas a explosão das significações que faziam da “N atureza” uma representação bem conhecida. A verdade trazida pelo Conceito nunca é a última palavra, mas a inanidade - enfim, altamente reconhecida - de todas as “últim as palavras" (liberdade, práxis, m atéria...) que se puder pronunciar. O sentido exato do “divino” hegelia- no assume, portanto, a m edida de uma anulação ontológica da significação “m undo” , e não de um a sim ples desvalorização desse ente “ bem conheci­do” de que falam teólogos e sábios. A m orte de Cristo significa que o “m un­do criado”, tom ado em si, não é nada, e não que ele seria bem pouca coisa (isso ainda seria dem ais), para que Deus se com prom etesse durante m uito tem po com ele.

31 Cf. a análise dos saberes “p o sitivo s” na Enciclopédia das ciências filosóficas, § 16, VIII, p .61-3: saberes que tom am suas determ inações com o absolutam ente válidas e não reconhecem sua fm itude. Por m eio dessa crítica dos saberes que não rem ontam aquém da “hypoteseis", a dialética de H egel deve ser aproxim ada da dialética de Platão; ela se opõe à doutrina aristotélica da ciência, para a qual os princípios próprios de cada dom ínio são indem ons- tráveis no absoluto (cf. 2 a Analytiques [Segundos analíticos], I, 9, 76 a 16). M as essa com ­paração não deve nos fazer esquecer de que, em Hegel, não há m ais, com o em Platão, “anupotheton": o Incondicionado seria o desdobram ento m esm o do Sistem a. Seria objeto de outro estudo perguntar-se pelo que resta da noção clássica de princípio em H egel, em que ela é destruída, em que ela é readaptada.

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Apenas por esse traço já se mede a distância que separa a filosofia es­peculativa da filosofia clássica e do partido que ela tirava do N ovo Testa­m ento. A s querelas teológicas do século XVII sobre o papel da Encarnação tornam -se querelas m itológicas. Reportem o-nos, por exem plo, à querela de A rnauld e M alebranche. A M alebranche, que sustentara que é só da Encarnação que a obra criada tira um valor, Arnauld bem com o Fénélon objetavam que o m undo era bom enquanto criado e a Encarnação, portan­to, teria sido supérflua se Deus nunca tivesse tido o desígnio de tornar a obra digna d ’Ele.32 Em sua resposta, M alebranche concedia que o m undo criado possui nele m esm o um valor e m esm o um m áxim o de perfeição, na falta do que, entre Deus e ele, não haveria um a m ínim a com ensurabilidade que tornasse possível a Encarnação; porém, ele continuava a sustentar que apenas o desígnio da Encarnação pudera tornar possível a Criação. Para Hegel, entretanto, a concessão de M alebranche era' excessiva, pois a queixa contra a qual ele devia se defender, doravante, não era m ais um a queixa. Não som ente o m undo sensível não tem essa consistência que a ortodoxia reprovava a M alebranche ter negligenciado, mas é preciso dizer que a Reli­gião tem por tarefa suprim ir tal consistência aparente. Q uer isso dizer que Hegel iria mais longe que M alebranche na linha do ascetism o cristão? De m aneira alguma. A scetism o é a renúncia aos luxos deste mundo, portanto atitude “m undana” . Ora, não se trata m ais de saber se Deus m andou seu Filho para garantir a salvação das criaturas ou para glorificar sua obra cria­da, para realçar o valor do m undo criado ou para lhe dar algum valor. A partir do m om ento em que a m orte de Cristo significa que a “mundaneida- d e” (ou, se quiserem , a “etapa m undana”) é essencialm ente efêmera, já não se trata de apreciar a utilidade da Encarnação ou de designar seu beneficiário. Isso ainda seria ordenar a Encarnação de acordo com o “m un­dano” , m edi-la pelo “criado” com o por um a unidade fixa e proibir-se, com isso, de reconhecer no Diferente a sim ples marca de um a Diferenciação.

Seria portanto mal determ inado o “Reino do Filho”, contentando-se em dizer que o divino se torna seu O utro ou passa nele. Tais palavras têm o inconveniente de acentuar a independência dada ao Diferente que “ apa­rece com o um efetivo exterior, sem Deus’’ .33 O Filho sim boliza então a cria­ção do Finito e o ser-outro é pensado irrevogavelm ente com o Finito sub­sistente, “m undo criado” : todas as depreciações desse m undo que ali se

32 Cf. Guéroult, Malebranche, III, p .110 a 131. Gouhier, Philosophie religieuse de Malebranche, p .15 a 28.

33 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .251-2.

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introduzem (M alebranche) nada alteram. Ora, a responsabilidade dessa tradução incum be ao espírito finito, “contanto que ele próprio seja, em sua existência, essa m odalidade de independência” . “ Em Deus m esm o” isso ocorre de outra maneira: o que parecia ser um ente independente não é m ais que um a inflexão do sentido. Um momento. Sob a condição de que, precisa Hegel, essa palavra não induza a representação de um a passagem instantânea (augenblicklich) e assim nos faça recolocar a evanescência do ente na dim ensão do antes e do depois. Igualm ente, só se poderá recorrer às palavras “ etapa” , “ episódio” , precisando que são apenas im agens. Se não, continuarão im aginando temporalmente a supressão do ser-outro.

Se dissermos que o Outro é um momento evanescente ..., o instantâ­neo do tempo, com um antes e um depois, é facilmente retido por nós, ainda e sempre [immer noch] nesse momentâneo; ora, ele não está em nenhum dos dois. E preciso afastar toda determinação temporal em geral, e guardar so­mente o simples pensamento do Outro, o pensamento simples, pois o Outro é uma abstração.34

Ora, essa referência espontânea ao tem po indica que continuam os a pensar a partir do m undo entendido com o ente - por exem plo, continua­m os a dar um sentido à questão m etafísica de saber se o m undo tem ou não tem com eço no tem po. A relação do “m undo” com “ D eus” sem pre nos aparece, portanto, no m odo de um a justaposição: “ é mais ou m enos como se dissessem : há plantas, animais, hom ens - depois, Deus, o ser por exce­lência” . Sempre falam os de Deus com o um Outro, subentendendo Outro = Exterior, ao passo que “ D eus” é justam ente a abolição de tal linguagem . “A Fé não é a relação com algo de Outro, mas ela é a relação com o próprio Deus.” 35

34 Ibidem , XVI, p .253 . Encontra-se u m a definição precisa do momento neste texto sobre Em pédocles: “Q uanto à relação d esse s m om entos reais, já se d isse que ele colocava o Fogo de um lado e os três outros, em oposição, do outro lado. M enciona tam bém o p ro ­cesso d esse s elem entos, m as não o concebeu além ; é notável que ele apresen te su a unida­de com o um a m istura. A contradição advém necessariam ente n essa ligação sintética que é um a relação superficial, aconceitual, em parte relação, em parte não-relação: ali, é a unidade dos elem entos que é posta, aqui, é tam bém su a separação. N ão se trata da unida­de universal em que [esses lados] são sob o título de momentos, unidade im ediatam ente una em su a diferença, im ediatam ente diferente em su a unidade; m as am bos os m om en­tos, identidade e diferença, aqui descaem um fora do outro” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .378).

35 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .308.

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O papel atribuído à N atureza criada é outro aspecto desse contra-sen- so fundam ental. É com base nesse pressuposto de Deus com o O utro que a idéia de N atureza ganhou sua falsa independência, favorecida pela inter­pretação incorreta do dogm a da Criação. A ela é que se deve o longo esque­cim ento do “verdadeiro conceito da N atureza” , o parêntese que se abre após a Physique [Física] de Aristóteles e se fecha só com a Critique dujugement

[Crítica do ju ízo].36 Tanto a Física teológica quanto a física m ecanicista con­cordam em transform ar a Physis em um ser com pacto de que elas se servi­riam ora com fins, ora com causas exteriores; cada um a delas, a seu modo, perdeu de vista a Physis aristotélica com o processo, consum ação de si. A s ­sim, o m om ento conceituai da Diferença tornava-se mais opaco: ao se re­clamar tam bém do cristianism o, ou ao m enos se acom odando a ele, a filo­sofia obscurecia o que o dogm a da Trindade lhe teria perm itido esclarecer. Essa N atureza petrificada se tornava a única im agem do Filho, do O utro de Deus. Ora, “ a N atureza é sem dúvida o Filho de Deus, mas não como Filho:

como persistência do ser-outro; decerto, ela é a Idéia divina, mas retida por um instante fora do A m o r".37 A própria crítica kantiana não dissipou essa ilu­são naturalista, visto que vinculava a dissolução da cosmo-teologia à recusa de toda teologia: sinal de que o desproporcional papel de intercessor entre Deus e a criatura, o atribuído à natureza, perm anecia não criticado. D esco­nheceu-se, portanto, que a Religião cristã realizou - secretam ente, é verda­de - a conciliação do divino e do criado e com ela desaparece, para bom entendedor, o caráter m aciço do “m undo natural” .

36 “A determ inação fundam ental que A ristó te les elaborou acerca do vivente (é preciso considerá-lo finalm ente agindo) se perdeu nos Tem pos m odernos, até que Kant desper­tou e sse conceito à su a m aneira, com a finalidade interna, segundo a qual o vivente deve ser constitu ído com o fim -de-si-m esm o ... O fato de agir inconscientem ente segundo fins é o que A ristó teles denom ina physis” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 360, IX, p .633-4; cf. Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .341 ). Sobre o fato de que Hegel m ostra lado a lado o s que defendem a cau sa final e os m ecanicistas, cf. a crítica por ele endereçada à crítica de A naxágoras pelo Sócrates do Fédon: “ O que há de positivo no ju ízo de Sócrates n os parece, por outro lado, insuficiente, v isto que p a ssa ao outro ex­trem o e exige para a natureza das cau sas que elas não pareçam estar nela, m as incidam fora dela, na consciência. Pois o que é belo e bom é um pen sam ento da consciência com o tal; o fim, a ação finalizada é inicialm ente u m a ação da consciência, não da nature­za. Ou ainda: enquanto fins são colocados na natureza, o fim com o fim incide fora dela; o fim com o tal não é na própria natureza, m as som ente em n o sso ju ízo " (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .427).

37 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 247, IX, p.49-50.

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É a consciência que o espírito finito toma de Deus que é mediada pela Natureza. O homem então vê Deus através da Natureza, mas a Natureza ain­da é somente o revestimento e a figuração não verdadeira.38

O cristianism o contém a prim eira crítica dessa figuração não verdadei­ra, mas os filósofos não souberam extraí-la. Um a vez mais, a verdade espe­culativa que se desenhava na Religião cristã foi sufocada pela am bigüidade representativa desta últim a. Deus tomou a forma de um espírito finito, Ele veio passar uma temporada na Natureza: os cristãos perm anecem nessa re­presentação; filósofos e teólogos a justificam : é ao “m undo natural” que pertencem o reino dos corpos e o reino dos espíritos,39 é à Criação que a Encarnação está subordinada. N otávam os antes que Hegel se opõe à idéia de que a Encarnação tenha sido um m eio para a redenção ou um m eio para a glorificação do m undo, em suma, que ela tenha sido consum ada com vis­tas ao “m undo natural” ou a uma de suas partes. Mas de onde vem que a Encarnação tenha sido interpretada com o um suplem ento da Criação, não com o o esclarecim ento de seu sentido, mas com o a valorização do criado? Por que a N atureza é assim tom ada com o o elem ento de referência? No início da Philosophie de la Nature [Filosofia da natureza], H egel responde a essa questão.

O Diferente pode ser captado sob três formas: o Universal, o Particular e o Singular. [No Universal] o Diferente é retido na eterna unidade da Idéia; é o Logos, o Filho eterno de Deus, como Fílon o compreendia. No extremo opos­to, ele é a Singularidade, a forma do espírito finito. Como retorno em si mes­mo, a Singularidade é certamente Espírito, mas, como ser-outro, ela o é pela exclusão de todos os outros, é o espírito finito ou humano (pois outros espíri­tos finitos que não sejam os homens em nada nos concernem). Quando o homem singular é ao mesmo tempo compreendido em sua unidade com a essência divina, ele é o objeto da Religião cristã, e isso é o que de mais prodi­gioso se pode exigir desta última. A terceira forma que aqui nos ocupa, a Idéia na Particularidade, é a Natureza, que se situa entre os dois extremos. Essa for-

38 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .255.39 “ E ssa C idade de D eus, e ssa M onarquia verdadeiram ente universal é um m om ento do

m undo m oral no mundo natural . . . com o acim a estabelecem os, um a harm onia perfeita entre dois reinos naturais, um a d as c a u sa s eficien tes, ou tro d as fin ais . . . ” (Leibniz, M onadologie [M onadologia], § 86-87). A o assin alar o s esp íritos ao universo da N atureza (em oposição ao da G raça), Leibniz retom a a repartição da teo logia tradicional. Cf. Grua,

Jurisprudence universelle, p .3 85-6.

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ma é a que o Entendimento tolera melhor: enquanto o Espírito é posto como a contradição existente para si, visto que a Idéia infinitamente livre está em con­tradição objetiva com a Idéia sob a forma da singularidade - na Natureza, ao contrário, a contradição é somente em si ou para nós, pois o ser-outro aparece na Idéia como forma tranqüila.40

O A bsoluto explicita-se portanto: 1) com o Espirito finito; 2) com o N a­tureza. E a prim eira explicitação que o cristianism o descreve, porém ela sempre foi com preendida de m aneira confusa. Pois, assim que se tentava pensar a Encarnação em sua especificidade, tropeçava-se no enigm a da rela­ção do Finito e do Infinito (voltaremos a este ponto); sua com ensurabilida- de, sua com patibilidade. Com o pensavam essas duas essências separadas, sua interpenetração parecia forçosam ente contraditória, e os teólogos de­viam se contentar em escam otear essa contradição. N enhum a dificuldade, em com pensação, quando se trata da Criação: a essa altura, é nítido o corte entre o produtor e o produto; se o Criador vela sobre a natureza, ele não vem habitá-la; sua relação com ela está regulada de um a vez por todas. A N atureza cam ufla o que o N ovo Testam ento descreve na form a de fatos corriqueiros: que há de com um entre o Deus im utável que a governa e um vagabundo crucificado? Portanto era mais seguro pensar o cristianism o nos lim ites da Natureza, reportar a Diferença equívoca à Diferença fixa, o Reino do Filho à sua caricatura. E o que Hegel resum e ao marcar, no interior da Finitude, a diferença, aos m enos didática, entre o "m undo natural” e o "m un­do do espírito finito” . Com parado a este últim o, aquele é com o um a infra- finitude, em que a contradição entre Finito e Infinito é suficientem ente velada para que o Entendim ento possa legitim am ente passá-la em silêncio.

Perguntáram os por que a Religião parece dem orar-se na R epresenta­ção, por que o cristianism o não chega a se destacar da “história exterior” e m undana de Cristo. A resposta estava na questão: é justam ente o cará­ter mundano dessa história que assegura seu crédito. Enquanto a consciência cristã vê no Cristo “ este hom em aqui” , vivendo em tal região, ela não está ontologicam ente expatriada: ou então Jesus não é senão o Filho e a trans­cendência do Pai é preservada, ou então ele é visto com o o símbolo da pre­sença de D eus e sua m orte com o o sím bolo do não-valor do m undo, a estranheza do m undo em relação ao divino perm anecendo igualm ente

40 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 247, IX, p.49-50.

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intacta. “ Esse hom em era o Filho de D eus” , “ Deus criou o m undo” : urna fórm ula que, nesse nível, é tão pouco enigm ática quanto a outra. O m éri­to da Fé cristã, no entanto, foi o de não haver consentido inteiram ente com essa naturalização de seu conteúdo e pressentir, com o risco de escan­dalizar o Entendim ento, que ambas as fórm ulas não são de m aneira algu­m a equivalentes.

A história da vida de C risto é assim a confirm ação exterior, mas a Fé

transform a sua significação; ela não é som ente a crença nessa história exte­

rior, m as crença de que esse homem era o Filho de Deus. O conteúdo sensível se

torna então inteiram ente outro . . .41

Ele se torna “ inteiram ente outro”, pois Jesus não é mais com preendi­do com o um ser natural, portador, além disso, de um a significação que lhe perm anecesse estranha. A consciência não o representa mais com o símbolo-

de, mas com o desenvolvim ento da Subjetividade divina, pois Subjetividade,

aqui, se opõe a símbolo.42 A situação “N atureza-Criador” , que só perm itia a relação de sim bolização, sucede a relação do Pai com o Filho, pensada como divisão de “D eus” conSigo m esm o. Não mais um a nova figura (m esm o que a consciência representativa ainda o entenda com o tal), mas a supressão de toda figuração possível; não mais um novo ângulo de visão, mas o início de um a m utação no sentido da palavra “D eus” . “ D eus” não é mais parti­lhado entre “o em-si substancial do Pai” e a objetividade som ente histórica do Filho.43 Ele se torna, para a consciência que pela primeira vez se pres­sente com o Espírito, a necessidade dessa partilha. A história de Cristo deixa então de ser o relato de um acontecim ento m aravilhoso ou um conto peda­gógico, para doravante dizer som ente sua própria necessidade. Aqui, e só aqui, com eça a explicação a céu aberto com o divino e declina a referência à

41 Ph. Religion [F ilosofia da religião], X VI, p .323.42 “Tais h istórias, in tu ições, apresentações, fenôm enos, o E spírito tam bém pode elevá-los

ao U niversal, e a h istória da sem ente, do sol, pod em se tornar os sím bolos da Idéia, m as som ente sím bolos. Tais form ações, segundo seu con teúdo próprio, sua qualidade esp e­cífica, não são apropriados à Idéia; neles, o conhecido incide fora deles, a significação não existe neles com o significação. O objeto que, nele m esm o, existe com o o Conceito, é a subjetividade espiritual, o h om em - ele é nele m esm o a significação, ela não incide fora dele; ele é o que pensa e tu do sabe. Ele não é m ais sím bolo, m as sua subjetividade, sua form a interna, seu Si são essen cialm en te essa própria história, e a h istória do espiri­tual não m ais se encontra n um a existên cia inadequada à Idéia, m as em seu próprio e le­m en to ” (Ph. Religion [Filosofia da religião], X V I, p .321-2).

43 Ibidem , X VI, p .3 15 .

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Natureza. Verdade que ela só faz declinar, pois a consciência religiosa como tal (e por isso é que ela perm anece religiosa) nunca conseguirá abandonar o m odelo da Criação do m undo. O Outro-de-D eus, ela bem o concebe com o seu Filho, e não com o o mundo-sendo. Entretanto, ela sempre volta à partilha originária do aquém e do além. Ela ainda recua diante da identificação de Deus e do hom em .44 Teme dizer claram ente o conteúdo que com preendeu. Logo, ela ainda não possui a ontologia de sua época.

3

Serão perm itidas, neste ponto, duas observações.1) Vale a pena centrar o hegelianism o na verdadeira Teologia que ele

pretende instaurar, quando não para pôr fim à lenda do “ humanismo hegelia-

no". A verdade é que Hegel, com o acabamos de ver, concede um privilégio ao Espírito finito sobre a Natureza. Esse privilégio, porém, cabe ao Espíri­to como Espirito, não como finito, como acreditam os intérpretes “hum anistas” . A suprem acia que o hom em adquire progressivam ente sobre a Natureza, H egel a celebra em páginas famosas. Mas im porta conferir-lhe seu alcance exato.

O mundo finito é o lado da Diferença em relação ao lado que permane­ce em sua unidade; assim, ele se divide em mundo natural e em mundo do Espírito finito. A natureza só entra em relação com o homem; para si, ela não entra em relação com Deus, pois a Natureza não é Saber; Deus é o Es­pírito, a Natureza nada sabe de Deus. Ela é criada por Deus, mas ela não entra por si mesma em relação com Ele, no sentido de ser cognoscente. Ela só tem relação com o homem, e o que se denomina sua dependência consis­te nessa relação com o homem.45

44 N o que ela não está absolutam ente errada, v isto que ainda só concebe a identificação de Entendim ento: “ é som ente a R epresentação que afasta um do outro [esses dois estág io s da Idéia religiosa] e, de fato, do is terrenos e dois atos inteiram ente diferentes. De fato, tam bém é preciso d istingui-los e afastá-los um do outro. Se foi dito que, em si, eles são a m esm a coisa, ainda é necessário determ inar, precisam ente, com o tal identidade tem de ser entendida, sob pena de dar lugar ao falso sentido e à interpretação incorreta que faria do Filho eterno do Pai, da divindade que é objetiva para si m esm a, a m esm a co isa que o m undo e entenderia um pelo ou tro” Ph. Religion (Filosofia da religião, XVI, p .251-2).

45 Ibidem , XVI, p .254.

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D urante m uito tem po a N atureza foi o único lugar da revelação do divino. Frágil revelação, quando o hom em das religiões primitivas aperce­be o divino no sol ou no relâmpago, quando os teólogos, de m aneira pagã, tiram argum entos das maravilhas do universo para se elevarem até Deus. Doravante, e essa boa nova percorre a obra de Hegel, Deus não se anuncia m ais no céu estrelado; a Heine, que se extasia com a beleza da noite, Hegel murmura: “A s estrelas não são nada; o que nelas o hom em põe de si, eis o que é” .46 O criado só deixa de servir sim plesm ente de tela em relação ao divino quando a palavra “N atureza” passa a significar a im ediatez do Espí­rito, seu enraizam ento “patológico” .

A mais elevada consideração da Natureza, a mais profunda relação na qual se pode colocá-la em relação a Deus consiste, antes, em compreendê-la como espiritual, isto é, como natureza do homem.47

N esse estágio, a N atureza tom a um sentido explícito e desem penha um papel na revelação do Espírito a si: designa a dependência que o Espíri­to finito (humano) deve rom per para deixar que, nele, o divino se diga. De tela representativa, ela se torna ao m enos obstáculo para o desenvolvim en­to do Espírito. Para que o problem a do acesso ao divino seja recolocado em seu verdadeiro terreno, é preciso, portanto, renunciar à idéia de um a N atu­reza concebida com o o conjunto dos “ costum es de D eus” (m etafísica clás­sica), assim com o à “ boa N atureza” do século XVIII, pátria utópica ante­rior à história. É o pecado original que dá seu sentido à palavra “N atureza” , sob a condição, é verdade, de não ser entendido com o um a decaída que houvesse afetado um a natureza outrora integralm ente boa, mas com o a imagem do Espírito no mais baixo de sua fm itude. A s duas versões são bem diferentes. A prim eira é a da ortodoxia: o Mal som breou o Bem; a natureza, no hom em , tornou-se anormalmente sinônim o de corrupção ...

46 A pud Glockner, Hegel, XX I, p .374. “ N em o olho nem a im aginação encontram n essas m assa s inform es um ponto em que se repousar com prazer, um lugar em que poderiam encontrar ocupação e jogo. Ali, som ente o m ineralogista encontra m atéria para arriscar conjecturas insuficientes sobre as revoluções d essas m ontanhas. N o pen sam ento da du­ração d essas m ontanhas ou na espécie de sublim e que lhes é assinalada, a Razão nada encontra que lhe im ponha isso , que nela provocasse espanto e adm iração. O aspecto d essas m a ssa s eternam ente m ortas só m e ofereceu, afinal, a representação uniform e e tediosa: a ssim é [es ist so]” (Ibidem , p .371).

47 Ph. Religión [F ilosofia da religião], XVI, p .256-7. Cf. Ibidem , XV, p.253-4.

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Esses tem as im pacientam a Hegel: em que, pergunta-se ele, o conhecim en­to do Bem e do Mal teria sido marca de corrupção? Em que seria um casti­go, para Adão, sair do em parvam ento do Paraíso terrestre? A segunda ver­são valorizará, ao contrário, o fato de que o hom em “decaído” ou natural pertence pelo menos ao reino do Espírito. M elhor falar, portanto, em im ediatez humana, não em decaída; tal im ediatez não im plica nenhum a regressão e não evoca nenhum a nostalgia: é apenas o ponto Zero de que o Espírito parte para se conquistar. Essa natureza hum ana é m á por definição, visto que não desenvolvida, porém ela contém , diferentem ente das “boas natu­rezas” idílicas, a prom essa de um desenvolvim ento, e m ais vale ser (para tom arm os casos hegelianos limite) louco ou negro que se debater no Pa­raíso. Tal é a clarificação que se esboça quando a Natureza, tornada nature­za humana, sustenta sua prim eira “relação com o hom em ” . Essa primeira relação significativa do hom em com a natureza indica em que sentido será preciso tom ar as demais e, em particular, a relação técnica.

Sem dúvida, a natureza só encontra verdade no pensam ento humano

que a interpreta ou no trabalho humano que a elabora, mas tão-só no senti­do em que a operação hum ana revela o quanto eram m entirosas a consis­tência e a espessura da natureza. A cada vez um passo a m ais é dado rum o ao nascim ento do dia do Espírito (Begeistung). O im portante não é a orde­nação da N atureza por m eio de uma das espécies que a habitam, mas a desnaturalização que assim se efetua. Tornada irreconhecível por viventes que só a consom em ao devastá-la, a N atureza aparece cada vez m enos como o negativo inoportuno cuja presença tenaz falseava a com preensão da pala­vra “ D eus” ; cada um a das transform ações que sofre é um convite a mais para não nos relacionarmos com ela com o se fosse um horizonte insuperá­vel. A inda aqui, se compararmos a antropologia do século XVII ao hegelia­nism o, constatarem os que se passa de um ju ízo de valor proferido sobre a N atureza a um a revisão de seu estatuto ontológico. Já se disse o bastante sobre o elogio do engenheiro no século XVII, o ideal cartesiano do “ senhor e possuidor da N atureza” , que se ajustam perfeitam ente ao alicerce teológi­

co do pensam ento clássico. E colaborar com Deus, tirar partido dos m eca­nism os que ele ordenou e de m aneira alguma isso seria fazer-lhe concor­rência: acerca disso, M alebranche, em um texto espan toso, retira aos m ecanicistas os seus últim os escrúpulos:

Se Deus mexesse os corpos por meio das vontades particulares ..., seria insultar a sabedoria de Deus corrigir o curso dos rios e conduzi-los a locais que carecem de água: seria preciso seguir a natureza e permanecer em repou-

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so. Porém, agindo D eus em conseqüência das leis gerais por ele estabelecidas,

corrige-se a sua obra sem ferir a sua sabedoria.48

A o fazer uso da natureza ou dos animais, o hom em está, portanto, fundado no poder de Deus: o prom eteísm o do Discours de la méthode [D is­curso do m étodo] resulta de um pacto tácito entre o Deus dos filósofos e o hom em natural. Ora, nada mais afastado, com o se vê, do pensam ento he- geliano. Seria errôneo abusar aqui da palavra “práxis” , pois não há m uita coisa em com um , conceitualm ente, entre um a práxis que se serve do mundo

com a bênção de Deus e um a práxis que, desvelando a nulidade do mundo,

contribui para levantar o obstáculo maior ao verdadeiro Saber de Deus. Por isso, a im portância dada por Hegel à hum anização da N atureza não desem ­boca sobretudo em um elogio de Prometeu:

N ão é o ético nem o juríd ico que Prom eteu deu aos hom ens, m as ele

som ente os ensinou a astúcia que lhes perm itirá dom ar as coisas naturais e

com elas fazer m eios de satisfação hum anos. O fogo e as artes que se servem

do fogo nada têm de m oral em si, tão pouco quanto a arte da tecelagem ; eles

só entram , inicialm ente, a serviço do egoísm o e da utilidade privada, sem se

relacionar com a existência hum ana com unitária e com a vida pública.49

Essa restrição do sentido “ espiritual” da técnica diz o bastante acerca do lugar em que se detém o papel positivo do “ Espírito finito ou hum ano” . O privilégio do hom em - quer pensado com o sujeito ativo (tätig), quer como consciência de si - nunca é senão relativo. N os escritos de m aturidade, não se encontrará elogio ao hom em que esteja fornido de reservas. A o com en­tar o coro de Antígona, H egel retom a o elogio da astúcia hum ana que sabe opor as forças naturais à própria Natureza, para logo em seguida acrescen­tar: “Mas [o homem] não pode se apoderar assim da própria Natureza, da universalidade desta últim a, nem ajustá-la a seus fins” .50 Se a técnica indica que a N atureza tem de ser superada ontologicam ente, ela a supera, afinal, tão pouco quanto a satisfação do desejo. Decerto, o trabalho do servo vale mais que a saciedade do Senhor; não nos esqueçam os, porém, de que “ a coisa é ao m esm o tem po independente [para o servo]; logo, ele não pode,

48 M alebranche, Traité de M or ale, I, cap. I, § 2 1. A p u d G usdorf, Révolution galiléenne, I, p .263.49 Esthétique [E stética], XIII, p .48; trad. fr., II, p .18 1.50 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 245, Z, IX, p .36.

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por seu ato de negar, dar cabo da coisa e aniquilá-la; o servo a transforma, portanto, apenas por seu trabalho [oder er bearbeitet es nur]” .51 Se H egel es­creve: “Som ente o hom em é Espírito, isto é, para si m esm o é que en­tão ele opõe o hom em ao animal, que, por sua vez, “ constitui unidade com Deus, mas som ente em si” . E a frase seguinte proíbe-nos de tomar esse m om ento antropológico do Espírito com o se fosse seu foco imutável: “Mas esse ser-para-si, essa consciência é ao m esm o tem po a separação com o Espírito divino universal” .52 Em suma, o divino deve passar por essas figuras com plem entares do Cogito e do “ senhor e possuidor da natureza", a fim de compreender-se em toda sua envergadura. Por mais decisiva que seja essa vi­ragem, porém, é errôneo querer julgar por ela o circuito inteiro. O Cogito assim com o o engenheiro conquistador do Discurso são som ente paradig­mas unilaterais que ainda não prejulgam, de m aneira alguma, a natureza da “autocom preensão do Espírito” rum o à qual eles nos encam inham . Basta entender sempre, pela palavra Geist, o desenvolvimento do sentido, para que a com preensão de H egel com o puro cartesiano (Heidegger), ou a recupera­ção de H egel tentada interm itentem ente por intérpretes m arxizantes ou m arxistas (de Kojève a M. Garaudy) apareçam com o duas maneiras dife­rentes de deter no mesmo ponto o percurso do Geist hegeliano, e com isso, uma vez mais e rápido demais, inscrever Hegel na tradição, sem levar em conta, ou suficientem ente em conta, o recuo que tom ou em relação a ela.

O bservação que ultrapassa o sim ples cuidado de objetividade históri­ca. E notável, por exem plo, que, na falta de atenção aos textos, corra-se o risco de sim plificar e falsificar o sentido da crítica feita a Hegel por seus sucessores im ediatos. O u ressaltam que M arx tira partido dos elem entos concretos que encontra, aqui e ali, em Hegel, ou m ostram que o chamado à ordem “hum anista” faz desm oronar o castelo de cartas da especulação. Basta voltar aos textos para m edir o quanto as coisas estão longe de ser tão sim ­ples. Eis aqui um único exem plo.

A crítica da noção de negatividade nos Manuscrits de 1844 [Manuscri­tos de 1844] está vinculada à do anti-hum anism o especulativo. A negativi­dade é inseparável da desvalorização da natureza. A penúltim a citação que se encontra de Hegel é a do § 245, do System:' a natureza, escreve Hegel,

51 Phèno. [Fenom enología do espírito], p. 154; trad. fr., I, p. 162.52 Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .413.

* Aqui, com o em outras passagen s, em pregam os o m esm o term o alem ão com o qual Gerard Lebrun design a a Enciclopédia das ciências filosóficas, realçando, pois, seu caráter sistêm ico no corpo do texto; nas notas, porém , indicam os o título da obra (N.T.).

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não encerra o Fim suprem o e a teologia finita é boa só por deixar pressen­tir sua nulidade intrínseca. Diante desse parti pris idealista, apegar-se-á a reabilitar tanto a natureza quanto a Finitude: “ Um ser que não tem sua natureza fora dele não é um ser natural; não faz parte da essência da nature­za” . Essa reavaliação do ser natural finito condiciona a tese propriamente hum anista dos Manuscrits [Manuscritos]: com o ser natural, o homem, por

meio da oposição ao animal, é o único ser-genérico (Gattungswesen), e, por causa desse privilégio, a diferença entre vida individual e vida genérica se apaga, ao m enos de direito, em sua vida ativa. “A vida individual e a vida genérica do hom em não são diferentes.” Isso equivale a dizer que o gênero não tem sentido som ente biológico para o indivíduo hum ano, que não se lhe apresenta tão-só no aspecto do parceiro sexual - o qual, pensava Hegel, rem ete o indivíduo à sua incom pletude; o gênero tem uma presença positi­va para o indivíduo, enquanto seu pertencim ento ao social obseda cada uma de suas atividades. M esm o quando não ajo em com unidade direta com outros, “m inha própria existência é atividade social” .53 A ssim o homem, m esm o com o vivente, é um vivente de exceção, e seu ser-consciente é apenas a expressão dessa prerrogativa vital. Em si, “m inha consciência universal é apenas a form a teórica daquilo de que a com unidade real, a organização social é a form a vivente” . N esse ponto, vê-se claram ente qual é o efeito - e adivinha-se qual poderia ser a m otivação - da revolta contra o especulativo: arrancar a espécie humana, em sua própria vida prática, ao com um destino biológico, devolver ao homem, portador de utensílios, o papel insubstituível que se apagava m uito rapidamente no ciclo da Idéia.

A té aí, tudo é simples: hum anism o contra especulação; o esquem a é familiar. Mas há a outra vertente dos Manuscrits [M anuscritos], na qual cor­remos o risco de reencontrar, transposto, o não-hum anism o hegeliano. Vol­tem os do direito ao fato: ocorre que esse ser-genérico é alienado, arranca­do à sua vida genérica, vantagem que ele detém sobre o animal, rebaixando-a ao nível de m eio de conservação da existência individual.54 E, para descrever essa situação de fato, é preciso oferecer-se o m eio de marcar a distância que há entre o trabalho alienado e o que seria a objetivação genérica, entre o trabalho com o é vivido pelo indivíduo separado de sua essência e o que seria a produção conform e a essência humana. N esse ponto, a doutrina de 1844 não pode mais ser o hino entoado à honra da Tätigkeit humana, sim-

53 M arx, M anuscrits [M anuscritos], p .89; trad. fr. de Bottigelli.54 Ibidem, p .62 e 64.

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pies retorno à teleologia finita. O que é a atividade desalienada, é difícil decifrá-lo por interm édio daquilo que é sua caricatura. Com o descrevê-la mais justam ente? E então que o jovem M arx volta, de certa maneira, à dis­tinção hegeliana entre o trabalho técnico violento (lado da finalidade exter­na, da teleologia finita) e a elaboração biológica (lado da finalidade interna). Q uando define a natureza com o “o corpo não orgânico do hom em ” ,55 ele transpõe, em relação de direito do hom em com a natureza, a relação do vivente hegeliano com seu corpo; quando opõe ao animal, que só faz “pro- duzir-se a si m esm o” , o hom em que, com o produtor, só pode ser reprodu­tor, ele ainda transpõe o esquem a biológico hegeliano.56 Esse m odelo é in­dispensável: ele perm ite dar um conteúdo à m isteriosa “produção genérica” e indicar com precisão em que ele difere ou diferirá do “trabalho” que te­m os sob os olhos. Graças a ele, com preendem os que ela não é, com o este últim o, um a sim ples “troca de m atérias” (Stoffwechsel) entre dois seres na­tu ra is de m esm o n ív e l, m as a co n su m a çã o das “ forças e s s e n c ia is ” ('Wesenskrafte) do homem. Em suma, pode-se determ inar com m enos im ­precisão a “ atividade” aquém da alienação. E na atividade vital, prom ovida à

dignidade de essência humana, que esse “hum anism o” , m ais am bíguo en­tão do que parecia, vai buscar, afinal, um a garantia. D onde se vê:

a) quão útil seria para os apologistas do jovem M arx analisar m ais a palavra “hum anism o” ; se o jovem M arx entendia glorificar o livre projeto

do hom em , convir-se-á que sua tentativa já está com prom etida pelo apelo à norm a biológica. E que talvez seja im possível, desde a Critique de lafaculté

de juger [Crítica da faculdade de julgar], voltar pura e sim plesm ente a dar lugar de destaque à finalidade externa: disso, o “ m aterialism o” do jovem

M arx seria um a prova a mais.b) o quanto seria superficial ver, nos Manuscrits [M anuscritos], apenas

a revolta de Prom eteu contra o Sistem a abstrato. Não é a revanche irônica do especulativo reaparecer sob sua forma biológica, quando se experim en­ta a necessidade de constituir o conceito de um a “ atividade hum ana” que seja outra coisa que o relacionam ento de dois term os exteriores entre si? Decididam ente, não é desprovido de im portância que Hegel tenha conce­dido ao hom em o estatuto de Espírito finito e só tenha concedido a Prom e­teu um papel subalterno.

55 Ibidem, p .62.56 Sobre a Tätigkeit do vivente, cf. Logik [Lögica], “A Ideia da V ida” .

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2) Desvalorizar as significações cosm ológicas, há pouco nos pareceu que a palavra seria im propria para caracterizar o projeto hegeliano. Trata­se de criticar a consistência que lhe é concedida, o que é coisa inteiram ente diferente. D a m esm a maneira, o conceito de N atureza é menos rebaixado

axiologicamente do que pensado em sua estrita negatividade. Tal diferença pode­ria parecer obscura ou verbal. Vamos torná-la precisa.

E notável que, desde as primeiras páginas da Philosophie de la nature

[Filosofia da natureza], Hegel tenha o cuidado de não ser confundido com Schelling. A s extravagâncias da Naturphilosophie romântica, observa ele, tor­nam com preensível que a própria disciplina tenha caído em descrédito57 e, por contragolpe inevitável, o “ em pirism o grosseiro” tenha sido reforçado. Com efeito, o Entendim ento tem o jogo ganho ao colocar, diante dessa fal­sa ciência, um a ciência tida com o digna desse nom e, ou seja, estritam ente lim itada à observação e à experiência. Reserva-se assim a em piria à física, ao passo que à filosofia são deixados os devaneios cosm ológicos. E já tal partilha é contestável. Igualm ente, isso é tão prejudicial às duas disciplinas quanto seria sua confusão. Hegel entende substituir ali um a relação de su­bordinação.

A filosofia da Natureza toma os materiais que a física lhe fornece a partir da experiência, no ponto em que esta os levou, e os elabora de novo, sem pôr no fundamento a experiência como garantia última. Assim, a física deve tra­balhar de mãos dadas com a filosofia para que esta transponha no Conceito o universal-de-entendimento que lhe é remetido, mostrando como essa totali­dade necessária em si mesma surge do Conceito.58

A filosofia não coordena, portanto, os resultados que lhe são trazidos pelos especialistas - com o seria o caso para A uguste C om te a filosofia esclarece (verklären) esses resultados. Ela não prom ulga um a verdade que as ciências, por sua vez, só balbuciariam, mas que, de direito, lhes caberia dizer.

Ela não prolonga nem sequer coroa o trabalho científico. A qu i, H egel desautoriza antecipadam ente sua lenda: se hoje é o seu nom e que vem freqüentem ente ao espírito dos cientistas, quando querem citar um exem ­plo da presunção dos m etafísicos, H egel não é responsável por isso. A s ciências exatas, para ele, têm seu dom ínio, que não é o caso de usurpar. Se

57 “ Introdução” à F ilosofia da N atureza, in Enciclopédia das ciências filosóficas, p .29-30.58 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 246, Z., IX, p .44.

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retém a idéia de um a “m atem ática filosófica", é de passagem e sem entu­siasmo: o em preendim ento quase não vale a pena, pois a m atem ática, como ciência das grandezas finitas, basta-se a si m esm a.59 Bem m ais que isso, a filosofia da N atureza nem sequer fornecerá ao cientista, confinado em seu dom ínio “finito” , a ontologia do objeto que ele estuda. N em ciências das generalidades, nem eidética regional, ela se contentará em retificar as in­terpretações julgadas com o abusivas e estabelecerá a justa form ulação dos conceitos de que os físicos “ se servem sem saber se [tais conceitos] têm um a verdade e em que m edida eles a têm ” .60 Essa sem ântica reguladora à m argem da ciência tem, de resto, um precedente: a ‘‘Física’’ de Aristóteles, que é algo bem distinto que um a física (no sentido atual) antiga e, portan­to, falsa. Crítica das representações e das opiniões anteriores, análise e rearticulação das significações elem entares (lugar, infinito, tem po): a es­peculação antecipava-se nessa investigação de aparência em pírica.61 Em suma, não se trata de rivalizar com a conceitualização experim ental, e o autor adverte contra a tentação de a todo custo descobrir nesta últim a o especulativo. Sem dúvida, a unidade dos pólos do ím ã “ apresenta, de m a­neira sim ples e ingênua” , a identidade conceituai, mas exem plos desse tipo não autorizam de m aneira algum a a pôr sistem aticam ente, em correspon­

59 “Bem se poderia conceber a idéia de um a m atem ática filosófica que conhecesse a partir de conceitos o que a ciência m atem ática ordinária deduz, segundo o m étodo do E nten­dim ento, de determ inações p ressu p ostas. T ão-só , v isto que a m atem ática se acha com o a ciência das determ inações fin itas de grandezas, fixadas em su a fin itude e valendo com o tais, sem dever superá-la, ela é essencialm ente um a ciência do Entendim ento. E, com o ela tem a capacidade de sê-lo de m aneira perfeita, vale m ais lhe conservar o privilégio que ela detém em relação às outras ciências d e ssa espécie e não alterá-la pela m escla do Conceito, que lhe é heterogêneo, ou de fins em píricos" (Enciclopédia das ciências filo só fi­

cas, § 259, IX, p. 84).60 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .340.61 “A investigação física de A ristóteles é principalm ente filosófica, não experim ental. O fato

de ele bu scar sucessivam en te o conceito determ inado de cada ob jeto, introduzir m uitas idéias, m ostra por que [tais conceitos] são insuficientes e o que é a sim ples determ ina­ção de Entendim ento de cada um . N o entanto, A ristóteles, em su a Física, procedeu em pi­ricam ente. Ele recolhe em um objeto - com o o tem po, o espaço, o m ovim ento, o calor - todas as circunstâncias, as experiências, os fenôm enos; e isso nada m ais se torna senão especulativo, em bora se trate de um a reunião dos m om entos que se acham na R epresen­tação. Pode-se dizer de A ristóteles que ele é um em pírico com pleto e, ao m esm o tem po, um pensador. Q ue quer dizer em pírico? Q ue ele recolhe as determ inações dos ob jetos por ele considerados, com o as conhecem os em n o ssa consciência ordinária (por exem ­plo, o conceito de tem po); ele refuta as representações em píricas, o s filosofem as anterio­res - ele preserva do em pírico o que deve ser preservado. E, ao vincular todas e ssas determ inações, ele as m antém unificadas: elabora assim o conceito, ele é especulativo no m ais elevado grau, ao p a sso que parece em pírico" (Ibidem , p .340-1).

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dência, N atureza e Conceito.62 Esse espírito, ousem os dizer, anti-“dogmá- tico” da apresentação conceituai é sensível desde o início, quando o autor se recusa a responder im ediatam ente à questão que acabara de pôr: Was ist

die Natur? Im possível, dizia Kant, dar, logo de saída, definições em filoso­fia. Im possível, retom a Hegel, responder com o se se devesse indicar algo. A questão: “ que é um a bússola?” , posso responder: “ aqui está um a bú sso­la” . Mas o que é a N atureza, só a explicitação e por m eio da explicitação é que isso m e será ensinado. Esforçar-se para responder rapidam ente seria acreditar que basta reencontrar num elem ento vagam ente “ bem conheci­do” um princípio ou princípios postos dogm aticam ente. Mas de m aneira algum a a especulação tem por tarefa ressuscitar um a física dos princípios: desse código de inteligibilidade, ela recusa tam bém a validade absoluta. "E na N atureza fenom énica que intervém essa diferença entre o princípio e suas conseqüências, os fenôm enos; no especulativo propriam ente dito, ela é suprim ida.” 63

Seria possível sim plesm ente concluir que o parti pris antinaturalista de Hegel acaba lhe prestando serviço (ou, ao menos, amorteceu os efeitos de um projeto aberrante), persuadindo-o de que a N atureza não m erece que se busque algo por sob a sua superfície e de que estaria abaixo da dignidade do filósofo fazer con corrência ao Naturforscher. L igada à p olêm ica contra Schelling, essa convicção anima, é verdade, a Philosophie de la nature [Filoso­fia da natureza]. Passado fabuloso da Natureza, “olho espiritual” que a es­clareceria, deixam -se tais “ excentricidades” a Schelling e à sua escola: com isso, eles regridem aquém dos Fisiólogos d ajô n ia, cujo m érito fora desen­cantar a qnxnç e lhe conferir o seu sentido “prosaico” .64 O im portante, toda­

62 "Seria um pen sam ento não filosófico querer m ostrar que um a form a conceituai existe na natureza com o se devesse existir em geral na determ inação que é sua, com o um a abstração. A N atureza é antes a Idéia no elem ento da exterioridade; por isso , na realida­de, ela m antém e apresen ta o s m om entos conceituais em estado d isperso , unificando, n as co isas superiores, as form as conceituais diferentes em su a m ais elevada concreção" (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 312, IX, p .273 ). Tal apresentação em descontinuidade do que é continuo no conteúdo conceituai (cf. XVI, p .354) proíbe igualm ente as unifica­ções apressad as dos reinos naturais ou de fenôm enos naturais. Cf. as reservas sobre a identificação (rom ântica) do m agnetism o, da eletricidade e do qu im ism o em § 313, IX, p .284.

63 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .340. A nálise da questão "W as ist die N atur?",

in IX, Hinleitung [Introdução], p.34.64 “ E les expulsaram tais ob jetos, tais represen tações que a superstição é capaz de cham ar

divinas e poéticas; eles os rebaixaram ao nível do que se denom ina coisas naturais. Pois é no Pensam ento que o Espírito se sabe com o o ente, o efetivo ... e ele rebaixa então o não-espiritual, o exterior em co isas, em negativo do Espírito. Por isso , não é preciso

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via, é que essa oposição a Schelling exprim e sobretudo um desacordo rela­tivo ao próprio conceito do Saber. Se a filosofia da N atureza é um a “física racional” , ela não é, com o pretende Schelling, uma “física superior” (eine

höhere Physik) e não tenciona oferecer um a segunda visão da N atureza. Seu propósito é clarificar o que é a Natureza; suas análises não substituem ciên­cias positivas julgadas insuficientes; denunciam o objeto precipitadam ente constituído sobre o qual trabalham tais ciências. Mas essa denúncia não desem boca na restituição de um a verdade sem sombras da Natureza, tal

como as ciências positivas a visam (e, assim, tal com o a visariam im perfeita­m ente). Hegel não é tão otim ista. “O Espírito da N atureza é um Espírito oculto ... O Conceito se oculta na natureza inorgânica . . .” : essas fórm ulas não convidam a atravessar a casca da N atureza para reunir-se a seu conteú­do verdadeiro. Elas se opõem, ao contrário, à sentença de Schelling: “A N atu­reza é o Espírito visível [sichtbare Geist]” e subentendem que, nesse caso, a inteligibilidade sempre será insatisfatória, a penum bra de direito. Não é ai,

nesse lugar, que se terá a sorte de ouvir o que quer dizer “ Espírito” : aí, nesse lugar, o “Espírito” nunca esteve a descoberto; nunca o estará. Portanto, seria vão im aginarm os que, dali, faríamos com que ele surgisse m agica­m ente. Assim , a filosofia nos faz compreender, antes de tudo, por que o trabalho dos cientistas é ingrato; se criticam os preconceitos nos quais eles se obstinam , não lhes propõem um program a positivo e substitutivo, nem m étodos infalíveis. A um a gênese triunfal da Natureza, ela substitui uma desconstrução do objeto “ N atureza” de que se trata de nos “ liberar” . A

lam entar a perda dessa concepção, com o se com ela tivéssem os perdido a unidade com a N atureza, a p u reza in ocen te e o estado de infância do E spírito ... A R azão é ju stam en te a saída d essa inocência, fora do estado de unidade com a N atu reza" (Gesch. Philo. [H is­tória da filosofia], XVII, p .405). A s excentricidades da F ilosofia da N atu reza provêm em parte dessa representação: m esm o se os in divíduos de hoje não se acham m ais na­quele estado paradisíaco, haveria no entanto alm as abençoadas às quais D eu s co m u n i­casse, durante o sono, o verdadeiro con h ecim en to e a ciência. O u, ainda, o hom em , m esm o sem ser abençoado por D eus, poderia se recolocar, graças à Fé, n esses m o m en ­tos em que o Interior da N atu reza é m an ifesto im ed iatam en te e p or si m esm o, caso confiasse som ente em sua inspiração, ou seja, em sua fantasia, para exp rim ir p rofetica­m en te o Verdadeiro. Tom a-se tal estado de p len itude, do qual n enhum a outra fonte pode ser fornecida, com o a consum ação da capacidade científica. E se acrescenta que tal esta­do de ciência perfeita precedeu a h istória atual do m undo e que, desde a Q u ed a para fora d essa unidade, su b sistem vestíg io s daquele estado espiritual lum inoso, e lo n gín ­quas brum as nos m itos, na tradição, em outras pistas m ais. A cu ltura do gênero h um a­no apega-se à R eligião e dali é que todo con h ecim en to científico deve tom ar seu pon to de partida. Se para con h ecer a verdade bastasse sentar-se no tripé e proferir oráculos, o trabalho do pen sam en to nos seria certam ente p ou p ad o” (Enciclopédia das ciências filosófi­cas, § 246, Z ., IX, p .40 -1).

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Filosofia da N atureza é, portanto, em sua m aior parte, d iagnóstico de inadequação ao Conceito, e não inventário de seus prim eiros sobressaltos: ali, as significações especulativas só se desenham em brumas.

De certa maneira, a tarefa da filosofia é somente prestar atenção à ma­neira pela qual a própria Natureza suprime sua exterioridade, à maneira pela qual o exterior-a-si retorna ao centro da Idéia, ou, ainda, à maneira pela qual ela deixa surgir fora esse centro, libera o Conceito nela oculto do véu da exterioridade e, com isso, sobrepuja a necessidade exterior.65

N osso propósito não é justificar o conteúdo científico da Filosofia da N atureza (dar razão a Hegel contra N ew ton), mas som ente com preender o que é preciso entender nesse caso por científico, evitando confrontar Hegel a uma concepção do saber de que ele se afastava (ao m esm o tem po que reconhecia o seu valor, no interior de seus lim ites). A partir de então, no- tar-se-á que a Filosofia da Natureza, caso se perm aneça atento a seu proje­to, escapa a duas críticas que lhe foram com um ente dirigidas:

a) Ela seria som ente um a amostra desses supersaberes insanos com os quais os filósofos têm a audácia de envolver a ciência de seu tempo. Ora, o texto só tom a esse aspecto se entendido com o a interpretação fantástica do

objeto que os físicos dão a si mesmos. Mas é justam ente essa a objetividade desse objeto que está em jogo. Não que a matéria seja apenas um sonho e o físico m eça sombras: sim plesm ente a N atureza não tem o peso ôntico que lhe fora atribuído e, transform ada em m om ento do discurso, ela deve confes­sar sua nadidade. Hegel fala do peso com o “ confissão que a m atéria faz da nulidade de seu ser-fora-de-si (das Bekenntnis der Nichtigkeit)” .66 Romance sobre a física, talvez, mas não “romance de física” : pretender esclarecer o sentido de um pseudo-objeto não é pretender redobrar o saber positivo

desse objeto.b) O desdém para com a Natureza, dizem, seria o sinal de um brutal

parti pris “ idealista". E o que sustenta, por exem plo, o jovem Marx: “ Para o

65 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 381, Z, IX, p .28-9; trad. br., III, p .2 1 . A cada etapa, o benefício con siste portanto no d eclín io [Untergang] e na con fissão de nadidade da etapa p recedente (cf. a passagem do processo quím ico ao m un do orgânico, § 338, IX, p .448). D ecerto, pod e-se d izer que, na N atureza, o Espírito encontra seu reflexo (§ 246, Z ., IX, p .48), porém , no estu do da N atureza, a tarefa do C o n ceito é “ libertar-se n ela” (ibidem ). A N atu reza não é u m calm o espelho: ela só anuncia verdadeiram ente o E spírito ao se negar, e não ao antecipá-lo aqui ou ali.

66 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 262, IX, p .95.

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pensador abstrato, a Natureza, enquanto se distingue do pensam ento, da abstração, é um a essência deficiente em si mesma; ela tem algo fora de si, que lhe falta Essa crítica pressupõe com o óbvia a autonom ia do setor

“ N atureza” : a anulação da significação “N atureza”, enquanto designasse um ente, é com preendida com o a desvalorização arbitrária de um a N atureza que preservaria, nada obstante, o lugar (inconteste) de objeto. Ora, a N atu­reza, segundo Hegel, não é um a coisa menor, um fantasm a que a filosofia teria de substituir no Espírito. Im aginando assim a crítica da significação “ N atureza", deixa-se intacta “ a Natureza enquanto ela se distingue do pensa­

mento” , isto é, a divisão Espírito/Natureza, que justam ente a dialética tem por objetivo fazer explodir. Adem ais, tal interpretação equivale a tom ar por teoria do conhecimento, bastante próxim a de Berkeley ou da im agem que foi dela forjada, um questionam ento acerca da validade de uma ontologia. D e­certo, às vezes, os textos incitam a com eter esse contra-senso, mas é raro que então o autor não o previna. Assim , nesta página das Preuves [Provas] :

A Natureza está contida no Espírito, criada por ele e, a despeito da apa­rência de seu ser imediato, de sua realidade independente, ela só é posta em si, criada, ideal no Espírito ...

“A N atureza no Espírito?” A causa é posta em julgam ento: H egel é "idealista” . Mas logo a frase seguinte restabelece o que está em jogo:

Quando, no curso do conhecimento, passou-se da Natureza ao Espírito e a Natureza foi determinada como sendo apenas um momento do Espírito, o q u e su rg e en tã o n ã o é u m a v erd a d eira p lu r a lid a d e , u m a d u a lid a d e s u b s ta n c ia l de que um termo seria a Natureza e o outro termo o Espírito, mas a Idéia, que é a substância da Natureza, se aprofundou como Espírito; ela retém em si esse conteúdo, nessa intensidade infinita da idealidade, e se enriqueceu de­vido ao fato da determinação dessa própria idealidade que, em si e para si, é o Espírito.67

Não se trata de um encaixe de conteúdos, mas de um a crítica desses conteúdos com o tais.

67 Ph. Religion [F ilosofia da relig ião], X V I, p .4 12; trad, fr., Preuves, p.93.

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Considerar a N atureza com o um objeto dado é algo próprio do Espirito m urado em sua Finitude - o que é o inverso da atitude religiosa. Pois, por m ais deform adora que seja a crença, nela algo já contribui para rom per com todas as figuras da Representação. Prova disso é que nenhum a cons­ciência religiosa, por mais recuada no tem po que esteja, tom ou a N atureza com o um dado irredutível, a exem plo da consciência teórica.

O Espirito, com o Espirito finito, não se contenta em substitu ir as coisas

no espaço de sua interioridade por m eio de sua atividade representativa e em

despojá-las de sua exterioridade de m aneira que ela própria seja exterior; p o ­

rém, como consciencia religiosa, transgride a autonom ia aparente das coisas e

penetra até a potência una e infinita de D eus, que age no interior délas e as

reún e .68

N a Religião e por m eio déla, o Espirito de cada época se liberta, se­gundo sua medida, do prestigio da mundanidade; é por isso que, na últim a Religião, o Espirito, em sua integralidade, se torna enfim reconhecível. Por­tanto, seria perder com pletam ente o benefício da Revelação crista ver nela a encarnação de Deus no Finito ou a incom patibilidade de Deus e do Finito,

com o se Deus tivesse de contar com “o m undo” . Resta, entretanto, que a consciência religiosa ignora que vive o advento da consciéncia-de-si do Es­pirito, e que tal ignorância, no cristianism o, é tanto mais notável quanto mais curta é a distância entre o que vive o cristão e o que sabe o filósofo. Com o fazer a partilha entre o vivido religioso, que é o texto da filosofia (e, no caso do cristianism o, que é m esm o seu único texto seguram ente esta­belecido), e a interpretação religiosa, que serve de tela à filosofia? Ora, essa defasagem é inevitável: é de m aneira natural que a palavra crista se investe de uma im agem que em baralha o seu sentido. Seria possível m ultiplicar os exem plos disso. A ssim , a m orte de Deus é o “A m or m esm o” , a “ instância reconciliadora” , mas a imagem da morte, por aí induzida, oculta a significa­ção especulativa. "Essa morte, embora natural, é a m orte de D eus”,69 porém o cristão não suspeita da necessidade dessa reticência. Para ele, a m orte natural do Gólgota teve com o único efeito esquivar a presença sensível de

68 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 381, Z., X, p .25; trad, br., Ill, p .19.69 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .302.

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Jesus. Hegel admite sem dúvida que, no culto fenício, a m orte natural de Adónis marcava um progresso na dessubstancialização do divino. Mas o que é antecipação num culto bárbaro bem poderia ser atraso no m om ento do Espírito que, m esm o com palavras veladas, diz o m ovim ento do Espíri­to todo. A Representação cristã certam ente denuncia a lim itação do con­teúdo pela imagem; ela retifica a ilusão grega, que consistia em aproximar ao m áxim o form a sensível e significação, e suprim e “ a unidade da intuição, afasta a unicidade da im agem e de sua significação, extrai esta últim a para si m esm a” . Mas ela não renuncia à imagem. Todo o cristianism o sofre, portan­to, da ambigüidade que a Esthétique [Estética] assinala na arte cristã.

A corporeidade só pode exprimir a interioridade do Espírito enquanto estalhe permita aparecer; a alma, porém, não tem sua efetividade congruente nes­sa existência real, mas nela mesma.70

V isto ser preciso que o corpóreo esteja presente, o artista o nega ao m esm o tem po que o mostra, ele o põe em cena com o coisa crucificada, torturada, sofredora (os m ártires). De m aneira mais geral, a arte cristã só está em condições de representar o aspecto “polêm ico” , nadificador, do cris­tianism o - e a página que a Esthétique [Estética] consagra aos m ártires re­toca o ju ízo que o Esprit du christianisme [Espírito do cristianism o] proferia sobre o fanatism o da renúncia cristã. Hegel despreza o dolorism o cristão e sua obsessão pela m orte, porque ali ele revela o últim o fascínio exercido por um a natureza sensível, contra a qual nunca se term ina de lutar, porque o sofrim ento e a m orte estão “retidos na Representação” que lhes esquiva a “significação concreta” . Mas com o tal significação poderia encontrar uma apresentação adequada? Aparecer, sem ser adulterada? A Representação só pode, no m elhor dos casos, fazer que oscile entre dois falsos sentidos. Ou

então, idealizando os rostos, ela torna fútil o conteúdo do cristianism o (Madonas de Rafael: m om ento do jogo do A m or consigo m esm o), ou bem

ela m ostra a dilaceração com um a com placente selvageria; com o porém in­dicar que há também conciliação? Só em prestando um a insólita serenidade a santos que queim am em fogo lento: o que equivale a acusar a incom pati­bilidade do Espírito e da presença sensível. A Representação cristã é inca­paz de ir m ais longe, visto que ela é apenas Representação do Espírito.

Mas por que, afinal, ela perm anece com o tal?

70 A esthetik [E stética], XIII, p .138; trad. fr., II, p .258-9.

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Vejamos com o vive a Com unidade espiritual, tal com o é descrita ñas páginas da Philosophie de la religión [Filosofia da religião]. Renunciou, de um a vez por todas, à presença sensível do objeto de seu culto: “ toda m un- danidade se reuniu [zusammengegangen] ” no Cristo desaparecido.

O Amor é mediado pela desvalorização de toda particularidade. O amor do homem pela mulher, a amizade podem subsistir, mas sua determinação é essencialmente subordinada. Não são determinados como o Mal, mas como algo de incompleto, nem como indiferentes, mas tais que a eles não é possível se ater, tais que devem ser sacrificados e não causar nenhum prejuízo a essa unidade absoluta.71

Com tal subjetividade enfim desapegada da Weltlichkeit, a Com unida­de atingiu sua significação. Mas a significação ainda é apenas em-si, em ­brionária, e, em seu desenvolvim ento, relevam-se rastros da presença, in­com pletam ente reabsorvida, da Weltlichkeit. Exem plos: o m asoquism o da abstração monacal, confissão de não-reconciliação, a cisão entre Religião e vida laica (família, Estado) que atesta que o divino não envolve nem a vida privada nem a vida jurídica. Enfim, e sobretudo, m esm o que a consciência saiba que o objeto por ela visado não lhe é mais estranho, esse m esm o saber continua a desem penhar seu papel no plano da “presença im ediata” (iunmittelbare Gegenwart), se não da presença sensível. O prestígio do m un­do sobreviveu, portanto, à renúncia ao mundo: “o que está aí com o presen­te, com o o lado da im ediatez e da existência, é o m undo, que ainda espera a sua clarificação” .72 A Religião ainda preserva algo de sua forma arcaica, natural.73 Ora, conseguirá ela, com o Religião, se despojar disso? E a su­pressão dessa form a familiar não passará, aos olhos de todos, com o o ani­quilam ento puro e sim ples da Religião, e não pela realização de sua essên­cia? Em suma, vê-se mal em que a liquidação da falsa consciência que o cristianism o tom a de si m esm o poderia ser distinta de uma crítica que des- trói a Religião. A resposta de Hegel é a seguinte: o conteúdo religioso é

71 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .310 e' 314.72 Fenomenologia do espírito, p .601; trad. fr., II, p .290 ; trad. br., II, p .206.73 Q ue a Religião se ja um a figura da consciência, isso , aliás, é um a sobrevivência de sua

form a natural: “A Religião natural é a Religião som ente do ponto de v ista da consciên­cia; esse ponto de v ista e stá bem presente na Religião absoluta, m as com o m om ento transitório, ao p a sso que, na R eligião natural, D eus é representado com o Outro, por m eio de um a figuração natural: a Religião tem somente a form a da consciência” (Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .301).

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devolvido à sua pureza, um a vez que a crítica da Representação religiosa é radical e, por essa razão, não destruidora. Tentemos desenredar esse paradoxo.

A Religião é a verdade para todos os homens; a Fé repousa no testemunho do Espírito que, na qualidade de testemunha, é o Espírito no homem. Esse testemunho, em si substancial, capta-se inicialmente, na medida em que é le­vado a se explicitar, na formação que é a formação ordinária de sua consciência e de seu entendimento mundanos; é por isso que a verdade recai nas determina­ções e nas relações da Finitude em geral. Isso não impede que o Espírito preserve firmemente o seu conteúdo (que, como religioso, é essencialmente especulativo) contra essa mesma Finitude, no uso que ele faz das representações sensíveis e das categorias finitas do pensamento - [isso não impede] que ele cometa vio­lência para com estas últimas e seja inconseqüente com elas. Por meio dessa incon­sequência, ele corrige o que elas têm de deficiente.74

Feliz “ inconseqüência” , portanto, que perm itiu ao cristianism o resis­tir durante m uito tem po ao mal que o corroía desde a origem. Mas ainda assim "inconseqüência” que, no século XVIII, acabou sancionando a trans­formação da Fé em uma trivial sentim entalidade e a da teologia em uma neuere Theologie que trata o dogm a com o se fosse contos m orais e nega a possibilidade de conhecer a D eus.75 Trata-se, certam ente, de um a sanção da “feliz inconseqüência” secular. Hegel, sem dúvida, não deixa de prestar hom enagem à antiga teologia, quando a opõe à disciplina que, desde a Aufklärung, usurpa seu nome. Mas essa hom enagem nunca se dá sem re­servas, pois, afinal, as extravagâncias dos pseudoteólogos de hoje têm o m érito de ser mais “conseqüentes” com a linguagem m undana que a teo lo­gia sempre falou. H egel reconhece, por exem plo, a profundidade do con­ceito anselm iano de perfectio: “ essa antiga doutrina se atém a um a altura inteiram ente distinta da nova, visto que entende o concreto não com o rea­lidade empírica, mas com o Pensamento, e visto que não o m antém no im ­perfeito” . Essa perfectio, porém, ainda era apenas um “ abstratum de perfei­ção” ; tais conceitos tornavam possível a oposição do “ co n creto ” e do

74 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 573, X , p .459-60.75 “A teo logia nova trata m ais da Religião que de D eus: exige-se apen as que o hom em

tenha u m a religião, isso é o essencial, e se tom a com o indiferente que ele conheça ou não algo de D eus; ou, ainda, su stenta-se que e sse saber é algo de inteiram ente subjetivo e que não se sabe o que é D eus propriam ente d ito" (P h . Religion [F ilosofia da religião], XV, p. 114). Cf. Ibidem , XV, p.59-61.

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“som ente conceituai” , no que os m odernos têm o m érito de reconhecê-lo explicitam ente e o equívoco de não saber dissolver. O m al-entendido futu­ro estava, portanto, esboçado. De resto, a teologia sempre foi um saber irrefletido, prisioneiro de representações, desprovido de Wissenschaftlichkeit.76

Ela nunca deixou explicitar para si o que entendia por “D eus” . Ela retinha essa significação “na forma do pensam ento” (in der Form des Gedankens) 77

Para ela, o A bsoluto era só “ a essência captada no pensam ento e no concei­to” : a Idéia lógica, Deus com o Ele é em si. “Mas D eus, justam ente, consis­te em não ser som ente em si. Para Ele, é essencial ser para si, ser Espírito absoluto, o qual não é apenas a essência preservada no pensam ento, mas tam bém a essência que aparece, dando-se a objetividade . . . ” 78 Ora, os teó­logos, não mais que os filósofos, se preocuparam com esse desabrochar do sentido, sem o qual a palavra “ D eus" perm anece um a representação vazia, e por isso é que, afinal de contas, chega-se a duvidar da possibilidade de conhecer a

Deus. Bastava que a ciência das coisas finitas anexasse lentam ente o uni­verso do conhecim ento, até m onopolizar a palavra Erkenntnis; a Religião, tornada erkenntnislos, se rebaixava até o sentim ento, a edificação insossa; os teólogos se refugiavam cada vez mais na história dos dogmas, o que é mais côm odo para quem está consciente de não estar mais em condições de di­

zer a verdade (quando esta m udou de código), glosar os textos daqueles que, outrora, ousavam ingenuam ente proferi-la. A posição de D eus com o es­sência redobrada sobre o seu em si, em seguida a partilha da Fé e do Saber (a “reverência” polida de Descartes à teologia), por fim, o desterro da Reli­gião no Não-saber: tais foram, para o cristianism o de Igreja, os graus do declínio.

76 “ Enquanto a teo logia só oferece um a sim ples enum eração e exposição d as doutrinasreligiosas, ela ainda não é ciência. E la não adquire tam pouco o caráter de cientificidade pelo tratam ento sim plesm ente histórico de seu objeto, procedim ento adotado em n o s­so s d ias (rem etendo, por exem plo, ao que foi d ito por tal ou tal Padre da Igreja). [A cientificidade] só advém pela progressão rum o ao pen sam en to conceituai, o que é a tarefa da filosofia. A ssim , essencialm ente, a verdadeira teo logia é, ao m esm o tem po, filosofia da Religião; ela o era tam bém na Idade M édia” (Enciclopédia das ciências filo sófi­cas, § 36, Z., VIII, p .113; trad. br., I, p .100). E verdade porém que, naquela época, e ssa filosofia da Religião era som ente um esboço do pen sam ento especulativo: “A s idéias dos Padres da Igreja, que pen saram no interior da doutrina da Igreja, são m uito especulativas; m as o conteúdo não é justificado pelo pen sam ento com o tal. Ali, a filosofia se acha nointerior de um a doutrina fixada; não é o pensam ento que parte livrem ente de si m esm o. N o s escolásticos, o pen sam ento não se constrói a partir de si m esm o, ele se rem ete a p ressu p o siçõ es” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p. 125).

77 Ph. Religion [Filosofia da religião], XV, p .43.78 Ibidem . Cf. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 17, VI, p .37; trad. br., I, p. 58.

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Tal foi tam bém a curva ascendente das Luzes. Q ue é a “ consciência esclarecida”, com efeito, se não a forma que tom a a consciência religiosa insatisfeita, quando chega a se perguntar se a sua decepção não é m ais de­vida a um a vã esperança? Cansam de querer em vão se reconhecer num Ser obstinadam ente longínquo e preferem acusar o “assim cham ado Positivo” , sob pretexto de que “ a consciência de si não se encontra n ’Ele” .79 A cons­ciência de si tom a então o partido da ausência, de Deus. Doravante, na m es­m a recusa, ela confundirá a relação com o divino e a “servidão” que se lhe tornou intolerável. Essa consciência “ esclarecida” não pensa, portanto, em pôr em questão o privilégio da “Consciência” ; não suspeita de que a m anu­tenção da estrutura “Consciência” tenha por efeito deixar intacta a origem da “positividade” , nem de que, desta últim a, tenha rejeitado apenas a for­m a mais opressora, mas tam bém a m ais superficial. Com alarde, os Aufklärer

pretendem rom per nossos grilhões, mas essa revolta é outra m aneira de se acomodar à fratura que atravessou todo o cristianism o. Entre a servidão com a qual o cristianism o consentia e a “ liberdade subjetiva” e sem con­teúdo que o Aufklärer reivindica, há pelo m enos um pressuposto comum: o pressuposto de Deus como um além. Pouco im porta que em seguida proclam em esse além com o inacessível (m om ento do Ideal transcendental), ou que reservem seu acesso a um fervor cego (Jacobi): de ambos os lados, parti­lham a convicção de que Deus só pode estar presente - se é que deve estar - no m odo da im ediatez.80 Q ualquer que seja a veem ência com a qual a Aufklärung se aferra à Fé, a primeira é, portanto, sobretudo incapaz de to ­mar distância em relação à segunda. Com o poderia criticar seriamente aquilo de que ela é o produto?

O balanço dessa crítica fracassada não é, no entanto, inteiram ente ne­gativo. A Aufklärung pretendia aniquilar o conteúdo religioso. Mas, à sua revelia e “para nós” , fez algo m uito melhor: trouxe à luz a deficiência da form a religiosa. Isso equivale a dizer que, portanto, ela destruiu m enos a Religião, com o acreditava, do que "aquele Entendim ento farisaico pelo qual a ciência das coisas de um outro m undo estava calcada na ciência deste m undo” .81 Essa torm enta havia clareado o céu e tornara possível com preen-

79 Ueber Jacobis W erke [Sobre a obra de Jacobi], VI, p .315; cf. Fenomenologia do espírito, p .597- 8; trad, fr., II, p .287 ; trad, br., II, p .204.

80 Ibidem , VI, p .313-4 e 340-1.81 “ U m dos p re ssu p o sto s abso lu tos na cultura de n osso tem po é que o hom em nada sabe

da verdade. O entendim ento esclarecido não chegou tanto a tom ar conhecim ento e a exprim ir e sse resu ltado quanto foi a isso conduzido. C om o se viu, seu ponto de parti- -

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der que mal vencera o pensam ento teológico, após tê-lo minado para sem ­pre: esse pensam ento “plantara suas fínidades [Endlichkeiten gepflantz hatte] no terreno da própria doutrina divina” . Daí a vitória do Entendim ento finito, “conseqüente” , por sua vez, com a linguagem “m undana” . Porém, essa v i­tória fora tão com pleta que libertava o olhar para uma autópsia da tradição cristã. Permitia form ular nitidam ente a questão: por que o cristianism o des­m oronou sob os golpes do “pensam ento finito” quando este se oferecia de peito aberto? Q ue secreta cum plicidade o unia a seu inim igo para que este lhe restituísse tão facilm ente as armas? E nisso que a situação fora esclare­cida. A o reconhecerem , cada qual à sua maneira, a vitória da Aufklärung e ao proclam arem que Deus estava fora de alcance da Razão teórica, Jacobi e Kant “fizeram época” (eine bleibende Epoche) na história do pensamento: “C on­testarão dificilm ente que sua obra com um não foi tanto a de pôr fim ao conteúdo da antiga M etafísica, mas ao seu m odo de conhecim ento . . . ” .82 Portanto, nada disso será mais como antes. Visto que o “m odo de conheci­m ento” , que era óbvio em M etafísica, está erradicado, só é possível falar seriam ente de “D eus” - se é que ainda se faz questão de falar dele - , pondo inteiram ente em causa o m onopólio, até então despercebido, do “pensa­m ento finito” . A teologia ingênua morreu; a Fé cristã fez o percurso de sua curva. Mas esse declínio é m enos m elancólico do que parece às almas pie-

da foi a exigência de libertar o p en sam en to dos grilhões que lhe im punha o ou tro E n­ten dim ento, o que p lan tou suas finidades no solo da própria doutrin a d ivina e quis u ti­lizar a d ivina autoridade abso lu ta para fazer crescer essa erva daninha - a exigên cia de instaurar a liberdade obtida pela R eligião da verdade e d evolvê-la a seu país natal. Pri­m eiro, portanto, ele se p ropôs a atacar o erro e a superstição. E não foi tanto a Religião qu e ele con segu iu realm ente destru ir quanto aquele E n ten dim en to farisaico que opina sobre as coisas de outro m undo com a m esm a sabedoria que tratasse das coisas deste m un do e pen sa que pode d enom inar essa sabedoria doutrin a da Religião. Ele só quis afastar o erro para deixar o cam po livre à verdade; bu scou e reconheceu verdades eter­nas e co locou a dignidade do h om em no fato de que só este, e não o anim al, acede a tais verdades. N essa perspectiva, é preciso que tais verdades sejam firm es e objetivas, indo ao en con tro da opinião subjetiva e das p u lsões do sentim ento; é preciso, adem ais, que estas sejam essen cialm en te conform es à evidência da Razão, que estejam subm etidas a ela e sejam por ela guiadas. Todavia, o desenvolvim en to con seqüen te e ind ep en d en te do princípio do E ntendim ento o conduz a com preender toda determ inação, e, a partir de então, todo con teúd o som ente com o um a fm itude, de m aneira que ele aniquila a confor­m ação e a determ inação do divino. Inconscientem ente, essa form ação rebaixou a verda­de objetiva, qu e deveria ser o seu fim, e a reduziu a um a extrem a p equenez; é nesse estado que a filosofia kantiana a levou à con sciên cia e precisou então determ iná-la ex­pressam ente com o fim da R azão” [Hinrichs Religionsph. (Prefácio à filosofia da religião de H inrichs], XX, p .13-4).

32 Ueber Jacobis Werke [Sobre a obra de Jacobi], VI, p .340.

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dosas: significa sim plesm ente que chegou a hora de dissociar o conteúdo religioso dos preconceitos que, aos poucos, deviam conduzir a Religião a essa decaída, após ter sem pre entravado sua explicitação.83

Aliás, a dogm ática dos “novos teólogos” , ou o que resta dela, é tão desprovida de conteúdo que, naturalm ente, a filosofia retom a seu im pul­so. “A gora é a filosofia que, por excelência, é essencialm ente ortodoxa; as proposições que sem pre foram valorizadas, as verdades fundam entais do cristianism o, é ela que as salvaguarda e as m antém .” Basta portanto que a filosofia renuncie a se confinar na “ sabedoria-do-m undo” (Weltweisheit) e que assum a enfim sua vocação para conhecim ento do “não-m undano” , para que a repartição das tarefas entre filosofia e religião perca seu sentido. M as só estará em condições de cum prir essa revisão um pensam ento que trouxer à luz do dia os pressupostos filosóficos da Religião e que, apagan­do a im agem que, desde sempre, ela tivera de si m esm a, forjar de um só

golpe um conceito ainda inédito de filosofia. Se se entende por Religião

tanto a dogm ática quanto a teologia tradicionais, pode-se, portanto, le ­vantar a questão: em que vai consistir esse reexam e, agora tornado possí­vel, da Religião?

1) Inicialm ente, o reexam e do lugar ocupado pela teologia na econom ia das disciplinas filosóficas. Ela diz respeito a essa “m etafísica especial” que, desde Geulincx, se tornou metaphysica vera, ciência das unidades suprem as com as quais, necessariamente, toda ciência m antém relações. A codificação da ontologia por W olff é contem porânea dessa promoção: a própria palavra ontologia data da m esm a época.84 Ora, a ontologia, ciência do ens, já onerava com um a hipoteca as disciplinas que a aceitavam com o tronco com um (psi­cologia racional, cosm ologia, teologia): estas últim as herdavam , forçosa­m ente, a “ abstração” daquela. Pode-se decerto chamar Deus abstratam en­te de ens, observa Hegel: que se ganha com isso?

O m uro é, é u m a c o is a , u m a c o is a é u m u n iv e r sa l e, d e D e u s , e u se i ta n to

q u a n to i s s o . D a s o u t r a s c o is a s , n ó s c o n h e c e m o s m a is d o q u e is s o . E so m e n te

83 “C om o se com preendia o divino, o que é em si e para-si, d e ssa m aneira finita, com o se pensava o conteúdo absoluto de m aneira finita, aconteceu que as doutrinas fundam en­ta is do cristian ism o desapareceram , em grande parte, da dogm ática. Hoje, a filosofia não é a única a ser ortodoxa, m as é sobretudo ela que o é essencialm ente; é ela que conserva e preserva as proposições que sem pre foram dotadas de valor, as verdades fun­dam entais do cristian ism o” (P h . Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .207).

84 M. Gilson atribui su a paternidade ao cartesiano C lauberg (1647). Cf. Être etessence, p. 168,nota. ____

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quando fazemos abstração de todas as suas determinidades, é justamente quan­do nos contentamos em dizer do muro que ele é, que delas sabemos tanto quanto de Deus.85

Pobreza da ontologia. Fragilidade tam bém . Com o adm ite o próprio Wolff, essa ciência nova se perm itia retomar, por conta própria, os termos da escolástica, "pois eles são claros, em bora [os próprios escolásticos] os tenham definido mal; ainda que confusam ente apresentadas, essas noções gerais não deixavam de corresponder a objetos” .86 Essa noção m esm a de objeto, aqui invocada para dar segurança, não deve ela, ao contrário, desper­tar desconfiança? Assim , a ontologia pretensam ente “científica” de W olff se queria com o ontologia natural de que o autor deplorava a falta de clare­za, mas cuja legitim idade ele não punha em dúvida: “conjunto de noções confusas respondendo aos termos abstratos pelos quais nós exprim im os juízos gerais sobre o ser, e adquiridas pelo uso com um das faculdades do pensam ento” . “ Uso com um ” sobre o qual seria interessante interrogar-se.

Com o quer que seja, ontologia e teologia estavam ligadas. E assim per­maneceram em seu destino, a segunda desm oronando, ao passo que a pri­m eira estava reduzida “ ao título mais m odesto de uma Analítica transcen­dental” , prova suplem entar de que a M etafísica, com o cristianism o, atingia sua “fase final” 87 e de que a revolução copernicana era tam bém uma execu­ção testamentária. Pelo contrário, a Lógica de Hegel, porque tom a nota da prom essa de m orte da M etafísica, não se contenta em constatar a sua des­truição: de saída, na “ Lógica objetiva” , dissolve a ontologia bem com o as disciplinas da M etafísica especial.88 Nada atestava mais a pregnância das categorias do Entendim ento que o desterro de “D eus” em uma região lim i­tada do saber filosófico; em com pensação, nada marcará m elhor a ruína do edifício tradicional que a im possibilidade de restringir “D eus” a um setor do saber.

85 Ph. Religion [Filosofia da religião], XV, p .135-6.86 W olff, Ontologia, § 7, p .1 1 e 12 (Ed. École). Cf. G ilson, op. cit., p ,16 7 ss.87 “A n atureza do lógico e o ponto de v ista em que se co locou o con h ecim en to científico

recebem seu esclarecim en to prévio a partir da n atureza da M etafísica e da filosofia críti­ca, pela qual a M etafísica atingiu sua fase final. É com essa m eta que o con ceito dessas ciências, assim com o a relação que ele m antém com o lógico, deve ser exp osto com m ais porm enores. Em relação à h istória da filosofia, a M etafísica é, de resto, algo do passado; para si, é o que se tornou n esses ú ltim o s tem pos a sim ples visão tom ada pelo E n ten di­m en to sobre os objetos da R azão” (Enciclopédia das ciências filosóficas, $ 18, VI, p .38; trad. br., I, p .59.)

88 Logik [Lógica], IV, p .65.

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2) A isso não se lim ita o rem anejam ento do conteúdo religioso. O deslizam ento de sentido sofrido pelo teológico repercutirá na dogmática, e a libertação do conceito de teologia, em favor da viravolta das disciplinas fi­losóficas, encadeará necessariam ente um requestionam ento da separação:

teologia racional-Revelação. M elhor dizendo: separação entre a teologia e o discurso de andam ento m itológico acerca de D eus, a fim de m arcar o fato de que essa separação vem de antes do cristianism o. G oldschm idt89 obser­va que essa separação é esboçada em Platão, o qual entende, por θεολογία (República, 379 a), um a espécie de m itologia, e que ela já está elaborada em A ristóteles. A Métaphysique [Metafísica] lança os θεόλογοι para o lado daqui­lo que Próclus chamara de θεομυθία, e disso distingue a θεολογική, ciência que se refere a um a φύσις separada e im óvel, a mais nobre das ciências teoréticas a julgar “pelo conteúdo do conhecim ento que lhe é próprio [κατά το οίκείον επιστητόν] (Méta [Metafísica], K 1064 b). Enfim é Próclus que, ao que parece, em sua Théologie platonicienne [Teologia platônica], dá à palavra θεολογία seus títulos de nobreza: ciência distinta da φυσική θεωρία e referi­da ao divino, situada acima dos entes.90 A compartimentalização da θεολογική, em seguida tornada θεολογία, sua circunscrição a um territorium determ ina­do, cam inhava lado a lado com sua separação do discurso m itológico. Nada de espantoso, portanto, se a retom ada desse conteúdo m itológico (ou “p o­pular”) do divino acom panha o reexam e do divino com o objeto teórico loca­

lizado: se é contestável que Deus deva ser concebido com o um a φύσις sepa­rada, ou m esm o com o um além do ente, talvez seja igualm ente contestável que a Religião seja apenas um desvio imaginário para o uso das almas sim ­ples. O discurso religioso tornar-se-ia, ao contrário, um a fase indispensável do discurso divino, se nos fornecesse, com a com preensão da “m anifesta­ção de D eus", a fisiologia daquilo de que filósofos e cientistas só escreve­ram a anatom ia abstrata. E pouco importa, a partir de então, o andam ento antropom órfico desse relato, se nos perm ite com preender que o objeto teó­

89 A qui nos in sp iram os no artigo de V ictor G oldschm idt, publicado na Revue des Études

grecques, LXIII, 1950, p .2 0 ss ., o quai se encontra em su a obra Questions platoniciennes, p .l4 4 s s . (Vrin). Inspirar, aliás, é dizer pouco: e sse texto foi para nós essencial.

90 “C om efeito, assim com o o divino sobrepuja [έξήρηται] a natureza inteira, assim , penso, convém que tam bém o discurso teológico, por su a vez, perm aneça inteiram ente puro de toda consideração relativa à n atureza" (Próclus, Théologie platonicienne [Teologia p latôn i­ca], I, 4, p .11). “A classe dos deuses não é captável nem pela sensação nem pela opinião nem pela atividade da inteligência acom panhada da razão [οΰτε νοήσει μετά λόγου], pois e sse gênero de conhecim ento é relativo aos seres realm ente seres, ao p a sso que a pura existência dos d eu ses transpõe o dom ínio dos entes [εποχείται τοΐς ούσι] e se define

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rico da teologia racional era apenas a prim eira forma do que doravante será preciso entender por θεός. E no m esm o m ovim ento que o Deus dos filóso­fos deixa de ser um a região do ente ou um além do ente e que o homem- Deus da Revelação desvela toda a envergadura do divino. O alargam ento da teologia para além de seus lim ites convencionais e a reinterpretação da Re­ligião ingênua são duas operações com plementares: é preciso que “ D eus” já não seja mais posto com o um ser concorrente do “m undo” para que a Religião se torne um docum ento acerca do Espírito, isto é, acerca do m ovi­m ento que refuta essa categoria de “ ser” ou de “ ente” com o categoria da Finitude. Ela, sem dúvida, continua a ser um relato edificante, um saber m enor para o uso dos bons cidadãos não-filósofos, mas esse papel não é mais que acessório: agora sabemos que a Religião, em sua essência, descre­via o m ovim ento que animava a significação “ D eus”, um a vez que esta não está m ais retraída num a representação. São as palavras M anifestation,

Offenbarung, que dão o sinal, no novo léxico, dessa reconciliação da Fé e da antiga teologia doutrinal, de “ Deus para a representação” e de “Deus no elem ento abstrato do pensam ento, quando ele ainda não está afetado pelo ser-outro” .91 A o m esm o tem po que se apaga a fronteira que separava esses dois reinos (do Pai e do Filho), chega ao fim a cisão de duas linguagens arcaicas que diziam unilateralm ente o divino.

3) Mas trata-se ainda de m uito mais que de um a sim ples retificação de sentido do conceito de Religião, pois a reunificação da Teologia e da Fé cristã acarreta a “ coincidência no m esm o ponto” (in Eins zusammenfallen) da filosofia e da religião. Sob o aclaram ento especulativo, m ostra-se que teo­logia e fé designavam , juntas e de m aneira complementar, a filosofia. Para tom ar consciência disso, basta deixar de ouvir a palavra θεός na língua da Finitude: a reconciliação da doutrina teológica e da Revelação nos parece­rá, então, confundir-se com o desenvolvim ento da filosofia inteira. Hegel já o indica de m aneira lapidar, no início da Logik [Lógica], dando esta ú lti­ma com o “ a apresentação de Deus antes da criação do mundo e de todo es­pírito finito” . Essa comparação entre Lógica e Reino do Pai marca sobre­tudo um a reticência ou, ao m enos, um cuidado em situar com exatidão a Lógica na econom ia do Sistema; subentende que, tom ada nela m esm a, a Lógica ainda é som ente o em-si do discurso filosófico, o ensaio geral

pela un idade m esm a de todas as co isa s” (Ibidem , I, 3, p .6) (Budé, trad. fr. Saffrey e W esterin k).

91 Ph. Religion [Filosofia da relig ião], XVI, p .223.

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(no sentido teatral) daquilo que será o seu pleno desdobram ento. Repor­tem o-nos à Enzyklopädie [Enciclopédia] de H eidelberg, que explicita ante­cipadam ente essa metáfora.

Como a Lógica é a filosofia puramente especulativa, nela a Idéia é inicial­mente desenvolvida no Pensamento, no Absoluto ainda envolto em sua eter­nidade; assim, ela é a ciência subjetiva e, com isso, a primeira ciência; falta- lhe ainda o lado da completa objetividade da Idéia ... Na primeira universalidade de seus conceitos, ela aparece para si e como a obra subjetiva, particular, fora da qual toda a riqueza do mundo sensível e do mundo intelectual, mais con­creto, move sua essência ,..92

Tal é a Lógica, enquanto ela se assem elha a Deus “ antes da criação do m undo e de todo espírito finito” . Lendo essas linhas, quase já acreditam os ouvir os epígonos a denunciar a abstração e zom bar da pobreza desse palá­cio de idéias. Mas a seqüência do texto nos indica que é só na primeira leitura

que é perm itido, segundo Hegel, falar da abstração da Lógica:

Visto porém que essa riqueza é também conhecida na filosofia da parte real e que, ao retornar à Idéia pura, mostrou que ganha o seu primeiro funda­mento e a sua verdade, a universalidade lógica não se apresenta mais, a partir

daí, como uma particularidade justaposta a essa riqueza real, mas antes como contendo a esta última, como universalidade verdadeira: ela adquire então a sig­nificação de Teologia especulativa.

Por que a filosofia especulativa m erece então, e som ente então, o título de Teologia especulativa? Seria esse o título m ais honorífico que, ao cabo, lhe é conferido? Acreditam os antes que m erece esse nom e um a vez que enfim com preendeu o m ovim ento que a constitui - um a vez que o leitor de Hegel, quando lê todo o Sistem a e volta à Lógica, deixa de deplorar a abs­tração desta últim a - , im pressão de prim eira leitura. Sem dúvida, sem pre a Lógica perm anecerá “abstrata” , à m aneira pela qual nada é m ais “ abstrato” do que aquilo que os teólogos denom inam "D eus” . M as a especulação, como sabemos, tem por efeito vencer essas com partim entalizações, fazer com que voltem os a essas repartições. Enfim esclarecido, o leitor deve saber que a Lógica está para o Sistem a assim com o a pura teologia estava para a Reve­

92 Enzykl. [Enciclopédia das ciências filo sóficas], § 17, VI, p .37-8.

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lação: o program a em relação à execução. Tal leitor deve com preender que por “ D eus", agora, é preciso entender a necessidade de um processo desse tipo: abstração que é feita para se dissipar por si m esm a, árido com eço que é preciso viver com o tal antes de descobrir a plenitude que deve ser inicial­m ente evitada (no m ovim ento de nossa leitura ou no processo histórico) para deixá-la aparecer, em seguida, com o já estando aí. Quando a filosofia atinge essa com preensão do m ovim ento que a percorre, torna-se Teologia especulativa; im ita o que é “ D eus” ; ela é esse círculo enfim ininterrupto do qual os discursos teológicos abstratos e as orações - dem asiado concretas - das almas piedosas nunca haviam conseguido soldar as duas m etades. Teo­logia especulativa, porque se tornou evidente que o desenvolvim ento efe­

tua aquilo que o com eço se lim itara a dizer, e porque tal explicitação põe fim à abstração inicial. Pois a reabertura da distância entre o dizer e o efe­tuar é tão necessária quanto sua incessante supressão, o sentim ento de incom pletude inicial, tão necessário quanto o reconhecim ento final dessa abstração com o ilusão de prim eira leitura.

Deus não é nada mais que isso. Falem gravem ente dos atributos e das propriedades de D eus, ou, então, roguem hum ildem ente ao Bom Deus: vocês se lim itarão a tom ar lugar nessa circunferência. Pois Deus não é nada mais que isso. Se acompanharmos sua curva de sentido, em vez de captá-lo clara e distintam ente, ou reencontrá-lo em um desvio da vida sentimental, “ D eus” quer dizer que a progressão suprim e a pobreza do com eço justifi­cando que o com eço fora vivido assim. Ele quer dizer que todo com eço é seguram ente não verdadeiro, enquanto vivido com o com eço e não compreen­

dido com o m om ento, ainda que essa compreensão, para ser autêntica, deva dissipar essa prim eira im pressão inevitável. E preciso passar por essa fic­ção de um com eço fixo e datado; mas, afinal, isso é som ente um a ficção, e, decerto, é preciso acabar por reconhecê-lo. Ou seja: não só reconhecer que o com eço era algo de tão ingênuo que só resta rir, com o de sua juventude, mas que ele nada era em si mesmo e que o discurso não tem nem idade nem

vestígios atrás de si. Em H egel, não há preconceitos da infância, mas um pre­conceito da infância, a saber, que houvesse uma infância, que ela não fosse irreal e que dela, em um a manhã, tivéssem os de nos evadir “tom ando cui­dado com os degraus da escadaria” . A inda que essa verdade tivesse de de­sagradar às almas religiosas e incom odar sua vida espiritual, o com eço é, por natureza, ilusório, a infância não m erece que lhe prestem os atenção. Um a criança não “prom ete” nada, ela não é nada; tão nula quanto Deus Pai separado de sua M anifestação, tão ininteligível quanto a Lógica, quando não se teve a paciência de passar ao Sistema. Palavras insensatas? Tanto

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melhor, se, nisso m esm o, m ostram que se tenta dar a idéia de um discurso que não procede mais por encadeam ento ou amontoado de razões, mas por rem anejam entos - não mais por som a de elem entos a partir de uma base fixa, mas por diferenciação em m om entos. N ão m ais uma viagem com eta­pas datadas, mas um estofo que se dobra e desdobra. Aqui, o abstrato não tem mais independência. Não há abstrato não m anifesto e consistente senão o abstrato tido abstratamente por pré-manifesto, isto é, pensado e descrito com o se fosse bastante independente para ter sido um dia exterior e prévio à M anifestação. Ora, tal é o sentido da fusão do teológico e do religioso: não há abstrato im utável que fosse com pletado por um a parte concreta num

segundo tempo - não há um antes ao qual se sucederia um depois. O progresso não se efetua com o “por excesso” .93 O ponto de partida não é a fundação sobre a qual se construiria um edifício, m as a abstração suficientem ente insustentável para que logo sejam os desalojados, não o aliquid certum que inaugura a via régia das verdades, mas o ens abstractum votado à perdição. E essa a escansão da Offenbarung cristã: a Revelação não com pletava a teolo­gia doutrinal, m as a em pregava e, ao m esm o tempo, a refutava com o co­m eço dogm ático. Isso só é sabido pela filosofia, após haver-se traçado como círculo, sem início nem fim, incessantem ente percorrível e percorrido. Mas dizer que ela o sabe é dizer que “D eus” (a antiga representação designada por esse nome) era esse discurso circular e que ela m esm a é o divino devol­vido à sua pureza. E o que ratifica a expressão Teologia especulativa: a filoso­fia m erece esse título, enquanto pensa a hom ologia de seu m ovim ento como do divino. D eus (sem aspas: Deus, não a representação “D eus” ) e a espe­culação têm em com um o fato de não serem senão a não-verdade de seu O utro aparente: que isso seja reconhecido, e eles deixam de ser as abstracta

em que acreditávamos.

Seria possível levantar a questão: por que é preciso começar pelo não- verdadeiro e não, desde logo, com o verdadeiro? Ao que se responde que a verdade, precisamente como tal, deve fazer suas provas e que essa confirma­

93 "Pode-se, certam ente, dizer que sem pre se deve com eçar pelo A bsoluto , a ssim com o toda progressão não é senão a apresentação deste últim o, um a vez que o ente-em -si é o Conceito. M as, porque ele só é em si, pode-se igualm ente dizer que não é o A bsoluto, nem o C onceito posto , nem m esm o a Idéia, po is esta últim a, ju stam en te , con siste em que o ser-em -si é apenas um m om ento abstrato, unilateral. O progresso não é, portanto, um tipo de excesso; a ssim seria, se o que com eça já fosse, em verdade, o A bsolu to . A p rogres­são consiste , antes, em que o Universal determ ina a si m esm o, que ele é o Universal para si, ou seja, igualm ente Singular e Su je ito” (Logik [Lógica], V, p .334).

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ção, aqui, no interior do lógico, toma a forma seguinte: o Conceito se mostra como o que é mediado por si mesmo e consigo mesmo, e, com isso, ao mes­mo tempo, como o verdadeiro imediato. Sob uma forma mais concreta e mais real,

a relação aqui mencionada dos três graus da Idéia lógica se mostra na maneira pela qual Deus, que é a verdade, só é por nós conhecido nessa verdade que é a sua, ou seja, como Espírito absoluto, quando reconhecemos ao mesmo tempo que o mundo por Ele criado (Natureza e Espírito finito) é não verdadeiro em sua diferença em relação a Deus.94

5

Q ue d izer então de H egel e da R eligião? Será preciso ver n ele o recuperador da teologia? Era essa a opinião de Marx: se acreditássem os nele, o Sistem a não pretenderia com preender integralm ente o m undo se­não para ser animado pelo im perialism o da teologia de que ele tom ou o lugar. Mas por que é que se trata de um rodízio e não de um a pacífica heran­ça? Escreve Marx: “A história, essa N êm esis, determ ina hoje a teologia que

sempre fo i o lugar de putrefação da filosofia, apresentando em si a dissolução negativa da filosofia” . Ora, trata-se “ sem pre” , antes e depois de Hegel, da m esm a teologia? N ada m udou nas significações, a ponto de se poder acusá- lo de querer som ente salvaguardar a theologia perennis? Certam ente, sempre se trata do divino e H egel não é um ateu disfarçado, mas m esm o assim esse Deus m udou de estado civil, e Hegel tam pouco é o salvador puro e simples da teologia. Verem os nele então um teólogo herético? O u então, afinal, um laico que consente em talhar para a Religião uma bela parte, mas só uma parte? Rapidam ente se percebe que esse julgam ento ainda seria precipita­do, pois a filosofia é a Religião no sentido totalizante que Hegel agora confe­re ao vocábulo (teologia + Revelação). E verdade que a “ R eligião” no senti­do tradicional, tal com o foi e perm anece vivida e praticada nas cidades, era

a filosofia, assim como, durante todo um relato de Gaston Leroux, o policial era o assassino. E esse pretérito im perfeito indica que ela guarda a forma representativa com o traço diferencial e nunca consegue substituir a filoso­fia. Disso, porém, não vam os concluir que a filosofia decididam ente leve a melhor, com o se os termos do debate tradicional não houvessem sido sub­

94 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 83, Z., VIII, p .199-200; trad. br., I, p .169.

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vertidos.95 N ão há mais concorrência, mas explicitação, e é a Religião que se explicita em filosofia, m esm o que essa explicitação a torne irreconhecível e desconcerte o hom em da Representação com o poderia fazê-lo o retrato não figurativo de um ser “bem -conhecido” . A palavra “ R eligião”, sem dúvida, continua a designar um a form a representativa e Hegel não lhe im põe, como à palavra “conceito” ,96 um a significação inteiram ente nova em relação à sua significação aceite. Essa convenção, porém, não deve nos fazer esquecer que, por m eio da “R eligião” dos cultos e dos ritos, o conteúdo religioso chega à sua mais extrem a transparência. O erro é regular-se instintivam ente por essa forma representativa para julgar a natureza desse conteúdo, de modo que Hegel passe por deísta ou por ateu, conform e se encontrem ou não, 110 que ele chama Deus, os traços de um Deus religioso. Em outros termos, traduz-se em conceitos “bem conhecidos" uma língua que é a pulverização destes últim os.

“ D eísm o” , “ ateísm o” , com efeito, são velhas palavras, palavras que saí­ram de moda: disso, H egel tinha viva consciência. Q ue não seja julgado, portanto, com o se nada tivesse ocorrido na Alem anha desde Leibniz e Wolff, com o se a M etafísica não estivesse m orta de um a vez por todas. D iscipli­nas que se tornaram exercícios de escola, noções que caíram na insignifi­cância, eis o que Hegel tinha sob os olhos: reportem o-nos às primeiras li­nhas do primeiro Prefácio da Logik [Lógica]. Quem , de m aneira assumida, tom a a palavra em m eio a esses escom bros não pode ser julgado com o se ainda falasse a antiga linguagem . Caso contrário, desconhece-se a im ensa distância que separa um discurso integralm ente crítico e as antigas descri­

95 Isso é perceptível, por exem plo, na crítica que Hegel faz da idéia de separação entre o leigo e o religioso: “ Pode-se certam ente, portanto, dizer que a constitu ição do Estado perm anece de um lado e a religião de outro, m as então se fica exposto ao perigo de que tais princípios sejam m anchados pela unilateralidade. A ssim , atualm ente, vem os o m undo preenchido pelo princípio de liberdade, particularm ente no que concerne à constituição do Estado. Princípios corretos que são porém preconceitos, se afetados por form alism o, enquanto o conhecim ento não tiver ido até o últim o fundam ento; som ente ali é que há reconciliação com o substancial puro e sim p les" (Ph. Religión [F ilosofia da religião], XV, p .264).

96 “ Seria ainda possível levantar a questão : por que, se na Lógica especulativa o Conceito tem u m a significação tão diferente da que costum a vincular a e s sa expressão, continua­se a denom inar Conceito algo tão diferente, dando assim ocasião para m al-entendido e confusão. Ao que se teria de responder que, por m aior que fo sse a d istân cia entre o conceito da lóg ica form al e o da lógica especulativa, resu lta, num a consideração m ais precisa, que a significação m ais profunda de ‘C onceito ’ não é tão estran ha ao u so geral da língua corrente, com o poderia parecer à prim eira v ista" (Enciclopédia das ciências filo só ­

ficas, § 160, Z., VIII, p .354; trad. br., I, p .293 . Cf. tam bém § 9, VIII, p .53 ; trad. br., I, p .49 ).

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ções e análises (de Deus, do m undo etc .). D esconhece-se que, desde Kant, a textura do discurso dito filosófico foi modificada.

Hegel não se satisfaz com o sentido das palavras com as quais todos, ou quase todos, concordavam anteriorm ente para designar os “objetos” m etafísicos. N essas significações, decerto, ele não vê sim ples convenções pelas quais os hom ens, em seu desejo de se entender por meias-palavras, teriam acabado por esquecer o arbitrário. H egel não é Locke: não entende reduzir as essências às palavras nem contestar a solidez das essencialidades. Elas não têm senão demasiada solidez, ao contrário, tanto que usam delas om itin­do interrogar-se, não sobre o seu sentido (como diziam os empiristas), mas sobre a totalidade de seu sentido. A ilusão não consiste mais em compreender demais, com o até então se acreditava, mas em se proibir de com preender o suficiente. Assim , a ontologia se crê quites com os seus conceitos, quando os estab eleceu , recorren do freq ü en tem en te e tão bem quanto m al à

etim ologia,

que é bem isso o que se pensa por tal palavra [dasz man sich bei einem Worte

gerade diesz denke]. Com isso, trata-se, simplesmente, apenas da justeza da aná­lise em relação ao uso da língua e da completude empírica, não da verdade e da necessidade de tais determinações em e para si.97

Com o a validade dessas determ inações perm anece intacta, o usuário

ingênuo da linguagem filosófica está condenado a se m over

através das categorias desprovidas de toda crítica, de maneira inteiramente ingênua, absolutamente como se a crítica kantiana da Razão pura nunca tives­se existido, ela que ao menos [doch wenigstens] combateu essas formas.98

Voltem os ao debate: ateu ou teólogo? A filosofia hegeliana se esquiva forçosam ente a tal processo. Acreditam aferrar-se a um conjunto de teses e não com preendem que o Saber é a radioscopia (talvez contestável, mas

97 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 22, VI, p .39-40; trad. br., I, p .76. A ilu são que de preferência Hegel denuncia é a que provém do respeito pela letra. C hega-se a enxergar este ú ltim o com o caução suficiente de objetividade, sem suspeitar que, a contragosto, sem pre desliza sentido no exam e literal. D aí os sarcasm o s para com o s filó logos e o pouco caso que H egel faz da exegese escrupulosa. Cf. Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .46 e 230-1; XVI, p.204-7.

98 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .72; cf. XVI, p.466-7.

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em todo caso seria preciso tom ar consciência desse fato) das categorias de que eles próprios utilizam um bom núm ero. Hegel, no entanto, adver­te claramente:

A tarefa principal [cLie Hauptsache] consiste em conhecer e em buscar, an­teriormente e por muito tempo, a natureza dessas categorias; é preciso que esse conhecimento inicialmente lógico tenha ficado para longe, atrás de nós, quando tratamos cientificamente da Religião, e que há muito tempo se tenha dado término a essas categorias."

A questão “ ateu ou téologo?” indica que ainda não se percebeu a ne­cessidade da tarefa “ que é preciso ter cum prido” , antes de falar da Reli­gião. Pois esse em preendim ento a dissiparia. Decididam ente, é com o se, com Kant, nada houvesse acontecido. Não se vê que a m orte da M etafísica obriga à crítica integral das categorias. Vamos reler a frase do texto sobre Jacobi, que já citam os de m aneira incompleta:

Dificilmente se contestará que a obra comum de Kant e Jacobi não foi tanto pôr fim ao conteúdo da antiga Metafísica quanto a seu modo de conhe­cimento, e, com isso, terem tornado necessária uma perspectiva completamen­te modificada sobre a lógica.100

Ora, a Representação sempre será incapaz de compreender essa necessi­dade. De que iria ela suspeitar nessas categorias em que “não encontra m alí­cia” ? “Saber o que se diz” , escreve Hegel, “é bem mais difícil do que se crê” , ainda mais difícil, porém, é ter a idéia de uma investigação nesse sentido.

Tão difícil que, a ela, acabarão renunciando expressam ente. Triunfo do “pensam ento finito” , estim aria Hegel, quando a crítica dos conceitos, em vez de lhes devolver sua envergadura, visa som ente a detectar o que eles mascaram. A um Saber sistem ático que com preendia e situava as lingua­gens ingênuas, sucede um a crítica das pretensões de toda leitura “ sem ânti­ca” . Ingenuidade e falsa consciência, então, m udaram de campo. Nada mais anti-hegeliano, por exem plo, que a crítica nietzschiana das “interpretações” . Quando N ietzsche afirma: “Vim os ao m undo já em brenhados nessa rede [das interpretações], e dela, a própria ciência não nos libera . . . ” , a Repre­

99 Ibidem .100 Ueber Jacobis Werke [Sobre a obra de Jacob i], VI, p .340.

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sentação, no sentido hegeliano, se tornou a instância suprema. É em seu nom e que agora se faz justiça - é o m enor sentido, reivindicado como tal e tido com o inextirpável, que é a chave do mais elevado. E então se abando­na, como ultradogm ática, a idéia de que a “ Representação” possa jam ais se desabrochar em sua “verdade” . Porém, se a palavra é devolvida a Hegel, nada m enos dogm ático, no entanto, do que essa segurança, nada m enos louco do que essa espera. Por que falar de “dogm atism o” ? Entre a Repre­sentação e a filosofia detentora do Saber, não existe a distância do acusado ao juiz, da doxa à episteme: há apenas o desdobram ento da Representação, ou seja, o Saber m esm o ... “ Pensam ento de sobrevôo” , “form a extrem a da teologia” ? Tais acusações bem que poderiam ser igualm ente feitas como defesa em favor do “pensam ento finito” . E, a partir daí, por que acreditar na palavra das críticas “filológicas” e abordar, de saída, H egel com o um dogm ático? Seria possível, afinal, que esse pretenso dogm atism o fosse ape­nas a figura invertida do enraizam ento confesso na “ Representação” : dis­so, talvez seja um indício a não-pertinência dos julgam entos proferidos so­bre as relações de Hegel e da Religião.

E nesse espírito que vam os abordar o estudo da Representação ou da Finitude em sua form a propriam ente filosófica. A té aqui, apenas sobrevoa­m os o seu percurso por interm édio das formas culturais (arte, linguagem, religião). Vamos tentar agora ver como, sob o olhar de Hegel, elas se pro­pagam na história da filosofia.

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A EXPLOSÃO DA FINITUDE

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Em filosofia, entreve-se o que é o horizonte da Finitude por m eio da figura da “falsa hum ildade” cristã e do sortilégio de que é vítima, então, a consciência. Q ue se hum ilhe o quanto quiser, ela é im potente para despo- jar-se de si m esm a e sempre ressurge do nada em que pretende se abismar.

Tal é o ponto extrem o da subjetividade. Dá a aparência de renunciar ao

Finito, m as ela é o lugar em que a Finitude com o tal ainda se afirm a ... É

preciso, portanto, m ostrar que há um ponto de vista em que o Eu, em sua

singularidade, renuncia, de fato e efetivam ente, a si. Eu devo ser a subjetivida­

de particular suprim ida de fato .1

Ora, é difícil operar essa verdadeira renúncia no interior do cristianis­mo. Entre os filósofos clássicos, M alebranche é, sem dúvida, quem m elhor

1 Ph. Religion [Filosofia da relig ião], XV, p. 198-9.

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nos faz tom ar consciência dessa dificuldade. “ Em todas as outras religiões” , escreve ele, “ supõe-se que uma pura criatura possa, por iniciativa própria, ter acesso a D eus”, e, “comparada a D eus, a criatura conta até certo pon­to ” .2 Apenas o cristão consegue realizar sua aniquilação de outra maneira que não em palavras. Ele é o único a pronunciar sobre si “o m esm o juízo que Deus em ite sobre sua infinidade e sobre nosso nada” . O dogm a da Encarnação atesta, com efeito,

que não podem os ter acesso a D eus nem nos relacionar com Ele senão por

m eio de Jesus Cristo, seu único Filho. O culto dos cristãos pronuncia, portan­

to, que D eus é infinito e, diante d’Ele, a criatura é nada.

A ssim a vida religiosa ganha em profundidade. A prece, endereçada a Jesus Cristo, e a ele somente, deixa de ser interpelação de Deus com o a de um igual para simbolizar, doravante, a desproporção do Finito e do Infini­to, palavra na superfície de um silêncio que ela já não perm ite m ais esque­cer. Todavia a renúncia suprema, de que o culto de Jesus é o em blem a, não nos dispensa de com preender com o, no próprio Jesus, o Verbo se fez carne. Recusada ao homem, seria mais inteligível a síntese do Finito e do Infinito por ter-se realizado, em uma noite, em Belém? Se, graças ao Mediador, a infinidade do Verbo vem realçar a obra e torná-la digna de glorificar a Deus, a obra não deixa de m anter sua limitação, e o próprio Jesus foi só um h o ­mem, com “ capacidade de pensar” limitada.

D eus sabe que, com parado consigo, o Finito nada é e não conta em nada.

Julga, portanto, que não podem os ter relação nem nos ligar a Ele. Ora, D eus

não pode criar um m undo que com Ele não tivesse nenhum a relação.3

Mas essa relação dos opostos preserva seu enigm a e é um ser finito (Cristo vivo) que, em últim a instância, se torna o tabernáculo e a “figura do im utável” .4 Esse fracasso é exem plar da infelicidade da consciência cris­tã. Dividida entre a piedade cega e a tentação teológica, é sempre a esta últim a que cede; em virtude do próprio fato de falar d'Ele, sempre acaba

2 M alebranche, Conversations chrétiennes, VI, p .152-3.3 Sobre a sín tese do Infinito e do Finito em M alebranche, cf. G uéroult, Malebranche, III,

p .343ss.4 Cf. a apresentação crítica do dogm a da E ncarnação na Fenomenología do espirito, trad. fr., I,

p .178-9; trad. br., I, p .125-6.

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citando, perante ela, o D eus no qual gostaria de se aniquilar. Decerto, o sen­tim ento que experim enta de não contar em nada é sincero. O m undo da “ aparência” parece-lhe apenas um ponto de partida e é em outro lugar que ela sitúa o “fundam ento” , no “m undo eterno, com o aquilo que é indepen­dente em si e para si” . Mas assim que ela em preende rem ontar a tal “fun­dam ento”, renega essa convicção. D isso dá fé a própria form ulação da pro­va cosm ológica:

A satisfação, toda fundamentação, qualquer que seja ela, encontra-se si­tuada antes no mundo eterno como o que é independente em si e para si. P elo

co n tr á r io , na forma do silogismo, o ser dos dois [mundos] é expresso da mes­ma maneira: tanto na primeira proposição do raciocínio (se h á um m u n d o f in i to ,

en tã o h á um ser a b so lu ta m en te n ecessá rio) quanto na segunda, em que se exprime o pressuposto de que h á um mundo contingente, assim como na conclusão (h á portanto um Ser absolutamente necessário).5

Por um lado, “o ser do contingente tem um valor inteiram ente dife­rente do ser necessário em si e para si”; por outro lado, o ser é, entretanto, “o que há de com um aos dois lados, o que continua de um até o outro” . Pouco importa, portanto, que eu viva na certeza da separação, visto que m inha linguagem m e dá a garantia de que ela é transponível. É verdade que a “ antiga M etafísica” não tom ava consciência desse desm entido, o que, pelo em prego am bíguo da palavra ser, era infligido ao raciocínio que devia nos confirm ar na certeza da transcendência de Deus. Exem plo entre mil outros do perigo que há em raciocinar sobre as “coisas” , sem ter passado pelo crivo das significações “por si m esm as” . Assim , acomodavam -se com o fato de que Deus havia aparecido sucessivam ente com o o além absoluto, em seguida com o um term o que, ao m enos com o contingente, partilhava a categoria com um do “ Ser”, sob a insígnia da qual se alojavam, lado a lado, o Finito e o Infinito, tal com o no Sophiste [Sofista], o M ovim ento e o Re­pouso. Q uanto a estas duas postulações - Diferença m ínim a e Com unida­de m ínim a - , o m etafísico devia apenas cuidar para não fazê-las entrar em contradição ou não acentuar uma a expensas da outra. Tarefa freqüente­m ente custosa, pois, se as palavras "realidade” , “ ser” etc. convêm tanto a Deus quanto às criaturas, a postulação da diferença corre o risco de se anu­lar. Por isso, Arnauld, nas 4“ Objections [Quartas objeções] é tão atento ao

5 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .4 8 1; trad, fr., Preuves, p .146.

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criticar a tese “Deus é de algum a m aneira por si com o por uma causa” : “O que m e parece um pouco audacioso, e não verdadeiro ... Concluam os, por­tanto, que não podem os conceber que Deus seja por si positivam ente, se­não por causa da im perfeição de nosso espirito, que concebe Deus à m a­neira das coisas criadas” . M alebranche escreve:

A extensão é um a realidade, e, no infinito, todas as realidades ali se en­

contram . D eus é portanto extenso, tanto quanto os corpos, visto que D eus p o s­

sui todas as realidades absolutas ou todas as perfeições ...

Por essa via, a separação é reabsorvida e aum enta a som bra do espino- sismo. E, no entanto, não. Pois o autor se corrige logo em seguida:

... m as D eus não é extenso como os corpos, pois Ele não tem as lim itações e as

im perfeições de suas criaturas.6

E Descartes, aínda, a Morus:

Eu não tenho o costum e de disputar acerca das palavras; por isso, se qui­

serem que em certo sentido D eus seja extenso porque está por toda a parte,

adm ito-o; m as negó que em D eus, nos anjos, em nossa alma, enfim em toda

substância outra que não é corpo, haja um a verdadeira extensão e tal com o

todo o m undo a concebe.7

Basta, portanto, cham ar a atenção para o uso analógico ou até fran­cam ente hom oním ico que se faz das palavras, para restabelecer, com a distinção sem ântica, a das regiões ontológicas. Ou ainda, para acusar a clivagem , aplicar-se-á ao infinito a prosa do finito, de m aneira que sur­jam os paradoxos:

O s que agregam os elevados discursos da filosofia às sublim es contem ­

plações da teologia dizem , santa e divinam ente, que D eus está dentro do m undo

sem nele estar enclausurado, que ele está fora do m undo sem dele estar excluso,

que ele está por sobre o m undo sem estar m ais elevado ... 8

6 M alebranche, Entretiens M étaphysiques, VIII, § 7.7 C arta de D escartes a M orus, 5 /2 /1 6 4 9 (Éd. Lew is, p .113-5).8 Bérulle, Discours sur l ’E tat et les Grandeurs de Jésus, VI, § 6.

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Tantos artifícios para lembrar que, sob certa relação, Deus está próxim o de nós, que, sob outra relação, sua alteridade é absoluta, que, sob certa relação,

Ele e eu pertencem os ao Ser, que, sob outra relação, C riador e criatura retornam à sua incom ensurabilidade. A ssim é m antida a tensão entre a Diferença e a Não-diferença, graças a um velho procedim ento que Platão, no Parménide [Parmênides], atribuía à m ais grosseira heurística: que há de m aravilhoso em m ostrar que, por um lado, sou uno, e, por outro, m últi­plo?9 A consciência perceptiva da Phênoménologie [Fenom enología] excele nesse exercício:

Em cada momento singular, ela só está consciente de uma dessas determinabilidades como do verdadeiro, e em seguida ela está novamente cons­ciente do oposto ... O entendimento recalcitrante tenta resistir com os apoios do enquanto e da diversidade dos pontos de vista ...10

A verdadeira síntese consistiria em acabar com esse jogo dos “pontos de vista” e se perguntar se há verdadeiram ente pólos opostos, no lugar de desdobrar e em seguida redobrar entre eles uma distância retórica. Só en­tão seria possível pensar conjuntamente o Finito e o Infinito, com todo o di­reito, enfim, e sem precauções de estilo. Pensá-los conjuntam ente, não por

m eio de uma acrobacia ontológica, mas para liberar-se da linguagem fixadora da ontologia. Pensá-los conjuntam ente, não porque sempre estejam justa­postos nem fundidos um no outro, com o o pão, o vinho e os A póstolos que os consom em na bela unidade descrita por LEsprit du christianisme [O espí­rito do cristianism o].11 N o primeiro caso, tratar-se-ia de conciliar a união com a diferença subsistente, no segundo, de tornar a união subsistente a expensas da diferença: o que equivaleria a manter, aqui e ali, a oposição das categorias de “Identidade” e de “ Diferença” . O que tam bém equivale­rá, nos detratores da dialética, a julgá-la com o se deixasse ambos subsisti­rem (o Finito identificado ao Infinito, o Finito separado do Infinito), e nos dessem o direito de passar incessantem ente de um a outro desses inconci­liáveis, ou pô-los sim ultaneam ente (zugleich, e não zusammen): o dialético aceitaria de direito a separação e, de fato, a transgrediria. Ora, enquanto a

9 Cf. Platão, Parménide [Parm ênides], 129 a-e.

10 Fenomenología do espírito, trad, fr., I, p .107; trad, br.. I, p .94.11 Cf. Esprit du Christ. [O esp írito do cristian ism o e seu d estin o]; trad, fr., p .72; D ifferenz

[D iferença entre o s s istem as filo sóficos de Fichte e de Schelling], I, p .123-4; trad, fr., p .140.

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separação é sem mais escrúpulos posta com o subsistente, a Reflexão "faz a le i” e “tem o direito de só fazer valer uma unidade formal, visto que sua obra foi concedida e admitida, a cisão entre o Finito e o Infinito” .12 A ver­dade é que nós, então, ao falarmos do Finito e do Infinito, quer para cindi- los, quer para unificá-los, quer para m anter a ambos esses m ovim entos “ sim ultaneam ente” , não sabemos sequer o que é a “Identidade” e o que é a “D iferença” . É na direção dessa crítica das “puras essencialidades” que se orientava Platão:

Cada um é Uno, mas tam bém é M últiplo; ele tem m uitos m em bros, ór­

gãos, propriedades ... é U no e tam bém M últiplo. A ssim , sim ultaneam ente diz-

se de Sócrates que ele é Uno, igual a si m esm o, e tam bém o O utro, desigual

para consigo. A í se dá um a visão, um a expressão que se encontra na consciên­

cia com um . Ele é Uno, adm ite-se, mas, sob outra relação, é tam bém um M úl­

tiplo, e assim se deixam am bos os pensam entos caírem um fora do outro.

Ora, o pensam ento especulativo consiste em reunir [zu sa m m en b r in g e n ] os pen­

sam entos; reuni-los, é isso o que im porta. Essa reunião dos diferentes [Ser e

Não-ser, U no e M últiplo] [efetuada] de ta l m a n eira que s im p lesm e n te n ã o h aja

p a ssa g em de u m ao o u tro , eis o que há de mais profundo e de verdadeiram ente

grande na filosofia p latônica.13

D eixarem os portanto de fazer cintilar, de m odo alternado, as duas postulações exclusivas para deixá-las com o intermediárias. Im possível acei­tar que o Finito e o Infinito difiram e se sobreponham simultaneamente. A

dialética não perm itirá dizer os opostos simultaneamente. Se não, por que H egel diria que o zugleich é o defeito que afeta a Lógica da Essência, assim com o a “passagem ” afeta a do Ser? A dialética criticará os pressupostos desse zugleich.

2

Mas que rosto terá a verdadeira “ síntese” que cum prir essa tarefa? Não se corre um a vez mais o risco de jogar com as palavras, outorgando ao Finito

12 Differenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p. 127; trad. fr., p .142.

13 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .236-7.

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e ao Infinito um a com unidade um a vez mais artificial? E não seria m elhor seguir o conselho de Kant, preferir, a toda conciliação entre conceitos de­m asiado heterogêneos, a certeza definitiva da “diferença real” ?

D eve-se deplorar que a penetração desses hom ens ... tenha sido in feliz­

m ente em pregada para buscar identidade entre conceitos extrem am ente dife­

rentes ... M as era conform e ao espírito dialético de seu tem po, e agora isso

ainda seduz espíritos sutis, suprim ir nos princípios diferenças essenciais e ja ­

mais unificáveis, buscando transform á-las em querelas de palavras.14

Fixados em seu “ser” e em sua identidade consigo, então, Finito e In­finito nunca m anterão outra relação que não a de vizinhança, e o Ser infini­to - sempre de acordo com Kant - será pensado com o “ um indivíduo entre todas as coisas possíveis” , um a coisa “ entre todas as coisas” .15 O que é com prom eter-se bem pouco. Pois este denom inador comum: Ding, que vale ele? D e fato é preciso renunciar, sob pena de incoerência, a abrir cam inho do ser-do-finito ao ser-do-infinito: esses dois genitivos tornam seus sujeitos hom ônim os. “O ser do finito é unicam ente o seu próprio ser.” 16 Im possível doravante im aginar a ousia com o o estofo em que toda presença deva se recortar: fora da Primeira Analogia, a palavra “ substância" não é mais que conveniência. E Kant o notifica em um a linha, no final de um a nota da 3e

Critique [Terceira Crítica]: nenhum a propriedade dos seres m undanos “p o ­deria ser transferida para um ser que com eles não tivesse em com um ne­nhum conceito genérico, a não ser o de Coisa em geral” .17

D e resto, a m etafísica do Infinito esteve com freqüência prestes a re­conhecer essa dura verdade. Testem unha Descartes:

Para falar propriam ente, o nom e substância convém unicam ente a Deus.

Por isso, na Escola, têm razão quando dizem que o nom e substância não é

unívoco com respeito a D eus e às criaturas, ou seja, não há nenhuma significação

dessa palavra que concebam os distintam ente e convenha, no m esm o sentido, a

ele e a elas ...18

14 Kant, K P V [Crítica da razão prática], Ak, V, III, p .2; trad, fr., p .121.15 Kant, K R V [Crítica da razão pura], B, p .408-9.16 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .486 ; trad, fr., Preuves, p .152.17 Kant, K U [Crítica do ju ízo], § 90, V, p .464.18 D escartes, Príncipes [Princípios], I, 51.

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Confissão im portante, mas logo em seguida corrigida: "... porém, por­que, entre as coisas criadas, algumas são de tal natureza que não podem subsistir sem outras, nós as distinguim os daquelas que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, denom inando estas últim as substâncias A o preço de uma liberdade tom ada com as palavras, é concedido portanto o direito de pensar um a medida em com um entre os opostos. Estranha deci­são, que só visa a fazer ressurgir esse m ínim o de sim ilitude, sem o qual o princípio de causalidade não poderia se exercer do Finito ao Infinito. Por sua vez, Leibniz, para m elhor assentar a analogia, chega a ponto de apresen­tar a desproporção ontológica como diferença de grandeza: “Os espíritos criados só diferem de Deus do m enos ao mais, do finito ao infin ito” .19 Malebranche, por fim: “Concebem os o Ser infinito apenas por conceberm os o ser, sem pensar se ele é finito ou infinito” .20 Mas basta “pensar nisso” para que reapareça a disjunção; e basta que o Ser infinito deixe de ser colocado com o aquilo que engloba todos os conteúdos, para retomar o lugar de outro conteúdo isolado. E o que Hegel reconhece:

Se convierem que o ser do Finito é unicam ente seu próprio ser, ... com

isso está declarado que não há passagem possível do Finito ao Infinito.21

A í estam os nós, portanto, para sempre afundados, ao que parece, na “ diferença real”; para sempre im potentes, portanto, para flagrar Kant em erro. Em suma, nessa frase, Flegel designa com precisão o obstáculo que deverá ser superado por quem cumprir legitimamente a reconciliação do Finito e do Infinito. N a expressão “ O Finito é” há um sentido que torna tal conci­liação injustificável. Com o descobrir outro sentido que seja com patível com o projeto teológico? Em todo caso, pela leitura das palavras “ O Finito é” , agora está suspensa a validade do projeto da teologia racional. N ão seu destino, decerto: este já está decidido.

Em que consiste exatam ente o obstáculo? Para localizá-lo melhor, é preciso voltar às noções im precisas (res, substantia, m s...) de que se servia o pensam ento clássico, para preservar uma medida em com um (segundo Kant, puram ente verbal) entre ambos os dom ínios. Aceitem os que o “Ser" seja um a categoria com um ao Finito e ao Infinito. Logo encontrarem os, obser­

19 Leibniz, A Arnauld, Ger., II, p .125.20 M alebranche, Recherche de la Vérité, III, II, 6.21 P h. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .486.

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va Hegel, um a contradição, e a tese na qual se pode resum ir o argumento cosm ológico será tida por um absurdo.

A expressão mais precisa da proposição Se o Finito é, o Infinito também é,

inicialmente, é a seguinte: o ser do Finito não é somente o seu ser, mas tam­bém o ser do Infinito ... O ser contingente é ao mesmo tempo o ser de um outro que é o ser absolutamente necessário. Esse ao mesmo tempo aparece como contraditório.

Ora, a contradição provém deste subentendido: “o ser do Finito é uni­cam ente o seu próprio ser” .

Se o Finito fosse esse afirmativo, a maior se transformaria na proposição: o ser finito é, como finito, infinito, pois sua finitude subsistente encerraria em si o Infinito.22

Em suma, se eu m e obstinar em sustentar a validade da prova, a um só tem po adm itindo que o ser do Finito é unicam ente o seu próprio ser, m e­reço ser levado tão a sério quanto D ionisodoro anunciando a Sócrates que seu próprio pai era tam bém pai de todos os viventes, visto que não se pode ser sim ultaneam ente pai e não-pai. N a realidade, é preciso escolher uma ou outra destas duas proposições:

1) o Ser é com um ao Finito e ao Infinito;2) o Finito possui um ser próprio.N unca será possível assum ir um a dessas teses após ter sustentado a

outra. E isso que, no entanto, a M etafísica efetuava sub-repticiam ente. Após ter sustentado a segunda tese (ser próprio do Finito), isto é, a independên­cia do Finito e do Infinito, ela form ulava a questão de sua unificação. Per­guntava - sob um a forma disfarçada, é verdade: com o o ser finito, como finito, é infinito? Ora, H egel sobretudo não nos diz que a dialética é a única capaz de responder, enfim, a essas questões; ao contrário, ele as form ula de m aneira que m ostre, enfim, o quanto elas eram aberrantes. A dialética não realiza procedim entos forçados; ela traz à luz do dia os sofism as latentes. E vale a pena reler um dos textos em que Hegel, contra sua lenda, tom a o partido do bom senso e da inteligibilidade comum.

22 Ibidem , p .456-58 e 484; trad. fr., Preuves, p .213-5 e 149.

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A resposta à questão - Como o Infinito se torna Finito? - é, portanto, a se­

guinte: não há um Infinito que seja inicialm ente Infinito e, em seguida, obri­

gado a se tornar Finito, sair de si para ir até a Finitude, m as, para si m esm o,

ele já é tanto finito quanto infinito. V isto que a questão adm ite que o Infinito

é para si, de um lado, e o Finito, que se destacou ao separar-se dele (ou qual­

quer que seja a sua proveniência), dele cindido, é verdadeiram ente real, seria

m elhor dizer que essa separação é inconcebível [unbegreiflich]. N em tal Infini­

to nem tal Finito têm verdade; ora, o não-verdadeiro é inconcebível. ... A o

adm itir a independência desse Infinito e do Finito, tal questão coloca um con­

teúdo não verdadeiro e já inclui um a relação não verdadeira com este últim o.

Por isso, não se há de responder a isso, mas, antes, negar as falsas pressuposi­

ções que ela contém , ou seja, negar a própria questão.23

Por que a “ antiga M etafísica” nunca foi acuada a escolher entre as duas teses: ser-próprio do Finito ou com unidade do Ser? E que, em prim eiro lugar, ela evitava conferir integralm ente ao “finito” seu sentido popular de “perecível” , de “evanescente” . Ela nunca visava ao ser-finito com o tal, mas o ser-do-finito. Entenda-se: o ser que - além disso - pertence a um a reali­dade limitada, mas, antes de tudo, pertence a uma realidade, por mais baixo que seja seu grau. Se a palavra “Finito” tem um sentido, ele designa algo de afirmativo. Adem ais, o absurdo que Hegel põe em relevo na formulação da prova cosm ológica não aflorava entre os clássicos: ao pôr a identidade no “ ser” dos dois termos absolutam ente diferentes, não tinham consciên­cia de querer traçar o círculo quadrado, pois não consideravam o Infinito- sendo e o Finito -sendo exclusivos. A os teólogos das 2“ Objections [Segundas objeções], os que rogam a Descartes para que refute o argum ento dos ateus, segundo o qual “o que é infinito em todo gênero de perfeição exclui toda e qualquer outra coisa que seja” , Descartes se contenta em replicar: “Pelo nom e de infinito, não se tem o costum e de entender o que exclui a existên­cia das coisas finitas” .24 Que incom patibilidade poderia haver, com efeito, entre ambos os entes como tais? Pouco antes, nas 2 e$ Réponses [Segundas respostas], Descartes critica a hipótese de um ser corpóreo mui-perfeito. Bas­ta, diz ele, voltar ao sentido da palavra “corpo” : não im plica ele a divisibili­dade, portanto, a imperfeição? De m odo que, se entendem “que este corpo é um ser no qual se encontram todas as perfeições, dizem coisas que se contra-

23 Logik [Lógica], IV, p .179-80.24 D escartes, Secondes Réponses [Segundas re sp o sta s] .

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riam” . Mas, em com pensação, em que a coexistência do Infinito-sendo e do Finito-sendo envolveria contradição? Em que sua entidade seria incom pa­tível com o sentido de um ou de outro? De m odo algum é preciso voltar ao sentido da palavra “ ente” , para se perguntar se ele é com patível com o sen­tido dado à palavra “ Finito” , tal com o se perguntava ser possível falar de um corpo mui-perfeito. Eis, para Hegel, a raiz do sofisma: é óbvio que o Finito é

um ente, a tal ponto que não se tom a o cuidado de saber se o próprio senti­do da palavra se acomoda, afinal, a esse estatuto de “ente” . Por isso, se o Infinito em Descartes exclui toda restrição e toda lim itação, nem por isso exclui o restrito ou o limitado. Q ue o “Finito" seja restrito, “retardado” ape­nas pela franja de nada que é necessária para distingui-lo de seu Criador, isso não im pede que ele se ofereça, antes de tudo, com o um ens inteira­m ente à parte, id quod habens esse. Não há nenhum a dificuldade nisso.

E nesse ponto que H egel ataca: vocês dizem que o Finito se escoa e passa, mas som ente dizem e fazem desse não-ser um atributo “im perecível [unvergänglich] e absoluto” ; sua linguagem e sua m elancolia não estão, por­tanto, de acordo com sua ontologia.

Q ue o Finito seja absoluto, nenhum a filosofia, nenhum a concepção e ne­

nhum Entendim ento quererão que se lhe atribua esse ponto de vista; é antes o

contrário que está expressam ente presente na afirm ação do Finito; o Finito é o

lim itado, o que passa; o Finito não é senão o Finito e não o im perecível; é o que

se encontra im ediatam ente em sua determ inação e em sua expressão. Mas, na

concepção que disso se faz, im porta saber se se persiste no ser da Finitude, se o

caráter transitório perm anece subsistente ou se esse caráter transitório, essa

evanescência não se escoa [das Vergehen vergeht]. Ora, que isso não advenha, eis

o fato que, nessa concepção do Finito, faz da evanescência a últim a palavra do

Finito. É a afirm ação expressa que o Finito é incom patível com o Infinito e a

este não é unificável, que o Finito é pura e sim plesm ente oposto ao Infinito.25

N ão se ousa, portanto, dar ao “Finito” sua significação, no entanto reconhecida até o ponto em que sua qualidade de “ ente” seria posta em questão. Eis por que, na prova cosm ológica, o “Finito, enquanto perm ane­ce Finito, é Infinito” . Quando Hegel denuncia tal absurdo, bem se vê por­tanto que ele não entende defender a identidade-consigo do Finito. Pode­ria parecer, no entanto, que ele estivesse fazendo eco a Leibniz, quando

25 Logik [Lógica], IV, p .148-9.

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este denunciava com o absurdo que “ Deus pudesse dar a um a pedra, en­

quanto ela permanece pedra, a vida e a razão, isto é, o que dela faria coisa distinta de uma pedra” . A qui e ali, não é o m esm o protesto contra urna m etam orfose julgada com o fantasista, a m esm a recusa de elevar ao positi­vo o negativo com o tal? Os pontos de vista, no entanto, são sim etricam en­te opostos. O que Leibniz quer dizer? Que, à passividade nua (materia pri­

ma) ninguém poderia outorgar a atividade; ao negativo com o tal, os poderes do positivo. E justam ente essa dissociação radical entre negativo e positivo que interrom pe todo embaraço: visto que o negativo é inteiram ente tom a­do com o nulo, é impossível pensar todo e qualquer ser de outra maneira que não

sob o signo do positivo, inclusive os seres que estão m aculados pela lim ita­ção. Enquanto a m atéria for considerada só m atéria inerte, prossegue Leibniz, ela perm anece passiva; enquanto a pedra perm anece pedra, é im ­possível adjungir-lhe um a forma. Mas esse “ enquanto" é, certam ente, uma forma abstrata de falar: dado que a distensão do Ser e do Nada é absoluta e “o Nada não é” , o ser-negado só se dá no solo do Ser. Imaginem Nada tão de perto quanto quiserem , sem pre irão situá-lo aquém desse limite; sempre será substância entre substâncias, dotado de um m ínim o de perfeição, “ a perfeição não sendo outra coisa senão a grandeza da realidade positiva to ­m ada de m odo preciso, pondo à parte os lim ites ou as restrições nas coisas que isso têm ” .26 A filosofia dogmática, diz Hegel, “ desviou-se” do negati­vo, ela não soube “ encará-lo” : é que a estratégia do dogm atism o consistia, precisam ente, em evitar esse enfrentamento. V isto que o Infinito é o posi­tivo por excelência e exclui o negativo, ele inclui portanto todo ente como tal;

sem dúvida, as criaturas que dele participam nada lhe acrescentam , mas sobretudo nada lhe retiram. Sempre recolhido aquém de sua restrição ou de seu lim ite, o lim itado é desprovido de “ inquietude”, neste m undo em que o próprio pecador goza de um estado de estranha inocência (“O peca­dor não faz nada, pois o pecado não é nada” ). Eis por que o Finito perm a­nece um conteúdo afirm ativo e por que, com tão natural desenvoltura, a M etafísica esquiva a dificuldade que Hegel traz à luz do dia. Com o poderia ela conceber o Finito com o não-ser em seu coração, essencialm ente-m or- tal, essencialm ente-perecível? Recusar ao “Finito” a entidade seria reco­nhecer um a presença em um não-ente e, com isso, apagar a partilha do Ser e do Nada.

26 Leibniz, M onadologie [M on adologia], § 41. Cf. G uéroult, D ynam ique et M étaphysique, p .l6 4 s s .

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A representação é mais verdadeira, mais concreta que o Entendimento abstrativo que, ao ouvir falar de um negativo, com isso constitui muito facil­mente o Nada, o simples Nada, o Nada como tal, e renuncia ao vínculo no qual [o Nada] é posto com a existência, quando esta é determinada como con­tingente, fenoménica etc. [Ora,] para captar o contingente, o pensamento não deve deixar esses dois momentos caírem um fora do outro, em um Ser para si e em um Nada para si.27

A expressão “essencialm ente-perecível” , portanto, não faz sentido para o dogm ático, visto que ela instaura um vínculo de essência que transgredi­ria a oposição absoluta do Ser e do Não-ser. Se o Entendim ento dogm ático “renuncia” a prestar contas do Finito com o tal, chegando a fazer vacilar a significação “ Finito” , é então por fidelidade ao adágio: “O Ser é, o Nada não é” .

Com o o enunciado da prova cosm ológica pode se tom ar absurdo? - perguntávam os. A gora é possível responder: porque se dá à palavra “ Finito” seu sentido correto, conservando ao m esm o tem po um a ontologia defei­tuosa. A linguagem nunca está errada, e Hegel escolhe perm anecer fiel à significação mais ingênua da palavra “ Finito” , com o risco de infringir o interdito de Parmênides: “Jamais farás os não-entes serem ” . E, a partir de

então, a separação do Ser e do Nada, se nos obstinarm os a m antê-la, vai criar um a dificuldade. A os clássicos1 - com o se acaba de ver - ela perm itia aclimatar o criado no Ser: tão pouco quanto quase nada, a mais humilde criatura ainda se espalha por essa superfície. Ora, tal separação proíbe ago­ra a reunificação do Finito e do Infinito. Se eu m e propuser a dar ao Finito

sua exata verdade de luz e trevas mescladas, e continuar alojando tal ente am bíguo na região do “Ser” e lhe concedendo obstinadam ente um “ ser- próprio”, devo então me resignar à irredutível equivocidade da palavra “Ser” . A o levar a sério o Finito com o (patvó^evov e ao dizer: “O Finito ê ” (O Finito

27 Ph. Religioti [F ilosofia da religião], XVI, p .497; trad. fr., Preuves, p .165. "R esu lta im ediata­m ente d esta proposição [‘o Finito é ’], que ela é falsa, po is o Finito, segundo sua defini­ção e su a natureza, está destinado a passar, a não ser, de m aneira que não se pode pensá- lo ou representá-lo em su a determ inação do não-ser que pertence à ‘passagem ’. Avançou-se o bastan te para dizer: o Finito p assa . Se, entre o Finito e su a passagem , insere-se o A gora a fim de que, por e sse m eio, o ser se detenha (o Finito p assa , m as, agora, ele é), ocorre que e sse A gora é tal, que não som ente ele passa, m as que ele próprio p assou quando é agora, v isto que ele já não é, m as é um Outro, quando tenho consciência do A gora e o exprim o” (Ibidem, XVI, p .494 ; trad. fr., Preuves, p. 160).

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entendido em sua precariedade), de um só golpe, devo confessar que este “ ser” aqui não é senão hom ônim o daquele “ ser” dali. A prova cosm ológica torna-se um sofisma, o Infinito se encerra, a causa da teologia parece per­dida. Entre o Finito e o Infinito, diz Hegel, escavou-se então “ um fosso” .28

Pelo m enos os eleatas souberam evitar esse abismo. N o que se m os­traram m ais “conseqüentes” que os filósofos e teólogos que, em seguida, acreditaram poder aproximar, pacificamente, Finito e Infinito. Haviam com ­preendido o que seu princípio exigia: que se renunciasse a dar todo e qual­quer estatuto às significações “M últiplo” , “Finito", “M udança” , que m e­lhor seria silenciar acerca do limitado para não correr o risco de dar à limitação

ainda que fosse um a mera aparência de consistência.

O s eleatas distinguiram -se de n osso habitual pensam ento reflexionante

ao procederem especulativam ente. O especulativo, no caso, consistiu em m os­

trar que a m udança não é e, a partir do m om ento em que se pressupõe o Ser, a

m udança é em si contradição, algo de inconcebível. Pois a determ inação da

pluralidade, do negativo, está afastada da do Ser, do Uno. Enquanto acolhe­

m os em nossa representação a realidade do m undo finito, os eleatas foram

mais conseqüentes, visto que chegaram a sustentar que som ente o U no é, e o

negativo não é , . .29

28 Ibidem , XVI, p .485 ; trad. fr., Preuves, p .151.29 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .323-4. “A proposição universal da esco la '

eleática é, portanto , a seguinte: 'O Verdadeiro é som ente o U no - qualquer outro é não verdadeiro a ss im com o a filo sofia kantiana tem este resu ltado: ‘ só conhecem os fe­nôm en os'. N o conjunto, é o m esm o princípio: ‘o conteúdo da consciência é som ente fenôm eno; ele não é nada de verdadeiro ’ . M as há tam bém u m a diferença. Z enão e os eleatas deram à su a proposição a segu inte significação: ‘ O fa to de que o m undo sensível se ja nele m esm o o m undo fenom énico com a infinita m ultiplicidade de su a s figuras, e sse aspecto , nele m esm o, não tem nenhum a verdade’. Kant não é d e ssa opinião. Ele afirm a: ‘quando tem os de nos haver com o m undo, o pen sam en to se dirige ao m undo exterior (para o pen sam ento , o m undo dado interiorm ente é tam bém exterior); qu an ­do tem os de n os haver com ele, n ós o tornam os fenôm eno. É a ativ idade de n o sso pen sam en to que reveste o exterior com tantas determ inações: o sensível, as determ i­nações da reflexão etc. Só o n o sso pen sam en to é fenôm eno; o m undo é em si, ab so lu ­tam ente verdadeiro. E som ente n o ssa aplicação, n o sso com portam ento que o arruina para nós. O que a ele acrescentam os não vale nada. C om isso , o m undo só se torna um não-verdadeiro, no qual pro jetam os u m a m a ssa de d eterm in ações’ . Tal é a grande d ife­rença. Tam bém em Z enão esse conteúdo é nulo; em Kant, porém , ele é nulo porque é a obra de n o ssa aldravice. Em Kant, é o esp iritual que arru ina o m undo; para Zenão, o m undo é o que aparece em e para si, não-verdadeiro. Para Kant, é n o sso pen sam ento , n o ssa atividade espiritual que é m á - im en sa hum ildade do E spírito, que se recusa a ater-se ao conhecer. N a Bíblia, C risto diz: ‘não so is m elhores que as aves do céu ? ’ . Sim , nós o som os, com o seres pen san tes - com o seres sensíveis, tão bons ou tão ruins quanto

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Logo, basta partir da tese do Ser e perm anecer “conseqüente” para que a mudança, a Vergänglichkeit, se torne impensável. Em com pensação, basta pôr o Finito em sua precariedade para que o Ser im utável se torne, por sua vez, inconcebível. Assim , a m etafísica do Ser e a m etafísica da Finitude (e a essa altura se com preende por que Kant permanece, aos olhos de Hegel, um “m etafísico” e um “ dogm ático”) pagam, cada uma de seu lado, o preço de seu rigor. Exigência ontológica rigorosam ente respeitada ou exigência se­m ântica rigorosam ente respeitada, qual delas escolher? Se se recusar a co ­m eter o sofism a incluso na prova cosm ológica, é preciso voltar a Parmênides ou é preciso redobrar-se no Finito? U m a escolha assim formulada, porém, é ingênua.

Não se reunificam os opostos, a não ser de maneira aparente e sofística, conservando-os em sua diferença: é daí que se tinha partido. Q uer isso dizer que devem os nos ater a tal diferença e desesperar de toda reunificação? É isso que estam os admitindo im plicitam ente. E por isso levantamos a ques­tão: dos dois opostos, qual deles escolher? Qual deles abolir ou neutrali­zar? M ais do que nunca, portanto, afirmamos a persistência dos opostos - que toda m etafísica do Entendim ento tom a com o ponto de partida. Sem dúvida, o eleatism o - tal com o o senso com um o interpreta, e não Hegel - nega o M últiplo. Porém, uma vez que - sempre para escândalo do senso com um - chega a denegar-lhe um a presença, confessa que identifica ente e presente: o M últiplo não é ente; logo, é um a ilusão. É nesse m esm o horizon­

as aves do céu. O sentido da dialética de Zenão tem um a objetividade m aior que e ssa d ialética m oderna" (Ibidem, XVII, p .342-3). N otem os que esse texto levanta a questão seguinte: se os eleatas procederam de m aneira “ m ais especulativa” que Kant, a curva da filosofia não é a de um declínio? Q ue se torna então e ssa certeza hegeliana da abstração do com eço? O elogio de H eráclito, com o verem os, faz nascer a m esm a su speita . N ão nos esqueçam os de que, se os gregos vivem na idade da pré-subjetividade ou da subjetiv ida­de incoativa (é e sse “ anacron ism o” de Hegel que se acentua habitualm ente), tal ignorân­cia é tam bém u m a sorte. J á su je ito s ao pensamento fin ito (constituição do l’õv privilégio da oiiaía), ao menos e les evitavam o preconceito do conhecimento. Entrevê-se, n esse ponto, um a das razões pelas quais Schelling e H egel se endereçam aos gregos, lêem Platão e sobretu­do A ristóteles - com o que Kant pouco se preocupava. A situação é a seguinte: Kant e Jacobi m ataram a idéia de um conhecimento do A bsoluto , m as sem saber o que faziam ; o prim eiro conclui pela im possib ilidade do Saber absoluto, o segundo, confundindo da m esm a m aneira conhecim ento e Saber, se refugia no “ Saber im ediato” . N enhum deles p en sa em retom ar e criticar a idéia de conhecimento, nenhum deles p ressen te que o “conhe­cim ento” é o nom e da deform ação im posta ao Saber pela ideologia da Finitude. D aí a tentação de tom ar com o referência a idade pré-cognitiva do pen sam ento finito. Se os gregos estavam m ais afastados da consum ação do Saber (ausência da Subjetividade), e sta­vam igualm en te a m il léguas de su a deform ação su b jetiva (ausência da Subjetividade

fin itiza d a ). E, freqüentem ente, isto im porta m ais que aquilo.

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te que os m etafísicos da Finitude, inversamente, só concederão estância ao presente sensível. Com o todas as escolhas doutrinais, a escolha solene que estava sendo preparada nos teria sim plesm ente dispensado, portanto, de nossa ontologia de referência: acreditam engajar sua vida porque sentem aversão em m ostrar suas cartas. D igam os de passagem: já seria absurdo, só por essa razão, escolher-se com o hegeliano, isto é, tomar partido pelo discurso em que se denuncia justam ente a futilidade de todas as tom adas de parti­do. Toda liberdade aos sectários de pregar a escolha “ m aterialista” ou a opção “ cristã” , ou a revelação do “ Ser” : esses descuidados ignoram que assim só fazem mascarar o campo ontológico, no interior do qual tagare­lam; pré-hegelianos, por excelência, nem sequer tom aram consciência de só ter a falar, em filosofia, das regras de linguagem que lhes perm ite falar. Voltem os à escolha brutal que seria proposta entre Infinidade e Finitude. O que nela havia de pouco sério provinha de que se partia de dois termos “ ente” , com o risco de em seguida rasurar um deles - com o que estavam pressupostos dois entes separados desde o início. Ora, se a dialética não se propõe de m aneira alguma, com o se viu, a realizar o am álgam a de dois entes diferentes (o Infinito com o tal e o Finito com o tal), é porque ela critica a noção de diferença-desde-o-inicio e, com isso, a noção de entidade.

Pretender, sem mais, conciliar opostos é sem pre equívoco, não porque são opostos, mas porque a própria tentativa de conciliação subentende que se tom ou (muito apressadam ente talvez) essa oposição por seu valor apa­rente. O jovem Hegel, em O espírito do cristianismo, é um bom exem plo dis­so. Reprova os cristãos por recusarem toda presença ao divino, ou quase toda, por receio de idolatria, e por desesperarem em conciliar Finito e Infi­nito: “O que intui, o representante, é o que lim ita e só recebe o limitado; ora, o objeto deveria ser um infinito; o infinito não pode ser aceite nesse continente” .30 A oposição dos dois termos está tão ancorada na consciência cristã que esta sempre exprim e a exigência de conciliação em um a lingua­gem que já proíbe sua consumação. Em suma, o cristianism o, m enos con­seqüente que o judaísm o, faz votos de obter um a síntese que seus princí­pios tornam im possível: “ [Os judeus] que adm item a diferença dada das substâncias, mas negam sua unidade, são m ais conseqüentes” .31 Esses tex­tos parecem prefigurar outros, Provas da existência de Deus, e a interpretação de D ilthey contribui até para sugerir que, em suma, o cristianism o teria

30 Esprit Christ. [O espírito do cristian ism o e seu destino], trad, fr., p .76.31 Nõhl, Esprit Christ. [O espírito do cristian ism o e seu destino], trad, fr., p .88.

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fracassado no limiar da síntese dialética, como se o cristão tim orato (dos textos de Frankfurt) não tivesse ousado realizar a proeza que o dialético (da maturidade) realizará em um bater de asas. Parece-nos que não é nada disso. O que o jovem Hegel reprova ao cristianism o é o fato de não ter conciliado os diferentes, tê-los pensado até o fim com o irredutíveis e não ter entrevisto que, no “A m o r” ou na “ Vida” , braseiros m ísticos, Limitação e Ilimitação se consum am . Recusa portanto (dogmaticam ente) a perenida­de da diferença, mas nunca põe em questão - e é o que nos interessa aqui - a diferença - dada desde o início. E a afirmação doutrinal da separação, isto é, da diferença obstinada que H egel rejeita nessa época, porém, de m aneira al­gum a a evidência de um a diferença pressuposta. E tal negligência, para falar anacrónicam ente, é com preensível. Bem que se pode, em nom e de uma ideologia “ totalizadora”, indignar-se com o m asoquism o cristão e irritar-se contra a diferença professada. Para interrogar-se sobre a validade da dife­rença pressuposta, é necessário um passo a mais: deixem os de tom ar por evidente que os dois opostos são dois entes que, no mínim o, partilham essa obediência. Ora, o jovem Hegel não se encontra aí. São dois entes que ele pretende juntar no ponto de “indiferença” com o qual ele sonha (e é por isso que as “ conciliações” esboçadas então anunciam m enos o trabalho do n egativo que a n ostalgia da inocência). A fascinação exercida pelo ser do Finito sobre a consciência cristã lhe parece, sem dúvida, insuportável; mas o im portante é que ele não recusa o peso que desde o início o cristão lhe concede. Trata-se tão-só de destruir ou de sublim ar esse Finito, que foi pressuposto com o ente. Ora, trata-se agora de algo inteiram ente outro: ela­borar uma significação do verbo “ ser”, tal que a expressão “o Finito é” dei­xe de armar-se com o cortina entre Deus e nós. E, para esse fim, é preciso revogar a autoridade ontológica parmenidiana.

3

A vontade de não obliterar o sentido p reciso da palavra “ F in ito ” (“ instabilidade” , “precariedade”) criou a dificuldade. A o dizer que “o Finito é”, experim ento a partir daí o sentim ento de fazer o ajuste entre dois in­com patíveis, o Finito e o ente·, é im possível que eu com preenda o m ovente com o im utável, o não-idêntico em si com o idéntico-consigo. O pensam en­to dogm ático, ao escamotear “ a preem inência do lado negativo” no “Finito” , conseguia mascarar essa dificuldade e não é de espantar que o Finito tives­se um lugar de m odo tão natural na esfera do Ser. Esqueciam -se do que ele

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significava precisam ente, aceitavam a distância entre o sentido da palavra e o estatuto ontológico do conteúdo. O s m etafísicos reconheciam , é claro, que o Finito não é o Infinito; opunham o ser do contingente ao ser do ne­cessário. Mas, por m enos que se retom e sua convicção declarada na lingua­gem em que a notificam, percebe-se que o peso do Finito-ente sem pre so ­brepuja seu m enor valor. “O Finito é” , dizem , e o uso desse verbo não cria nenhum embaraço. Ele é, repousando sobre si, idêntico a si, em virtude do fato de que ele é. Assim , o preconceito da Finitude está no lugar, bem antes do desenvolvim ento das filosofias da Finitude (.Aufklärung, kantism o). A estas bastará tornar problem ático o ser-do-Infinito para que o ser-do-Finito, nunca revogado, perm aneça com o o único inconteste: a M etafísica prepa­rara, portanto, o terreno. D isso H egel vê o sinal na interpretação do espi- nosism o com o panteísm o. Q uem se indigna com o fato de Espinosa ter identificado Deus com as coisas finitas e o acusa de ter “ divinizado o Finito em seu ser im ediato” confessa, à sua revelia, que a solidez das “coisas finitas” é um artigo de fé. D enunciariam tão fortem ente a im piedade, se, com Espinosa, ousassem conceber o caráter im aginário do Finito? Mas a “pre­sunção” da realidade do Finito é tão forte que nem sequer ousaram com ­preender que Espinosa se expusera a tal blasfêmia.

Q uando se representa o pensam ento de Espinosa com o se confundisse

D eus, a natureza e o m undo finito, presum e-se com isso que o m undo finito é

verdadeiram ente real, que ele tem um a realidade positiva ... Q uem assim ca­

lunia Espinosa, não é a D eus que entende conservar, m as o Finito, o m undo

... M uitos teólogos, desta feita, são ateus: se denom inam D eus o Ser supre­

mo, todo-poderoso, não querem conhecer a D eus e acolhem o Finito com o

verdadeiro.32

32 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XIX, p .372-3. “ O s que utilizam esse produto que lhes é próprio [a identidade vazia] p ara acusar a filo sofia consideram a relação de D eus com o m undo retendo som ente um m om ento - um único - d e ssa categoria da relação, a saber, o m om ento da indeterm inidade, da identidade. Perm anecem n essa concepção im ­perfeita e assegu ram - falsam ente, de fato - que a filosofia afirm a a identidade de D eus e do m undo; e, com o ao m esm o tem po am bas as co isas, o m undo tanto quanto D eus, têm um a firm e substancialidade, d isso concluem que, na Idéia filosófica, Deus é com ­posto por D eus e pelo m undo; tal é a representação que têm do pan teísm o e que im pu­tam à filo sofia" (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 573, X, p .471-2; trad. br., III, p .353). Cf. Ibidem , § 50, VIII, p .147-8; trad. br., p .l2 5 s s . Portanto, é ao pressu p o sto da “firme substan cialidade” do m undo que se deve a falsa acusação de panteísmo dirigida contra E sp in osa. Isso significa que, ao abolir o Finito, E sp in osa estaria m ais próxim o do divino hegeliano que os cristãos, se u s adversários que m antêm a fixidez do Finito? Inocentan­

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Inevitável hipocrisia do “pensam ento finito” : que se contente em con­ceder o ser às coisas ou que do fenôm eno faça nossa única morada, ele sem ­pre presta hom enagem ao que m ina em segredo ou à luz do dia aniquila.

Tal hum ildade é antes orgulho, pois de m im excluo o Verdadeiro, m as de

m aneira que só eu, no aquém , sou o afirm ativo e o ente em si e para si, em

relação ao qual todo O utro desaparece. A ntes, a verdadeira hum ildade renuncia

a si, a Este-aqui com o afirm ativo, e, com o afirmativo, reconhece apenas o Ver­

dadeiro e o ente em si e para si. Essa falsa hum ildade, pelo contrário, m esm o ao

reconhecer o Finito com o o negativo, com o o lim itado, dele faz ao m esm o tem ­

do E sp in o sa d a reprim enda de panteísm o, H egel estaria já fazendo a su a própria defesa? E o que sugerem os com entadores de obediência cristã que, cu ste o que custar, enten­dem reencontrar o “m on ism o” ou o “p an teísm o" no coração do S istem a hegeliano. Ora, Hegel não confere ao D eus esp inosano nenhum a prim azia sobre o D eus cristão. Bem pelo contrário: “D eus, é verdade, é a N ecessidade ou, com o se pode dizer tam bém , a C o isa abso lu ta; ao m esm o tem po, porém , Ele é a P essoa absoluta. E sp in osa não chega até e sse ponto e é preciso conceder que, a e sse respeito, a filosofia e sp in osan a perm ane­ceu bem atrás do verdadeiro conceito de D eus que form a o conteúdo da consciência religiosa cristã. E sp inosa, por su a origem , era um judeu; em sua filosofia, o que encon­trou um a expressão conform e ao pensam ento, é a intuição oriental segundo a qual todo Finito aparece com o efêm ero, com o evanescente. E ssa intuição oriental da unidade su b s­tancial form a decerto a base de todo verdadeiro desenvolvim ento ulterior, m as não se pode perm anecer aí” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 151, Z., VIII, p .339 ; trad. br., I, p .280 ). C oncedendo-se isso , é intolerável ouvir que o D eus esp in osan o não é o verda­deiro, que E sp in osa fo sse um ateu disfarçado. O D eus da Ética, único detentor da enti­dade [étantité], é m enos verdadeiro que o D eus dos cristãos (a d istinguir do D eus cristão) que partilha a entidade com o m undo? Frívola questão. C om o todas as querelas no cam ­p o da Finitude, e s sa é vazia de sentido. O que está em jo go é a representação que se deve fazer de D eus. M as D eus não é objeto de representação: é um a significação concre­ta. N o sso texto prossegu e: “Se voltarm os a considerar a denúncia de ateísm o feita con­tra E spinosa, deve-se rejeitar com o infundada: não som ente e ssa filosofia não nega a D eus, m as ela o reconhece, ao contrário, com o o único ente verdadeiro. E igualm ente im possível afirm ar que E sp in osa fale bem de D eus com o o unicam ente Verdadeiro, m as que e sse D eus esp in osan o não é o verdadeiro e que, a partir de então, ele não é D eus. D ever-se-ia então, com o m esm o direito, inculpar de ateísm o todas as ou tras filosofias que, com seu m odo de filosofar, perm aneceram em um grau subordinado da Idéia, não som ente os ju d eu s com o tam bém os m aom etanos, porque, para eles, D eus é sim p les­m ente o Senhor, m as, igualm ente, todos os num erosos cristãos que consideram a D eus com o a E ssên cia do além , suprem o e incognoscível. Q ue se considere m elhor: a acu sa­ção de ateísm o feita ao esp in osism o se reduz ao fato de que ele não faz ju stiça ao princí­p io da D iferença da Finitude; e assim , com o n esse sistem a não há nenhum mundo p ro ­priam ente dito, no sentido de um ente positivo, não devia ser designado com o ateísm o, m as antes, inversam ente, com o acosmismo. C om isso , está igualm ente claro que é preci­so evitar a denúncia de panteísm o" (Ibidem, trad. br., I, p .2 8 1 ). Em resum o, ninguém foi ateu no país da Finitude; cada um tentou dizer o divino à su a m aneira, não conceituai. A lém disso, se nos colocarm os nesse terreno, o “panteísm o” de E sp in osa é, de fato, um erro.

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po o único afirmativo, o Infinito e o A bsoluto: Eu, Este-aqui, sou o único essen­

cial. Eu, este Finito, sou o Infinito.33

A teim osia em “ deixar valer” o Finito term ina nessa hybris. Mas é no adágio eleático que ela nasceu. A partir do m om ento em que O Ser é, e ele unicam ente, devem -se nele envolver todos os possíveis conteúdos de pen­samento. Essa certeza, é verdade, é fonte de embaraço, contanto que se encontrem , entre tais conteúdos, opostos absolutos: Finito e Infinito, M o ­vim ento e Repouso. E a questão se põe: com o o Ser poderia identificar-se com contrários?

R epouso e M ovim ento não são, para você, absolutam ente contrários um

ao outro? ... E, no entanto, você afirm a que são, am bos de m aneira sem elhan­

te, e tanto um quanto outro.34

A ssim com eça a discussão do Sofista. Mas a solução então proposta pelo Estrangeiro a Teeteto só se im põe necessariam ente com base em cer­tos pressupostos. E, ao não tom ar cuidado com isso, Teeteto talvez tenha- se deixado convencer depressa demais. Eis aí, sem dúvida, um dos aspec­tos da origem da Finitude.

Qual era a solução de Platão? Por um lado, h á M ovim ento, há Repou­so: tais conteúdos dão-se com o ousiai. Mas, por outro lado, é certo que como significações determ inadas (a M ovência, a Im obilidade), eles são distintos da significação “Ser” . Por isso, se pode dizer do M ovim ento que ele é, ou, do Repouso, que ele é, sem com isso subentender sequer que o Ser não coinci­da com tais conteúdos: ele não é o que cada um é . E o duplo em prego do verbo “ ser", ao qual se está assim obrigado, já im põe a distinção entre: a) o

ser com o cópula, signo da predicação; b) o Ser com o gênero único, conteú­do original de que os gêneros devem participar para que possam ser ditos entes. Ora, basta aceitar essa distinção do ser -predicação e do ser -gênero, para que toda am bigüidade seja dissipada no coração do discurso. Dirão que o Ser (como gênero) não é (sentido da predicação) o que são os O utros (como gêneros): “Tantas quantas forem as vezes em que os outros são, tantas as vezes em que o Ser não é, pois, ao não ser aqueles, ele próprio é uno” .35

33 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .199-200.34 Platão, Sophiste [So fista], 250 a.35 Ibidem , 257 a.

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M ais geralmente, poder-se-á afirmar que todo conteúdo é da alçada do Ser, sem no entanto fazer que seja engolido nisso que é o Ser. De m aneira que:

A l - Todo conteúdo com o tal (inclusive o “O utro” , o “D evir” etc.) será posto com o ente, possuidor de uma physis estável: o Ser é um horizonte uni­

versal.

O n ã o - s e r é, c e r ta m e n te , p o s s u id o r [e x o n ] d e s u a p r ó p r ia n a tu re z a , a s s im

c o m o o g ra n d e e ra g ra n d e e o b e lo e r a b e lo , o n ã o -g r a n d e e o n ã o - b e lo e ra

n ã o -b e lo , e, ig u a lm e n te , o N ã o - s e r e ra e é N ã o - se r , esp écie una n o n ú m e r o d o s

e n te s m ú lt ip lo s .36

A 2 - N o interior de si m esm o, o Ser preserva, todavia, sua significação própria; esta não se confunde com a dos conteúdos de que, aliás, ele é o indício. Denom inados onta, enquanto participam do Ser, esses conteúdos não deixam de se dar por aquilo que são: o Ser é uma significação original, dis­tinta e distante de todas as outras.

N ós nos perm itim os lembrar esse texto fam oso apenas para m ostrar o quanto parece supérflua, e m esm o anacrônica, a dificuldade levantada por Hegel. Basta passar de A l a A 2 para compreender:

A l - ... que o Finito pode ser dito ente sob o m esm o título que o Infi­nito ou que todo outro gênero (primeira vantagem);

A 2 - ... que o Finito, entretanto, não se confunde com o Ser e a fortiori

ele não se deixará absorver pelo Infinito, em bora este participe igualm ente do Ser (segunda vantagem ).

Assim , o “õv” pode ser posto em relação com os opostos sem se tor­nar, nesse m ovim ento, aquilo que cada um deles é. Os conteúdos, devido ao fato de que com unicam entre si, podem ser, de direito, ditos distintos do que aquilo que eles são, a um só tem po preservando tanto sua indepen­dência quanto sua com um qualidade de entes: seria derrisório não ousar dizer que "o hom em é bom ” , mas só que “o bom é bom ”, e “o hom em é hom em ” . E nessa alternância de identidade e de diferença que por séculos o discurso encontra seu lugar e o juízo predicativo, a razão de seu privilé­gio. N isso Hegel verá, por sua vez, o sinal do caráter insustentável do Juízo.

O J u íz o c o n s is te n is to : só p o r e le u m p r e d ic a d o s e l ig a a u m su je ito , de

m a n e ir a q u e , c a s o e s s a l ig a ç ã o n ã o t iv e s s e lu gar , s u je i to e p r e d ic a d o p e r m a n e ­

36 Ibidem , 258 b-c.

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ceriam, cada um por si, o que são; aquele um objeto existente, este um a re­

presentação em m inha cabeça. Mas o predicado, que é assinalado ao sujeito,

tam bém deve lhe convir, isto é, deve ser em si e para si idêntico a ele ... O que

já está aí no Juízo é, em parte, a independência e tam bém a determ inidade do

sujeito e do predicado, um em relação ao outro, e, em parte, todavia, sua rela­

ção abstrata. O sujeito é o predicado, ele é inicialm ente o que o Juízo enuncia;

porém , com o o predicado não deve ser aquilo que o sujeito é, há um a contra­

dição que deve se dissolver, passar a um resultado.37

Depois disso, surpreenderem o-nos com o julgam ento elogioso e sem reservas que Hegel, na Geschichte der Philosophie [História da filosofia], pro­fere sobre o Sophiste [Sofista]. Pela prim eira vez, diz ele, era reconhecido que o O utro é m esm o e o M esm o é outro, sob o mesmo ponto de vista.

Platão exprim e-se assim. O que é o O utro é o negativo em geral; ora, este

é o M esm o, o idêntico a si; o O utro é o não-idêntico; esse M esm o é igualm en­

te o O utro, seguramente sob um único e mesmo ponto de vista. N ão são lados dife­

rentes que perm aneceriam em contradição, m as são essa unidade sob o mesmo

ponto de vista.38

N esse caso, H egel parece ter sido mais sensível ao que anunciava a própria linguagem de Platão do que ao objetivo do diálogo.39 Pois, longe de

37 Logik [Lógica], V, p .69 e 74.38 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .236.39 D ois m otivos entrecruzam -se no ju ízo proferido por Hegel sobre Platão. J ) É um dos

au to re s m a is in co m p ree n d id o s, e H egel d en u n c ia a s in te rp re taç õ es co rren te s do p laton ism o com o contra-sensos. A ssim , no que concerne às Idéias: a) a s Idéias não são tipos de co isas, m odelos alo jados em um entendim ento extram undano; b) é fa lso que as Idéias se desvelariam à intuição intelectual de um en tusiasta ou de um gênio feliz. "E sse não é o sentido de Platão nem da verdade. A s Idéias não estão im ediatam ente na consciên­cia, m as no conhecim ento. N ão são intuições e não são im ediatas senão enquanto são o conhecim ento reunido em su a sim plicidade" (H istória da filosofia , XVIII, p .201 ). 2) Se a ssim H egel recusa todas as transposições do platon ism o em teorias do conhecim ento, H egel não deixa de in sistir na abstração da Idéia platônica. P latão não exprim iu, “de m aneira determ inada” , a natureza do Conceito, sim ultaneam ente Ser e Reflexão (Ibidem, p .245). A Idéia platônica é “ som ente a Idéia abstrata” , incapaz de realizar os seus m o ­m entos: a Subjetividade lhe faz falta (Ibidem, p .293). Parece portanto que H egel ou bem, quando denuncia o contra-senso acerca do platon ism o, chega a lhe conceder o m ais belo aspecto deste .ú ltim o, isto é, retirar-lhe (por vezes, desprezando certos tex tos), ou bem

confronta anacrónicam ente a Idéia p latôn ica (produto do m undo grego pré-subjetivo) com a Idéia hegeliana. Em am bos os caso s, haveria ju ízo parcial. Porém, talvez fosse m ais legítim o d istinguir dois planos, nos quais, alternativam ente, Hegel se coloca: 1)

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prolongar o que Platão teria esboçado, ele nos torna, antes, conscientes daquilo com o qual, superficialmente, Platão se contentava. A dificuldade formulada por Hegel, nos term os até aqui analisados, equivale exatam ente a nos fazer regredir ao espanto antepredicativo do Teeteto, quando este deve admitir, sem dem asiada convicção, que M ovim ento e Repouso (Finito e Infinito) são, sob o m esm o título, entes (250 c). Com isso, m elhor se mede qual era o verdadeiro objetivo do Estrangeiro no diálogo. Teve m enos o m érito de entronizar o N ão-ser em filosofia que a responsabilidade de arti­cular o discurso que será preciso criticar para desenraizar o preconceito da Finitude.

E bem possível que o Estrangeiro não tivesse vindo por nada de Eléia e o parricídio de Parmênides tivesse sido apenas uma m orte de teatro. O desígnio do Estrangeiro não consiste apenas em tornar legítim o o discurso e concebível o erro, m as tam bém - sendo isto o m eio para aquilo - conser­var para todo conteúdo pensável sua perm anência e sua identidade consigo- garantir para cada significação a interioridade no nivel da qual, com o o enunciará lacónicam ente A ristóteles, o Ser e o Uno se tornam recíprocos. Decerto, Platão reserva um lugar ao M ovim ento e ao D evir no reino da “ousia” , mas o solo da “ousia” nunca é posto em questão. Por isso, distin- gue-se cuidadosam ente o N ão-ser radical e o N ão-ser cativo, que recebe direito de cidadania na forma do Outro. Esse género novo é “N ão-ser” ; mas, principalm ente, ele é. A identidade consigo que ele recusa em seu coração, ele a preserva de fora, por assim dizer, com o sendo entre outros. Setor do Ser, ele não é inteiram ente seu contrário, e o adágio de Parmênides não foi, definitivam ente, infringido.

Q uando dizem os Não-ser, isso não é, ao que parece, enunciar algum con­

trário do Ser, m as som ente um O utro ... Para nós, algum contrário do Ser, faz

m uito tem po que dissem os adeus.40

crítica das interpretações que o pensam ento finito forneceu acerca de Platão (com pará­vel à crítica do esp in osism o com o panteísm o): tais interpretações, sobrecarregadas de preconceitos reflexivos, desconhecem que o platon ism o foi a prim eira tem atização do Universal; 2) localização do platon ism o com o filosofia da Finitude (m ais abstrata, por exem plo, que a de A ristóteles, um pouco à m aneira pela qual o D eus de E sp in osa “per­m anece a trás" do D eus cristão). N essa perspectiva, não há m ais parcialidade hegeliana: a aparente “reabilitação” dos autores corresponde ao cuidado de subtraí-los à história h istoricizante dos sistem as e lhes conceder um lugar na linguagem do Saber - su a apa­rente "condenação” corresponde à exigência de lhes assinalar, em seguida, o exato lugar que lhes cabe.

40 Platão, Sophiste [Sofista], 258 e.

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Ο εναντίον του δντος não é, portanto, ο μή δν. Este perm anece até o fim com o “o inefável, o im pensável, o im pronunciável” (238 c). E A ristóteles tem o direito de observar: ao batizar com o N ão-ser o Relativo, “ é com o se ele dissera que era a Qualidade ... N ão é a negação do U no ou do Ser, é, na realidade, um a das categorias do Ser” .41 A predicação, ao que parece, nada mais é que o m eio de enunciar P de S sem os unificar. Mas essa diferença com a identidade (e não na identidade) só tom a todo seu sentido se recolocada na ontologia que fazia déla a única solução possível para o seguinte proble­ma: fazer que a “ousia” beneficie os opostos A e não-A, sem que por isso a “ousia” se torne aquilo que eles são. Ora, a própria formulação desse proble­ma trai sua origem eleática: que necessidade haveria em insistir tanto sobre a diferença entre os conteúdos, se não fossem alojados em um a esfera que ameaça se fechar sobre eles e absorver sua diversidade? Porque se concedeu dem asiado à hom ogeneidade do “δν” abstrato, é que se tem a preocupação de m ostrar que os conteúdos envolvidos por ele - “ com o denom inados en­tes” (256 c) - não são, em virtude desse fato, confundidos. Resta saber se essa ameaça de identificação é bem séria. Se a identidade do “õv” fosse apenas um a abstração, que urgência haveria em m anter contra ela a dife­rença e a diversidade? Q ue ameaça real haveria em conjurá-la? Por estar obsedado por um perigo imaginário é que o Entendim ento se atém tão fir­m em ente às “oposições” que ele instaura.

É corrente ouvir a afirm ação de que o Pensam ento é oposto ao Ser. D iante

de tal afirm ação, seria preciso com eçar perguntando o que se entende por Ser.

Se tom am os o Ser no sentido em que a Reflexão o determ ina, dele só podem os

enunciar isto: que ele é o puram ente Idêntico e o A firm ativo. Em seguida, se

consideram os o Pensam ento, não é possível nos escapar que ele é ao m enos,

de m aneira sem elhante, aquilo que é puram ente idêntico consigo ...

Tal é a identidade que o Entendim ento pretende evitar, para salvaguar­dar o sentido das palavras.

Ora, essa identidade do Ser e do Pensam ento não tem de ser tom ada

concretam ente, e, portanto, não é preciso dizer: apedra, com o ente [ais seiender],

é a m esm a coisa que aquilo que o hom em pensante é. U m concreto é algo

41 A ristóteles, Métaphysique [M etafísica], N , 2, 1089 b 20.

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bem diferente da determ inação abstrata com o tal. Mas, com o Ser, não se trata

de nenhum concreto: o Ser é o que há de inteiram ente abstrato.42

A diferença entre o Infinito-eníe e o Finito -ente consolida, portanto, a abstração inicial do “õv” , visto que a pressupõe. Ela garante que am bos os term os, em bora sendo, não são a mesma coisa e preservam sua especifi­cidade: é que então eles corriam o perigo de perdê-la - e perdê-la em p ro ­veito da m ais abstrata categoria do “ Ser” , sinônim o de indeterm inação total. Para convir, basta explicitar o conteúdo dessa categoria. Por nunca tê-lo feito é que nunca se perguntou se a significação “ ente” era com pa­tível com a significação “Finito” e se persistiu em afetar o Finito com um índice de “ sustentação” m ínim a. Preferia-se assim isentar o ente de uma investigação sem ântica a renunciar à m ínim a fixidez dos conteúdos do

pensam ento.Se é verdade que o Sofista de Platão am eniza o eleatism o em vez de o

destruir, torna-se portanto im possível objetar a H egel que a dificuldade por ele levantada (como afirmar o ser do Infinito deixando em curso o ser do Finito?) seja falsa. Certam ente, faz m uito tem po que foi resolvida, porém, de m aneira abstrata: a diferença que se estabelecia entre os conteúdos era tão abstrata com o abstrato era o Ser que lhe era dado em com um . C om pre­endam os bem o que H egel entende por “ abstração” : um procedim ento ao m esm o tem po supérfluo e sumário. O “Ser” é vazio, e a diferença que ju s­tapõe os conteúdos no “ Ser” é, portanto, supérflua: isso é um fato para quem consente em exam inar o sentido das palavras. Mas o Entendim ento, justa­m ente, não consente ou só consente até certo ponto, e, por essa razão, seu procedim ento é sumário. O Entendim ento tem o costum e de deter o exame das significações antes de ser forçado a efetuar identificações que, de um ponto de vista representativo, seriam dem entes. Com efeito, a unidade en­tão afirm ada “ exprim e o fato de ser-a-m esm a-coisa [die Dieselbigkeit] em toda sua abstração e soa tanto mais duramente, cria tanto m ais surpresa quanto os objetos pelos quais é enunciada sejam dados com o puram ente d iferentes".43 A ntes de tudo, portanto, é preciso evitar decretar que isto e aquilo, ostensivam ente diferentes, são “ a m esm a coisa” , que o Finito é a

mesma coisa que o Infinito, o Ser a mesma coisa que o N ada ... Porém, per­guntam os: trata-se, um a vez mais, de proclam ar de m aneira aturdida, ou

42 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 88, Z., VIII, p .214; trad. br., I, p .184.43 Logik [Lógica], IV, p.lOO.

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com o desafio, que há penetração dos im penetráveis?44 Ou seria esse o te­m ido escândalo, caso não houvessem criado suas condições, pondo a iden­tidade com o identidade do ente, a diferença com o diferença entre dois entes?

Os paradoxos aparentes nascem dessa tradução em um a linguagem regida por coações e por escolhas inconscientes. Tom emos um exem plo. O “M úl­tip lo” puro e sim ples diz a presença de unidades que, todas, são as m es­mas. Isso é “ um fato” : o M últiplo é repetição do Uno, ele é o Uno explici­tando sua repetição m onótona, “o M últiplo é U no” . Mas o Entendim ento é pouco cuidadoso com aquilo que o M últiplo diz. Para ele, o M últiplo está de um lado, o Uno, do outro. A proposição especulativa exprime, portanto, só a fusão, na mesma coisa, de dois diferentes.

D essa com paração dos m últiplos entre si, logo resulta que um só tem

por determ inação a [que cabe] ao outro. Cada qual é um, cada qual é um dos

m últiplos, cada qual é exclusivo dos outros - de m aneira que são som ente a

m esm a coisa, de m aneira que um a única determ inação está presente. Eis o

fato, e só tem os de captar esse sim ples fato. Captar isso é o que se recusa a

fazer o Entendim ento teim oso, pois, para ele, a diferença tam bém perm anece

no lugar - e, com razão, é verdade, mas tão seguram ente quanto esse fato não

apagar a diferença, ele existe a despeito da diferença. Seria possível, de certa

maneira, consolar o Entendim ento com a sim ples percepção desse fato, visto

que tam bém a diferença surgirá novam ente.45

O utra form a dessa obstinação do Entendim ento: com o Jacobi, pode-se denunciar com o um preconceito a separação do Infinito e do Finito com o

44 D aí os p ro testo s contra os que com batem a filosofia especulativa confundindo-a com o sistem a da Identidade abstrata: “J á se observou que, se freqüentem ente se ouve desig­narem ironicam ente a nova filosofia com o filosofia da identidade, é ju stam en te a filo so­fia - e em prim eiro lugar a lógica especulativa que denuncia a nulidade da identidade de entendim ento, da identidade que faz abstração da diferença; em seguida, é verdade, ela in siste igualm ente no fato de que não seria possível ater-se à sim ples diversidade, m as que é preciso conhecer a unidade interna de tudo o que e stá p resen te" (Enciclopédia das

ciências filosóficas, § 118, Z., VIII, p .275 ; trad. br., I, p .2 3 3 ). "O autor [G õschel] não perde de v ista e sse não-ser da pseudo-igualdade consigo m esm o, da identidade abstrata, na qual perseveram os que, com batendo a filosofia especulativa, não têm a audácia de nom eá- la sistem a da Identidade. Estabelece firm em ente que o princípio de Jacobi nada m ais é que e s sa Identidade que, inicialm ente, é o n iilism o do Ser som ente finito - em seguida, em su a form a afirm ativa, o panteísm o, que aliás Jacobi exprim iu de m aneira m uito pre­cisa, ao dizer que ‘D eus é o Ser em toda ex istência’, isto é, que ele é e s sa abstração im anente e, ao m esm o tem po, inteiram ente indeterm inada” (Cóschels Aphorism en [Sobre os a forism as de G õschel], XX , p .285).

45 Logik [Lógica], IV, p.203-4.

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entes, continuando a ver nisso um a necessidade inerente a todo pensam en­to.46 Criticada ou tida com o a única canônica, a m anipulação dos conteú­dos na linguagem do ente usufrui, portanto, do privilégio de não ser enca­rada como uma escolha entre outras lin guagens possíveis. Jacobi recusa (dogmaticam ente) a tese metafísica; não analisa seus pressupostos e não chega a devolvê-la à sua particularidade. Q uer rejeite, que assum a teses, o Entendim ento nunca rem onta ao discurso que as deforma.

Com isso já se com preende que a crítica do “pensam ento finito” não convoca a substituição de um a filosofia por outra, mas o desnudam ento de opções inconscientes que até então falseavam o livre jogo do discurso. D is­so dam o-nos conta pela leitura das respostas que H egel endereça aos auto­res de resenhas m alevolentes. Se realça seus contra-sensos e afirmações gratuitas, é à m edida que esses contra-sensos e erros nascem da precipita­ção. O adversário prefere apelar para o testem unho de “todos os hom ens” a provar sua afirmação. E m uito sintom ático é que não pense em fazê-lo: filosofar, para ele, consiste, antes de tudo, em salvaguardar pressupostos, perm anecer coerente com certas “ adm issões” (.Annahmen). Q ue o Finito não tenha ao m enos a dignidade de um “ ente” , eis o que não lhe vem ao espíri­to; que a contradição, visto que ela se suprime, “não existe” , eis o que é óbvio. A ssim tam bém , “para Kant, ao que parece, nunca se levantou a m e­nor dúvida sobre o fato de que o Entendim ento seja o absoluto do espírito humano; ao contrário, ele é a finitude absolutam ente fixada e intransponí­vel da razão hum ana” .47 N enhum a suspeita de que as incom patibilidades ou as ligações “ evidentes” possam se dever à natureza do discurso em uso, nenhum pressentim ento de que outro discurso poderia recolher o que aqui se cinde, dissociar o que se une.48 Dir-se-á então que há substituição de

46 “ É principalm ente a e ssa relação, concebida só com o afirm ativa - com o relação entre dois entes - , que Jacobi se prende, quando com bate [o m odo de] provar [a existência de D eus] do Entendim ento. Faz-lhe a m erecida censura, de que por seu m eio se buscam as condições (o m undo) para o incondicionado; que o infinito (D eus) d essa m aneira se representa com o fundado e dependente. Porém aquela elevação, com o está no Espírito, corrige ela m esm a e ssa aparência; ou melhor, todo o seu conteúdo é a correção d essa aparência. M as e ssa verdadeira natureza do pensar essencial, [que é] suprim ir na m e­diação a m ediação m esm a, Jacobi não a reconheceu, e por conseguinte tom ou, errada­m ente, a censura correta - que endereça ao Entendim ento que som ente reflete - por um a censura atingindo o pen sar em geral, e por isso tam bém o pen sar racional” (Enciclo­

pédia das ciências filosóficas, § 50, VIII, p .147; trad. br., I, p .125).47 Glauben und Wissen [Fé e saber], I, p .306; trad. fr., p .213.48 Exem plo d essa desp istagem d as falsas evidências: “ se contradições advêm , em que lu ­

gar elas advêm , tudo isso depende das pressu posições feitas. Ora, o autor não olha sufi-

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um a lógica nova por outra, se não de um a filosofía nova por outras? Tam­pouco: isso ainda seria desconhecer a amplitude da mutação hegeliana. Subs­tituir é tom ar o lugar. Ora, o Saber não com ete usurpação: lógica formal, ciências e pensam entos finitos seriam deixados em seu lugar e no jogo de suas categorias.49 M as esse lugar será doravante circunscrito, esse jogo, ex­plicitam ente reconduzido a suas regras.

A ssim é elaborado um tipo inédito de “questionam ento” . “ Pôr em ques­tão” não consiste mais: 1) nem em contestar a evidência de um princípio ou o rigor dos encadeamentos à maneira cartesiana (“ todos supuseram como princípio algo que não conheceram perfeitam ente"); 2) nem em determ i­nar o cam po de validade para além do qual o uso dos princípios se torna necessariam ente abusivo (Kant), mas em assinalar o ponto a partir do qual o desenvolvim ento das significações empregadas foi arbitrariam ente b lo­queado, ou, ainda, em tratar as regiões de “ evidência” com o lacunas em uma análise sem ântica que, de direito, perm anecia possível. N ão mais se trata de m ostrar a falsidade (Descartes) ou de desenhar o horizonte de um a ilu­são (Kant) de um a asserção, de um a doutrina ou de um a disciplina, mas de balizar sua finitude. O que não equivale de m aneira algum a a m edir em quantos graus tais asserções se achavam afastadas do Verdadeiro (é esse erro que deu crédito à lenda de um “dogm atism o” hegeliano), mas trazer à luz do dia o sistem a de ligações e de exclusões que os filósofos aceitaram em virtude do próprio fato de se exprimirem , ao excesso de sintaxe que obstruía o sentido. Daí provém que a atitude de H egel para com os filóso­fos seja, ao m esm o tem po, de infinito dogm atism o e de infinita tolerância. N enhum deles em preendeu passar a lim po sua linguagem, m as nenhum

cientem ente de perto: bem que recom enda ao leitor não dar crédito às a ssu n çõ es que devem p roduzir contradições. J á no início (§ 17), onde se deve m ostrar que nem a N atureza para si nem o Espírito são a fonte d as contradições, o autor se perm ite, sem m ais, u m a d e ssa s a ssu n çõ es não evidentes. E la diz respeito à natureza da própria con­tradição, e, a e sse propósito , ele deveria ter observado, antes de m ais nada, o que reco­m enda no § S, a saber, esquecer ou deixar provisoriam ente de lado tudo o que até aqui foi ob jeto de crença ou de opinião. ‘N a natureza’, diz ele, ‘não pode haver contradições, po is o que se contradiz se suprim e e não pode ex istir” ’; ora, a natureza deve existir. A ssim tam bém , “o esp írito não p en sa nada que se contradiga e tal propriedade é a cau sa que faz que apercebam os as contradições e ten tem os resolvê-las’ . O autor p od e­ria estim ar-se feliz se o m undo, a natureza, a ss im com o as ações, as ocupações e o pen sam en to dos hom ens não oferecessem nenhum a contradição - se a ela não p u d esse se oferecer nenhum a ex istência que co n trad issesse a si m esm a. Ele diz, precisam ente: ‘A contradição se su p rim e’ - m as d isso não se segue que ela não e x ista” (Ohlerts Schrift "D er Idealrealism us” , XX , p .399-400).

49 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 9, VIII, p .53; trad. br., I, p .49.

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deles, tam pouco, sustentou discurso “falso” ou “ilusorio” : visto que os cri­térios de “falsidade” ou de “ ilusão” foram forjados por e para essas lingua­gens fixadas de m aneira prematura, não lhes renderem os sequer a honra de aplicá-los a elas. Esse autor, nesse texto, disse a verdade? Extirpem os inicialm ente o preconceito que nossa questão envolve.

p e n s a - s e q u e s im p le s m e n te p o d e tr a ta r - se d a v e r d a d e d e u m a p r o p o s iç ã o e

s o m e n te se p o d e p e r g u n ta r s e u m c o n c e ito p o d e s e r u n id o a o s u je i to c o m

v e r d a d e o u n ã o ; a n ã o - v e rd a d e d e p e n d e r ia d a c o n tr a d iç ã o q u e se e n c o n tr a r ia

e n tre o s u je i to e o c o n c e ito q u e d e le é p re d ic a d o . O ra , e m ta l r e p r e se n ta ç ã o , o

c o n c e ito é to m a d o c o m o s im p le s d e te r m in id a d e .50

Formular essa questão, portanto, era reatar com um a linguagem so ­brecarregada por certa ontologia, afetada por certo indício de “fecham en­to ” ou de abstração. Era preocupar-se com aquilo de que o autor fala, sem se ter perguntado quais coações estavam inscritas em sua linguagem . Com que direito, perguntarão, recortar todos os discursos em um único discur­so enfim livre de toda convenção? Essa questão é legítima, mas sob a con­dição de que não subentenda que o hegelianism o é um “dogm atism o” no sentido tradicional. N ão há “ dogm atism o” , mas um positivism o hegeliano, isto é, um a aposta de neutralidade, a convicção de que um a linguagem pode ser decapada de toda ontologia e as regras lógico-ontológicas (aquelas de­cisões hipostasiadas com o leis do ser ou do pensam ento, ou com o decretos divinos) podem ser tratadas, por sua vez, com o significações por serem explicitadas. D iscurso liberado de toda ύπόθεσις e de todo princípio, que não se tem portanto o direito de caracterizar com os princípios que ele recu­

saria. Só um dogm ático poderia recusar o princípio de contradição. Outra coisa é observar que o interdito da não-contradição está associado à “hipó­tese” da invariabilidade dos entes e só passa por exigência prévia e incon­dicional, uma vez que se assum iu a linguagem do ente. O texto de Aristóteles (Métaphysique [Metafísica], Γ) dá fé dessa assunção:

P rin c íp io q u e é n e c e s s á r io p o s s u i r p a r a c o m p r e e n d e r q u a lq u e r d o s e n te s

[τον ό τιοΰν τω ν οντων], n ã o é p o r ta n to u m a h ip ó te s e ; o q u e é n e c e s s á r io c o ­

n h e c e r p a r a c o n h e c e r q u a lq u e r c o isa , é n e c e s s á r io ta m b é m q u e se o p o s s u a

a n te s . . . 51

50 Ibidem , § 22, VI, p .40; trad, br., p .76.51 A ristó teles , Métaphysique [M etafísica], Γ, 1005 b 15.

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Logo, em relação ao conhecim ento dos entes e ao recorte prévio que ele supõe, a não-contradição é dada com o άρχή “ a m ais firm e”; sua “ evi­dência” resulta daí. H egel não pretende tom ar o contrapé de A ristóteles, mas reencontrar, nessas linhas, a pré-opção que fazia A ristóteles concluir, rápido demais, pela universal suprem acia e pela evidência do princípio. Esse benefício da evidência, o Saber sem pre o recusa aos eidéticos: para um pen­sam ento não finito, isto é, ontologkam ente neutro, não há conteúdo pri­m eiro que seja condição de todo λόγος; não há conteúdo que não se possa repor no circuito da linguagem.

4

“ Se o Finito é e se o Infinito é, então o Finito, com o Finito, é o Infini­to .” Acabam os de ver que essa dificuldade, longe de ser reabsorvida pela doutrina da com unicação dos gêneros e da predicação, bem poderia revelar a fragilidade da ontologia e da lógica que im pedia sua form ulação. Os m etafísicos arranjavam -se para não ter de tom á-la em consideração; em troca, a segurança de seu discurso parecia preservada. Ora, H egel pensa que essa segurança era precária. Só podia satisfazer um pensam ento que se contentasse em colocar, precipitadam ente, as bases de seu discurso antes de falar sobre as coisas. Mas, se chegarm os a tem atizar o discurso predicativo, o que parecia protocolo das condições do sentido figurará com o sua h ipo­teca. Um a vez reduzido a não ser mais que um dos m odelos possíveis de organização do discurso, questões insólitas irão surgir. Por exem plo: por que as significações seriam com o conteúdos determ inados que tivessem de alfinetar as palavras? Essa questão m erece atenção. Pode-se de novo con­testar sua pertinência; pode-se de novo afastá-la. Seríamos tentados a dizer: ainda é tem po de recusar as regras do jogo que nos propõem . Em seguida, seria tarde demais. Podem admirar-se de que H egel tenha sido bastante ignaro para confundir as diferentes funções da palavra “ê” . Hegel está em vantagem em relação a essas críticas: não haviam com preendido que, des­de o início, lhes era proposto outro jogo?

Concedam os a Hegel que a predicação é indissociável de um a ontologia determinada; reconheçam os que ela sugere, inevitavelm ente, o isolam ento e a invariabilidade das significações. N essa linha, parece, portanto, que se possa estar dispensado de ir mais longe na investigação dos conteúdos, uma vez que estes foram inseridos em uma forma sintática, assinalados em um lugar determ inado da proposição. Parece que se tenha terminado o exame de

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um a significação, após ela ter sido situada, por exemplo, na localização do “ sujeito” : “o Eu-que-sabe ainda encontra no Predicado o primeiro Sujeito, do qual ele já quer ter dado cabo [mit dem es schonfertig sein... w ill]” .S2 A predicação reforça, portanto, a certeza em que está o Entendim ento por nunca ter de se haver com representações sim ples e bem delimitadas; ela nos perm ite su­bentender que o conceito-sujeito já é totalm ente o que ele é, independente­m ente do predicado que o afetar. O nome, sim ples instrum ento de baliza, passa então por uma aproximação do conteúdo, ao passo que ele nada mais é do que um nome, marca de um a presença imutável. O que se poderia chamar de “ ideologia predicativa” inclina-nos a crer que o sentido tem de ser buscado somente ali onde estiver bloqueado, que o conhecim ento poderá advir somente d ali onde estiverm os em presença de um conteúdo invariável. E que, doravante, o registro das representações aparecerá com o a única fun­ção da linguagem , ao passo que ela é apenas um a de suas funções, sem dúvida indispensável na fala cotidiana, mas abusiva desde que dela se faz a con dição sine qua non de toda p rática p o ssível da lin gu agem , de toda

discursividade.

Logo, convém e é necessário p ossuir esses nom es: Sujeito e Predicado para

as determ inações do juízo; com o nom es, são algo de indeterm inado, que ainda

deve adquirir sua determ inação, e, portanto, não são mais que nom es. Essa

razão já im pediria de utilizar as determ inações conceituais para os dois lados

do ju ízo. M as ainda há um a razão: m ostra-se que a natureza da determ inação

conceituai não consiste em ser abstrato e fixo, m as em conter dentro de si e em

pôr em si seu oposto. C om o os próprios lados do ju ízo são conceitos e com o

são, portanto, a totalidade de suas determ inações, devem portanto percorrer

estas últim as inteiram ente e m ostrá-las em si, sob um a form a abstrata ou con­

creta. Todavia, os nom es que [nessa mudança] perm anecem iguais a si m es­

m os são m uito úteis para manter, de m aneira universal, os lados do ju ízo,

apesar dessa alteração de suas determ inações. O nom e, porém , perm anece

oposto à coisa ou ao conceito . . .53

A ordem da proposição, necessária à distinção dos conteúdos, não im ­põe portanto a estes últim os uma deformação tal, que sejam vistos esponta­neam ente com o separados, de direito, uns dos outros. Sem dúvida, estamos

52 Fenomenología do espírito, II, p .57; trad, fr., I, p. 53; trad, br., I, p .55-6.53 Logik [Lógica], V, p .67.

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adstritos a esse recorte - e o filósofo especulativo, tanto quanto outro qual­quer. Porém ela engendra um a “ teoria" da linguagem que, de m aneira dissi­mulada, trai sua prática. A confrontação de dois textos da Phénoménologie

[Fenomenologia] m ostrará em que consiste esse desencaixe.Por um lado, a palavra é a verdade da intuição sensível:

É tam bém com o um universal que pronunciam os [sprechen] o sensível. O

que dizem os, é isto, ou seja, o isto universal - ou ainda: ele é, ou seja, o ser em

geral. N ão representamos seguram ente o isto universal ou o ser em geral, mas

pronunciamos o universal. Em outros term os, não falam os absolutam ente da

m esm a m aneira que visam os [meinen] nessa certeza sensível. Mas, com o ve ­

m os, é a linguagem que é o m ais verdadeiro ...54

Mas, por outro lado, a consciência falante é incapaz de analisar dessa m aneira a operação que ela efetua: a linguagem , para ela, longe de rom per com a representação, a redobra; a palavra, em vez de abolir o isto sensível, lhe parece apresentar um universal, que tem o estatuto de um novo im edia­to. Falar, a partir daí, é decalcar a representação em vez de apagá-la. Ora, a reflexão sobre o m ovim ento do sentido abala essa certeza representativa. Por mais que eu deixe de imaginar que m inhas palavras irão se reunir ins­tan tan eam en te às “ idéias” que elas anunciariam , logo faço a prova da inadequação do sintático com o “ conceituai” . A partir do m om ento que a linguagem reencontra sua função viva de negação do imediato, os conteúdos estáveis que por assim dizer ela iria repertoriar se dissolvem , as rubricas sintáticas confessam seu artifício e o pensam ento ingênuo descobre enfim esta verdade: que nunca se fala como se vê. Descoberta literalm ente vertigin o­sa que Hegel descreve, ironicam ente, no Prefácio:

O pensam ento, estando no predicado, é rem etido ao sujeito; ele perde a

base fixa e objetiva que tinha no sujeito, e, no predicado, não volta ao interior

de si, m as no sujeito do conteúdo ... A proposição filosófica, justam en te por­

que é proposição, evoca a m aneira ordinária de encarar a relação do sujeito e do

predicado e sugere o com portam ento ordinário do saber. Tal com portam ento e

a opinião que dele deriva são destruídos pelo conteúdo filosófico da proposi­

ção; a opinião tem a experiência de que a situação é diferente do que ela esperava ... 55

54 Fenomenologia do espirito, II, p .84; trad, fr., I, p. 84; trad, br., I, p .76.55 Ibidem , II, p.58; trad, fr., I, p .55; trad., br., p .57.

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A m bos os textos, assim, se juntam : a consciência ingênua só é tom ada de pánico porque se obstina em representar aquilo que pronuncia e, por con­seguinte, em com preender (não digamos: em viver) as palavras com o nota­

ções de conteúdos im óveis, sua articulação como o quadro das relações entre esses conteúdos. Por isso, parece-lhe absurdo que o sujeito encontre seu sentido no predicado; ela se recusa a convir nisso. E essa teim osia é com ­preensível: por tal via, ela seria rapidamente conduzida a abandonar sua “ teoria” (inconsciente) da linguagem-quadro, da qual a sintaxe desem pe­nha o papel de garantia.

A qui estam os portanto de volta, por um desvio “filosófico” , ao núcleo do pensam ento finito: à linguagem concebida com o instrum ento de desig­nação e de repartição das coisas - à assimilação sub-reptícia do signo e da im agem . Andam os em círculo? Desviam o-nos do problem a colocado pela relação do Finito com o Infinito? A verdade é que essa era um a dificuldade de expressão, e seu exame desem boca inevitavelm ente no reexam e da lin­guagem , tal com o a com preendiam os filósofos que a escamotearam. O ex­travio dos filósofos, com o sabemos, não é mais im putável a um a falta de discernim ento do que a uma propensão ao verbalism o, que se deveu sim ­plesm ente à atitude semântica que assumiram. A teim osa afirmação do “ ser- do-Finito” não é mais o sintom a de uma doença do espírito do que uma ilusão lingüística: ela se tornou inevitável, desde que foi tida com o evidente a distensão entre signo e significação. E por isso que os “ erros filosóficos” , em últim a instância, não são justificáveis nem por um a crítica técnica exercida no m esm o terreno (os “ críticos” de Hegel são apenas uma clarificação da­quilo que o filósofo “ crítico” se dispensou de explicitar, a partir de certo ponto), nem de um a crítica dos abusos da linguagem que ainda aceitaria a m esm a ideologia da linguagem, mas tão-só de um a crítica dos contra-sen- sos representativos sobre a natureza da linguagem.

Seria possível entretanto que esses contra-sensos, evitáveis de direito, não fossem com etidos? A ler os textos concernentes à linguagem, bem pa­rece que não. A adoção do signo lingüístico, com o vim os, m ostra que h ou ­ve renúncia à exigência de uma semelhança significante-significado, tal como o sím bolo a salvaguardava. Im agem cega, o signo se pôs com o essencial­m ente dessemelhante.56 Mas essa dessem elhança destaca-se da semelhança,

56 “ O signo é um a certa in tuição im ediata, que representa um con teúdo totalm en te outro do que ela tem para si m esm a: [é] a pirâm ide em que está transladada e conservada um a alm a alheia. O signo é d iferente do sím bolo, de um a intuição cuja determ inidade p ró­pria, segu n do sua essên cia e conceito, é m ais ou m en os o con teúdo que exprim e com o

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tanto quanto a transgride: a consciência im agina que a relação até aqui pró­pria à sim ilitude sensível é conservada na ausência desta última; ela inflete, portanto, a dessem elhança em um caso lim ite da semelhança. E por isso a essência do signo lhe parece manter-se em um a diferença tal, que ali subsis­te, no entanto, a relação representativa. A tarefa do dizer é percorrer essa diferença, isto é, ligar sinteticam ente o nom e à sua significação.

Enquanto o encadeam ento dos nom es reside na significação, a ligação

desta últim a com o ser com o nom e é ainda uma síntese, e a inteligência, nessa

exterioridade que é a sua, sim plesm ente não retornou a si. M as a inteligência

é o U niversal, a verdade sim ples de suas alienações particulares, e sua apro­

priação consum ada [durchgeführtes Aneignen] é a supressão dessa diferença da

significação e do nom e.57

Ora, é notável que, nas análises da linguagem - ainda que tivessem um tom apologético - , essa supressão (obra da inteligência) não seja expres­

samente m ostrada com o consumada; a linguagem , ao que parece, funciona sem que ainda apareça o sentido de sua operação. Por isso, sustentou-se às vezes que em Hegel, definitivam ente, é o pensam ento que predom ina so ­bre a linguagem: fórmula inexata, se se subentende que meu pensam ento subjetivo tem o encargo de retificar e criticar o que o uso das palavras58 su­gere, pois o próprio “pensam ento subjetivo” é um produto desse uso irre- fletido; ela tem seu sítio na configuração já desenhada pela linguagem in­gênua. Prova de que esta últim a ainda não exprim e fielm ente a verdade que ela contém . Exterioridade enfim transparente da consciência ou (o que dá na mesma) idealização do im ediato, é bem assim que a palavra se anun­cia. Resta que ela não efetua um a “apropriação consum ada” - ou, ainda, a nom eação é apenas “ aprimeira potência criadora que o espírito exerce a

primeira tom ada de posse da inteira natureza pelo espírito” .59 Por que essa reserva? Ou, se preferirem: por que o vocábulo só suprim e o ente im ediato

sím bolo. A o contrário, no signo, com o tal, o conteúdo próprio da intuição e aquele do qual é signo nada têm a ver um com o outro” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 458, X, p .345; trad. br., III, p .247 ). E ssa ruptura entre a intuição e o sentido rem ete à cisão entreo su jeito representante e o objeto, isto é, ao advento da subjetividade representativa (ou da civilização). Ela é, portanto, profundam ente representativa, m esm o se m arca a extinção da representação pela sim ples sem elhança.

57 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 53, X , p .356.58 Cf. Hyppolite, Logique et Existence, p .38ss.59 Realphilosophie, a tradução se encontra em Koyré, Études d ’Histoire, p .182.

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para nos pôr em presença de um Universal imediato? Hyppolite resume muito bem em que consiste essa troca: “ [A inteligência] encontra o sentido, a interioridade, o contrário do ser como um ente, e ela encontra o ente, o con­trário do sentido, com o um a significação” .60 Mas por que essa nova estra­tégia da Finitude? Por que a reunião do ente-suprim ido e do som de m inha voz term ina com o reconhecim ento de um a diferença entre nom e e signifi­cação? Assinalam os anteriorm ente essa persistência da Representação no coração da linguagem, mas sem desm ontar seu m ecanism o. Voltem os a esse m om ento, pois ele é essencial. Se o discurso filosófico tradicional põe os conteúdos por ele visados ao menos como ente, se o “ ente” está dispensado de exibir seus títulos, é porque os conteúdos idealizados se dão por inter­m édio da linguagem com o objetidades representadas. E a filosofía da Finitude, contanto que se consinta em ver nela algo mais que um a “doutri­na” , só pôde se propagar desse gesto inaugural.

Reportem o-nos ao texto da Realphilosophie que acabamos de m encio­nar. A o m esm o tem po que celebra o advento da idealização lingüística, con­fessa a fragilidade desta última. M anhã gloriosa em que Adão deu às coisas seu nome, porém ainda enevoada e anunciadora de m al-entendidos por vir: um a vez mais, a inocência da origem não é sinônim o de pureza.

A questão: que é o isto?, nós respondem os: é um leão, é um asno etc. Isto

é, ou seja, de m aneira algum a é um am arelo que possui pés - e assim por

diante - , um independente próprio, m as um nome, um som de m inha voz; algo

de inteiram ente diferente do que ele é na intuição e isto é seu ser verdadeiro ...

Eis aí o que diz respeito à supressão da im ediatez. E eis aqui, agora, com o esta últim a é com preendida imediatamente:

M ais tarde, nós pensam os: isto é apenas seu nom e, a própria coisa é algo

de bem diferente, ou seja, recaím os então na representação sensível - ou en­

tão [nós pensam os: é apenas] um nom e em um sentido mais elevado, pois o

nom e é o ser espiritual, só que m uito superficial.61

Agora, o signo nada m ais é que um signo. O nom e não é m ais uma coisa que, além disso, indicaria; ele é, de ponta a ponta, índex. Portanto ele

60 Hyppolite, Logique et Existence, p .38 (grifo n osso ).61 In Koyré, ibidem , p .182.

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não é mais uma coisa: eis o benefício. Mas não é inteiram ente assim que a consciência representativa entende a situação. V isto que a palavra não é um a coisa, pensa ela, é que portanto só há relação exterior com o seu con­teúdo, que suplem enta sem nunca o re-presentar; é im possível que a coisa toda passe nessa sonoridade, que uma m odulação vocal tenha bastado para transpor sua presença. Daí a decepção que se segue ao entusiasm o: é ape­nas um nome, e essa não-coisa nunca fornecerá a coisa marcada em sua plenitude. N ão pode fazer concorrência nem à significação, nem à coisa sensível. A decepção de Adão não está longe da m isologia agressiva de Feuerbach:

A linguagem não tem absolutam ente nada a ver com a coisa ... Para a

consciência sensível, a linguagem é justam ente o irreal, o nulo. Com o portan­

to a consciência sensível pode encontrar ou ver sua refutação na im possibili­

dade de dizer o ser singular? É um a refutação da linguagem que a consciência

sensível encontra justam en te nesse fato, e não um a refutação da certeza sen­

sível. E, em seu dom ínio, ela tem perfeitam ente razão nesse ponto; se não, na

vida, nos contentaríam os com palavras no lugar de coisas.62

A palavra, m edida com o m etro da coisa - da qual ela não pode, é cla­ro, fazer as vezes - , é encarada com o um a abreviação (“ a via mais curta rum o à m eta” , diz ainda Feuerbach). Pouco im porta qual seja essa meta, Idéia, essência ou coisa percebida, contanto que seja antes de tudo relegada para além da linguagem e o vocábulo, tido com o pobre dem ais para nunca ser mais que um sinal. A partir daí, a consciência da vaidade das palavras envolve todo um estilo m etafísico. Não-coisas, sopros de ar, os vocábulos só têm, por inteira dignidade, o fato de serem intercessores entre significa­ções ou indicadores de conteúdos sensíveis; m ais para mal que para bem, eles orientam em direção a um a “ coisa” que, por sua vez, irrecusavelm ente, já está presente. E tudo o que lhes é concedido. Tomado ao pé da letra, o adágio de Feuerbach “a linguagem não tem nada a ver com a coisa” form u­la m uito bem o princípio do que foi a m aioria das críticas filosóficas da linguagem; retroativam ente, legitim a todos os esforços desdobrados para se evadir do verbo e contornar suas emboscadas: é para além das palavras que se vê a Idéia, é apagando seu zum bido que se tem a sorte de saber,

62 Feuerbach, Manifestes [M anifestos], p .38; trad. fr. L. A lthusser.

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enfim, o que é “perceber a cera” .63 Mas basta desprezar os vocábulos e deixá- los para trás, para que a m aneira de viver, com preender e estragar seu uso não exerça m ais sua influência? Por m ais desdenhados que se quiserem , esses signos, pelo fato m esm o de que foram pensados com o sim ples sig­nos, já desem penharam efetivam ente sua função; por mais im próprios que sejam para desvelar o conteúdo por eles marcado, já im puseram certa m a­neira de localizá-lo, tornaram para sem pre “ evidente” um a certa atitude do locutor filósofo. “São apenas palavras” , é claro. M as algumas, pelo m enos, são as cifras de um a presença; essas já conferem a segurança de que não será vão confiar-se à intuição para deixar parecer, em sua plenitude, con­teúdos determ inados em seu lugar determ inado. Convenção tão trivial que não se dão sequer ao trabalho de a estipular e, nesse ponto, m uitos adver­sários firmam pactos tacitamente, nos debates m etafísicos ou gnoseológicos. Exem plo instrutivo entre mil outros: o com prom isso entre Hilas e Filonous, no final do diálogo de Berkley. Hilas consente em não m ais associar ao vocábulo matéria “ um tipo de independência, um a existência distinta da percepção por um a inteligência” . Em troca, Filonous não o proibirá de con­tinuar em pregando a palavra assim desativada: “se, por matéria, entende-se um a coisa sensível cuja existência consiste em ser percebida, então há uma matéria” . A concessão parece derrisória, e Filonous a faz com sinceridade: no entanto, não indica ela que houve somente deslocam ento de um sentido que, de comum acordo, e para com odidade dessa conversação sobre objetos ideais, deve permanecer fixo e im odificável, que portanto não houve crítica da atribuição de sentido com o tal? Q ualquer que seja o cuidado que se tom e para fixar o sentido das palavras, nos espantam os com o fato de que esse sentido seja feito na m edida de um a “fixação” . “ Was bedeutet Bedeuten?”

- essa questão, portanto, não será formulada. E nisso que o uso com um da linguagem resiste a todo exercício de desconfiança “filosófica” : por mais radicalm ente que o filósofo tenha-se proposto a neutralizar a linguagem, ele nunca pôde fazer que as palavras já houvessem traçado o contorno das “ coisas” que, em seguida, o conhecim ento terá com o tarefa desvelar. Esse conhecim ento bem pode, portanto, consumar-se no silêncio; ele perm ane­

63 Cf. Seconde M éditation [Segunda m editação]: “ Pois, em bora sem fa lar eu considere tudo isso em m im m esm o, todavia as palavras me detêm, e quase sou enganado pelos termos da

linguagem corrente; pois dizemos que vem os a m esm a cera, se n os for apresentada, e não que ju lgam o s que se ja a m esm a ... , hom ens que p assam n a rua em vista dos quais não deixo de dizer que vejo hom ens, a ssim com o digo que vejo cera; e, entretanto, que vejo desta jan e la?” .

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ce tributário de um a teoria informulada da fala, liberta talvez das associações arbitrárias que o uso veiculava, mas não da atitude irrefletida do sujeito representativo e falante.

“ São apenas palavras” : é verdade que encontram os por vezes essa constatação desencantada em Hegel. Para indicar Deus, “o puro sujeito” , resta som ente “o nom e com o nom e” ; Deus, tom ado para si, “nada mais é que um nom e” .64 Mas então não se trata mais de nos convidar a renunciar às sim ples palavras, para que nos voltem os na direção de um a operação mais vantajosa; trata-se, ao contrário, de não mais achar normal que a lin­guagem tenha sua verdade fora dela. Se as palavras são vazias, é que ainda não sabemos pensar dentro delas.

Se eu digo: todos os animais, essas palavras não poderiam passar pelo equ i­

valente de um a zoologia; com a m esm a evidência, resulta que as palavras divi­

no, absoluto, eterno etc. não exprim em de fato senão a intuição entendida com o

o im ediato.65

Tenho portanto razão em não m e satisfazer com o universal abstrato: “todos os anim ais” ; porém, estaria errado em crer que, à força de olhar, ou enumerar, ou viajar, ou consultar dicionários, eu preencheria o lugar que esse universal deixa vazio. Sobretudo, a pobreza das palavras não deve m e convidar a transgredi-las e a sonhar com um conhecim ento consum ado por­que, de direito, m udo. Eis o m om ento de lembrá-lo: por m ais longe que se vá e qualquer que seja a direção, é sempre “dentro das palavras que nós

pensam os” , e as proposições que formo, os textos que escrevo não são os com entários de nenhum silêncio. Tal ruído não m ascara nenhum Logos aquém da voz. Não que Hegel deposite na linguagem um a confiança cega: verem os que, mais que outros, ele condena o pretenso conhecim ento por

sinais. Mas ele não admite que nada se ganhe em afastar-se da linguagem, em pretender conhecer im ediatam ente os conteúdos que embaralhavam os signos, mas que continuam os visando - mais do que nunca enganados pela

linguagem do Entendimento - , na m aneira pela qual esses signos os indicam. “São apenas palavras” ; porém, sim etricam ente a elas - não nos esqueçam os disso - são tam bém apenas significações mortas, sempre prem aturam ente circunscritas, que nenhum a rem em oração reanimará, nenhum a intuição,

64 Fenomenologia do espírito, trad, fr., I, p .57 e p .21; trad, br., I, p .58 e p.32.65 Ibidem , II, p .24; trad, fr., p. 19; trad, br., II, p .3 1.

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nenhum a experiência imediata, em suma, nenhum ato pelo qual se preten­desse contornar a linguagem e melhorar seus desem penhos. Atualizar a sig­nificação, torná-la evidente, deixar surgir “ a coisa m esm a” ? Em vez de pre­tender isso, valeria mais a pena estar assegurado de, já e em virtude do próprio fato de que se propõe essa tarefa, não forjar uma im agem fantástica daquilo que é um a significação; valeria m ais a pena, antes de desesperar tão rapidamente dos recursos do discurso, ponderar que outro discurso pode­ria retirar às significações sua inércia de coisas dadas. Se tal discurso fosse im possível, o nom inalism o teria pleno direito, pois nenhum a concepção atenta do espírito estaria jam ais em condições de devolver plenitude às pa­lavras Deus, infinito, absoluto... Talvez seja preciso, para aqui com preender a intenção de Hegel, ter levado a sério a crítica nom inalista da filosofia clássi­ca e conceder, por exem plo, que Gassendi tenha razão contra Descartes, no plano do discurso que lhes é comum.

Quem diz uma coisa infinita atribui a uma coisa que ele não compreende um nome que ele não entende tampouco ... Nem aquele que diz eterno abraça por meio de seu pensamento a extensão dessa duração que nunca teve come­ço e nunca terá fim, nem aquele que diz onipotente compreende toda a multi­dão dos efeitos possíveis; e assim dos outros atributos.66

“ Se digo todos os animais” ... Ora, a m etafísica, justam ente, pronuncia as palavras infinito, eterno... na m aneira pela qual eu digo “ todos os animais” .

Descartes responde a Gassendi que a exigência feita é forte dem ais e se pode dizer que se “conhece” uma coisa, sem dela ter, no entanto, “ um co ­nhecim ento inteiro e perfeito” . Essa reserva, porém, nada m uda que está em questão: com o pode ele estar certo de que não se contenta com pala­vras e de que não tom a “ infinito”, “ eterno” com o equivalentes de um a teo ­logia? A o tom ar ao pé da letra o discurso clássico, o nom inalism o teve con­dições para suspeitar da vaidade das “coisas” m etafísicas colocadas por aquele. Hegel, por sua vez, não se contenta em afirmar que tal palavra abre para um “ conhecim ento” . Com o se levasse a sério a exigência de Gassendi e se preocupasse em aceitar o desafio em vez de afastá-lo, ele elabora um discurso no qual cada conceito deve “percorrer e m ostrar a totalidade de

66 G assendi, Quatrièmes Objections [Q uartas objeções] (sobre a Troisième M éditation [Terceira m editação], ponto 4).

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suas determ inações” . Sem esse desenvolvim ento que lhe confere toda sua

significação, ou, mais sim plesm ente, sua significação, a concepção não m ere­ce nem sequer ser chamada parcial ou imperfeita: ela é nula. “ Deus é eter­

no” ... Em um a proposição dessa espécie, com eça-se com a palavra Deus. “Tomada por si, é um som privado de sentido, nada mais que um nom e .. .” .67 Há pouca diferença, pensa Hegel, entre esse “Ser infin ito” e a abstração de Brahma:

A determ inação m etafísica de Brahm a é tão conhecida quanto sim ples;

com o já se indicou, Brahm a é o Ser puro, a pura U niversalidade, supreme being,

o Ser suprem o. N isso, o essencial e o m ais interessante é que tal abstração é

m antida afastada do preenchim ento, que Brahm a é som ente o Ser puro, sem

n enhum a determ inação concreta em si. Q uando nós, europeus, d izem os que

D eus é o Ser suprem o, essa determ inação, é verdade, é igualm ente abstrata e

igualm ente pobre - e a m etafísica do Entendim ento que se recusa a conhecer

D eus e nada saber de suas determ inações exige que a representação de D eus

se lim ite a essa abstração, que nada mais se conheça de D eus senão o que é

Brahm a.68

N o entanto, há um a leve diferença, porém significativa, entre a Euro­pa e a índia. Preferindo dizer Deus, ao Ser infinito ou o Eterno, pressentim os que nossa linguagem não é um inventário de entidades. Deus, sem dúvida, nada m ais é do que um a palavra, mas essa palavra designa uma pessoa, a prom essa de um a ação e de um a história; ela já não se dá inteiram ente com o a marca de um a coisa disponível, m esm o que a repartição sintática continue levando a crer que sim.

Pela presença dessa palavra, quer-se justam en te indicar que não é um ser

ou um a essência [nicht ein Sein oder Wesen], um universal em geral que é posto,

m as algo de refletido em si m esm o, um sujeito. Entretanto, isso ainda é ape­

nas um a antecipação. O sujeito é tom ado com o um ponto fixo, e nesse ponto,

com o em seu suporte, os predicados são vinculados.69

Vim os há pouco que a m etafísica, pelo lugar que concedia ao Finito, continha em germe as negações futuras do Infinito (Aufklàrung e kantism o).

67 Fenomenología do espirito, trad, fr., I, p .21 ; trad, br., I, p .32.68 Recension de H um boldt [Resenha de H um boldt], XX , p .114-5.69 Fenomenología do espirito, I, p .26; trad, fr., I, p .21; trad, br., I, p .32.

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Mas esse diagnóstico (de história da filosofia) ainda era insuficiente, pois analisávam os os conceitos filosóficos sem levar em conta o tipo de discur­so no qual eles funcionavam. “ Finito” , “Infinito” : tudo m uda se recolocarmos as palavras entre aspas e voltarm os à m aneira pela qual acreditávamos v i­ver as significações. Percebem os então que a própria significação “ Infinito” não recobria nada e não tinha outro título de crédito senão o que lhe era concedido pelo discurso, em decorrência do fato de que, no Ser, ele situava aquilo que proferia. Logo, era perigoso dizer sim plesm ente que a filosofia nunca soube elim inar o Finito, à m aneira pela qual um historiador ou um geógrafo que nunca souberam corrigir um erro de fato. A filosofia nunca optou pela Finitude; ela não deixou de falar dentro da Finitude. Atividade de designação e de nom eação, ela se com portava em relação às significações com o, no “ Reino do Pai", a religião para com Deus - com o ela, votada a tornar longínquas as coisas próxim as e estranho o Deus que ela dizia “vivo” . É essa distorção im anente ao discurso que a especulação faz cessar:

Q uan do dissem os Deus só dissem os sua abstração - ou Deus Pai, o U ni­

versal, só o dissem os dentro de sua Finitude. Sua infinidade consiste ju sta­

m ente em suprim ir essa form a da universalidade abstrata, da im ediatez - em

pôr, a partir de então, a diferença, mas igualm ente em suprim ir essa diferen­

ça. Só então é que advém a verdadeira efetividade, a verdade, a infinidade.70

Essas linhas m erecem que nos detenham os nelas. Pode-se com eter um contra-senso a partir da segunda frase: parece que, a um a observação de linguagem , segue-se um a afirmação doutrinal. Deus, acaba de dizer Hegel, não é um a significação opaca; e, logo em seguida, parece com eçar o recital hegeliano: aparecim ento da diferença no sim ples, supressão da diferença... Q ue relação entre isso e aquilo? A qui é preciso com preender que, para a significação, é a m esm a coisa abrir-se para suas diferenças (tornar-se C on ­ceito) e não mais estar cravado a um a objetividade representada (a de ser “finita”) . D esde que não é m ais pensada com o diferente de outras signifi­cações que a guarneceriam, a significação, devido a esse m esm o fato, deixa aparecer as diferenças que anteriorm ente se assinalavam para conteúdos diferentes dela. A autodiferenciação não é, portanto, um m ovim ento no qual ingressariam subitam ente (como? por quê?) significações “bem co­nhecidas” ; ela não lhes advém; ela abole a forma tradicional que as m utila­

70 Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .232.

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va, que lim itava o Infinito à representação "Infinito” , que localizava o U ni­versal em um princípio “particular” .

N ós tom am os consciência - a necessidade da unidade nos im pele a isso -

de que é preciso reconhecer um U niversal [para pensar] as coisas particula­

res. M as a A gu a é igualm ente um a coisa particular. A í está o defeito: o que

deve ser um verdadeiro princípio não precisa ter um a form a unilateral, parti­

cular, m as a própria diferença precisa ser de natureza universal. A form a pre­

cisa ser a totalidade da form a.71

Por isso, a crítica da Finitude não desem bocará em outra repartição das significações, em outra doutrina: com o garantir então ao filósofo que ele não atribui “ a um a coisa que ele não entende um nom e que tam pouco ele entende” ? A crítica da Finitude não resultará de um a nova escolha téc­nica que deixaria intacto o Logos tradicional, mas do retorno a um “lógico” livre de todo parti pris, tal que nada m ais nos obrigue a dispersar aquilo m esm o que se sabe reunido, lim itar aquilo m esm o que se diz ser onipre­sente. A cultura de uma língua, pensava Hegel, se m ede por seu grau de libertação em relação à gram ática.72 Ora, a ontologia nunca possuiu uma “ língua cultivada” - e a lógica, com o ofuscada pelo prestígio da gramática, esvaziou os signos de sua significação para torná-los tão fixos quanto as marcas sintáticas. A gora é preciso que exploda o artifício desse “pensa­m ento” escoado em um a ordem linear e se tom e consciência de que os filósofos nunca falaram livrem ente. D iante dessas variações retóricas que foram as doutrinas passadas, a palavra de ordem do discurso hegeliano bem que poderia ser: paz à retórica e guerra à sintaxe. Elaboraram princípios, enunciavam, dem onstravam - mas esse jogo sobre significações que não se cansavam de redefinir ou de reconceber estava regrado por convenções tácitas. Era óbvio, por exem plo, que um princípio fosse posto: o Uno, a Agua, ο νοΰσ, a ουσία, a Idéia; e o interesse se referia exclusivam ente à

71 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .221.72 “O estudo das línguas que perm aneceram [com o eram ] de origem , que só n os tem pos

m odernos se com eçou a conhecer profundam ente, m ostrou a respeito que elas contêm um a gram ática m uito elaborada no que é singular, e exprim em diferenças que faltam ou foram apagadas nas línguas dos povos m ais cultivados. A língua d o s povos m ais cultiva­dos parece ter a gram ática m ais im perfeita; e a m esm a língua tem , em um estado m ais inculto de seu povo, u m a gram ática m ais perfeita que no estado m ais cu lto” (Enciclopé­dia das ciências filosóficas, § 459, X , p. 347; trad. br., III, p .249).

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escolha daquele princípio.73 Mas ninguém se inquietava em saber o que é começar (das Anfängen als solches); não se percebia que o princípio, qualquer

que fosse seu nome, só podia ser um a representação indeterminada, portanto vazia - e só isso decide todas as disputas. Tinha-se consciência da necessi­dade de um a fundam entação, porém , com o era óbvio que esta últim a de­via ser um a representação que seria deixada de lado após ter desem penha­do seu papel, não se percebia que ela era inevitavelm ente vazia. Basta portanto prestar atenção à m aneira pela qual se articula a discursividade, para que desm orone o conteúdo das afirmações tradicionais: “o m ais sóli­do” era o m ais inconsistente, o “ Infinito” era finito ... basta se pôr à escu­ta do discurso, tal com o ele é "constituído” ,74 para ver as enunciações se inverterem .

N ão com preendem os H egel se, com ele, não recom eçarm os a nos es­pantar com essa longa indiferença à textura do discurso - se não o im agi­narm os com o um não-figurativo que repõe em causa o que até aqui passa­va pela essência do pictural ou com o um rom ancista que um dia se pergunta por que um romance, afinal, deveria comportar personagens, ou, ainda, comoo cientista que se põe a duvidar de que a ciência que ele projeta jam ais tenha de se haver, a exem plo das demais, com coisas dadas.75 Todos eles não convidam a falar m elhor ou a ver mais longe, mas a subm eter a uma nova ilum inação o discurso que, de início, eles acreditaram sim plesm ente retom ar e do qual assumiam, sem as formular, as decisões instauradoras. Subitam ente, tudo m uda quando se é obrigado a falar de outra m aneira

73 Cf. Logik [Lógica], A nfang der W issenschaft [Com eço da ciência] (IV, p .69-70). “ É preci­so saber que, em filosofia, se com eçarm os com D eus, o Ser, o Espaço , o Tem po etc., falam os de m aneira im ediata; isso m esm o é um conteúdo que, por su a natureza, é im e­diato e, inicialm ente, é som ente im ediato; e é preciso saber que tais determ inações, com o im ediatas, são ao m esm o tem po indeterm inadas em si” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .250).

74 Fenomenologia do espírito, II p .323-4; trad. fr., I, p .344-5; trad. br., I, p .260-1.75 “ Em lingüística, negam os em princípio que haja ob jetos dados, que haja co isas que con­

tinuem existindo quando se p a ssa de um a ordem de idéias a outra e se p o ssa , por conse­guinte, perm itir-se considerar coisas em diversas ordens, com o se estivessem dadas por si m esm as." C om entando e ssa s linhas de Sau ssure , Benveniste escreve: “Tais reflexões explicam por que Saussure ju lgava tão im portante m ostrar ao lingüista o que ele fa z . Q ueria fazer com que se com preendesse o erro em que se engajou a lingüística, a partir do m om ento em que ela estud a a língua com o um a co isa ... E preciso voltar ao s fundam en­tos, descobrir e sse ob jeto que é a linguagem , com o que nada poderia ser com parado” (Problèmes de linguistique, p .39-40). Em filosofia, Hegel, no lugar de rem eter para m ais tarde, com o Kant, a descrição das coisas (a m etafísica), nega que se trate de descrever co isas.

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para falar de m odo novo, ou seja, não ver mais que convenções podendo ser transgredidas sem sacrilégio nas cláusulas que, anteriorm ente, passa­vam - aliás, de m aneira obscura - com o lim ites de bom senso e de segu­rança. E se esse interdito, afinal, não fosse essencial? E se, ao contrário, contribuísse para mascarar o essencial daquilo que eu pratico? Se fosse isso, não seria preciso então, no interesse de m inha prática, reequilibrar o cam ­po de norm alidade no qual ela se inscreve? Para grande escândalo das pes­soas normais, sem dúvida. Mas é possível que não se possam encontrar equivalências éticas para as revoluções discursivas (as que concernem à essência do gênero no qual eu opero, a natureza da sintaxe ou da retórica que esse gênero im põe ou parece im por), a não ser naquilo que m ais per­feitam ente escandaliza as famílias. Enquanto isso, fora do escândalo, que risco se corre em mudar as regras do jogo? Se não alojarmos em cada texto de Hegel essa questão insolente, vem os mal o interesse que eles podem suscitar e, m uito bem, o tédio que eles propagam. Vem os mal, sobretudo, em que H egel seria outra coisa que um doutrinário a m ais - e, a partir daí, entre os mais extravagantes. Ora, H egel não se concebe com o um doutri­nário. E erroneam ente que a ele se em presta a segurança de sobrepujar as filosofias. Julgam -no então à m aneira pela qual ele próprio criticava a Reinhold, que, nas outras filosofias, via "nada mais que particularidades e exercícios prévios, graças aos quais, entretanto, terá sido preparado o ad­vento da tentativa coroada de sucesso” .76 A o contrário, se nos espantarm os com a atenção que Hegel presta ao m odo discursivo no qual ele trabalha, entrevem os que pretendeu abrir um cam inho transversal a todas as filoso­fias passadas. Pensam ento totalizador? Sim, mas porque fala deliberada­m ente em um discurso de que ele rem anejou as leis.

Parecerá m agro o benefício desse inquérito. Ele nos ensinou sim ples­m ente que a "solução” de uma dificuldade técnica quase não faz sentido enquanto, com o autor, as noções fixas que essa dificuldade põe em jogo não forem transformadas em “conteúdos” concretos. E tal transformação só se opera ao preço da destruição desses conceitos entendidos ou pré- entendidos com o representações previamente dadas - nunca ao preço da análi­se feita por um filósofo que pretendesse tê-las sob seu olhar. “É dessas representações que ainda está preenchida e carregada a consciência que se propõe diretam ente e incontinente em examinar a verdade; mas, por isso

76 Differenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p .42; trad. fr., p .85.

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m esm o, ela é de fato incapaz de fazer o que quer empreender.” 77 Parece- nos que essa advertência vale, em prim eiro lugar, para todo exam e da dialética hegeliana. Em preender descrevê-la ou com preendê-la com o um ajuste de conceitos dados é reconduzi-la, inevitavelm ente, àquela dialética ordenada por representações que Platão, segundo Hegel, raramente supe­rou.78 Se se tratasse apenas de uma análise mais fina ou de um a m anipula­ção mais hábil das representações, a dialética, seguram ente, prolongaria a M etafísica clássica - e seria óbvio que seu projeto era o de restaurar o Deus clássico em seu poder e dignidade, após o eclipse da Crítica. Estarão qui­tes, então, para achar paradoxal que o novo teólogo só tenha podido devol­ver seu crédito ao discurso sobre o divino recorrendo à ironia dos dialéticos gregos, quando faziam vacilar o discurso nascente sobre o Ser. Mas essa interpretação tão natural supõe, observem os, que a “ Finitude” tenha sido sim plesm ente, para Hegel, o nom e de um a doutrina ou de um conjunto de doutrinas que o filósofo teria rejeitado.79 Ora, para ele, tal interpretação designa certam ente outra coisa: não um atalho para estigmatizar, sob um nom e genérico, os pensadores que ele não pudesse suportar, mas a gramá­tica daquilo que foi, até então, o pensam ento ocidental. Por isso, já não se trata de renunciar a opiniões ou a “pensam entos” concernentes ao Eu, ao M undo e a Deus - m enos ainda de dar a volta em torno dessas opiniões e “pensam entos” fora de moda. Trata-se agora de passar de um teclado de expressão para outro. Daí, para o leitor, a necessidade de não perder de vista,

ao menos, duas exigências:

1) Não há filosofia hegeliana: a m utação proposta é dem asiado profunda para que essa denom inação não venha a traí-la.

E u d ire i q u e , q u a n d o se tr a ta d a f i lo so f ia c o m o ta l, n ã o p o d e se tr a ta r d e

m in h a f i lo so fia , m a s q u e to d a f i lo so f ia é a c o n c e p ç ã o d o A b s o lu to ; n ão , p o r ta n ­

to , d e u m a c o is a e s tr a n h a ; e q u e a c o n c e p ç ã o d o A b s o lu to é, d e v id o a e s s e

fa to , c o n c e p ç ã o d o A b s o lu to p o r s i m e s m o . (A H in r ic h s , v e rã o d e 1 8 1 9 )

7 7 Fenomenología do espírito, “ Introdução", II, p .72; trad. fr., I, p. 70; trad. br., I, p .67.78 Cf. Cesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .229-30.79 “Tam bém é possível, se quiserem , ver na crítica nada m ais que a eterna roda que, em

seu m ovim ento, rebaixa a cada instante u m a figura que a vaga con d uzira ao cum e; am enos que, na base do são en ten d im en to hum ano, seguro de si m esm o, não se esteja saciado com tal espetáculo objetivo do aparecim ento e do d esaparecim ento, consolado e con solidado no afastam ento em relação à filosofia, v isto que se tom a a filosofia - quan­do n ela o lim itado se perde - a priori, por m eio indutivo, com o u m a outra form a da lim itação” (Wesen der Ph. Kritik [A essên cia da crítica filosófica em geral], I, p .188).

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222 G É R A R D L E B R U N

2) A dialética não trará inform ações sobre conteúdos dados; ela é a deslocação (dislocation) de todas as representações dadas. Evitarem os, por­tanto, en dereçar-lhe objeções fundadas em representações. A um a crítica d outrinal precipitada, su b stitu ir-se-á um a leitura paciente. Escutem os H egel perguntar: “objetar? M as em nom e de quê? E que discurso então vocês acreditam que eu sustento para que suas ‘objeções’ tenham o direi­to de interrom pê-lo?”

E preciso acrescentar esta observação. Supondo que as objeções endere­

çadas ao saber especulativo m ereçam o nom e de objeções (esse nom e, já indi­

gente, não convém sequer a um a idéia m aldosa no ar), elas estão diretam ente

contidas e tratadas no interior do Sistem a. Se as objeções estão realm ente

ligadas à coisa contra a qual são dirigidas, são determ inações unilaterais que,

de um lado, são produzidas (com o indicado abaixo) pela falsificação do fato

especulativo contra o qual se faz um a censura, e que, de outro lado, se levan­

tam com o afirm ações contra esse fato. Essas determ inações unilaterais, na

m edida em que estão ligadas à coisa, são m om entos de seu Conceito; advieram,

portanto, quando da exposição deste últim o, em seu lugar m om entâneo, e a

dialética im anente do Conceito deve m ostrar a sua negação. É essa negação

que, posta com o objeção, tom a a form a de um a refutação. N a m edida em que

hom ens que refletem e confiam em sua reflexão não têm a paciência de penetrar

na apresentação dialética do Conceito - quando ali reconheceriam o conteúdo de

sua objeção e ali estim ariam o seu valor - , m as preferem expor essa determ i­

nação com o proveniente de seu entendim ento subjetivo, o trabalho do autor

[G õschel] que con sistiu em recolher essas determ inações com o objeções e

tratá-las com o tais, esse trabalho é popular e bem digno de gratidão. A C iên ­

cia poderia exigir que um trabalho desse tipo fosse supérfluo, visto que ele só

é suscitado pela falta de cultura do pensam ento e pela im paciência própria à

frivolidade de um pensam ento insuficientem ente form ado. Mas não é preciso

negligenciar o fato de que tais pessoas só gostem do que lhes passa pela cabe­

ça e prefiram essa contingência de seu entendim ento ao encam inham ento o b­

jetivo da C iência e da necessidade; não tom aram consciência, com efeito, de

que as determ inações que lhe parecem pulular em seu pensam ento subjetivo

particular foram levadas adiante pela natureza do C on ceito e, nesta, elas p ró­

prias já devem estar presentes - não, decerto, num lugar contingente, mas

com consciência e segundo a sua necessidade.80

80 Goschels Aphorism en [Sobre os aforism as de G õschel], X X , p .305.

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A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O 223

Se a filosofia de H egel rom peu todo vínculo com a Representação, ela não é mais um a doutrina. E, se ela não é mais uma doutrina, não há nada a lhe objetar. Apenas a uma doutrina é que se tem o direito de endereçar objeções. Mas um discurso, só se pode tom á-lo de em préstim o, passear nele ou passear em outro lugar. Não se objeta nada a um discurso, não mais que a um cam inho ou a um a paisagem.

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V

A DIALÉTICA NOS LIMITES DA SIMPLES RAZÃO

1

Cada uma das asserções do filósofo dogm ático aferra-se ao ser. Forta­lecido por essa segurança, o dogm ático dirige sua atenção à verdade que ele enuncia, nunca à m aneira pela qual a enuncia. “N ão tenho o costum e” , dizia Descartes, “de disputar sobre as palavras” . Ora, houve outra maneira de tratar a palavra, não a tom ando com o sim ples intercessora, outro olhar sobre a linguagem , distinto do desdenhoso olhar sobre ela lançado pelo século XVII.

A ristóteles presta hom enagem a Platão por ter sido o prim eiro a prati­car a oxé\|/iç év t o ï ç Xóyoiç, “pois seus predecessores não tinham nenhum conhecim ento da dialética” .1 Testem unha disso, Sócrates: seu único objeti­vo - aqui seguim os o com entário fornecido por Aubenque acerca da Métaphy­

sique [Metafísica] (M 1078 b 25) - era a determ inação da essência, e ele não

1 A ristóteles, Métaphysique [M etafísica], A 987 b 32.

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2 2 6 G É R A R D L E B R U N

considerava exam inar os contrários sem partir de sua definição previam en­te posta. “Sócrates buscava a essência, e isso era lógico, pois buscava silogizar, e a essência é o princípio do silogism o. A força dialética não era tal que se pudessem considerar os contrários, m esm o independentem ente da essên­c ia ” .2 Tais in d icaçõe s de A r is tó te le s reco rtam o in íc io do Parménide

[Parmênides] de Platão. Por um lado, Parmênides felicita o jovem Sócrates por ter com preendido que, na falta de pôr as Formas definidas, deixa-se o discurso na anarquia, fazendo desm oronar a δύναμις τοο διαλέγεσθαι.3 Mas Sócrates, por outro lado, se deixou arrastar por sua im petuosidade: “ cedo demais e sem treino prévio, tentou definir o Belo, o Justo, o Bem e todas as formas, um a a um a” . A ntes de tornar o discurso inabalável, não valeria a pena confiar-se a ele para experim entar os seus recursos? Q ue Sócrates comece, portanto, inspirando-se em Zenão; que rem eta para mais tarde o estudo das Formas e se entregue a outro exercício. Sem nos entenderm os sobre o que é o Uno, vam os pôr que o Uno é, visto que ele não é, e exam i­narem os as conseqüências que dali decorrem, para ele e para os O utros. A dialética então nascente se exerce aquém do m om ento da afirmação, do δοξάζειν; deliberadam ente, retorna ao διαλέγεσθαι que precedera a este ú lti­mo, ao discurso de si, por interrogações e respostas, que o “opinar” viera interromper.4 Sem dúvida, isso era apenas um lampejo, e a dialética elabo­rada na República não terá mais grande coisa a ver com esse jogo despreocu­pado: ela então se confunde com o saber e sua função aporética passa para segundo plano. Se os Topiques [Tópicos] de Aristóteles dão-nos o direito de deixar que se engendrem sobre o m esm o tem a os argum entos pró e contra, este é um terreno neutro, à margem do discurso sobre o Ser.5 A dialética platônica está alistada a serviço da episteme. Passado o lim iar do δοξάζειν, já não se trata de pôr, como no Parménide [Parmênides], que o Uno está con­juntam ente nele e fora dele, im óvel e m ovido: Sócrates desafia Teeteto a jam ais acreditar, quer na loucura, quer no sonho, que dois sejam quatro, que um boi seja um cavalo, que os contrários se sobreponham .6 A dialética desenfreada do Parménide [Parmênides] não é mais que um pesadelo ou a ficção de um discurso que ainda não ordenara a predicação. No entanto,

2 Ibidem , M 1078 b 25. Cf. Aubenque, Le Problème de l ’Être chez A ristote, p .293. Sobre a crítica do “bom se n so ” que Sócrates dirigia contra os so fistas, cf. Logik [Lógica], V, p .338.

3 Platão, Parménide [Parm ênides], 135 c.4 Platão, Théétètè [Teeteto], 190 a.

5 Cf. A ristóteles, Topiques [Tópicos], VIII, 163 b; Rhéto. [Retórica], 1335 a.6 Platão, Théétètè [Teeteto]; 190 fa.

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A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O 2 2 7

o b s e r v a H e g e l, r e s ta a lg o d e ss e in te rm é d io p o r m e io d o p la to n is m o . E m

c e rta s p a s s a g e n s d o Sophiste [S o fis ta ] e do Philèbe [F ile b o ], P la tã o s u b m e te u

a e x a m e as p ró p ria s e s s e n c ia lid a d e s , s e m se p re o c u p a r e m re la c io n á -la s a

u m p r o to c o lo d e c o e r ê n c ia p r e e s ta b e le c id o . “A in v e s t ig a ç ã o d e P la tã o va i

a té o s p e n s a m e n to s p u ro s e a c o n s id e ra ç ã o d o s p e n s a m e n to s p u ro s e m si e

p a ra si te m p o r n o m e a d ia lé t ic a ." 7 P o is é a m e s m a c o is a l ib e r ta r a l in g u a ­

g e m d o p r e c o n c e ito d o ente e d e ix a r a p arecer, p o r si m e s m o s , “os p e n s a ­

m e n to s p u r o s ” . D a í a a d m ira çã o q u e te m H e g e l p e lo Parménide [P a rm én id e s];

d a í a d ig n id a d e q u e e le r e c o n h e c e n o c e tic is m o a n tig o .

O c e t ic is m o é d ir ig id o c o n tr a o p e n s a m e n to d e E n te n d im e n to q u e d e ix a

v a le r c o m o ú lt im a s , c o m o e n te s , a s d ife re n ç a s d e te rm in a d a s . O p r ó p r io C o n ­

c e ito ló g ic o é ig u a lm e n te e s s a d ia lé t ic a ; p o is o v e rd a d e iro c o n h e c im e n to d a

Id é ia é e s s a n e g a t iv id a d e q u e , n o c e t ic ism o , e s t á e m c a s a .s

P o r q u e e s s a h o m e n a g e m a Z e n ã o e a S e x to E m p ír ic o ? T eria m e le s ,

m e lh o r q u e o u tro s , e n tr e v is to m a is te s e s h e g e lia n a s ? T ra ta -se d e o u tr a c o i­

sa: s e u m é rito , a in d a h o je , é to rn a r p o s s ív e l u m r e c u o e m re la ç ã o ao e m p r e ­

g o n a tu ra l d o s logoi. A oxéxjnç év xoTç Xóyoiç m o d ific a , c o m e fe ito , a im a g e m

d a lin g u a g e m d e q u e v iv e o d is c u r s o in g ê n u o e, p o r in te r m é d io d e le , a f i lo ­

s o fia d o g m á tic a . E la , a s s u m e in ic ia lm e n te a ta r e fa d e r e c o lh e r as s ig n if ic a ­

çõ e s q u e o d o g m a tis m o se re c u s a a te m a tiz a r - to m a r o c o n tr a p é de D e s c a r ­

te s , q u a n d o e s te a ss e g u ra : “ N ã o c re io q u e ja m a is te n h a h a v id o a lg u é m tão

e s tú p id o p a ra te r n e c e s s id a d e d e a p re n d e r o q u e é a e x is tê n c ia , a n te s de

p o d e r c o n c lu ir e a firm a r q u e e le e x is t e ” .9 E u d e c la ro q u e e s ta c o is a é una,

q u e e la existe: p a ra o s c lá s s ic o s , o q u e q u e re m d iz e r “ u n id a d e ” , “ e x is tê n c ia ”

“ n o s é n e c e s s a r ia m e n te re p re s e n ta d o p o r id é ia s ” 10 q u e e stã o , p a ra o s c o n ­

te ú d o s q u e n e la s se d ã o , c o m o o s s ig n o s o u o s so n s p a ra as id é ia s q u e aí a

im a g in a ç ã o a n e x a a rb itra r ia m e n te . E m fa v o r d e s s a a n a lo g ia , a p a r tilh a d a

lin g u a g e m e d o d is c u r s o ( filo s ó fic o ) p o d e se r c o n s u m a d a e m p le n a lu z do

dia: a li, o s ig n o o p a co , a q u i, o s ig n o tra n s p a re n te ; a li, a te n ç ã o ao s im p le s

s e n t id o d a p a la v ra (c o n fo rm e o u s o ) , a q u i, c o n s u lta s ile n c io s a d a id é ia . H á

q u e d a n o v e r b a lis m o to d a s as v e z e s e m q u e se c o n fu n d e m e ss a s d u a s o r­

d e n s , q u e se p r e te n d e e s c la re c e r o c o n te ú d o d o d is c u r s o p e la a n á lise d as

7 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .227; cf. Logik [Lógica], V, p .336.8 Ibidem , XVIIII, p.530-40.9 D escartes, Recherche de la Vérité, Éd. Pléiade, p .899.

10 Cf. D escartes, Notae in programma, p .175 (Éd. Lew is). Logique de Port-Royal, p .44-5.

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2 2 8 G É R A R D L E B R U N

significações aceites, com preender a coisa dada na idéia a partir da significa­

ção que o uso atrelou à palavra. Pelo contrário, estam os unidos à Razão, quando tem os acesso a esse campo universal em que não há m ais locutores que com unicam seu pensam ento, m estres que com unicam seu saber ao alu­no - quando a inteligibilidade das noções é tal, que pouco im portam as palavras e quem as estiver pronunciando. “Os hom ens cham ados nossos m estres são apenas nossos m onitores” , escrevia M alebranche, e Descartes pergunta a Beeckmann: “ Você jam ais m e ouviu m e vangloriar de ter ensina­do algo a alguém ?” . Bem tola vanglória, com efeito, se o Verbo nunca se fez letra: em seu anonim ato límpido, não há mais nem ouvintes nem locutores. N o que todos os diálogos do século XVII são tributários do De magistro de Santo Agostinho: por si mesmas, as palavras são vazias de sentido:

dispondo as coisas da melhor maneira, as palavras nos convidam a buscar os objetos, mas elas não os apresentam de modo tal que os conhecêssemos ... Ao ouvirmos as palavras, sequer as aprendemos. Pois, se as conhecemos, não as aprendemos; se não as conhecemos, é preciso esperar que tenhamos capta­do sua significação.11

O essencial é, portanto, a “captação” ou a “ inspeção” original da idéia. N essa operação, o dogm atism o é bastante avaro em porm enores. Ele não se dem ora no sentido dos conceitos fundam entais (“unidade” , “ identida­de” , “ diferença” ...) . Por que, aliás, se preocuparia com esses m odos de pen­sar “que nada acrescentam ao ser” ?12 Em seu afã de recensear as coisas que se oferecem ao intuitus, o dogm atism o atravessa, sem nelas se deter, “as coisas ditas” .13 Kant excluirá das categorias a unidade (qualitativa), a verda­

11 Santo A g o stin h o , D e M agistro, X, p .33.12 E spinosa, Pensées métaphysiques, Ed. Plêiade, p .3 16 .13 Exem plo: a recensão das naturezas sim ples, tal com o Lam bert a exp õe a K ant (carta de

3 /2/1766, A k , X, p .62ss.). Em m etafísica, é possível chegar às noções sim ples que "se deixam m uito bem pensar fora dos num erosos conceitos de relações ['Verhãltnissbegriffen] que ali se apresentam ” . O erro dos filósofos, porém , foi partir de definições. Ora, estas, puram ente analíticas, não são de nenhum a utilidade: contrariam ente ao que pen sa W olff, o im portante, em Euclides, são os axiom as e os postulados (cf. Neues Organon. Aletheiologie,

§ 124). E o que os filósofos devem com preender. “Com efeito, eu via que por toda a parte em que os m atem áticos conseguiam abrir um cam po novo, o que os filósofos acreditavam ter lavrado, não som ente eles devem virar tudo no avesso, m as tam bém tudo conduzir a algo de tão sim ples e, por assim dizer, tão ingênuo [einfaltig], que o filosófico se torna inteiram ente inútil e quase desprezível ... Euclides não tira dos E lem entos n em definição do espaço, nem definição da geom etria, m as com eça pelas linhas, pelos ângulos, isto é, pelo sim ples nas dim ensões do espaço. Em m ecânica, nada se faz de essencial partindo da

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A P A C I E N C I A D O C O N C E I T O 2 2 9

de, a perfeição14 - outro exem plo da m esm a desenvoltura. Todavia, observa Hegel, Kant deu-se conta de haver om itido algo entre o sensível e os con­ceitos puros, tanto mais que "ainda acrescentou à Lógica transcendental, ou doutrina do Entendim ento, um capítulo sobre os conceitos da Reflexão, região interm ediária entre a intuição e o Entendim ento, entre o ser e o Conceito” .15 Tais determinações, porém, teriam merecido mais que um apên­dice: elas são a verdade secreta do discurso, o peso do irrefletido que o cauciona à nossa revelia.

O Espírito vive por toda a parte e suas form as se exprim em em nossa

língua popular im ediata. N o falar cotidiano, essas formas aparecem , revestidas

em sim ples concretos, por exem plo: a árvore é verde. Para a Representação, ár­

vore e verde são o que predom ina. N a vida corrente, não refletim os sobre o é,

não fazem os desse ser puro nosso objeto, com o o faz a filosofia. Mas esse ser

está presente e exp resso .16

Essa despreocupação da vida corrente é tam bém a do pensam ento dogm ático. E nesse ponto é que a Skepsis entra em cena. D eslocando o in­teresse daquilo que é enunciado para aquilo que ê expresso, ela se dem ora na significação das palavras utilizadas; antes de ir diretam ente ao encontro do que designam , ela se coloca na juntura do dizer e do dito. D eixando de pensar sobre a coisa, pensa a coisa tal com o ela está presente em virtude do fato de que eu a digo. Entendam os por isso: a essencialidade enquanto ela

defin ição do m ovim ento, m as logo se considera o que se apresenta [was dabei vorkommt], a saber: corpo, direção, velocidade, tem po e espaço; com param -se todas as coisas entre si para encontrar p rin cíp ios” . Lam bert critica, portanto, u m a análise com o a de C rusius, que regride da coisa dada às essências con stitu in tes durch Zergliederung des Ganzen. O ra, é para o lado da investigação das essências que K ant se orienta. A s Recherches sur la clarté [Investigações sobre a claridade] (1764 ), nesse ponto, anunciam a Prim eira Seção da "D iscip lin a da R azão p u ra” . A filosofia não pode adotar o recorte da m atem ática: com o ela busca a essência, deve partir do todo concreto dado (o espaço no corpo) e não das n aturezas sim ples p ostas (espaço, corpo). “Q uan do quero d izer o que é o espaço ..., não se trata do con h ecim en to das coisas no espaço, m as do próprio esp aço” (Rech. Clarté [Investigações sobre a clareza], A k , I, p. 380). A ssim , com a partilh a filosofía-m atem áti­ca, a m atem ática está votad a ao con h ecim en to represen tativo dos con teúd os, ao passo q u e a filosofia se o rien ta para a análise do sen tido dos con ceitos “bem co n h ecid o s” . D êem u m triângulo ao filósofo: nada fará com isso, e, no lugar de "co n stru ir” , vai se con tentar em tagarelar. Em com pensação, porém , p ergun tem ao m atem ático o que é o espaço: ele n em sequ er verá a utilidade d essa investigação.

14 Kant, K RV [C rítica da razão pura], B, p .7-8.15 Logik [Lógica], V, p .18.16 Dokumente [D ocum entos sobre o desenvolvim ento de H egel], Éd. H offm eister, p .339-40.

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230 G É R A R D L E B R U N

é inextricavelm ente a significação do ser e a palavra que pronuncio. À s ca­tegorias sobre cujo sentido se estava de acordo sem se preocupar em circunscrevê-lo, tam anha sua clareza para todos, a Skepsis lhes devolve sua espessura de palavras providas de um sentido determ inado ou por deter­minar. Contrariam ente ao dogm atism o, a Skepsis detém -se nas palavras cuja consciência natural supunha a transparência de direito.

Em n ossa consciência habitual, m isturam os os estados afetivos, as intui-

ções, as representações com idéias (em toda frase cujo conteúdo é inteira­

m ente sensível, com o esta folha é verde, encontram os categorias com o ser, indi­

vidualidade). O utra coisa é tom ar por objeto as próprias idéias, sem m istu ra .17

D e direito, certam ente, tais idéias são objetos da consciência, mas en­tão infalivelm ente deform adas pelas determ inações sensíveis às quais estão associadas: “o que é em si uma m esm a coisa pode aparecer com o um con­teúdo diferente” .18 Para nos preservar dessa ilusão, o senso com um nos convoca a ... refletir!19 Porém, essa “reflexão” superficial não vai longe. Já é im possível captar a essência de um objeto concreto com o sim ples exame de sua exterioridade empírica; no máxim o, assinala-se a perm anência de um a de suas propriedades no tem po ou as marcas contingentes que o dis­tinguem de um a coisa de outra espécie.20 Ainda m enos descobrir-se-á o sentido pleno do verbo “ é ” por m eio da “reflexão” sobre o ju ízo no qual ele é em pregado. A proposição a árvore ê verde nunca terá nada m ais a m e ensi­nar que a cor daquela árvore. Se há um a tom ada de consciência possível daquilo que é dito com o tal, ela não está ao alcance de um a inspeção do espí­rito, por mais bem -intencionada que seja, mas de uma modificação de ati­tude. Tanto quanto Husserl, H egel pensa que os conceitos categoriais nas­cem pelo exam e do que efetuo enquanto julgo; só “aparecem ” quando deixo de em pregá-los para olhar ao que eles visam por si m esm os, ao fazer abstra-

17 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 53, VIII, p .45 ; trad. br., I, p.42.18 Ibidem.19 " . . . pode-se recordar um outro velho preconceito, segundo o qual, para experim entar o

que há de verdadeiro nos ob jetos e acontecim entos, com o tam bém n os estad os afetivos, intuições, opiniões, representações etc., é preciso refletir [Nachdenken] ” (Enciclopédia das

ciências filosóficas, § 5, VIII, p .46; trad. br., I, p .43 ). Sobre o psico logism o que confere à filosofia a tarefa "de captar em piricam ente e analisar os fatos da consciência com o fatos, com o são d ad o s", cf. Ibidem , § 444, X, p .305; trad. br., III, p .218.

20 Cf. Logik [Lógica], V, p .293-4. Cf. sobre o arbítrio na definição em pírica, H usserl, Logische U nt., IV-', § 3.

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A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O 2 3 1

Ção da objetividade que eles organizam. Originalm ente, o ceticism o nada m ais é que essa reativação do sentido por m eio de um a m odificação de atitude.

N essa proposição, um a consciência sem cultura costum a ignorar o que

ainda está presente fora do conteúdo [sensível], a form a sob a qual este se

apresenta. Seja o juízo: esta coisa é una. [N esse juízo] só tem os de nos haver

com o U no e com a Coisa, não com o fato de que haja aqui um determ inado,

um A lgo com o qual relacionar o Uno. Ora, essa relação é o essencial e a form a

do determ inado; é graças a ela que este singular é posto com o constituindo

unidade com o U niversal, que é diferente dele. E esse elem ento lógico, isto é,

o essencial, que o ceticism o traz à consciência; a ele é que se liga ... N ão dispu­

ta sobre a coisa, se ela é assim ou assado, mas capta a essência do expresso,

atém -se ao princípio da afirm ação. N ão se ocupa em dar a coisa, mas em saber

se a coisa m esm a é A lg o ... E assim que se penetra na essência.21

A ssim compreendido, o ceticism o abre outra dim ensão do discurso dito filosófico - o que lhe valerá seu renom e de pensam ento m enor ou fútil. Ele já possui o caráter paradoxal do pensam ento especulativo, no sentido em que o paradoxo exprime, sem advertir, um m odo de ver inédito, com o auxílio das próprias palavras de que vinha se servindo a m aneira de ver que ele supera. A ssim Zenão, quando denega o ser ao m ovim ento. Os zom ba­dores acreditam refutá-lo caminhando, com o se ele nos convidasse a não crer em nossos olhos, contra toda “ evidência” . Mas não é aí que se encon­tra a questão. Zenão entende fazer que reflitam os sobre o direito que to ­m am os quando atribuím os “ser” a “m ovim ento"; pretende apenas criticar o poder am bíguo de um verbo cujo campo de sentido perm anece incerto. Ver nele apenas um mau brincalhão é, portanto, entendê-lo no nível da linguagem “dóxica” que ele está justam ente contestando.

Q ue o m ovim ento não é, não é preciso entender isso à m aneira pela qual

dizem os: existem elefantes, não existem unicórnios. Q ue haja m ovim ento, isso é a

aparência que não se questiona: para a certeza sensível, há m ovim ento com o

há elefantes. N ão ocorreu ao espírito de Zenão negar o m ovim ento nesse sen­

tido. A questão concerne antes à sua verdade: ora, o m ovim ento é não-verda-

21 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .578.

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232 G É R A R D L E B R U N

deiro, pois há contradição. Ele quis dizer com isso que nenhum ser verdadeiro

adm ite-o.22

Quando Hegel escreve: “ Há tão pouco um Falso quanto há um M al” , som os tentados a lhe fazer dizer: Tudo é verdadeiro e tudo é bem. É preciso entender: o “ Verdadeiro” e o “ Falso” , dos quais escrevo aqui os nom es, são, com o essências separadas, os produtos de um pensam ento ingênuo. N ão se abole, portanto, nem um nem outro, mas a m aneira pela qual o senso com um os determ ina espontaneam ente. Vamos traduzir: “O Mal é em si a m esm a coisa que o Bem ” , essa crítica do pensam ento do Entendi­m ento se torna um a absurda asserção de Entendim ento.

D eve-se considerar essa enunciação com o um a m aneira não-espiritual

[ungeistige Weise] de se exprimir, que deve necessariam ente suscitar m al-en-

tendidos. O M al sendo a mesma coisa que o Bem, então, justam ente, o M al já

não é M al e o Bem já não é Bem, mas am bos são antes suprim idos: o M al em

geral, o ser-para-si concentrado em si m esm o - e o Bem , o Sim ples privado do

Si.23

E claro, nenhum a nova escansão, nenhum a distorção da sintaxe pode­ria indicar que o discurso, agora, recua em relação às significações de que ele ainda parece falar ingenuam ente. Não podem os nos im pedir de ler es­sas palavras usuais pensando que o autor - visto que é filósofo - sim ples­m ente as carregou de um a representação nova; não nos ocorre ao espírito que essa linguagem poderia não ser mais que o redobro da Representação, que poderia não estar mais destinada a dizer melhor, ou com m aior preci­são, conteúdos representáveis. Isso, a consciência natural não consegue se­quer imaginar.

Para a consciência, é com o se, retirando-lhe a Representação, lhe retirás­

sem os o solo natal sobre o qual ela se sente sólida. Q uando se acha colocada

na pura região dos conceitos, ela não sabe m ais onde está no mundo.24

Com o essa consciência m undana adivinharia que os conceitos, uma vez despojados de sua estabilidade, não só não são mais os m esm os con-

22 Ibidem, XVII, p .329.23 Fenomenología do espírito, p .592 ; trad, fr., Hyppolito, II, p .282 ; trad, br., II, p .20024 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 43, VIII, p .45; trad, br., I, p .43.

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ceitos, porém, m ais que isso, não são sequer conteúdos com o aos que as palavras visavam há pouco? E por isso que a dialética parece falar a lingua­gem m undana que, no entanto, com passadam ente, ela destrói: a vaidade das palavras bem conhecidas explode, ao passo que o leitor se apega mais do que nunca ao sentido delas, que ele acredita m ais ou m enos claro e distinto. “A verdadeira dialética” , escreve Guéroult, “tende ... a recolher as diferenças em um a unidade superior que se põe com o antecedente, de di­reito, ao passo que, de fato, aparece com o posterior” .25

Essa ironia já está presente na Skepsis grega. De m aneira invencível, com preende-se esta últim a com o se quem a praticasse só fizesse negar o que nós afirmamos, de m aneira que é im possível acreditar inteiram ente na boa-fé desse obstinado. “ Eu nunca neguei” , escreve Descartes, “ que os pró­prios céticos, enquanto concebessem claram ente um a verdade, nela não se perm itiam acreditar, de m odo que só eram céticos no nome, e talvez até só persistissem na heresia em que estavam, de duvidar de todas as coisas para não abrir m ão de sua resolução e para não parecerem inconstantes” .26 E que a dúvida cética, para ele, ainda só põe em questão tal “verdade” ou o conjunto das “verdades” . Hegel pensa que a Skepsis suspende nossa relação confiante com o Verdadeiro, atinge a noção tão “transcendentalm ente cla­ra” de Verdade, de que Descartes jam ais duvidara.

A qui não ocorre o que se costum a entender por dúvida: um vacilar nessa

ou naquela pretensa verdade, seguido de um conveniente desvanescer-de-novo

da dúvida e um regresso àquela verdade, de forma que, no fim, a Coisa seja toma­

da como era antes. O ceticism o antigo não duvida: ele tem certeza da não-verda-

de. Ele não erra aqui e ali com pensam entos para os quais reservaria a p ossib i­

lid a d e q u e ain d a fo sse m v e rd a d e iro s, m as d e m o n stra com seg u ra n ça a

não-verdade. O u ainda, para ele, sua dúvida é a sua certeza; não tem a inten­

ção de atingir a verdade, não deixa a questão na indecisão, m as é pura e sim ­

ples decisão e cum pre com pletam ente a sua tarefa. Para ele, porém , o que é

decidido não é a verdade, m as a certeza de si m esm o. Ele é repouso, fixidez do

espírito em si - e sem tristeza.27

25 Guéroult, Malebranche, III, p .141.26 C arta de D escartes a H yperaspistes, p .55, Ed. Lewis.27 Fenomenología do espírito, “Introdução” ; trad. fr., I, p .69; trad. br., I, p .66 . Cf. tam bém Gesch.

Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .542. "Skepsis provém de o x e u t e i v : investigar, ex­plorar. N ão se deve traduzir axéyiç por doutrina da dúvida ou tendência para a dúvida. O ceticism o não é um a dúvida. A dúvida é ju stam en te o contrário do repouso que é o

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2

Assim , com preende-se que o ceticism o surja, na Phénoménologie [Feno­m enología], com o a prim eira figura lúcida na qual a consciência faz, de sua “operação efetiva", seu único objeto.28 A ntes de criticar desordenadam ente as afirmações dogm áticas, a Skepsis marca com nulidade a atitude dogmática. A o tem atizar as determ inações do “ conteúdo”, o dialético antigo faz m uito mais que explorar de outra m aneira um cam po que o dogm ático teria explo­rado; ele m ostra o quanto era abstrata e irrefletida a afirmação global do Ser que este últim o efetuava. E isso que agora precisam os compreender. Até aqui a Skepsis apareceu-nos com o um a “redução” , antes de sua época, e urna explicitação de significações que a linguagem dogm ática esquecia em seu rastro. Ora, tam bém essa leitura de essências é necessariam ente polêmica.

‘A lém de a dialética aparecer habitualm ente com o algo de contingen­te, tem -se o costum e de lhe dar esta forma mais precisa: de qualquer obje­to (mundo, m ovim ento, tem po), ela m ostraria que qualquer determ inação lhe convém .” 29 Ora, a instabilidade das essências que ali se desvela é, ao contrário, indício de que estas últim as foram atingidas em si m esm as e de que se soube reencontrar suas relações efetivas. Toda noção dada (espaço, tem po, m ovim ento) envolve essências que a análise distingue. Mas essa m esm a distinção inclina-nos a pensar que tais determ inações são dispos­tas em um espaço onde eu posso percorrê-las à m inha maneira. Se então fala-se de "determ inações diferentes”, essa diferença perm anece algo de abs­trato: enquanto os dois termos distintos são pensados, um aqui, outro ali, é na realidade a sua indiferença de fundo que se afirma (cada term o é um

conceito, cada term o é idêntico a si etc.). A diferenciação é, portanto, efetua­da com base em um a hom ogeneidade fundam ental. Cada essência existe, de início. E, em seguida, ela se acha com o dessem elhante da outra. Nela, p o ­rém, essa dessem elhança não está inscrita. E uma propriedade entre outras: a coisa não tem presença porque ela é dessem elhante e apenas enquanto ela é dessem elhante. Ora, enquanto dois elem entos não diferem senão por seu lugar ou por seu núm ero, a diferença entre ambos perm anece “ subjetiva” .

resu ltado do ceticism o. Zw eifel provém de zw ei, é um a ida e vinda entre dois e entre vários; não se repousa nem em um nem em outro - e deve-se no entanto repousar em um e em outro ... O ceticism o, ao contrário, é indiferente a um e a outro; tal é o ponto de v ista cético da ataraxia" (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .552-3).

28 Fenomenologia do espírito, trad. fr., I, p .173; trad. br., I, p .138.29 Logik [Lógica], V, p .338.

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A i está urna das marcas características da falta de rigor da Representação: deixar coexistirem os “ diferentes” , evitar as conseqüências rigorosas do principio dos indiscerníveis e pôr “ duas coisas” (ao m enos é o que se diz) indiscerníveis, ignorando que isso é “pôr a m esm a coisa sob dois nom es” . “ Se duas coisas são iguais ou desiguais, isso é tão-só o efeito de um a com ­paração que fazem os e incide em nós ... Ora, a diferença deve ser diferença nela m esm a e não por m eio de nossa comparação; é nele m esm o que o sujeito deve possuir essa determ inação própria ... Se duas coisas diferem sim plesm ente pelo fato de que são duas, cada um a é uma, mas duas não constitui em si nenhum a relação. E a diferença determ inada em si que é a coisa capital.”30

N a falta de atenção para com isso, deixam -se os termos “ diferentes”; chega-se m esm o a conciliá-los, se parecem incom patíveis. E nesse ponto que intervém o dialético ou o cético. Tal com o Pascal perante os jesuítas, ele im pede toda concessão e m ostra que é im possível pensar rigorosam ente, em conjunto e sem contradição, as determ inações separadas (Hegel acrescen­ta: enquanto separadas31). E esse tipo de im possibilidade que Zenão dem ons­trava: por isso, seus críticos sempre procuraram provar a possibilidade de pensar, conjuntam ente, term os diferentes. A ssim Espinosa acum ulando as “distinções” para arruinar o dilem a de Zenão: ou um corpo se m ove no lugar em que ele está ou se m ove no lugar em que não está - e, em am bos os casos, o M ovim ento não faz sentido.32 Responder-se-á que o corpo não se m ove em um lugar, pois então é m uito fácil reduzir o m ovim ento ao repou­so, mas, sim, de um lugar a outro. “Zenão perguntará então: onde é que ele existiu durante o tem po em que se m ovia?” Essa questão, porém, é am bí­gua. Onde é que ele existiu pode significar: em que lugar se manteve ele? (respos­ta: em nenhum lugar), ou, então: que lugar ele abandonou? (resposta: todos os lugares do espaço percorrido).

Z enão ainda responderá se o m óbil pôde, num m esm o instante do tem ­

po, ocupar um lugar e abandoná-lo? R esponderem os p or m eio desta nova dis­

tinção: se, por instante do tem po, você quer dizer um tem po m enor que todo

tem po dado, você pede um a coisa incom preensível ... nunca se poderá assina­

lar tem po tão pequeno que, m esm o supondo-o indefinidam ente m ais curto,

30 Logik [Lógica], IV, p .549. Cf. tam bém Gesch. Philo. (H istória da filosofia), XIX, p .458.31 Pascal, Provinciales, Éd. Plêiade, p .717-8; p .729.32 Esp inosa, Príncipes, Éd. Plêiade, p.264.

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um corpo não possa, durante esse tem po, tanto ocupar quanto abandonar um

lugar.

Inversam ente, H egel pensa que o m érito de Zenão foi m ostrar em que incom patibilidades se tropeça quando form ulou os conceitos com o separa­dos. Se, por um lado, ponho a continuidade do espaço (argum entos da D icotom ia e de A quiles), o m ovim ento é im possível; se, por outro, com po­nho o espaço com indivisíveis (argumentos da Flecha e do Estádio), o m o ­vim ento é igualm ente im possível. Conclusão implícita: portanto, estou er­rado ao pensar separadam ente cada conceito. Zenão trouxe à luz “a unidade negativa” dos conceitos de “continuidade” e de “ discrição” - ao m esm o tem ­po, sua verdadeira relação e sua verdadeira diferença. Essa diferença não é exterior aos termos, a eles é acrescida, representável por m eio de um inter­valo que os separaria: ela quer dizer que cada oposto não ganha todo o seu sentido senão junto a seu Outro, e som ente aí. “Continuidade” , “discrição” são apenas palavras, enquanto, na transgressão perpétua dessas significa­ções, não foram reapreendidas as essências que as palavras haviam fixado. “ E um vai-e-vém sem fim, mas que está inscrito no Conceito - a saída de um a das determ inações opostas na direção da outra, da continuidade à negatividade, da negatividade à continuidade.” 33 Esse deslocam ento é o quinhão que paga o pensam ento finito por ter acreditado que, barateando as significações, estaria quite com elas. E o objetivo do dialético é m ostrar que os próprios conceitos resistem ao ordenam ento que o pensam ento finito lhes impôs. Daí o perpétuo vaivém que ainda se encontra na análise feita por Sexto Em pírico sobre noções geométricas.

Sexto reprova a m atem ática por ela dizer: há um ponto, um espaço, um a

linha, um a superfície, um a unidade etc. A borda todas as determ inações das

ciências e m ostra nelas o O utro de si m esm as. Por exem plo, dam os ingenua­

m ente crédito ao Ponto e ao Espaço. O Ponto é um espaço e é um sim ples no

Espaço, ele não tem nenhum a dim ensão; porém , se ele não tem nenhum a d i­

m ensão, então ele não está no Espaço. Enquanto a unidade for espacial, nós a

denom inam os Ponto; mas, se isso deve ter um sentido, ela deve ser espacial e,

v isto que é espacial, ter um a dim ensão - mas então já não é um Ponto. O

Ponto é a negação do espaço enquanto é o seu lim ite e, com o lim ite, concerne

ao Espaço; essa negação traz, portanto, um a contribuição ao Espaço, ela pró­

33 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .332.

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pria é espacial. Ela é assim um negativo em si, m as, com isso, é tam bém um

dialético em si.34

Há igualm ente um m odo de falar do A lto e do Baixo, sem pensá-los verdadeiram ente, ao pô-los com o “coisas refletidas em si, fora de sua rela­ção; mas então são apenas lugares em geral” .35 Basta voltar à sua significa­ção (procurar “saber o que se d iz”), para reencontrá-los em seu ponto de discernibilidade m áxim o - ali onde cada um só tem presença em relação a seu O utro ou, m ais exatam ente, em relação àquilo que a linguagem cor­rente o encarregara de não significar. Encontra-se então a diferença intrín­

seca, a tal ponto que o conteúdo presum ido com o independente é reduzido ao lampejo de um a “ diferença-com ” - o Ponto já não é senão a “contribui­ção” ao Espaço, e só isso. O s opostos, agora, vivem unicam ente de sua tensão; os antagonistas não seriam nada mais sem sua luta. Tenta-se então novam ente lhes dar independência, mas o conteúdo ao qual se tenta redu­zi-los desm ente m ais um a vez seu sentido (“mas então isso não é mais um Ponto” ) . Prova de que a constituição das significações zom ba da idéia que o senso com um tem da “ significação".

Bergson pretende que a (má) m etafísica nasceu no dia em que Zenão denunciou as contradições do sensível. H egel situa em outro m om ento sua data de nascimento: no dia em que Diógenes, o cínico, acreditou refutar Zenão caminhando, ou, antes, com o ele o precisa, quando um de seus alu­nos acreditou tê-lo refutado.36 O que equivalia a subentender: eu caminho, portanto o M ovim ento pertence ao Ser, portanto ele não é contraditório. “ Po­dem-se conceder aos antigos dialéticos as contradições que eles m ostram no m ovimento; mas disso não se segue que o m ovim ento não seja; dir-se-á, antes, que o m ovim ento é a própria contradição presente.”37 A originalidade dessa interpretação aparece m elhor se comparada à de Bergson. Tudo as opõe.

a) Bergson não leva em conta, com o Hegel o faz,38 o dilem a constituí­do pelos dois grupos de argum entos. Im porta-lhe apenas que Zenão tenha

34 Ibidem , XVIII, p.579.35 Logik [Lógica], IV, p .549.36 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .330.37 Logik [Lógica], IV, p .547.38 “ N as d uas prim eiras provas, o que predom ina é a continuidade na progressão : não há

nenhum lim ite absoluto , nenhum espaço lim itado, m as um a continuidade absoluta, um a superação de todo lim ite. A gora, é o inverso que se sustenta, a saber, o ser-lim itado absoluto , o da continuidade; não há m ais passagem no outro” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .340).

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negado a possibilidade do m ovim ento. Ora, é a consideração do dilem a que, segundo Hegel, dá aos argum entos sua profundidade.

b) Bergson pretende apenas com entar a cam inhada de D iógenes. “ O filósofo antigo que dem onstrava a possibilidade do m ovim ento caminhando estava no verdadeiro: seu único erro foi fazer o gesto sem lhe acrescentar um com entário.” 39 Hegel, recusa todo valor dessa referência ao im ediato.

c) Se acreditarm os em Bergson, o sofism a provém do fato de que foi dada, no início, um a caricatura da m udança e não a m udança real. Encon­trada esta última, o sofism a se dissipa. “ Para se subtrair a contradições com o as que Zenão assinalou ..., não se teria de sair do tem po (dele já saím os), não se teria de retirar-se à m udança (dela já saím os em demasia); seria preciso, ao contrário, reapreender a m udança e a duração em sua m o ­bilidade original.”40 Ora, Zenão não pretendia definir o M ovim ento em si, mas analisar a m udança tal com o esta se dá no espaço e no tem po.41 Se­gundo Hegel, nada m ais faz, portanto, que reconstituir seu conceito con­creto... Isso equivale a dizer, para Bergson: o círculo é quadrado. A qui e ali, as contradições nascem no nível dos conceitos. Mas, no bergsonism o, isso é a prova da fragilidade destes últim os: o retorno ao concreto faz de­saparecer as contradições.42 Isso é a prova, para Hegel, de que enfim o con­creto é expresso com todo rigor. Em sua perspectiva, a noção de “duração” seria, antes de tudo, um estratagem a destinado a salvaguardar a fixidez dos conceitos do senso com um .

d) Sem dúvida, Bergson reconhece que a verdadeira m obilidade - a duração - é diferença consigo, m as é para fazê-la ter acesso a um a digni­dade substancial peculiar: H egel felicita Zenão por ter liberado o m ovi­m ento de tal dignidade. O bergsonism o é, portanto, m enos um a crítica da m etafísica que um deslocam ento de sua tópica: o Ser não fez senão m u­dar de conteúdo.43

e) Zenão e os gregos, segundo o julgam ento de Bergson, foram obnubila­dos pela opinião reificante do senso comum (o m ovimento com posto de imo- bilidades). Antes de tornar a questioná-las, preferiram “ atribuir erro ao curso das coisas” .44 Será realmente “atribuir-lhe erro”, perguntaria Hegel, alojar a

39 Bergson, op. cit., Éd. Centenaire, p .1379. Cf. E spinosa, Éd. Pléiade, p .264.40 Bergson, corte41 Cf. Koyré, Études d ’Histoire, p. 18.42 Bergson, op. cit., p .1260 e 1420.43 Ibidem , p .760.44 Ibidem.

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contradição ali? Se o Zenão histórico acreditou que a contradição implicava inexistência, então Bergson está mais próximo dele do que acredita.

Em suma, como não abandona nem o privilégio outorgado à essência

unívoca (ç),45 nem a p ositividade (transferida do Ser à duração) (d), o bergsonism o desem penharia o papel de dogm atism o diante do tribunal he- geliano da Razão. Sob o m esm o título, aliás, acerca desse ponto preciso (a leitura de Zenão), que a Critique de la Raison pure [Crítica da razão pura]. Se Kant, com efeito, absolve Zenão da acusação de sofística, esse ajuste de con­tas é tão insatisfatório quanto a condenação bergsoniana. Segundo Kant, Zenão sabia perfeitamente que as contradições que ele realçava eram apenas aparentes. Dicotom ias não exaustivas escapavam à jurisdição do terceiro excluído e davam testem unho, portanto, de um problem a mal formulado.

Se o universo com preende tudo o que existe, com isso, ele não é nem

sem elhante nem dessem elhante a qualquer outra coisa, visto que não há, fora

dele, nenhum a outra coisa com a qual possa ser comparado. Q uando dois juízos

opostos entre si supõem um a condição inadm issível, am bos caem, apesar de

sua oposição (que, nada obstante, não é um a contradição propriam ente dita),

porque cai a condição sob a qual cada um a dessas duas proposições devia

valer.46

Mas, quer Zenão tenha sido vítim a de um a ilusão (Bergson), quer te­nha, ao contrário, contribuído para trazê-la à luz (Kant), trata-se aí de coi­sa secundária. Em ambos os casos, tom a-se por um erro de ótica ou pela crítica de um erro de ótica uma análise de essência, de que se recusa a reco­nhecer a verdade intrínseca. Não se sai, portanto, da interpretação subjetiva

da dialética antiga, “ segundo a qual é o conhecim ento que é defeituoso. Essa últim a interpretação entende que só essa dialética cria o artifício de um a falsa aparência” .47 Ora, é justam ente com Zenão que aparece “ a dialética verdadeiram ente objetiva” .48

45 Segundo M. Vuillemin (La Philosophie de l'Algèbre, p .502) um dos quatro postu lad os do dogm atism o em fenom enología: possib ilidade de representar as essên cias por intuição e de m aneira neutra. Cf. Bergson, p .1374-5: “o m aior serviço prestado por Kant à filo so­fia especulativa" é ter m ostrado negativam ente que apenas um a intuição superior “per­m ite que a m etafísica se con stitua” .

46 Kant, K R V [Crítica da razão pura], B, p .345.47 Logik [Lógica], V, p .338.48 Cf. Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .325.

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3

Entretanto, esse elogio de Zenão é logo acompanhado por um a reserva:

Z enão foi o fundador da dialética. Esse é o seu lado im portante, m esm o

que, com o se viu, não seja ele dialético propriam ente dito ou m arque som ente

o in íc io da d ia lé tica ; p o is e le n eg a os p re d ica d o s o p o s to s . X en ó fa n es,

Parm ênides, Zenão tom am , portanto, por fundam ento o princípio: o N ada é o

Nada, o N ada não é - ou (com o M elissos) o N ada é a Essência. Em outras

palavras, eles consideravam um dos predicados opostos com o sendo a E ssên­

cia. Faziam isso com fixidez. E, ali onde encontravam o oposto n um a determ i­

nação, suprim iam essa determ inação. Ora, esta últim a só se suprim e por m eio

de outra coisa, pelo fato de ser posta fixam ente, pela distinção que se faz e

donde resulta que um lado é o Verdadeiro e o outro o N egativo.49

Com o Zenão estava antes de tudo preocupado em “ devolver cada gol­pe aos partidários do M últiplo” , sua estratégia não estava à altura de sua tática. “ E preciso ainda denom inar essa dialética subjetiva, porquanto ela cai no sujeito que contem pla - e o Uno que está fora dessa dialética, fora desse m ovim ento, é unidade, identidade abstrata.” 50 Restava assim um d o­m ínio onde era possível não mais opor, a todo Logos, o Logos inverso. Isso é subentender que a im possibilidade de pronunciar um juízo decisivo entre a Tese e a A ntítese é sem pre o signo de um a anomalia e a dialética, longe de ser um princípio universal, deve antes ser tida com o um traço patológi­co do discurso, quando concerne a certas regiões do Ser (ou pretensam ente tais). Seu papel é puram ente negativo; ela nos auxilia tão-som ente a cir­cunscrever a esfera do indubitável.

E nesse declive que a Skepsis degenerará. Q ue há de com um entre ela e o ceticism o moderno? Incapaz de com preender a grandeza de seu m odelo antigo, ele taxa de atitude dogm ática a renúncia a toda certeza.51 M elhor

49 Ibidem .50 Ibidem , XVII, p .343-4.51 É a expressão em pregada por Kant para designar o ceticism o caracterizado, aproxim ada­

m ente, da m aneira pela qual Hegel o descreverá (só que de m aneira m ais elogiosa), no texto que citam os na nota 27. “ E ssa antinom ia coloca a Razão, não sóem um a dúvida que seria devido à desconfiança para am bas as afirm ações, m as que ainda deixaria lugar para a esperança de um ju ízo que se decidiria por u m a ou por outra - com o tam bém , em um d esespero da Razão em si m esm a, que a im pele a renunciar a toda preten são à certe­za e pode ser denom inado o estado do ceticism o dogm ático” (Preisschrift, XX , p .327).

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ainda, não se concebe sequer que os dialéticos gregos tenham podido falar a sério. “Q ualquer que seja a época da filosofia” , estim a Kant, “não se pode tom ar com o pensam ento sério a extensão da doutrina da dúvida aos prin­cípios do conhecim ento do sensível e à experiência mesma; mas talvez ela tenha sido um desafio lançado aos dogm áticos para provar esses m esm os princípios e, com o disso eram incapazes, para representar igualm ente a es­tes últim os com o duvidosos” .52 Tentativa de am ortecer a ousadia do ceti­cism o, contra-senso por excesso de tim idez de que H egel realça outro as­pecto em sua polêm ica de 1802 contra Schulze. Schulze, por sua vez, pretende que os céticos não são tão insensatos a ponto de não deverem fazer um a exceção em proveito da certeza sensível ou dos dados im ediatos da consciência. N o entanto não era esse o caso na Antiguidade. “O próprio Schulze sente que um ceticism o que conceda aos fatos de consciência uma certeza inabalável só tem pouco a ver com a noção de ceticism o que nos dão os céticos antigos ... Não se tem o direito de com preender o ceticism o com o se ele não devesse atacar as percepções sensíveis, mas apenas as coi­sas que os dogm áticos colocavam atrás delas. Quando o cético dizia ‘o mel é tanto doce quanto amargo e tão pouco doce quanto am argo’, não era a coisa colocada atrás do m el a que ele visava.” 53 Esse privilégio injustificado que se concede aos dados im ediatos é sintom ático do apego ao ser do Finito

que não se pode im aginar posto em dúvida: em suma, é a m esm a razão que faz Espinosa passar por ateu e os céticos por farsantes. Porém, m ais pro­fundam ente, esse esforço para desativar a Skepsis e lhe retirar seu radicalis­m o deixa entrever o que constitui a essência, segundo Hegel, das filosofias da Subjetividade. Decerto elas podem (como Kant) celebrar as virtudes do “ m étodo cético” ou poderão (como Husserl) prestar hom enagem à Skepsis

por ter sido a prim eira a abalar o preconceito do m undo e do em-si. Em últim a instância, no entanto, sempre se põe ao abrigo um dom ínio em que seja preservada a validade dos princípios de contradição e do terceiro ex­cluído. N essa medida, é perm itido ver posições de redobro do “dogm atis­m o” (Hegel em prega freqüentem ente essa palavra a propósito de Kant) - hoje, seria m elhor dizer: dos positivismos, “ se, por positivism o, entende-se o esforço, absolutam ente livre de preconceito, para fundar todas as ciên­cias naquilo que é positivo, isto é, suscetível de ser captado de m aneira originária” .54 E o juízo concernente à Skepsis é, aqui, um bom critério.

52 Preisschrift, XX , p .263.53 Skeptizism us [A relação do ceticism o com a filosofia], I, p .225 e 228.54 H usserl, Ideen, I, § 20.

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Analisem os o que foi proferido por Husserl. Sua atitude perante o ce­ticism o pode ser condensada em três postulados.

P l) A Skepsis foi o advento do “subjetivism o” em filosofía. Ela inaugu­ra, à sua revelia, o m otivo transcendental.

O subjetivism o é a essência de todo ceticism o. N os profundos paradoxos

dos céticos, em suas argum entações, das quais não se sabe até que ponto de­

vem ser levadas a sério, surge, num a form a aínda prim itiva e vaga, um m otivo

inteiram ente novo que será da m ais universal significação na consciência filo ­

sófica da hum anidade. Pela prim eira vez, a pré-doação ingênua do m undo se

torna problem ática; interroga-se sobre a possibilidade de princípio de seu c o ­

nhecim ento e sobre o sentido principiai de seu ser-em -si. Em outros term os:

pela prim eira vez, o todo do m undo real e, em seguida, a totalidade da objeti­

vidade possível em geral são considerados de m aneira transcendental, com o

objeto de um conhecim ento possível, de um a consciência possível em geral.55

P2) Com o os céticos não souberam tirar partido dessa descoberta, pre­feriram negar a realidade do m undo exterior e professaram - ou fizeram de conta que professavam - um subjetivism o pueril.56

P3) Se não for suplantada, a Skepsis cai no absurdo. N o lim ite, ela aca­ba duvidando do valor de verdade do que é vivido pela consciência. Seu dizer, então, contradiz seu fazer, sua enunciação, seu discurso:

Todo ceticism o autêntico se distingue pelo seguinte absurdo, que o atin­

ge em seu princípio: no curso de sua argum entação, ele pressupõe im plicita­

m ente, sob o títu lo de condição de possibilidade, aquilo m esm o que nega em

suas teses ... Q uem se contenta em dizer “ Eu duvido da significação cognitiva

de m inha reflexão" profere um absurdo. Pois, para se pronunciar sobre a sua

55 H usserl, Erste Philosophie, p .59-60.56 Ibidem , p .61: ‘‘E preciso lem brar novam ente que o antigo ceticism o, inaugurado por

Protágoras e por G órgias, põe em questão e nega a Epistem e, isto é, o conhecim ento científico daquilo que é em si. M as ele não supera e sse agn ostic ism o e não acredita poder ir além das subestru turas racionais de um a ‘filosofia ’ que adm ite um Em -si racio­nal com su as verdades em si presum idas: ‘o ’ m undo é incognoscível racionalm ente, o conhecim ento hum ano não pode se elevar acim a dos fenôm enos subjetivos e relativos. Daí, haveria certam ente um a possib ilidade (com o, por exem plo, a partir da frase am bí­gua de G órgias: ‘não há nada’), a de levar m ais longe o radicalism o. Ele, porém , nunca conseguiu fazê-lo. M esm o em tem pos m ais avançados, o ceticism o, de seu ponto de v ista negativista (prática, ética, politicam ente), fracassou no m otivo cartesiano original: m ergulhar na profundidade de um a epoché quase cética e aceder com isso ao céu de um a filosofia absolutam ente racional e elaborá-la sistem aticam en te" (Krisis, p .78).

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d ú v id a , e le e m p r e g a re fle x ã o . . . A q u i, c o m o e m to d a a p a r te , o c e t ic is m o é

d e s a r m a d o q u a n d o s e a p e la a a r g u m e n t o s v e r b a is p a r a a in tu iç ã o e id é t ic a , p a r a

a in tu iç ã o d o a d o r a o r ig in á r ia e p a r a a v a l id a d e q u e e la p o s s u i p r o p r ia m e n te .57

P3 significa que a esfera da consciência é um a instância suprem a de decisão. Tese fundada sobre o que o próprio Husserl chama “o pressuposto suprem o da verdade em si e da falsidade em si” : “Todo juízo é decidido em si” .58 À luz desse pressuposto, com preende-se m elhor o verdadeiro sentido de P2: quando os céticos negavam a realidade do m undo exterior, o que era esperado de seu julgam ento era ainda m ais inaceitável que o veredicto. Adm itiam , com efeito, que a contradição e, por conseguinte, o indecidível estão nas coisas. Tese que, para Hegel, constitui o m érito dos eleatas: " [É] a interpretação objetiva, segundo a qual quem assim contradiz a si m esm o se suprim e e se encontra, com isso, reduzido à nulidade. Essa foi a inter­pretação dos eleatas.59

N essa história parcial do ceticism o, m ede-se assim qual é a solidão de Hegel: a seu ver, o que constitui o interesse do ceticism o é a parte que todos julgam indefensável. Os céticos tinham razão em não recuar diante da tese da contradição objetiva; sua loucura, aos olhos dos filósofos, era sabedoria, aos olhos da verdade especulativa. Sem nenhum a ternura (Zärtlichkeit) pelo m undo, preferiram deixá-lo perecer a salvá-lo invocando arbitrariamente os dados da certeza sensível ou da intuição eidética. A s filosofias da subje­tividade, prudentemente, poupam -se desse “desespero” (Verzweiflung). Hegel tenciona atravessá-lo. Pois ninguém soube ver que há um a forma otim ista de tom ar o ceticism o ao pé da letra. Basta m ostrar que seu único erro foi não o de ir tão longe que fosse im possível acreditar em sua sinceridade, mas de não ter ido longe o bastante.

4

O ceticism o, portanto, vale mais que todos os “dogm atism os” . Porém, no ponto em que nos acham os, o que ainda significa essa palavra? De

57 H usserl, Ideen, I, § 79.58 H usserl, Formale und Transzendentale Logik, § 79. Sobre a adm issão incondicional do ter-

ceiro-excluído por H usserl e su a recusa da indecidibilidade, cf. Vuillemin, La Philosophie

de l ’A lgèbre, p .500ss .59 Logik [Lógica], V, p .537.

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Parmênides a Husserl, essa rubrica envolveria então a todos os filósofos, m enos Hegel. Ela não se tornou vasta demais? Q ue é ao certo um pensa­m ento dogm ático? Dois traços o definem:

- ele se exprim e por proposições; logo, de m aneira unilateral (“ D eus é causa de si” , “A essência de D eus envolve sua existência” etc.60);

- ele fornece, com o A bsoluto, um conteúdo isolado e determinado; logo, condicionado - e, a partir de então, seu procedim ento desm ente a sua pretensão. A credita assim provar a existência de Deus; porém, provar o A bsoluto consiste em fazer com que dependa de um pressuposto e, já com isso, em abolir de fato o “A bsolu to” . O critério do dogm atism o, portanto, variou bastante de Kant a Hegel. Para Kant, dogm atizar significava: enun­ciar, em M etafísica, um a proposição sintética a priori, sem estar em condi­ções de prová-la. Para Hegel: subm eter o discurso sobre o A bsoluto à juris­dição da prova e se condenar, a partir daí, a começar por um conceito determinado

que, na progressão, nunca nos conduzirá senão a outros conceitos deter­m inados - e, na regressão, nunca será um verdadeiro com eço, visto que ele é, por definição, condicionado, m ediatizado. “ U m determ inado sempre con­tém um O utro com o antecedente.” 61 A ssim , o dogm atism o, desde sua pri­m eira fala, traça o círculo do qual não poderá sair.62

Mas os tropos céticos perm anecem com o armas perigosas contra tal pensam ento: pela sim ples análise do discurso, eles tornam eviden te a inanidade das afirm ações. Tom em os o exem plo do conceito de causa sui. Se D eus é declarado causa im anente do m undo, a causa não constitui mais que unidade com seu efeito - e aí está, aliás, a explicitação do conceito de causa.63 Porém, com o a causa só faz sentido quando oposta ao efeito,64 pode-

60 Fenomenología do espírito, “ Prefácio” ; trad. fr., I, p .54ss .; trad. br., I, p .5 6 ss .61 Logik [Lógica], I, p .76.62 N otar-se-á que, para Bergson, o erro do dogm atism o é o inverso: não o de conduzir ao

absoluto um conceito determ inado e exclusivo, m as o de esvaziar um conceito de todo sentido fazendo com que designe todas as co isas. Ora, o m onism o só pode ser um ab­surdo in teminis: “Aí está o vício inicial dos sistem as filosóficos. A creditam n os inform ar sobre o A bsolu to ao lhe darem um nom e. U m a vez m ais, porém , a palavra pode ter um sentido definido quando designa um a coisa: ela o perde a partir do m om ento em que vocêo aplicar a todas as co isas" (p. 1291).

63 Cf. Skeptizism us [A relação da filosofia com o ceticism o], I, p.232 . Cf. Kant, Crítica da

razão pura, "Segu n da A n alogia", Ak. B, p .175-6. E tam bém D escartes: “ N ão é necessário que ela preceda tem poralm ente o seu efeito ..., v isto que ela não tem o nom e nem a natureza da cau sa eficiente senão quando produziu o seu efeito, com o já foi d ito” (IVa

Réponses [Q uartas resp ostas], Ed. Plêiade, p .456).64 “Ao se perm anecer na causalidade com o tal, não se tem a causalidade em su a verdade,

m as sim plesm ente com o causalidade finita; e a fin itude d essa relação con siste em que

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se tam bém dizer que essa proposição nega o conceito de causa e de efeito. Em geral, “ toda proposição racional se deixa dissolver em duas afirmações que se contradizem : por exem plo, Deus é causa e não é causa; Ele é U no e Ele não é U no ... É então que aparece, com toda a sua força, o princípio do ceticism o: παντι λογφ λόγος ίσος άντικείται” .65 De resto, assim entendido, o ceticism o percorre os textos clássicos, e os filósofos tentam em vão esca­par a ele. Descartes, por exem plo, julga inadm issível que a expressão “por

si” , aplicada a D eus, signifique “privada de causa” : positividade infinita, Deus põe-se a si m esm o e a causa sui não é um a noção negativa. - Você sustenta então, objetam a ele, que Deus seja para si m esm o a sua causa eficiente? Você chega m esm o a desdobrá-lo? - Isso seria absurdo, respon­de Descartes, e de um absurdo justam ente tão m anifesto que isso não p o ­dem suspeitar de mim. Afastado esse risco, é m elhor dizer, analógicamente: “D eus é, em relação a Si, com o um a causa eficiente” , em vez de deixar que n ’Ele penetre, com a ausência de causa, a negatividade.66 Por m eio desse diálogo, a verdadeira dialética se esboça: de um lado, é im possível apre­sentar Deus com o causa eficiente de Si m esm o e, inclusive, é difícil recor­rer à analogia da causa eficiente (aqui Arnauld tem razão em denunciar o antropom orfism o); de outro lado, é im possível fazer de D eus um ponto de parada arbitrário na regressão por interm édio das causas (Descartes, desta vez, exprim e contra Arnauld um a exigência justa). É que, de ambos os lados, o conceito que se forja do A bsoluto é inadequado a seu objeto: a possibilidade dos “discursos opostos” nasce desse desajuste. Aplicadas ao Infinito, as categorias determ inadas do Finito perdem seu sentido, sem que o Infinito encontre o seu. A dialética do ceticism o nada mais é que a

cau sa e efeito são m antidos em su a diferença. Ora, e sses dois term os não são apenas diferentes, m as tam bém são idênticos; e isso encontra-se tam bém em n o ssa consciência ordinária, de m odo que d izem os que a causa só é causa enquanto tem um efeito, e d ize­m os do efeito que só é efeito enquanto tem um a causa. Por isso , cau sa e efeito são am bos um só e o m esm o conteúdo, e su a diferença é, antes de tudo, som ente a do pôr e do ser-posto; diferença de form a que aliás se su p rassu m e de novo, de form a que a cau sa não é só a cau sa de um Outro, m as tam bém a cau sa de si m esm a e que o efeito não é som ente efeito de um Outro, m as tam bém efeito de si m esm o. A finitude d as co isas con siste portanto em que, enquanto segundo seu conteúdo cau sa e efeito são idênticos, e ssa s duas form as se apresentam separadas; de m aneira que, se a cau sa na verdade é tam bém efeito, e o efeito com certeza é tam bém causa, contudo não é sob a m esm a relação que o efeito é causa, nem sob a m esm a relação que a causa é efeito” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 153, Z., VIII, p. 343-4; trad. br., I, p. 283-84; Z „ VIII. 343-4) Cf. Preuves, 16' Conf., XVI, p .512.

65 Skeptizismus [A relação do ceticism o com a filosofia], I, p .232.66 D escartes, Quatrièmes Réponses [Q uartas resp ostas], Éd. Plêiade, p .453-8.

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constatação im piedosa desse fracasso. A o universalizar o m étodo da pri­m eira hipótese do Parmênide [Parmênides], ela m ostra a im potência das categorias em determ inar o que quer que seja: o tem po não é nem corpóreo nem incorpóreo, nem lim itado nem ilimitado, nem divisível nem indivisível, nem criado nem incriado...

Mas o ceticism o tom a um a consciência exata daquilo que ele denuncia? A o subm ergir no Nada, o pretenso Em-si do dogm atism o não lhe presta ainda um a secreta hom enagem ? D isso há pelo m enos um sinal: o ceticis­mo é inseparável do Ser que ele aniquila, ele vive em seu contato. “ Ele deve esperar até que algo de novo se lhe apresente para lançá-lo no m esm o abism o vazio.” 67 Podemos então nos perguntar se ele não é cúm plice de sua vítima. A Aparência (Schein) que ele desdobra é, afinal, a som bra trazida do Ser e, sob a cláusula do “não-ser” , ainda é retida a plenitude do m undo. “Sua Aparência tinha por conteúdo toda a rica m ultiplicidade do m undo ... [esse conteúdo] som ente foi transportado do Ser para a Aparência, embora seja no interior de si m esm a que a Aparência possua tais determ inidades m últiplas que são imediatas, sendo [.seiende], umas ao lado das outras.” 68 É aí - e apenas aí - que se tem o direito de falar de uma inevitável má-fé da consciência cética. Decerto, “ a coisa não é m ais tom ada com o no início” ; de fato, porém, com o após a epoché que libertará a macieira em flor de sua realidade tética, “ tudo, por assim dizer, permanece como antes” .69 A s epochés

são conservadoras. M uda-se de regime ontológico, passando do Ser ao Não- ser ou à “neutralidade” - m udou-se de ontologia? Assim , há desconversões fracassadas porque se obstinam em negar o mesmo Deus que, outrora, con­fessavam. Se o fenom enólogo se acomoda com seu Ego m undano,70 se o cético continua seguindo “os costum es de seu país” , talvez seja o índice de que não renunciaram inteiram ente à pátria que pretendem abandonar. E a crítica que Pascal faz de M ontaigne assum e um relevo inesperado:

67 Fenomenologia do espírito, II, p .73; trad. fr., I, p .71; trad. br., I, p .67.68 Logik [Lógica], IV, p .488-9.69 H usserl, Ideen, I, § 88.70 “Com o fenom enólogos, devem os deixar de ser hom ens naturais e nos pôr com o tais

igualm ente na linguagem ... Em seus tratados científicos, não é raro que os geôm etras falem de si m esm os e de seus trabalhos; quem elabora as m atem áticas não está incluído no estatuto eidético das próprias proposições m atem áticas (Ideen, I, § 64). É verdade que a questão será reposta no § 34 da Krisis, quando H usserl denunciar a abstração da epoché das Ideen (p. 150 e 158). Enquanto não englobarm os o Lebenswelt na epoché, não nos tornarem os realm ente filósofos (p. 134). A epoché requer um a Umkehrung (§ 35) que a d estaq u e , sem am bigü idade , de todo in te resse teorético , de to d a “vocação civ il" (bürgerliche Berufen).

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A ssim , nada há de extravagante em sua conduta; age com o os outros h o ­

m ens; e tudo o que estes fazem com o to lo pensam ento de que seguem o

verdadeiro bem, ele o faz segundo outro princípio pelo qual, sendo as verossi-

m ilhanças sem elhantes de um lado e do outro, o exem plo e a com odidade são

o contrapeso que o arrastam . Ele segue, portanto, os costum es [les mœurs] de

seu país porque o hábito [la coutum e] o sobrepuja; m on ta em seu cavalo,

com o quem não fosse filósofo.71

E a Phénoménologie [Fenomenología] retom a essa crítica:

[Essa consciência] pronuncia o absoluto desaparecim ento, m as esse p ro ­

nunciar é, e essa consciência é o desaparecim ento pronunciado; eía pronuncia

o nada do ver, do ouvir etc., e ela própria vê e ouve ..., ela pronuncia o nada

das essencialidades éticas e, de fato, as potências dirigem sua ação. Seus atos

e suas palavras sem pre se contradizem .72

Se não é vivida com o o Ser, a Aparência do Cético é vivida no m esm o estilo. O ser e o ser-negado m antêm um ar de fam ília com o se, de um a outro, um a form a com um fora preservada pelo ceticism o. A lgo sobrevi­veu ao naufrágio: a m aneira de o pensam ento dogm ático deixar seu obje­to coincidir consigo m esm o, a “forma da imediatez” que “dá ao particular a determ inação de ser, de se relacionar consigo” .73 Porque operava no inte­rior dessa forma, o dogm atism o conferia o ser ao Finito cuja característi­ca própria, no entanto, é a de não ter nele o seu ser; o ceticism o lhe retira esse ser, mas sem pre imediatamente. Contrário do Ser, seu N ão-ser m an­tém portanto toda a calma: “ E a im ediatez do não-ser que form a a A p a­rência ... A Aparência é a Essência m esm a na determ inidade do Ser” .74

N o jogo do “ quem perde ganha” , o cético acabou perdendo m esm o. Ei-lo em situação de inferioridade em relação a seu adversário, visto que diz o N ão-ser da m esm a m aneira que o dogm ático dizia o Ser e visto que sua linguagem nunca deixou de ser com um . “ Eles precisariam de um a nova lin guagem ” , observava M ontaigne. E Espinosa: “ D evem final­m ente se calar com m edo de admitir, por acaso, algo que tenha um cheiro

71 Pascal, Entrétiens Saci, Éd. Brunschv., p .157.72 Fenomenología do espírito, II, p .165; trad, fr., I, p .175 ; trad, br., I, p .139.73 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 74, VIII, p. 180; trad, br., I, p. 153.74 Logik [Lógica], IV, p .490.

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de verdade” .75 É que, então, a linguagem do pirrônico perm aneceu deposi­tária da form a do Verdadeiro e que, a todo instante, pode-se fazer com que ela se volte contra ele. Por esse preço, o ceticism o paga a sua falta de rigor inicial: atacou de m aneira aturdida, sem ter analisado inteiram ente o jogo do adversário. E isso que Kant lhe censura na Crítica. Mas ele próprio, é verdade, com ete o m esm o erro de outra maneira. Acredita ter suprim ido toda possibilidade de Saber absoluto überhaupt, por ter dem onstrado que a antiga M etafísica não podia atingi-lo: com o esta, por exem plo, não deter­m inara o “ substancial” senão de m aneira sofística, Kant relega para sem ­pre o “ substancial” para fora do alcance do conhecim ento. O m esm o ocor­re com o ceticism o: ele abusa da envergadura de sua crítica. D e fato, é som ente o ser-finito que ele abole; m as acredita, ao m esm o tem po, ter dado cabo do Ser überhaupt. Por isso nunca deu cabo dele, sempre dedicado a m ostrar que, de cada coisa do m undo, um a depois da outra, não é nem isso, nem aquilo, nem nada - sempre em penhado nessa fastidiosa tarefa por não ter com preendido o verdadeiro sentido de seu em preendim ento. Espírito que sempre nega, visto que nega o im ediato no nível do próprio im ediato. A inda é por isso que, por m aior que seja a força dos argum entos céticos contra as categorias finitas, mais se m ostra a sua im potência peran­te a Idéia especulativa, a qual não é nada de determ inado, a qual não pode ser expressa unilateralm ente em um a única proposição, e, em relação a ela, o cético ainda fala a linguagem do dogm atism o.76

Por que o ceticism o não com preendeu a si m esm o? M ais coerente que todas as filosofias que o sucederam, fez questão de evidenciar as contradi­ções; mas não chegou até o ponto de pensá-las. Ele deixa que apareçam, e aí se detém. Isso é melhor, sem dúvida, que escam otear a contradição entre­vista, term inando por repartir os predicados opostos entre sujeitos diferen­tes - com o procede Pascal, quando faz que o interesse do cristianism o ve­nha antes do rigor d ia lé tico .77 M as seria m elhor, sobretudo, deixar a

75 E spinosa, Traité Réforme [Tratado da reform a do entendim ento], § 47. Texto de M ontaigne: "Vejo os filósofos pirrônicos, que não podem exprim ir su a concepção geral em nenhum a m aneira de falar; po is precisariam de um a nova linguagem ; a n o ssa é form ada, antes de tudo, por proposições afirm ativas que lhe são inteiram ente inim igas; de m odo que, quan ­do dizem “ Eu duvido” , com o incontidos são tom ados já pelo que lhes sai da boca, para que confessem ao m enos que assegu ram e sabem isso , que duvidam " (A pologie à Raymond

Sebonde).76 Cf. Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .579.77 “ E ela [a verdade do Evangelho] que concede as contrariedades por m eio de um a arte

inteiram ente divina e, unindo tudo o que é verdadeiro e expulsando tudo o que é falso, d isso faz um a sabedoria verdadeiram ente celestial em que concordam tais o p o sto s que

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contradição se desdobrar. Ora, o erro com um a Zenão e aos céticos é o de só m ostrar a oposição absoluta para anular o suporte dos predicados que ela opõe: “Zenão exprim iu só o Infinito por seu lado negativo; devido aofato

de sua contradição, fez dele o não-verdadeiro” . D a m esm a maneira, os céticos “perm anecem no resultado negativo: tal coisa com porta um a contradição em si; logo, ela se dissolve; logo, ela não é. Assim , esse resultado é o nega­tivo; mas o próprio negativo é novam ente um a determ inidade unilateral em relação ao positivo. Em outros termos, o ceticism o se com porta tão-só com o Entendim ento [verhãlt sich nur ais Verstand]. Desconhece que essa ne­gação é igualm ente afirmativa, que ela é um conteúdo determ inado em si” .78 Agora, o conteúdo é posto com o negativo. M as essa sim ples m udança de sinal corre, por certo, o risco de deixar intacto o essencial: é por m eio da m esm a estrutura que ali se afirma e aqui se nega. “O próprio negativo é de

novo um a determ inidade unilateral em relação ao positivo.” Porém, para que esse resultado iludisse, seria preciso elevar-se, exclusiva e consciente­

mente, à investigação categorial, seria preciso deixar de supor que o discur­so filosófico tem com o tarefa analisar (ou dissolver) o “ dado” . Com o o ceti­cism o não atinge esse nível, senão de m aneira contingente, não pensa em se espantar com o fato de que a categoria do “negativo” , com a qual ele opera, perm anece dotada da m esm a natureza que as outras. Ora, de que serve lançar abaixo as teses metafísicas, se for para enunciar um a outra tese,

que se opõe a ela no m esm o nível? A ssim Kant, no Preisschrift, quando ofe­rece m etaforicam ente um a consistência à sombra, talvez reabilite um certo “negativo” , mas não subverte a ontologia: ele só lhe dá um a categoria de­term inada a m ais” .79 A luz e a noite alternam no m esm o reino. A ssim o ceticism o, ao transfigurar o Ser em Nada, ainda passa de um a categoria determ inada e finita a outra categoria determ inada e finita. Com o então com preenderia que só pronuncia a condenação do ser-finito, visto que sem ­pre pensa em term os de Finitude?

eram incom patíveis naquelas doutrinas hum anas. E a razão d isso é que esses sáb ios do m undo situam os contrários em um m esm o su jeito ; po is um deles atribuía a grandeza à natureza e outro atribuía a fraqueza a e ssa m esm a natureza, o que não podia subsistir; ao p a sso que a fé nos ensina a colocá-los em sujeitos diferentes; tudo o que há de enferm o pertencendo à natureza, tudo o que há de poderoso pertencendo à graça" (Entrétiens

Saci, Ed. Brunschv., p. 160). Cf. a crítica do esto icism o e do epicurism o à luz do cristia­n ism o no capítulo V da “ D ialética da razão prática” .

78 Cesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .540.79 Kant, Preisschrift, Ak., XX , p.282.

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Entendam o-nos acerca dessa palavra. O “finito” , até agora, nos parecia apenas um a noção de senso com um entre m uitas outras, sinônim o de “ con­tingente” , de “efêm ero” , e à qual o “ ser” não podia convir senão de m aneira ambígua: im possível dizer, sem mais, que o Finito é, sem causar prejuízo ao ser do Infinito. Mas de nada serve adm itir a equivocidade da palavra, se se continua a entender “ ser" como um a categoria com o tal finita, isto é, deter­

minada. Tal é o interesse do exame do ceticism o: ele nos obriga, se quiser­mos atingir o ponto em que ceticism o e dogm atism o convergem , a passar do sentido intuitivo ao sentido lógico da palavra “Finito”, que Kant já distin­guia na Resposta a Eberhard: “A coisa finita, quanto à existência” , é aquela “ cujas determ inações podem suceder-se no tem po” , “ a coisa finita em ge­ral” , aquela que “não possui toda realidade [welches nicht alie Realitat habe]" ,80 Ora, o cético destrói o Finito no primeiro sentido, mas sem criticar a finitude (a unilateralidade) das categorias no segundo sentido; tanto isso é verdade que “ é mais difícil tornar fluidos os pensamentos solidificados que tornar fluido o ser sensível” .81 Por mais prejudicial que seja ao dogm atism o, a dia­lética do cético permanece, portanto, nos lim ites da sim ples Razão, do En­tendim ento. Este sempre foi incapaz de efetuar rigorosam ente a passagem do Finito ao Infinito, im potente que era para "liberar Deus da finidade, a

que permaneceu positiva, do m undo presente” .82 Decerto, o ceticism o trans­forma essa finidade em negativa, porém, ao m esm o tempo, faz que ela desa­pareça: logo, não saím os da abstração, pois é tão abstrato afirmar a finitude quanto suprim i-la sem nuança, tão falso perm anecer na “ independência sem a negação” quanto na “negação sem a independência” . Prisioneiras das m esm as categorias limitadas e exclusivas, ambas as filosofias opostas são pouco capazes de pensar o concreto em sua com plexidade, tão im potentes para reconstituir a troca sem fim de um “ Ser” e de um "N ão-ser” que, de um a vez por todas, elas separaram. A dialética do ceticism o aborta, afinal de contas, por ter aceitado a ontologia da filosofia que ela com bate. E im ­prudente escolher as armas do adversário.

80 Kant, Eberhard [R esposta a Eberhard], VIII, p .236.81 Fenomenologia do espírito-, trad, fr., I, p .30; trad, br., I, p .39.82 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 36, VIII, p. 112; trad, br., I, p .99.

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N ão é porq ue o Finito é que o Infinito é , com o sabem os. Se nos ativerm os a isso, o que se põe em evidência, ao contrário, é a intransponí­vel equivocidade do “ Ser” . Som ente à m edida que o Finito “passa” e m os­tra que nele não tem o seu ser, é que aparece um a oportunidade de resta­belecer a univocidade do “Ser” . Mas se "passar” significa pura e simples supressão, saída de si para perder-se no Outro, logo essa oportunidade é perdida, e voltam os à m esm a situação aporética: o Infinito, de novo, é pen­sado com o um ser-noutro-lugar. Corre até o risco de não ter outro estatuto senão o de negação abstrata do Finito, do além no qual poderem os perpe­tuam ente transgredir o Finito e onde sem pre será possível inscrever um novo lim ite, depois o utro ... A liás, bastaria analisar o m ecanism o desse “ ultrapassam ento no indeterm inado" (ins Unbestimmte Hinausgehen) , para entrever em que consiste o verdadeiro Infinito. Ele se decom põe em dois

m ovim entos:83- devido ao fato de ultrapassar o Finito, eu encontro a Infinidade; p o ­

rém, com o traço um novo lim ite, rom po essa indeterm inação e ingresso novam ente no Finito;

- mas o novo limite, que negou o Infinito, tem a m esm a sorte que o outro: ao pôr outro lim ite novo além dele, forneço a prova de que o Infinito existe sem pre além e retorno a este últim o.

Ora, se não abusarm os dessa alternância, em vez de dizer que, prim ei­ramente, o Finito retorna a si m esm o e que, depois, em segundo lugar, o Infinito retorna a si m esm o, antes reconhecerem os que cada um deles é sim ultaneam ente um e outro nesses dois lados que fazíam os questão de distinguir. “ Só o falso infinito é o além, porque ele é somente a negação do Finito posto como real.” Mas assim com o o verdadeiro Infinito já não é um além, o Finito não é um aquém: de m odo mais geral (e uma vez ultrapassa­da essa repartição arbitrária dos conteúdos), ele é aquilo que retorna a si em se tornando o seu outro. E por isso que sua im agem é o círculo, linha fechada e “inteiram ente presente, sem com eço nem fim ” . N a Física, A ristó ­teles observava que se chamavam apeiron os anéis tais, que “im pelidos sem ­pre além, sem pre se pode avançar na circunferência” . Mas ele julga enga­nosa essa denom inação, um a vez que o círculo, precisam ente, não é a im agem do “m au infinito” .

83 Cf. Logik [Lógica], IV, p .170-3.

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Trata-se ali de uma analogia, mas isso não é absolutamente exato, pois é preciso, além dessa condição, que nunca se passe de novo pelo mesmo ponto [μηδέ ποτε το αύτο λαμδάνεσθαι]. Não é ο que ocorre com o círculo; porém, apenas do ponto consecutivo é que um ponto é diferente.84

“Não é o que ocorre com o círculo”, isso quer dizer que cada ponto é sim ultaneam ente com eço, m eio e fim ,85 e já não se encontra aí um ponto sempre outro. O círculo torna, portanto, im pensável a progressão ao infini­to; ele é o exem plo do acabado τελείον do lim itado πεπερασμένον, fora do qual, de direito, não há nada. Em suma, A ristóteles vira quase tudo, a não ser que reservara para a palavra apeiron o sentido de incom pleto por natu­reza, daquilo “fora do qual sempre existe algo” . Ora, “aquilo fora do qual sempre existe algo” é antes o Finito ou, mais exatam ente, a “m á infinida­de” que, incessantem ente, faz o Finito dissolver-se sem fazer sua significa­ção explodir. D ecerto, A ristóteles recusava o ser ao Infinito assim entendi­do, porém já era excessivo entender som ente por άπειρον o “mau infinito” . Por πεπερασμένον, os gregos não entendiam o que nós entendem os por Fi­nito,86 mas eles já haviam colocado a oposição radical do Lim itado e do Ilimitado, de m aneira que torne im pensável a passagem de um a outro. E por aí que a Finitude (a verdadeira, a que bloqueia antecipadam ente as significações) habita o pensam ento grego, e não porque πέρας é sinônim o de “perfeito” .

O reconhecim ento da incom pletude ou m esm o da nulidade do Finito não basta, portanto, para garantir o acesso ao Infinito. A dialética do En­tendim ento pode, certam ente, m ostrar a autonegação do Finito, mas não nos fazer revisar a sua significação, visto que ignora que a Finitude por ela denunciada na realidade é a das categorias e visto que ela própria ainda pro­cede com categorias finitas. N essa “noite da sim ples Reflexão” , onde se vê brotar o “pleno m eio-dia” ?

Voltem os portanto à crítica do “ Ser” que parecia se im por a nós. Um a coisa é certa: a crítica efetuada pelo ceticism o ainda é superficial. Enquan­

84 A ristóteles, Physique (Física), III, 207 a 1-5.85 Ibidem , VIII, 265 b.

86 “ Para os antigos filósofos, o lim ite era pior, ao que parece, que ο άπειρον. Com Platão, é o inverso: é ο πέρας que é o verdadeiro. O ilim itado ainda é abstrato - o lim itado, o autodeterm inante, o que lim ita é m ais elevado” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .239 ). Hegel adm ite perfeitam ente, portanto, a equivalência aristotélica do “ lim itado" e do “ m elhor", com a condição de que se entenda por πεπερασμένον, não m ais limitado intuitivam ente, m as o informado. (Cf. A ristóteles, Physique [F ísica], VII, 259 a).

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to deixam as duas categorias do Ser e do N ão-ser partilharem o universo do discurso, bem podem chegar a enunciar que “nada é” . Mas sempre per­m anece tão difícil exprimir, sem paradoxo, o que Hegel tenciona poder di­zer com toda legitimidade: que o Finito se torna o Infinito (devido ao fato de que ele passa, ele já é o Infinito que é) - ou m esm o que “algo vem a ser” , ou que “algo m orre” . N essas proposições, “Ser” e “N ão-ser” habitam o m esm o sujeito e se encontram no m esm o ponto sem que nenhum inter­valo os separe. “Ora, há um ponto em que Ser e N ada se encontram e em que sua diferença desaparece.”87 Mas as categorias tradicionais “Ser" e “Não- ser” têm justam ente a função de fazer com que essa presença apareça, no m esm o ponto dos contrários, com o ilusória, e sempre desatar o embaraço que ela suscita.

“O hom em m orre.” Isso é, para Aristóteles, um a abreviação para: “O vivente desaparece e o cadáver aparece” . “O hom em nasce.” Entendam os: “ a sem ente se corrom pe e o vivente surge” . Sempre é possível repartir assim a presença e a ausência entre dois sujeitos. O princípio de contradição, en­tão, é salvo: esse é o primeiro resultado. A certeza é obtida ao m esm o tem po que nunca se abandonará o dom ínio dos “onta” : em toda proposição que parece enunciar um devir absoluto, a análise sempre pode distinguir entre o desaparecim ento de um ente e a geração de outro. O princípio “ do Nada, nada nasce” é, portanto, respeitado: esse é o segundo resultado.88 Por que então a linguagem passa além e parece desm entir a ontologia? E que ela só está atenta ao vetor global da mudança. Temos fundam ento dizendo que “o hom em m orre” , pois, se nesse caso há nascim ento de algo, é a corrupção de algo que predom ina. Igualm ente, dizem os que há geração do fogo, silen­ciando que haja corrupção da terra. A linguagem sem pre reparte os dois term os com o se se tratasse do Ser e do Não-ser: o term o que significa mais um “ isto” é lançado na conta da o-òoía, o que significa m ais privação na conta do jafi õv. “Q uaisquer que sejam os elem entos pelos quais se delim i­tem a geração e a destruição, seja o fogo, a terra ou qualquer outro elem en­to, um desses elem entos será o ser, outro o não-ser.” 89 Segundo predomine o positivo ou o negativo, falarão de geração ou de corrupção. Assim , a re­partição de todos os contrários entre as duas rubricas torna lícita a enun­ciação - que de outra m aneira seria inepta - de um devir absoluto: é o terceiro resultado. A articulação da linguagem, assim com o dos “onta” se­

87 Logik [Lógica], IV, p.92.88 A ristóteles, D e Generatione, 317 b.

89 Ibidem , 318 a, 29.

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gundo o Ser e o Não-ser, visa, portanto, aqui e ali, ao m esm o objetivo: ali, os contrários são m antidos a distância, e é por m eio de uma licença retóri­ca que o discurso parece reuni-los; aqui, o devir assegura a transição que salvaguarda o seu afastam ento. “Tais expressões têm um substrato no qual a passagem advém; ser e nada são m antidos um fora do outro no tem po, representados com o sucedendo-se nele; mas não são pensados em sua abs­tração; daí vem que não são em e para si a m esm a coisa.” 90

Passem os ao caso limite. Qtie, nesse contexto, os opostos acabem por se reunir: seu sujeito com um se esvanesce. E o m om ento da “ contradição objetiva” , tão logo desaparecida quanto entrevista, e do ceticismo. A dialética nunca foi m ais longe. Portanto, ela nunca fez outra coisa senão dar razão a A ristóteles contra Heráclito e assum ir a crítica deste últim o pelo primeiro: se se afirma que os contrários constituem um só, “o discurso não dirá res­peito ao fato de que os entes são um [περι του εν είναι τα οντα], m as ao não-ser” .91 Im plicitam ente, ela perm anecia solidária do pensam ento grego clássico e, com o ele, incapaz de interpretar H eráclito sem anacronism o. Sobre ele, a indulgência de A ristóteles varia; nunca, porém, o julgam ento: ora não com preenderam o que ele dizia, ora lhe em prestaram opiniões ab­surdas.92 Com o sustentar seriam ente que a m esm a coisa é e não é? Em Le

Banquet [O Banquete] (187 a-b), o m édico Erixím aco acredita ser correto restabelecer em sua verdade “o que” Heráclito “ queria d izer” . N o atual frag­m ento 51, de Diels, lemos: “Não com preendem com o a coisa indo no sen­tido contrário vai justam ente no m esm o sentido, com o a harm onia do arco e da lira” ...93 Com entário de Platão:

E o cúm ulo do absurdo [πολλή αλογια] fazer com que a harm onia consis­

ta no fato de um a oposição ou fazê-la derivar de coisas diferentes que ainda

são opostas ... N ão se vê com o, se a oposição ainda existisse entre o agudo e o

grave, disso resultaria um a harm onia ... D isso não pode resultar a concordân­

cia, enquanto os opostos estão em oposição [εως αν διαφέρωνται].

Essa correção é de bom senso. Os conceitos têm agora seu campo de­term inado e se ordenam segundo as linhas do positivo e do negativo. A

90 Logik [Lógica], IV, p .90.91 A ristóteles, Physique [F ísica], I, 185 b, 23.92 A ristóteles, Métaphysique [M etafísica], A 3 1005 b 24; K 5 1062 a.

93 “ ού συνιδσ ιν δκως διαφερόμενον έαυτώ ομολογεί ώσπερ άρμονιαν τόξου τε κα ί λύρας” (Fr. 51).

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“ techne” do m édico ou do m úsico é encarregada de reconciliar os contrá­rios “ inim igos” , durante o tem po em que se faz deslizar o sujeito de um a outro. Q ue sentido pode então preservar a palavra que os fazia surgir com uma m esm a base e “ao m esm o tem po” ? “N oite e dia, isso é U no" (fr. 57); “O Deus é N oite e Dia, Inverno e Verão, Guerra e Paz” (fr. 67) ... Para ter a sorte de entendê-lo, seria preciso novam ente questionar o discurso dora­vante constituído: os gregos preferem renunciar a com preender seu passa­do (“ Pelos D euses, Teeteto, com preendes algo do que dizem ?” ). E, sem dúvida, nada há para ser com preendido no logos de Heráclito, se aí se bus­car, com o o atesta essa passagem do Sophiste [Sofista] (243 b), um a defini­ção do Ser. N os fragm entos, o vocabulário do Ser ainda não está elaborado: freqüentem ente os sujeitos são plurais neutros que não designam onta de­terminados, Ser e N ão-ser nunca são denom inados como infinitivos.94 Lin­guagem pré-filosófica, visto que é anterior às dificuldades sintáticas que a filosofia assum irá com o tarefa a resolver.

Q uerem forçosam ente dar a H eráclito direito de cidadania entre as doutrinas? D esde Platão, a tradição forja a lenda do “m obilism o heraclitia- no” : na superfície das coisas, assim com o na do rio, os opostos se repeli­riam, sem que jam ais o discurso pudesse deter a sua passagem . Essa inter­pretação prefigura, sem dúvida, contra-sensos por vir acerca da dialética. A esse preço, com efeito, a “verdadeira dialética” assum e um rosto tranqüili­zador: inserta no tempo e esposando o seu curso, ela não exprim e mais que a incerteza do sensível. Tagarelando sobre o rio que corre, Heráclito teria feito com que se alternassem um Ser e um N ão-ser já constituídos, no lugar de fazer com que regressássem os até a am bigüidade primordial de onde poderiam, em seguida, surgir os conceitos de “Ser” e de “N ão-ser” . Teria se contentado em com entar um devir cujo papel consiste tão-só em deixar os contrários coexistir sem escândalo. Vamos reler a crítica de Platão: como os opostos poderiam se harmonizar, enquanto permanecem opostos? O voca­bulário da tem poralidade, por si só, desvela o valor estratégico desta ú lti­ma. A o com entar o m esm o texto de Heráclito, Hegel replica a Erixímaco:

N ão é um a objeção a Heráclito, que quis justam ente isso. A harm onia

pertence a diferença; para ela, é essencial ser pura e sim plesm ente um a dife­

94 “Q uanto à nom eação do ser ao infinito com um sentido ontológico forte, sabe-se que ela não é atestada antes de Parm ênides” . “O s outros em pregos do verbo ser são igualm ente discutíveis . . . ” . A expressão e Í ( í e v t e xcd o w eT|j.£v só figura no su spe ito fragm ento 49 a

(Cf. Ram noux, Héraclite, p .255 e 259 ).

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rença. Essa harm onia é justam ente o devir absoluto, a alteração [Verändern] -

não um devir-outro, agora isto e depois outra coisa [nicht Anderswerden, “jetz t”

dieses und "dann" ein Anderes]. O essencial é que todo diferente, todo particular é

diferente de O utro - não, abstratam ente, de qualquer outro, m as de seu Outro;

cada qual só é na m edida em que seu O utro está contido em si no seu conceito

... A harm onia pertence um a oposição determ inada, seu oposto, com o na har­

m onia das cores. A subjetividade é o O utro da objetividade, e não de um a folha

de papel. Aqui, o absurdo aparece igualm ente: [o term o] deve ser seu O utro, e

nisso é que consiste sua identidade; cada um é assim o O utro do O utro, com o

de seu O utro .95

Não se trata de “um devir-outro, agora isto e depois outra coisa” . En­tendamos que o fluxo, por contra-senso cham ado “heraclitiano” , é um a das primeiras traições da dialética com o relativism o. Essa traição aliás é dupla e, nela, é preciso distinguir dois m om entos.

1) O conceito de tem po ao qual se recorre com o condição de possibili­dade do Anderswerden é arbitrariam ente forjado para dar razão ao vínculo dos exclusivos - “a ordem das possibilidades inconsistentes que no entan­to têm conexão” , com o Leibniz o definirá. Kant estim ava inútil e equívoco m encionar o tem po na formulação do princípio de contradição, visto que a função (estritam ente lógica) deste últim o é explicitar o predicado com o constitutivo do conceito (“nenhum hom em ignorante é instruído”) e não afastar a oposição dos predicados (“um hom em ignorante não é ao m esm o tem po instruído” ). Ele excluía, portanto, a palavra zugleich do enunciado do princípio,96 mas sem contestar a função de com prom isso exercida clas­sicam ente pelo tempo. Ora, a ela é que Hegel se opõe. E im possível reco­nhecer a estrutura do Tempo em um conceito elaborado unicam ente para que, nele, com o em um continente, certos predicados possam não ser pos­tos conjuntam ente. “N o tem po, dizem, nasce e passa toda coisa; porém, se se faz abstração de tudo, a saber, daquilo que preenche o tem po com o da­quilo que preenche o espaço, então resta apenas o espaço e o tem po vazios. Não é verdade que tudo nasça e passe no tempo: é o próprio tem po que é esse devir, esse nascim ento e esse desaparecim ento, a abstração sendo, Cronos engendrando e destruindo os seus filhos.”97 A ntes de Bergson, Hegel

95 Gesch Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .352.96 Kant, K R V [Crítica da razão pura], B, p .142-3.97 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 258, IX, p .80

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critica, portanto, a espacialização do tempo. Mas de m aneira algum a se tra­ta de distinguir a sucessão indistinta e a sucessão estendida na exteriorida­de, pois essas duas formas nunca seriam, para Hegel, senão dois tipos de “m ultiplicidades”, duas representações diferentes da identidade, posta como óbvia, do mesmo rio: as duas categorias tradicionais do Tempo, “unidade” e “ m ultiplicidade” , estariam, portanto, salvaguardadas. Sem a m ultiplicida­de, é im possível pensar o tem po com o fluxo irreversível; sem a unidade, “ correm os o risco de nem m esm o poder com preender que haja um tem ­p o".98 Hegel corre esse risco: o tem po hegeliano não é a síntese do Uno (aqui) e do M últiplo (ali), quer no m odo de um a justaposição, quer no de uma fusão. Seus m om entos não constituem nenhum a pluralidade; nenhu­m a m aturação os solda. D esse lampejo incessante, que direito tem os nós de fazer um plural? É sim plesm ente o ato da contradição que se suprim e com o contradição.

N o tem po, os m om entos do real sobrevêm um fora do outro, um é agora,

o outro foi, o outro será. N a verdade, porém , tudo está igualm ente num a ún i­

ca unidade. Essa exterioridade não convém ao tem po com o tem po, m as antes

ao espaço que nele está; pois o tem po não é justam en te esse espalham ento

indiferente dos m om entos, m as esta contradição que consiste em ter, num a

unidade im ediata, o puro e sim ples op osto .99

A fenom enología do tem po faz, portanto, justiça à im agem do “fluxo” . Degradado em continuum, o tem po deixava que os opostos já constituídos se sucedessem ; restituído em sua fulgurância, ele anuncia - e anuncia so­

mente, “em um a unidade im ediata” - a “ unidade negativa" desses opostos.

2) D evem os, portanto, com preender que Heráclito opusesse, à “repre­sentação” do tem po, o seu verdadeiro conceito? E para entrever o que é o "devir absoluto” , bastaria voltar do tem po-dim ensão ao tem po-explosão? N em isso sequer, pois este últim o ainda é um a abstração. Sem dúvida, a im agem da nadificação ininterrupta é útil para criticar a do tem po substan­cial; não m ais que esta, porém, aquela exprim e o m ovim ento concreto das categorias. Decerto, o tem po não é; porém, esse N ão-ser não subverte de m aneira algum a a velha gramática do Ser e do Não-ser. “ Ele é o ser que,

98 Sartre, LÊ tre et le N éant, p. 181.99 Jenenser Realphilosophie [Real filosofia ienense], II, p.10.

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sendo, não é e que não sendo, é ” ; mas H egel acrescenta: “ é o devir intuído [das angeschaute Werden]; isso equivale a dizer que as diferenças puram ente m om entâneas, ou seja, que se suprim em im ediatam ente, são determ inadas com o exteriores, ou seja, todavia, exteriores a si m esm as” .100 Esse “ todavia” (jedoch) marca o progresso na explicitação que se efetua quando se passa do espaço ao tem po: aqui, não há m ais justaposição im óvel dos m om entos. Mas, visto que cada m om ento se suprim e de fato ao se tornar outro, som os naturalm ente levados a imaginar esses m om entos com o exteriores uns aos outros - e pouco importa, a partir de então, que se integrem esses temporalia

em um continuum ou deles façamos, com o A ristóteles,101 consecutivos não contíguos. A partir do instante em que a exterioridade das determ inações é preservada, nada m ais há que desconcerte o pensam ento de Entendim ento. Bem pelo contrário, a supressão im ediata do instante a confirm a em seu preconceito e m ostra, se necessário for, que um ente que é-no-m odo-do- não-ser não é nada. E som ente nesse Nada [Rien] que o pensam ento de En­tendim ento presta atenção. U nidade de fato do Ser e do Não-ser, o instante não perm ite, portanto, captar de novo a unidade de direito dessas catego­rias, e a fenom enologia do tem po só pode nos conduzir à supressão do sensível, nunca à “fluidificação dos puros pensam entos” . N o m áxim o, à abdicação do discurso. Ora, os doutrinários do Ser não pedem m ais do que isto: o “m obilism o” , se for conseqüente, pensam Platão e A ristóteles, deve resignar-se ao silêncio.

Sequer seria preciso dizer essa palavra assim, visto que assim não im plicaria

mais m ovim ento - nem sequer assim, tam pouco isso sendo m ovim ento. Para os

que sustentam esse discurso, resta portanto forjar algum outro vocábulo, pois,

atualm ente, não têm mais nenhum term o que se ajuste à sua hipótese.102

A análise do tem po, portanto, não nos faz sair do cam po ontológico de onde o ceticism o, com o vim os, não conseguiu se evadir. A dialética marca passo. Ela perm anece, no m elhor dos casos, um a interm inável polêm ica que rebaixa a instabilidade e a nulidade das coisas fmitas, sem repor em questão a fm itude das categorias. O instante ao m esm o tem po sendo não é:

100 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 258, IX, p .79.101 A ristóteles, Secondes Analytiques [Segundos analíticos], 95 b 20 ss.102 Platão, Théétète [Teeteto], 183 b.

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ele portanto não é, afinal de contas - e esse “N ão-ser” a que se chega, não se pensa em tem atizá-lo, assim como, há pouco, o N ão-ser em que desem bo­cava o Cético. N em sequer se nota essa calma identidade consigo da cate­goria do “N ão-ser": ela é óbvia. O pensam ento, é verdade, não pode ir mais longe, enquanto estiver bloqueado na análise do imediato; a filosofia sem ­pre voltará a essas “ evidências” , enquanto se recusar a ser uma sim ples investigação do discurso. Por isso, com preende-se por que todos os com en­tários de Hegel, fundados de preferência nas descrições existenciais ou “ con­cretas” , em reação ao “panlogism o” , tendem invariavelm ente a conduzir a dialética a essa dialética de Entendim ento que m ostra, sem dúvida, o en­trelaçam ento das categorias (do Ser e do N ão-ser no instante), sem nunca contestar, porém , sua fixidez. E o que faz, por exem plo, Merleau-Ponty, quando ínflete o hegelianism o no sentido de uma filosofia da am bigüida­de: “De fato, só podem os conceber o nada com base em ser ... Só há ser para um nada, mas só há nada no vazio, do ser” .103 Esse “de fa to ” subenten­de, em termos hegelianos, a resolução de perm anecer no im ediato, assim com o a recusa de passar ao exame das categorias em e para si. É nesse terreno de fato que A ristóteles se coloca, com batendo a Heráclito: de fato, o Ser não é a m esm a coisa que o Não-ser. “ Por onde logo se vê” , com enta Hegel, “que A ristóteles não com preende o Ser puro ou o N ão-ser puro, essa abstração, que essencialm ente é apenas a passagem de um a outro.” 104

“ Eles precisariam de uma nova linguagem ”, diz M ontaigne acerca dos céticos. E já Platão: “que forjem então uma nova phoné” . Mas a linguagem que deles se reclama deveria ser outra linguagem de Entendim ento. A lín­gua verdadeiram ente inédita que os céticos deveriam falar, se tivessem ido até o fim de sua crítica da Finitude, não seria justam ente a de Heráclito? Entre a obscuridade que nele desdenham e a m editação sobre o tem po- que-passa que acabam atribuindo a ele, “a verdadeira dialética” não teria surgido, à revelia da tradição? Hegel pensa que sim: “o que nos restou de Heráclito é im portante, mas devem os supor que o que foi perdido é para nós igualm ente im portante” .105 Basta liberar o Alies fliesst da interpretação tem poralizante que nele se enxertou para que decresça a obscuridade do efésio e desm orone a lenda do “m obilism o” . “Só o Ser é e o N ão-ser não é . . . A essa abstração sim ples e unilateral, o profundo Heráclito opôs o con-

103 Merleau-Ponty, Sens et Non-sens, p. 117.104 Gesch Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .320.105 Ibidem, XVII, p.369.

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ceito mais elevado e total do Devir, e disse: o Ser é tanto quanto o Nada, ou ainda: Tudo se escoa.” 106

O discurso de Heráclito só seria pueril se ele se contentasse em unir arbitrariam ente os opostos; mas tudo muda, se ele denuncia, antecipada­m ente, a vaidade que há em constituí-los. Esse lampejo louco que une o Dia e a N oite, o Inverno e o Verão, o Uno e o M últiplo, longe de conciliar os inconciliáveis, abala o que deles fará inconciliáveis. Para Hegel, é a m es­m a coisa criticar os anacronism os na leitura tradicional de Heráclito e de­m onstrar a im possibilidade em que se encontrava tal tradição para ter acesso à dialética. Prolongam ento do antiplatonism o de Kant: a filosofia com eça a encontrar sua verdade em um passado que os clássicos gregos relegavam à barbárie, a ponto de que Hegel tem dificuldade, no caso, em perm anecer fiel ao desprezo que professa para com as origens. “Ou então, se quiserm os tom ar com o legítim o que o destino, com o sempre faz, tenha reservado o m elhor para o m undo que viria em seguida, devem os ao m enos dizer que o que Heráclito nos anunciou era digno de ser preservado.” Qual era, no es­sencial, essa boa-nova?

Captar a própria dialética com o princípio, esse é o progresso necessário -

e isso é o que H eráclito realizou. O Ser é o Uno, o prim eiro term o; o segundo é

o Devir. Ele chegou a essa determ inação. Tal é o prim eiro concreto, o A bsolu to

com o [tendo] nele a unidade dos opostos. Em H eráclito se encontra portanto,

pela prim eira vez, a Idéia filosófica em sua form a especulativa. Por isso, por

toda a parte, ele foi tido com o um filósofo profundo e m esm o criticado com o

tal. A qui, enxergam os a terra; não há nenhum a proposição de H eráclito que eu

não tenha recolhido em m inha L ó g ica ... O Infinito, sendo em e para si, é a

unidade dos opostos - e dos opostos universais, da pura oposição, Ser e N ão-

ser. Se tom am os o Ser puro em e p a ra s i e não com o a d eterm in a çã o do ente, d o ente

p r een ch id o [des e r fill lte n ] , ele é o pensam ento sim ples em que todo determ inado

é negado, o negativo absoluto. Ora, o Nada é a m esm a coisa, justam ente esse

igual a si - eis a passagem absoluta no oposto ao qual Zenão não chegou (“ Do

Nada surge o N ada”). Em Heráclito, o m om ento da negatividade é im anente; é

por esse m otivo que isso diz respeito ao conceito de toda a filosofia.107

106 Logik [Lógica], IV, p.90.10 7 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .344 e 3 51.

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Se o captarm os novam ente em seu frescor arcaico, antes do nascim en­to do conceito de tem po (que m ais cam ufla que prefigura a oposição abso­luta), a palavra de Heráclito só tem sentido se descreve o m ovim ento pelo qual cada um a das (futuras) categorias transgride seu lim ite e só encontra sua plena significação ao se reunir em seu O utro. A identidade consigo ainda não é um a propriedade do conteúdo; já é a atividade (Tätigkeit) que se explicita, ao passo que ela parece se perder em seu O utro. D esta vez, a justaposição dos opostos não é mais equivalente a seu desaparecimento: o “ e assim ... e assim ” não desem boca mais em nenhum “nem assim ... nem assim ” . Decerto, tom ados com o tais, os contrários se suprim em, desde que reunificados. N o entanto, H eráclito se dá ao direito de pronunciar o im ­possível. Ele quer significar que algo permanece por m eio da supressão recí­proca: não um substrato ainda “ sendo de alguma m aneira” , com o a ule de Aristóteles, mas o próprio ato da supressão. Heráclito faz o sentido das palavras vacilar. Mas nunca se trata senão de seu sentido determ inado cedo demais, arbitrariam ente lim itado pelas exigências do léxico - e a explosão desse sentido não desem boca no não-sentido.

Mas não vam os rápido demais. N o estágio em que estam os, essa é apenas um a sim ples garantia, criticável e, em todo caso, desconcertante. Com o fazer para que a crítica heraclitiana da Finitude não seja sentida como paradoxo?

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V I

A NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO

Os aforism os de H eráclito só perderão seu sabor enigm ático, caso se consiga reencontrar a sintaxe que torna lícita a união dos contrários. A penas a esse preço o paradoxo será neutralizado. Porém , aos olhos de toda a tradição, a própria idéia de sem elhante em preitada é insana. Com o falar de um a síntese de predicados que são tidos, por definição, com o incom patíveis? C om o a “ união” desses predicados, qualquer que seja a m aneira pela qual for descrita, deixaria eventualm ente de ser contraditó­

ria? E im possível superpor os diferentes, harm onizar os exclusivos; sem ­pre se volta ao m esm o ponto, e todas as dialéticas do Entendim ento aca­bam por se chocar com esse in terd ito . E vid ên cia in con torn ável, que lem bra, por exem plo, H am elin, no início de seu livro, avisando ao le i­tor que sua d ialética não terá nada em com um com a p restid igitação hegeliana.

Q uan do se quer identificar sem restrição nem reservas duas coisas di­

feren tes ... sem pre se faz nascer com isso um a contradição, qualquer que

seja a n atureza da diferença que separa as duas coisas, v isto que a opera-

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2 6 4 G É R A R D L E B R U N

ção ten tada equivale a pôr em jo go o n ão-diferen te, con trad itório do d ife­

rente, e a querer, além disso, que am bos sejam apenas u m .1

Essas linhas de Ham elin têm o m érito de circunscrever a dificuldade de que não se deverá esquivar, antes de dirigir a Hegel qualquer apreciação que seja - e sobretudo um a apreciação favorável. Por isso, longe de ver nesse texto a expressão de um juízo sumário, torríar-se-á o cuidado de partir do ponto de vista que ele escolheu para então investigar, a partir daí, se não se pode entrever outro ponto de vista no qual a dialética hegeliana seria algo distinto do efeito de um a decisão dem asiado fácil e tão pouco séria. N ote­m os inicialm ente que Hamelin, preocupado em tornar sua dialética credível,

insiste na distinção entre contrariedade e contradição. N esta, a oposição é ab­soluta, “o oposto é a negação sem reservas do p osto” . Naquela, os dois term os, extrem os de um m esm o gênero, não se negam inteiram ente um ao outro: o ponto e o intervalo são am bos algo de espacial; o U no e o M últiplo, ambos, algo de numérico. Indo de um a outro, não vou portanto de um a tese a uma antítese “que seria som ente sua negação” ;2 se levar a cabo m inha empreitada, terei o direito de dizer que o sujeito é sim ultaneam ente uno e m últiplo, todo e parte etc., sem transgredir o princípio de contradição. Mas que valor tem essa acomodação? Seu único interesse, claro, provém de que se supôs que o encontro de um a relação contraditória seria absurdo - que a contradição é o nihil negativum. E se o dialético faz questão de assegurar ao seu leitor, àquele que poderia ficar inquieto com a palavra “ dialética” , de que não voltará mais ao assunto, é que ele não pensa questionar tal evi­dência. A contradição perm anece com o vazio, garantia de que o discurso não será insano. Enunciar a contradição seria dizer o não-ser, formar uma asserção em que o sujeito seria um não-sujeito.

N o plano do Entendim ento, a contradição é algo de absoluto, de últim o -

ela constitui o lim ite absoluto para o horizonte do pensam ento, lim ite além

do qual não se deve ir, m as do qual se deve voltar.3 O horror habitual que o

pensam ento representativo, não especulativo, tem da contradição (assim com o

a natureza tem horror do vazio) repele essa conseqüência, pois ela perm anece

na consideração unilateral da contradição em N ada.4

1 H am elin, Essai, p. 11.2 Ibidem , p .12.3 Beweise, XVI, p .513 ; trad, fr., p .l8 3 .4 Logique [Lógica], IV, p .549-50.

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Decerto, pensa Hegel, nem tudo é falso nessa atitude: é verdade que a contradição é insustentável e as crises devem ser resolvidas. Mas a d issolu­ção não quer dizer anulação ex officio, e seria errado acreditar que exorcizar a contradição dispense de descrever-lhe o m ecanism o.

O que em geral m ove o m undo é a contradição; e é ridículo dizer que a

contradição não se deixa pensar. Eis tão-som ente o que há de ju sto em tal

afirmação: não é possível se ater à contradição e esta se suprim e por si m es­

ma. Porém a contradição suprim ida não é então a identidade abstrata, pois

esta só é um lado da oposição.5

A partir daí, um a questão se coloca. Por que se interpreta, de saída e tão unanim em ente, a fragilidade ou a instabilidade do estado-de-coisas con­traditório com o um a supressão abstrata, um a queda na “ identidade” do Nada puro e simples? Ou ainda: no interior de que cam po ontológico tal decisão se impõe? E com isso que segurança se trata de assim preservar clandestinam ente? Pensar dialeticam ente, com o sabemos, consiste de iní­cio em m etam orfosear princípios em preconceitos, em liberar o sentido das “ evidências" que faziam que se prejulgasse a sua natureza. Q ue “ evi­dências” é preciso portanto trazer à luz do dia para que a contradição deixe de ser autom aticam ente igualada a Zero?

1

Q uando se declara que os opostos são incom patíveis, dá-se de saída um sujeito singular em relação ao conjunto dos predicados possíveis. E pretende-se que tal sujeito A deva possuir necessariam ente um dos predi­cados contraditórios (determinação completa) e que não possa ter sim ulta­neam ente dois predicados contrários.

O vazio da oposição dos conceitos pretensam ente contraditórios está per­

feitam ente apresentado na form ulação, por assim dizer, grandiosa de um a lei

universal que gostaria de que a cada coisa equivalesse um e não o outro de

todos os predicados assim opostos, de m aneira que o espírito é branco ou não

branco, am arelo ou não amarelo, e assim ao infinito. C om o se esquece de que

5 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 119, Z., 2, VIII, p .280; trad. br., I, p .236-7.

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Identidade e O posição são elas próprias opostas, a proposição da oposição é

tom ada tam bém com o a da identidade na form a do princípio de contradição, e

é tido com o logicam ente falso um conceito ao qual não convém nenhum a das

duas características que se contradizem ou um conceito ao qual am bas con ­

vêm (um círculo quadrado).6

Encara-se portanto a contradição dos predicados e as regras de incom ­patibilidade que a governam, de tal m aneira que a determ inação (de um sujeito singular e limitado) só pode consistir em pôr um predicado excluindo seu contraditório ou seu contrário. Determinatio negatio é sem pre traduzido por determinatio exclusio. Notar-se-á assim que Hamelin, para refutar a Hegel, insiste nesse sentido do adágio espinosista - para ele, o único concebível. “A noção de um ser finito, tom ado ao acaso no m undo” , escreve ele, “ ex­clui certam ente outras noções: mas isso quer dizer que tal ser finito é in­com pleto, ou, mais precisam ente, que sua essência se põe por exclusão de um contrário. Isso não quer dizer que envolva um a contradição” .7 Com isso, Hegel concordaria perfeitam ente. Mas o exem plo tom ado por Ham elin para esclarecer a situação e se conciliar com o bom senso (um ser incom pleto e exclusivo) lhe pareceria, crem os nós, sintom ático daquilo m esm o que o filósofo do Entendim ento não entende e, de m odo algum, põe em causa: que a determ inação com pleta seja o único horizonte sob o qual se pode descrever legitim am ente a exclusão e a união dos predicados. E óbvio que, a um ser finito, apenas uma das qualidades opostas pode convir.8 Mas com que direito nos conduzim os segundo a regra do Finito? A determ inação com pleta das coisas finitas (“tom adas ao acaso no m undo” ) nos conduz a um a certa idéia, talvez parcial, da exclusão e da incom patibilidade dos pre­dicados, que não se poderia dar ex officio com o incondicionalm ente válida. N o que desem boca, com efeito, tal extrapolação?

N o sujeito singular limitado, de cujo pensam ento representativo ele é capaz de se despreender, as propriedades, mais do que unidas, são justapos-

tas: diferentes, decerto, mas com base em um a indiferença que faz que elas t se tolerem . É inofensivo então reconhecer que A é b ("a árvore é alta”) e A

\lfaSlh',Jh, é não-b (“A árvore é não alta”, visto que ela é também espessa, verde etc.). O conjunto formado pelas propriedades empíricas nunca m ostra a oposição (■Gegensatz), mas só a diversidade (Verschiedenheit), entendida com o exclu-

6 Ibidem , VIII, p.277.7 H am elin, Essai, p.29.8 Propédeutique [Propedêutica], trad. fr., p .141.

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são recíproca de conteúdos positivos coexistentes. Assim , desde já, a determ i­nação com pleta acarreta consigo um a im agem bem determ inada da comu- nidade-predicativa e m esm o da comunidade em geral. Com unidade que re­sulta da adição das determ inações, sem jam ais constituir, porém , um a totalidade. De m odo que um enunciado negativo só pode ser um enuncia­do indeterm inado que “deixa de lado todo conteúdo” .9 O “não-quente” é o O utro indeterm inado do “ quente” , e não positivam ente o “frio” ; “esta ár­vore não é alta” não significa necessariam ente que esta árvore é pequena, mas pode querer dizer que ela tem um a grandeza normal. Em suma, na pseudototalidade assim formada, nunca é estipulada a diferença que sepa­ra cada determ inação de todas as outras; se os conteúdos são vistos como distintos, não é em razão de sua dessemelhança. Eis o que é próprio à esfera da Diversidade: com o no espaço kantiano, sempre se podem discernir os in- discerníveis (ou os indiferentes). Apenas a razão externa de discernir dá conta da diferenciação, longe de estar fundada na razão interna, com o que­ria Leibniz.10 E a partir daí a diversidade só é interna de nome, com o bem o m ostra esta frase de Kant:

A qui, há um a diferença interna [innere Verschiedenheit] dos dois triângulos

que nenhum entendim ento pode tom ar com o interior [innerlich] e que só se

m anifesta pela relação exterior.11

9 Kant, K R V [Crítica da razão pura], “Ideal Transcendantal", B, p .387.10 Q uando Leibniz escreve: “A substân cia sim ples, em bora em si não tenha extensão, tem

entretanto um a posição, que é o fundam ento da extensão . . . ” (Carta a des B osses, Ph. Sch., II, p .339), ele quer dizer que o espaço e, por conseguinte, a extensão não teriam nenhum estatuto - e o situs seria apenas um a palavra, se não fo sse a m arca exterior de um a diferenciação prim itiva. D aí a com paração entre os pontos (abstratos) e as M ônadas: o s pon tos não seriam nada, se não fossem vários; m as com o a pluralidade poderia advir, se não fo sse a transposição de um a diferenciação ontológica? E ssa p luralidade testem u ­nha, portanto, a favor da existência de um a relação de exclusão fundam ental. A m esm a que, na M onadologie [M onadologia] (§ 8-9), perm ite oferecer a prim eira característica do que podem ser o s Á tom os não-im aginativos: “ Se as substân cias sim ples não se diferen­ciavam por su a s qualidades ... é preciso m esm o que cada M ônada se ja diferente da outra . . . ” . Sem tal diferenciação original, não há m ultiplicidade.

11 Kant, Régions de l ’Espace [Regiões do espaço], II, Ak, p .377-8. H. D eleuze vê aí um a razão para atenuar a oposição tradicional entre Kant e Leibniz: “ Se Kant reconhece nas form as da intuição diferenças extrínsecas irredutíveis à ordem dos conceitos, ta is diferenças não deixam de ser internas, em bora não po ssam ser assin aladas por um entendim ento com o intrínsecas e não se jam representáveis senão em su a relação exterior com o espaço inteiro” (Différence, p .40).

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^ ^ H ~ í ~ ~ ~

N essa com unidade articulada só por um vínculo exterior, “ Identidade” e “ Diferença” são neutralizadas ex officio em “igualdade” e “ desigualdade", duas categorias tais que mantêm, antes de tudo na sua indiferença, os ter­m os que elas põem em relação,12 duas categorias que se dão a si m esm as com o indiferentes entre si, ao passo que cada um a só faz sentido, na realida­de, na e pela negação da outra.13 Essa verdadeira relação, porém , a D iversi­dade tem justam ente por objetivo camuflá-la: é preciso, doravante, que os diversos só se excluam no elem ento da justaposição, e não no interior de um a unidade totalizante. Solicita-se um exem plo dessa ontologia espontâ­nea da justaposição? Rem eta-se à categoria kantiana de comunidade.

C om o um a parte não pode ser pensada com o encerrada na outra, as par­

tes são concebidas com o coordenadas entre si ... de m odo que elas se deter­

m inam entre si reciprocam ente como num agregado (isso quer dizer que pôr um

m em bro da divisão é excluir todos os outros e reciprocam ente).14

Conjunto de partes exclusivas e no entanto unidas. Kant acrescenta:

O s m em bros da divisão se excluem uns aos outros e no entanto [und

doch] estão vinculados num a esfera ... [O entendim ento] representa as partes,

cada um a das quais, com o tendo, com o substância, um a existência indepen­

dente da existência das outras, e no entanto com o unidas num to d o .15

O s conteúdos são simultaneamente unificados e distintos, simultaneamente

dependentes e independentes. Simultaneamente, m as sobretudo não “no m esm o m om ento” ou “ sob o m esm o ponto de vista”, com o indicam as pa­lavras “ e no entanto” , “e entretanto” . Há, portanto, união e diferença, mas não união na diferença. Em linguagem hegeliana, os m om entos da sim ilitude e da dessem elhança recaem um fora do outro. De um lado, os conteúdos têm sim ilitude suficiente para serem com paráveis - de outro lado, dessem e­lhança suficiente para serem distinguidos. A ontologia da justaposição é

12 Logik [Lógica], IV, p .519-20.13 "E las e stão em relação um a com a outra, de m aneira que um a é o que a outra não é; o

Igual não é o D esigual e o D esigual não é o Igual; am bos têm essencialm ente e s sa rela­ção e, fora dela, nenhum a significação; com o determ inações da diferença, cada um é o que é com o diferente de seu O utro” (Logik [Lógica], IV, p .520).

14 Kant, K R V [Crítica da razão pura], B, 96-7.15 Ibidem , p .97.

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encarregada de salvaguardar essa dualidade de planos e, com isso, m anter a diferença à distância do M esm o, proceder de m odo que a diferença nunca concirna ao ser. Esta estranha obstinação em “ De um lado ... de outro lado” tom a outras formas, é verdade. Transparece m esm o em Leibniz, se bem que entre os clássicos seja ele quem, neste ponto, em virtude do princípio de identidade dos indiscerníveis, mais parece anunciar Hegel. Sem dúvida, a diferença, em Leibniz, não é sinônim o de descontinuidade. Resta, porém, que ela não está de m odo algum inscrita no ser. Se cada U nidade ou M ónada é diferenciante, é à m edida que ela representa todas as outras à sua m anei­ra única; logo, a diferença só nasce pela distância do índice de representa­ção própria a cada Unidade e não é jam ais senão variação na representação

do M esm o.16 Continuidade no ser, divergência tão-só nas expressões: tal é a separação. E por isso que a lei de continuidade, em definitivo, perm anece a dom inante no sistem a de Leibniz (como bem viu M ichel Serres) e se con­cilia facilmente, a despeito das aparências, com a variedade m áxim a e com a dispersão dos discerníveis. Passar de Leibniz a Hegel é, ao contrário, dei­xar de jogar com esse duplo registro e recusar-se a ver a diferença como heterogênea ao Ser, com o risco de conferir a este últim o um a significação

inédita.C om isso, pressente-se melhor, talvez, qual é o objetivo visado por

Hegel ao analisar e criticar a noção de comunidade-de-justaposição, tal como se acaba de evocar e, m ais amplam ente, a noção de alteridade que a susten­ta. Em que consiste o m odelo de alteridade ao qual se refere espontanea­m ente o pensam ento clássico? Tentemos reencontrá-lo tal com o vai sendo elaborado no interior do espinosism o, em que seu funcionam ento aparece

com o m áxim o de clareza.

16 Cf. a carta de Leibniz à Senhora M asham (Ph. Sch., III, p .339): não é verossím il que o corpo h um an o seja o ún ico a con ter um ser sim ples dotado de ação e seja assim “h e te ro ­g ê n e o ” em relação a tod os os dem ais. A N atureza, então, “ seria p ou co ligada” . O ra, a n atureza, u n iform e no fundo, “varia nas m aneiras, graus e p erfe içõ es” : “há p or toda parte tais seres ativos na m atéria, e não há diferença senão na m aneira da p ercep ção” . Seria possível, portanto, com preen der a relação de H egel com Leibniz do segu in te m odo: em prim eiro lugar, a diferença não é descontinuidade. Sobre esse ponto, H egel retom a Leibniz: é o E nten dim en to, segun do ele, qu e transpõe o negativo em distância, ju stap osição de indiferentes. Em segu n do lugar, a diferença, para H egel, está entretanto no coração do ser, lon ge de ser efeito de divergên cia na superfície. Isso se deve ao fato de, em H egel, não haver m ais d istin ção entre a exp ressão e o expresso. O “ponto de v ista fin ito ” exp ressi­vo, exterior ao ser para Leibniz, em H egel torna-se a explicitação do ser. O que era afasta­m en to superficial em relação ao M esm o torna-se exp licitação do M esm o.

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O co n ce ito de a lterid a d e , para E sp in o sa , está v in cu la d o ao de m odalização. Com efeito, os m odos, se bem que essências positivas,17 pos­suem um a “ existência determ inada” , envolvendo um a negação. Daí a ques­tão: com o um a coisa positiva pode, de algum a maneira, envolver um a ne­gação? R esp o sta de E spinosa: um a co isa que p o ssu i um a ex istên cia determ inada resulta de um atributo de Deus enquanto ele é afetado por uma outra determ inação finita (Ética, I, 28). Com isso, os m odos finitos são em Deus, mas sem emanar diretam ente dele; são em Deus, mas só com o Deus é cunhado pela infinidade das causas segundas. É portanto im possí­vel com preender a pluralidade delas, sem recorrer ao vocabulário do Todo e das Partes, m esm o que esse vocabulário seja antropom órfico e inaceitá­vel no absoluto.18 D izer que um m odo tem uma existência determ inada é dizer que seus efeitos não dependem de sua única essência (II, 30) e só são inteligíveis, se se levam em consideração as outras coisas exteriores (III, 3): a determinatio não teria sentido, se não fosse com entada pela alteridade e pela exterioridade. Mas isso não significa que o m odo existente, para ser com ­preendido, deva ser apenas reconduzido à totalidade que o envolve. De um lado, por certo, sua existência é indeterminável, se ele não for inscrito no Todo de que é parte:

Q uando consideram os unicam ente a essência dos m odos, m as não a or­

dem efetiva de toda a natureza, não podem os concluir, pelo fato de eles existi­

rem atualm ente, que deverão existir ou não existir, ou que devem ter existido

ou não existid o .19

Mas, por outro lado, podem os separar pelo pensam ento o m odo des­sa totalidade: ele é, portanto, existência-dependente bem com o ind epen ­dente, parte integrante bem com o parte total, com o indica E spinosa a O ldenburg:

Considero as coisas com o partes de um certo Todo, enquanto cada um a

delas convém a todas as outras, de m odo que são, todas entre si e na m edida

do possível, harm oniosas e concordes; mas, enquanto essas coisas se opõem, cada

17 Sobre a distinção a fazer entre os m odos e os seres de razão, cf. a carta XII a Luis Meyer. É por não ter sabido distinguir os seres de razão das coisas reais que se confundiu, por exem ­plo, a duração de um a coisa com o tem po bem como que ela foi com posta de instantes.

18 Espinosa, Ethique [Ética], I, proposições 12 e 13.19 E spinosa, Lettre X II [C arta XII], Ed. Plêiade, p .1153.

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urna délas form a, então, em nosso espírito, um a idéia separada e deve ser

considerada, não com o um a parte, m as com o um todo.20

E portanto perm itido descrever a m odalização com o um a justaposição de totalidades-parciais. Ora, qual é o benefício dessa descrição? Ela dá conta da co-presença de realidades distintas, sem que jam ais tal distinção incida na positividade de cada um a delas. Assim , m esm o que a pluralidade dos m odos finitos seja em si ilusória, resta que, no próprio coração dessa m es­m a ilusão, a negação ainda é neutralizada e a ilusão, ao m enos, não é aberrante. Há sem dúvida exclusão recíproca de realidades, mas exclusão justaponente. Em outros termos - e isto é o que era preciso salvaguardar -, só há positivos que se justapõem , com o países em um a carta geográfica. Se a negação está presente é som ente com o lim ite - e o lim ite não é nada, sequer o contorno por ela circunscrito. “Na natureza, todas as partes devem se reunir de m aneira que não haja vazio.”21 O seguinte texto do jovem Kant, retirado de um escrito de 1759, parece então extrair de m aneira suficiente­m ente exata o sentido e o alcance da alteridade segundo Espinosa:

A firm o que um a realidade nunca pode diferir de um a realidade com o tal.

Pois, se coisas diferem umas das outras, isso advém daquilo que está num a e

não na outra. M as se se consideram realidades com o tais, nelas todo caráter é

positivo ... por isso, não há nada que diferencie um a realidade de um a realida­

de, se não as negações, as faltas, os lim ites que se apegam a um a delas - o que

não toca em sua natureza (qualitas), m as em sua grandeza (gradus) .22

Q ue haja pluralidade, vá lá. Porém, com a condição de que esta exclua toda idéia de privação ou de falta no interior de uma das realidades. N unca há “privação” propriam ente dita, mas só distribuição dos predicados entre os sujeitos positivos (partes ou indivíduos), de m aneira que estes, por mais distintos que sejam, não deixem de perm anecer soldados entre si. Dessa síntese que dá conta da pluralidade, sem jam ais recorrer ao negativo, o ciúm e é um bom exemplo: Pedro e Paulo, um a vez que amam o m esm o objeto, concordam por natureza; se eles se odeiam, é que Paulo possui aquilo de que Pedro acredita estar desprovido.23 A partir daí, toda oposição se re-

20 Espinosa, Lettre X X X II [C arta XX X II].21 E spinosa, Ethique [E tica], I, 15, escölio.22 Kant, Optim ism us, II, p.31.23 E spinosa, Ethique [Etica], IV, 34, escölio.

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2 7 2 G É R A R D L E B R U N

duz a uma querela de proprietários - e a um a querela abusiva: a aparente falta que parece afetar um a essência não é senão a tradução im aginária de um a presença efetiva na essência conjuminada. A negação sem pre volta ao deslocam ento de um a afirmação; a oposição, a um a contestação na reparti­ção das esferas de influência ou de potência. Logo, só há agrupam ento- plural, “com unidade” , entre realidades que são inteiram ente positivas, e a oposição, em últim a instância, não é senão uma interpretação im aginativa enxertada nessa justaposição sem falhas. A ssim tam bém o nascim ento ou a m orte de um m odo finito podem ser sempre descritos com o uma rees­truturação das partes que deixam de obedecer a certa relação característica (de m ovim ento e repouso), para entrar em um a outra relação:24 a ruptura, na realidade, não é senão reorganização do M esm o. Oposição, devir - to ­das as formas da diferença devem poder ser com preendidas, sem que nun­ca seja infringida a estrutura de justaposição. Se a diferença parece essen­cial, é sem pre fora da concordância (exemplo do ciúme) ou em sua superfície.

Mas seria absurdo im aginar uma concordância que estivesse fundada na diferença: nunca o antagonism o, a divergência, a tensão podem ser dados por princípios de um acordo, constituintes de um ser-em-comum. “A coisa é evidente por si m esm a...”

A coisa é evidente por si m esm a. C om efeito, quem diz que o branco e o

preto concordam som ente em que nem um nem outro é verm elho, afirma,

para falar absolutam ente, que o branco e o preto não concordam em nada ...

Pois as coisas que concordam unicam ente na negação, em outros term os, na­

quilo em que elas não têm, na realidade, não concordam em nada.25

Se não fosse assim, seria forçoso devolver ao negativo a consistência que todo o espinosism o se esforça em anular; decerto, seria preciso reco­nhecer nele, não mais o sim ples lim ite quantitativo e extrínseco de uma realidade, mas a marca de um a falta no coração dessa realidade. A ssom bra­da por aquilo que a nega, a essência incluiria então aquilo que a mutila: nele, o conatus deixaria amadurecer sua m orte. Em suma, o positivo deixa­ria de ser sinônim o de indestrutível por si mesmo. Ora, é essa indestrutibilidade intrínseca que im porta salvaguardar - e é por isso que se rejeita no O utro

24 Cf. o capítulo consagrado à “ Existência do M undo” por D eleuze. in Spinoza et le problème

de l ’expression, particularm ente as p. 191-2.25 E spinosa, Ethique [E tica], IV, 32, escolio.

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£3j 2 p O *>p·

indeterm inado (a infinidade das causas exteriores) a responsabilidade de toda supressão:

Enquanto considerarm os som ente a coisa nela m esm a, e não causas ex­

teriores, nela nada poderem os encontrar que possa destruí-la. A força e o cres­

cim ento de um a paixão qualquer, e sua perseverança em existir, não são defi­

nidos pela potência pela qual nos esforçam os em perseverar na existência,

mas pela potência de um a causa exterior com parada com a nossa.26

E essa exigência, afinal, que explica a natureza e a função da noção de alteridade: a alteridade tem por encargo conferir razão à passagem do ser ao nada, ou do nada ao ser, sem que seja novam ente questionado o dogm a de sua indestrutibilidade intrínseca - tornar a fm itude inteligível sem que para tanto o negativo conjurado retom e corpo.

Toda passividade, seja ela passagem do N ão-ser ao Ser, seja do Ser ao

Não-ser, deve ter por origem um ser agente exterior e não interior. Pois n e­

nhum a coisa, considerada nela m esm a, tem um a causa que lhe perm ita se

destruir, se ela for, ou se produzir, se ela não for.27

Mas, nestas condições, que sentido preserva o conceito de oposição? A

“oposição” é escam oteada tão logo evocada. Com o bem se vê na m aneira pela qual é introduzida a noção de contrariedade, no livro IV da Ethique [Éti­ca]: enquanto um a coisa é diferente da outra, não pode nem ajudá-la, nem a contrariar (IV, 29); enquanto possui um a natureza com um com ela, não poderia lhe ser nociva (IV, 30) ... A partir daí, onde alojar a contrariedade? Sob que espécie imaginá-la? Sem dúvida, não com o um conflito. A penas e tão-som ente para um a determ inação presente em um sujeito dado com o a possibilidade de im pedir o advento de outra determ inação em outro sujei­to - o sinal de um rem anejam ento na “ordem total da natureza” . N em se­quer a relação de dois predicados, mas só a substituição de um efeito (pos­sível) de A por um efeito de B. Essa linguagem , de resto, perm anece insatisfatória: ao dar a entender que um possível não veio a ser, eu m eta­m orfoseio sub-repticiam ente um não-acontecim ento em um acontecim ento falho, um a ausência em um fracasso. Ora, nada, salvo, claro, o capricho de

26 E spinosa, Ethique [Ética], III, 4 e IV, 5.27 Espinosa, Court Traité [Pequeno Tratado], II, 26.

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Ç j^ - -f w>"2rv.

m inha im aginação, m e dá o direito, tanto aqui com o ali, de falar de “falta” ou de “privação” : o jogo das causas exteriores não retira nada ao objeto que pertencesse de direito, ou pudera pertencer, à sua própria natureza; ele perm anece indiferente a toda reivindicação norm ativa.28 N unca m e des­pojam de nada: a própria “ despossessão” atesta que aquilo de que m e creio despossuído não pertencia à m inha natureza. O cego lam enta-se de sua cegueira: tam bém a pedra poderia achar deplorável não ser dotada de v i­são, ou o círculo não ser esfera. Exceto por um delírio de interpretação im aginativa, nunca há supressão de um a determ inação positiva; todo acon­tecim ento é sempre descritível com o sim ples resultante da infinidade das partes em cada uma, no interior de um a totalidade positiva sem fissuras. Cabe banir, portanto, toda m etáfora im aginativa. Se a visão dá lugar à ce­gueira, não digam os sequer que ela a expulsa; se um contrário sucede a outro, não digam os que ele o repele: isso seria sugerir que eles se encon­tram, no espaço de um instante, e, no m esm o lance, razer que se abra uma fenda no Positivo, tornar a questionar a sua inalterabilidade de direito.

S e , c o m e fe ito , a s c o is a s d e n a t u r e z a c o n tr á r ia p u d e s s e m c o n v ir e n tr e si

o u s e r a o m e s m o t e m p o n o m e s m o s u je ito , p o d e r ia h a v e r p o r ta n to , n o m e s ­

m o s u je ito , a lg o q u e p o d e r ia d e s tr u í- lo , o q u e é a b s u r d o .29

Em suma, o que se contradiz não é nada. Voltam os a esse ponto. Pois a paisagem, à prim eira vista insólita, que se acaba de percorrer, seria mais familiar ao Entendim ento, se ele tom asse mais consciência do que está em jogo nesse adágio e explicitasse m elhor a ontologia de suas “evidências” . Essa com unidade compacta, em que só coexistem positivos inalteráveis a perder de vista, é o m undo por excelência onde “o que se contradiz não é nada” , em que crises, rupturas, dilaceram entos serão im putados por princí­pio à ação de agentes externos e nunca reinscritos na natureza daquilo m es­mo que eles abalam.30 Aquilo que chamamos “ com unidade de justaposi­

28 Cf. E spinosa, Lettre X X I [Carta X X I], a Blyenbergh, Éd. Plêiade, p. 1204.29 Espinosa, Ethique [Etica], III, 5.30 Cf. a apresentação da d ialética m aterialista com o teoria das crises p or R égis Debray, in

“Tem ps et P olitiqu e” , Temps Modernes, junho, 1970. “O esquecim en to, m esm o m o m en tâ­neo, da lei fundam ental da contradição sem tardar confere à passagem da estabilidade à in stabilidade, do repou so à agitação, do eq uilíb rio ao desequ ilíbrio, o caráter de um acidente, de um acontecim ento arbitrário, devido a a lgum a causa externa, sem relação orgânica com o processo em questão. A causa externa: interven ção estrangeira, perigoso agitador, agente subversivo etc., portanto, torna-se responsável pela crise, e ao se e lim i­nar a possib ilid ad e de que seja n ociva é que se encontrará a solução da crise.”

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A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O 2 7 5

ção” não é senão o terreno onde o bom senso m etafísico se m ove à vontade. Com o caracterizá-la um a últim a vez? Dirão que se trata de um a síntese:

a) pela qual um conteúdo é tido tanto como parte integrante de um Todo quanto com o separável deste últim o pelo pensam ento;

b) ... de m aneira que só posso destacá-lo e conferir-lhe independência ao opô-lo a todos os outros - a todo o espaço restante da esfera;

c) ... e de m aneira que eu esteja assegurado de que o que se contradiz não é nada.

E verdade que mal se percebe qual pode ser o vínculo entre as duas últim as cláusulas. Q ual é a relação entre o adágio de bom senso “o que se contradiz não é nada” e a função reservada a “ todos os outros” ?

Se as coisas de natureza contrária, com o dissem os, não podem convir de m aneira alguma, é que é im possível pensar seriamente em um espaço em que duas determ inações se confrontassem e se com batessem . E um fato que tal propriedade não pertence a essa coisa. Mas que não se veja nisso a saída de um a luta na qual outra coisa tivesse vencido. Pode-se cons­tatar um não-ser, mas sem lhe dar apoio, sem contar de onde ele provém. O negativo é essa ausência nunca localizável, desprovida de toda espessu­ra, que Sartre descreverá abreviadamente:

E negação ideal toda determ inação que não pertence ao ser, que tem de

ser as suas próprias determ inações ... Sua própria exterioridade exige que ela

perm aneça no ar ... Precisam ente porque é exterioridade, ela não pode ser por

si, recusa todos os suportes, é unselbständig por natureza e, no entanto, não

pode se relacionar com nenhum a substância. Ela é um nada [rien]. Decerto,

porque o tinteiro não é a m esa, nem o cachim bo, tam pouco o copo etc. é que

podem os captá-lo com o tinteiro. E, no entanto, se digo: “o tinteiro não é a

m esa” , eu não penso nada [nen].31

Esse texto indica bem com o a filosofia clássica pode falar do negativo, sem nunca lhe conceder presença, citá-lo sem fazer que apareça. Por esse preço, a adm issão de conteúdos positivos, intrinsecam ente indestrutíveis, não cria nenhum problem a. O negativo designa uma ausência que bem se pode localizar o quanto se quiser e onde se quiser, mas que nunca advém.

Se assim m esm o consente-se, no lim ite, em lhe dar um sem blante de ori­gem, só restará um recurso: falar dessa ausência com o apenas o im pacto da

31 Sartre, LÊ tre et le N éant, p .234-5.

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presença de todas as outras coisas. Todas as outras: este é o único com entá­rio que se proporá para a origem do negativo. Com parada a todas as outras (mas, para Espinosa, a comparação não é a operação im aginativa por exce­lência?), essa coisa não é nem assim nem assado ... Se a negação parece delim itar um conteúdo, é só em relação à som a indeterm inada de todas as outras, de m aneira que não se pode dizer o N ão-ser senão abrindo em se­gredo o interm inável registro de todas as coisas diferentes e de maneira que esse desnudam ento aparente é o avesso - puram ente retórico - de uma infinita riqueza. M inha mão, dizia Malebranche, não é nem a m inha cabeça nem m eu quarto ..., ela inclui, portanto, uma infinidade de “nadas” . Tais “nadas” , claro, são fictícios: sua única função é pôr em relevo o conteúdo que decidimos isolar pelo pensamento. O utro de todos os outros, este nunca é, portanto, o outro de um O utro determinado: a m etafísica “positiva” não pode dar direito de cidadania a essa figura da alteridade, visto que deve tom ar a negação pela abertura de um campo indeterm inado, a cisão entre um conteúdo e todos os outros tom ados em bloco. Com o se, ao dizer que esta rosa não é vermelha, eu a situasse sim plesm ente entre as coisas que são outras que não “verm elhas” , afora o Vermelho. Para a lógica, é evidente que o negativo deve ser “tom ado pela sim ples extensão indeterm inada do O utro do conceito positivo” . Mas são todos os juízos negativos simples afastam entos de um O utro indeterminado?

O ju ízo negativo não é a negação total; a esfera universal que contém o

predicado ainda perm anece no lugar; a relação do sujeito com o predicado

ainda é, portanto, essencialm ente positiva; o que ainda perm anece da deter­

m inação do predicado é tam bém relação. Se se diz, por exem plo, que a rosa

não é vermelha, não se faz m ais que negar a determ inidade do predicado e separá-

la da universalidade que, no entanto, lhe convém; a esfera universal, a cor, é

mantida; se a rosa não é vermelha, adm ite-se com isso que ela tem um a cor e

um a outra cor; segundo essa esfera universal, o ju ízo ainda é p ositivo.32

Já nesse caso a negação institui, portanto, um a relação entre um con­teúdo e aquilo mesmo que lhe convém (uma cor e não outra coisa), entre uma determ inação e seu contrário, ou um m em bro da série dos interm ediá­rios. N ão é verdade que, em relação a A, todos os outros sejam só não-A anônim os e equivalentes; não é verdade que o “ sujeito” difira do “objeto"

32 Logik [Lógica], V, p .85 e 87. Cf. Enciclopédia das ciências filosóficas, VIII, p .374.

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com o ele difere de um a “folha de papel” , que a “identidade” seja separada da “ diferença” sob o m esm o título que qualquer outro conceito. Há exclu­sivos determ inados unicam ente por sua exclusão, e a tarefa da filosofia é pensar a exclusão com o relação determ inante, princípio de um "ser-em- com um ” inédito, de que restará proscrever o estatuto.33 Ora, a doutrina clássica da negação interditava, justam ente, distinguir a alteridade indefi­nida e a alteridade determ inante.

A razão desse escam oteio nada tem de m isteriosa: fazer da alteridade um a relação original que especificasse os term os em presença seria conce­der que exclusivos podem ser determ inados somente à medida que necessa­riam ente evocam uns aos outros. E é isso que é preciso evitar a todo preço. A unânim e anim osidade contra Heráclito não tem outra origem. Preten­dem que transgredira grosseiram ente o princípio de contradição. N a reali­dade, ele sugeria que a alteridade não designa tão-só a delim itação de uma coisa em relação a todo o resto, mas, sobretudo, a relação de um a significa­ção dada com o O utro de que ela é o Outro. Ele atingira, portanto, o ponto sem retorno a partir do qual já não é possível pensar em abstrato o princí­pio de contradição. O que se contradiz não é nada, sem dúvida (e viu-se que há “ algo de ju sto ” nesta asserção: “não se pode ater-se à contradição e esta se suprim e a si m esm a”). Mas, com o que para m elhor garantir essa segurança - e para salvaguardar mais seguram ente a indestrutibilidade in­trínseca do positivo - , fez-se da oposição um a não-relação, e traduziu-se: Nada se contradiz. V isto que se en ten d ia que “o Ser é ” e por si ele é indestrutível, recusou-se, ao puro e sim ples nada, a relação cuja existência tornava a questionar essa inalterabilidade. Sobre essa solução fácil, Heráclito lançara, antecipadam ente, a suspeita. A o insistir na relação original que une o O utro e o seu Outro, ele parece nos indicar que o Nada [le Rien] que resulta de seu antagonism o não é seguram ente o Nada [le Néant] vazio,

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33 N un ca estabelecer necessidade com base em d ispersão indiferente, nunca relacionar a exclusão de dois elem entos com um acaso inicial, tal é, em certos textos, a m eta a ssin a­lada à filosofia. “A consciência ordinária considera os d iferentes com o indiferentes um para com o outro. D iz-se assim : eu sou um hom em , e ao m eu redor ex iste ar, água, an im ais e o O utro, em geral. Todas e s sa s co isas recaem fora u m a da outra. Ao contrário, a m eta da filosofia é banir a indiferença e reconhecer a necessidade d as co isas, de m a­neira que o O utro apareça com o defrontando o seu Outro. A ssim , por exem plo, a nature­za inorgânica não é a de considerar sim plesm ente com o algo outro que o orgânico, m as com o o seu O utro necessário. A s d uas estão em um a relação essencial recíproca, e um a d as duas é som ente enquanto exclui de si o O utro e ju stam en te desse m odo se relaciona com ele. Igualm ente, a N atureza não é sem o Espírito, e o Espírito não é sem a N atu re­za” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 119, Z., VIII, p .279; trad. br., p .235-6).

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^ -X .f> f - ^ ' ' — y - ~ r -mas, um a determinação; e parece que, assim, além da categoria abstrata do Não-ser, deve haver um negativo que não seja indiferente àquilo que ele nega, mas necessariam ente m enciona. E essa menção que o pensam ento do Entendim ento evita sistem aticam ente, quando torna a contradição sinôni­m o de desaparecim ento integral do conteúdo; não pensa que a exclusão de um O utro determ inado poderia ser a explicitação da coisa. Mas com o pode­ria pensar nisso? V isto que pensa os opostos com o peões que se trata uni­cam ente de não alocar na m esm a casa do tabuleiro, seria excessivo conferir um estatuto à sua co-presença. V isto que os opostos são concebidos como coisas, devem, antes de tudo, se conform ar às regras de um a topologia, sa­tisfazer ao código fora do qual se entende que não há discurso possível. Tomado no jogo dessa repartição ontológica, o pensam ento de Entendi­m ento perm anece surdo a aquilo que ainda se diz e que seria preciso ter a paciência de escutar.

O que se contradiz não é nada. Por m ais exata que seja essa fórm ula, ao

m esm o tem po ela é inexata. Pois nada e contradição são, no m ínim o, diferen­

tes um do outro; a contradição é concreta, ainda tem um conteúdo, ainda con­

tém essas determ inações que se contradizem ; ela ainda os diz, exprime aquilo de

que é a contradição; o nada, ao contrário, não diz mais nada, é desprovido de

conteúdo, com pletam ente vazio .34

Erro sintom ático de um a ontologia que acredita descrever objetos. D e­creta-se apressadam ente que não há nada, ao passo que algo ainda se diz.

Ora, o hegelianism o consiste, antes de tudo, em prevenir toda interrupção prem atura do sentido, longe de pretender im por de m aneira inteiram ente forçada, com o já se defendeu, um sentido arbitrário e padronizado. Som ente ao não prestar atenção a esse constante cuidado para liberar o sentido das convenções tradicionais que o limitam, é que se verá no Sistem a um exer­cício de prestidigitação dogmática. H egel só passa por prestidigitador se nada se acha para reprovar a esses breves apelos ao bom senso que percor­rem os textos dos clássicos e marcam, em Descartes ou Espinosa, que, a partir daqui, o prosseguim ento da polêm ica se tornaria decididam ente su­pérfluo: “isto não se deixa pensar” , “ são palavras às quais não corresponde nenhum a idéia” , “o m esm o que dizer: quadratura do círculo” . N essa ciên- cia-de-objetos, que a M etafísica acreditava ser, perguntava-se: não eram tais

2 7 8 G É R A R D L E B R U N

34 Beweise, XVI, p .498; trad. fr. 15a lição, p. 166.

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interditos m otivados por pré-juízos que interrom piam a escuta daquilo que

ainda se dizia, quando o prosseguim ento do discurso corria o risco de sub­verter o código da visão clara e distinta, da Representação? Ser hegeliano não é de m odo algum descobrir, custe o que custar e onde quer que esteja, o sentido aceite, mas perguntar se a intimação do não-sentido não provi­nha de um a das fixações arcaicas, que tornaram o discurso filosófico dogmático - entenda-se: apressado demais para traçar as fronteiras, incapaz de seguir até o seu term o o encadeam ento das m utações que constitui uma significação. Ora, a im possibilidade de pensar a alteridade, a não ser com o indefinida, é um a das decisões parciais que inauguram o dogm atism o.35 Não é qualquer negação de A que anula A, não é qualquer não-A que pode lhe ser substituído - e isso é o que im porta descrever, em vez de ver na contradição o im pensável. Por que deter a explicitação de um a significação em nom e de um a opinião sobre o que devem ser as coisas? N o entanto é a esse interdito que a m etafísica do Ser sacrifica, quando se recusa a tal des­crição: no universo dos entes justapostos que é o seu, qualquer ente, con­

quanto seja positivo, pode tom ar o lugar de outro. Heráclito, em com pensa­ção, transgrediu essa regra do jogo:

A única condição que perm ite obter o progresso científico ... é o conhe­

cim ento desta proposição lógica que o negativo é tam bém o positivo, ou que o

que se contradiz não se resolve num Zero, num N ada [Rien] abstrato, m as só

se resolve essencialm ente na negação de seu conteúdo particular - ou ainda:

que tal negação não é qualquer negação, mas a negação da coisa determ inada

que se dissolve, portanto um a negação determ inada e, por isso, o resultado

contém essencialm ente aquilo de que ele é o resultado. Cada um é o O utro do

O utro com o de seu O utro: tal é o grande princípio de H eráclito. Ele pode

parecer obscuro, m as é especulativo; ele sem pre perm anecerá obscuro ao En­

35 “ N a filosofia, dá-se freqüentem ente o caso de que a unilateralidade vem pôr-se ao lado da totalidade com a alegação de ser algo em particular e fixado contra ela. Ora, de fato, o unilateral não é algo fixo e consistente, senão que está contido no Todo, com o suprim i­do. O dogm atism o da m etafísica de Entendim ento consiste em fixar em seu isolam ento as determ inações unilaterais de pensam ento, ao p asso que, ao contrário, o idealism o da filosofia especulativa p o ssu i o princípio da totalidade e se m ostra com o envolvendo a unilateralidade das determ inações abstratas do Entendim ento. A ssim , o idealism o dirá: a alm a não é só finita nem é só infinita, m as é essencialm ente tanto um a [coisa] quanto tam bém a outra, e, por isso , nem é um a nem é outra. Q uer dizer: tais determ inações não são válidas em seu isolam ento, e só valem com o su prim idas” (Enciclopédia das ciências

filosóficas, § 32, VIII, p .106 ; trad. br., p .95).

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2 8 0 G É R A R D L E B R U N

tendim ento que retém para si o Ser, o Não-ser, o Subjetivo e o O bjetivo, o

Real e o Ideal.36

Q uer isso dizer que a tradição não tem nenhum a desculpa por ter des­conhecido o conceito de alteridade que Heráclito elaborava? Isso seria ir longe demais. Pois Heráclito já (ou ainda) exprimia esse conceito na lin­guagem que ia se tornar a da tradição m etafísica. E o andam ento descon­certante dos fragm entos vem em parte daí - da leitura anacrônica à qual eles nos obrigam. Excessiva concisão do autor ou tradução canhestra do leitor, o fato é: parece que Heráclito teria colocado no m esm o sujeito con­trários que, tanto um com o outro, são. E como se, por m eio de um desafio antecipado, dando à alteridade sua ilum inação precisa, ele a pensasse obs­curam ente na sintaxe que, precisam ente, ia tornar inteligível essa forma de alteridade. “O Deus é Dia e Noite, Paz e G uerra...” : a partir do m om ento em que um sujeito fixo parece ser posto no início, parece absurdo que opos­tos absolutos possam coabitar ali, e Platão e A ristóteles não tiveram difi­culdade em denunciar a incoerência. A dialética em germe passa por uma pré-lógica e é lançada na conta de um a m entalidade primitiva. A lógica for­mal corre o risco de ser um sistem a de bloqueio do sentido no cam po de uma ontologia determinada: essa análise se tornou, portanto, im possível durante m uito tempo. Heráclito, o enigm ático, a obstruía tanto quanto a anunciava. Daí o juízo que finalm ente enuncia a Geschichte der Philosophie:

ao reunir os contrários no U no-que-é, tam pouco Heráclito levou o seu pen­

sam ento até o fim.

O processo ainda não é captado com o o U niversal. D ecerto H eráclito diz

que tudo se escoa, que nada tem consistência, que som ente o U no perm ane­

ce. Mas com isso a verdade, a universalidade, ainda não é expressa; é o concei­

to da unidade sendo na oposição, não da unidade refletida em si.37

Com o a intuição de Heráclito pode ser legitimada? Sob que condições rigorosas um conteúdo pode ser pensado com o o outro de seu O utro e a diferença não ser mais im aginada com o uma diversidade de indiferentes? Ou ainda: como pensar o negativo para estar em condições de descrever,

sem restrições, a diferença?

36 Logik [Lógica], IV, p .51. Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .353.37 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .363.

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2 8 1

2

Feita por Kant, a introdução do conceito de grandeza negativa parece, à prim eira vista, responder a essa exigência. Graças a ela, o N ão-ser já não é sim plesm ente concebido com o o O utro em geral (Anderes überhaupt), mas com o a resultante de um conflito entre duas realidades determ inadas.38 M esm o que Kant sem pre respeite o adágio espinosano “duas determ ina­ções diferentes não podem nem se prejudicar nem se ajudar” , ele estabe­lece que duas determ inações de mesma natureza podem se opor no m esm o sujeito.39 A contrariedade é, portanto, algo distinto de um a relação abor­tada: há um a relação de oposição que especifica e une os conteúdos ditos “ contrários” . C om isso, a tese kantiana atenta contra o dogm a da indes- trutibilidade intrínseca do positivo (“os positivos podem se opor” ). E é sobre esse ponto que insistirá com toda a naturalidade o com entador do Essai sur ler grandeurs négatives [Ensaio sobre as grandezas negativas], preo­cupado em extrair sua originalidade. Mas há outro aspecto do Ensaio que atenua seu alcance inovador - e é esse segundo aspecto que, no caso, nos im porta. Os opostos reais - Kant insiste nisso - são propriedades igual­

mente positivas. Sua relação não é a do positivo com a privação - com o o “ calor” e o “frio” para Descartes ou Arnauld40 - , porém, evoca mais a dos contrários que é possível possuir sim ultaneam ente e a qual Platão tom ava o cuidado, por essa razão, de distinguir dos verdadeiros opostos, com o o bem e o mal, a saúde e a doença - denunciando assim a confusão entre uma diferença de estados em píricos (prazer e dor) e uma diferença onto­lógica (bem e m al).

D izias que não se pode ser sim ultaneam ente feliz e infeliz. M as, por o u ­

tro lado, reconheces que se pode experim entar prazer ao m esm o tem po que

um a dor ... Q ue portanto o prazer não é a felicidade e a dor não é a infelicida­

de, de m aneira que o agradável é, afinal, outra coisa que o bem .41

A noção kantiana de “ estados realm ente opostos” é a generalização dessa relação. A o afetar o prazer e a dor com os signos + e - (ganho e

38 Kant, Versuch, II, p .172-3.39 Ibidem , II, p .173.40 Arnauld, Quatrièmes Objections [Q uartas objeções], Ed. Pléiade, p .429. D escartes, Quatrièmes

Réponses [Q uartas respostas], ed. cit., p.450-1.41 Platão, Gorgias [G órgias], 496 e, 497 a.

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2 8 2 G É R A R D L E B R U N

perda) e não + e 0 (ganho e ausência), Kant reúne ambos os conteúdos sob a denom inação com um de positivos.42 Ele está bem longe, portanto, de conferir direito de cidadania ao Negativo-em -si, visto que o pseudo-“nega- tivo” , ao qual ele bem quer conceder a presença, nunca é mais que a resul­tante de duas realidades positivas: se o barco, sob o im pacto de ventos con­trários, não percorreu, naquele dia, um a m ilha a mais na direção do Brasil, esse “negativo” é integralm ente reconstituível em term os positivos. E por isso que Kant sublinha o caráter puram ente convencional que se deve con­ceder à grandeza dita negativa e insiste no fato de que ela não representa, evidentem ente, o advento de um a negação em si.

A bem dizer, portanto, não se pode cham ar nenhum a grandeza pura e

sim plesm ente negativa, m as deve-se dizer que + a e - a de um a coisa é a

grandeza negativa da outra; mas, com o isso sem pre pode ser acrescentado

m entalm ente, num belo dia, os m atem áticos adotaram o costum e de cham ar

negativas as grandezas precedidas do sinal a propósito do qual, no entanto,

não se deve perder de vista que essa denom inação não indica um a espécie

particular de objetos quanto à sua natureza intrínseca ... Seria absurdo pensar

num a espécie particular de objetos e cham á-los coisas negativas, pois m esm o

a expressão m atem ática grandezas negativas não é suficientem ente precisa. Com

efeito, coisas negativas significariam em geral negações (negationes) , o que não

é de m aneira algum a o conceito que querem os estabelecer ... A o m esm o tem ­

po, entretanto, para dar a conhecer que, nas expressões, um dos opostos não

é o contraditório do outro e, se este é algo de positivo, aquele não é sua sim ­

ples negação, m as (com o verem os a seguir) lhe é oposto com o algo de afirm a­

tivo, direm os, seguindo o m étodo dos m atem áticos, que a m orte é um nasci­

m ento negativo.43

A ssim com o outrora, não se trata, portanto, de pôr em presença con­trários lógicos no m esm o sujeito. A única queixa que Kant dirige aos clás­sicos é ter desconhecido que a oposição é um a das formas possíveis da compositio e tê-la excluído indevidam ente das relações entre realidades p o­

42 “O prazer e a dor não são um para com o outro, com o o ganho e a ausência de ganho (+ e 0), porém , com o o ganho e a perda ( + e - ) , isto é, não são op osto s sim plesm ente com o contraditórios (contradictorie s. logice oppositum ), m as tam bém com o contrários (con­

trarie s. realiter oppositum) ” (Kant, Anthropologie [A ntropologia], § 60, VII, p .230).43 Kant, Versuch., II, p .174 e 175; trad. fr., p .83 e 84.

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sitivas.44 Com isso, a oposição real kantiana ainda está longe de satisfazer aos requisitos do conceito de alteridade que Hegel tenciona elaborar. Entre os dois conceitos, destacarem os, no m ínim o, uma tripla diferença.

1) Kant, ao sublinhar que as duas realidades opostas têm com o resul­tante algo (o repouso, por exem plo), m ostra que a relação delas não incide sob o princípio “o que se contradiz não é nada” . Esse princípio, nele m es­m o, perm anece intangível: só se restringe o seu dom ínio de aplicação. Ora, nós sabem os que é esse m esm o princípio que H egel entende criticar.

2) A oposição real de + a e de - a, condicionada por um substrato A, com um a ambas as determ inações opostas. Duas realidades só podem neu­tralizar seus efeitos se possuírem algo em com um - ao m enos seu limite, dirá Fichte.45 Q ue os contrários se equilibrem ou que um exceda ao outro, é preciso supor, em um caso e no outro, que “ + a é em parte idêntico a - a,

e inversam ente” .46 Sem a referência a essa com unidade m ínim a, a co-pre- sença dos opostos seria im pensável. Não seria possível conceber senão sua exclusão recíproca, e a oposição à qual se quer dar direito de cidadania então se tornaria novamente, com o nos clássicos (assim como em Espinosa), um a relação destruída antes de nascer. Em suma, recairíamos na diferença absoluta que continua supostam ente incom patível com a possibilidade da oposição com o relação. E por isso que, assegura Fichte em um texto citado por Hegel, os opostos tom ados com o tais, fora de toda síntese, seriam nada um em relação ao outro.

U m é o que o outro não é, e o outro o que um não é ... D esde que um faz

o seu aparecim ento, o outro é aniquilado; porém , com o o prim eiro só pode

fazer seu aparecim ento sob o predicado da oposição do outro, então, visto que

o conceito do outro faz o seu aparecim ento com seu conceito e o aniquila, ele

sequer pode fazer o seu aparecimento. Logo, não há nada de presente e nada pode

estar presen te.47

4 4 Ibidem , II, p. 173.45 Fichte, Précis, I, p .346; trad. fr. de Philonenko, p. 193.46 E sob e ssa form a que Fichte form ulará o princípio de razão suficiente generalizada: sem pre

há um a razão para que um a de duas determ inações predom ine sobre outra (form ulação de Leibniz), ou para que as duas determ inações se anulem . C om o observa Vuillemin (La philosophie de 1’Algèbre, p .274 ), tal extensão do princípio de razão é preparada por certos textos de Leibniz que parecem nele incluir o caso do equilíbrio de d uas forças contrárias (cf. “ Segundo texto contra C larke”, Ph. Sch., VII, p .356 ). M as é à luz do princípio de oposição real que o princípio de razão será retificado: a anulação recíproca dos efeitos d as forças não será m ais im putada a um a ausência de razão.

47 D ifferenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p .84; trad. fr., p .114.

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2 8 4 G É R A R D L E B R U N

A oposição, portanto, só será pensável se for precedida por um a co­m unidade parcial dos opostos, só se o + e o - partilharem um a m esm a realidade. Sem dúvida, na Differenz [Diferença], tam bém Hegel reconhece que é im possível falar de ligação dos opostos, enquanto se tratar de “puros opostos que não têm outro caráter, se não, para um deles, o de não ser à m edida que o outro é” .48 M as será preciso que, para tanto, cada oposto só possa encontrar seu outro em um a base com um que os torne hom ogêneos? Essa carência de um a identidade subjacente à oposição não é um a condi­ção supérflua? Enquanto deveria se tratar de dar conta da relação que cons­titui os opostos como tais, em sua pureza, com eça-se descrevendo estes ú l­tim os com o dois conteúdos que, antes de tudo, pertencem necessariam ente à m esm a positividade. E em virtude dessa com um positividade ontológica que os term os “positivo” e “negativo” , na oposição real kantiana, são ape­nas estipulações convencionais. Hegel insiste nesse ponto, tanto quanto Kant, mas, é claro, com intenção oposta:

+ a e - a são inicialm ente grandezas opostas em geral; A é a unidade sendo

em si que está no fundam ento de am bas, indiferente em relação à própria

oposição e aqui servindo, sem m ais, de base morta. É verdade que se designa

- a com o o negativo, + a com o o positivo, m as cada um deles é um oposto,

tanto quanto o outro ... D ois a diversos são dados, e é indiferente que se tom e

um ou outro com o positivo ou com o negativo: cada um tem sua consistência

particular e cada um é p ositivo.49

Sob essa cláusula, a oposição é então forçosam ente pensada com o uma relação quantitativa entre duas realidades hom ogêneas e indiferentes um a para com a outra; a diferença é reconduzida ao excedente em um term o de determ inação presente em ambas:

Só há oposição quantitativa: tal foi, faz algum tem po, a proposição fun­

dam ental da filosofia m oderna; as determ inações opostas têm a m esm a e s­

sência, o m esm o conteúdo, são lados reais da oposição na m edida em que

cada um a con tém am bas as determ in ações, am bos os fatores dela, sem o

que, de um lado, um fator predom ina e, de outro lado, o outro fator p red o ­

m ina - sem o que um fator, um a m atéria ou um a atividade está p resente em

48 Ibidem , I, p .124 ; trad, fr., p .140.49 Logik [Lógica], IV, p .530.

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m a io r q u a n t id a d e o u e m g ra u su p e r io r . E n q u a n to m a té r ia s o u a t iv id a d e s d i­

fe r e n te s s ã o p r e s s u p o s t a s , a d ife re n ç a q u a n t ita t iv a c o n fir m a e c o m p le ta , a n ­

te s , a e x te r io r id a d e e a in d ife re n ç a d o s te r m o s e n tre s i e e m r e la ç ã o à s u a

u n id a d e .50

A partir daí, a diferença, pensada com o exterior, só pode assum ir o aspecto de um conflito interminável. A ssim ocorre na relação entre vonta­de e natureza instaurada pelo idealism o. Certam ente, “ a vontade é deter­m inada com o o negativo em relação à natureza, de maneira que ela só é um a vez que existe tal coisa, a qual, com o diferente dela, por ela deve ser suprim ida” .51 Porém, com o ambos os termos são “ determ inados para si, acabados e fechados sobre si m esm os, a vontade não poderia passar sem a natureza que a limita. Com o se com eçou preservando a exterioridade dos termos da oposição e sua lim itação recíproca, obstina-se a pôr o ser-outro com o existente e sem pre por princípio a pôr, além, o ser: o pensam ento não especulativo tem, portanto, necessidade de salvaguardar o que nega, e por isso é que ele está votado ao “progresso infinito” . Tenciona evitar a contra­dição nas coisas que descreve, m as só consegue deixar no lugar, no nível das s ig n ifica çõ es, a o p osição dos dois p o sitivo s, in term in av elm en te reconduzida.

Esta é a ocasião de m edir o que Hegel quer dizer, quando prescreve a análise das significações por si mesmas, deixar que se desdobrem por si mes­

mas. Entendam os: deixando de conceder crédito aos interditos da ontolo­gia e de subm eter esta últim a à análise de essências. Se não prestarm os atenção ao que esse projeto tem de específico, som os levados a com preen­der a dialética no prolongam ento da oposição real e a subestim ar o fato de que ela provém , ao contrário, de um a crítica e de um a redisposição desta últim a. Ora, é capital que a oposição real apareça para Hegel com o uma

ontologia (da diferença) entre outras, com o outra opção tom ada sobre a na­tureza do “Ser” . Se não, Hegel só teria dado um passo a mais - verdade que terrivelm ente audacioso - na via aberta pela filosofia das grandezas negati­vas: teria decidido que os próprios contraditórios dão lugar a um resultado positivo. E, por exem plo, a interpretação de Vuillem in, quando vê no hege­lianism o o ponto culm inante da confusão entre oposição real e contradição que se esboçou depois de Kant.

50 Ibidem , IV, p.283.51 Ibidem , IV, p .281.

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28 6 G É R A R D L E B R U N

c «r

Prim itivam ente, considerava-se que a com posição de um a grandeza p o si­

tiva com um a grandeza negativa resultava num a grandeza determ inada - even­

tualm ente zero. A os poucos, adquire-se o hábito de pensar que a com posição

de um a tese e de um a antítese podia dar um a síntese de um gênero novo. A o

m esm o tem po, voltava-se sub-repticiam ente da noção kantiana de oposição

real à idéia leibniziana de sim ples contradição, porém , carregada da aura pró­

pria à idéia precedente.52

Tal seria de fato a situação, se Hegel desse apenas um a extensão m áxi­ma à oposição real. Mas trata-se de coisa inteiram ente distinta, se Hegel tenciona trazer à luz os tabus que a oposição real continuava respeitando - se, em vez de prolongar o que esta últim a teria esboçado, a ela voltasse para abalar a noção de Diferença a que ela perm anecera fiel. Será tão óbvio que “positivo” e “negativo” sejam apenas conteúdos intercam biáveis e in­diferentes, só m erecendo esses nom es pela com odidade de um a repartição exterior? Será essa a única m aneira de pensar sua relação? Sim, caso se adm ita que não há relação entre Positivo tom ado como tal e o N egativo to ­mado como tal.

[O Positivo e o N egativo] são em si, na m edida em que se faz abstração de

sua relação que exclui o O utro, e na m edida em que são tom ados som ente

segun do sua determ inação. Em si, algo é p ositivo ou negativo, quando não

deve sim plesm ente ser determ inado com respeito a um O utro. {W. Logik [Ló­

gica], L’O pposition [“A O posição"], IV, p .529)

Mas, para convir que só seria possível pensar cada term o em sua espe­cificidade fora da relação desses termos, é preciso ter decidido que só p o­deria haver relação entre dois conteúdos, ambos, pelo m enos, sendo. Com efeito, porque, ao partir dessa hom ogeneidade postulada, im agina-se rela­ção possível apenas entre um “positivo” e um “negativo” convencionalmente distribuídos: com o são de m esm a natureza, com o poderiam ser opostos a não ser por convenção?

Adm itam os ao contrário que cada um desses termos, neles mesmos e

tomados como tais, seja, de lado a lado, excludente de seu Outro, e somente

isso; elaborarem os, então, um novo tipo de relação possível.

52 Vuillemin, La Philosophie de l ’A lgèbre, p .284-5.

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M as o Positivo ou o N egativo sendo-em -si, isso quer dizer que o fato de

ser oposto não é sim plesm ente um m om ento que ainda diria respeito à com ­

paração, m as, ao contrário, é a determ inação própria dos lados da oposição.

Logo, não é fora da relação com o O utro que eles são em si positivo ou negati­

vo, mas o são de m aneira que essa relação - é verdade, com o relação excludente

- constitui sua determ inação ou seu ser-em-si; devido a esse fato, eles são,

portanto, ao m esm o tem po em e para si. (Ibidem, V, 529-20)

Essa nova relação parecerá aberrante para o Entendim ento, visto que cada term o só se põe em sua independência à m edida que é inteiram ente relação-com -o-O utro e renuncia, portanto, a todo conteúdo próprio - visto que cada termo, doravante, só é para si ao suprim ir expressam ente o que o torna, em linguagem de Entendim ento, “ idêntico” . Pensar a contradição é, de início, considerar que essa relação, por mais insustentável que seja, não é nada e m erece ser analisada.

Se é sob o m esm o ponto de vista que a determ inação reflexiva indepen­

dente contém o outro - e, com isso, é independente - e exclui o outro, então

essa determ inação, em sua independência, expulsa para fora dela a indepen­

dência que lhe é própria; com efeito, esta últim a consiste por si em conter a

outra determ inação e, som ente com isso, em não ser relação com um exterior

- mas [consiste], igual e im ediatam ente, em ser ela m esm a e excluir de si a

determ inação para ela negativa. E assim que ela é a contradição. (Ibidem, La

C ontradiction [“A contradição” ], V, 535)

Hegel, portanto, não disse apenas que dois contraditórios bem pode­riam, afinal, se com por como se com põem uma grandeza positiva e uma grandeza negativa. Descrevendo essa com posição, ele afastou pressupos­tos ainda assum idos por Kant. Voltem os agora ao texto de Vuillem in que citam os anteriorm ente. Não querem os de maneira algum a criticar essa aná­lise nem insinuar que seja falsa. A o contrário, ela é inteiram ente pertinen­te, se for adm itido que, para Hegel, “a contradição” é um conceito que fazia falta ao discurso “filosófico” e do qual im portava m uni-lo. Se lê-se Hegel com o se ele trabalhasse à margem da “filosofia” , com o se1 ele só se preocu­passe em revisar as licenças para falar que a filosofia concedia a si mesma, sem pensar em enriquecer seus conceitos nem em perfazer suas teses, pode- se ver na contradição algo distinto de uma síntese abusiva e fantasista. Os dois eixos de le itu ra são possíveis (pode-se ler M allarm é com o se lê Lamartine e Hugo - e pode-se ler de outra m aneira). O bservem os tão-so-

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2 8 8 G É R A R D L E B R U N

m ente que, se nos satisfizerm os com o prim eiro eixo, deverem os inevita­velm ente afirmar que o positivo, em Hegel, sempre é decididam ente ven­cedor e o objetivo é corrigir a tim idez da M etafísica clássica que a levava a afastar a oposição real e a contradição. De Espinosa à Logik [Lógica], pas­sando pelas Grandeurs négatives [Grandezas negativas], a via seria reta e o progresso, contínuo: em seu térm ino, todas as formas da diferença, aos poucos reintegradas, seriam reabsorvidas em um a relação positiva. A o tér­mino desse caminho, Hegel teria arriscado a suprem a proeza: subordinar, até na contradição, a diferença absoluta dos opostos em sua unidade posi­tiva. Há no entanto um a som bra nesse quadro: se nos fiarmos nele, aceita­rem os que um dos aspectos da oposição (apelo recíproco dos opostos) so ­brepujaria finalm ente o outro aspecto (a diferença). Ora, é incôm odo apresentar, com o unilateral em últim a instância, a filosofia que com bate a unilateralidade em todos os seus recantos. Pelo contrário, se a especulação não pretende ser uma nova descrição do “ Ser" (conceito representativo), ela não tem nem de sacrificar a diferença nem privilegiar a identidade; sua tarefa, antes, é a de dissolver o pensam ento que encontrava tais m om entos com o incom patíveis e inseparáveis. N ão será portanto a identidade abstra­ta e unilateral dos dois term os que triunfará, mas a unidade - em um sentido

inédito - de sua unidade e de sua distinção, quando esses m om entos estive­rem afinal rebaixados (herabgesetzt) ao patam ar de m om entos.53 É custoso com preender isso, caso se persista em acreditar que há um a ontologia he- geliana, bem com o que a absorção da ontologia na Lógica é tão-só uma fórmula.

3) A análise kantiana da oposição real não acarretou, portanto, nenhum reexam e das categorias ontológicas do Positivo e do Negativo. Kant só en­carava a contrariedade conflitual no interior do Ser, do Positivo; de manei-

53 Foi som ente após term os redigido e stas páginas que lem os Différence et Répétition, de Gilles D eleuze, obra na quai a tese inversa é notavelm ente form ulada. Q ue os leitores se reportem sobretudo à conclusão do livro: “ Enquanto a diferença está subm etida às exi­gências da representação, ela não é pen sada nela m esm a, e não pode sê-lo ... A contradi­ção hegeliana parece im pelir a diferença até o fim; m as esse cam inho é o cam inho sem saída que a reconduz à identidade, e torna a identidade suficiente para fazê-la ser e ser pen sada. E som ente em relação ao idêntico, em função do idêntico, que a contradição é a maior diferença. A em briaguez e os aturdim entos são fingidos; o obscuro já está escla­recido desde o início" (p .337-8). Perante tais linhas, o problem a que seria preciso for­mular, de m aneira conveniente (não se pretende fazê-lo aqui), seria aproxim adam ente o seguinte: o que é e ssa “ identidade" encarregada de aclim atar a m aior diferença? Trata-se ainda da identidade dos clássicos?

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ra alguma, portanto, abalava a dicotom ia parmenidiana, e até a reafirmava com mais força que nunca.

U m a negação transcendental significa o não-ser em si m esm o, ao qual se

opõe a afirm ação transcendental que é um algo cujo conceito em si m esm o já

exprim e um ser e que, portanto, é denom inado realidade [coisidade], visto

que, por m ais longe que se estenda, é por ela som ente que os objetos são algo

[coisas], ao passo que a negação que lhe é oposta significa, ao contrário, um a

sim ples falta.54

A m anutenção dessa separação absoluta bloqueia todo acesso ao pen­sam ento da alteridade radical. Decerto, a oposição real já não põe em cena um a sim ples diversidade indiferente e cada um de seus term os é determ i­nado em relação ao outro; porém, com o cada um pode igualm ente desem ­penhar tanto o papel do “positivo" quanto do “negativo", só se pode tratar (não se deve tratar) do Positivo-em -si e do Negativo-em -si. O afastam ento tradicional entre am bos os conteúdos se presta tão pouco à contestação que sua significação não se presta sequer a exame. Kant o confessa: estan­do desprovidos de toda significação intrínseca, os sinais + e - perdem seu interesse quando não são mais em pregados em um a relação de oposição:

A s grandezas precedentes do sinal - só trazem esse sinal para m arcar a

oposição, enquanto devem ser tom adas em com um com as que são precedi­

das pelo sinal +; porém , se estiverem ligadas às precedidas pelo sinal - , não

há m ais nenhum a oposição, pois esta últim a é um a relação recíproca que só

se pode encontrar entre os sinais + e ~.55

Neles mesmos, portanto, o “positivo” e o “negativo” não são diferentes. Q ue haveria de espantoso nisso? Haviam sido cortados no m esm o tecido. Mas esse pressuposto não se deve a um a reflexão exterior à coisa mesma?

O positivo e o negativo são a m esm a coisa. Essa expressão pertence à

reflexão exterior, quando estabelece um a com paração entre essas duas deter­

m inações. M as não é um a com paração exterior que é preciso estabelecer entre

elas, nem com as outras categorias; é preciso considerá-las nelas mesmas, isto

54 Kant, K R V [Crítica da razão pura], B, p .386.55 Kant, Versuch., II, p .173; trad. fr., p .81.

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2 9 0 G É R A R D L E B R U N

é, c o n s id e r a r o q u e é a p r ó p r ia R e fle x ã o d e la s . O ra , e s t a m o s t r o u q u e c a d a

u m a é e s s e n c ia lm e n te o P are c e r d e s i n o O u tro e m e s m o a P o s iç ã o d e s i c o m o

d o O u tr o .56

Mas o pensam ento de Entendim ento não se arrisca até ai. Evita sub­m eter a significação das categorias a um exame de que a ontologia tem por m issão, justam ente, dispensar. Para que pôr à prova as palavras “ Positivo” e “N egativo” ? E aliás, com o em preendê-lo, visto que se está obstinado em pensar m ediante urna rede m uito antiga de com patibilidades e incom pati­bilidades que conferiu a tais palavras suas funções? O Entendim ento con- tenta-se, portanto, com essa diferença funcional. "Positivo” e “N egativo” são feitos para se opor firm em ente um ao outro (ais fe st einander gegenüber);

por que se vai perguntar, por isso, o que significam intrinsecam ente? N o entanto, ocorre o m esm o, então, que na pseudodiferença do “Ser” e do “N ada” : o Entendim ento os m antém cuidadosam ente afastados, mas bas­ta pedir-lhe que justifique ou m esm o que enuncie essa diferença tópica, e disso ele se m ostra incapaz. “Os que insistem nessa diferença deveriam ser instados a indicar em que ela consiste ... [A diferença] não consiste portanto em [significações] m esm as, mas em um terceiro termo, na opi­nião [M einen]. Ora, a opinião é um a form a do subjetivo . . . ” 57 Portanto dei­xem os de lado a opinião relativa ao que deve ser o conteúdo, para atentar­mos ao que é sim plesm ente dito nesse conteúdo: verem os que rapidamente se em baralha a “firme oposição” tópica. O que não quer dizer que os dois termos, em realidade, se confundiam “em realidade” (que realidade, aliás? qual seria essa últim a instância?). Veremos porém que o pensam ento de E ntendim ento se contentava em com pensar a indeterm inação dos dois conteúdos pretensam ente opostos pela sim ples postulação ... de sua op o­sição - as categorias nada m ais sendo que o papel que ele lhes atribui. É im possível ingressar na dialética, se não se entrevê a necessidade de rom ­per com essa gramática ontológica - com a qual todos se acom odavam - e tom ar em consideração os conteúdos tradicionais, sem levar em conta a função sintática que lhes cabia. Empregavam-se tais conteúdos, desde sem ­pre, como instrumentos, a ponto de resultar deles “um a falta de fam iliarida­de [Unbekanntschaft] com sua natureza” .58 Q ue se tente enfim “ travar conhe­

56 Logik [Lógica], IV, p .541.57 Ibidem , IV, p .101.58 Ibidem , IV, p .541. Cf. a crítica das categorias com o instrum entos p o sto s a n osso serviço,

o “ Prefácio” da lo g ik [Lógica], IV, 2- ed., p.26.

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cim ento” , que se deixe de tom á-los com o objetos disponíveis, agulheiros da representação - e o exam e da significação das palavras subverterá a eco­nom ia tradicional dos conceitos que eles demarcavam. Q ue se explicite o sentido, em vez de im por a função: nesse cam inho não traçado, vai-se de surpresa em surpresa. Mas por que os filósofos se puseram na situação de serem surpreendidos, a não ser porque nunca respiraram senão o ar rare­feito da Finitude? E por que dissim ularam o m ovim ento do sentido? Bas­ta acom panhar a este últim o para que se apague o antagonism o abstrato dos dois termos.

M esm o para a reflexão exterior, basta um a sim ples consideração para ver,

em prim eiro lugar, que o Positivo não é um idêntico im ediato, mas, em parte,

um oposto do N egativo, que ele só tem significado nessa relação [nur in dieser

Beziehung Bedeutung hat]; que, portanto, o próprio N egativo está inscrito em

seu conceito - em parte, ele é, nele m esm o, a negação se relacionando consigo

do sim ples ser-posto ou do N egativo, portanto, que ele próprio é a negação

absoluta em si. Igualm ente, o N egativo, que é oposto ao Positivo, só tem sen­

tido [hat nur S im ] nessa relação com esse O utro que é o seu; ele o contém ,

portanto, em seu conceito. Mas, fora da relação com o Positivo, o N egativo

tam bém tem um a consistência própria; ele é idêntico consigo; assim , ele pró­

prio é o que o Positivo devia ser.59

Cada um dos term os só consum a seu sentido quando referido a seu outro - porém cada um tam bém , considerado nele mesmo, se auto-expulsa do sentido “ bem conhecido” que parecia especificá-lo e consum a o sentido que parecia estar reservado ao outro. E chegado o m om ento em q u e o En­ten d im en to vai p erd er o pé: a ele se ped e para com preender, com o explicitação do sentido de um conceito, aquilo que, em sua legislação, sem ­pre foi tido com o um a marca da inconceptualidade de todo conceito. Que cada um dos term os só possa ter sentido com o ramificado a seu oposto,

59 Ibidem , IV, p .541-2. O que é espantoso , segundo Hegel, é que se espan tem com este preten so paradoxo: “Q ue esse resultado, segundo o qual o Ser e o N ada são a m esm a coisa, surpreenda ou pareça paradoxal, não é m ais preciso prestar atenção n isso ; antes, seria preciso espantar-se com esse espanto que se m anifesta há pouco tem po em filo so­fia e provém de que se esquecem do fato de que, n essa ciência, intervenham determ ina­ções inteiram ente d istin tas que na consciência ordinária e no que se cham a de entendi­m ento com um , o qual não é o são entendim ento, m as o entendim ento adestrado pelas abstrações e vivente na crença, ou melhor, na superstição das abstrações” (Ibidem, IV, P-91).

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* " * · '

isso o Entendim ento concede: tal situação pode ser figurada. Mas que cada um se torne o que o outro significa, aqui com eça o que não pode ser figura­do, portanto, inconcebível; im possível, nesse caso, descrever a diferença com o uma exclusão, justapor as determ inações ou fazer que se alternem. O "espaço” disponível para essa calma vizinhança, o “tem po” em que a alternância se inscrevia, todos esses pressupostos geográficos da Repre­sentação se esquivam quando o discurso do sentido mesmo, a m anifestação do conteúdo mesmo se substituem ao código que utiliza conceitos suposta­m ente dotados de sentido fixo. Ser hegeliano é considerar que a recusa desse código não é de m aneira alguma o sacrifício do sentido, mas, bem ao contrário, a condição de sua livre circulação. Mas não irem os tão rápido. Vale mais a pena com preender as resistências que a essa altura o Entendi­m ento (a linguagem da utilização) opõe ao pensam ento especulativo (à lin­guagem da explicitação). A oposição, agora considerada nela mesma, não per­m ite mais im aginar o O utro sob o aspecto tranqüilizador do “de fora” : ela diz adeus a toda topoprafis pnssívpl Ha altpr-kiarlp É essa ruptura que é preciso acentuar, para se convencer de que não se trata de uma tese mais ousada, mas de um m odo inédito de discurso.

Ora, o texto ainda dissim ula em parte essa ruptura, pois perm anece inteligível caso se justaponham e se separem as distinções por ele operadas. Ele continua transcritível em um a linguagem tal, que a reflexão de Entendi­m ento m antém a ilusão de efetuar, a seu bel-prazer, a passagem de um a outro pólo: “ ela perm anece com o Reflexão exterior que passa [übergeht] da igualdade à desigualdade, ou, ainda, da relação negativa dos termos dife­rentes a seu ser refletido em si” .60 “De um a parte ... de outra parte” , “ de um lado ... de outro lado” , as distinções representativas são mantidas. Pelo contrário, quando não se trata mais da passagem de um term o a outro, ou de um aspecto da relação a outro, esses pontos de referência fam iliares se tornam obstáculos. Por isso, a reflexão separadora prefere ignorar essa “pas­

sagem” insólita que ela não controla m aic- a rp flp vãn m a n té m e ss a s d u a s

determ inações exteriores um a à outra e só pensa nelas, mas não na passa- gem [Ubereehen], o que é o essencial e contém a contradição” .01 0 que é~ próprio à especulação será, ao contrário, pensar essa passagem nela mesma.

Entendamos: pensá-lã sem a travestir em um a exclusão recíproca ou em um a alternância, e de m aneira que o devir-outro do sentido não seja, entre-

60 Ibidem , IV, p .549.61 Ibidem .

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tanto, sinônim o de anulação do sentido. Apenas então é que se estará livre da sinalização tradicional, a que camuflava a alteridade em distância, afas­tam ento, exclusão, e interditava, daí em diante, pensá-la em sua radicalida- de. A bolida a fronteira do “ Positivo-em -si” e do “N egativo-em -si” , a oposi­ção real, instância ainda representativa, assim se apaga diante da inimaginável

contradição. O que ocorreu ao certo?

3

Cada um a das determ inações da oposição pode ser isolada e conside­rada em si, “com o são nelas m esm as, enquanto tais, enquanto se relacio­nam consigo, única e im ediatam ente” .62 Entretanto, a relação que une es­ses independentes im ediatos não é qualquer: ela é exclusiva. Isso significa: a) que cada term o basta-se a si m esm o; b) que, com o tal, repele de si o term o que é seu negativo. Em outras palavras,' cada um, ao m esm o tem po pondo-se a si e recusando todo condicionam ento pelo O utro, toda depen­dência para com o O utro (dependência que doravante, com Hegel, cham a­remos de seu ser-posto), não deixa de mencionar, necessariamente, esse Outro de cuja oposição é im possível, para a autoposição, se libertar. N o texto so ­bre a Differenz [Diferença], é assim que era exposta a dialética fichtiana do Eu e do N ão-eu. A o N ão-eu não pertence nenhum a positividade, apenas a função negativa de ser um oposto. E o Eu que lhe assinala tal função, e, m algrado esse necessário assinalar do Outro, o Eu sempre se põe com o um não-posto; de m aneira nenhum a sua independência é posta em perigo por esse “ser condicionado por O utro = X ” .

C om o o N ão-eu só exprim e o negativo, um indeterm inado, esse caráter

só lhe advém por um a posição do Eu. O Eu se põe com o não posto; a oposição

em geral, a própria posição pelo Eu de um [algo] absolutam ente indeterm ina­

do é um a posição do Eu. N essa viravolta é afirm ada a im anência do Eu, m es­

m o com o inteligência, em relação a seu-condicionado por um O utro = X .63

Todavia, essa im anência se tornou ambígua, pois a autoposição e a opo­sição, de fato, se contradizem . E certam ente o Eu que põe a si mesmo como

62 Beweise, XVI, p .500.63 D ifferenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p .89; trad.

fr., p. 117.

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devendo ser determ inado por um Não-eu; mas, se refletirm os, isso já basta para lhe retirar o privilégio da condição de absoluto que se lhe pretendia outorgar. Decerto, parece não haver restrições à independência do Eu, visto que sua própria lim itação é deduzida de sua possibilidade. Resta que o Eu, ao pôr sua limitação, confessa que só pode aparecer a si m esm o com base na alteridade. A prova disso se acha, especialmente, na im potência para deduzir o conteúdo dessa realidade oposta e na obrigação de deixá-la em branco.64 De fato, há alternância indefinida de duas figuras inrom patívH s (antnpncijfSn

lim itação pelo O utro), que perm ite pressentir a exigência de supressão de tais figuras alternantes, mas só essa exigência.65 Prova de que a oposição aparentem ente estável de há pouco encerrava uma contradição sem cessar ressurgente - contradirão q n e q p e iis a m e m & jd & £ a t e n dixnen tQ é im p o te n te

para dominar, a partir do m om ento em que não m ais camufla, e contra a qual

só a especulação poderá m ostrar-se im une. Idêntico consigo, cada term o é excludente do outro: mas essa pyrlnsão co n firm a n n n frn em sna indepen­

dência, longe de reabsorvê-lo. Qual o m eio de afirmar, a partir daí e sem

restrições, a identidade do term o positivo consigo? O conceito hegeliano de contradição (ou de infinidade, na Logique d ’Iéna [Lógica de lena]) está desti­nado a extrair o verdadeiro sentido dessa aporia. Entendam os que Hegel não se preocupa em trazer um a solução, pôr fim à alternância, mas em

64 “ Se a filosofia transcendental é capaz de dar conta d essa obrigação, em virtude da qual o Eu finito em geral deve reconhecer que não produz a realidade exterior, ela é abso lu ta­m ente incapaz de dar conta da realidade exigida por esta ú ltim a. A respeito da consciên­cia cuja possib ilidade ela funda, certam ente a dedução é genética - porém , a respeito das realidades estran has a m eu Eu que coloca com o condição d essa consciência, não o é, p o is não explica com o elas próprias são p o stas em su a realidade intrínseca” (Guéroult, Fichte, p .340).

65 "A contradição que exprim e a m á infinidade, tanto a da pluralidade infinita quanto a da extensão infinita, perm anece no interior do reconhecim ento de si m esm a: decerto, há um a contradição, m as não é a contradição ou a infinidade m esm a. Certam ente, chegam a exigir a su p ressão dos do is m em bros alternantes, m as som ente chegam a exigi-lo. Põe-se um lim ite; logo, a unidade pura é suprim ida - a unidade pura é restabelecida; logo, o lim ite é suprim ido. A ssim , na pluralidade infinita, cada determ inidade vai além de outra e e s ta ú ltim a, igualm ente, além daquela. A lém das qualidades m últip las com o quanta m últiplos, há o além de um a unidade que não é adm itida neles e que, se fo sse adm itida, suprim iria a existência deles; a pluralidade, para subsistir, nela não pode ad­m itir e sse além, m as ela é igualm ente incapaz de liberar-se dele e deixar de ir além de si m esm a. C om o as determ inidades ou lim ites põem a unidade fora delas com o um além , parecem se conservar; porém , com o e sse ser-além da unidade é necessário para que elas se conservem ou guardem su a consistência, a isso são essencialm ente rem etidas, e o fato de que elas excluem tal unidade, ou, ainda, que elas se m antenham , é na verdade su a unificação [com e ssa u n idade]. Ou ainda: o que é posto é a verdadeira infinidade ou a contradição abso lu ta" (Jenenser lo g ik [Lógica de lena], Éd. Lasson , p .28).

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criticar os pressupostos que tornavam a alternância inevitável. Kant e Fichte haviam dado ao “negativo” um a consistência, m as de m aneira tal que a “realidade” posta com o negativa era tão “ real" que sempre perm anecia além do Positivo, irrecuperável para ele e, por isso, refutando de fato o papel que lhe coubera: “ o não-oposto em si” . Nessas condições, o Eu = Eu, se nos lim i­tarm os a pensá-lo com o pólo da pura imanência, torna-se uma prom essa não cumprida. Mas por que o m om ento da imanência não é nem conciliável com o m om ento da oposição com o outro, nem concebível sem ele?

Essa fatalidade, que interdita a consumação do idealismo, não tem nada de m isterioso. Em virtude da doutrina da oposição real, o Positivo só pode ser reconhecido em sua realidade intrínseca no ato em que põe seu oposto.

Toda determ inação é supressão da realidade absoluta, isto é, negação.

Mas a negação de um positivo não é possível por m eio de um a sim ples priva­

ção; ela evoca uma oposição real ... N o conceito de posição tam bém é necessaria­

m ente pensado o conceito de um a oposição; portanto, na ação de se pôr tam ­

bém é necessariam ente pensada a ação de pôr algo que seja oposto ao E u.66

Por isso, o eu não poderia se consum ar senão na extinção ou no reco­lher em si (Aufnehmen) do O utro - no caso, pelo fato de que a oposição Eu- N ão-eu só se explica no e pelo Eu. Todavia, a necessidade de proceder a essa mediação basta para invalidar a pretensão de imanência: o Eu deve ser igualm ente tom ado com o ser-posto, dependente da exterioridade que teve de suscitar, depois, vencer de m odo efêmero para se reconquistar. E pouco im porta que seja descrito com o “m undo inteiram ente fechado em si m es­m o” : essa “independência” é apenas verbal, visto ser desm entida pela ope­ração do Eu. A significação própria ao Positivo parecia ser a de “ não-opos­

to” : percebe-se agora que tal identidade reconduz a um a operação indelével. A o se pôr, o Positivo revela que, intrinsecamente, ele é apenas o negativo de um outro. Seu funcionam ento refuta a natureza que lhe era atribuída.

Tal ocorre com o N egativo em si, quando se tenta pensá-lo em sua especificidade, “indo de encontro ao Positivo” ,67 Basta explicitar a determ i-

66 Schelling, System des transe. Idealismus [S istem a do idealism o transcendental], Éd. Meiner, p .381-2.

67 “O negativo, considerado para si e indo de encontro ao positivo, é o ser-posto com o refletido em si na desigualdade, o negativo com o negativo” (Logik [Lógica], IV, p .536).

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nação que o caracteriza desde Platão ("o oposto em si” , “o desigual em si”), para fazer que se transform e no que significa seu Outro. “O utro” , “não- idêntico” por definição, ele adquire todavia uma natureza em favor dessa m esm a definição. Idêntico consigo, em virtude de ser sempre Outro, o N egati­vo transgride, por sua vez, sua determ inação inicial; expulsa-se de si m es­mo, visto que perm anece ele m esm o ao tom ar a form a da “identidade” que ele tem por função excluir. E essa natureza refuta o funcionam ento que lhe era atribuído.

E m s u a re fle x ã o e m si, p a r a se r o n e g a t iv o e m e p a r a si, id ê n t ic o c o n s ig o

e n q u a n to N e g a t iv o , s u a d e te rm in a ç ã o é se r o n ã o - id ê n t ic o , o e x c lu s iv o d a id e n ­

t id a d e . I s s o e q u iv a le a se r id ên tico co n sig o in d o d e e n c o n tro à Id e n tid a d e ; e, p o r

c o n se g u in te , e x c lu ir- se d e s i m e s m o p o r s u a r e fle x ã o e x c lu d e n te .68

Em certo sentido, a operação denom inada “reflexão em si” não causa dano à independência nem à distinção das duas determ inações; só faz pre­cisar, para cada um a delas, a natureza de seu ser-para-si. Mas essa precisão subverte o sentido que era reconhecido nelas: o Positivo só perm anece idên­tico consigo ao deixar de ser pensado com o a “ Identidade” e o N egativo só era idêntico consigo enquanto não era a “A lteridade” .

... co m i s s o , s u a in d e p e n d ê n c ia é ig u a lm e n te p o s t a . M a s , a lé m d is s o , e s s a p o ­

s iç ã o faz d e la s s e r e s - p o s t o s . [A s d e te rm in a ç õ e s ] v ã o à s u a r u ín a [sie r ich ten

s ich z u G r u n d e ] , v is to q u e , a o s e d e te rm in a r c o m o id ê n t ic a s c o n s ig o , e la s se

d e te rm in a m a n te s c o m o o n e g a tiv o , c o m o u m id ê n t ic o c o n s ig o q u e é re la ç ã o

c o m o O u tr o .69

A contradição que m inava o idealism o de Fichte, enquanto aspirava a ser idealism o absoluto, agora parece, portanto, inscrita na textura dos con­ceitos, im putável à sua própria estrutura, e não a seu m anejo inábil. Não som ente a “ independência” presum ida de cada conceito dissim ulava sua relação essencial com o Outro, mas cada um só adquire sua identidade con­sigo ao passar inteiram ente em seu O utro e ao ganhar com isso novam ente, ao que parece, apenas uma “identidade” derrisória e m esm o aberrante, vis­to que a troca por seu estado civil. Se nos ativermos a esse prim eiro aspecto

68 Ibidem , IV, p .537.69 Ibidem , IV, p.538.

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J <=“ 2 0 ( fL ^ Y S » -*

(o mais espetacular) da contradição, pode-se resum ir esse m ovim ento da seguinte maneira: “ longe de recobrar sua independência, cada m om ento, doravante, se põe com o ser-posto de ponta a ponta - mais que dependente de um Outro, sendo integralm ente apenas o Parecer de seu O utro -, em suma, destruindo-se pura e sim plesm ente com o independente” . E sobre essa revi­ravolta do princípio do M esm o em O utro e do O utro em M esm o que Hegel, na Logique d ’Iéna [Lógica de lena], projeta a mais viva luz. Vocês pretendem pensar a oposição com o uma co-presença de dois m om entos? Esse esque­m a é insustentável: a identidade desses m om entos é a alteridade deles - seu ser-para-si é a supressão de seu ser-para-si etc. De um term o da oposi­ção, portanto, não digam que ele e, digam que ele se suprime.

A o p o s iç ã o n ã o p o d e p e r m a n e c e r e m se u se r ; s u a e s s ê n c ia , p o r é m , é a

in q u ie tu d e a b s o lu t a d e se su p r im ir . S e u ser, s e r ia m o s s e u s m e m b r o s , m a s

e s te s n ã o s ã o so m e n te r e la c io n a d o s u m a o o u tro , i s to é, e le s n ã o s ã o p a r a si,

s ã o so m e n te c o m o s u p r im id o s ; o q u e e le s s ã o p a r a s i é n ã o se r e m p a r a s i .70

N ão se afigure mais a oposição como uma figura sendo, figura que vocês poderiam opor a outra figura, pois o ser que assim lhe atribuem é um ser- determ inado, incom pleto, isto é, a negação do ser-para-si que pensam lhe assinalar. O que pretendiam consolidar, vocês fazem que se esvanesça.

S e p e d e m u m fu n d a m e n to d a o p o s iç ã o , e s s a q u e s t ã o p r e s s u p õ e ju s t a ­

m e n te a se p a r a ç ã o e n tre o fu n d a m e n to (q u a lq u e r q u e s e ja a m a n e ir a c o m o

e s te é p o s t o ) e a o p o s iç ã o ; a a m b o s , d e c e rto , e la o s c o n d u z a u m a re la ç ã o , m a s

a u m a re la ç ã o tã o d e fe i tu o s a q u e c a d a u m d o s d o is a in d a é ig u a lm e n te p a r a si.

E m o u tr o s te r m o s : c o m o a m b o s s ã o o q u e s ã o a p e n a s n a re la ç ã o d e u m p a r a

c o m o u tro , a m b o s d e te rm in a d o s , n e m u m n e m o o u tr o é p a r a s i m e s m o , e a

q u e s t ã o s o b r e o fu n d a m e n to se s u p r im e p o r s i m e sm a , p o is s e p e d e a lg o q u e

s e r ia e m s i e p a r a s i e q u e d e v e se r a o m e s m o te m p o u m d e te rm in a d o , q u e n ã o

d e v e se r e m s i e p a r a s i .71

Por m ais unilateral que corra o risco de se tornar, essa apresentação literalm ente vertiginosa da contradição tem o m érito de fazer com preen-

70 Jenenser Logik [Lógica de len a], Éd. Lasson, p .3 1-2; trad. fr., Jean H yppolite, in Logique et Existence, p .12 5 .

7 1 Ibidem , p.32.

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(chr>) K- ch^)Uj^=>

der por que a crítica de Fichte não deve se reportar à alternância nela mes­

ma, mas ao fato de que Fichte não tenha penetrado na razão da alternância: esta não tem fim porque se persiste em pensar autoposição e posição no

modo do ser-para-si e não no modo da inquietude - porque se ignora que a ins­tabilidade dos conteúdos determ inados (finitos) é de direito. Todavia, va­m os repetir: se nos ativássem os a esse prim eiro aspecto da contradição, dela tiraríamos apenas a lição de que os conteúdos determ inados não são,

mas que eles se destroem (zu Grunde gehen) e, portanto, é preciso excluir a palavra Sein de nosso vocabulário. Desm istificação sem dúvida apreciável, mas cuja envergadura, nesse estágio, não aparece plenam ente. D igam os de maneira mais precisa, porém, dem asiado breve: ainda não nos relaciona­m o s com o a d v e n to de um n o vo tip o de d is c u rso , m as com um a (des) ontologia (que em parte passará à Logique de 1’Essence [Lógica da es­sência]); por m ais longe que tenha ido Hegel na elaboração dos conceitos dialéticos na Primeira Lógica, ele ainda não tom ou consciência do registro discursivo inédito no qual trabalha. N osso propósito não é um a confronta­ção da Logique d ’Iéna [Lógica de Iena] e da Logique [Lógica]; mas seria inte­ressante pesquisar se, na época de Iena, a predom inância da linguagem da “ inquietude” e das m etáforas de viravolta e da em briaguez - de que a Feno-

menologia retém alguns ecos fam osos - não está relacionada com o fato de que o “C onceito” ainda não esteja entrevisto, isto é, que a dialética ainda não tenha encontrado seu centro de gravidade.72

Seria portanto unilateral perm anecer em um balanço de falência ôntica, pois essa inconsistência dos conteúdos finitos é igualm ente o retorno de­les a si; é nela que se anuncia a verdadeira independência desses conteú­dos. Sem dúvida parece absurdo que, no m odo im aginativo, a dissolução de algo seja o desdobram ento de seu sentido. N o entanto, é o que quer sugerir, no plano imaginativo, o paradigma hegeliano da expressão. A ex­pressão é o exem plo de um a presença inseparável de um a dissolução. Pois o flatus voeis nada mais é que o mediador efêmero de um a informação que eu com unico a meu interlocutor. Mas, de fato, essa perda é indispensável para que apareça a idealidade de que m inha fala era receptadora; é preciso

72 N a Logik [Lógica], o reconhecim ento da contradição é apresen tado com o etapa rum o à tom ada de consciência do Conceito: “A Reflexão inteligente, para mencioná-la neste ponto, consiste , ao contrário, na captação e na expressão da contradição. Em bora não exprim a o Conceito da co isa e de su a s relações, e, para todo m aterial e para todo conteúdo, p o s­su a apenas determ inações representativas, conduz e stas ú ltim as a um a relação que de­las contém a contradição e, através d essa contradição, delas deixa transparecer o C on­ceito" (Logik [Lógica], IV, p .549).

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que m inha voz exiba o nada que ela é para que o sentido de minha fala surja da poeira sonora que a engasta por um instante.

P re c isa m e n te , ta l é o se r-a í [d o E u q u e se e x p r im e ] a g o r a c o m o c o n sc ie n ­

te d e s i , n ã o s e r a í q u a n d o é a í e d e s e r a í m e d ia n te e s s e d e sa p a r e c im e n to .

E s s e p r ó p r io d e s a p a r e c im e n to é, p o r ta n to , im e d ia ta m e n te , o s e u p e rm a n e c e r

[Dies Verschwinden ist also selbst unmittelbar sein Bleiben].73

Indício de que o deslizam ento no Outro pode ser outra coisa que uma perda pura e sim ples. Essa m ediação em que soçobra [untergeht] inteira­m ente o que no início tom ávam os com o um conteúdo sabiam ente idéntico consigo, sempre reconhecível, nos desvela - tam bém e sobretudo - a ver­dade desse conteúdo que erroneam ente era considerado “bem conhecido” .O deslocam ento no oposto atesta que ele só tinha toda sua significação neste

últim o. Daí em diante, pode-se ao m enos pressentir que o dialético já não ^faz concorrência aos bufões do Euthydème [Eutidemo]: seu objetivo já não é maravilhar os ingênuos (como poderia parecer ainda em certas páginas da Logique d ’Iéna [Lógica de lena]), mas induzir o senso com um a se voltar para seus pressupostos. O senso com um só se m aravilha ou só se escanda- (

liza enquanto continua supondo com o fechadas, prontas (fertig) as signifi­cações que utiliza (justam ente pelo fato de que as utiliza). Aprende agora que deve renunciar a essa operação inicial de fixação, se quiser pensar es­ses conteúdos em sua verdadeira independência, isto é, total (totalizar, em linguagem hegeliana, é inicialm ente o contrário de estipular de uma vez por todas). Pois o conteúdo não foi anulado. Não digam os nem m esm o (sobretudo não) que ele soçobra neste ponto para em outro lugar reapare­cer na superfície. O conteúdo dissolveu-se, o que é bem diferente e bem mais difícil de traduzir em metáforas - mas que subverte toda a infram etafísica da alteridade, a que sobrevoam os no início deste capítulo. “Tal negação não é toda negação, mas a negação da coisa determ inada que se dissolve; portanto, um a negação determ inada.” “Negação determinada” quer dizer que a coisa não cedeu sim plesm ente o lugar a uma outra - o que a tornaria ausente na própria m aneira em que, há pouco, ela estava presente e torna­ria crível a im agem de um a dança em que se troca de par. “Negação determi­

nada” quer dizer o pivoteio da significação, quando se consente em focali­zar esta últim a, obriga-nos a reinterpretá-la em outro nível. Era um a idéia

73 Fenomenología do espírito, p .390; trad, fr., II, p.69; trad, br., II, p .49.

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preconcebida e estreita do que é o sentido de um conceito que tornava a passagem no O utro sinônim o de aniquilamento:

S e g u n d o e s s e la d o n e g a tiv o , o im e d ia to s o ç o b r o u n o O u tro [in dem A n d e r n

u n te rg eg a n g en ], m a s o O u tro , e s se n c ia lm e n te , n ã o é o n e g a t iv o v a z io , o n a d a

n o q u a l s e v ê h a b itu a lm e n te o r e s u lta d o d a d ia lé t ic a ; e le é o O u tro do p r im eir o ,

o n e g a t iv o d o im ediato-, e le é, p o r ta n to , d e te rm in a d o c o m o o m e d ia to ; n e le , e m

g e ra l, e s t á c o n t id a a d e te rm in a ç ã o d o p r im e iro . E s se n c ia lm e n te , p o r ta n to , o

p r im e iro t a m b é m é c o n se r v a d o e m a n t id o n o O u tr o .74

Teríamos enfim reencontrado a condição sob a qual Heráclito deixa de ser paradoxal? O conceito mostra agora que ele nada mais é que o O utro de seu Outro. Aprofundando a relação de exclusão (“um não é posto enquan­to o outro não o for, um sobe apenas à medida que o outro desce”) no Outro, a dialética deixa de ver a simples marca da incom pletude do conteúdo. E o meu Outro, meu contrário que me anuncia a nulidade do que eu acreditava “ser” e a verdade do que eu sou totalmente. Na superfície desse espelho, eu não “ sou ” m ais nada (’Verschwinden) e perm aneço enfim em totalidade (Bleiben): é o m om ento em que os dois sentidos de Aufhebung (supressão/ conservação) se reúnem. Analisem os isso mais de perto.

A té aqui vim os que o conteúdo determ inado, ao se abismar em seu Outro, abdicava a toda independência im ediata para guardar apenas uma “ independência” à prim eira vista paradoxal, visto que consistia em se reco­nhecer com o integralm ente condicionada pelo O utro, de ponta a ponta, “ ser-posto” . Mas, no ponto em que chegamos, que quer dizer “ser-posto” ?

Prim itivam ente, a palavra significava que a determ inação era em essência dependente de uma determ inação estranha que dela se avizinhava no m es­mo plano. E essa definição ainda não desconcerta o pensam ento de Enten­dim ento. Mas é justam ente o sinal de que, se nos satisfizerm os com isso, continuarem os levando a sério a linguagem do Ser (o da m etafísica e da prim eira parte da Logique [Lógica]) e concebendo a negação apenas com o um instrum ento de repartição dos conteúdos exteriores uns aos outros - o avesso da determinatio entendida como delim itação. A o contrário, se o “ ser- p osto” não designa mais o im ediato lim itado por outra coisa, m as o im edia­to perdido inteiram ente em seu Outro, por que insistir de m odo unilateral no m om ento do desaparecim ento, do apagam ento no Outro? A o perder

74 Logik [Lógica], V, p .340.

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seu estado civil factício, o conteúdo adquire toda sua envergadura; ao deixar que se desdobre seu ser-condicionado e ao se reencontrar no oposto que o condicionava, o termo do ponto de partida suprime aquilo m esm o que o condicionava. A prim itiva identidade consigo está sem dúvida perdida, ^m as, ao m esm o tem po, perdida a lim itação pelo O utro, que era dela ^inseparável. Doravante, não se pensa m ais o O utro com o designando o ex- terior, o “fora” . Tornar-se o seu O utro não é abandonar seu lugar, mas “reu- ^ nir-se consigo m esm o” (mit sich selbst zusammenpehen): perder sua lim itação é totalizar-se.

Desconfiem os, todavia, dessas fórmulas. Isoladas, elas parecem expri­m ir um otim ism o paradoxal, ao passo que a dialética consiste em banir toda suspeita de prestidigitação. Ela parece dar testem unho de um a conti­da vontade de recuperação a qualquer preço: a “tem porada junto ao negati- v o ” seria apenas um a prova rapidamente suplantada; o m aravilhoso com a dialética é que sempre sofreríam os apenas com o susto.

Hegel insistiu bastante na seriedade do negativo, na morte e na guerra.Mas resta que, para ele, tudo tem um sentido e, se ousamos dizer, tudo se arranja ... Se há uma última palavra, é certamente à identidade que ela perten­ce. Decerto, a identidade não é a igualdade pura e simples, e nisso é que Hegel renova Espinosa: ela é mediação; porém, essa mediação, que nega os termos como imediatos, é ela mesma como um imediato.75

“ Como um imediato” , sem dúvida. Mas esse “ im ediato” restaurado não é do

apenas hom ônim o do im ediato inicial? Sem dúvida, sem pre há ganho de •°·

sentido, m as essa im agem não indica em que m oeda, ao certo, ele está asse- gurado: na m oeda cujo m ovim ento das determ inações finitas acaba de mos- trar o não-valor ou em um a outra? Sempre há ganho de sentido, claro, e

£75 Dufrenne, N otion d ’a priori, p.44-5. Tam bém H am elin, por su a vez, in siste n esse retorno

final ao im ediato que seria a ú ltim a palavra da dialética. “A contradição deve ser apaga­da, a contradição deve ser conciliada, expressões que voltam incessan tem ente ... Hegel deu por consentido que o Finito é contraditório em si e qu is, ao m esm o tem po, conce­der direito ao princípio de contradição: é isso m esm o o seu m étodo” (Essai, p .29). M as a expressão “ conceder direito ao princípio de contradição” é equívoca. Hegel não obedece ao princípio de contradição, princípio do Finito; m ostra que a “ contradição” , no novo sentido, é sim ultaneam ente su p ressão da determ inação e restabelecim ento de su a iden­tidade. A o confundir contradição clássica e contradição hegeliana, são levados a com ­preender a negatividade com o u m a provação por que passar, um paroxism o que deve ser suplantado . A partir daí, a sín tese do im ediato e da m ediação aparece sobretudo com o um retorno ao im ediato inicial.

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mais rico do que se im aginava - mas sob a condição de acrescentar que até então não se sabia o que era o sentido e a dialética não é portanto um alarga­m ento, mas um a crítica radical do pensam ento de Entendim ento. Ela não extirpa as estipulações fixadoras deste últim o para substituí-las por outras, m ais científicas, mas para nos levar a reconhecer que o sentido não cabe na m ensuração de um conjunto de estipulações. Em suma, trata-se de uma m utação da própria natureza do Logos. Mas com o ticariamos atentos a isso se persistíssem os im aginando a dialética com o um a construção mais enge­nhosa dos m esm os conceitos finitos, um m eio de passar, de outra maneira, de um a outro conteúdo - com o se a própria figura da passagem (Übergehen)

não fosse a form a ainda adulterada que a dialética assum e no plano do “ Ser"?76 E aí que se im porá a im agem de um jogo em que sempre termino reencontrando m inha aposta, e para além disso. O que é voltar a cometer, de outra forma, o contra-senso contra o qual H egel nos adverte a propósito de Espinosa: estão fascinados a tal ponto pelo Finito, diz ele, que com ­preendem irresistivelm ente o espinosism o com o se ele houvesse rebaixado Deus ao patam ar das coisas finitas. Ora, não é freqüente que leiam Hegel com o se ele se lim itasse a substituir, ao recorte dos conteúdos operados pela Finitude, um outro recorte, só mais hábil ou mais desonesto? Com o se o m ovim ento dialético se desdobrasse em um espaço com tantas dim en­sões quanto as da reflexão de Entendim ento.77 Mas que se esforcem para rom per seriam ente com os pressupostos do Entendim ento, em vez de ali integrar tão bem quanto mal a dialética, então o “otim ism o” hegeliano nos parecerá, sobretudo, a ocasião de repensar o que é o otim ism o. Pois não é verdade que se encontra em outro lugar aquilo que a dialética m arcou com o nulidade: é a sério que se renuncia à sua subjetividade e a sério é que se morre. Com o a significação totalizante só aparece ao custo desse sacrifício, ela nada m ais tem de com um com a pseudo-significação que o pensam ento finito batizava com o m esm o nome. O que agora se denom ina “o Si verda­deiro” é a renúncia efetiva (in der Tat und Wirklichkeit) ao Eu singular,78 o im ediato dissolvido pela dialética era tão-só a caricatura do “im ediato” (se quiserm os cham á-lo assim ), que resulta da m ediação consigo.

76 “A p assagem no O utro é o processo dialético na esfera do Ser; o parecer no Outro, na e s fe ra d a E ssê n c ia . A o co n trário , o M ov im en to do C o n ce ito é d ese n v o lv im en to [Entw icklung] pelo qual só é posto o que em si já está p resen te” (Enciclopédia das ciências

filosóficas, § 161, Z., VIII, p .355; trad. br., I, p .293-4).77 Glöckner fala de um pen sam ento “bidim en sional” e “não-plástico” (cf. Vorwort ao tom o

VIII, p.XXXII-XXXIII).78 Cf. Ph. Religion [F ilosofia da religião], XV, p .204 .

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É antes o terceiro momento que é o imediato, mas pela supressão da mediação - o simples, mas pela supressão da diferença -, o positivo pela su­pressão do negativo - o conceito que se realiza pelo ser-outro e que, reunido consigo devido ao fato da supressão dessa realidade, restabeleceu a sua reali­dade absoluta, sua relação simples consigo. Esse resultado é, portanto, a ver­dade. Ele é tanto imediatez quanto mediação.79

A s significações estão portanto bem “ conservadas”; mas sob que títu­lo? Se o A bsoluto continua a ser chamado “D eus” , isso é apenas um a for­m a de falar aos olhos da tradição: a Criação não é mais que um a alegoria; a transcendência divina, um a das etapas da parousia. O “ Sujeito” atinge cer­tam ente sua plena envergadura, mas o Cogito não é mais que um m om ento efêmero. A ssim , a pretensa extensão das significações as destrói bem com o as purifica: a “ subjetividade” , traduzida nessa nova língua, não é m ais re­conhecível, e o Deus dos crentes se reduziu a um a figura ideológica. Decer­to, graças à dialética, “ sempre nos reencontram os ali” , no sentido econô­m ico e trivial da expressão, porém nada mais encontram os dos conceitos familiares, e isto tem de ser frisado tanto quanto aquilo. Por toda a parte, "a rem iniscência do objeto nom eado se banha em um a nova atm osfera” .80 O pensam ento que se m ovia nas significações “bem conhecidas” nunca ga­nha, portanto, nada em troca, senão poder m edir o quão derrisórios eram os requisitos e exigências da Finitude.

“Ganho” , “m etam orfose” , que valem ainda essas imagens, ali onde per­dem os o direito de im aginar entes dispersos, separados por um intervalo ou se sucedendo uns aos o u tro s? 'A “m etam orfose” é um percurso com etapas: que sentido m antém a palavra, ali onde a idéia de alteridade não deve mais sugerir a im agem de uma distância a ser transposta? Q ue um a determ inação se perca em seu O utro, isso já não quer dizer que um proces­so de conhecim ento (ou que um m étodo) a deporte ou a reencontre em

outro lugar, m as que ela se redefine em outro patamar. A té aqui, a “m edia­ção com o O utro” designava a necessidade, para um conteúdo dado, de recorrer a outra coisa para ser determinado; agora, a expressão designa a realização de si (entendamos: do Si que esse conteúdo dado camuflava) em seu oposto. Com o não se trata mais de uma nova estratégia do conheci­m ento, m as de um rem anejam ento da natureza das significações, o m o-

79 Logik [Lógica], V, p .345.80 M allarm é, CEuvres, Éd. Plêiade, p.368.

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m ento da relação de si consigo (independência) e o m om ento da relação com o Outro (mediação ou ser-posto) deixam de ser lados distintos e su­cessivos.81 Daí em diante, dá na m esm a escrever que o im ediato se des­truiu (zugrunde gehen) ou que o im ediato de há pouco, ao reunir-se consigo (com aquilo de que ele estava arbitrariam ente disjungido), se reencontrou em sua verdade (zum Grunde gehen). E verdade que essas fórm ulas deve­riam passar por feéricas, se continuássem os a pensar a alteridade em ter­m os de ontologia tradicional. E verdade que a “ supressão/conservação” se­ria apenas um gesto de saltim banco, se apenas continuássem os concebendo a diferença com base no m odelo do “fora" (Auseinandersein) e se para nós os opostos perm anecessem entes. Por isso, estaríam os atentos à freqüência das metáforas de naufrágio e de subm ersão (zugrunde gehen, blinder Untergang

in Anderssein): elas nos libertam das metáforas espacializantes e localizadoras que H egel critica com insistência no início da Logique de 1’Essence [Lógica da Essência].82 O admirável é que se pudera julgar a dialética com o se ela con­tornasse ou pretendesse contornar dificuldades das quais, na realidade, ela denuncia a vaidade e o caráter arbitrário: “a reunião consigo no O utro” não quer dizer que o obstáculo da alteridade tenha sido transposto, mas que só havia alteridade intransponível porque fora concebida com o exterioridade, além. O andam ento fantástico que se atribui à dialética provém, portanto, unicam ente de ela ser tom ada por um relato que, aceitando as regras de nossa lógica, gostaria entretanto de nos convencer de que Cálias está si­m ultaneam ente sentado e em pé, ao passo que a dialética é precisam ente a recusa das regras que m onopolizavam o jogo do sentido. N ão vam os por­tanto acreditar que, para ela, sempre haveria sentido, que bastaria um pou­co m ais de audácia ou de artimanha, para tornar o caos inteligível e tran­qüilizador o absurdo - antes, porém, que o sentido relativam ente ao qual se assinalava o caos ou o absurdo pudera ser codificado prem aturam ente. Não digamos tam pouco que o negativo será infalivelm ente reabsorvido, pois não se trata de m aneira alguma de descrevê-lo de m aneira m ais oti­mista, mas escrever ou falar o negativo de outra maneira. (“ Precisariam de um a nova lin guagem "...) Em suma, a dialética só parece garantir o sentido antecipadam ente, se for investida de um a doutrina; porém, com o m áquina de linguagem, ela se contenta em tornar certos parti-pris ontológicos como responsáveis pelo não-sentido apressadam ente presum ido. E, a partir daí,

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81 Cf. Logik [Lógica], V, p .345.82 Cf. Enciclopédia das ciências filosóficas, § 112 , Z ., VIII, p .264.

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onde está a magia? O nde está o desejo de maravilhar que se lhe atribui e a irritante certeza de que ela saberia mais? Se a “alteridade” por ela elabora­da é tal, que não há mais “outro ao encontro de um O utro” ,83 das duas uma: ou “a nova linguagem ” é delirante, ou a consciência finita fala um a lingua­gem de que ela não percebe a parcialidade. A ssim , ao se pôr desesperada­m ente contra o que a limita, é da significação de “ si m esm a” que ela pode­ria fugir, e não, com o acredita, sua integridade que estaria sendo por ela preservada. A o se im pacientar contra sua limitação, só estaria se recusando a reconhecer que o lim ite é uma falsa fronteira.84 A o desejar transgredir esse lim ite e anexar o Outro (consciência desejante), a consciência finita só estaria deixando intacta a velha estrutura de alteridade (e pagando o preço com a necessidade de um incessante recom eço85). Seria possível in­terpretar as coisas assim ... E a m elhor propedêutica à dialética talvez con­sistiria então em desm ontar, sistem aticam ente, os com portam entos da Finitude, em ressaltar o que eles têm de fútil quando a eles se fala de outra

maneira - em m ostrar que a seriedade conferida às angústias religiosas, aos escrúpulos afetivos, aos tabus sexuais provém de nossa incapacidade para em pregar a “nova linguagem ” , que basta o deslizam ento do conceito para nos curarmos de um rem orso ou de um amor. Mas, enquanto vivem os em discurso - o da Finitude - que se oculta como discurso para m elhor nos dar a pretensão de estarem às voltas com o “ concreto” , com o ter outra idéia da dialética a não ser a de um jargão pedante que descreveria as m esm as ex­periências e diria o m esm o im ediato? A dialética, no entanto, não tenciona

83 Logik [Lógica], IV, p .478.84 “ Fazem os de nós m esm o s algo fin ito pelo fato de acolherm os um O u tro em nossa co n s­

ciência. M as justam ente, en qu anto sabem os desse O utro, transpom os esse lim ite. Só o que não sabe é lim itado, p orqu e não sabe do seu lim ite; ao contrário, quem sabe do seu lim ite sabe dele não com o de um lim ite de seu saber, m as com o de algo que é sabido, com o de algo que pertence ao seu saber. Só o não-sabido poderia ser um lim ite do saber;o lim ite sabido, ao contrário, não é nenhum lim ite do saber. Saber seu lim ite significa, pois, saber de sua ilim itação” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 386, Z ., X, p .44; trad. br., III, p .33).

85 Cf. Fen om en ología do espírito, II, p. 146; trad. fr., I, p. 152. Ph. Religión [Filosofia da re­ligião], XV, p.193-4; System-fragment, N õhl, p .349, que descreve o sacrifício religioso com o um esb o ço do aniq u ilam en to com pleto, p ortan to desin teressado, da objetividade. “ É so m en te graças a essa d estru ição gratuita, a essa d estru ição p ela d estru ição qu e [o hom em ] resgata as d estru ições com etidas p or seus in teresses particu lares ... Se p er­m anece a n ecessidade de um aniquilam en to in teressado dos objetos, tal destru ição gra­tu ita dos objetos se p rodu z p erio dicam en te e se revela com o sendo a ún ica m aneira relig iosa de se com portar p erante objetos a bso lu to s” (trad. fr., Papaioannou, in Hegel, p .127-8 ).

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obter vitórias no terreno onde o pensam ento finito perde suas batalhas, nem integrar ingenuam ente o “negativo” , nem glorificar o insuportável. Ela não pretende que o negativo fosse m ais côm odo do que se acreditara, mas sim plesm ente que ele não era o que se dizia.

Em vez de com eçar - com o no antigo cam po de fala - oferecendo a todo conteúdo uma independência definitiva, explicita-se com o integral­m ente ser-para-outro (ser-posto) até ser apenas em seu Outro. Mas, em virtu­de desse fato, tal ser-para-Outro perde seu sentido prim itivo (alienante), visto que a estrutura de alteridade é, por isso m esm o, abolida. Há nisso com o que dois m om entos em si indiscerníveis que serão distinguidos ape­nas para m aior comodidade, com o H egel o faz no fim da Logik [Lógica] - com o risco de tom ar então “ a forma do m étodo” com o quaternária e não mais ternária.86 O s estágios são os seguintes:

1) imediato;2) extenuação do im ediato que desliza em seu oposto - prim eira n e­

gação;3) supressão dessa alienação devido ao fato da total coincidência com

o oposto;4) restabelecim ento da im ediatez em outro nível pela mediação assim

operada consigo.

Do segundo ao terceiro estágio, ou seja, da primeira à segunda negação, nenhum a pausa, tão-só um corretivo. U imediato não se perdera absoluta­m ente como conteúdo, como poder-se-ia pensar ao reduzir todo conteúdo a uma presença imutável no “ Ser” . Ele apenas se “despojara” (entgekleidet) da forma da imediatez. a que marca, o finito com o selo do absoluto.8' Ele se~ m ostrou portanto como mediatizado e, nesse movimento, reencontrou ver-

dadeiramente a “independência” que só lhe fora reconhecida cedo demais (m om ento da segunda nesacao). E o advento do especulativo propriamente dito, entendido como racional positivo - se fizerm os questão de reservar a palavra “dialética” à “ Razão negativa” .88

A dialética é antes a verdadeira natureza das determinações do Entendi­mento, das coisas e do Finito em geral. Inicialmente, decerto, a Reflexão é a

86 “Q ue e sse terceiro se ja a unidade, ou, ainda, que toda a form a do m étodo tenha a form a de um a triplicidade, isso é som ente o lado exterior, superficial, do m odo de conheci­m ento . . . ” (Logik [Lógica], V, p .344).

87 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 74, VIII, p .179-80; trad. br., I, p .152.88 Sobre a diferença entre o “racional-positivo” e a “ dialética", cf. Enciclopédia das ciências

filosóficas, § 82, VIII, p. 196; trad. br., I, p. 166-7; Propadeutik [Propedêutica], III, p .170-1.

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transgressão das determinações isoladas e instaura entre elas uma relação tal, que são postas em relação conservando ao mesmo tempo seu o valor isolado. A dialética, ao contrário, é essa transgressão imanente, na qual a unilateralidade e a limitação das determinações de Entendimento se dão pelo que são, a sa­ber, pela negação delas. Todo Finito consiste nisso, em se suprimir. A dialética forma, portanto, a alma motora do progresso científico; ele é o princípio gra­ças ao qual apenas o encadeamento imanente e a necessidade se tornam o conteúdo da Ciência - assim como contém a verdadeira elevação não exterior, acima do Finito.89

Q uando interpretam o Saber absoluto como o coroam ento da m etafí­sica e lhe reprovam deixar fora de si um a zona de não-sentido, um negati­vo irredutível que ignoraria soberbam ente, ainda têm certeza de não con­ceder a certas significações um “valor isolado” ? A ssim , com preendem a dialética com o outra ontologia, outra experiência do Ser - e a negatividade se torna naturalm ente um a reapropriação laboriosa, mas sempre exitosa. Mas, afinal, onde é o lugar desse êxito? Em que lugar do percurso nos dão o direito de parar em uma significação isolada que o totalizaria? Tom em os por exem plo o Infinito: ele é, sem dúvida, o desaparecim ento do Finito, o “vazio” em que este últim o se abism a.

O que na verdade é posto no Infinito é, portanto, que ele é o vazio no qual tudo se suprime ...

Mas estam os quites com o Infinito por tê-lo denom inado “vazio” ? Esse aspecto do conceito deve logo em seguida ser novam ente posto em circula­ção, desem penhar de novo o papel de um term o unilateral que retira seu sentido da oposição m ovente da qual ele é um dos membros:

e esse vazio, por isso mesmo, é a um só tempo um oposto ou um membro do que é suprimido, a relação do Uno e do Múltiplo, mas que ele mesmo se opõe à não-relação do Uno e do Múltiplo e que, entretanto, a partir dessa oposição, numa instabilidade absoluta, é recolhida na simplicidade e é somente posta como este recolhido, este refletido; ou, ainda, é o infinito.90

89 Enciclopédia das ciências filosóficas, A, § 15, VI, p .35.90 Jenenser Logik [Lógica de Iena], p .33-4; trad. Koyré, in Etudes d ’Histoire, p .153.

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O jogo portanto não pára, nenhum a descrição é privilegiada, nenhum m ovim ento term ina em um nom e que resum iria seu percurso. Incessante vitória do sentido, tanto quanto se quiser; mas tam bém advento da mais desconcertante noção de “ sentido". Estranho “ coroam ento da m etafísica” , com efeito, um discurso que não pára de denunciar com o parcial a tese que, ao que parece, ele vem form ular - discurso que ao ponto final prefere o corretivo que torna a questionar a frase inteira. Estranho “dogm atism o" esse, interditando ao leitor jam ais se repousar em um ponto fixo e sempre o deportando mais longe. Trata-se então de um trabalho econôm ico, de um necessitado entesouram ento do sentido? Ou, antes, trata-se de nos condu­zir a um sentido tal como esperávamos, tal com o poderia ser im aginado por quem pensa por m eio das oposições e diferenças que a m etafísica lhe le­gou? Para descrever pura e sim plesm ente o Saber absoluto com o um siste­ma de segurança, talvez seja preciso ficar insensível ao fato de que o único trabalho da dialética é, afinal, fazer que saltem, um a a uma, as abstrações em relação às quais (se a isso nos agarramos) a negatividade assum e o pa­pel de tese aberrante. De fato, não nos pedem para dar um a m ãozinha, mas para reconsiderar, a cada passo, nossa antiga gram ática (no caso, a que acei­távamos grosso modo nos anos 1800, para falar sobre o Finito e o Infinito, Deus e o m undo etc.). A o preço de um a ontologia mitigada, portanto, não nos é p rom etid o um sen tido m ais satisfatório . Q ue m ais vê o le ito r desavisado, se não o esboroam ento do sentido “bem conhecido” das pala­vras? Mas onde e quando surge, a seus olhos, o outro sentido, aquele que, ao que parece, deveria com pensar finalm ente esse sacrifício de pura forma? “Ser” e “N ada”, escreve por exem plo Hegel, desapareceram com o abstra­ções que há pouco eram consideradas diferentes um as das outras: “eles são desde então algo de outro” (und sind nun etwas Anderes). Equivale isso a dizer que um a figura teria expulsado a outra, que “a unidade" dos dois conceitos teria substituído sua “diferença” ? Não. Esse “algo de outro” que advém só faz sancionar a abstração da diferença em que há pouco se fiara. N ão houve deslocam ento, m udança de cenário: sim plesm ente, não tem os m ais o direi­to de dizer que “Ser” difere de “N ada” , e o progresso ou o enriquecim ento do sentido nada m ais é que essa renúncia de um código supérfluo.

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N o entanto, m esm o no ponto da dissolução da Finitude a que chega­mos, a negatividade não nos aparece ainda com o um a noção quase mágica?

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E que, à força de apresentá-la com o o sinal de uma m utação na própria concepção do discurso, acabaríamos perdendo de vista que a negatividade tom a im pulso no discurso ingênuo por ela relativizado; acabaríamos esque­cendo que ela se oferece também, na origem, com o a única solução possível das aporias nas quais se debatem as “filosofias do Sujeito” , quando preten­dem apresentar o A bsoluto. De nada serviria, com o já dissem os, nos con­tentarm os com um a descrição técnica da negatividade que, om itindo seu caráter de revolução discursiva, levaria a ver nisso apenas um sim ples acha­do ontológico. Mas essa passagem a um novo tipo de discurso e de M étodo não nasceu da fantasia do autor. Por que ela se impõe?

E a leitura de Fichte que indica a H egel o ponto de partida que im por­ta evitar e o preconceito que im porta desenraizar, se quiserm os que a “ cons­trução do A b solu to ” não perm aneça sempre no estado de projeto por ser aprovado. H egel com eça a estudar a Doutrina da ciência em 1795 (cf. carta a Schelling de 16 de abril de 179 5). Mas é em 1801 que parece dela tirar p roveito e superar m u ito su bitam en te as con clu sões nas quais ainda emperrava em 1800, no Systemfragment. O pensam ento, escrevia ele então, visto im plicar a oposição entre o pensam ento e o não-pensam ento, só pode m ostrar no m áxim o “a finitude das coisas finitas"; a filosofia, por conse­guinte, deve “ deter-se diante da Religião” .91 Por que essa “detença” ? Porque a Reflexão de Entendim ento, pensa Hegel então, é o único instrum ento de que dispõe o filósofo e porque ela deform a necessariam ente as (futuras) proposições especulativas. Se eu digo, por exem plo, que “ a Vida é a união da união e da não-união” , a expressão é canhestra e m esm o ininteligível. Com efeito, para a Reflexão,

desde que um termo é posto, sempre se pode mostrar que outro termo é, por isso mesmo, não posto, excluído. Ora, é preciso deter de uma vez por todas esse rodízio interminável de uma expressão a outra, observando que, por exem­plo, o que foi designado acima pela expressão união da síntese e da antítese não é um produto da Reflexão, do Entendimento; ao contrário, sua única caracterís­tica aos olhos da Reflexão é precisamente estar fora da Reflexão.92

“Eu precisaria de um a expressão” , acrescenta Hegel, “para dizer que a vida é a união da união e da não-união” . Mas para que procurar essa ex-

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91 System-fragment, Nõhl, p .347 ; trad. fr., in Papaioannou, Hegel, p. 125.92 Ibidem .

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pressão, se antecipadam ente se decidiu que a Reflexão não pode pôr um term o sem excluir um outro - que só o Entendim ento tem direito à pala­vra? Daí em diante, a única saída é religiosa, ou seja, não discursiva. Tal é a conclusão, na época. U ltim a hesitação, ao que parece, no lim iar do “racio­nalism o” da maturidade, com o se Hegel ainda não se resignasse a devolver à Razão sua soberana jurisdição e a recair, como assegura Landgrebe, “ sob o feitiço da tradição m etafísica, ao passo que nos escritos de juventude ele estava prestes a escapar dela . . .” .93 Evitem os, no entanto, essa imagética. A qui pouco nos im porta que algum dia Hegel tenha voltado ao grêm io da

> Ratio tradicional. M uito pelo contrário, im porta com preender por que ele pensa em novam ente questionar a extensão do cam po discursivo, talvez

^ 0 m uito estreita e prem aturam ente lim itada em benefício da Religião. A ques-Q 1i que se põe dessas linhas é portanto a seguinte: enquanto nesse texto

v Hegel ainda tom a com o im pensável que haja outro discurso além do En­tendim ento, por que vai ele rever dentro em breve sua posição? Q ual críti- ca dessa lim itação da Reflexão ao Entendim ento vai obrigá-lo a mudar de atitude? Parece-nos que o preconceito que desvenda nessa lim itação é o m esm o que discerne, ao m esm o tem po, nas “filosofias do Sujeito” .

Recoloquem o-nos no ponto de partida da gênese fichtiana. O ato in­condicional pelo qual o Eu se põe por si m esm o e para si m esm o não está livre de todo pressuposto. ‘A o fazer abstração do que nele é estranho” , es­creve Hegel, “o Eu não o abstraiu especulativam ente, isto é, ele não o ne­gou” .94 “N egar” , para ele, só pode ser pôr o O utro “ com o um m enos” , e o m esm o ocorre com todas as negações-determ inações que se podem efetuar no Ser. A dúvida cartesiana foi o m odelo dessas negações exclusivas, pelas quais as filosofias do Sujeito pensam tornar radical seu ponto de partida. Todas determ inam o Eu por interm édio do que ele não é - mas do que ele não é no imediato.95 "Eu não sou esse agregado de m em bros cham ado corpo hum ano, eu não sou um ar desvinculado e penetrante, difundido-se em todos os seus m em bros” ... A o m enos, o ponto de partida que assim Des-

93 A pud Rohrm oser, Théologie et A liénation, p.50.94 Clauben und Wissen [Fé e saber], I, p .401; trad. fr., p .277.95 O que Sartre deixa de lado quando, em L’Être et le N éant, aproxim a a negatividade da

dúvida m etódica ou da dúvida cética, com o atestações de que " a realidade hum ana é brutal separação de si m esm a” : “ E o que vira D escartes, ao fundar a dúvida n a liberdade, reclam ando para n ós a possib ilidade de su spen der n o sso s ju ízos - e A lain depois dele. E também nesse sentido que H egel afirm a a liberdade do espírito, na m edida em que o espíri­to é a m ediação, isto é, o negativo” (p.61-2, grifo n osso ).

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cartes determ inava não se dava com o o A bsoluto. Pouco importa, o hábito estava adquirido. Já o filósofo fazia, da negação-determ inação, o revelador do Primeiro Princípio; já confessava o quanto ele cedia ao prestígio do “Ser” , pois é som ente no “ Ser” que essa form a da negação é concebível. Aqui com eça a inconseqíiência das filosofias do Sujeito: elas supõem que um ente determinado pode, com o tal, desem penhar a função de com eço radical. Retidas no nível do ente, incapazes de ver além da negação unilateral que lhes é específica, são todas, portanto, “dogm atism os” ; todas pensam as sig­nificações em conteúdos finitos que os deformam, restringindo, por exem ­plo, o Selbst ao Ich, o Sujeito à consciência de si.96 Ora, Fichte é a culm inân­cia dessa tradição: por que tom ar com o absoluta, com o ele o fazia, “ uma coisa incom pleta ... reconhecida com o parcial e deficiente” , se não porque “essa parte usufrui de uma certeza e de uma verdade em píricas” ? E por que, “ à verdade absoluta da Totalidade, prefere-se essa verdade em pírica” ?97 Por isso m esm o, a gênese fichtiana não tem chances de chegar a seu termo: com o incondicionado, ela oferece um princípio de fato determ inado e con­dicionado e, com o deve reconhecer esse condicionam ento, faz, da necessi­dade de eliminá-lo, o m otor da gênese. Ora, é inevitável tom ar esse condi­cionam ento com o algo adquirido? Se a resposta for afirmativa, é preciso resignar-se ao fato de que ele nunca será absorvido:

Enquanto limitado pelo Não-eu, o Eu é finito; nele mesmo, porém, e enquanto é posto pela sua própria atividade absoluta, ele é infinito. Nele, por­tanto, é preciso conciliar o finito e o infinito. Ora, semelhante conciliação é, em si, coisa impossível.9S

Mas tal disjunção, reconhecida assim lealm ente por Fichte, entre a idealidade do Eu absoluto e a realidade do Eu finito, engendra um desloca­m ento contínuo das significações. Ora - com o m ostrou G uéroult99 - é o A bsoluto que dá conta da finitude; ora é a finitude que transborda o Para- si, o A bsoluto que recai no limitado, e a “ gênese é ilusória” . Fichte obser­

96 ‘A m aneira m ais exata de considerar a filosofia kantiana é ver que ela captou o Espírito com o con sciên cia e con tém só e unicam ente determ inações da fenom enología, não da filosofia do E sp írito” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 4 15 , X, p .259; trad. br., III, p .185).

97 Glauben und Wissen [Fé e saber], I, p .399; trad. fr., p .276.98 Fichte, Grundlage, I, p .144; trad. fr., P hilonenko, p .54.99 G uéroult, Fichte, I, p .342.

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3 1 2 G É R A R D L E B R U N

va, sem dúvida, que o Eu nunca é, ao m esm o tem po e no m esm o sentido, finito e infinito:

N u m se n t id o , o E u d e v e r ia se r p o s t o c o m o in fin ito , n o u tr o c o m o fin ito .

S e f o s s e p o s t o n u m ú n ic o e m e s m o s e n t id o c o m o in f in ito e c o m o fin ito , e n tã o

a c o n tr a d iç ã o se r ia in so lú v e l; o E u n ã o se r ia u n o , m a s d o i s .100

Pífia vantagem no entanto, julga Hegel, conseguir evitar essa contradi­ção, visto que a Doctrine de la Science [Doutrina da ciência] não deixa de ser incapaz de fecham ento. D e que serve evitar a contradição no jogo dos con­ceitos, se todo o sistem a está aí para atestar que houve ao m enos inconse- qtiência - e talvez até, em outro sentido, contradição - no projeto? Por essa via, o observador crítico chegará a se perguntar se a exigência clássica de não-contradição não deve ser reexaminada, antes de ser incondicionalm ente satisfeita, para que o idealism o se torne, de fato e por fim, a filosofia do Absoluto. Seria possível, com efeito, que a não-contradição in terminis hou­vesse pago o preço pela contradição entre a intenção e o ato, o dizer e o fazer. Entendamos: entre a petição de absolutez do Eu, por um lado, e, por outro, a m anutenção da estrutura de oposição real. Pois é a oposição real, isto é, o enredam ento da posição e da oposição, que de saída torna falaciosa toda esperança de assinalar o Incondicionado. Para com preendê-lo, vam os

100 G uéroult, ibidem , p .2 15 . “O Segun do Princípio é, portanto, o p osto a si m esm o e supri­m e a si m esm o ” (Grundlage, I, p .106). Porém , prossegu e Fichte, só se suprim e à m edida que “o p osto é suprim ido pelo o p o sto ” , portanto, à m edida que preservou sua validade: "logo, ele não se suprim e". Em ou tros term os, se a análise do con teúdo do Segundo Princípio con d uz a duas con clu sões in com patíveis, essa in com patib ilidade se deve à apli­cação do Segun do Princípio. A o se suprim ir com o instância, este ú ltim o se conserva, p ortanto, com o sentido: a supressão de si é igu alm en te supressão por si; ela é a caução da conservação. N o parágrafo seguinte, F ichte dem on stra que o m esm o ocorre com o Pri­m eiro Princípio. N esse ponto, certam ente, já entrevem os o m ovim ento da negatividade - m as apenas entrevisto, ele já é verdadeiro, pois Fichte rejeita aquelas con clu sões que aboliriam a identidade da consciência, “ único fundam ento de nosso saber” . “A partir de então, n ossa tarefa é determ inada: encontrar um X, por m eio do qual tais con clu sões pu d essem ser adm itidas, sem que a identidade da consciência fosse suprim ida” (I, p .3 0 7 ). E ssa p a ssa g em v erifica a an álise de R. K rõ n er (Von K an t bis Hegel, II, p .3 1 1 -5 ) : na autop osição do Eu, F ichte via a pressup osição da identidade form al para todo con teúd o de pensam ento; porém , essa identidade form al o tornava cego para a d ialética já em vias de elaboração no “ Eu = E u” , com o qual acreditava p o ssu ir um princípio não con tradi­tório da filosofia transcendental. H egel, por sua vez, inverte a relação: é a d ialética d issi­m ulada nessa proposição que se torn a a essên cia do lógico, e n enh u m a das proposições da lógica analítica escapará a essa lei. Sem n enh u m a exceção, a d iferença se põe de tal m aneira que igualm en te ela se suprim e.

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A P A C IE N C IA D O C O N C E IT O

( ' ΓΛ-*β- γ· \

3 1 3

seguir a análise dada por H egel acerca do sistem a de Fichte, na Differenz

[D iferença].Para que a síntese dos dois prim eiros Princípios fosse “ com pleta”

(■vollständige) e sua unificação satisfatória, seria preciso, segundo Fichte, que a oposição não fosse real, mas “ ideal” . Q ue isso quer dizer? Tom emos com o exem plo um episódio da exposição do Terceiro Princípio na Doctrine de la

Science [Doutrina da ciência]. Com o oposto ao Eu, o N ão-eu o suprim e (m o­m ento A l ) . Para que a identidade do Eu - exigência suprem a - torne-se com patível com o N ão-eu, é preciso, portanto, que o N ão-eu seja posto no Eu e este últim o não seja posto. Mas com o então o N ão-eu nada mais en­contraria diante dele, é a relação de oposição que desapareceria: que é um oposto sem aquilo a que ele se opõe?101 D isso resulta que o Eu deve, por­tanto, ser posto igualm ente no Eu. Mas, por causa desse fato, recai-se na contradição (A 1) que se acreditava esquivada: os opostos em presença se suprim em um ao outro. Isso só pode ser evitado não mais os concebendo com o opostos reais (m om ento A 2). N esse caso, porém, observa Hegel, se o Eu não podia “nada opor a si, tam bém nesse caso, ele não seria um Eu; ele não seria nada” .102 Para suplantar esse dilema, seria preciso que a opo­sição fosse integralm ente posta pelo Eu, no lugar de o Eu fazer parte dela - ou ainda: seria preciso que os opostos não fossem senão produtos ideais da reflexão.

Da idealidade dos fatores opostos, resulta que eles não são nada senão na atividade sintética, que somente esta última põe o ser-oposto deles e essa mesma idealidade, e que a construção filosófica só empregou sua oposição para tornar compreensível o poder sintético.103

Mas não é o que ocorre, afinal de contas, no sistem a de Fichte: as “ ati­vidades opostas” não são ali tomadas com o “fatores ideais” . O Primeiro Princípio (Eu = Eu) exprim e um a atividade absoluta, e o N ão-eu é um term o ‘‘absolutamente oposto’’ . Ora, a identidade absoluta, que Fichte tem em vista, suporia a idealidade desses fatores... Assim , “ a especulação do sistem a exige a supressão dos opostos, mas o próprio sistem a não os su-

101 Fichte, Grundlage, I, p .270.102 D ifferenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p .85 ; trad.,

p .114. Cf. Glauben und Wissen [Fé e Saber], I, p .406-7; trad. fr., p .280-1.103 D ifferenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p .75; trad.

fr., p. 107.

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3 1 4 G É R A R D L E B R U N

prim e” .104 Em suma, todo projeto de unificação torna-se quim érico, se se parte de termos opostos no absoluto.

Isso significa que a oposição real é, nela mesma, incom patível com o cum prim ento do projeto idealista? Se assim fosse, seria preciso escolher: ou deixar de lado a oposição real e parar de pensar a posição com base em oposição (ou lim itação), ou renunciar ao idealism o absoluto, tom ar cons­ciên cia de que o Segun do P rin cíp io é, de fato, um segu n d o com eço incondicionado e o Eu que se dava com o “absoluto” não pode pôr o Não- eu sem perder sua absolutez. Ora, afinal de contas, Fichte não critica a validade desse dilema: ele só se esforça em contorná-lo, em penhando-se assim em um a tarefa interminável, apresentando alternadamente o Primeiro Principio com o incondicionado, depois com o condicionado. E isso, é ver­dade, é inevitável enquanto se representa a oposição real com o um a rela­ção de duas “realidades” absolutam ente separadas, cujos efeitos se supri­mem . Para H egel, todo o destino do idealism o se joga em torno desta interpretação da oposição real: a oposição real é óbvia ou, ao contrário, repousa em um preconceito até aqui despercebido? Tal “ abstração pela qual a Reflexão isola seus opostos” não constituía um problem a nem na Critique

de la raison pure [Crítica da razão pura] nem na Doctrine de la Science [D outri­na da ciência], E é por isso que Kant tom ava a idealidade transcendental com o a única solução possível das Antinom ias: se o m undo fosse dado como um a coisa-em-si, o Finito e o Infinito, determinações fixas, seriam incom pa­tíveis, de m odo que seria preciso escolher que o m undo fosse um ou outro ... Não haveria, pensa Hegel, uma solução m enos custosa que consistiria apenas em não mais pressupor a im utabilidade dessas próprias determ ina­ções, afinal de contas, finitas?

A v e r d a d e ir a so lu ç ã o [d a s A n t in o m ia s ] s ó p o d e se r a s e g u in te : d u a s d e ­

te r m in a ç õ e s , e n q u a n to s ã o o p o s t a s e n e c e s s á r ia s a u m ú n ic o e m e s m o c o n c e i­

to , n ã o d e v e m v a le r e m s u a u n ila te r a lid a d e , c a d a q u a l p o r s i , m a s tê m s u a

v e rd a d e s o m e n te e m se u s e r - su p r im id o , n a u n id a d e d e s e u c o n c e it o .105

Portanto não é a oposição real nela mesma que constitui obstáculo à identificação absoluta dos opostos, mas a interpretação falsificadora pela qual o pensam ento de Entendim ento era responsável; não a cisão entre as

104 Cf. Logik [Lógica], IV, p .104-5.105 Ibidem , IV, p.228.

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categorias, mas o hábito im emorial de tom á-la como adquirida, das absolute

Fixieren der Entzweiung durch den Verstand. Por isso, distinguir-se-á entre a oposição real e o m au uso que dela foi feito. A própria estrutura da oposi­ção real não dá, de m aneira alguma, o direito de imaginá-la sob a espécie de um conflito entre dois termos im utáveis que partilhariam entre si a m es­ma realidade. Basta recusar esse axiom a clandestino da filosofia de Fichte para que ela deixe de ser um idealism o infeliz.

Exigia-se, com efeito, que o A bsoluto fosse construído, “posto” . E cor­retamente: “O conhecim ento especulativo, a dedução a partir do Conceito, a livre evolução independente do Conceito, só Fichte os introduziu” .106 Mas constatava-se que, em virtude desse m esm o fato, o A bsoluto já não m ere­cia seu nome:

O A b s o lu to d e v e se r c o n s tr u íd o p a r a a c o n sc iê n c ia , ta l é a ta r e fa d a f i lo ­

so f ia ; p o r é m , c o m o ta n to a p r o d u ç ã o q u a n to o s p r o d u t o s d a R e fle x ã o s ã o a p e ­

n a s l im ita ç õ e s , h á n is s o u m a c o n tra d iç ã o . O A b s o lu to d e v e se r re fle t id o , p o s ­

to ; a p a r t ir d a í, p o r é m , e le n ã o é p o s t o , m a s su p r im id o , p o is , e n q u a n to p o s to ,

e le é l im ita d o .107

Tal é igualm ente o leitmotiv da Antitética kantiana: a Razão cosm ológica aspira ao Incondicionado; mas como chegaria a ele, visto que só pode co­nhecer determ inando e condicionando? Salvo com etendo violência ao sen­tido das palavras, com o reconstituir o A bsoluto com algo determ inado? Com o ter êxito em pôr o Absoluto, se a posição é inseparável de um a opo­sição, a determ inação de outra determ inação que a condiciona? O projeto do filósofo tropeça de saída na ontologia em que ele opera. Para ser conse­qüente, é preciso, portanto, ou abandonar esse projeto - e perm anecer kantiano - , ou contestar a validade dessa ontologia, não mais se contentar em reduzir esta últim a “ ao título mais m odesto” de uma Analítica trans­cendental, mas tratá-la com o uma linguagem que é possível dispensar. E, para tanto, ilum inar a axiom ática que o idealism o continuava a aceitar im ­plicitam ente: a lógica da Finitude. Se os opostos podem só se excluir (contra­ditórios) ou se neutralizar excluindo seus efeitos (oposição real), é im pos­sível reencontrar o Incondicionado partindo da possibilidade da consciência

106 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XIX, p .363.10 7 Differenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schellin g], I, p .50; trad.

fr., p .90.

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de si, visto que esta perm anece necessariam ente com o um dos opostos. O A bsoluto só poderia ser então construído pela elim inação de um dos ter­mos; porém, já que a estrutura da oposição é o m otor da gênese, com o e com qual direito abandoná-la no m eio do caminho? Para que a gênese não perm aneça programática, é preciso, portanto, m ostrar que há um a jurisdi­ção tal, que o próprio jogo da oposição pode dar lugar a uma síntese. Não um a oposição que possa ser desatada ou reabsorvida - o que ainda seria perm anecer em um tipo de solução bastante próxim a da im posta pela A ntitética kantiana. O idealism o transcendental, segundo Kant, era o úni­co m eio de transformar em sim ples m al-entendido - em “oposição dialética”- o fato de que a Tese e a A ntítese pareciam ser ambas, m uito corretam en­te, sustentáveis - a única saída que perm itisse evitar esse escândalo da Ra­zão. A idealização hegeliana da oposição responde a uma estratégia inteira­m ente outra. Ela parte da questão: há verdadeiramente escândalo no fato de que opostos parecem não se excluir? E, no lugar de se esforçar para m os­trar, a todo preço, que essa oposição é ilusória, não vale m ais a pena reexam inar com o funciona a oposição? E necessário que os opostos sejam

absolutamente separados e invariáveis a priori? Essa confiança depositada na estabilidade das determ inações finitas não seria a verdadeira Aparência?

G uéroult, no com entário que fez da análise hegeliana da Antitética, chega à conclusão de que Hegel abusa inteiram ente ao acreditar ver nas Antinom ias o m om ento em que o kantism o estava mais perto de se infletir em seu sistema. Tese insustentável, assegura ele, pois,

e m n e n h u m o u tr o lu g a r m a is d o q u e a q u i, a R a z ã o k a n t ia n a c a r re g o u m a is

v is iv e lm e n te o e s t ig m a d o E n te n d im e n to , e s te v e tã o e s t r e it a m e n te c o m a n d a ­

d a p e la s n e c e s s id a d e s d e le , su b o r d in a d a a o q u e H e g e l c h a m a d e s u a id e n t id a ­

d e v a z ia .108

Acerca disso Hegel, ao que nos parece, estaria de bom grado em con­cordância com seu crítico, sem no entanto aceitar, é claro, a queixa de lei­tura parcial. Para ele, as Antinom ias são m enos a prefiguração de sua filo­sofia do que um dos enunciados m enos inexatos do problem a acerca do qual ele efetuará a escolha discursiva que dá especificidade à sua filosofia. Por isso, a diferença que separa a A ntitética kantiana do hegelianism o é sim ultaneam ente im perceptível e imensa: im perceptível, a dialética já ope-

108 G uéroult, Revue de Métaphysique et de Morale, núm ero especial sobre H egel, p.160.

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ra na A ntitética, visto que as teses opostas parecem não ser exclusivas; imensa, pois a Crítica só evoca esse paradoxo para logo em seguida propor um a solução que só é adm issível nos lim ites da concepção tradicional da oposição. D isso, porém, Kant se proibia tom ar consciência. Ele, que pre­tendia m ostrar por absurdo a vaidade dos “principios que cada m etafísica dogm ática deve necessariam ente reconhecer” , 109 respeitava o m ais “ dog­m ático” desses princípios: a incom patibilidade dos contraditórios. Por cer­to opunha-se às teses dessa metafísica, mas não chegava a responsabilizar o campo discursivo que as tornava possível. Ele não com preendia que, ao bloquear os termos opostos, fazendo de seu “ser-posto” um ser estável, de seu Scheinen um Sein, tornava arbitrariamente im possível sua unificação, a qual, em seguida, era dem asiado fácil proclamar com o irrealizável. Para re­

solver verdadeiram ente a A ntinom ia em vez de escamoteá-la, bastava reco­nhecer que as determ inações de que se parte são falsas naturezas simples, já ideais e cuja idealidade se dem onstra pelo fato de que cada uma delas se torna seu Outro. N esse m ovim ento em que cada determ inação transgride as fronteiras que lhe foram ingenuam ente assinaladas, a negatividade faz que se dissolvam os prestígios do Verstand. Para chegar aí, seria preciso ter denunciado a velha equivalência entre “conceber” (begreifen) e “determ i­nar” ou “ lim itar” (bestimmen, beschränken) - seria preciso ter distinguido, da Reflexão tão-só separadora, uma “Reflexão em si m esm a” . Som ente àquela é que se devia a falsa interpretação da oposição real e a ignorância em que perm anecia o Entendim ento de ser “ Entendim ento racional” . E ela, com efeito, que subentendia com o óbvio que a negação só pode ser um a des­truição pura e sim ples - supressão do conteúdo, portanto, e não transfigu­ração do conteúdo-lim ite.

A o contrário, se apercebemos que uma opção ingênua fora tom ada acer­ca da natureza do negativo, pensarem os m enos em criticar as diferentes teses filosóficas e m ais em m ostrar qual preconceito comum tornava possí­vel sua inevitável incom pletude. É -a. escolha do m esm o discurso parcial que faz que o Finito seja subm erso na Substância espinosana, sem que nunca se o tenha visto surgir, e proíbe~õ~Eu finito d a H e fle x ã o d e igualar-se ao

A bsoluto, com o ele o pretende. É a adesão às m esm as regras de sentido que torna a construção do A bsoluto tão pouco realizável, aquITauão in­com preensível, ali, era o seu desdobram ento. Teim osia na egoidade ou per­dição em Deus - ou então a Reflexão irrem ediavelm ente exterior ao A bso-

109 Kant, Prolég. [Prolegóm enos a toda m etafísica futura], IV, p .379.

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luto, ou então o A bsoluto sem a Reflexão, esta é a escolha extrem a propos­ta pela filosofia da idade da Finitude, considerada em toda sua amplitude. Esse diagnóstico feito sobre séculos de história do pensam ento pôde, sem dúvida, parecer insolente. E o seria decerto, se apenas se tratasse de uma colocação escolar, um esquem a próprio para situar com odam ente os auto­res e as obras. Mas se trata de outra coisa: de m ostrar que a idade do dis­curso ao longo do qual essa escolha tinha um sentido é agora um a idade revolta. D izer isso é repetir, de outra forma, que a negatividade não é de m aneira nenhum a um corretivo retórico que perm itiria conciliar e integrar todos os filosofem as passados, mas que seu advento marca que se relegou à m esm a pré-história tantas doutrinas que passam injustam ente a nossos olhos com o obsoletas, porque nos inscrevem os, a elas e a nós, na m esm a idade do discurso. Parece-nos então que, se os autores nada mais têm a nos dizer, é que não partilham os m ais suas preocupações ou suas crenças, que seus centros de interesse não são mais os nossos - em suma, que o curso da “história” os deixa a perder de vista. Ora, o julgam ento seria bem dife­rente e não m ais se pensará que os m etafísicos falavam coisas hoje fora de moda, se conseguim os conceber que eles se exprimiam diferentem ente do que nós poderíam os nos exprim ir e seu caráter aparentem ente obsoleto se deve talvez, unicam ente, à restrição de seu teclado de expressão. A ssim , a negação desem penha talvez outra função que a de determ inação-lim itante para a qual fora votada... A s teses m etafísicas recobram portanto interes­se, d esd e que se pare de tom ar de m odo im p líc ito com o sagrad o einfrangçyrprlnrftl nn qn-il nlag prarr| e n u n c ia d a s .) É POr ISSO QUe asj

noções de discurso e de campo discursivo, por mais difícil que seja elaborá-las e m esm o defini-las, são indispensáveis para pensar o hegelianism o como m utação radical no sentido da palavra “filosofia” e não com o uma filosofia

adviria no curso da mesma história das filosofias que ela pretende'ais noções indicam, inicialm ente, que não nos atemos m ais às

teses para criticá-las, retificá-las ou completá-las, mas tão-só para, por in­term édio delas, tornar patentes as regras de um jogo que todos os sistemas jogavam à sua revelia. Diante disso, a filosofia que põe a negatividade em elaboração é a prim eira filosofia a funcionar explicitam ente como discurso e põe suas cartas na mesa.

Trata-se, portanto, de outra regulação da linguagem, e não de outro conjunto doutrinal... Esse ponto, entretanto, ainda não é inteiram ente ób­vio. Por que a negatividade ou Reflexão em si m esm a assum e o papel que cabia à “ Razão”, faculdade dos princípios? Por que é preciso que a dissolu­ção polêm ica das categorias finitas tradicionais se confunda com o movi-

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m ento do A bsoluto? Q uando Hegel escreve na Differenz [Diferença]: “A Razão captou sua própria fundação na ausência de fundam ento das lim ita­ções e das particularidades”, essa fórm ula perm anece enigmática. Sozinha, ela ainda não perm ite com preender por m eio de que deslizam ento a Refle­xão vai ser transformada, de potência de separação e de com partim entali- zação, em instância de reconciliação, e por que esta últim a nada m ais terá a ver com uma reconciliação de estilo m etafísico. De resto, na evolução do próprio Hegel, ainda serão necessários alguns anos para que a crítica de onde surgiu a exigência da negatividade tom e a envergadura de um a Lógi­ca do Absoluto. Com que direito Hegel identificará A bsoluto e dissolução da Finitude? E, para perm itir-se isso, que sentido inédito deverá dar à pala­vra “ Lógica” ?

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V I I

“A MAIS ELEVADA DIALÉTICA”

O Saber só advém quando tom o consciência do caráter deform ador de m eu pensam ento “habitual” (gewöhnliche). Um tanto como, para Bergson, a verdadeira especulação com eça quando, enfim, foi posta em perspectiva a inteligência sobre a vida de que ela é o produto, vida que, derrisoriam ente, ela pretendia sobrepujar e conhecer. A qui e ali, aliás, essa viravolta cria a m esm a dificuldade de princípio: “ decerto, é preciso adotar a linguagem do entendim ento, visto que som ente o entendim ento tem um a linguagem ” .1 Mas com o evitar que essa linguagem im própria nos induza a erro? Em vis­ta das contradições que Zenão sublinhava no m ovim ento, o m etafísico, diz Bergson, sem pre acreditou que devesse se evadir do tem po e do m ovim en­to, ao passo que tais contradições provinham, precisam ente, de que deles saíra e nunca visara à m obilidade em sua pureza. E da m esm a m aneira apres­sada que o Entendim ento, segundo Hegel, proclam a “inconcebível” o mis-

1 Bergson, Evolution Créatrice, p .707.

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tério da Trindade, ao passo que ele próprio introduz a “ inconcebibilidade” , pelo uso que faz dos conceitos inadequados da Finitude.

Eis uma outra forma do pensamento de Entendimento. Se dizemos que Deus, em sua eterna universalidade, não é nada mais que o movimento de se diferenciar, se determinar, pôr um Outro em relação a si e suprimir também essa diferença permanecendo ao mesmo tempo em sua casa, e se dizemos que o Espírito só advém por meio desse ser-produzido, então o Entendimento en­tra em cena e traz as suas categorias da Finitude. Ele conta: 1, 2, 3..., introdu­zindo a forma infeliz do número, ao passo que aqui não se trata do número. O numerar é o que há de mais desprovido de pensamento; ao introduzir essa forma, introduz-se a inconcebibilidade. Certamente se pode aplicar à razão todas as relações de Entendimento; mas a Razão as indefere; é o caso, aqui. Isso, porém, é duro para o Entendimento, pois, pelo fato de ter usado essas relações, pensa ter adquirido um direito. Ora, é fazer mau uso dessas relações dizer como segue: “3 é 1”. E fácil então mostrar, nessas Idéias, contradições, diferenças que vão até o oposto.2

A o atribuir-se essa jurisdição ilegítim a, o Entendim ento recusa, ao m esm o tem po, interrogar-se sobre a origem e sobre o valor das determ ina­

ções que emprega. Ensina-nos, ao contrário, a tom á-las com o conteúdos dados e im ediatam ente presentes no Ser (“qualidade” , “lim ite” , “ quantida­de” ...) , ou por categorias dadas (“unidade” , “ identidade” , “oposição” , “ di­ferença” ...) . A partir daí, o projeto de uma investigação da logicidade se tornou im pensável. Mas, se assim é, por m eio de qual abertura forçada sair do reino do Entendim ento? E com o exorcizar a Finitude, se ela assom bra tão profundam ente a nossa linguagem?

1

Já o sabemos: não haverá, propriamente dito, acesso ao Saber, mas so­m ente a confissão que o Saber finito fará acerca de sua fragilidade. Ainda ignoram os, porém, com o essa autocrítica fará as vezes do próprio Saber, com o a explicitação das significações defeituosas assum irá o lugar de uma conversão. Com o tal dissolução paciente poderá nos dispensar de toda eva­são espetacular, fora da Caverna? Q uestão posta ingenuam ente, é verdade,

2 Ph. Religion. [F ilosofia da religião], XVI, p .237.

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A P A C I Ê N C I A D O C O N C E I T O 3 2 3

visto que form ulada ainda do ponto de vista da consciência e visto que se espera um a resposta capaz de dar conta de um a transform ação da consciên­

cia: vam os nos contentar, portanto, com uma interpretação fenom enológi- ca e parcial da Finitude e restringir esta últim a a um a figura do “Espírito consciente” . Sem dúvida, Hegel designa os conceitos que dizem respeito ao Ser e à Essência com o "conceitos som ente determ inados, conceitos em si ou - o que é a m esm a coisa - para nós” .3 Mas que se evite tom ar o sin to­m a pelo mal: o “para n ós”, que marca a predisposição desses conteúdos a um a doação representativa, não basta para determ inar o que eles têm de específico. Ele não é a últim a palavra. E uma necessidade sem ântica ou lógica que, em últim a análise, deverá dar conta do fato de que as categorias puderam ser inicialm ente pensadas com o originalm ente dadas a uma cons­

ciência. Por isso, trata-se de determinar, no coração dessas categorias, o m ovim ento “lógico” do qual o “ ser-consciente” dessas categorias nunca é mais que a transposição fenom enológica.

Qual é, em prim eiro lugar, a especificidade lógica das determ inações do Ser (Qualidade, Q uantidade...)?

A s c a te g o r ia s d o S e r e r a m e s se n c ia lm e n te , c o m o c o n c e ito s , e s s a s id e n t i­

d a d e s d a s d e te rm in a ç õ e s c o n s ig o m e s m a s e m se u lim ite o u e m se u se r -o u tro ;

m a s ta l id e n t id a d e só e r a o C o n c e ito e m si; ela a in d a não esta v a m a n ife sta . P or

i s s o , a d e te rm in a ç ã o q u a l i ta t iv a c o m o ta l a b is m a v a - se e m se u O u tro e t in h a

c o m o v e r d a d e u m a d e te rm in a ç ã o d ife re n te d e la .4

Portanto, as categorias passam, decerto, uma na outra, mas essa m es­ma passagem (Übergang) atesta que se perm anece num m odo de progres­são defeituoso - o que caracteriza justam ente a esfera do Ser: “ de uma de­

3 Enciclopédia das ciências filosóficas , § 162, VIII, p .357; trad. br., I, p .295.4 Logik [Lógica], V, p .38. “Q uan do [na esfera do Ser] o A lg o se torna O u tro , com isso o

A lg o desvanece. N ão é assim na essência; aqui não tem os nenh um ou tro de verdade, m as só u m a diversidade, um a relação do un o ao seu O u tro . O ‘passar-para’ da essência, portanto, ao m esm o tem po não é um ‘passar-para’ ... Se, por exem plo, d izem os: Ser e N ada, então o Ser é para si, e igualm en te é o N ada para si. C o m o Positivo e o N egativo, as coisas se passam de m odo totalm en te diverso. Eles têm , na verdade, a determ inação do Ser e do N ada. M as o Positivo não tem para si n enhum sentido, e sim é pura e s im ­p lesm en te relativo ao N egativo. O m esm o ocorre com o N egativo. N a esfera do Ser, a relatividade é só em si; ao contrário, na essência a relatividade é posta. E esta, pois, em geral, a diferença das form as do Ser e da Essência. N o Ser, tu do é im ediato; ao contrário, na E ssência, tudo é re la tivo ” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 1 1 1 , Z ., VIII, p .260; trad. br., I, p .2 19 ). Cf. Preuves. 9- lição, XVI, p .422.

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terminação a uma outra determ inação” .5 Sem dúvida, nessa progressão por rupturas, as determ inações finitas denunciam a sua instabilidade, mas so­m ente sob a forma da substituição de um conteúdo por um conteúdo dife­rente. A necessidade é camuflada. E por isso é enganoso tom ar as prim ei­ras dialéticas da Lógica do Ser como exem plos d a dialética, sem estipular de qual. Assim , a categoria do Devir está inserida num m ovim ento categorial ainda incoativo. Ela é engendrada pela convergência das significações “Ser” e “N ada” , um a vez que se reconheceu que ambas são, sob o m esm o título, “ aquilo que é desprovido de determ inação” e “ a diferença que as separa não é senão um a diferença pensada” .6 Mas tal confluência de dois concei­tos vazios não autoriza, de m aneira alguma, a falar do D evir com o “unida­de do Ser e do N ada” : o “D evir” exprime sim plesm ente sua não-diferencia- ção, o que é coisa inteiram ente distinta.

O Devir contém em si o Ser e o Nada, de maneira que essas duas [cate­gorias] se invertem, pura e simplesmente, uma na outra e se suprimem, uma à outra.7

Com o ele é apenas o em blem a do desaparecim ento de dois conceitos, “ ele próprio é, portanto, um evanescente [ein Verschwindendes]” . N o entan­to, com o o seu resultado não é nada e o m ovim ento não pode anular-se sim plesm ente, é preciso que o “D evir” se invista em um outro conceito, o Dasein, que é “o D evir posto na forma de um de seus m om entos, o Ser” . A unidade negativa, para atestar que é tam bém positiva, deve passar para um conteúdo novo: deve reunir-se noutro lugar com a sua verdade.

E essa necessidade de transferência que é abolida na esfera da Essên­cia. N esse caso, “já não há mais passagem ” , nenhum A que se destruiria para se tornar B; “ aqui, já não tem os mais um verdadeiro O utro” .8 O s ter­m os têm com o única consistência a relação que os une um ao outro, e se o “O utro” subsiste, é unicam ente à m edida que ele perm ite ao prim eiro ter­m o constituir-se ao refletir-se nele. Assim , na Oposição, isto é, na relação de Diferença própria à esfera da Essência, “ cada [termo] só tem a sua de­terminação própria em sua relação com o Outro, ele som ente é refletido em si enquanto refletido no O utro” .9 O Outro, portanto, perdeu o aspecto

5 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 80, Z., VIII, p .186; trad, br., I, p.160.6 Ibidem , § 87, Z., VIII, p .208; trad, br., I, p .179.7 Ibidem, § 89, Z., VIII, p .217; trad, br., I, p .186.8 Ibidem, VIII, p .260.9 Ibidem , § 119, Z., VIII, p .276; trad, br., I, p .233.

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de um exterior indiferente; tornou-se a condição do conteúdo que lhe fazia frente, conquanto ainda se possa designar como “conteúdo” aquilo que, precisam ente, só tem sentido na relação. Daí a dificuldade de falar da Es­sência: sem pre se corre o risco de sugerir que ela possui um Si fixo e inde­pendente.

N ã o se p o d e d iz e r q u e a E s s ê n c ia r e to r n a a s i m e s m a , q u e a E s s ê n c ia

a p a r e c e e m si, p o r q u e a E s s ê n c ia n ã o e s t á a n te s o u e m se u m o v im e n to e p o r- '

q u e e s te n ã o te m n e n h u m a b a s e s o b r e a q u a l se d e s d o b r a r ia .10

O Aparecer é, portanto, a categoria chave da Essência: o “O utro” , em vez de significar o desaparecim ento de um conteúdo, torna-se ali o índice da presença desse conteúdo por meio de sua não-presença imediata. N ão m ais o signo de sua nulidade com o ente e sua pura e sim ples retirada do campo de presença, m as a explicitação desse fato inédito que é integralm ente sobre o

modo do ser-negado. Entretanto, é preciso que a exterioridade dos conteú­dos, marca da Finitude, seja ainda reabsorvida: a dialética da Essência per­m anece sobrecarregada de ingenuidade. E o que precisam os compreender.

Tom em os com o exem plo a relação do Interior e do Exterior. N essa dialética, um a das m ais instrutivas da Essência, a diferença entre dois con­teúdos que, à prim eira vista, pareciam com plem entares torna-se explicita­m ente “ uma diferença vazia e transparente” . O Interior é, portanto, o Exte­rior; não mais, porém, com o “algo que veio a ser ou com o resultado de um a passagem (Gewordenes oder Übergegangenes)” .n Se o Entendim ento se obstina em apresentar a situação assim e continua a fazer do Interior e do Exterior os term os de um a alternativa (ou então... ou en tão...), far-se-á que reconheça que tal distinção é insustentável e cada conteúdo indica que é, desde o princípio, o seu outro. Com efeito, aos olhos do Entendim ento, o Interior é a “ Essência” , o oculto - e o Exterior, o ser im ediato. Mas a Essência, pensada como redobrada sobre si mesma, que mais é, “justamente, se não um ser im ediato” , visto que não m ediatizado?12 Em com pensação, a coisa im ediatam ente oferecida na exterioridade é igualmente um abstrato. A m bos os conceitos foram, portanto, artificialm ente desm em brados e ago­ra se reencontram na m esm a abstração. Por toda a parte onde há interiori­dade não desenvolvida, tam bém há total exterioridade. Assim , a criança só

10 Logik [Lógica], IV, p .257.11 Ibidem, IV, p.656.12 Ibidem, IV, p.657.

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possui a razão sob o título de “vocação” ou de “disposição” ; isso quer dizer

que, nela, a razão só pode estar presente na forma da autoridade dos pais. E não devem os com preender que esta últim a seja o com plem ento ou o res­gate daquela - o que ainda seria falar em termos de “ou então... ou então” . Não, isto é aquilo: não há dois estados com plem entares que evocariam um ao outro, há duas faces da m esm a abstração. Sem m uito custo, porém, não se dissipam as ilusões da Finitude. Certam ente, pode-se rem eter o Enten­dim ento de um conteúdo ao outro e lhe m ostrar que A e B dizem a mesma

coisa: o pensam ento de Entendim ento ainda traduzirá num a passagem tal alternância de dois pontos de vista. A o bloquear cada lado em sua diferen­ça, ele se recusará a ver que cada um só faz representar, à sua maneira, a totalidade de ambos.

Cada uma dessas determinações não somente pressupõe a outra e passa para ela como para a sua verdade, mas ela, enquanto é essa verdade da outra, permanece posta como determinidade e remete à totalidade de ambas.13

Doravante, ambos os termos, ao se mediar um ao outro (Beziehung beider

auf einander), recusam a extérioridade no fundo da qual ainda se podia com ­preender a sua reciprocidade - com o no exem plo da educação da criança. A té aí, descrevera-se o m ovim ento da E ssência com o um a situação de bilateralidade, com o risco de precisar o sentido não substancial que seria preciso conferir a um e a outro; agora, está-se liberado dessa abstração. D e­certo, na Essência, o ser era suprim ido com o diferente do outro; já não era m ais que a diferença consigo, visto que integralm ente constituído pela re­lação com o O utro. Mas uma distância perm aneceria traçada entre a saída- de-si e o retorno-a-si, entre a diferença consigo e o Si que só tem por con­teúdo essa diferença. E essa distância que, agora, se anula. E, entretanto,

... [a determinação reflexiva] se manifesta em seu Outro, mas ela apenas apa­rece nele e o Aparecer de cada uma no outro ou sua determinação recíproca, dada a sua independência, tem a forma de um Fazer [Tun] exterior.14

Portanto, qual é, ao certo, a natureza dessa exterioridade tenaz que a diferença consigo continua a supor? Por que a dialética ainda não foi devol­vida à sua pureza? A distância entre a diferença e o Si, com o dissem os, está

13 Ibidem , IV, p.657-814 Ibidem , V, p .39.

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abolida. M as ela só está abolida em si - ou em palavras, se quiserm os -, pois ainda é sob o aspecto de um vaivém entre os dois lados que se descre­ve a falta de fundam ento (Bodenlosigkeit) da bilateralidade que se tornou inútil. Há defasagem entre a apresentação e o que nela se diz. M esm o na últim a parte da Lógica da Essência, a “ Realidade-efetiva” (die Wirklichkeit),

quando a Essência se tornou “o que consiste justam ente em ser aquilo que se m anifesta” , quando esse “m anifestante” representa explicitam ente a to ­talidade dos dois m om entos outrora ingenuam ente cindidos, nem por isso a dualidade desses m om entos está reabsorvida. Se cada um dos term os se desvela com o a si m esm o e a seu outro, no entanto cada um preserva, em relação a esse “outro” nominal, o m odo de ser da alteridade.

A in d a fa lta à s u a m e d ia ç ã o a q u e la b a s e id ê n t ic a q u e c o n te r ia a a m b o s ;

p o r i s s o , s u a re la ç ã o é a in v e rsã o im e d ia ta d e u m n o o u tr o . . . 15

A m bos os termos exprim em a m esm a totalidade, mas o exprim em obli­quam ente, em virtude do fato de que cada um é som ente o seu reflexo no outro. A totalidade que com preende a esses dois m om entos já está presen­te, sem dúvida, mas ela só é evocada de m aneira alusiva: ela perm anece em

si, não posta. E por isso que Hegel, no início da Logiqae de 1’Essence [Lógica da essência], opõe o m ovim ento do Conceito tanto ao do Ser quanto ao da Essência.16 A qui e ali, com efeito, a exterioridade das determ inações per­m anece indispensável à sua descrição; aqui e ali, a totalidade perm anece im plícita. Essa im possível renúncia à linguagem da alteridade percorre toda a Phénoménologie [Fenom enologia]: as figuras da consciência a experim en­tam com o um destino. Nada de espantoso nisso, se a “consciência” não é senão um a form a do Conceito afetada por finitude, a ponto tal que, quan­do chega a “ conceber sobrepujando-os [übergreifen]” , o subjetivo e o objeti­vo, “deixa de ser consciência de si no sentido próprio ou estrito do termo, visto que à consciência de si com o tal pertence justam ente a fixação na particularidade do Si” .17 Pensada com o votada ao contra-senso, alienante porque alterante, ela só pode compreender, com efeito, a deiscência de um a totalidade no m odo de um a explicitação ou de um confronto entre os m o ­m entos disjuntos dessa totalidade. A s fixações e separações arbitrárias que assim ela efetua reproduzem , sem dúvida, o m ovim ento do Conceito: “ Não

15 Ibidem , IV, p.658.16 Ibidem , V, p .38-9.17 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 437, Z., X, p .292; trad. br., I, p .208.

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se trata aí, com efeito, de um a sabedoria própria ao Entendim ento: a pró­pria Idéia é a dialética, que, eternam ente, disjunge e dissocia” .18 Essa re­produção, porém, é sobretudo deformação. Enquanto o Conceito só deixa surgir os term os diferenciados “para recom preender [wieder verständigt] a falsa aparência da independência de suas produções” ,19 a consciência de si, por princípio, é incapaz dessa “recom preensão” que a obrigaria a pôr-se a si m esm a com o determ inação finita e evanescente - a renunciar, a partir de então, ao em preendim ento de totalização que por sua conta ela executa para se interpretar com o sim ples m om ento da totalidade. Isso equivale a dizer: renunciar à intenção que faz que seja o que ela é. Pois para ela se trata não de “recom preender” , mas de conquistar e apropriar-se de seu Ou­tro. V isto que faz frente a seu O utro sem nunca buscar reinterpretar a alteridade dele - tal com o a Religião positiva que “parte de algo de oposto, de algo que nós não som os e devem os ser”20 - , ela não deixa de se situar em relação a um fora e o seu com portam ento só pode ser violência e dom i­nação (Herrschaft). Para ela, com o se suprim e um lim ite de outra m aneira senão ao transgredi-lo? Com o se transform aria a sua significação, “perm a­necendo em casa” (bei sich bleiben) e sem aum entar a sua propriedade? A consciência, bem com o a filosofia da consciência, nunca reconsidera a lin­guagem da alteridade: é por m eio da linguagem que elas se orientam , e suas estratégias só fazem sentido em relação a ela. Por isso, as questões que elas se põem sempre as com prom etem em em preendim entos violentos:

até onde podem os ganhar do Outro? A té onde podem os conhecer? A essa violência que a fascinação exercida pelo O utro engendra, H egel opõe a tran­qüila soberania de um discurso que “recom preendeu” toda finidade como um m om ento posto nele e, com isso, não desconcertante.

O Universal é ele mesmo e se estende sobre o Outro; mas não como se exercesse a sua potência [aber nicht als ein Gewaltsames], antes, porém, nele permanecendo tranqüilo e em casa [ruhig und bei sich selbst] ,21

18 Ibidem , § 214, VIII, p .427 ; trad. br., I, p .3 5 1.19 Ibidem .20 Nöhl, p .385.21 A Phénoménologie [Fenom enologia] fala da “ aparente inatividade” (scheinbare Untätigkeit)

do Conceito. Pensa-se na èvèpyEux àxivrioíaç da Ethique à Nicomaque [É tica a N icôm aco] (VII, 15), e a associação não é arbitrária. H egel nos convida a isso : “A Substância abso lu ­ta, o Verdadeiro, o ente em si e para si, A ristóteles a determ ina com m ais precisão com o o não movido, o imóvel, o eterno, m as que é, ao m esm o tem po, motor, pura atividade, actus purus. Tal é o m om ento universal. Se pareceu novo, n esse s ú ltim os tem pos, definir a

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Sentir-se “ em casa” , em térra natal - existir sob o m odo da Heitmatlichkeit,

é esse o princípio da excelência da civilização grega (pré-subjetiva) - e é a antecipação de um a inteligibilidade que excluiria até a possibilidade de urna expatriação. A o longo da Phénoménologie [Fenom enología], esse bei sich ain­da não tem sentido. N os dois prim eiros reinos d a Logique [Lógica], seu esta­tuto está pendente: nunca se assiste senão à explosão, em inentem ente des­concertante, de determ inações de que não se pressente o que as vai reunir,

visto que não se entrevê, ou se entrevê dificilm ente, o que com anda a fragi­lidade das figuras de alteridade nas quais elas ingressam . N enhum a arché

nos fornece garantia, em bora não se trate de um a dispersão sem term o e sem medida: a dialética perm anece um a m ecânica m isteriosa. E esta frase que o § 82 da Enciclopédia designa com o das dialektische Moment propriam en­te dito, a saber, “ a auto-supressão de tais determ inações finitas e sua passa­gem a seus opostos” .22 Flegel reserva então a palavra “dialética” para a pura e sim ples denúncia das determ inações finitas. Mas parece que volta atrás sobre essa decisão na Philosophie du droit [Filosofia do direito]: “ a dialética” , desta vez, engloba o m om ento que a Enciclopédia denom inava “ especulativo ou racional-positivo” .

Chamo dialética ao princípio motor do Conceito, enquanto não dissolvesomente as particularizações do Universal, mas também enquanto as produz.23

Essa nova formulação reinscreve, portanto, explicitamente, o jogo das determ inações que se eliminavam ou se com pletavam reciprocam ente no m ovimento de que eram, inadvertidamente, os episódios - ou, ainda, no m o­vim ento que as produzia. Entendam os: no m ovim ento que secretam ente os preservava de ser uma simples disseminação. Para além das figuras som en­te polêmicas da Passagem (Ser) e do Aparecer (Essência), o Desenvolvimento (.Entwicklung) do “ C o n ce ito ” anuncia claram ente, enfim , a verdade da dialética. Mas, em um discurso que criticou até as noções de “com eço” e de “fundam ento” e as situou entre as mais perigosas evidências que o Entendi­m ento se concede, este derradeiro “ultrapassam ento” , este surgim ento de uma “verdade” de últim a instância cria, é verdade, um problema. Se a polêm i­ca do Finito abre, afinal de contas, para um além tranqüilizador que recolhe o

E ssên cia abso lu ta com o atividade pura, isso se deve à ignorância do conceito aristoté lico” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .326 ).

22 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 81, VIII, p .189 ; trad. br., I, p .164-5.23 Ph. Rechts [F ilosofia do direito], § 31, VII, p .81.

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seu resultado, para um princípio que havia regulado as figuras, não há um retorno ao cenário platônico? A passagem pelas contradições já não parece, de novo, apenas um mau m om ento por que passar, e a dialética, novamente, torna-se um a viagem pedagógica um tanto tumultuada.

2

Q ue é então o “C onceito” , essa verdade que parece ter se tornado n o ­vam ente transcendente às peripécias que nos guiavam até ela? A própria palavra “Conceito” nos orienta, à primeira vista, na direção do pensam ento subjetivo e consciente, portanto finito - e trata-se inicialm ente de com ­preender que m utação de sentido perm itirá designar ao contrário, por essa palavra, a reabsorção das oposições que perm aneciam indeléveis em rela­ção à Finitude. A função do Conceito, no novo sentido, não se ordenará certam ente pela operação conceitualizante do Entendim ento. Prim eiro con- tra-senso a evitar, portanto: não entender por “Conceito” um conteúdo mais vasto ou mais rico, mas dotado.de um m esm o funcionam ento que as deter­m inações subjetivas chamadas “ conceitos” . Quando falo de um “ conceito” nesse sentido, confesso que, de fato, renuncio a com preender o que a pala­vra quer dizer. A ssim , preferiram tom ar conteúdos com o “ unidade", “reali­dade” etc. por indefiníveis e contentaram -se em ter deles “um sim ples con­ceito claro, isto é, nenhum conceito” .24 A ssim tam bém os “conceitos” de “ D eus”, “m undo” são “algo de sim ples” , abreviações alusivas. Mas não se poderia perm anecer aí:

o s o b je to s d a c o n sc iê n c ia n ã o d e v e m p e r m a n e c e r t a i s d e te r m in a ç õ e s s im p le s

o u t a i s d e te r m in a ç õ e s d e p e n s a m e n to a b s t r a ta s ; d e v e m s e r c o n c e b id o s , i s s o

q u e r d iz e r q u e s u a s im p lic id a d e d e v e s e r d e te rm in a d a c o m s u a d ife re n ç a in ­

te r n a [ ih re E in fa c h h e it s o ll “ m it ” ihrem ‘ in n e r n ’ U n te rsch ied b e stim m t s e in ].

A palavra “ com ” poderia sugerir um a justaposição ou um a adjunção, com o se um conceito definido segundo o gênero e a espécie fosse com pos­to de duas partes. Não é nada disso, precisam ente. O Universal, ao m esm o tem po que se determina,

24 Logik [Lógica], V, p .54.

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n ã o p e rd e o se u c a rá te r d e U n iv e rsa l; e le se m a n té m e m s u a d e te rm in id a d e , n ã o

so m e n te d e m a n e ira a p e rm a n e c e r l ig a d o a e s t a se n d o - lh e in d ife re n te - e n tão

se r ia so m e n te c o m p o s to [zusammengesetzt] c o m e la - , m a s d e m a n e ir a q u e e le é

i s s o m e s m o q u e se a c a b a d e d e n o m in a r o P arecer ru m o a o In terior. C o m o c o n ­

ce ito d e te rm in a d o , a d e te rm in id a d e re c u rv o u -se ru m o a s i a p a r t ir d a e x te r io r i­

d a d e ; e la é o c a rá te r p ró p r io , im a n e n te , q u e é u m e s se n c ia l d e v id o a o fa to d e

q u e , re co lh id o n a u n iv e r sa lid a d e e p o r e la p e n e tra d o , d e m e s m a e x te n sã o q u e

ela , id ê n t ic o a e la , e le a p e n e tra d e v o lta ; é o c a rá te r q u e p e r te n c e a o g ê n e ro ,

c o m o d e te rm in id a d e n ã o se p a r a d a d o U n iv e r sa l .25

Um a determ inação é “ conceituai" quando, em vez de ser produzida por uma adjunção contingente (’Verbindung) ou um a com posição (Zusam-

mensetzung), ela transform a a diferença que ela significa em diferenciação. A ssim é desenvolvida a indicação dada por A ristóteles em Metafísica Z. 12: a diferença já contém o gênero e “ é claro que a últim a diferença será a ousia da coisa e a sua definição” (Z. 12, 1038 a 19). Infelizm ente, no aristotelism o, essa indicação perm anece programática, pois ali o Universal permanece, em todos os casos, separado.

Em todos os casos: tanto quando o Universal significa um abstrato contido num sujeito com o quando significa um predicado real assinalado a um sujeito. Seja, em primeiro lugar, o caso do abstrato que não é gênero: “decerto, ele é m om ento ou predicado num sujeito, mas não é em si m es­m o a unidade do Universal e do Particular” .26 É esse Universal que dá lugar à relação p redicativa esse in subjecto expressa na p rop osição aciden tal (“Sócrates é branco”) : por um lado, o predicado, aqui, não é real e só tem independência por abstração; por outro, é o indivíduo que tem precedência em relação a ele. O erro de Platão consistia em ter tom ado por gêneros esses predicados acidentais abstratos. Mas que é feito, em segundo lugar, da relação expressa na proposição essencial “Sócrates é hom em ” ? N esse caso, por um lado, o predicado é real, m esm o que “hom em ” não seja indepen­dente de “ Sócrates”; por outro, o Universal tem precedência segundo o ser, o individual só a tem “para nós” . Isso equivale a dizer, todavia, que o U ni­versal deixa de ser um a “sim ples coisa pensada” ? De m aneira alguma, e Hegel insiste nisso.

25 Ibidem , IV, p.41.26 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .405.

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O gênero é dito [legetai] de um homem, mas não está nele, ou, ainda, ele não está como singular. O homem corajoso é algo de real, universalmente ex­presso. Mas, na lógica e nos conceitos, sempre há oposição em relação a uma coisa real; o real lógico é em si uma coisa-pensada [ein Cedachtes] ... O conceito é um real lógico, em si uma coisa simplesmente pensada, um possível.27

Com preende-se m elhor ao que H egel visa nesse ponto, quando se se­gue, em Logique et théologie de Vuillem in - em quem nos baseam os a mui m inuciosa análise da predicação essencial. Em primeiro lugar, é im possível fazer que coincidam o predicado que enuncia o gênero com a substância- sujeito: a individualidade de Sócrates, que o distingue de Cálias, “não pode ser com pletam ente absorvida pela determ inação de sua form a” . Em segun­do lugar, com o o individual permanece com o primeiro, ao m enos “para nós” , daí resulta que o conceito do gênero é adquirido da m esm a m aneira que o do abstrato, qualquer que seja sua diferença de estatuto lógico. N essas duas cláusulas, é fácil reconhecer duas das exigências im prescritíveis daquilo que Hegel chama de "o pensam ento finito” : irredutibilidade do U niversal à for­m a do sujeito pré-dado e, de m aneira complementar, caráter irredutivel- m ente abstrativo desse Universal. Daí a m anutenção da clivagem entre a ■forma e aquilo que ela informa: m esm o que as abstrações já não sejam, com o em Platão, lançadas na conta das formas, a ilusão dita platônica sub­siste, e a ciência do indivíduo é reconhecida com o im possível. Tal resigna­ção é sintom ática do que foi preciso pressupor, para se edificar, com o aqui­lo que sempre se entendeu por “ saber teórico” : saber que, de saída, aceita a disjunção entre o U niversal e as diferenças postas fora dele. O “conheci­m ento” , tal com o entendido nessa base, propõe-se a transform ar “o m un­do objetivo em conceitos” , m as deve “encontrar o objeto quanto à sua sin­gularidade, quanto à sua determ inidade determinada; ele próprio ainda não é determ inante"; para form ular as suas proposições e as suas leis, deve progredir “m ediante as determ inações dadas, as diferenças do fenôm eno e conhecer para si a proposição com o unidade e relação, ou, ainda, a partir do fenôm eno para conhecer o seu fundam ento” .28 Tal é o estilo, e o único im aginável, daquilo que se entende, a partir de então, por “ conhecim ento” .

Logo, só há unificação em relação a essa reunificação laboriosa e inter­minável? N ão seria perm itido, ao subverter a m aneira sem pre adotada de

27 Ibidem , p .404 . Cf. Vuillemin, Logique et Théologie, p .H 2 s s .28 Logik [Lógica], V, p .289.

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entender as significações, elaborar entre “ logos” e “ ousia” um a relação dis­tinta da relação tradicional? Q uestão que perm anecerá vã, sem dúvida, en­quanto se tiverem em vista apenas os procedim entos e os m étodos das ciên­cias exatas ou das ciências da natureza. Vamos mais longe: quem se apegar a estas últim as com o único m odelo tom ará forçosam ente por um a extrava­gante ambição o reexam e em preendido por Hegel daquilo que, para ele, se torna som ente a pré-noção que o Entendim ento se forja espontaneam ente acerca da “necessidade lógica” . Esta m utação daquilo que é preciso entender

por “ te ó rico ” será m ais bem com p reen d ida com o o an ú n cio de um a superciência positiva. Ora, trata-se certam ente de outra coisa: de saber se nossas ciências positivas, quaisquer que sejam os seus sucessos, não tra­duzem a palavra “ logos” de um a certa maneira, que não era a única possí­vel - saber se o lugar, as funções e as condições de exercício que se assina­lam ao “ logos” desde A ristóteles são por certo o único lugar, as únicas funções e as únicas condições de exercício pensáveis. Esse projeto, julguem - no o quanto quiserem com o ingênuo e desprovido de interesse - mas, prin­cipalm ente, não com o insano. Sobretudo não, pois seria acreditar que Hegel pretendeu ser epistem ólogo e, no lugar de retom ar e “recom preender” con­ceitos gregos (episteme, logos, ousia), ele se propusesse a rivalizar com disci­plinas que, com o positivas, há m uito tem po fizeram um a opção em relação a esses conceitos de que elas nem têm m ais de ser conscientes. Por isso, tomar-se-á o cuidado de proceder a uma distinção elementar. Há o traba­lho científico ou epistem ológico, de um lado. E há, de outro, um a investi­gação sobre o discurso que com anda o sentido determ inado de um a pala­vra com o “epistem e” (ou, hoje em dia, sobre os discursos em relação aos quais varia o cam po sem ântico dessas palavras). A condição necessária para encontrar algum interesse na terceira parte da Logik [Lógica] é recolocar o “C onceito” hegeliano nesta segunda dimensão: tem a discursivo, não epis­tem ológico, isto é, precedendo deliberadam ente (ou tentando preceder) todas as escolhas discursivas, desde os Analíticos, as que tiveram de ser as­sum idas por nossas ciências e as assum idas por nossa epistem ología.

Adm itido isso, m elhor se aceitará que as ciências da natureza, segundo Hegel, sobretudo não devem fazer que se prejulgue aquilo que é a única “necessidade conceituai” possível. O Conceito, diz ele, está “oculto na natu­reza” : é que o conhecim ento da natureza é atravessado por esse hiato entre as diferenças (dadas ao acaso) e a ousia que lhe vinculam mais ou m enos e ulteriorm ente. Assim , o gênero orgânico é, sem dúvida, na Natureza, a m e­lhor aproximação do Conceito; nem por isso as espécies diferenciadoras que a ele se subsum em são as suas explicitações. Longe de m ostrar com o o gê-

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nero se torna indivíduo, elas formam uma cortina, por seu pulular ou pelo seu núm ero contingente, entre o gênero e a sua realização.

O que ingressa na realidade não é o gênero como tal, ou seja, não é de modo algum o pensamento. O gênero, como orgânico efetivo, só se faz substi­tuir por um representante [nur durch einen Repräsentanten vertreten]. Mas este último, o número, que parece designar a passagem do gênero na figuração individual ... designa antes a indiferença e a liberdade mútua do Universal e do Singular, Singular que é entregue pelo gênero à diferença sem essência da grandeza ... 29

Precisam ente ali onde o Singular parece prestes a ser a m ostra do U ni­versal, ele perm anece, portanto, a pequena am ostra deste último: o m ovi­m ento das significações ainda perm anece fixado num a hierarquia das ins­tâncias. D ecerto, em história natural, os sistem as conseguem se liberar dessas diferenças indiferentes e, em certos lugares, reencontrar os critérios efetivos de diferenciação (entre espécies); mas é então que eles são guia­dos por um “ instinto da Razão" que não basta para novam ente questionar a visão espacializante de indivíduos dispersos sob espécies justapostas. Pode ocorrer que o procedim ento em pírico coincida, aqui e ali, com o que nos será revelado pela investigação conceituai; nem por isso aquele é incom pa­tível com esta últim a. O cientista sempre busca logo exprim ir a qüididade da coisa: contenta-se em sinalizar a constância ou a regularidade que obser­vou na representação. Com o a ciência poderia se propor a sobrepujar essa contingência inicial do dado em relação ao Universal, visto que ela nem sequer reconheceu seu pressuposto maior?

A definição renuncia por si mesma, portanto, às determinações conceituais propriamente ditas, que seriam essencialmente os princípios dos objetos, e se contenta com signos, isto é, determinações nas quais a essencialidade é indi­ferente ao objeto mesmo e que só têm por fim pontos de referência [Merkzeichen]

para uma reflexão exterior ... Como exterioridade da coisa, as propriedades são exteriores a si mesmas; na esfera do fenômeno, mostrou-se que, devido a esse fato, numerosas propriedades da coisa se tornam, essencialmente, maté­rias independentes; considerado deste ponto de vista fenomênico, o espírito se torna um agregado de múltiplas forças independentes. A propriedade sin-

29 Fenomenología do espírito, p .229 ; trad, fr., I, p .260 ; trad, br., I, p. 188-9.

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g u ia r o u a fo rç a , p o r e s s e m e s m o p o n to d e v is ta , a li o n d e é p o s t a c o m o in d ife ­

re n ç a e m re la ç ã o à s o u tr a s , d e ix a d e se r p r in c íp io q u e c a ra c te r iz a ; a p a r t ir d e

e n tã o , a d e te rm in id a d e , c o m o d e te rm in id a d e d o C o n c e ito , d e s a p a r e c e .30

Conseqüência da separação do Universal e de sua oposição espontânea ao “ concreto” representado, ao indivíduo inefável: é esse reconhecim ento por signos que usurpou o título de conhecim ento teórico. Quando a ciência clássica critica o erro que consiste em julgar a natureza da coisa pelo “ sen­tim ento” que ela suscita, é a interpretação dos signos que ela propõe em troca com o m odelo do conhecim ento. Assim , por exem plo, Descartes:

S e p a la v r a s q u e n a d a s ig n if ic a m , s e n ã o p e la in s t i tu iç ã o d o s h o m e n s , b a s ­

ta m p a r a fa z e r q u e c o n n c e b a m o s c o is a s c o m a s q u a is e la s n ã o tê m n e n h u m a

s e m e lh a n ç a , p o r q u e a N a tu r e z a n ã o p o d e r ia t a m b é m te r e s ta b e le c id o ce rto

s ig n o , q u e n o s f iz e s s e te r o s e n t im e n to d a lu z , e m b o ra , e m si, e s s e s ig n o n a d a

t iv e s s e d e se m e lh a n te co m o s e n t im e n to ? 31

Isso não equivale apenas a nos im por a obrigação de passar de um a a outra m odalidade de sinalização, do signo sem elhante ao designado para o signo convencional? Ora, esse segundo modelo, m esm o que consagre a des­confiança em relação ao sensível, não é tão enganador quanto o primeiro? Pouco im porta a natureza dos signos: a questão é saber se o conhecim ento está à m edida de uma codificação e se basta um a escolha judiciosa de sig­nos para fazer que a coisa confesse o que ela é. E prejulgar o conteúdo que se entende exprimir, decidir que ele pode se tornar presente, permanecendo

ao mesmo tempo estranho, num a figura que lhe permanece exterior. Um a signifi­cação presente por delegação já é uma significação mutilada, um Interior de que se renuncia a suprim ir a interioridade e de que não se deixará de­senvolverem todos os m om entos. Sempre se sinaliza cedo demais e m e­lhor seria falar da im paciência da sinalização, de preferência à paciência do Conceito.

[A ú n ic a f ig u r a e x t e r i o r ] . . . c o m p o r t a r - s e - i a e n t ã o c o m o u m a c o i s a

s u b s i s te n te q u e , e m s e u se r-a í p a s s iv o , re ce b e r ia , se m a lte rá - lo , o in te r io r c o m o

a lg o d e e s tra n h o , to r n a n d o - s e a s s im o s ig n o d e s s e in te r io r - o s ig n o , i s to é,

30 Logik [Lógica], V, p .293-4.31 D escartes, M onde, CEuvres, Ed. A lquié, I, p.316.

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u m a e x p r e s s ã o e x te r io r , c o n tin g e n te , c u jo la d o e fe t iv a m e n te rea l, to m a d o p a r a

si, s e r ia p r iv a d o d e s ig n if ic a ç ã o - u m a l in g u a g e m , e n fim , c u jo s s o n s e a g r u p a ­

m e n t o s s o n o ro s , lo n g e d e se r a c o is a m e s m a , e s t ã o c o n ju m in a d o s à c o is a p e lo

liv re -a rb ítr io , p e rm a n e c e n d o c o n tin g e n te s p a r a e s s a m e s m a c o is a .32

Com o em blem as descontínuos (palavras, letras ou figuras) poderiam retraçar o m ovim ento contínuo de uma diferenciação? Resignando-se a um conhecim ento por sinalização, renuncia-se desde logo a com preender a p ro ­priedade no princípio, a diferenciação no gênero - em suma, opta-se incons­cientem ente por um saber lacunar, portanto, não conceituai. Daí nascem os m étodos falsificadores. Assim , por exem plo, na Regra X IV de Descartes, a transposição universal de todos os conteúdos em grandezas pressupõe a possibilidade de reduzir todas as diferenças a diferenças de proporção. Não é assinalar, depressa demais, a diferença em geral para um a distância entre termos exteriores, ou seja, a um a lacuna?

S e m d ú v id a , a s d e te r m in a ç õ e s c o n c e itu a is , U n iv e r s a l id a d e , P a r t ic u la r i­

d a d e , S in g u la r id a d e , s ã o d ife re n te s , c o m o a s l in h a s o u a s l e t r a s d a á lg e b ra ;

s ã o , a lé m d is s o , a s s im o p o s ta s , e, n e s s a m e d id a , a d m ite m ta m b é m o s s ig n o s

+ e P o ré m , e la s p r ó p r ia s e f in a lm e n te a s s u a s r e la ç õ e s , m e s m o q u e n ã o se

v á a lé m d a su b s u n ç ã o e d a in e rê n c ia , s ã o d e n a tu r e z a e s s e n c ia lm e n te d is t in t a

d a s le t ra s , d a s l in h a s c o m s u a s re la ç õ e s , a ig u a ld a d e o u a d ife re n ç a d a s g r a n ­

d e z a s , o m a is e o m e n o s , o u , a in d a , d is t in t a d e u m a s u p e r p o s iç ã o d a s l in h a s ,

d o s â n g u lo s q u e fo rm a m a o s e u n ir e d a s p o s iç õ e s d o s e s p a ç o s q u e e n c e rra m .

C o n tr a r ia m e n te a e la s , o p r ó p r io d e t a is o b je to s é se re m e x te r io re s u n s a o s

o u t r o s e te r e m u m a d e te rm in a ç ã o f ix a . S e o s c o n c e ito s s ã o to m a d o s d e m a ­

n e ir a a c o r r e sp o n d e r a t a i s s ig n o s , e n tã o d e ix a m d e se r c o n c e it o s .33

A “ analogia com a extensão de um corpo figurado” pôde passar por uma estratégia universal do “ saber”, o que diz m uito sobre o distancia­m ento em que se encontrava do Saber conceituai. N aturalm ente, o saber era pensado com o um reagrupam ento de formas diferentes, separadas por um afastam ento - com o uma recensão cuja pertinência m etodológica era deixada ao bom grado do classificador. Assim , a história ou a ciência das religiões considera estas últim as com o exem plares aos quais acontece de­

32 Fenomenología do espírito; p .229; trad, fr., I, p .260; trad, br., I, p. 199.33 Logik [Lógica], V, p .57.

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term inar o gênero “Religião” , Ora, em tal estágio, esse conceito tópico não tem realidade “ senão em nosso pensam ento” : a Religião “ainda não é Reli­gião, pois, então, ela só tem presença, essencialm ente, na consciência” .

P o d e -se d iz e r d e to d a s a s r e l ig iõ e s q u e s ã o r e l ig iõ e s e c o r r e sp o n d e m ao

c o n c e it o d e R e lig iã o , m a s , a o m e s m o te m p o , c o m o a in d a e s t ã o l im i t a d a s

[b e sc h r ä n k t], n ã o c o r r e sp o n d e m a o C o n c e ito . O ra , e la s d e v e m c o n tê - lo : s e n ão ,

n ã o s e r ia m r e l ig iõ e s . N e la s , p o r é m , o C o n c e ito e s t á p r e s e n te d e d ife re n te s

m a n e ir a s : in ic ia lm e n te , e la s s ó o c o n tê m e m s i .34

O cientista não detém, então, a qüididade daquilo que ele estuda: ign o­ra que a am ostra cultural pela qual se interessa m erece efetivamente o nome de Religião. Ele o “ conhece” , sem dúvida, mas no sentido em que conheci­m ento quer dizer docum entação e ciência, nom enclatura; no sentido em que o “ saber” , com portam ento “ som ente subjetivo” , nos dispensa de trazer à luz do dia a necessidade que articula os seus conteúdos. É o procedim ento que Descartes descreve na Regra XIV: contenta-se em afirmar a presença de um a “natureza com um ” em “ sujeitos diferentes” , em seguida se estabelece entre estes últim os as “ com parações” que, a partir de então, são tornadas legítimas. Mas por que podem os comparar (subjetivam ente)? Estam os se­guros de sem pre poder fazê-lo? Donde provém que possam os conhecer por m eio de “dim ensões” das quais a m aior parte é “forjada ao sabor de nosso espírito”? Fortalecido pela caução divina, o saber clássico elude tais ques­tões. Essa esquiva, porém, tornou-se im possível a partir de Kant.

Crítico de um “ saber subjetivo” , isto é, descuidado perante as suas fundam entações, H egel nos convidaria, portanto, a reencontrar de outra m aneira o a priori sob o fato, ou, ainda, a passar de um saber positivo e especializado, por definição, desatento à essência de seu objeto, à eidética que deve precedê-lo e esclarecê-lo... Evitem os tal ilusão. Isso seria fazer do Conceito o herdeiro do a priori kantiano ou o esboço do eidos fenom enoló- gico. Ora, para Hegel, um a eidética nunca seria m ais do que um grau do “ saber subjetivo” - a fixação dogm ática da essência, apenas um balizamento

a mais, portanto, outra m aneira de desconhecer a am plitude do conteúdo. Aliás, para que pretender elucidar ao que visamos quando falamos da "religião” , do “ sagrado” , do “ E stad o ...” . Afinal que direito teria uma nova figura da consciência - transcendental ou “reduzida” - de se pronunciar sobre a vali­

34 P/i. Religion [F ilosofia da religião], XV, p.271-2.

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dade ou não-validade da linguagem? Q ue título têm os dados im ediatos de um a “ consciência” (qualquer que seja o nível em que esta se situe, por m enos psicológica que for considerada), para m e autorizarem a retificar ou depurar o sentido das palavras? Eis por onde a filosofia do Conceito se afasta de toda filosofia transcendental e de todo intuicionism o, doutrinas sempre dem asiado prontas a desqualificar os recortes sem ânticos e fiar-se nos oráculos de um a “ consciência” infalível e muda. A ntes de recorrer às idéias claras e distintas ou às leituras de essências, que o filósofo se asse­gure inicialm ente de haver esgotado o sentido da palavra que ele tenciona revisar! Q ue ele se esforce, por exem plo, em com preender por que essa form a ritual já diz respeito à “ Religião” ou por que a natureza com um “Re­ligião” ainda está, de direito, ali presente. Q ue ele se pergunte o que de­vem ser a “ Religião” e o “Estado” em toda sua envergadura, se é verdade que tal conteúdo diz respeito efetivamente a tais conceitos. Por isso m esm o, tais “ conceitos” já terão deixado de ser os elem entos de um léxico ou m es­mo quadros em nosso espírito; por isso, as espécies e as amostras que eles pareciam reagrupar fortuitam ente com eçarão a parecer inseparáveis e com ­plem entares. Longe de haver purificado o “conceito subjetivo” ou tê-lo con­duzido à sua m áxim a clareza, ter-se-á então transform ado o que era só um signo arbitrário num princípio efetivo de todas as suas diferenças. Longe de haver rom pido com um a visão “ingênua” para subm eter a coisa a outra ilum inação, ter-se-á circunscrito um a estrutura tal, que qualquer "intu i­ção” do objeto pode ali tomar assento com o episódio necessário. Em vez de abandonar os conteúdos ao acaso de um a recensão em pírica ou m esm o percorrê-los segundo a ordem - “ subjetiva” - das razões, ter-se-á reconsti­tuído o invólucro de que a sua pertinência a um m esm o gênero era som en­te o pressentim ento. Talvez se entreveja, a partir daí, o que assegurará a originalidade do Conceito em relação aos saberes e aos m étodos que Hegel critica: no início, a firme resolução de nunca subm eter a linguagem à juris­dição de um a instância que lhe seja exterior e nunca reencontrar nas “ coi­sas ditas” outra necessidade que não a que elas incluem enquanto são “d i­tas” . Afora essa reconstituição do discurso, só há conhecim ento por signos- balizam ento e não saber.

E por isso que o Conceito é m enos o substituto do Deus clássico, que o concorrente dos saberes fundadores (transcendental ou eidético): m enos que conferir a garantia ausente no caso do ateu geóm etra, ele desvela a origem que a mathesis teria esquecido ao se construir. E tam bém por isso que não há salto entre os saberes finitos e o Conceito: este é dem asiado diferente daqueles para constituir um outro saber que a eles substituiria.

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Em certo sentido, tais saberes finitos disseram inteiram ente a “ coisa” , p o ­rém, de m odo fragm entado, por intermitências, sem que a “ coisa m esm a” ali fosse dita em pessoa. E por isso, enfim, que o Conceito, reintegração num conjunto de elementos disjuntos ou sucessivos, não traz nada de novo,35 ele só restitui, à continuidade neles latente, os discursos dispersos que fo ­ram feitos sobre a coisa ou os diversos aspectos que dela foram extraídos. A í não poderia haver passagem ao Conceito: esse discurso, m ais velho que todos os saberes, a todos havia percorrido, secretam ente. Com o, a partir de então, dar conta da defasagem entre o Conceito e os m odos de pensa­m en to que anunciavam o seu advento? Q ue fronteira traçar entre as dialéticas da Finitude e a dialética recapitulativa?

3

Nas dialéticas finitas, a determ inação diferencial estava inscrita no con­teúdo ou dada na relação com um Outro, a Diferença sempre era com entada pelas im agens do lim ite ou do reflexo. Sem dúvida, com a Essência, “a uni­dade do Conceito com eça a ser posta, mas, inicialm ente, ela só é o Parecer em um O utro".36 Embora as categorias ali estejam presentes em pares (todo- partes, causa-efeito, substância-acidente), sua unidade ainda é a de um a conexão, e a diferença dada ou encontrada nunca é vista com o o avesso de um a diferenciação que justificasse sua presença. Certam ente se reconhece a im possibilidade de m anter os m om entos em seu isolam ento: assim, se tom adas separadamente, nem a independência da coisa nem a sua fundamen-

tação-por-um-Outro são capazes de reconstituir o conceito de “N ecessidade” de que elas são, no entanto, as com ponentes - e sua dialética passará pela prova do caráter insustentável de tal unilateralidade. Mas ainda se trata só

35 “A s determ inações precedentes que eram apenas em si atingiram então a livre indepen­dência, m as de m aneira que o C onceito perm anece com o a alm a que m antém o Todo reunido e só chega por m eio de um m ovim ento im anente à su a própria diferenciação. N ão se pode portanto dizer que algo de novo advenha ao Conceito: a ú ltim a determ ina­ção vai reencontrar a prim eira n a unidade. M esm o se o Conceito, em seu ser-aí, parece ter se encam inhado partes extra partes [in seinem Dasein auseinander gegangen scheint], é so ­m ente um a aparência da p rogressão com o tal, v isto que tod as as singularidades, final­m ente, retornam ao conceito do U niversal” (P h . Rechts [F ilosofia do direito], VII, p .83). Texto in teressan te no que concerne ao sentido do “ evolucion ism o” hegeliano: Hegel não é sequer evolucionista no sentido clássico (colônia dos germ es), v isto que o desen ­volvim ento das form as, com o p rogressão partes extra partes, ainda é som ente aparência.

36 Logik [Lógica], V, p .44.

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de um a provação. U m a coisa é constatar que duas categorias são com ple­m entares no interior de um a instância “ superior” , outra coisa m ostrar que elas são engendradas por um a instância prévia. Q uando H egel analisa a idéia de Necessidade na exposição “popular” das Provas da existência de Deus, é no prim eiro ponto de vista que ele se coloca:

Atemo-nos ao que se encontra em nossa representação, a saber, nem uma nem outra das determinações basta para a Necessidade e ambas são exigidas para tanto - a independência, de maneira que o Necessário não seja mediado por um outro, e igualmente a mediação [do Necessário] em sua ligação com o Outro. Assim, elas se contradizem. Mas, visto que ambas pertencem à Neces­sidade como una, não devem se contradizer na unidade que, nela, as une; e nossa intelecção tem por tarefa reunir, também, em nós, os pensamentos que nela estão unificados.37

N esse estágio, portanto, é apenas a exigência de com patibilidade das significações que guia a análise e trata-se unicam ente de reconstruir a idéia de Necessidade pelo jogo dos elem entos que devem ser os seus com ponentes. Mas por que tais elem entos foram escolhidos, e não outros? Sem dúvida, a análise perm ite descrever m elhor a representação “N ecessidade” , mas ainda se está longe de pensar a “Necessidade” com o unidade conceituai. Esta, de­certo, encontra-se presente, mas em si, e a seqüência do texto deixa enten­der que será preciso um a reflexão suplem entar para nos convencer de que a “N ecessidade” assim constituída já não é um a “ simples representação” :

A unidade assim determinada é a unidade verdadeira e, enquanto é sabida, é a unidade especulativa. A Necessidade determinada de maneira que unifica em si tais determinações opostas não se mostra simplesmente como uma sim­ples determinação e uma simples determinidade; além disso, a supressão das determinações opostas não é simplesmente nossa coisa e nosso ato, como se fôssemos os únicos a realizá-la; diz respeito à natureza e ao ato dessas deter­minações nelas mesmas, dado que são unificadas numa determinação única.38

Enquanto a atividade das determ inações não é expressam ente o m otor da dialética, sempre se corre o risco, portanto, de pensar esta últim a como um espetáculo que seria oferecido a um a consciência; enquanto o seu m o­

37 Preuves, "II Conferência” , trad. fr., p. 129-30; XVI, p .469.38 Ibidem , p .470.

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vim ento não é assim ilado a um a m aturação biológica ou a um trabalho que a significação efetua sobre si m esma, os “ conceitos” não m udaram de lu ­gar: eles ainda estão "em nossa cabeça” . O Leitmotiv biológico que percorre a Lógica do Conceito está justam ente destinado a “chamar a atenção para o fato de que nem o Conceito nem o Juízo se encontram sim plesm ente em nossa cabeça e não são formados sim plesm ente por nós” .39 É com o se a idéia da “unidade conceituai” só pudesse nascer ao preço da denúncia de dois preconceitos inseparáveis: de um lado, pensar os conceitos com o ju n ­ções de Bestandstücke, de partes constituintes (“H om em ” = “Razão” + “Sen­sibilidade” ou “C orpo” + “Espírito” 40); de outro lado, depositá-los na con­ta da subjetividade consciente. A n tes de todo em blem a da separação, a consciência concebe naturalm ente os seus objetos de conhecim ento como somas de significações disjuntas e adicionadas. E não basta instituir entre

39 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 166, Z., VIII, p .366; trad. br., I, p .302.40 “Se a representação azul, com o cor, tem por conceito a unidade - e a unidade específica -

do claro e do escuro, se a representação homem inclui os o p ostos sensibilidade-razão, corpo-espírito, o hom em não é som ente com posto por e sse s dois lados com o elem entos indiferentes, m as ele os contém , segundo o Conceito, em um a unidade m ediada concre­ta. Porém, o Conceito é para su a s determ inidades um a unidade tão abso lu ta que elas nada m ais são para si m esm as e não podem se realizar em singularidades independentes, o que as faria sair da unidade. O C onceito contém , portanto, todas as su as determ inidades na form a d essa unidade ideal e d e ssa universalidade que form am sua subjetividade, d ife­rentem ente do real e do objetivo” (Esthétique. [E stética], XII, p .156; trad. fr., I, p .141). A ssim , a unidade-conceitual pura, quando oposta à unidade im perfeita do Conceito encar­nado, é situada do lado da Subjetividade. Cf. a nota de M erleau-Ponty: tornada sistem a, a dialética "faz com que a balança se incline do lado do su jeito ; oferece, portanto , um a prioridade ontológica ao interior, e, em particular, d esp o ssu i a N atureza de su a própria Idéia, e faz da exterioridade um a 'fraqueza da N atu reza '" (Résumés de Cours, p .82-3). Voltarem os adiante a tratar da “ im potência da N atureza” . N otem os som ente que é peri­goso com preender o C onceito com o sendo apenas a essência oculta da N atureza, isto é, no estágio de su a “ subjetiv idade” . Certam ente, enquanto for assim considerado, ele paga su a perfeição com o preço de su a não-realização integral - e estaríam os ten tados, com o se verá, a falar de “ im potência do C onceito” . M as então se tom a o C onceito com o um princípio realmente oposto à N atureza; portanto, finito. Um texto com o esse nos convida a isso . M as não deve d issim ular que o Conceito é tam bém o que dá sentido à diferença da qual ele é aqui um dos lados - v isto que é tom ado com o princípio - ; que é "aquilo que reúne-ao-diferenciar” , überhaupt. Som ente quando se opõe a perfeição d e ssa operação a su a perfeição no Finito (com o é o caso aqui), é que se é conduzido a descrever o Conceito com o um princípio localizado e finito. Em sum a, a figuração do C onceito com o “ inte­rior” , “ subjetiv idade” confrontada com a objetividade, A bsoluto ontológico no sentido tradicional, ainda é um a figuração finita do Conceito com o m ovim ento que engendra o sentido da “ D iferença em geral” , até m esm o daquela em que aqui se detém . N ão há determ inação ontológica, nem determ inação ontológica do Conceito mesmo, que não se ja o b loqueio do conceito com o m ovim ento - e, nesse caso, su a aplicação d efeituosa a si m esm o. A Lógica não é um a ontologia a m ais, m as a subversão de toda ontologia: toda ontologia é um a linguagem confusa.

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tais elem entos relações de pertencim ento necessário, para que deixem de constituir o conteúdo de nosso agrado e perante o nosso olhar. Em outros termos: que a consciência se torne dialética, no m áxim o, enquanto não re­nunciar à sua prerrogativa, ela chegará a deixar que se dissolvam as signifi­cações “não verdadeiras” , mas não a com preender que tal dissolução é o efeito de superfície da especificação da categoria na qual se desem boca. E isso já bastará para proibir que se fale de uma passagem ao Conceito, ou de um a progressão que nos conduziria do “dialético” ao especulativo: inevita­velm ente, isso seria expor-se a pensar com o aum ento de um “conhecim en­to” o que não é senão um a inversão de perspectiva, pela qual a própria noção de “processo-de-conhecim ento” se acha, precisamente, desqualificada. “Passar” ao Conceito - se se fizer questão de empregar esse verbo - é, an­tes de tudo, deixar de pensar em term os de constituição progressiva e im agi­nar a racionalidade na forma de um a trajetória, com o nos estágios anterio­res. Com efeito, passar de um conteúdo a outro, ou deixar aparecer um conteúdo em outro, ainda era efetuar um trajeto no qual seriam encontradas

diferenças, sem as com preender com o alterações, visto que, ao escaloná- las num a ordem serial, estava-se proibido de reportá-las à form a de que elas poderiam ser as transform ações. Sem dúvida, as significações circula­vam , porém sem que h ouvesse afinal diferença de natureza entre essa osm ose e a m aneira pela qual as peças de um quebra-cabeça se ajustam umas às outras, visto que a unidade constituída era um a unidade com posta e um a vez que não se pensava que tal resultante pudera se antecipar em nosso procedim ento. M elhor ainda: o pensam ento finito se insurge contra essa idéia e prefere interpretar o pensam ento conceituai com o fatalism o e razão preguiçosa. Q ue anuncia, com efeito, esse pensam ento conceituai ao leitor da Philosophie de Vesprit [Filosofia do espírito] ou da Philosophie de

1’histoire [Filosofia da história]? Anuncia que o m undo não esperou nossa entrada em cena e, da realidade, desde já sempre efetivada, as nossas metas, as nossas aspirações e m esm o os nossos atos nunca foram a medida.

No Finito, não podemos nem experimentar nem ver que o fim é verda­deiramente atingido. A consumação do fim infinito só consiste, assim, em suprimir a ilusão que nos leva a crer que ela ainda não se consumou. O Bem absoluto se consuma eternamente no mundo e o resultado é que ele j á está consumado em si e para si e de modo nenhum carece esperar por nós.41

41 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 212, Z., VIII, p .422; trad, br., I, p .347.

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Isso não significa, todavia, que seja preciso acomodar-se a priori ao acon­tecim ento - resignação ainda orgulhosa, visto que nos concederia o benefí­cio da conduta racional mas que sim plesm ente valorizamos indevidamente nossos ideais e com portam entos “ subjetivos” . Por m ais que isso desagrade ao pensam ento finito, a escolha não é, portanto, entre a perseguição tei­m osa dos ideais e a subm issão teatral ao Fatum: entre ambos, há a com pre­ensão do Fatum ao qual o indivíduo se subm ete com o Conceito no qual sua operação se integra. Com isso, a ação recebe um novo estatuto: ela não consiste mais em impor um ideal pela força, mas em colaborar para uma explicitação que não é mais da alçada de nossa decisão. D e aventura subjetiva, o m ovim ento tornou-se então atividade (Tätigkeit) - e esta se acha num a outra ordem, distinta do conhecim ento ou da ação finita. A to (Tun), sem dúvida, mas que não está mais adstrito a um a consum ação linear.

Assim , com eça-se a entrever o que é o trabalho do C onceito - mas som ente a entrevê-lo. Pois, afinal, o que é essa Tätigkeit e em que ela difere, de m odo preciso, de uma operação “ subjetiva” ? O melhor, a essa altura, é passar a palavra a Hegel, com entador de Aristóteles, e ler a palavra Tätigkeit

à m argem da palavra evspyeta que ela traduz.

Somente a energeia, a Forma é a atividade, o agente que se efetiva, a ne­gação que se relaciona consigo mesma. Ao contrário, se falamos da Essência, esta ainda não é posta como atividade; ela é somente em si, somente uma possibilidade privada de forma infinita. Assim como Aristóteles mantém fir­memente o Universal contra o princípio da simples mudança, assim também ele faz valer a atividade contra os pitagóricos e contra Platão, contra o Núme­ro. A atividade é também mudança, mas uma mudança que permanece idên­tica a si mesma - uma mudança, mas posta no interior do Universal como mudança igual a si mesma. É um ato de determinação que é ato de autode­terminação. A simples mudança, ao contrário, não inclui nela a auto-subsis- tência na mudança. O Universal é ativo, ele se determina; e o fim é a autode­terminação que se realiza. Tal é a determinação mais elevada a que chega Aristóteles.42

Essas linhas ainda esclarecem m uito pouco a significação de Tätigkeit.

Em vez de nos interrogarm os sobre a “ ativ id ade” do C onceito , então perguntem o-nos antes em que caso um conceito não poderia ser dito “ ati­

42 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .321.

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vo” . N o m esm o capítulo sobre Aristóteles, o comentário oferecido por Hegel do De Anima (II, 412) é precioso acerca desse ponto. Eis a “tradução” - m uito livre - da página de Aristóteles:

A alma é a substância, mas a substância somente segundo o Conceito (κατά τον λόγον). Ou ainda a forma, o Conceito é aqui o próprio ser, essa mes­ma substância. Se, por exemplo, um instrumento como o machado fosse um corpo físico e tivesse como substância esta forma de ser-machado, tal forma seria então a sua alma. E se ela deixasse de ser, não haveria mais machado, mas só restaria o seu nome. Porém não é de um corpo como o machado que a alma é a forma e o Conceito (xò xí ήν είναι και ò λόγος); a alma “é a forma de um corpo que nele tem o princípio do movimento e do repouso”. O machado não tem em si mesmo o princípio de sua forma, ele não se faz a si mesmo. Ou ainda: sua forma, seu Conceito não é a sua própria substância - ela não é ativa

por si mesma.43

E som ente nos seres naturais que a “ coisa” se confunde com a sua função (“ se o olho fosse um animal, a visão seria a sua alm a”) e ο λόγος, coextensivo à ούσία. Nada do que efetiva a esta últim a excede então à sua definição. A “coisa”, portanto, já não pode ser com preendida com o um con­teúdo que o conhecim ento esclareceria progressivam ente ou com o o local de concentração de determ inações com partimentadas: ela é tal, que nenhu­m a de suas diferenças lhe é acrescentada do exterior. Cada term o diferente só tem sentido à m edida que expõe a persistência e a continuação integrais dos outros por interm édio dele, cada m om ento tem por função confirm ar que ele é m om ento dessa totalidade. E essa m odificação no pensam ento da D iferença que transform a o jogo dialético num a configuração conceituai.

Assim , observa Hegel, sempre se em pregam na esfera do Conceito deter­

m inações reflexivas (Identidade, Diferença, Fundam ento) próprias à esfera da Essência. Sempre são empregadas; porém sua “ significação” é subverti­da: no lugar de se refletir em seu oposto, elas “contêm ” e exprim em dora­vante a totalidade dos outros m om entos. De partes do discurso linear, elas se tornaram “partes totais” do λόγος que as informa.

As determinações reflexivas devem ser compreendidas como separadas, cada uma para si, da determinação oposta; mas, como no Conceito a sua iden­

43 Ibidem , XVIII, p .372-3.

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tidade é posta, cada um de seus momentos só pode ser captado a partir dos outros e com eles. Universalidade, Particularidade (os momentos conceituais), se abstratamente compreendidas, são a mesma coisa que Identidade, Diferen­ça e Fundamento. Mas, se o Universal é o idêntico consigo, é expressamente no sentido de que, nele, o Particular e o Singular estão simultaneamente conti­dos. O Particular é decerto o diferente ou a determinidade, mas no sentido de que ele é o universal em si e singular. Enfim, o Singular tem como sentido ser sujeito, base, que contém em si o gênero e a espécie e que é, ele próprio, substancial ... Tal é a clareza do Conceito: cada diferença não forma nenhuma interrupção, nenhuma perturbação: ela é transparente.44

Certam ente, agora não respondem os à questão: que retificação é pre­ciso im por à dialética finita para que dela surja a especulação? E a resposta que nos deixa entrever este texto bem que poderia ser apenas verbal. Era só isso e todo esse esforço foi apenas um a dem onstração de força? Basta­ria, em suma, com preender que a exterioridade e a oposição são figuras inadequadas da alteridade e um a diferença ou determ inidade não é tanto um a delim itação quanto marca uma m odalização da essência; tratar-se-ia de substituir, à linguagem fixadora que a dialética fez se deslocar, a teoria da expressão (ou a ontologia da imanência) à qual a linguagem nos proibia o acesso e a dialética negativa ainda dissim ulava. E bem isso que sugere a palavra “conter” (enthalten), enquanto indica qual é a especificidade da “parte total” , um a vez inserida expressam ente na “ atividade” do Todo.45 Mas te­m os o direito de perguntar se tal co-extensão expressiva da parte ao todo não é uma solução m ágica dada ao problema: como dar conta da necessária pertinência dos elem entos a um a totalidade? Não é côm odo demais m eta­m orfosear tais elem entos, até então independentes ou sim plesm ente enca­deados, em “m om entos” que, por definição, refletiriam o conjunto? Não está aí o lugar preciso em que a dialética se tom a um truque e m iraculosa m e­dicação das feridas do Espírito? Admitir, com efeito, que não há elem ento num a totalidade que não seja a projeção do princípio desta últim a é conce­der-se a perm issão de ter doravante resposta para tudo: sempre se poderá

44 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 164, VIII, p .361; trad. br., I, p .299.45 “M as é verdade que todo conceito determ inado é vazio, enquanto não contém a totali­

dade, m as som ente um a determ inidade unilateral. M esm o que, por outro lado, tenha um conteúdo concreto (homem, Estado, cavalo etc.), perm anece um conceito vazio, na m edida em que sua determ inidade não é o princípio de su as diferenças; o princípio con­tém o com eço e a essência de seu desenvolvim ento e de su a realização; m as toda outra determ inidade do Conceito é infecunda” (Logik [Lógica], V, p .48).

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escolher um λόγος tal, que cada aspecto da ούσία o contenha integralm ente e seja, a partir de então, proclam ado integralm ente inteligível; sem pre se p o ­derá, por isso, denunciar a explicação que não nos satisfaz com o parcial e não representativa do Todo. A inteligibilidade seria barateada, se só se tra­tasse de assinalar o principio totalizador que deve im pregnar cada figura ou cada elem ento. Ora, é na direção dessa solução fácil que bem parece conduzir a dialética com o reintegração feérica das totalidades das quais se havia criticado o esm igalham ento. E é porque aborda de frente esse tem a que A lthusser nos parece ter renovado - em bora para agravar o veredicto - a crítica tradicional do otim ism o e do teologism o hegelianos.

O especulativo se ordena pelo m odelo da “causalidade expressiva g lo ­bal de um a essência interior a seus fenôm enos” . O Todo é redutível

a um princípio de interioridade único, isto é, a uma essência interior, de queentão os elementos do Todo são somente formas de expressão fenoménicas,pois o princípio interno da essência está presente em cada ponto do todo.46

Portanto, o interior da totalidade, as diferentes esferas (sociedade ci­vil, instituições etc.) são apenas m om entos, negados tão logo que afirm a­dos, e a sua incessante m etam orfose torna inconcebível a sua autonom ia.47 Visto que a com plexidade é assim evanescente, sempre prestes a ser reabsor­vida na unidade que a teleguia, não poderia haver, em Hegel, unidade na e

pela própria com plexidade. O Uno e o M últiplo, nota Althusser, ali perm a­necem sem pre exteriores: a pluralidade das esferas parece fazer que a uni­dade prim itiva exploda, e esta só se conserva à m edida que acaba por ani­quilar essa pluralidade. Inversam ente, o Todo estruturado - tal com o entendido por A lthusser - implicará, com pleno direito, a complexidade: ele só faz sentido por m eio dos desequilíbrios e reequilíbrios que, num certo instante, lhe dão sua fisionom ia. Isso equivale a dizer que suas varia­ções, longe de exprim irem superficialm ente a identidade de um princípio que perm aneceria im utável em profundidade, são, a todo m om ento, res­ponsáveis pela figura que o sistem a assume. Só tem os que nos haver com um campo no qual as variações de relações são sempre com preensíveis em função da natureza da instância que se encontra com o dom inante e do lu­gar que (provisoriamente) ela ocupa. Tal é a diferença entre o sistem a e o

46 A lthusser, Lire le Capital, II, p. 167.47 Cf. A lthusser, Pour M arx, p.209-10.

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“C on ceito” : renuncia-se agora à im agem de um Logos que animaria um conteúdo e engendraria as suas diferenças; a presença m etafísica do eidos

cedeu lugar a um a estrutura que já não é da ordem do visível nem do su- pra-sensível.

Que a mais-valia não seja uma realidade mensurável, isso se deve a que ela não é uma coisa, mas o conceito de uma relação, o conceito de uma estru­tura social de produção, existindo com uma existência visível e mensurável somente em seus efeitos ... [Isso] não significa que possa ser inteiramente captada em tal ou qual de seus efeitos determinados: para tanto, seria preciso que estivesse inteiramente presente, ao passo que, como estrutura, só está presente em sua própria ausência.48

A crítica do m isticism o especulativo é, portanto, radical. Mas, para que fosse decisiva, seria preciso que H egel tivesse conservado efetivam ente o “par clássico” essência/fenôm eno, interior/exterior - com o os autores de Lire le Capital acreditam poder afirmá-lo.

Ali havia, certamente, um modelo permitindo pensar a eficácia do todo sobre cada um de seus elementos, mas esta categoria da essência interior/ fenômeno exterior, para estar em todos os lugares e a todo instante aplicável a cada um dos fenômenos que diziam respeito à totalidade em questão, supu­nha uma certa natureza do todo, precisamente essa natureza de um todo “es­piritual” em que cada elemento é expressivo da totalidade por inteiro, como p a rs to ta lis ,49

Ora, é difícil conceder esse ponto, pois a relação de “contenção” (a do Todo conceituai na parte) nunca é apresentada na Lógica do Conceito com o um a relação de expressão. Essência/fenôm eno, interior/exterior são cate­gorias da Essência e não do Conceito, e nada perm ite falar do Conceito hegeliano com o de uma “realidade com duplo nível” . Para Hegel, tal “re­

48 A lthusser, Lire le Capital, II, p .158.49 Ibidem , II, p .168. “Todavia, e sses dois m odelos [galileano e leibniziano] podiam m uito

facilm ente, jogan do com o equívoco dos dois conceitos, descobrir um fundo com um na oposição clássica do par essência/fenômeno” (Ibidem, p. 173). N os M anuscrits de 4 4 [M a­nuscritos de 44], “o Begreifen estabelece um a sim ples diferença de nível entre um a e s­sência e fenôm enos que, por su a vez, são todos, no m esm o nível, expressões sob o m e s­m o título da essên cia” (J. Rancière, I, p. 162). Em bora o nom e de Hegel não se ja aqui pronunciado, bem parece que a crítica do jovem M arx se dirige ao seu “hegelian ism o” .

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presentação” provém da dificuldade experim entada pelo pensam ento finito para aclimatar a unidade conceituai. Com o se trata de um a totalidade em que as determ inidades já não fazem sentido com o “ singularidades inde­pendentes” , a “representação” é tentada a imaginar como um elem ento pon­tual, tal com o o Eu, ponto de convergência sim ples da m ultiplicidade das representações.50 Porém, ao com preender assim o Conceito “ em sua subje­tividade e em sua diferença em relação ao real e ao objetivo” , a Representa­ção rejeita a “ diferenciação real” fora dessa unidade ideal. O Conceito é posto então com o um a unidade que não pode coexistir com os seus ele­m entos m últiplos - apenas capaz de nela reabsorver a estes últim os, mas não de os produzir. Suas diferenças, com o tais, perm aneceriam exteriores a ela. Decerto, então, reencontram os a “realidade em duplo nível" - mas como a falsificação representativa do Conceito, e não com o a sua verdade. Acre- dita-se então com preender o que é o Conceito com o “ instância prim eira” (das Erste), mas para opô-lo à diversidade estranha que ele deve (arbitraria­m ente) reunificar. Em suma, tudo se passa como se H egel fosse acusado de ter retom ado por sua conta uma clivagem que, precisamente, ele tenciona revogar. Vê-se, no entanto, a vantagem de tal interpretação: no hegelianis­mo, ela perm ite reencontrar facilm ente o esquem a clássico das “ teorias do conhecim ento” . Hegel não teria feito m ais do que retom ar a velha ideolo­gia otim ista que as percorre: visto que a essência se irradia por m eio do fenôm eno, o processo de conhecim ento tem a chance de tom ar posse dela e reunir-se, afinal de contas, ao objeto real. Com o se o conhecim ento, replica Althusser, jam ais se relacionasse com outra coisa senão com “o objeto-de- conhecim ento” - com o se o par “essência/fenôm eno” não fosse sim ples­m ente a transposição ideológica da “ diferença epistem ológica entre o co­nhecim ento de um a realidade e essa própria realidade” .51 Daí a crítica que endereça aos que acreditaram reconhecer em M arx o esquem a “hegeliano” de um a passagem da interioridade abstrata ao concreto exterior e visível.

D o L iv ro I a o L iv ro III [d ’ 0 C a p ita l] , n u n c a s a ím o s d a a b s t r a ç ã o , i s t o é , d o

c o n h e c im e n to , d o s ‘‘p r o d u t o s d o p e n s a r e d o c o n c e b e r ” : n u n ca sa ím o s do co n cei­

to . . . , n u n c a a t r a v e s s a m o s , e m n e n h u m in s ta n te , a f ro n te ira a b s o lu ta m e n te

in tr a n sp o n ív e l q u e s e p a r a o “ d e se n v o lv im e n to ” o u a e s p e c if ic a ç ã o d o c o n c e i­

to , d o d e se n v o lv im e n to e d a p a r t ic u la r id a d e d a s c o is a s - e p o r u m a b o a ra z ã o :

50 A esthetik [E stética], XII, p .156.51 A lthusser, Lire le Capital, p .174; cf. I, p .52-3.

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e s s a f ro n te ira é, d e d ire ito , in tr a n sp o n ív e l p o r q u e n ã o é a f ro n te ira d e n ad a ,

p o r q u e n ã o p o d e se r u m a fro n te ira , p o r q u e n ã o h á e s p a ç o h o m o g ê n e o c o m u m

(e sp ír ito o u re a l) e n tre o a b s t r a to d o c o n c e ito d e u m a c o is a e o c o n c re to e m p íric o

d e s s a c o is a q u e p o s s a a u to r iz a r o u s o d o c o n c e ito d e fro n te ir a .52

Hegel teria, portanto, procurado tornar transponível um espaço intrans­ponível de direito. O u melhor: um não-espaço... A nós parece, antes, que ele recusa a existência de todo “ espaço” (transponível ou não, hom ogêneo ou não). Para que A lthusser tivesse razão, seria preciso que Hegel tivesse mantido, entre o “C onceito” e o “real” , um a distância que tornaria neces­sária a relação do U no-expresso com o M últiplo-que-expressa. Seria preci­so que o Conceito tivesse por função resolver - e resolver, de m aneira infa­lível, m agicamente - um falso problem a veiculado pelo conhecim ento finito, de que o advento do conceito é a extinção. Em suma, seria preciso que H egel tivesse tentado im plantar forçosam ente a Razão nas coisas e m os­trar que “ a ordem do real, que não é ... senão a exigência real da ordem

lógica, deve seguir a ordem lógica” .53 Ora, essa coincidência não é conceituai no sentido hegeliano, visto que é um a “ coincidência” . A o falar de “coinci­dência” entre o “lógico” e o “real” , emprega-se um a linguagem superada - qualquer que seja o sentido que se dê à palavra "real” . Ou, ainda, entende- se por Wirklichkeit a efetuação do Conceito, e a palavra “coincidência” é francam ente imprópria, pois as formas por m eio das quais ele se efetua não estão dele separadas, de m aneira que ele tenha de unir-se a elas. Ou, ainda, entende-se por Wirklichkeit (e Hegel, com o se verá, em prega ambos os sentidos no m esm o texto, às vezes, na m esm a frase) a ordem dos con­teúdos em píricos e o escalonam ento tem poral deles, mas não é preciso pre­ocupar-se em forjar entre essa ordem e a ordem conceituai um a correspon­dência que seria, salvo exceções, ilusória. Nada m enos hegeliano que a im agem de um a história cujo encadeam ento refletiria, ponto por ponto, o desdobram ento do Conceito.

A o rd e m d o te m p o n o fe n ô m e n o re a l é, e m p a r te , d is t in ta d a o rd e m d o

C o n ce ito . N ã o se p o d e d izer, p o r e x e m p lo , q u e a p ro p r ie d a d e te n h a p re c e d id o a

fam ília , e, n o e n ta n to , é p r e c is o tra ta r a n te s d e s t a ú lt im a . P o d er-se -ia , p o r ta n to ,

le v a n ta r a q u e s t ã o d e s a b e r p o r q u e n ã o c o m e ç a m o s p e lo m a is e le v ad o , i s to é,

52 Ibidem , II, p. 173.53 Ibidem , I, p .58.

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pelo Verdadeiro concreto. Ao que se responderá que, justamente, queremos ver o Verdadeiro na forma de um resultado e que, a partir de então, é essencial conceber em primeiro lugar o Conceito abstrato. Para nós, portanto, o que é efetivo [·wirklich], a forma do Conceito, só é o que vem em seguida e depois, mesmo que isso venha em primeiro lugar na própria realidade [Wirklichkeit]. Nosso procedimento é tal, que as formas abstratas não têm consistência para si, mas ali se mostram como não verdadeiras.54

A exposição conceituai não pretende, portanto, reconstituir um a super- história ou m esm o um a contra-história; assim com o não pretende concor­rer com a ordem temporal, ela não descreve uma gênese que conferiria um sentido às determ inações, às avessas da ordem de aparecim ento destas úl­tim as. E tal indiferença do conceituai ao histórico significa que o m ovi­m ento do Conceito não é, de m aneira alguma, o análogo de um processo de conhecim ento. Em bora Hegel tom e com o ponto de apoio a atividade da form a aristotélica, ele não nos autoriza com isso a im aginar o Conceito com o um eidos bastante engenhoso para impregnar, de ponta a ponta, o m últiplo e, assim, garantir ao conhecimento finito que, integralm ente, este se consumará. Enquanto a Idéia platônica ou a form a aristotélica ainda esta­vam destinadas a assegurar o sucesso do conhecim ento - ou, ao menos, podem ser assim interpretadas o Conceito já não é talhado na m edida de nosso saber. E por isso que nos parece artificial recolocar Hegel, custe o que custar, na tradição idealista ou “otim ista” do conhecimento. Ele realizou, nos dizem , o projeto que animava essa tradição. Realizar bem um projeto, porém, é apresentá-lo com o um problem a mal colocado? Responder a uma expectativa é m ostrar que não havia ninguém a esperar nesse lugar? Herdei­ro da tradição, tanto quanto se quiser, mas sob a condição de acrescentar que o legado era de pouca valia aos olhos desse herdeiro. Sem isso, apre- senta-se o destruidor do m ito do “ conhecim ento” com o o seu apologista, o crítico da “Representação” com o aquele que teria desdobrado, em toda a sua amplitude, a “representação” no sentido clássico.55 Em suma, desco-

54 P/i. Rechts [F ilosofia do direito], VII, p .83.55 A ssim , D eleuze situa Hegel na m esm a etapa do “ desdobram ento da represen tação" que

Leibniz: "Assim tam bém , para Hegel, recentem ente se m ostrou [A lthusser] a que ponto os círculos da dialética giravam em torno de um único centro, repousavam em um único centro. M onocentram ento dos círculos ou convergência das séries, a filosofia não aban­dona o elem ento da representação quando parte para a conquista do infinito” (Logique

du Sens, p .300). Replicarão que nós assim ilam os abusivam ente a R epresentação, tal com o criticada por Hegel, e o reino da “representação” , no qual os autores atuais envolvem a

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nhece-se a estranheza do que é preciso entender por Conceito, quando se despreza a advertência do autor: no Conceito, o Verdadeiro não se apresen­ta na forma em que o saber fenom ênico o esperava. Sem dúvida, este busca o Verdadeiro com o identidade do Conceito e da realidade, “mas ele o busca som ente, pois ele é aqui, como no início, um subjetivo"; “ é o Conceito que exerce a sua atividade no objeto, reporta-se a si e, ao se dar a sua realidade rente ao objeto, encontra a verdade” .56 Portanto, que não se im agine que o sujeito fm ito cedeu lugar a um sujeito onisciente, mas de m esm a natureza- ou que um Cogito mais sábio revezara com o Cogito fm ito na execução do m esm o empreendim ento: nada há de com um entre a reconciliação, tal com o im aginada pelo saber fenomênico, e a maturação que transform a em diferenciações as diferenças que este esperava sobrepujar. Se o Saber abso­luto dá acabam ento ao saber fmito, é no sentido de uma jura de morte. Por isso, com o enxergar nesta últim a um a apoteose? Com o enxergar o flores­cer do “ conhecim ento" naquilo que é, antes de tudo, a recusa de seus pro­cedim entos tradicionais? A expressão? O Conceito, com o se viu, não se ex­prim e nem se indica por suas determ inações: nelas, ele se dem onstra ao dissolvê-las e ao negar a sua independência aparente. A produção?

Decerto, o Conceito produz a Verdade - é a liberdade subjetiva mas reconhece esse conteúdo como sendo ao mesmo tempo algo de não produzi­do, como o Verdadeiro em si e para si.57

N ão há operação do saber que o Conceito não subverta. Totalidade, sem dúvida, m as sem totalização. Unificação, mas de tal m odo que destrua a co-presença das partes. Se a crítica da Finitude é levada a sério, não há

totalidade conceituai propriamente dita. N o máxim o, num a intenção pedagógi­ca, será perm itido apresentar o desenvolvim ento do C onceito com o um

filo sofia de que eles anunciam o fecham ento. N ós, porém , lhes pergun tam os sim p les­m ente: em seu esquem a, que fazem da crítica efetuada por H egel da subjetividade cons­ciente? Por que não se su speitaria de que, lendo a vocês, também Hegel tivesse elaborado um conceito crítico da “represen tação"? N ão basta afirm ar que o hegelianism o pertence ao m esm o reino da "presen ça” , que ele partilhe a m esm a o b sessão da “ identidade” que os clássicos. Pois Hegel, na Logik [Lógica], entendeu criticar radicalm ente as categorias do pen sam ento clássico . Isso deveria servir com o alerta. É nos textos da Logik [Lógica] que é preciso m ostrar por que e ssa crítica foi apenas um a variante e em que Hegel per­m anece prisioneiro do pathos da “represen tação” . N ão querem os dizer m ais nada.

56 Logik [Lógica], V, p .273.57 Ph. Religión [Filosofia da religião], XVI, p .3 5 1.

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quadro acessível à Representação, porém , insistindo na im propriedade des­sa imagem.

Em razão da necessidade subjetiva do desconhecimento e de sua impa­ciência, decerto, pode-se oferecer antecipadamente uma visão de conjunto do todo, por meio de uma divisão adaptada à Reflexão, a qual, à maneira do co­nhecimento finito, parte do Geral e assinala o Particular como um dado e como o que se há de esperar na Ciência. Por aí, todavia, só se proporciona uma imagem representativa.58

Logo, não há totalidade conceituai que resultaria de um a reunificação de elem entos dados. Atentando para isso, evitar-se-á relegar o Conceito do lado da unidade de expressão leibniziana e, mais geralmente, assim ilá-lo aos conjuntos formados por nosso “ conceber” de Entendim ento, ao passo que, a eles, Hegel o opõe expressam ente.

Como Entendimento, a inteligência disjunge umas das outras e separa do objeto as determinações abstratas que estavam imediatamente unidas na sin­gularidade concreta do objeto e prossegue necessariamente, relacionando o objeto com essas determinações universais de pensamento - considerando-o, portanto, como relação, como um encadeamento objetivo, como uma totalida­de. Freqüentemente dá-se o nome de conceber a essa atividade da inteligência, mas tal denominação é indevida. Pois, desse ponto de vista, o objeto ainda é apenas um dado; ele é compreendido como dependendo de outra coisa que o condicione. As circunstâncias que condicionam um fenômeno ainda não têm, nesse caso, o valor de existências independentes. A identidade dos fenômenos relacionados uns aos outros, portanto, ainda só é simplesmente interna e, por isso mesmo, simplesmente exterior. A essa altura, portanto, o Conceito ainda não se mostra em sua forma própria, mas na forma da necessidade conceituai.59

4

A “ totalização” inédita que não é nem recolhim ento de elem entos da­

dos, nem concentração em torno de um princípio dado, H egel a denom ina

58 Logik [Lógica], V, p .351.59 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 467, X, p .362-3; trad. br., II, p .261-2.

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Entwicklung - porém , tom ando o cuidado de afastar as associações tradicio­nais que falseariam o em prego da palavra. O “desenvolvim ento” , que espe­cifica a “atividade” do Conceito, não será nem um desenrolar contínuo nem um

progressus temporal. Exam inem os alternadam ente as duas distinções.Em prim eiro lugar, a im agem da continuidade sensível é inadequada.

Ela, sem dúvida, salvaguarda a idéia de que um princípio único persiste através das diferentes formas, mas apresenta essa persistência com o uma difusão, de m aneira que o m om ento da diferenciação é escam oteado.

Na representação da metamorfose, também se toma como princípio uma única Idéia que subsiste através de todos os diferentes gêneros assim como nos órgãos singulares, de maneira que são apenas transformações formais de um único e mesmo tipo. Fala-se ainda da metamorfose de um inseto, en­quanto casulo, crisálida e borboleta são um só e mesmo indivíduo ... É im­portante manter a identidade, mas também manter o outro lado: a diferença. Ora, esta última é deixada para trás, quando se fala somente de uma mudan­ça quantitativa, e isso é o que torna insuficiente a simples representação da metamorfose.60

Ig u alm en te in sa tis fa tó ria é a im agem de um a sé rie grad uad a e norm atizada por um a lei de desenvolvim ento. A inda aqui, a diversidade surge da repetição; o O utro só é o avatar da difusão do M esm o, e a diferen­ça, longe de estar inscrita na coisa m esm a, só é uma parada - arbitrária e provisória - no curso dessa expansão.

Encontra-se aqui, ademais, a representação das séries que formam as coi­sas naturais, em particular, as coisas viventes. O impulso que nos leva a reco­nhecer uma necessidade num progresso desse tipo nos conduz a encontrar uma lei da série, determinação fundamental que põe a diversidade, nela se repete e produz ao mesmo tempo, com isso, uma diversidade nova. Mas o Conceito não se determina sempre crescendo apenas por meio de uma nova adjunção uniforme, de maneira que ali sempre se observaria a mesma relação entre os membros. E justamente tal representação de uma série de graus foi particularmente nociva ao Conceito como progresso na necessidade de suas formações. Arrumar em séries os planetas, os metais e os corpos químicos em geral, as plantas e os animais e pretender encontrar uma lei dessas séries, aí

60 Ibidem, § 2 4 9 , Z., IX, p.61.

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está um esforço vão, pois a natureza não dispõe suas form ações em série e

m em bros, e o C on ceito só opera distinções segundo a determ inidade qualita­

tiva na m edida em que procede por saltos. O adágio antigo: in natura non datur

saltus não convém absolutam ente à divisão do Conceito; a continuidade do

C on ceito consigo m esm o é de um a natureza inteiram ente outra.61

Parece haver, no entanto, um ponto com um entre a continuidade e o m ovim ento do Conceito. Este não oferece “nenhum a interrupção” .62 Ora, tam bém a continuidade é “ sim ples relação consigo, igual a si m esm a, não interrom pida por nenhum lim ite, nenhum a exclusão . . . ” . Mas então essa não-interrupção é sim plesm ente um equivalente de indiferenciação: “ Ela ainda contém , portanto, a exterioridade da pluralidade, mas, sim ultanea­m ente, com o algo de indiferenciado, de ininterrupto” .63 Isso equivale a di­zer que a continuidade é um a apresentação indiferente da pluralidade, bas­tante próxim a da idéia que, segundo Bergson, a inteligência form a dela; reduzida ao arbitrário na escolha das descontinuidades, ela não é senão, “ diante de qualquer sistem a de decom posição atualm ente dado, a recusa de nosso espírito de tom á-lo com o o único possível” .64 E a tal conjunto de possíveis recortes arbitrários que Hegel, igualm ente, opõe a “ continuidade do C onceito” . A continuidade de Entendim ento, tal com o aplicada à gran­deza extensiva, só tem sentido negativo; nela, “cada um dos m últiplos é o que o outro é; logo, não é a determinidade como tal que forma o descontínuo ou o discreto” .65 Por isso, essa descontinuidade inessencial se apaga na gran­deza intensiva para ali se tornar uma relação sim ples consigo mesma.

A ssim com o 20, com o gran deza extensiva, con tém as vin te unidades

com o discretas, assim tam bém o grau determ in ado contém -nas enquan to

continuidade, que é sim plesm en te essa pluralidade determ inada; é o v ig ési­

m o grau . . .66

O contínuo só é então, de ponta a ponta, a pluralidade indiferente. Não som ente torna possível um a fragm entação qualquer, com o tam bém estaria

61 Ibidem , p .62.62 Ibidem , § 164, VIII, p .361; trad. br., I, p .299.63 Logik [Lógica], IV, p .222.64 Bergson, Evolution Créatrice, p .626.65 Logik [Lógica], IV, p .263.66 Ibidem , IV, p.266.

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esvaziado de sentido sem essa descontinuidade em filigrana; não som ente é o principio de um a infinidade de partim entos, com o tam bém tal proprieda­de pertence à sua essên cia e não se pode pensá-lo sem nele im aginar partim ento. Im putar esse m odo de ser ao Conceito seria, portanto, confun­dir a diferenciação e a divisibilidade indiferente, a articulação qualitativa e o rearranjo de um todo real, por m eio de um a nova com posição real das par­tes. Recairíamos no esquem a que a Entwicklung tem por função afastar.

D e m aneira ainda m ais precisa, nele recairíamos se, em segundo lugar, assim ilássem os a Entwicklung a um progressus. A diferenciação buscada cede então lugar um a acum ulação por adjunção (Zusatz) de partes, de m odo que as sucessivas instâncias aparecem com o de direito independentes entre si. A epigênese parece ser um dos exem plos desse desenrolar retalhado.

Se quisermos comparar os graus da natureza entre si, é legítimo obser­var que esse animal tem um ventrículo, aquele outro, dois; mas não se deve falar de peças adicionais, como se isso houvesse efetivamente acontecido.67

Para que forjar a im agem de um a lenta produção das espécies, um as a partir das outras? Todo o sistem a que faz um abatim ento da diferenciação no curso do tem po a reduz a ser apenas um a seqüência de alterações con­tingentes: “É inteiram ente vão representarem -se os germ es com o evoluin­do pouco a pouco no tempo; a diferença tem poral não tem absolutam ente

nenhum interesse para o pensam ento” .68

67 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 249, Z., IX, p .60.68 Ibidem , IX, p .59 . V isto que a diferenciação é su bstitu ída pela adjunção dos su cessivos, o

esquem a evolutivo é o inverso da com preensão conceituai: é im possível com preender com o “o Verdadeiro é o que vem por últim o” . Se Hegel adm ite a legitim idade de um a tabela dos gêneros e das espécies que com eça pelo grau m ais abstrato (os anim ais em que os sistem as da reprodução, da sensibilidade e da irritabilidade ainda são indistin­to s), é som ente à m edida que não se perde de v ista o organ ism o m ais desenvolvido com o “a m edida ou o anim al-originário em relação aos m enos desenvolvidos" (IX, p .681). A lém disso , o esquem a evolucionista deixa aparecer as in stâncias sucessivas com o, de direito, independentes entre si: “A natureza inorgânica parece acabada nela m esm a; a ela, a s p lantas, os anim ais, os hom ens só se acrescentam do exterior; a terra poderia su b sistir sem vegetação, o reino das p lan tas sem os an im ais, o reino anim al sem os hom ens; assim , e sse s lados parecem independentes para s i ... Tem -se, portanto , a repre­sentação de que a natureza é em si u m a força produtora que cria cegam ente e de onde brota a vegetação; desta, sai em segu ida o anim al e, enfim , o hom em com su a consciên­cia pen san te” (Preuves, trad. fr., p .232-3; XVI, p .528-9). Liberdade para im aginar, a partir de então, que as espécies viáveis resu ltam de tentativas e erros - que a concordância do orgânico e do inorgânico é contingente: "N ão é necessário solicitar um a unidade; que

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Toda transposição quantitativa do conceito de Entwicklung trai, portan­to, a sua função. Da “evolução” entendida com o desdobram ento efetivo, no sentido corrente (portanto “finito”) da palavra, um único aspecto en­contra graça aos olhos de Hegel, um único traço de sem elhança que ele concede entre ela e a Entwicklung: aqui e acolá não surge nenhum conteúdo novo propriam ente dito: es kommt kein neuer Inhalt heraus. M as o Entendi­m ento, operando um a vez m ais de m aneira unilateral, com preende esse m ovim ento sem renovação com o um m ovim ento sem diferenças; ele então im agina a elaboração da forma com o a educação de um conteúdo inicial já existente, a exem plo da doutrina da colônia dos germes. Ora, tal doutrina fornece certam ente um m odelo do “perm anecer junto a si” (Bleiben bei sich

selbst), visto que o processo por ela descrito “não traz nada de novo, mas não traz nada m ais que um a m udança de form a” .69 N o início, todavia, põe- se com o já dado “o que só está presente no m odo da idealidade”, com o se o abstrato inicial devesse conter um m odelo reduzido do resultado e o ato devesse ser apenas o desdobram ento da potência. U m a vez mais, o “realis­m o” do m odelo trai, portanto, a originalidade do processo conceituai.

Este é m ais bem com preendido se nos reportarm os ao com entário fei­to pela Geschichte der Philosophie [História da filosofia] (XVIII, p.376-7), acerca da distinção aristotélica entre os dois sentidos principais da palavra “p o­tência” . A expressão δύναμις, com efeito, não é sim ples. Num caso, ela de­signa um estado incoativo pelo desenvolvim ento sobre o qual - e sob o efeito de um a alteração (o ensinam ento) mais tarde, será possível exer­cer um poder: nesse sentido, a criancinha é, em potência, cientista ou es­trategista.70 No outro caso, a “potência” designa a detenção de um poder que não se exerce no instante, mas que se é capaz de exercer, salvo obstáculos, em qualquer m om ento: nesse sentido, o hom em que sabe é cientista em potência, sem que, desta vez, a passagem ao ato im plique um a alteração no sentido próprio. Não m ais que quando o sujeito pensante se põe a pensar ou o arquiteto a construir. Se no entanto, nesse últim o caso, se continua a falar a linguagem enganadora da potencialidade nua e da passividade, é que nos faltam as palavras (a diferença é ανώνυμος), e forçoso é recorrer às palavras πάσχειν e άλλοίωσις, com o risco de tom á-las em sentido próprio. Por isso, se ainda parecem os falar de "passividade” a propósito dessa se­

h aja finalidade, isso m esm o é tido com o contingente” . Textos a lançar no dossiê do de­m asiado fam oso “ evolucionism o hegeliano” .

69 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 161, Z., VIII, p .355-6; trad. br., I, p .294.70 A ristóteles, D e A nim a, I, 417 b 31.

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gunda ocorrência da palavra “potência” , tal passividade não está mais liga­da à m obilidade nem à materialidade. “Isso não im pede que seja incorreto dizer, sem m aiores precisões, que quem pensa, quando pensa, sofre uma m udança.” 71 Em suma, a passagem da potência ao ato nem sempre signifi­ca que uma nova determ inação tom a o lugar de outra; designa tam bém a instauração de uma coisa em seu uso ou em seu exercício. De um lado, a im agem da passagem se tornou, portanto, incorreta; há som ente “ salva­guarda do ente em potência pelo ente em enteléquia” .72 Mas, de outro, essa contínua presença de si a si, ao longo da transform ação aparente, não é o equivalente de um desdobram ento puro e simples do Mesmo: se ο νους é “Todo em si” , ele não é “ em si m esm o essa totalidade” , à m aneira pela qual um ovo, no pré-form acionism o, continha a totalidade dos germes. Ο νους se explicita, é verdade, sem se tornar outro, mas essa explicitação não é a expansão de um potencial dado no início. São esses dois aspectos que con­vergem na Entwicklung e asseguram a originalidade da noção: ao se tornar νοητόν, ο νους só faz consum ar o seu ser; porém essa consum ação não é absolutam ente descritível com o um m ovim ento repetitivo.

Basta, portanto, prestar atenção à m editação acerca de A ristóteles por Hegel, para perceber a precariedade de todas as interpretações genéticas do processo conceituai. Todas, em suma, com eçam traduzindo a atividade do C on ceito (Tätigkeit) por W irksamkeit, eficiên cia progressiva. Ora, a Wirklichkeit não é a Wirksamkeit: nem toda consum ação significa o percurso gradual de um cam inho. Reportem o-nos, um a vez m ais, a um conceito aristotélico fam iliar a Hegel, a energeia aristotélica. Com eter-se-ia o m esm o erro, assim ilando ένεργεια à ένέργειαέ κατά κίνησιν. Sem dúvida, A ristóte­les reconhece que o conceito provém “ sobretudo dos m ovim entos” e só é utilizado por extensão “para as outras coisas” .73 Mas, por causa dessa ex­tensão, ele não é mais entendido exclusivam ente em relação a um a δύναμις física - e A ristóteles, em Θ 8, tenciona justam ente extrair a ενέργεια da δύναμις em relação à qual se tem o costum e de pensar logo de saída. Não se tem m ais o direito, então, de imaginar a operação com o a passagem de um term o ao seu contrário. A ενέργεια que se efetua “ segundo o m ovim ento” torna-se então, em relação a essa ενέργεια no sentido lato, um a rubrica que corre o risco de mascarar a sua envergadura.

71 Ibidem , 417 b 8.72 Ibidem , 417 b 3.73 A ristóteles, M étaphysique [M etafísica], θ 1047 a 30.

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O m ovim ento era o ato do inacabado; bem diferente é o ato no sentido

absoluto, o ato daquilo que é acabado.74

A ristóteles dem onstra essa diferença quando descreve as operações em que o presente não apaga o “ter-sido” (a visão), a tal ponto que é im possível distinguir um e outro, com o se pode fazê-lo num percurso. Acerca disso, só se pode rem eter ao com entário dado por Brõcker para essa página de 0 6:

É certam ente possível que, na visão, se conheça progressivam ente algo;

porém , quando aí se chegou, o ver está longe de se encerrar, pois é nesse m o ­

m ento que ele é o ver propriam ente dito. O ver persiste no ver aquilo que ele

já viu: ópq a p a x a i écópaxe. M as não se trata de urna parada num cam inho

rum o a outra coisa. O ver não está a caminho; não há nada fora dele a que ele

ainda deveria chegar.75

Essas linhas são, ao m esm o tem po, um a advertência contra um a inter­pretação incorreta da palavra Wirklichkeit. Enquanto nos obstinarm os a pen­sar a Wirklichkeit ao m odo de um encam inham ento, um a progressão, a dife­renciação do Mesmo tom a infalivelm ente o andam ento de um a pré-formação, pois é im possível, então, entrever uma distinção entre um m ovim ento que nada traz de novo e o desdobram ento de um dado original já presente de m aneira integral. O u ainda: se a diferenciação do Conceito não consiste em um progresso, só se pode pensá-la, ao que parece, à m aneira de um a passa­gem sem im previstos do latente à plena luz do dia. Aventura de um pro­gresso ou m onotonia de um a pré-formação. Ora, o Conceito se acha a igual distância dessas duas imagens: se sobretudo sua diferenciação não se ope­ra, é verdade, por adjunções contingentes, tam pouco ela estava consum ada desde a origem e na origem. Por isso o “ evolucionism o” e o “necessitarism o” que autores acreditaram revelar em Hegel nos parecem dois contra-sensos de igual gravidade. O rando M arcuse vê no hegelianism o um “ esquem a de progresso” ou “ um elem ento de prática histórica” que perm aneceria vivaz por m uito tempo, mas que pouco a pouco paralisaria o ascenso das “ con­cepções ontológicas do idealism o absoluto”,76 acreditamos que no m ínim o ele reconstrói H egel com o auxílio de duas determ inações entre as quais o

74 A ristó teles , De Anima, I, 431 a 6-7.75 W. Brõcker, Aristóteles, p .84-5.76 Cf. M arcuse, Raison et Révolution, p .206.

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Conceito hegeliano deve abrir caminho. De um lado, a idéia de progresso indefinido é incom patível com a exigência obsessiva do Bei-sich-selbst-bleiben

ou com a im agem de um “recolhim ento unificador” do com eço e do fim; e isso a ponto de Hegel chegar a abandonar, desse ponto de vista, sua com ­paração fam iliar entre o Conceito e a Vida. Acerca desse ponto, a Vida não vale mais nada; com efeito, m esm o que a sem ente e o fruto, o genitor e o engendrado sejam de m esm a natureza, eles não deixam de ser exterior­m ente outros e, portanto, deixam persistir a ilusão de um vir-a-ser-outro. O resultado não opera expressam ente um retorno ao começo.

O fruto, a semente não são para o primeiro germe; são somente para nós.Mas, no Espírito, ambos não têm somente em si a mesma natureza: eles sãoser-um-para-outro e, por isso, justamente, ser-para-si.77

Mas, por outro lado, a im agem “pré-form acionista” tam bém é pouco pertinente para ilustrar o trabalho do Begreifen. O Conceito integra o que, incessantem ente, parece ser seu O utro. D esde então, o que há de com um entre esse processo e um a pré-formação, isto é, o desenvolvim ento já asse­gurado de um a identidade-consigo já definida?

Contínuo retorno em si e dissipação da aparência do O utro, contínua saída de si e evocação do Outro: o Conceito, diferenciação sem renovação, m as diferenciação totalizadora, não é - para nós, na brum a da Finitude - senão a oscilação entre esses dois pólos. Por isso é difícil descrever seu funcionam ento de outro m odo que não seja pela alternância de dois m ode­los com p lem en tares. Se quiserem acentuar o segundo aspecto: são a espiritualidade (Geistigkeit) e o devir da consciência que um a vez mais for­necerão a m elhor ilum inação, m ovim entos exem plares de um a extirpação do entorpecim ento no im ediato. Enquanto a calma produção orgânica se consum a “ sem oposições, sem im pedim ento” , o Espírito, ao contrário, é som ente o com bate contra sua naturalidade e vitória sobre ela.78 N esse sen­tido, o devir da consciência ou das formas espirituais é m elhor paradigm a do Conceito que o “ devir vital im ediato” , visto que o retorno-a-si, a junção de si consigo assum em m ui expressamente o sentido de um reconhecim ento enriquecedor, e não um a recaída em elem ento prim itivo. Mas, pela m esm a razão, o m om ento da identidade-consigo do Conceito passa forçosam ente

77 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVII, p .51.78 Ph. Gesch. [F ilosofia da h istória], XI, p .90; trad. fr., p.51.

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ao segundo plano nessa dram atização do processo conceituai. Não se leva­rá então a comparação adiante e se evitará distinguir a atividade própria ao Espírito da atividade do Conceito propriam ente dita. Quando Hegel evoca aquela para opô-la à vida natural imediata, é inevitavelm ente a constitui­ção da subjetividade fenom enológica que ele descreve. Ora, será esse um bom paradigm a do Conceito?

A atividade do Espírito consiste justam ente em rom per com a im plicação

na sim ples vida natural, em elevar-se acim a dela, em captar-se em sua inde­

pendência, em submeter o mundo a seu pensam ento e em criá-lo a partir do

C o n ceito .79

Subjetividade conquistadora e Grandes D escobertas são im agens co ­m oventes, mas que, no caso, correm o risco de rapidamente falsear o que é preciso entender por conceitualização.

O elã do hom em o leva a conhecer o m undo, a se apropriar dele, subm etê-

lo e, finalm ente, a realidade do m undo deve ser, por assim dizer, triturada,

isto é, idealizada. Mas, ao mesmo tempo, é preciso observar bem que não é a ativi­

dade subjetiva da consciência de si que introduz a unidade absoluta na m ulti­

plicidade. Essa identidade é antes o A bsolu to , o próprio Verdadeiro.80

Para não oferecerm os do Conceito um a figuração voluntarista ou, se quiserem , exageradam ente progressista, eis-nos, portanto, relançados na direção do m odelo orgânico que, há pouco, enquanto devir, nos parecera ina­dequado. A Vida, agora, volta a ser a m elhor aproximação do Conceito - o consum o da natureza pelo vivente, um a operação cuja pertinência predo­m ina sobre sua transform ação pelo trabalho consciente. A gênese orgânica era sem dúvida um devir linear, portanto m enos expressivo do Conceito que a história “ espiritual” ; a cada etapa, esta m ostrava m elhor que o retor­no a si é tam bém transform ação de si. Porém, caso seguirm os por demais nessa direção, correm os o risco de esquecer que há, não obstante, no cora­ção da inteligibilidade, a persistência de um a “presença" tal, que rupturas, traum atism os, experiências da vida (para prolongar a comparação) não p o­dem senão porm enorizar sem nunca a lançar à som bra - um a identidade

79 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 392, X, p .64; trad, br., III, p .51.80 Ibidem , § 42, VIII, p .129-30; trad, br., I, p .l 12.

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consigo, talvez, m as sem contornos, sem fecham ento efêmero, incom pará­vel com a frágil identidade dos convidados do salão de Guerm antes. E des­se aspecto do Conceito que a relação do vivente com o seu m eio será a m elhor imagem.

Decerto, o Conceito perm anece cego na natureza orgânica, mas a abun­dância dos exem plos biológicos na Lógica do Conceito atesta que, no estudo lógico, o estilo de devir “ espiritual” não pode ser o único m odelo satisfatório. Afinal, “ a form a lógica do Conceito é independente de sua form a não-espi- ritual, tanto quanto de sua form a espiritual”,81 e não é necessário que a figura concreta mais representativa seja constantem ente a m ais elevada. Se nesse caso o vivente é exemplar, é que ele não se apropria da natureza por uma Produktion - que “com o tal seria a passagem a um outro” - , m as por um a Reproduktion, na qual “o vivente se põe para si com o idêntico consi­go” .82 A tom ada de posse prom etéica, opõe-se então a conciliação do vivente com o seu m eio - ao trabalho, o nisus formativus que é sem dúvida “ uma auto-exteriorização, mas com o impregnação do m undo exterior pela forma do organism o” .83 Cessa aí “o com portam ento hostil do desejo em relação ao m undo exterior” , que era específico do com portam ento técnico. O processo vital revela melhor, portanto, ao m esm o tem po que a negatividade da natu­reza inorgânica, a im anência do Si ao Outro, a conivência do O utro e do Si que a violência técnica dissim ulava.84

Esse vaivém de um m odelo a outro perm ite penetrar m elhor na natu­reza do Conceito? Não exatam ente. A instrução que se obtém é negativa: aprende-se a não m edir o C onceito com figuras que nunca são mais que aproxim ações. Mas nem por isso tal instrução negativa é desprovida de va­lor. Vale a pena, com efeito, renunciar a todas as apresentações que Hegel teria julgado unilaterais (“ biologism o” , “historicism o” , “ontologia idealis­ta” ...) e com as quais se quis investir o Sistema. N enhum desses tem as é pertinente; cada um deles põe em relevo um dos aspectos do C onceito ape­nas para rejeitar os outros à sombra. N o entanto, pelo cuidado de seguir o m ovim ento conceituai em todos os seus m eandros, não se corre o risco de

81 Logik [Lógica], IV, p .18.82 Ibidem , V, p .259.83 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 365, Z., I, IX, p .661.84 "En quan to o su jeito , determ inado em sua carência, se relaciona com o exterior e, devido

a e sse fato, é ele próprio exterior ou utensílio, ele exerce um a violência sobre o objeto. Seu caráter particular, su a fm itude em geral, incide no fenôm eno m ais determ inado d es­sa relação” (Logik [Lógica], V, p .258 ).

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ceder a outra tentação de facilidade? Fazer do Conceito um a não-figura ina­cessível a toda apresentação não é reabilitar aquilo de que H egel m ais ti­nha horror: o inefável? Racionalism o sem rosto, vá lá. Mas caso insistísse­m os demais, bem poderíam os deixar o Sistem a se abismar na noite m ística que ele pretendia dissipar. É o perigo de um em preendim ento que tem por eixo a crítica das leituras “finitas” e suas fabulações. H egel não é nem isto nem aquilo, não está nem deste lado nem do outro: não há intérprete de que ele não desm onte os ardis, não há encontro a que ele não se furte. Mas afinal que é dessa racionalidade decepcionante? N ão é sua inanidade que im pede de a ela nos reunirm os em algum lugar?

5

M as essas objeções ainda bem poderiam ser as da im paciência e su ­bentender um a exigência que o Conceito, justam en te, deve tornar vã. E xpliquem o-nos m elhor com um exem plo. E desconcertante ver com que desenvoltura Hegel tom a o seu partido, o da inadequação da “N atureza” ou do “real” ao Conceito, com que facilidade ele reconhece a lim itação do Conceito com o princípio de inteligibilidade.

Essa im potência da natureza põe lim ites à filosofia e não convém de m a­

neira algum a exigir do C on ceito que ele deva conceber tais contingências e -

com o foi dito - deduzi-las, construí-las - a tarefa parecendo tanto m ais fácil

quanto se trata de um a form a m ais insignificante e m ais isolada.85

H egel zom ba aqui da suficiência Natur-philosophie; mas bem parece re­conhecer, ao m esm o tem po, “ a im potência do C on ceito” . E a expressão “ im potência da N atureza” torna-se então provocadora: a N atureza é culpa­da por se furtar ao Conceito? E com o falar da m á vontade do paciente para desculpar a ignorância do clínico. Estejam os atentos, todavia, ao que supõe essa crítica de bom senso, desenvolta por demais: H egel pretendera dizer que a não-realização do Conceito na N atureza é um fracasso de fato, mas, afinal, de im portância medíocre; se o Conceito se perde na Natureza, é que ela não é digna de o acolher. A o fazê-lo, tom a-se o Conceito com o um prin­cípio real que poderia (de direito) informar um a N atureza não m enos real;

85 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 250, IX, p .63.

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entre Conceito e Natureza, pressupõe-se, portanto, uma diferença indife­rente, uma relação de exterioridade. Ora, a N atureza não é algo de diferente, ela é um dos nom es que tom am o Conceito no m om ento de sua diferencia­ção e antes que tal diferenciação tenha sido reconhecida com o a partilha que dá ao Conceito toda a sua consistência. A liberdade anárquica das for­mas, que parece pôr em evidência a precariedade do Conceito, é, portanto, perm itida por ele - e esse m om ento de retirada não é senão um episódio de seu reconhecim ento.

A N atureza, visto que é o ser-fora-de-si do Conceito, tem toda liberdade

para se difundir nessa diversidade, assim com o o Espírito, em bora possua o

conceito na form a do Conceito, se deixa levar, tam bém ele, na Representação

e vagueia na infinita m ultiplicidade desta últim a. N ão se devem encarecer os

inum eráveis gêneros e espécies da N atureza m ais que os caprichos do Espíri­

to em suas representações. [N atureza e Espírito] m ostram bem, por toda par­

te, traços e pressentim entos do Conceito, m as não oferecem um reflexo fiel,

pois são o lado de seu livre ser-fora-de-si. Ele é a potência absoluta, ju stam en ­

te porque pode deixar sua livre diferença tom ar a form a da diversidade inde­

pendente, da necessidade exterior, da contingência, do arbítrio, da opinião -

tudo isso, aliás, não devendo ser tom ado por nada m ais que o lado abstrato da

nadidade.86

Basta ver nesse texto uma sim ples variação sobre o adágio “ a exceção confirm a a regra” , para daí concluir por uma m anifestação bastante farsesca da hybris hegeliana: a ausência do Conceito na N atureza testem unharia a favor da onipotência do primeiro; e seria o efeito de seu bel-prazer que houvesse m ais coisas entre o céu e a terra do que em toda a filosofia... M as o C onceito nada m ais é que a diferenciação que torna possível a re­presentação da diferença por m eio da qual nós pensam os - de saída e inge­nuam ente - a relação Conceito/N atureza. Imaginar o Conceito com o um a regra de construção, ou tom ar ao pé da letra a comparação com um m o ­narca absoluto e bonachão, é reificar o Conceito, isto é, pensá-lo com o um dos produtos de sua operação. Com preende-se com o um term o da dife­rença o que é a diferença se consumando; com o um dos pólos do afasta­m ento, o próprio afastam ento. Adm irar que o Conceito hegeliano não con­siga informar integralmente um elem ento diferente é, portanto, desconhecer

86 Logik [Lógica], V, p .45-6.

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que, justam ente nesse m om ento, o Conceito é apenas a elaboração do sen­tido da diferença - que seu processo não consiste em anexar “ coisas” (é nesse caso, mas som ente nesse caso, que estaria no direito de falar de sua “ im potência”), consiste, porém, em produzir significações por m eio das quais nos representarem os em seguida todas as coisas, até m esm o de m a­neira despropositada, o objeto “C onceito” e os objetos “N atureza” , “ Espí­rito” , que lhe são então justapostos. Evitem os ao contrário essa recaída na Representação e deixarem os de exigir que o conceito realize proezas. Só há “ im potência” do Conceito para o pensam ento m undano. Este é que es­pera, com ingênua incredulidade, que aquele se desdobre m iraculosam ente sob a m edida de sua representação - que lhe explique exaustivam ente a exterioridade, e não que lhe ensine o sentido dessa palavra bem conheci­da. E tam bém o pensam ento que assinala à exposição conceituai a tarefa de descrever ou analisar novam ente o mesmo dado que ele há pouco perce­bia. E, conform e a “ explicação” for tom ada por satisfatória ou não, veros­sím il ou não, decidirá então sobre o valor do Sistem a e se estim ará em condições de responder à pergunta: “você é hegeliano?” . Entendam os: você é hegeliano, segundo os conhecim entos que você possui em física ou em biologia, segundo a experiência que tem da história ou do Estado? Q ues­tão, pois, derrisória. Com efeito, quando H egel tenciona captar novam en­te num a figura concreta, fam iliar à Representação (a história, a vida, o Es­pírito, a eletricidade...), o que ele cham a “o desenvolvim ento do C on ceito” , não pretende oferecer a descrição m ais aprofundada de um conteúdo já localizado, o extrato mais m inucioso de um a região ainda mal explorada. A exposição conceituai não é exposição da mesma coisa (que a coisa repre­sentada), pela sim ples razão de que “a m esm a coisa” era um a categoria da Finitude.

A filosofia tem certam ente o direito de escolher na língua da vida corren­

te, feita para o m undo das representações, expressões que parecem se aproxi­

m ar das determ inações do Conceito. Mas não se pode tratar de m ostrar que, a

um a palavra da vida corrente, esteja ligado, na vida corrente, o m esm o concei­

to para a designação do qual ele é em pregado em filosofia, pois a vida corrente

não tem conceitos, m as representações, e cabe à própria filosofia conhecer o

conceito daquilo que, noutro lugar, é sim ples representação.87

87 Ibidem , V, p. 177.

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É um erro portanto querer talhar tanto quanto possível o Conceito segundo a m edida da “realidade” que ele critica (e só faz criticar), ou lhe im por forçosam ente os contornos de um a representação. Na denúncia des­se erro, H egel vai m uito longe. Chega a fazer passar por fútil a seriedade dos hom ens maduros. O adulto é tom ado pelas tarefas da vida cotidiana, m ais interessado pelas representações que pelas categorias; a essa serieda­de, preferir-se-á portanto, desta feita, a disponibilidade que perm ite, aos vinte anos, interrogar-se sobre as significações nelas m esm as.88 O m oço ainda não está tentado a subm eter as categorias à sua aplicação; terá por­tanto mais oportunidades de evitar os contra-sensos im aginativos. E o h o ­m em responsável, ao contrário, que, pouco cuidadoso em distinguir Sein e Dasein, replicará ao dialético que, se “ ser” e “nada” são a m esm a coisa, pouco im porta então que seu ordenado seja ou não am putado em 100 táleres. E tam bém ele quem , ao ler que “não há O utro no C onceito”, só poderá com ­preender essa frase im aginando um país sem fronteiras. Com o poderia ele figurar-se que, “no C onceito” , devem os deixar de pensar “O utro” com o si­nônim o de “exterioridade” ? Com o perceberia que, doravante, é nossa com ­preensão espontaneam ente representativa das significações que estam os obrigados a revisar? Se não há O utro do Espírito, não é que o Espírito seja um abrangente m aciço, um princípio decalcado dos princípios dos fisiólogos da Jônia: isso quer dizer que, doravante, é preciso entender por tal palavra a unificação entre a representação “Espírito” (tradicionalm ente oposta à “ N atureza”) e a não-oposição desses dois elem entos.

Jogos de linguagem com objetos filosóficos? Mas não há objetos filosófi­

cos - nada mais que preconceitos secretados pela m aneira de falar dos filó­sofos. A “ mais elevada dialética” se joga, portanto, em m eio a significações transfiguradas: “ as coisas” ficaram bem longe, atrás de si. E o perigo das im agens que se im põem ao espírito do leitor é que elas o reconduzem , de maneira quase infalível, a essas “ coisas” mais familiares e mais repousantes.

88 “Tem-se, adem ais, o costum e de deixar e ssa lógica ao estudo da juventude, porque esta ainda não e stá tom ada pelos in teresses da vida concreta e vive no ócio em relação a e sta ú ltim a: em um fim subjetivo, ela só se ocupa em adquirir os m eios e a p ossib ili­dade de agir sobre ob jetos d esse s in teresses. A ciência lógica encontra-se entre e sse s m eios; contrariam ente à opinião de A ristóteles, entregam -se a ela com o a um trabalho prévio cujo lugar é a escola, à qual se seguem a seriedade da vida e a atividade que se refere aos verdadeiros fins. N a vida, certam ente se faz u so das categorias, porém , não lhes é feita a honra de considerá-las para si. N a atividade rotineira do conteúdo esp i­ritual vivente, só são em pregadas para que nasçam e circulem as represen tações que com ela se relacionam " (Logik [Lógica], IV, p .24-5).

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N ão se ilustra, sem torná-lo ao m esm o tem po fantástico, um texto cuja fun­ção é m inar nossa pré-com preensão imaginativa. “C oncretizar”, no caso, já é acreditar que “ as coisas” estão em outro lugar e portanto se pode, por m eio de interm itências, reencontrá-las, tanto para se descansar de um tex­to ingrato quanto para lhe dar o seu pleno sentido. Zelo pedagógico desas­troso, pois a língua que nos falam está destinada justam ente a dissolver aquele “concreto” que, para m elhor compreendê-la, invocam os de m aneira derrisória. N esse ponto, “ concretizar” é o bastante para atestar que o pro­jeto do discurso é desconhecido. Entretanto, com o o próprio autor poderia desconfiar perm anentem ente dessa tentação? A ssim , quando Hegel com ­para o Conceito a um movimento incessante, é para desviar o interesse do leitor em fazer disso um a “coisa” representada perdida entre outras.89 Mas a comparação é perigosa: se tom ada dem asiadam ente ao pé da letra, caire­m os na arm adilha do “m obilism o hegeliano” para em seguida nos espan­tarmos com o fato de que o Sistem a exclui o progresso ao infinito que aquele “m obilism o” , justam ente, deveria implicar.90 Assim , à força de traduzir em representações os m om entos conceituais, põe-se o Sistem a em perspectiva com “ as coisas” . Ele é encarregado de dar conta das m esm as positividades que se em penha em dissolver. D ele se espera que se ajuste a nossas “re­giões de realidade” , um a por uma, ao passo que faz que a perm anência delas apareça com o um a miragem. Mas nunca se pensou nisso e rapida­m ente se cansa de ser dialético (não m aterialista): esse enrolam ento do discurso que tão pouco nos ensina sobre o “real” , que m ais seria do que um divertim ento? E têm razão, sem dúvida, se esperam que a dialética nos instrua com o nos instrui um a ciência humana, se, platônico inveterado ou m arxista ingênuo, persistim os em fazer dela o m ais elevado dos saberes positivos. E verdade que o Conceito fracassa ao descrever ou explicar inte-

89 Cf. carta a D uboc, 3 0 /7 /1 8 2 2 (Corr. [C orrespondência], trad. fr., II, p .2 8 3 ss .) . Se eu de­finir a Idéia com o um devir, diz Hegel, é para indicar que "e la é livre C onceito [que] não encontra m ais oposições não resolvidas à su a objetivação” . "P o is o Verdadeiro não é um a co isa som ente em repouso, existente, m as um a co isa vivente, que se m ove por si m esm a . . ." .

90 Cf. carta de W eisse a Hegel, 1 1 /7 /1 8 2 9 (Corr. [C orrespondência], trad. fr., III, p .224-5): " . . . e s sa verdade filosófica da necessidade de um p rogresso dialético ilim itado, do cres­cim ento e do aprofundam ento de tudo o que existe, m anifesta-se a um a sã consciência, que tom a im ediatam ente conhecim ento real. Este, no senhor, se acha em patente con­tradição com seus ensinam entos sistem áticos, o s qu ais não só não encorajam tal p ro ­gre sso do espírito hum ano, m as chegam a excluí-lo form alm ente” . Infelizm ente, não há resp osta de Hegel a tal “ sã consciência” .

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gralmente o m undo, quanto mais a absorvê-lo: disso, “ a im potência da N a­tu reza” , a condição irredutivelm en te fin ita da consciência são m arcas irrecusáveis. Mas trata-se de saber se a função do Conceito é a de dom ina­ção do m undo ou a de transform ação do sentido - e qual é a questão que ele autoriza: a questão apressada (“Q ue interpretação - dialética - propõe você para esse acontecim ento?’’) ou a questão paciente (“ Q ue linguagem você ainda está falando, você que pretende com preender esse acontecim en­to?” ). A inevitável decepção que o Sistem a provoca, m ais cedo ou mais tarde, bem poderia provir do apego à linguagem finita e, por conseguinte, da im potência em pensar o Sistem a senão com o um código que deveria tornar legíveis a todas as cifras. A o deixar - representativam ente - a “reali­dade” fora do discurso, em prestam a este últim o um a ambição sum aria­m ente titânica. Com preendem o “ D eus” hegeliano, por exem plo, com o se sua onipotência devesse ultrapassar a do Deus da tradição, ao passo que o primeiro nos diz som ente em que contexto sempre pensáram os o segundo; com preendem o Conceito como se devesse irradiar uma inteligibilidade sem partilha e sem obscuridade, ao passo que ele nos diz inicialm ente a inabili­dade com a qual sempre foi expressa a exigência de inteligibilidade, a pre­cariedade das oposições que ela supõe, a frivolidade dos enigm as com os quais se desafiará o Conceito, por sua vez, para que os resolva.

Em suma, deixam necessariam ente escapar o Conceito hegeliano, se o im aginam com o um a martingale' para jogadores supersticiosos, com o uma garantia de ter resposta para tudo. E verdade, todavia, que essa interpreta­ção é tão im possível de erradicar quanto a opção filosófica - perfeitam ente legítim a - a que está vinculada. Certos espíritos, com efeito, sempre postu­larão que a única tarefa filosófica consiste em responder a questões ou em resolver problemas; nem sequer concebem que um filósofo possa tam bém pensar em transform ar ou fazer variar ou anular o sentido dessas questões e desses problem as. Ora, basta reler a Régle XII [Regra XII] de Descartes, para m edir quão depressa essa certeza desem boca no sectarism o: com o su ­põem que todos, desde sempre, só puderam se propor a resolver “ques­tões” , são naturalm ente conduzidos a lançar as “respostas” insatisfatórias (as de Aristóteles) na conta de uma pretensiosa impostura; os que não ousas­sem confessar sua ignorância iriam disfarçá-la com palavras pom posas (“o m ovim ento é o ato de um ser em potência enquanto ele está potência” ).

* S istem a de jo go que, fundado sobre o cálculo de probabilidades, pretende assegu rar be­nefício certo em jo g o s de azar (N.T.).

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Ocorre que a historia da filosofia depositou dem asiada confiança nesse tem a discursivo cartesiano, desde então tornado preconceito m etodológico. E é fácil com preender por quê: é m ais côm odo apresentar os filósofos, com o se todos tivessem aceitado se subm eter à m esm a bateria de testes - e ainda mais côm odo poder se perguntar logo em seguida: “Q uanto vale sua res­posta à questão?” . Sabe-se que Hegel nunca foi perdoado por esses juizes apressados - brilhante revanche do Descartes das Regulae sobre o m ais au­dacioso dos “dialéticos” . Mas, enfim, por que se deveria sem pre pensar e por que se pensaria bem som ente sob a solicitação de “questões” ? “A rqu e­ológicam ente” falando, a resposta se acha escondida no texto mais enigm á­tico de Descartes. Porém, longe de se preocuparem com isso, preferem pen­sar que o Conceito hegeliano só pôde ser, por sua vez, um Grande Resolvedor, um com putador m iraculoso, no espírito do filósofo - que figure portanto em m eio a essas estranhas m áquinas de linguagem fabricadas por universi­tários, na Alem anha subdesenvolvida dos anos 1800, afastado das “ques­tões” e das “respostas” claras e distintas elaboradas por cientistas contem ­porâneos. Mas, antes de prolongar a crítica cartesiana de A ristóteles e denunciar o Conceito com o uma instância sim plesm ente m istificadora, va­leria a pena devolvê-la à sua justa dim ensão discursiva e, a partir de então, criticar o discurso hegeliano com o um certo m odelo de organização do sen­tido, mas não, ao mesmo tempo, com o uma ideologia desonesta e tagarela. E pouco rigoroso jogar nos dois campos - m esm o que, no segundo, seja pos­sível concluir uma desenvolta aliança com os saberes positivos. Não se tem o direito de confundir ou deixar que se confunda a crítica do hegelianism o com o discurso e a crítica (tradicional) do hegelianism o com o nicho de ex­plicações m olierescas. A Hegel, sem dúvida, tal assim ilação teria parecido tão abusiva quanto deve parecer, a Althusser, pouco pertinente a m aldosa solicitação: “Calcule, portanto, a m ais-valia!” . N ão se julga a validade de um discurso pelo núm ero de questões “positivas” às quais ele perm ite ou não responder. Por isso, se nos abstiverm os de situar o Conceito hegeliano no nível das questões positivas e “finitas” que ele teria, ao que parece, por m issão resolver e se nos abstiverm os de lhe conferir uma nota pelas respos­tas que deveria estar em condições de oferecer, com eçarem os a nos pergun­tar se o hegelianism o deve ser considerado com o um conto de fadas ou com o um a sintaxe inédita.

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VIII

LÓGICA E FINITUDE

D issolução sistem ática das contradições com as quais se choca o en­tendim ento filosofante: assim é o C onceito .1 Mas essa definição não basta­ría para fazer com preender por que tal polêm ica é, ao mesmo tempo, o siste­ma da verdade. O enigm a perm aneceria intacto se não fosse entrevisto queo hegelianism o é bem m ais que urna crítica dogm ática dos dogmas: urna retom ada da linguagem tradicional da filosofia. Operação que já não tem mais nada a ver com um a polêm ica, isto é, com urna crítica “que se conten­ta em fazer valer um ponto de vista unilateral contra outros pontos de vista igualm ente unilaterais” .2 Por isso, quando H egel ousa envolver a tradição inteira na rubrica do “pensam ento finito” , ele não pretende opor-se a ela, mas colocar-lhe a questão da sua linguagem . U m a coisa é criticar, outra, dar esse passo para trás.

1 Sobre o C onceito com o reabsorção das contradições que o Entendim ento encontra (das

Auflösen des W iderspruchs ist der Begriff), cf. Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .236.2 Wesen der ph. K ritik [A essên cia da crítica filosófica], I, p .188.

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1

E por isso que se evitou apresentar a crítica da Finitude com o a crítica de urna tese. Caracterizar a finitude não é opor um conjunto de asserções a outro (e reincidir, dessa maneira, nos descam inhos do “pensam ento finito” ); é trazer à luz do dia, abaixo dos enunciados, os hábitos de linguagem que tornavam tais enunciados necessariam ente unilaterais. A Finitude não é urna som a de proposições errôneas, mas a cascata dos sucessivos bloqueios que a dialética tem por tarefa suspender: im obilização das categorias no entendim ento fixador, exterioridade da consciência em relação ao objeto, do significado ao significante... Vim os surgir e ressurgir tais figuras tena­zes que, m esm o e sobretudo quando o autor já não as denuncia, se inter­põem entre o seu texto e nós. Se acentuamos a falsa distância significante/ significado, é que ela nos pareceu recortar, da m aneira mais aberta, o tem a da Finitude em toda sua envergadura. Foi ela que falseou a linguagem da filosofia, bem antes do aparecim ento das filosofias do Sujeito e da redução da filosofia à “fenom enología” .3 Essa expulsão do significado para fora da figura foi sem dúvida indispensável. A ela é que se deveu, por exem plo, a passagem da substancialidade oriental ao espírito grego. Foi ela que tornou possível a obra de arte clássica, na m edida em que esta consagrava a separa­ção - não atingida pelos orientais - do corpo e da alma, do aparecer e do conteúdo.4 D issociação inevitavelm ente enganosa, entretanto, visto que norm alizava uma certa maneira de viver e de com preender a significação - visto que ela descrevia o m odo de sua presença com o a representação em blem ática de um conteúdo a partir daí expulso daquilo que o anuncia, qualquer que fosse a proxim idade que parecesse lhe conferir tal anunciação. Basta acomodar-se com esta distância entre figura e significação para deixar

3 “Caracterizar-se-á m ais p recisam ente a filosofia kantiana, d izen do que e la só captou o E spírito com o con sciên cia e que ela só contém determ inações da fen om en olo gía, não da F ilosofia do E sp írito” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 4 15 , X, p .259; trad. br., III, p .185).

4 “A substancialidade oriental da con sciên cia ainda não atingiu essa separação; adem ais, a in tu ição da arte não está consum ada, visto qu e pressup õe a m ais elevada liberdade da co n sciên cia de si que p ossa se opor, livrem ente, sua verdade e sua substancialidade. Bruce, ao m ostrar a um turco, na A b issín ia , a pintura de um peixe, o u viu -o dizer: 'o peixe, no Juízo Final, vai acusá-lo, por não lhe haver dado alm a’ . O oriental não quer som ente a form a, ele quer tam bém o conteúdo. Perm anece, portanto, na unidade, sem nunca ir até à separação e ao p rocesso no qual a verdade se m antém de um lado - com o corp órea e sem alm a - , ao passo que, do outro lado, a co n sciên cia de si qu e intui su p ri­m e novam en te essa separação" (Ph. Religión [F ilosofia da religião], XV, p. 152-3).

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obliterar-se até o conceito da presença. Pois então parece óbvio que só haja presença ao térm ino de um a “presentificação” , de uma aproximação - a que se cham a “m étodo” ou “conhecim ento” .

A té onde fazer rem ontar essa evidência insidiosa? A essa altura, mais vale dar um exem plo que se arriscar em uma genealogia fantasista. Tom e­m os o de Sócrates, no Crátilo, quando ele tenciona dem onstrar a Crátilo que a busca do sentido é distinta da busca do nom e.5 Crátilo sustentava que o nom e é um revelador da coisa (δηλωμα του πραγματος). “ Revelador?” A pala­vra é vaga e Sócrates oferece-se para precisar seu sentido.

Conheces melhor maneira de fazer dos nomes δηλωματα que torná-los ao máximo possível tais como [τοιαυτα οια] essas coisas que eles devem revelar?6

E com o conceber m elhor tal sim ilitude que m ediante o m odelo de uma im agem (ειχων), cuja essência é justam ente imitar, de modo aproximado, a coisa? Crátilo acaba consentindo com essa tradução da palavra “δηλωμα” , a partir do m om ento em que ela nos proíbe conceber as palavras com o sim ­ples signos convencionais. Mas, ao m esm o tempo, ele reconhece, sem per­ceber, a alteridade de direito das significações em relação a seus index. Com efeito, se o nom e é comparável ao ειχων, é preciso escolher: ou a cópia ou o modelo; ou se fiar unicam ente na investigação dos signos, ou será preferí­vel partir da significação em sua αλήθεια.

E regrando-se pela imagem que se saberá se a cópia é boa e que se conhe­cerá a verdade de que ela é a imagem? Ou então se partirá da verdade para conhecer a ela própria e ver se a sua imagem foi convenientemente executada?7

Posta nesses termos, a escolha quase não deixará lugar à hesitação: “ E da verdade, m e parece, que é preciso partir” . A partir do m om ento em que Crátilo concedeu a pertinência do paradigma do εικων, que outra resposta esperar dele? E Sócrates não pede mais que isso: seu interlocutor acaba de filiar-se ao “platonism o” ; a “αλετηεια τ | v οντ | ν” tornou-se para ele a ins­tância decisoria de todas as querelas de linguagem ;8 a justeza ou a falsidade

5 Cratyle [C rátilo], 438 d.6 Ibidem , 433 d.7 Ibidem , 439 a-b. Cf. a tradução de eikasia por Vorstellung, in Gesch. Philo. [H istória da

filosofia], XVIII, p .220.8 Diakrinoumen (438 d).

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de um enunciado é doravante comparável ao êxito ou ao fracasso de uma imitação, a captação da significação é comparável à perspectiva que se tem de um m odelo...

E preciso dar m archa à ré e voltar à assim ilação m ágica efetuada por Crátilo entre o nom e e a coisa? Não. Mas é preciso, no entanto, deter-se nesse lugar e prestar atenção à resistência que Crátilo opunha a Sócrates - últim a hesitação diante do m odelo “representativo” da linguagem , de que o diálogo consagra a soberania. Vencida essa resistência, a relação da filo­sofia com seu discurso está regrada por séculos: a confiança que se tem nas palavras é autom aticam ente lançada na conta no “verbalism o” , e o próprio verbalism o é tido com o a recusa de ir à própria coisa (como se esse ir-rumo

não causasse nenhum problem a), a estadia fútil, ou, no m elhor dos casos, erudita e “filológica” no form igam ento das palavras. A filosofia, com o con­vém, com eça além, com a fixação unívoca das significações - uma vez que foram desm ontadas as armadilhas da linguagem . Sobre isso, Leibniz, por exem plo, é tão afirm ativo quanto Platão:

Para voltar aos seus quatro defeitos da nom inação, eu lhe direi, senhor,

que todos podem ser rem ediados, sobretudo desde que a escrita foi inventada

e que só por negligência eles subsistem . Pois depende de nós fixar as signifi­

cações, ao m enos em algum a língua erudita, e convir n isso para destruir aque­

la torre de Babel.9

Texto que - entre m uitos outros - circunscreve a região de segurança à qual Hegel arrancará o discurso. Segurança fictícia, que depende inteira­m ente de um preconceito: é porque a retórica da Finitude parece o único tipo de discurso possível, que a fixação das significações é a única tarefa que a filosofia deve cum prir com respeito à linguagem . E tam bém daí que nasceu o platonism o ou, ao m enos, a im agem convencional que dele se oferece, m as que, se crermos em Hegel, persiste em m uitos dos que acredi­taram renegar Platão. Im aginam -se as Idéias com o conteúdos “captáveis” (handgreifliche); confere-se a elas a falsa dignidade de m odelos im itáveis.

Q uando Platão se põe a em pregar tais expressões - “as coisas sensíveis são

sem elhantes ao que é em si e para si” , “a Idéia é um m odelo, um tipo” - , dessas

Idéias se fazem então espécies de coisas que seriam im agens em outro Entendi-

9 Leibniz, N ouveaux Essais, L. III, IX, § 5.

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m ento, num a Razão extram undana bem longe de nós, tal com o o m odelo de

que se serve o artista para elaborar um a m atéria dada e nela im prim i-lo . . . 10

Historicam ente, pensa Hegel, isso é um contra-senso: m esm o que cer­tos textos, tom ados ao pé da letra, façam mais que sugerir essa interpreta­ção, é difícil adm itir que Platão tenha deform ado tão grosseiram ente o pen­sam ento do U niversal a que ele dá sua prim eira formulação. Mas a fortuna dessa interpretação não deixa de ser significativa. A distância aberta entre a Idéia e o fenôm eno sobreviveu ao “platonism o”, pois ela não é de m anei­ra algum a incom patível com a “ ternura pelo sensível” : a seu favor, o fenô­m eno adquire um m ínim o de espessura; se as Idéias estão além, esse além evoca um aquém cuja consistência, por m ais frágil que seja, bem se deve reconhecer. Se o significante visa ao significado da m aneira pela qual a im a­gem se relaciona com o m odelo, a idéia do modelo, por sua vez, torna ne­cessário o recurso a uma “im agem ” ou a um éctipo. Um a vez instaurada, a distensão garante a perm anência dos dois pólos.

Essa possibilidade de serem captadas é atribuída às Idéias platônicas, que

estão no pensam ento de Deus, com o se fossem coisas existentes, porém num

outro m undo; fora dessa região, encontra-se o m undo da realidade que possui

um a substancialidade diferente da substancialidade das Idéias, porém real s o ­

m ente por m eio dessa diversidade [erst durch diese Verschiedenheit] .n

E por isso que a Crítica kantiana e a m etafísica entusiasta que ela atri­bui a Platão são m uito mais aparentadas do que parece (na Histoire de la

philosophie [História da filosofia], Hegel vê aí os dois contra-sensos que o platonism o suscitou). Da parte de Kant, não há nenhum a incoerência em estreitar o saber aos lim ites de um a fenom enología e insistir (notadamente no Preisschrift) no sentido radicalm ente transgressivo do prefixo “m eta” da “m etafísica” . A o contrário, é necessário que a Idéia seja pensada “m etafísi- cam ente” ,12 para que se outorgue, ex-officio, a autonom ia do “phainomenon” .

10 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p.200.11 Logik [Lógica], IV, p .46.12 “ [Sócrates] só con h ece o U niversal, a Idéia, o Bem com o o essencial. A o apresentar suas

Idéias, Platão abriu o m un do in teligível. Ele não está além da realidade, no céu, num o u tro lugar, m as é o m un do real; assim com o em Leucipo, o ideal é aproxim ado da reali­dade, ele não é m etafísico. M as é apenas o ente no m un do que é o U niversal em e para si” (Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .199). Cf. a n ota m an uscrita de H egel citada por M . D ’H ondt, in Histoire vivante, p. 116 : a filosofia não é n em em pírica nem m etafísica.

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A “ternura pelo sensível” acomoda-se m uito bem, portanto, com o sentido da transcendência. E essa cum plicidade nada tem de espantoso, se pensar­mos que a separação do sensível e da Idéia, da figura e da significação im ­porta infinitam ente m ais que as opções “m etafísicas” divergentes que, em seguida, nela se enxertam. Importa m uito pouco que decidam abrir ou fe­char o acesso do m undo inteligível ao conhecim ento, desde que o conheci­m ento seja pensado com o um ato de referência e que a “presentificação” , que ela executa, seja descrita com o a obtenção de um a Idéia já situada ou de um sensível já dado. E na certeza dessa pré-doação de uma “realidade inteira­m ente pronta e encontrada em oposição ao conceito” 13 que se com unicam todas as figuras do pensam ento finito. O “conhecim ento” sempre se desdo­brou no eixo de um a distância a ser percorrida, de um ponto original com o qual se reunir. E o kantism o é m esm o a consum ação mais brilhante desse

tem a “ m etafísico” .Hegel vê a prova disso notadam ente na argumentação em pregada pela

Critique [Crítica] para afastar a noção de um critério universal que perm i­tisse reconhecer a verdade de um conteúdo indeterm inado = X. E absurdo, assegura Kant, buscar esse critério, visto que se acaba de fazer abstração - por hipótese - de todo conteúdo determ inado e visto que a “verdade” só tem sentido em relação a tal conteúdo... Esse raciocínio parece convincen­te. Qual sua validade?

C om o em todos os raciocínios form ais desse gênero, esquece-se no dis­

curso a coisa tom ada com o base e da qual se fala.14

Kant, com efeito, acaba de adm itir que, por si só, o conteúdo não cons­titui "a verdade” , mas a adequação do conteúdo ao conceito. Em seguida, prossegue: desde que se supõe um conteúdo indeterm inado, isto é, des­provido de conceito, a questão da adaequatio se torna, autom aticam ente, vã. Entretanto, nesse raciocínio, um a coisa perm aneceu fora de dúvida: a necessidade de supor um conteúdo (anônimo ou determ inado) a distância

prévia, a garantia inabalável de dizer o verdadeiro consiste em alcançar, em seu lugar, um pré-dado. Kant tem razão, sem dúvida, ao notar que a idéia de um critério da verdade em geral é um engodo, mas seu argumento é sofístico: se a hipótese por ele formada tem de ser rejeitada, não é de m aneira algu­

13 Logik [Lógica], V, p .25.14 Ibidem , V, p .28.

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ma porque o conteúdo, nesse caso, estivesse fora de alcance, mas, sim ples­m ente e para começar, porque nem sequer se tem o direito de forjar tal hipótese. Q ue é um conteúdo com pletam ente não-determinado, se não uma ficção fantástica, desprovida de toda verdade?15 Nada vale o raciocínio, se o dizer é som ente o verso da coisa-dita, se a presença autêntica é apenas a anulação de toda “presentificação” . Q ue resta então quando o preconceito nos leva a crer inexoravelm ente que o conteúdo está necessariam ente alhu­res, em um outro lugar?

2

A definição representativa da verdade com o Richtigkeit, adequação da apresentação com um objeto aliás conhecido, foi sem dúvida de altíssim o valor.16 Mas o pressuposto por ela expresso lim itou o conceito de “verda­de” , a ponto de o senso com um filosófico não poder im aginar que se inter­rogaria sobre a verdade em um outro cenário. E, no entanto, trata-se so ­m ente de um cenário, com o o indica esse texto fundam ental da Encyclopédie

[Enciclopédia]. Fundam ental, pois nos parece que Flegel nunca foi mais longe na análise do desconhecim ento inevitável do hegelianism o, nunca foi tão persuasivo para deixar que seu leitor entrevisse a subversão que dele é exigida.

D enom inam os um a definição correta [richtig], se ela é adequada ao que,

de seu objeto, se encontra em nossa consciência ordinária. Entretanto, desse

m odo, um conceito não é determ inado em si e para si, m as segundo um a pres­

suposição, a qual é então o critério, o padrão-de-m edida, da correção. Ora,

não precisam os usar tal padrão-de-m edida, m as deixar as determ inações v i­

vas em si m esm as responderem por si. A consciência ordinária deve achar

estranha a questão da verdade das determ inações-de-pensam ento: estas, com

efeito, só lhe parecem suscetíveis de verdade quando aplicadas a objetos da­

dos; e lhe parece, portanto, que não teria sentido aigum se interrogar sobre a

verdade fora dessa aplicação. Mas é justam en te dessa questão que se trata.

Q uanto a isso, sem dúvida, deve-se saber o que é preciso entender por “verda­

de” . . . 17

15 Ibidem .16 Ibidem , V p.27.1 7 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 24, Z. 2, VIII, p .89-90; trad. br., III, p. 82.

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“Q ual é a verdade da Quantidade, da Substância?” Tal questão, obser­va Hegel, não tem sentido para a consciência com um . Ora, dar razão a essa consciência com um seria renunciar a ler ou a escrever a Logique [Lógica]. E preciso, portanto, fazer que se lhe torne palpável a estreiteza de sua repre­sentação da “verdade” . Prossegue o texto:

H abitualm ente cham am os “verdade” a adequação de um objeto à nossa

representação. Tem os nesse caso, com o pressuposição, um objeto ao qual deve

ser conform e a representação que dele tem os. N o sentido filosófico, ao con­

trário, verdade significa, se for expressa abstratam ente, a adequação de um

conteúdo consigo m esm o. Isso é um a significação de verdade totalm ente di­

versa da m encionada anteriorm ente. D e resto, a significação m ais profunda

(filosófica) da verdade encontra-se parcialm ente já no uso com um da lingua­

gem. Fala-se, por exem plo, de um verdadeiro amigo; e se entende, com isso,

um am igo cujo com portam ento é conform e ao conceito da am izade; igu al­

m ente se fala de um a verdadeira obra-de-arte. N ão-verdadeiro, então, é o equ i­

valente de mau, não-apropriado em si m esm o. N esse sentido, um m au Estado

é um Estado não-verdadeiro, e o m au e o não-verdadeiro, em geral, consistem

na contradição que há entre a determ inação ou o conceito e a existência de

um objeto. D e tal objeto m au, podem os fazer um a representação correta, p o ­

rém o conteúdo dessa representação é em si não-verdadeiro.

Há portanto conteúdos que não são ditos verdadeiros em função do critério da correção representativa. Entretanto, não parece certo que Hegel, nesse texto, proponha uma verdadeira ruptura com a tradição: “um verda­deiro am igo” , “ um verdadeiro Estado”, tais exem plos aparentem ente pla­tônicos parecem indicar que ele não renuncia ao m odelo da adaequatio e se contenta em deslocar o ponto de sua aplicação. Tom emos um a referência: a crítica de H egel nos parece superficial, com parada àquela feita por H eidegger em Ser e tempo. M as talvez seja injusto desqualificar H egel de saída. E m elhor notar, inicialm ente, que essas críticas são de espírito si­m etricam ente oposto - e evitaremos reprovar a Hegel haver executado só pela m etade e sem radicalism o... um em preendim ento que não era seu. D ecerto, tanto quanto Heidegger, H egel se recusa a alojar a verdade na adequação do juízo com o objeto; mas ele se recusaria, igualm ente, a fazer que ela consistisse em um desvelamento. Com preenderem os m elhor a ra­zão disso, se nos reportarm os ao exem plo dado por Heidegger. Quando, ao me voltar para a parede, vejo que o quadro está efetivam ente inclinado, tal como acabo de dizer, m eu enunciado se torna m anifesto: “o ente visado

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se m ostra identicam ente, tal com o o enunciado o m ostra sendo” . N esse caso, o papel da percepção é ilustrar que “ a enunciação descobre o ente com o qual ela se relaciona” - que, longe de ser o lugar original da verdade, o enunciado “ se funda no descobrim ento [Entschliessung] do ser-aí” .18 Ora, para Hegel, essa análise continuaria repousando no pressuposto represen­tativo: o enunciado continua interpretado como discurso sobre a coisa e o ato verificador, com o um a confirm ação pela presença de um sentido sim ­plesm ente visado. O problem a da verdade, portanto, sem pre é posto na distância que separa o discurso de seu conteúdo. E, enquanto ela nao for criticada, a adaequatio não poderia ser radicalm ente contestada, visto que a positio quaestionis que tornaria seu conceito necessário perm anece no lugar: adequação ou desvelam ento, sem pre se trata de um a oposição suplantada, porém, não criticada.

Verdade que essa oposição é tão difícil de eludir que som os levados - suprem o contra-senso - a ver apenas um a nova versão da adequação no que H egel denom ina “ adequação" do conteúdo consigo m esm o, ou “ con­sonância [Zusammenstimmung] do objeto e de seu conceito” . O zusammen,

nessa palavra, bem parece envolver, por sua vez, a idéia de um a convergên­cia, obtida por sorte, de dois term os que não poderiam jam ais se encon­trar: ele nos perm itiria então im aginar que as coisas, neste m undo, ainda esperam pelo conceito que as exprimirá plenam ente, que elas adormecem no anonim ato antes que sua ousia seja enunciada, em suma, que a verdade é sinônim o de ratificação... N o entanto, é preciso prestar atenção na adver­tência de Hegel: enquanto aceitarm os, com o ponto de partida, o pressu­posto representativo, será im possível com preender o que significa “ a verda­

deira verdade” . A expressão, sem dúvida, parecerá ingenuam ente dogmática: vam os tom á-la com o uma tentativa de operar um recuo em relação ao pathos

habitual da “verdade” . Sim, adm itam os que, ao denom inar com o “opinião desprovida de verdade” a suposição kantiana de um conteúdo privado de conceito, H egel pense m enos em im por do alto sua definição da verdade, e mais, em nos liberar da problem ática clássica da verdade. A “ consciência com um ” é tão assom brada por essa problem ática que não faz nenhum a outra idéia de tal conceito. E por isso que a “linguagem com um ” a descon­certa, se tenta analisar o sentido da expressão corrente “ um verdadeiro am igo” : no lim ite, verá aí um abuso de linguagem - tal com o Espinosa, que, nesse ponto preciso, oferece o exem plo inverso de um a crítica da “ lin-

18 H eidegger, Sein und Z eit, p .226; trad. fr., I, p.271.

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guagem com um ” pela “ consciência com um ” filosofante. Espinosa se recu­sa, certam ente, a definir o verdadeiro pela relação da idéia com o objeto; afirma que a verdade de urna idéia não é afetada pelo objeto exterior com o qual ela se relaciona.19 Mas a conclusão por ele tirada é exatam ente inversa à de Hegel: não tem sentido falar em “ouro verdadeiro” ou em “ouro falso” , "com o se o ouro que nos fosse apresentado contasse algo sobre si m esm o, o que está ou não nele” .20 A o em pregarm os tais expressões, abusam os da m aneira de falar do vulgo, que com eçou chamando “verdadeiro um relato quando o fato contado havia realm ente ocorrido, falso quando o fato con­tado não havia ocorrido em lugar algum ” ; ao objeto, transfere-se ilegitim a­m ente uma determ inação que só vale para a idéia. “Quando dizem os que um a coisa é incerta, tom am os - com o faz a retórica - o objeto pela idéia.” Porém essa observação só é convincente para quem adm ite a velha d isso­ciação de direito entre a idéia e a coisa. Não se ousa dizer “ouro verdadei­ro” porque se im agina o ser-dito com o exterior ao dizer e porque a expres­são significaria, a partir daí, que a coisa decide sobre sua concordância com o conceito. Não se percebe que tal aberração tem o m esm o valor que a separação, que ficou inconteste, de B eg riff e Gegenstand. E nesse ponto que é preciso escolher, na com preensão de Hegel, entre o conto de fadas e a nova sintaxe: ou Hegel aloja loucam ente o Logos nas coisas mudas, ou en­tão ele recusa a concepção do Logos que, de saída, põe coisas a serem alcançadas e compreendidas.

Ora, Espinosa fica nessa concepção, m esm o quando recusa o critério da adequação com o m edida da conform idade da idéia com a coisa. Perma­nece, portanto, na obediência da Representação. M esm o que, no Deus es- pinosano, a ordo idearum constitua unidade com a ordo rerum, resta que a instância do Pensam ento possui a coerência autônom a de um discurso so­

bre o Ser e é possível descrevê-lo com o se não fosse o discurso do Ser. Ser e Pensamento, em si, são a m esm a coisa, mas, para nós, formam duas totali­dades radicalm ente heterogêneas, “incom unicáveis” . Em bora sejam idên­ticos em si, o ser em si e a concepção por si (a idéia que o entendim ento se faz) devem ser distinguidos pelos atributos. A idéia permanece, por natu­reza, modus cogitandi, observa H egel.21 Importa m uito pouco, então, que a adequação seja criticada ou que ela seja aceita: tal crítica não poderia ser

19 E spinosa, Réforme de l ’Entendement, § 71.20 E spinosa, Pensées métaphysiques, Ed. Pléiade, p .3 17 .21 Cesch. Philo. [H istória da filosofia], XIX, p .399-400.

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pertinente. N a realidade, se a adequação é inadm issível, não é porque seja um a solução defeituosa: é por ser a solução de um falso problema; não é que pretenda transpor indevidam ente uma distância: é que supõe que haja uma. Enquanto se adm itir tal fissura representativa, a relação entre o pen­sam ento, a linguagem e a coisa aparecerá infalivelm ente com o um a relação de completude - com o se fosse possível isolar o pensam ento antes de ter sido enunciado, de m aneira que lhe falta algo, isolar a enunciação antes que tenha sido “preenchida” pela intuição da coisa. Os falsos problem as nascem dessas carências artificiais. A possibilidade de que a representação se conforme ao objeto com o qual ela se relaciona só aparece com o um enig­ma porque se deixou explodir a unidade efetiva na qual convergem a ex­pressão (tornada determ inação subjetiva), o sentido (tornado universal se­parado) e a coisa (tornada conteúdo pré-dado).

A filosofia crítica entende a relação desses três term os de m aneira que

pom os os pensam entos entre nós e as coisas com o m eio que nos exclui destas

últim as, em vez de nos reunir a elas.22

N isso, a filosofia crítica só faz retomar, por conta própria, a com preen­são espontânea do Bedeuten; mais do que nunca, ela pensa o desajuste e a exclusão com o de direito, ela im agina o ato de dar sentido com o um a labo­riosa reunião de term os (palavra, conceito, coisa), norm alm ente indiferen­tes uns aos outros. Q uanto a isso ela se propõe, por sua vez, esta tarefa im possível: reconstituir a unidade por adição - reencontrá-la a partir de uma oposição tão bem aprofundada que eu, que estou em busca da unidade, pertenço para sempre a um de seus lados.

N a intuição em pírica, um é o que intui em piricam ente, o outro, o que é

intuído em piricam ente; um , o que dá o nom e, outro, aquele para o qual é dado

um nom e; e assim um é o que concebe, outro, o que é concebido. É inútil notá-

lo e, no entanto, perfeitam ente falso considerar, na intuição em pírica assim

co m o na m e m ó ria e no co n h e c im e n to co n c e itu a i, q u e ta is m o m e n to s

con stitutivos da consciência sejam reunidos a partir dos dois lados da o p osi­

ção, de tal m aneira que cada um deles contribua para um a parte [na form ação

da] unidade; e falso se perguntar por aquilo que, nessa reunião, seria o princí­

pio ativo de cada parte.23

22 Logique [Lógica], IV, p .27.23 1 ” Ph. de l ’Esprit [Prim eira filosofía do espirito], trad. fr., p.86.

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Com o se pode esperar constituir o Saber com os destroços desse Saber estilhaçado? Com o a saúde seria resignação à doença? Tudo se passa, com efeito, com o se, por excesso de atenção dirigida ao risco de verbalism o, se tivesse tom ado por norm a o afastam ento entre a palavra e a significação que é, decerto, o signo de um discurso patológico (vazio ou aberrante) - porém de m aneira algum a aquilo de que é preciso partir para dar conta do funcionam ento normal do discurso. Quando o enunciado, com o fenôm eno sensível, se suprim e em sua idealidade, é a coisa m esm a que é dita: eis aquilo de que é preciso dar conta. E nunca se com preenderá essa unidade, reconstituindo-a com o associação de um som nele m esm o vazio de sentido e de uma significação dada.

É ridículo considerar o estar-ligado do pensam ento à palavra com o um a

deficiência que afetaria o pensam ento, e é risível ver n isso um a desgraça; em ­

bora se tenha o costum e de pensar que o inexprimível seja justam en te o mais

im portante, essa opinião, nutrida pela vaidade, não tem o m ínim o fundam en­

to; pois o inexprim ível, na verdade, é som ente algo turvo e confuso, que só

ganha clareza quando consegue ter acesso à palavra. É a palavra que dá ao

pensam ento sua presença m ais digna e m ais verdadeira. C ertam ente, tam bém

é possível vaguear com palavras, sem saber a coisa. Isso porém não é culpa da

palavra, m as som ente de um pensam ento defeituoso, indeterm inado, sem con­

teúdo. A ssim com o o pensamento verdadeiro é a coisa, assim tam bém é a pala­

vra, quando em pregada por um pensar verdadeiro. Q uando a inteligência se

preenche com a palavra, acolhe em si m esm a a natureza da coisa.24

Talvez se m eça m elhor a originalidade dessas afirmações, confrontan­do-as com a crítica efetuada por H usserl à relação associativa entre a pala­vra e sua significação. Husserl nega que os atos constitutivos do com plexo fônico pertençam ao ato que constitui a expressão com o tal: “as palavras não são visadas com o algo de existente nas coisas que elas nom eiam ” . Mas tal expulsão da face existente e sensível do significante não regulariza, é claro, o problem a da relação entre a palavra, a significação e a coisa denom i­nada. Por isso, H usserl ainda vai mais longe, ao que parece, na direção he- geliana. N a 6‘ Recherche logique [Sexta Investigação lógica], ele se em penha em dar conta da im pregnação da palavra pela coisa designada.

24 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 462, Z., X , p. 355; trad. br., III, p .256.

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A expressão aparece, de certa maneira, como estando posta sobre a coi­sa, como se fosse sua vestimenta ... É no modo da intenção denominativa que o nome aparece como pertencente ao nomeado e constituindo unidade com ele.25

Tal é a aparência, mas só a aparência. Pois a função efetiva da palavra consiste em sinalizar que esse volum e preto é reconhecido como tinteiro. E a aparência do “revestim ento” se torna m esm o francam ente m istificante, quando se investe na “inclinação inextirpável para superestim ar a unidade entre a palavra e a coisa, para lhe supor um caráter objetivo, a ponto de lhe conferir um a unidade m ística” .26 Estam os então nos antípodas de Hegel. É que, nesse ponto, o essencial perm anece com o a exclusão da coisa designa­da e do sentido expresso - o corte entre a denom inação de objeto e a signi­ficação “por meio da qual’’, instrumentalmente, tal denom inação é consum a­da.27 Com o tal recorte perm anece fora de questão, a fusão do nom e e da coisa nom eada é tida com o aparente; nesse contexto, as asserções hegelianas de identidade só poderiam figurar como teses metafísicas, m esm o m ísti­cas. E seria isso m esm o, se a exterioridade do expresso em relação ao de­signado fosse im prescritível. O expresso, então, só pode advir às coisas mundanas que ele designa, não habitar nelas; deve, portanto, perm anecer redobrado no significante. E sua única localização possível. A idealidade do sentido tem esse preço ou, no mínim o, é inconcebível fora dessa repar­tição. Mas de onde vem que tal repartição seja necessária? De onde vem que se deva decidir sobre um a localização? Por que preservar, de m aneira tão cium enta, o sentido de ser confundido com as coisas do m undo, se não porque ele é tido com o um ultra-objeto e porque não há diferença de estilo entre ele e um conteúdo percebido? Q ue a presença do sentido seja expres­sam ente não m undana (ou, ainda, que o expresso deva perm anecer a dis­tância do designado), só se com preende tal exigência se o sentido for im a­ginado com o um Algo ideal que tanto se assem elha aos objetos m undanos que é indispensável d istin gui-lo topicam ente. Porque as essências são objetivadas, é preciso separá-las dos objetos e recalcar o Logos em um lu ­gar, queira-se ou não, “m etafísico” - entendendo com isso que ele não tem nem o m odo de ser dos signos nem o das coisas.

25 H usserl, Logische Untersuchungen, III, p .412; trad, fr., Ill, p .39.26 Ibidem , II (2), p .2 14; cf. Ideen I, § 124; trad, fr., p .422.27 Ibidem , II, p .57; cf. Formale und transzendentale Logik, trad, fr., p .29.

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A ssim , os m odernos deixaram que se perdesse o benefício da “ inge­nuidade” grega: a idéia de um Logos que ainda não deform aria o código representativo. Decerto, não nos “ esquecem os” de nada desde os gregos - nada m enos hegeliano que o tem a da Vergessenheit - , mas a “consciência com um ” é incapaz de pensar a unidade do Logos que os gregos estavam em condições de pressentir, em virtude do fato de que o código representa­tivo, para eles, ainda não estava elaborado ou mal acabara de sê-lo. H egel observa que hoje se desprezam os sofismas e os “jogos de palavras” dos m egáricos. M as a atenção que consagravam às palavras por si m esm as era m enos fútil, pensa ele, que nossa im paciência diante dessas futilidades. Esta últim a atesta nossa inaptidão para pensar apenas que se possa viver a linguagem de outra m aneira que não na instância da Representação, entre palavras continuam ente suspeitas de vacuidade e conteúdos em perigo de

nunca serem expressos.

Tam bém nossa seriedade alem ã baniu, portanto, os jogos de palavras com o

brincadeiras vazias. Som ente os gregos prestaram atenção à palavra pura e ao

puro tratam ento de um a proposição, tanto quanto à coisa. Se a palavra e a

coisa entram em oposição é a palavra que se tom a com o o m ais elevado; pois a

coisa não expressa é apenas algo irracional propriam ente dito; o racional exis­

te som ente com o língua.28

Os gregos viviam aquilo que cham am os “ a identidade do Ser e do Pen­sam ento”, expressão inevitavelm ente imprópria, visto que sugere a im a­gem de um a fusão entre duas realidades norm alm ente distintas. Por isso, o pensam ento que se acom oda com a oposição representativa tem m uito a aprender com a linguagem , que dificilm ente suspeitava dessa oposição. Por que “pensam ento” e “ ser” teriam de ser im aginados com o dois continen­tes? O que se denom ina “pensam ento” sempre diz respeito a si, está por toda a parte em sua casa, por m ais longe que se vá. E o que, sem mais,

Parmênides anunciava.

O pensam ento e aquilo a respeito do que se pensa são a m esm a coisa.

Pois você não encontrará o pensam ento sem o ente no qual ele se exprim e [ou

se m anifesta: ev co raípaxiaiievov scmv]; pois nada é nem será fora do ente.29

28 Gesch. Philo. [História da filosofia], XVIII, p .133.29 Ibidem, XVII, p.312.

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A P A C I Ê N C I A DO C O N C E I T O 3 8 3

Com entário de Hegel:

Eis a idéia capital. O pensam ento se produz; o que é produzido é um

pensam ento; o pensam ento é portanto idêntico a seu ser, pois ele nada é fora

do ser, dessa grande afirmação.

Ora, os m odernos não sabem com preender essas palavras em sua con­cisão. Eles as transpõem com o teses e as tornam , ao m esm o tem po, dogm áticas. Transpor o t o a m o dos eleatas para nossa categoria de identi­dade é dar a entender que meu pensam ento (subjetivo) é um ato privile­giado, a ponto de constituir o estofo do ente. A ssim tam bém , se afirmo que os “objetos” , em vez de pertencerem a uma região ontológica diferen­te, são na realidade “pensam entos” (Gedanken), os que reduzem a filosofia a um catecism o gnoseológico falarão de idealism o delirante. “Os objetos” , escreve Hegel, “ enquanto são pensam entos, estão em sua verdade; tal é sua ousia” . Essa frase não exprim e um a opção metafísica: indica com o se deve entender o novo discurso e com que pensam ento tradicional do dis­curso é preciso romper, se se quiser entendê-lo. Mas os que, pouco cuida­dosos em enunciar as regras de seu jogo lingüístico (tamanha é, para eles, a obviedade delas), falam já dos objetos em uma linguagem que eles ign o­ram ter escolhido, com preenderão tal frase com o se exprim isse um a locali­zação da ousia - digamos: como uma afirmação pós-cartesiana. Daí em dian­te, não se lim itaram a mal interpretar a frase: perdeu-se sobretudo o nível de discurso no qual o autor se colocava, tom ando por um parti pris filosó­fico um a indicação quanto à natureza do discurso. E esse m al-entendido que logo é preciso prevenir, m esm o que a advertência deva passar por pe­sada ironia:

Isso não equivale a dizer que os próprios objetos da n atureza sejam

pensantes. Eu penso subjetivam ente os objetos; porém m eu pensam ento tam ­

bém é o conceito da coisa e este é a substância da coisa [d an n is t ‘m ein G e d an k e '

auch ‘d er B e g r i f f der S ach e un d d ieser ‘is t d ie S u b s ta n z der S a c h e '] .30

Tal advertência é útil, desde que o noein grego tenha sido traduzido, cada vez mais naturalmente, por “ consciência de si” e desde que, da inves­tigação de um a significação, passou-se à delim itação de um a região. Os

30 Ibidem , XVIII, p .332.

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3 8 4 G É R A R D L E B R U N

gregos, por sua vez, com o ainda não haviam chegado ao reino da consciên­cia de si, portanto do Entendim ento, não tinham dificuldade em furtar-se a assinalar as significações para conteúdos já repartidos.

Nós, modernos, somos iniciados por toda nossa cultura em representa­ções sumamente difíceis de transgredir; porque essas representações ofere­cem o mais profundo conteúdo. Devemos representar os filósofos antigos como homens cuja intuição sensível é o único lugar, desconhecendo todo outro pres­suposto que não o céu em cima e a terra em volta, pois as representações mitológicas foram deixadas de lado. Nesse meio ambiente, o pensamento é livre e voltado para si mesmo, livre de toda matéria, puramente em sua casa.31

Não ocorre o m esm o com a “ antiga M etafísica” : m esm o que ainda não reduza expressam ente o “pensam ento” a um a subjetividade insular, ela des­conhece a infinidade da significação “pensam ento” , visto que em prega ca­tegorias finitas - visto que pergunta, por exem plo, “ Deus tem existência?" (“ Hat Gott Dasein?” ), sem suspeitar que a significação de Dasein bem pode­ria ser um a “ determ inação dem asiado baixa para a Idéia e indigna de D eus” .32 E o sinal de que, doravante, se acom odam com um a sintaxe com ­partim entada, tida com o a única organização pensável do discurso, longe de suspeitar de que haja ali uma m etafísica dissim ulada. N essa língua cujas categorias são de direito limitadas, com o entender o to a m o parm enidiano, se não com o um a reunificação de entes díspares? Se ele dizia a onipresença do voeiv, agora é pensado com o a supressão de um a fronteira. O que é bem pior que o contra-senso de um estouvam ento, pois, com isso, relaciona-se um enunciado ao sistem a de representações com o qual ele é, m uito preci­sam ente, incom patível.

Para exprimir-se formalmente, finito quer dizer aquilo que tem um fim·, o que é, mas deixa de ser onde está em relação com seu Outro e, por conseguin­te, é limitado por ele. O Finito consiste portanto em uma relação com o seu Outro, que é sua negação e se apresenta como seu limite. Ora, o pensamento está em sua própria casa, consigo mesmo se relaciona e toma a si mesmo como objeto ... O pensamento como tal, em sua pureza, não tem pois, em si,

31 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 31, Z., VIII, p .105; trad, br., I, p .94.32 Ibidem , § 28, Z., VIII, p .101-2; trad, br., III, p.92.

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nenhum lim ite. O pensam ento só é finito na m edida em que perm anece em

determ inações lim itadas, que para ele valham com o últim as.33

Esse texto indica por que a M etafísica clássica nunca chegou a form u­lar, de m aneira inteiram ente coerente, a co-presença do pensam ento com o ser, da alma com o corpo etc. Não que tenha sido incapaz de “ver o verda­deiro” (essa expressão, aliás, já é representativa): ela se tornara incapaz de deixá-lo falar. Com o aceitava de im ediato a tripartição (entre vocábulo, sig­nificação e coisa) daquilo que confundia o Logos anteplatónico, ela só p o ­dia disjungir o que, no discurso lógico, se oferece com o uno, lim itar o que nele se dá com o ilim itado. A s correlações essenciais cediam lugar a fratu­ras; os “m om entos” , a oposições arbitrariam ente estereotipadas. A ssim fo ­ram forjadas entidades (a alma, a matéria, o m undo, D eus), tanto mais facilm ente dispostas porque não se pensava em interrogar-se sobre a natu­reza das determ inações que lhes eram atribuídas (simples, com posto, exis­tente, finito, infinito34). Em tal pedestal, era im possível apriori deixar se­rem ditos os conteúdos sem os mutilar, acentuar uma figura sem a falsificar.

Q ue algo seja verdadeiro, isso está envolto no fato de que ele é pensado -

que algo seja pensado, no fato de que ele é A lgo [d a r in , d a sz E tw a s is f], um

rem ete ao outro [.E in s sch ik t dem A n deren z u ]. A í e stá o que se exp rim e ao dizer

que o pensam ento carece do objeto com o de um exterior ao qual dá seu assen­

tim en to. Se criticam essa form ulação, não é para d izer que a con sciên cia

pensante, o Espírito, não carece do objeto para existir, para ser consciência:

não poderia ser assim , isso está inscrito em seu conceito. Porém o fato de que

33 Ibidem , § 28, Z ., VIII, p .10 1-2 ; trad. br., III, p .9 1 .34 “A antiga M etafísica era anim ada p elo in teresse de con hecer se predicados de tal espécie

eram con ven ien tes a seus objetos. Tais predicados, porém , são d eterm in ações lim itadas do E n ten dim en to que só exp rim em um lim ite, e não o Verdadeiro. A lé m disso, nesse pon to, notar-se-á particu larm ente o p roced im ento que con siste em atribuir predicados ao objeto por ser con hecido (D eus, por exem plo). Trata-se de u m a reflexão exterior ao objeto, pois as determ in ações (os predicados) estão prontas em m inha representação e são atribuídas apenas exteriorm en te ao objeto. A o contrário, o con h ecim en to verdadei­ro de um ob jeto deve ser de tal m aneira, que este ú ltim o se determ in e por si m esm o e não recebe do exterior os seus predicados. Se se procede no m odo da predicação, o esp í­rito tem o sen tim en to de que tais predicados são in esgo táveis” (Enciclopédia das ciências filosóficas, § 28, VIII, p .10 1-3; trad. br. I, p .44-8). “A lógica esp ecu lativa já se eleva acim a d essa m aneira de proceder, ao m ostrar que todas as d eterm in ações aplicadas à alm a (coisa, sim plicidade, indivisibilidade, unidade) não são algo de verdadeiro, quando cap­tadas abstratam ente, m as se invertem em seu con trário” (Enciclopédia das ciências filosófi­cas, § 389, Z ., X, p .57; trad. br., III, p.46).

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o objeto seja um exterior é apenas um m om ento que não é o m om ento único

ou essencial.35

M as a expressão representativa ignora isso - e tal inadvertência suscita o falso problem a do sujeito e do objeto. Seria possível ler toda a Enciclopé­dia ressaltando, sucessivam ente, os falsos problem as e as falsas dificulda­des pelos quais tanto a M etafísica especial quanto sua continuação nas ciên­cias positivas pós-kantianas são devedoras da linguagem da Finitude. Ora, a filosofia dita crítica só fez regularizar o uso dessa linguagem: pela prim ei­ra vez, ela tornou o conteúdo da filosofia inteiram ente coerente consigo. É o que precisam os ver agora mais de perto.

3

Com preenderem os m elhor o alcance do texto citado, se nos reportar­m os à página da Critique de la raison pure [Crítica da razão pura] em que Kant, evocando o adágio quodlibet ens est unum, verum, bonum, declara que “não se admite mais tal princípio senão por conveniência na M etafísica” .36 O ue o Verdadeiro seja um transcendental, conversível com o ens e sem ne­nhum acréscimo, isto é, para Kant, um a afirmação tão verbal quanto já o era para Espinosa. Ora, é notável que Hegel tencione restaurar essa reci­procidade do verum e do ens (eins schickt dem Anderen zu), indo ao encontro da antiga M etafísica, que nunca soube estabelecê-lo, e do criticism o, que o desatou.

Q ue a M etafísica clássica não tenha sabido form ular tal relação, é o que sobressai tanto dos textos de Espinosa, citados, quanto da Ontologie

[Ontologia] de W olff. E verdade que, para retirar a ciência do ens qua ens do desprezo com que era considerada desde Descartes, W olff restabelece a noção de um a verdade quae transcendentalis appellatur et rebus ipsis inesse

intelligitur , 3 7 M as ele distingue cuidadosam ente essa “verdade” da “verdade lógica” . Sem verdade transcendental, não há verdade lógica das proposi­ções (exceto no instante em que eu as enuncio), não há perm anência ga­rantida do ente enquanto eu falo dele: “ se não há verdade nas coisas, nada se opõe a que a figura da m esa seja quadrada e, quando se enuncia que ela é

35 Gesch. P h ilo. [H istória da filosofia], XVIII, p .448.36 Kant, K R V [Crítica da razão pura], B, p . l 13.37 Wolff, Ontologie, § 495.

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quadrada, nada se opõe a que tenha urna figura oval” .38 Em com pensação, “na ausência do princípio de contradição e do princípio de razão suficiente, tam bém cai a verdade transcendental - e, sem ela, a verdade lógica das proposições universais é nula” .39 A ntes de tudo, portanto, há correlação - e

somente correlação - entre o ens verum (isto é, a identidade do ente consigo m esm o, sua repetibilidade) e a validade das leis de enunciação, entre veritas

transcendantalis e veritas lógica. A ssim , a partir do m om ento m esm o em que a ontologia é oficialm ente constituida com o disciplina científica, ela torna patente a dissociação da verdade formal e da verdade inscrita no conteúdo:

abala, portanto, o a licerce do verdadeiro ao m esm o tem po que finge consolidá-lo. Só isso já bastaria para justificar a severidade com que Hegel faz alarde contra Wolff, o “professor do Entendim ento, entre os alem ães” 40 - réplica ao elogio que Kant lhe endereçava por ter restaurado, na Alem anha, “o espírito de profundidade". Elogio que não era, afinal, de sim ples corte­sia. Pois é bem no prolongam ento de W olff que Kant rom pe o equilibrio entre a form a e o conteúdo que a Ontologie [Ontologia] tratara com respei­to - Kant substitui a ontologia por urna disciplina “mais m odesta” , cujo dom ínio é “o conhecim ento racional puro de todas as coisas” (Rx, 4166, 4168).

Tal transform ação da ontologia se prolonga na inflexão de sentido da palavra “ transcendental” . Originariamente, “transcendental” designava uma propriedade constitutiva da forma do ens qua ens e contrastava com a deter­m inação cham ada de “ categorial” . Encontra-se ainda essa distinção na Métaphysique [Metafísica] de Baum garten (§ 74) e, por vezes, no próprio Kant;41 sabe-se porém que a filosofia crítica prefere substituí-la por outra. “Transcendental” , com o sinónim o de “não m aterial” , é antes de tudo opos­to à “m etafísica” (Rx, 4026, 4027): enquanto a determ inação metafísica in­form a sobre o conteúdo da coisa, o predicado transcendental desenha, nega­tivamente, a forma na qual a coisa deverá ser m inim am ente pensada (Rx,

4806). O Uno m etafísico, por exem plo, indica que um a m ultiplicidade é ordenada em um todo único; a unidade transcendental, por sua vez, indica mais sucintam ente que “cada coisa não é diversas [coisas]” (Rx, 3765). Por isso, é de m aneira “ m uito inconsiderada” (unbehutsamer Weise) que tais “ exi­gências lógicas” foram transform adas em “propriedades das próprias coi-

38 Ibidem , § 499.39 Ibidem , § 501.40 Gesch. Philo. [H istöria da filosofia], XIX , p .499.41 A ssim , por exem plo, Kant, R x 4804.

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sas” (B, p .97). Doravante, ao contrário, cham arem os de transcendental o

em preendim ento que nos proíbe expressam ente de prejulgar acerca da na­tureza do ente: a consideração do “ sentido transcendental” das categorias e a certeza de que são vazias de toda objetividade e de que, “por si m esm as, elas não podem pensar nem determ inar algum objeto” (B, p.208) evitarão que façamos delas um uso transcendental, no sentido tradicional da palavra. Paradoxalm ente, portanto, o transcendental é reduzido a ser apenas a garan­tia de um a visada ôntica no vazio; designa o recuo a ser tom ado em relação às determ inações do ens, para que possam ser ressaltadas, com toda segu­rança, as condições da objetividade.

N a expressão “ Lógica transcendental” , H egel concede assim m ais im ­portância ao substantivo que ao epíteto. A Lógica transcendental represen­ta, na história das relações da lógica com a ontologia, o ponto de não-retor- no na inflexão da segunda sobre a primeira. O que a caracteriza não é a tom ada em consideração do conteúdo, em bora Kant tivesse insistido nesse aspecto, m as o reforço e a consagração da clivagem form a-conteúdo. D e­certo, ela “não faz abstração de todo o conteúdo do conhecim ento” (B, p .77); mas isso não é o bastante para opô-la à lógica formal. Pois, bem longe de se libertar, m esm o que tim idam ente da lógica formal, a filosofia crítica se re­fere continuam ente a ela. Também Heidegger assinalará que a Critique de la

raison pure [Crítica da razão pura], já desde seu próprio título e pelo recur­so à lógica tradicional, reconhece “ a significação preponderante que, na m etafísica ocidental, se apega ao Logos e à Ratio". Mas Hegel se interessa m enos pelo privilégio conferido por Kant a essa Ratio que pelo conteúdo que ele se obstina a lhe dar, pela idéia abstrata que dela Kant elabora desde que a con ceb e no trilh o da lóg ica form al. A r is tó te le s , ao m en os na Métaphysique [M etafísica], se liberara da dom inação da disciplina que ele fundava e, assim, fizera obra especulativa.42 Kant, mais respeitoso para com os Analíticos, concedeu tal valor a essa lógica que chegou a lhe sacrificar a metafísica: a abstração de todo conteúdo que a inaugura se torna, em sua filosofia, “o tem or do objeto” . N unca se foi tão conseqüente com as exi­gências da lógica formal: repetia-se, em suma, o procedim ento da apofântica que, deixando indeterm inadas as partes da proposição que designam con­teúdos m ateriais, vinculava o descobrim ento das formas do pensam ento à expulsão do conteúdo: Q ue tal operação assum a em Kant um a forma psi-

42 Cf. Enciclopédia das ciências füosófícas, VIII, p .387; e Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p.415.

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cologista, é só urna variante daquele preconceito sobre o qual se construiu a “lógica” . Esta, com efeito, sempre foi animada pela certeza de que o pen­sam ento é “ um a atividade formal que se desenrola corretam ente, mas cujo conteúdo é um dado [deren Inhalt fiir sie ein gegebener ist]” .43 Essa certeza chegou a se im por a tal ponto, que se queixaram da lógica por não ter feito abstração suficiente do conteúdo - precisam ente o inverso do reproche que ela merecia. D esse modo, por exem plo, Kant: a tradição, observa ele, utili­zou de m odo indevido principios puram ente lógicos (o principio de razão) com o se eles se aplicassem às “ coisas” , de m odo que a ontologia foi apenas um a extensão abusiva da lógica. A ssim tam bém , em seguida, Husserl: a crítica que ele fazia de A ristóteles é bem diferente, sem dúvida, da de Kant, visto que já não rejeita a idéia de uma ontologia formal. Mas ele ressalta igualm ente na lógica de A ristóteles, em virtude do fato de sua form alização incoativa, um a cum plicidade com uma certa ontologia.

M esm o o conceito de núm ero não foi esvaziado pelos antigos de toda

referência m aterial à coisa ... A apofântica dos antigos, dada sua relação obje­

tiva com a realidade, ainda não era com pletam ente form alizada. A ristóte les só

possuía, portanto, um a ontologia universal real [real] e esta tinha, para ele, o

valor de filosofia prim eira. A ontologia form al lhe fazia falta . . .44

Para Husserl, a direção ôntica da lógica de A ristóteles m ostra suficien­tem ente que esta últim a ainda não é a doutrina da ciência. Um a teoria su­prem a do conhecim ento, com efeito, não poderia, sem desm entir seu pro­jeto, pressupor a validade desses produtos de conhecim ento que são o “m undo” (ou o “hom em ”); exceto renunciando a cum prir estritam ente sua tarefa, o discurso lógico não pode ser tributário de tais postulados.

A lógica devia, desde o início e de m aneira inteiram ente principiai, ques­

tionar a possibilidade de todo conhecim ento e de toda verdade; disso porém

se seguia que não podia utilizar, sequer um a única vez, a existência do h o ­

m em e a presença, que se presum e óbvia, de um m undo com o fato elaborado

da experiência. Pois essa [presença] m esm a é apenas um fato que provém do

conhecim ento, e deve ser questionada.45

43 Gesch. Philo. [H istória da filosofia], XVIII, p .412 .44 H usserl, Formale und transzendentale Logik, § 26.45 H usserl, Erste Philosophie, I, p.55-6.

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É no m esm o esp írito que K ant ju lg a v a aberran te a in ten ção da Wissenschaftslehre [Doutrina da ciência] de Fichte. O título, observa ele, já é um a usurpação, pois a única D outrina da Ciência - se quiserm os dar à pa­lavra toda sua am plitude - só poderia ser lógica pura. Ora, nesta últim a, é im possível pretender que o conteúdo nasça do conhecim ento: isso seria equivalente a fazer que ela se engendrasse em regras que, por definição, só têm valor fora de toda referência objetiva.

Pois a pura Doutrina da Ciência não é nada mais nada menos que a sim­ples Lógica que, com seus princípios, não se eleva ao material do conhecimen­to, mas faz abstração do conteúdo, na medida em que é lógica pura; extrair desta última um objeto real é um trabalho vão, e por isso é que nunca foi empreendido ...46

Q ue a “pureza" da lógica requeira o afastam ento m ais radical do con­teúdo material, esse é, portanto, o ponto em que convergem todas essas críticas. Q uer se deslize sub-reptícia quer abertam ente do lógico ao ôntico, estreita-se a lógica nos lim ites do conhecim ento hum ano de fato e perde-se de vista o horizonte que ela tem por função desdobrar; enfim, enraíza-se a teoria da Ciência nas condições de fato de todos os outros saberes. N a falta de um a separação estrita entre o lógico e o ontológico, a Lógica se torna um saber de m esm o nível que aqueles de que ela devia haurir a estrutura.

Em um a prim eira abordagem, poderia parecer que essa posição não está tão afastada de Hegel. Também não sustenta ele que o pensam ento lógico não deve ser exercido sobre um conteúdo exterior e “heterônom o” ? Não estaria aí outra m aneira de aliviar a lógica de todo preconceito ôntico? N ão nos deixem os enganar, entretanto: tal preocupação não pode ser a de Hegel, pois ela supõe que se tenha levado a sério a problem ática por ele denunciada. Falar de “preconceito ôntico” , com efeito, é m anter uma rela­ção entre as formas do pensam ento e o que é dado pela representação. M e­lhor ainda, é subentender que esse conteúdo representado possui, em ú lti­m a instância, o privilégio da “realidade” . A ssim com o o pensam ento finito isola as Idéias para não as confundir com os objetos de que elas preservam o estatuto, assim tam bém a lógica formal só faz tanta questão de separar- se do “real” porque assim ilou este últim o ao “ sensível” e ao “ m undano” : “o pensam ento que é formal e que tom a o sensível por única realidade” ,

46 Kant, XII, p .370.

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escreve H egel. A ssim , os recuos e clivagens efetuados pelo Entendim ento sem pre atestam que ele opera em um campo cuja hom ogeneidade não é posta em dúvida - seus escrúpulos só têm sentido em relação à sua des­preocupação. Por isso, a crítica do “preconceito ôntico” , que subsistia em A ristóteles, pode ser interpretada com o o indício de um preconceito ainda mais profundo. Se fazem questão de dizer que as formas lógicas devem ser despojadas de toda relação com a objetividade, é porque, de fato, restrin­giu-se esta últim a à objetividade representada. Ora, para pensar o lógico na “pureza” que dele se exige, é esse m esm o conceito de objetividade que se­ria preciso conjurar. Bem que se pode ser intransigente quanto à “pureza” do lógico - que vale um pensam ento “puro" que não se inquieta com a oposição da consciência e do objeto e a deixa subsistir? Q ue vale um saber suprem o que não contesta a ideologia do conhecim ento? Quando, no iní­cio de sua Logique [Lógica], Kant distingue a lógica transcendental da lógi­ca geral, ele escreve:

Na lógica transcendental, o próprio objeto é representado como um ob­jeto de simples entendimento; a lógica geral, ao contrário, concerne a todos os

objetos em geral [auf alle Gegenstände überhaupt geht].47

E essa universalidade que garante a abertura de um cam po m áxim o de indeterm inação ontológica: é para ser o cânon de toda objetividade possível

que a lógica form al “faz abstração de todos os objetos” . Indica ao entendi­m ento com o ele deve pensar um objeto = X, antes que esse objeto seja assinalado na região que lhe convém . Porém o espaço de m anobra assim aberto, entre objeto-em -geral e objeto-conhecido, não nos liberta da ob­sessão pela objetividade.

4

Ideologia da Finitude, a lógica, de saída, nos interdita tem atizar o “pen­sam ento" fora dos preconceitos da “ consciência com um ” . E, no entanto, é de m aneira elogiosa que Hegel escreve: “A filosofia crítica já transformara a M etafísica em Lógica 48 Se Kant foi abusado por conta da orientação

4 7 Kant, Logik, [Lógica] IX, p. 14.48 Logik [Lógica], IV, p .39. “ Eu reúno Lógica e M etafísica, na m edida em que esta últim a

nada m ais é que o exam e de um conteúdo concreto (D eus, o m undo, a alm a), porém , de

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3 9 2 G É R A R D L E B R U N

filosófica da lógica formal, isso não significa que seja vão pretender reabilitar a “ Lógica” ; antes, porém, isso significa que é necessário repensar inteira­m ente seu conceito; é a adesão não crítica de Kant à lógica formal que deve ser posta em causa, e não o papel que cabe à lógica no sistema. Pois o formalismo não se confunde com a lógica: ele é apenas o desvio que lhe foi im presso na origem. Acerca desse ponto, Hegel se afasta da opinião de seus contem porâ­neos que, à exceção de Maimon, consideram a lógica com igual desprezo. “Ciência não filosófica” , assegura Fichte (Réponse à Reinhold [Resposta a Reinhold], 1801); “ ciência inteiram ente em pírica”, “ inteiram ente oposta à filosofia” , segundo Schelling (Methode akademischen Studiums [Método de es­tudo acadêm ico]). Fichte ainda observa que Maimon, tão escrupuloso quan­do se trata de interrogar a categoria de realidade, admite tranqüilamente, em compensação, a validade da lógica geral.49 À primeira vista, o antiform alism o de Hegel poderia passar por uma expressão do m esm o desdém. No entanto, sua posição é bem diferente: é em Fichte e em Schelling que ele pensa quan­do, no fim da Introdução à Logik [Lógica], condena “o brutal desprezo, que aliás não ficou im pune” , dos pós-kantianos pelo “ lógico” .

Para Fichte e Schelling, a lógica, toda lógica, é, forçosam ente, apenas “ um a história natural do espírito finito” . Sua origem não acarreta nenhu­ma dificuldade: as categorias lógicas foram constituídas por abstração

empírica.

[Q uem ] não deduz as supostas leis da inteligência a partir da essência

desta últim a, de nada lhe servirá buscar obtê-las m ediante um desvio pela

lógica; pois só pode obter a própria lógica m ediante a abstração aplicada aos

ob jeto s.50

Se a lógica é desvalorizada, é então na linha da interpretação clássica que não se pensa em reexaminar. Zom ba-se da vacuidade do formalism o, mas sem pôr em dúvida o caráter necessariam ente formal da Lógica, com o

m aneira que tais ob jetos se jam apreendidos com o núm enos, isto é, com o pen sam entos [de tais o b je to s]” (Ph. Religion [F ilosofia da religião], XVI, p .467 ). Cf. Enciclopédia das

ciências filosóficas, § 24, VIII; trad. br., p .7 7 ss . Segundo e sse s textos, portanto, há um sentido não pejorativo da M etafísica. O bservem os rapidam ente porém que, com o os m etafísicos sem pre falaram de seus “o b je to s” com o substrato s tirados da R epresenta­ção, tal M etafísica em estado puro nunca existiu . Afinal de contas, é im possível d issociar a M etafísica do erro que a sobrecarregava.

49 Fichte, Erste Grundlage, I, p .99; trad. fr., Philonenko, p .23.50 Fichte, 1- Einleitung, I, p .442; trad. fr., p .259.

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Hegel vai fazê-lo. Se a tentativa de Bardili de reduzir a M etafísica à Lógica é maltratada na Differenz [Diferença] de 1801, é que se trata de urna lógica form al.51 E a partir de 1802, Hegel distingue, cada vez mais explicitam en­te, entre a Lógica com o ciência por nascer e a lógica restrita ao “form al” . “Form al” é e perm anecerá para ele com o sinónim o de abstrato. Ora, seria injusto votar a tal abstração a disciplina chamada Lógica: seria relegá-la ir­rem ediavelm ente ao patam ar de um saber finito e, por esse viés, com pro­m eter a Wissenschaft inteira. Logo, por “ Lógica” é preciso entender algo dis­tinto do que sempre se entendeu. E disso que nem os contem poráneos nem os am igos de Hegel estão conscientes: assim, por exem plo, quando N ietham m er pede a H egel para redigir um m anual de lógica para uso dos ginásios da Baviera. A o que responde:

U m a ciência nova não pode ser exposta num a obra de ensino destinada

aos ginásios. N ão se pode pôr, nas m ãos dos professores, um livro que lhes

seria tão estranho quanto aos alunos ... Bem se pode pensar, é verdade, em

algo de interm ediário: um a antiga Lógica que conteria elem entos e indica­

ções, orientando o leitor rum o a progressos ulteriores ..., m as com o eu pode­

ria operar a passagem do que é antigo ao que é novo, religar o elem ento nega­

tivo da Lógica antiga ao elem ento positivo da Lógica nova, de um a m aneira

que fosse geralm ente válida, com o é o caso num a obra de ensino? A inda não

sei com o em preendê-lo.52

Com o fazer compreender, em um manual, que a Lógica não é nem p o ­bre nem escolar nela mesma, mas que foi vítim a de um mal-entendido acerca de seu objeto? O que todos - adversários e partidários - tom avam como um a disciplina autônom a era apenas a gramática, redigida cedo demais, da Finitude. Daí o m al-estar de que sofre a lógica tradicional, nom enclatura híbrida de formas do pensam ento e de regras empíricas.

N o estado em que ela se encontra, dificilm ente se pressente nela um

m étodo científico. Ela tem aproxim adam ente a form a de um a ciência de expe­

riência. Bem ou mal, as ciências experim entais encontraram , para o que de­

vem ser, seu próprio m étodo de definição e de classificação de sua m atéria.

51 Cf. Richard Kröner, Von Kant bis Hegel, [De Kant a Hegel] I, p.257.52 Carta a N ietham m er, 2 0 /5 /1 8 0 8 (Corr. [C orrespondência], trad. fr., I, p .209 ).

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M esm o a m atem ática pura tem o seu m étodo, que convém a seus objetos abs­

tratos e à determ inação quantitativa de que ela se ocupa exclu sivam en te.53

Nada de sem elhante para a lógica. Reconhecem gravem ente a sua au­toridade, mas podem despachar o essencial em algumas lições. Esse saber venerado é, ao m esm o tempo, perfeitam ente fútil. Sua situação se assem e­lha, portanto, à da M etafísica, tal com o Kant a descrevia. Kant, por isso, com eteu o erro de situar a Lógica entre os saberes inabaláveis. Pois essa hom enagem o tornava cego para uma crise de que a M etafísica talvez não fosse mais que um a seqüela. Seria possível, com efeito, que o destino da M etafísica, entendida com o ciência suprema, estivesse ligado ao da Lógica. Será por acaso que a Lógica não se tornou um a “ciência pura” e que a “filo­sofia, até agora, não descobriu seu m étodo” ? Será por acaso que, ao m es­mo tem po que, sob o nom e de “Lógica” , se acomodavam com um a discipli­na de tão m edíocre interesse, a filosofia tom asse seu m étodo em prestado a outras ciências, especialm ente à matemática? Não será antes o indício de que a Wissenschaft bem poderia se confundir com a Lógica? Essa idéia se desenhava, em certo sentido, na crítica feita por Kant a Fichte: só a Lógica m ereceria o título de D outrina da Ciência. Mas Kant se esquecia então da am bigüidade que persistia em seu próprio sistem a e da m aneira pela qual se distende, em certos lugares, a subordinação, no entanto proclamada, da Crítica à Lógica. Assim , por exem plo, na segunda D edução transcendental (§ 16):

A unidade sintética da percepção é, portanto, o mais elevado ponto a que

se deve ligar todo uso do entendim ento, mesmo a lógica toda, e, depois dela, a

filosofia transcendental ...

E a prim eira Introdução à Critique du jugement [Crítica do juízo], ao sugerir que a Lógica não é a instância suprema, anuncia de longe essa ciên­cia “ subjetiva” que H usserl julgará indispensável para a elucidação da lógi­ca pura. Ora, Fichte lim ita-se a se inscrever abertam ente nessa linha, quan­do afirma, por exemplo, que a proposição lógica de identidade só tem sentido pela proposição da Wissenschaftslehre [Doutrina da Ciência] “ Eu = Eu”, quan­do sustenta, em geral, que a lógica deve ser fundada pela Wissenschaftslehre

[Doutrina da Ciência]. Sobre esse ponto, é difícil admitir, com Krõner -

53 Logik [Lógica], IV, p .50.

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m esm o levando em conta as reservas de que cerca sua afirmação que Fichte abria cam inho para H egel.54 Pois, mais que nunca, Fichte denegava, aos princípios lógicos, todo uso material.

O princípio de contradição nada m ais diz que, se um conceito já está

determ inado por um a qualidade determ inada, ele não deve ser determ inado

por outra qualidade oposta à primeira; todavia, ele não diz por qual qualidade

um conceito deve ser originariam ente determ inado, e, em virtude de sua natu­

reza, não pode dizê-lo; com efeito, ele supõe a determ inação originária já efe­

tuada e só pode ser aplicado na m edida em que se supõe efetuada essa deter­

m inação. E preciso convocar outra ciência para julgar a determinação originária,55

Assim , toda proposição lógica estava enraizada na suposição, inicial­m ente necessária, do “fato da consciência” . Era a confissão inconsciente de que o em preendim ento de fundação da lógica está, inevitavelm ente, na al­çada de um idealism o subjetivo, ou, ainda, que o form alism o só tem senti­do no interior de um pensam ento representativo. Fichte extraía a verdade “finita” da lógica apenas formal. Ele evidenciava sua obediência a um a filo­sofia da consciência. Isso, porém, à sua revelia. Não chegava a pressentir a possibilidade de uma outra Lógica, visto que a natureza formal desta últim a perm anecia, para ele, com o um a evidência irrecusável. Q ue ao contrário se ouse atacar essa evidência, e a desaprovação de Fichte pelo velho Kant as­sum irá um sentido inesperado: Kant estava errado em assegurar que a Wissenschaftslehre [Doutrina da Ciência] não poderia engendrar seu conteú­do, mas, ao pé da letra, tinha razão em declarar que “a pura D outrina da Ciência não é nada mais nada m enos que a sim ples lógica” .

Todavia, essa m etam orfose da Lógica evoca um a outra: é preciso que a M etafísica se reduza à Lógica. E o que afirma a Introdução à Logik [Lógica]: doravante, a Lógica objetiva tom a o lugar da ontologia e da M etafísica es­pecial.56 Frase de tem ível concisão: ela marca o fim de um a evolução de que os com entadores frisaram a lentidão. O s textos de lena (1801-1807) conti­nuam a considerar com o já estabelecido o corte entre a Lógica e a M etafísi­ca. A ssim , por exem plo, o curso “ Ueber Logik und Metaphysik” [“ Sobre Lógi-

54 Kroner, op. eit., II, p .308-9.55 Fichte, W- Einleitung [Introdução] I, p .496 ; trad. fr., p .296-7.56 Cf. Logik [Lógica], IV, p.64-5.

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ca e M etafísica” ], citado na coletânea de Hoffmeister,57 compreenderá, como anuncia seu autor, três partes:

- em prim eiro lugar, a apresentação das categorias gerais da Finitude, “ tanto do ponto de vista objetivo quanto subjetivo” ;

- em segundo lugar, a apresentação das formas subjetivas da Finitude ou do pensam ento de Entendim ento - conceito, juízo, silogism o;

- "enfim, m ostrarem os a supressão, pela Razão, desse conhecim ento finito. Este é o lugar de fornecer a significação especial dos silogism os e, em geral, os fundam entos de um conhecim ento científico” . E Hegel acres­centa:

Partindo desta ú ltim a parte da lógica - a saber, do lado n egativo ou

nadificador da Razão efetuarem os a passagem à filosofia propriam ente dita

ou à M etafísica.

E preciso convir que ainda se está longe da linguagem da Logik [Lógi­ca]. H egel ainda não está pronto para apresentar o título de “Lógica subje­tiva” , com o um a concessão feita ao leitor, com o risco de deixá-lo desco­nhecer, devido ao fato da aparente sim ilitude dos conteúdos tratados, a originalidade do que agora se entende por “ Lógica” .58 H ouve portanto uma época em que, com o observa Häring,

... a reabilitação da M etafísica contra Kant lhe pareceu já ser um a inovação

suficiente, para que continuasse a fazer um a seqüência da Lógica, com o ciên­

cia particular, longe ainda de pensar em alistá-la na Lógica entendida com o

Lógica da Idéia.1’9

D ois tem as, nessa época, perm anecem portanto nitidam ente disjuntos: por um lado, a necessidade de instaurar “o conhecim ento do A b solu to ” ; por outro, a necessidade de dem onstrar a impropriedade das categorias que,

57 Dokuments [Docum entos sobre o desenvolvimento de H egel], Éd. J. Hoffmeister, p .347-8.58 “ E ssa parte da Lógica, que contém a doutrina do Conceito e form a a terceira parte do

todo, é publicada tam bém com o título: Sistem a da lógica subjetiva, para a com odidade dos am igos d e ssa ciência que têm o costum e de atribuir m aior in teresse às m atérias aqui tratadas, com preendidas no cam po do que habitualm ente se denom ina Lógica, do que a o u tros ob jetos lógicos que foram tratados nas duas prim eiras partes” (Logik [Lógica], V, p .3 ).

59 Háring, Hegels Leben, II, p.81.

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até então, serviam para pensá-lo. A crítica do saber defeituoso perm anece distinta do Saber. E isso m ostra que Hegel ainda não renunciou a falar, por

sua vez, do objeto da M etafísica. Onde, ao certo, está a prova disso? E que as categorias continuam sendo concebidas, ao m enos obscuram ente, com o instrum entos a serviço de meu pensam ento subjetivo, instrum entos por m eio dos quais se dirão, em seguida, os conteúdos. N esse estágio portanto - mas tão-só nesse estágio - H egel ainda teria reconhecido a legitim idade do sis­tem a de dissociações no qual um intérprete recente funda sua “ leitura” da obra.

Convém perguntar-se de que fala Hegel. A quilo a propósito de que ele fala, o

referente últim o de seu discurso é o ser tradicional da m etafísica e da teo lo ­

gia. M as a articulação precisa daquilo de que ele fala, isto é, o sistem a das obje­

tividades noem áticas, deve ser d istinguido sim ultaneam ente do referente on­

tológico e da form a precisa e significante do discurso dialético.60

Por mais úteis que sejam para um exercício de leitura, tais dissociações nos parecem sobretudo perigosas, pois fazem ressurgir, bem exatam ente, os obstáculos que o autor precisou abater para fazer que coincidissem , em um m esm o discurso, Lógica e M etafísica. A própria expressão “objetivida­des noem áticas” contribui para velar aquilo que H egel entende por “pensa- m entos-objetivos” , isto é, “pensam entos” que não se referem mais, de m a­neira alguma, à partilha tradicional da “ subjetividade” e da “objetividade” . Ora, é essa noção que justifica a confluência da Lógica nova e do que se entendia por “M etafísica” :

Os pensam entos podem ser denom inados, segundo essas determ inações,

pensamentos objetivos, e, entre eles, tam bém é preciso contar as form as que se

tem o costum e de considerar inicialm ente na lógica ordinária e de tom ar ape­

nas com o form as do pensam ento consciente. A Lógica coincide portanto com

a M etafísica, com preendida com o a ciência das coisas nos pensam entos que

se considerava com o exprim indo as essências das coisas . . . “Pensamento objeti­

vo", essa expressão oferece, é verdade, um inconveniente, v isto que, com de­

m asiada freqüência, se em prega pensamento com o pertencendo apenas ao Es­

pírito, à consciência, bem com o objetivo só é assinalado para o não-espiritual.61

60 Trotignon, “ Lire H egel", in L A rc, n2 38, p .82.61 Enciclopédia das ciências filosóficas, § 24, VIII, p .83; trad. br., I, p .77-8.

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Em suma, na Logik [Lógica], H egel identifica logo de saída: a) crítica das categorias e conhecim ento do Absoluto; b) Lógica e M etafísica. E que ele fez tabula rasa das oposições representativas que tornavam tais clivagens legítim as e necessárias; é que ele devolveu a lógica tradicional a seu lugar (o que de bom grado chamaríamos “ideológico”) de doutrina da Finitude. Tor- na-se então patente que o discurso filosófico nada m ais tem de com um com aquilo que, até então, se entendia e se subentendia com isso: não tem de ser garantido pela lógica formal, nem de dar conta dos velhos objetos metafísicos. Para si m esm o, ele é seu cânon e sua temática. Por isso, desm entir seu projeto é confrontá-lo com as exigências de coerência da lógica formal ou querer assinalar a ele, com o se fosse um discurso “finito” , um referente. A o falar de “referente ontológico” , ao ordenar o discurso hegeliano pelo “ ser tradicio­nal da m etafísica e da teologia” , Trotignon delim ita da m aneira mais justa a im agem de H egel que nosso trabalho gostaria de contribuir para apagar.

Mas em proveito de quê, esse apagamento? E, de início, qual é a vanta­gem desse retorno à m aneira pela qual Hegel tencionava ser lido? Há pelo m enos um a que julgam os decisiva: assim, estam os em condições de levar plenam ente a sério a condenação que Hegel pronuncia contra a M etafísica.

A partir de agora, nós, filósofos, tem os com Vossa Excelência um inim i­

go com um : a m etafísica. Já N ew ton exibira com grandes letras esta advertên­

cia: Física evita a M etafísica. M as a desgraça é que, enquanto legou tal evange­

lho a seus am igos e estes o anunciaram fielm ente, não fizeram outra coisa

senão im itar um núm ero incalculável de vezes a esse inglês que não sabia que,

durante toda sua vida, falara em prosa.62

N ão se trata apenas da m etafísica dos físicos: disso dá fé o início da Logik [Lógica].

Q uem ainda se interessa pelas pesquisas sobre a im aterialidade da alma,

sobre as causas m ecânicas e finais? A s antigas provas da existência de D eus já

não são m ais citadas senão pelo interesse histórico ou com vistas à edificação

ou elevação da alm a. E incontestável que desapareceu todo interesse, quer

pelo conteúdo, quer pela form a da antiga M etafísica, quer pelos dois ao m es­

m o tem po.63

62 C arta a Goethe, 2 4 /2 /1 8 2 1 (Corr. [Correspondência], trad. fr., II, p .221).63 Logik [Lógica], IV, p .13.

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A ssim , o velho discurso sobre o Eu, o M undo e Deus está para sempre interrom pido e seria loucura querer retomá-lo. Essas linhas são “ bem co­nhecidas”, mas foram escam oteadas demais: faziam som bra ao retrato da­quele que deveria ser apenas “o últim o m etafísico” . Se o hegelianism o pre­serva um parentesco tão leve com a M etafísica, nem por isso ele deixa de ser seu suntuoso acabam ento, e, daí em diante, não m ais estam os em um am biente familiar. N ão se entende que os filósofos da Finitude detêm o m onopólio da m editação sobre o fim da M etafísica? E não nos parece óbvio que esta últim a é inseparável de um redobro na Finitude? A essa altura, um a vez mais, é preciso escolher: ou manter, custe o que custar, essa “evi­dência” , e, para tanto, preferir à sintaxe proposta por Hegel a im agem do mais vertiginoso dos dogm atism os, ou, então, deixar em suspenso essa “evi­dência” e se perguntar se o que Hegel chama de “pensam ento finito” é de fato o único herdeiro possível da M etafísica desaparecida. E verdade que esse desaparecim ento coincidiu com o surgim ento, em plena luz do dia, na Critique de la raison pure [Crítica da razão pura], da tem ática da Finitude. Mas isso não quer dizer que o pensam ento finito, de que a Crítica era a intérpre­te, tenha conseguido com preender aquilo que - objetivamente - ela tinha razão em destruir; do m esm o m odo, o papel indispensável da Aufklärung

não é de m aneira algum a incom patível com a vaidade de sua crítica da reli­gião. Longe de rom per com a M etafísica, Kant, com o se viu, exprim ia antes sua verdade inconfessa. Se nos for perm itida essa comparação a título de im agem , Hegel lhe assinala um papel bastante sem elhante ao que H eidegger atribuirá a N ietzsche. A Finitude, desde sempre, estava silenciosam ente presente no coração do pensam ento clássico e Kant estava na alçada deste últim o bem m ais do que podia acreditar. E indício dessa conivência ao m e­nos um descuido comum: a ausência de toda interrogação quanto ao valor da

lógica formal. Esta últim a permanece, em Kant, o que ela sempre fora: des­denhada ou respeitada, um saber cuja arbitragem não causava espanto a ninguém . Kant, por exem plo, não se deu ao trabalho

... de subm eter à crítica as formas do Conceito que estão contidas na lógica

habitual; antes, acolheu um a parte desta últim a, as funções do ju ízo, com vistas

à determ inação das categorias e oferecendo-as com o pressuposições válidas.64

64 Ibidem , V, p.30.

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Por que a apofântica é o código por excelência da verdade? Não mais que outro qualquer, Kant não form ulou essa questão que o teria conduzido a im prim ir a marca de um a suspeita, não mais no conteúdo, mas no teclado de

expressão da filosofia chamada por ele de dogmática. N unca suspeitou da sintaxe da língua filosófica, nunca se perguntou se as formas desta últim a não encerravam já um a m etafísica latente.

Ora, enquanto negligenciássem os criticar essas formas com o tais, como suspeitaríam os de que são armadilhas? Descartes desprezava a lógica da Escola. Todavia, era m ais im portante que só pensasse que o argum ento ontológico pudesse ser apresentado na forma silogística. Isso equivalia a atribuir explicitam ente a um Deus -sujeito a existência, com o propriedade, pela mediação de um conceito. Era portanto abrir o flanco à crítica kantiana: a existência não é um a propriedade e não se deixa deduzir do conceito. O u ­tro exemplo: ao fazer da figura do juízo o m odo canônico de determ inação, privilegiava-se secretam ente o m odo de determ inação do sensível e conten­tava-se, em seguida, em transpô-lo aos "objetos” m etafísicos - assinalando a Deus a "existência” , ao mundo a "finidade” ou a "infinidade” , à alma a “ sim ­plicidade” ou a “ substancialidade” . Porém,

não se investigava se tais predicados eram algo de verdadeiro neles m esm os e

para eles m esm os, nem se a form a do ju ízo podia ser a form a da verdade.65

E esse primado cegamente outorgado à forma predicativa que tornou inevitável a constituição dos objetos da M etafísica especial. Sujeitos de pro­posições, "D eu s” , o “m undo” , eram visados ex officio com o objetos de discur­so, suportes para predicados possíveis, tal com o substratos percebidos.

A M etafísica do Espírito, ou, com o já se disse, da alma, gira em torno das

determ inações de substância, sim plicidade, im aterialidade - determ inações que

repousam na representação do espírito tirada da consciência em pírica com o

sujeito; pergunta-se então que tipos de predicados concordam com as percep­

ções . . .6b

Fascinada pela presença de “objetos” , a M etafísica não prestava nenhu­m a atenção ao campo de fala que desdobrava. N enhum saber era m enos curioso acerca da natureza da “ Razão” :

65 Enciclopédia das ciências fdosóficas, § 28, VIII, p .100; trad. br., III, p .90.66 Logik [Lógica], V, p .263.

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N esse ponto, não se pode confiar num a descrição m uito corrente da Ra­

zão, pois esta evita indicar o que é preciso entender por Razão; tal conheci­

m ento, que deveria ser racional, está ocupado sobretudo com seus objetos, a

ponto de ela se esquecer de conhecer a própria Razão e a d istingue e a designa

som ente pelos objetos que p ossui.67

Investida em M etafísica, a filosofia não deixava de ter um discurso fan­tástico, visto estar entendido que deveria desvelar objetos. N o m elhor dos casos, oferecia-se em espetáculo ou em “representação” a verdade que ela não pensava em buscar nas adjacências: em sua linguagem . Com o "evidên­cias'’ dadas de direito a qualquer olhar, ela oferecia os fragm entos do dis­curso que, à sua revelia, a atravessavam. Em suma, o crédito, concedido às formas da lógica tradicional, im punha a adoção de um a língua deformadora, visto deixar na som bra as categorias de que se servia. Estas eram pressu­postas sem justificação e encontradas ao acaso. Constituíam certam ente a arm adura do discurso filosófico, mas, inconscientem ente, no m odo do “ ins­tinto” ; se os sistem as, ao bel-prazer de suas exigências, traziam à luz algu­mas dessas categorias, então tais conceitos isolados só levavam um a exis­tência "dispersa e incerta” .68 A M etafísica inteira, seria possível, portanto, devolver o ju ízo que Leibniz proferia sobre as provas cartesianas da exis­tência de Deus: “E preciso confessar que tais raciocínios são um pouco suspeitos, porque vão depressa dem ais” .69 N esse ponto, de resto, é Leibniz que no século XVII m elhor anuncia Hegel: m esm o que lhe aconteça de iden­tificar m etafísica e teologia, no m ais das vezes ele se recusa a reabsorver a ciência do “ens com um ” na do mais perfeito ente, que é apenas um a espécie daquela; ele tom a o cuidado de reexam inar os conceitos-chave da M etafísi­ca.70 Leibniz afirma: “A M etafísica pouco difere da verdadeira Lógica” .71 Po­rém, visto que aceitava com confiança a herança dos Analíticos, tam bém Leibniz ia “rápido dem ais” . E a essa situação que põe fim a crítica radical do papel desem penhado pela lógica formal na história da filosofia. N ão que a “verdadeira lógica” hegeliana cum pra a tarefa que a lógica formal não soubera preencher. A diferença que torna as duas palavras hom ônim as é

67 Ibidem , V, p. 119.68 Logik [Lógica], "Segundo Prefácio” .69 Leibniz, A Elizabeth, Ger., II, p .434.70 Leibniz, D e prim ae ph. emend., Ger., IV, p .468. D os ju ízo s de H egel sobre a "an tiga M etafí­

sica", pode ser igualm ente aproxim ado o texto dos N ouveaux Essais, IV, cap. 8, § 9: “ é verdade que a atual M etafísica abu sa do nom e de ciência, m as há ouro n essa s escórias” .

71 Leibniz, A Elizabeth, ibidem .

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bem mais radical. Enquanto a lógica designava até aqui a instância que distorcera o desdobram ento do Logos em um discurso predicativo e con­cernindo a entes, a Lógica nova não prejulga mais os entes nos quais se investirão as categorias (“D eus” por Substância). Ela deixa de relacionar tais categorias a objetos e deixa de formar a trama de um conhecim ento- de-coisas. Ela se torna Saber, isto é, tom ada de consciência pela filosofia de que ela é, de ponta a ponta, linguagem. Não diremos: “ que ela é somente

linguagem” , ou “ que ela é a linguagem do Ser” . Tanto aquela restrição com o essa hipérbole nos reconduziriam à ideologia da linguagem (dissociação do signo e do sentido, do sentido e do ser), da qual a Logik [Lógica] conseguiu se libertar. Já não se trata nem de se redobrar na decifração dos signos nem de exprim ir o que a língua corrente não saberia dizer. Pois, nessa língua em que tudo é dito - e isso já provocou espanto suficiente - , não há literalm ente nada a dizer - e esse segundo aspecto da especulação é freqüentem ente es­quecido ou deformado. O m ovim ento da Coisa (Sache) já anim a o discurso: não há pensam ento fora da Coisa, responde H egel a um correspondente que confessava sua perplexidade perante o conhecim ento especulativo.72 Lançaram luz, preferencialm ente, sobre este lado: otim ism o e dogm atism o hegelianos, soberba segurança de habitar o país do Verdadeiro. M as H egel acrescenta: tam pouco há coisas (Dinge) fora do pensam ento; “ a coisa não pode ser, em nós, algo m ais que o conceito que dela tem os” .73 Ora, não estão quites com esse segundo adágio quando invocaram o “ idealism o he- geliano” , visto que então transpõem o Saber em term os de um a “teoria do conhecim ento” de que, precisam ente, ele nos libera.

É verdade: com o proceder de outra maneira? Com entar ou ler Hegel não é se expor a parafrasear ou a trair? A o longo destas páginas, com de­m asiada freqüência em preguei as expressões “ deixar que as categorias se digam ”, "deixar que se desdobrem ” , ou “ se explicitem ” - e a variedade das expressões e das im agens não alterava nada: assim, eu tinha o sentim ento de ceder à prim eira tentação. Um a vez concedida tal facilidade, abrigado por trás de um discurso insólito, é claro que é fácil debochar dos que qui­seram, para terminar, julgar e apreciar esse discurso sem m aiores cuidados em respeitar sua lei. Eu m e fiz tal objeção; freqüentem ente tive de m e ha­ver com ela. Para que prom over essa caça aos contra-sensos, quando per­m anecem incertas as regras do sentido pelas quais eles são m edidos?

72 Cf. P faff a H egel, 1813 (Corr. [Correspondência], trad, fr., I, p .362).73 Logik [Lógica], IV, p.26.

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N o entanto - por m enos “hegeliano” que seja e por m enor que seja o sentido que se dê a essa palavra e a essa escolha vale a pena tentar resti­tuir o projeto de H egel contra os que se apressam em criticar o sistema, ou - o que é pior - recuperar caridosam ente alguns temas. Vale a pena ter em vista a crítica continua que o autor faz da ontologia representativa. Adm ira-se então que não tenham se preocupado em evitar a condenação do Sistem a em uma linguagem que este não cessava de minar.

Adm irável escrúpulo: isso, justam ente, é lançar o convite para que nos tornem os hegelianos. Respeitar assim a letra já é ingressar em religião.

Trata-se, sem dúvida, de religião. Tal palavra já é reveladora de urna certa im agem do hegelianism o, m aciço dogm ático que se saúda de longe e ao largo do qual se passa. Em certo sentido, nenhum pensam ento é m enos religioso e m enos dogm ático, se esses term os se aplicam a um discurso que nos informe sobre a verdade porque só ele, em virtude do lugar em que se encontra, na hora em que é proferido, está em condições de dizê-la. Tal certeza de haver atingido o lugar privilegiado é o apanágio do “pensam ento finito” . Sem dúvida, vivem os no Verdadeiro - mas com isso H egel não quer dizer que todas as nossas palavras, doravante, sejam igualm ente verdades encadeadas. U m a coisa é estar na Verdade no sentido em que ele o enten­de, outra coisa é assegurar que, desse meu observatório, direi seguram ente a verdade “representativa” . E tal arrogância, no entanto, que em prestam a um autor que, incansavelm ente, diz da vaidade que aí reside. Tal é o efeito da retom ada do Saber nas malhas da ontologia representativa: é situado, ele que desqualifica todos os sítios. Ele nos desvia das paisagens “bem conhe­cidas” : nestas, ele é reintegrado. Ele pretende relativizar nossa gramática espontânea: indignam -se com os solecism os que ele com ete. E sem se per­guntar um único instante: em que língua, afinal de contas? Por isso, a filo­sofia de H egel nos interessou m enos que a dificuldade específica que expe­rim entam para estar no com passo desse discurso, desde que se proponham a com preendê-lo com o com preendem ou acreditam com preender outro dis­curso filosófico. Com preender ou acreditar compreender, nesse caso, sem ­pre é referir as significações ditas “abstratas” aos conteúdos representa­dos, aos quais - deliberadam ente ou não - o autor faz alusão. Ora, Hegel julga esse jogo desonesto e ineficaz. A consciência com um acreditará, por exem plo, com preender o que é o “Eu puro” de que lhe fala o filósofo, mas este não terá ganho nada em ter se tornado tão rapidamente inteligível.

A ntes, o que acontece é o inconveniente de um a ilusão: devia-se falar de

algo conhecido, do Eu da consciência de si em pírica, ao passo que, de fato,

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fala-se de algo distante dessa consciência. A determ inação do Saber puro com o

Eu sem pre nos leva a nos lem brarm os do Eu subjetivo atrás de nós, ao passo

que seus lim ites devem ser esquecidos; disso, ela conserva sua representação

presente, com o se as proposições e as relações decorrentes do desenvolvim ento

ulterior do Eu ainda pudessem advir nesse Eu e ser nele encontradas. Tal en­

gano, longe de trazer clareza im ediata, só produz um a confusão tanto mais

viva e um a desorientação to ta l.74

Acreditam ter com preendido por que se enganaram acerca da língua na qual, agora, nos falam - porque as significações tornadas hom ônim as perm anecem no entanto arranjadas nos lugares fora dos quais, ao que pa­rece, elas se aniquilariam. Contrariam ente a esses autores, H egel adverte que sua linguagem está destinada a rasurar tais pontos de referência. “M a­téria, Eu, enquanto devem com preender a totalidade, não são m ais nem Eu nem M atéria”;75 a “ Essência” não é m ais um ente do além, nem a “Subs­tância” algo que seja englobante, maciço e desprovido de fissuras. A pro­pósito de cada significação aceita, é a m esm a ascese que é proposta: quan­do a pronunciarem, não im aginem m ais essa localização ou aquela o u tra... O utros filósofos perdem o hábito de pensar por imagens: a im aginação é dem asiado estreita. Hegel vai mais longe: para ele, dizer é, de direito, in­com patível com imaginar, assim como, aliás, com todo sistem a de sinaliza­ção. Não se balizam os conteúdos: deixa-se que eles apaguem lentam ente seus lim ites. Tais significações que se deixam dizer não são deslocadas para outro lugar; agora, o discurso abole até a idéia de que haja um a terra eleita onde poderíam os nos reunir a tais significações, um tabuleiro em que suas casas estariam preparadas. “ D eixar que se desdobrem ” ou “que se explici­tem ” os conteúdos não é outra coisa: não desvelar os conteúdos de uma vez por todas, mas expulsá-los de tal maneira, que nunca mais se estará

74 Ibidem , IV, p .82 . "... O segundo m om ento con siste em enxergar à su a volta, p ara ver o que corresponde ao conteúdo nas represen tações e na língua. A m aneira pela qual o conceito é para si em su a verdade e pela qual ele é. na representação não apen as p o ­dem , m as devem diferir um do outro quanto à su a form a e quanto à su a figura. Toda­via, se o conteúdo da representação não é falso, bem pode o conceito, enquanto está nela contido, segundo a su a essên cia e nela presente, ser m ostrado - isso quer dizer que a representação pode ser elevada à form a do conceito. M as a represen tação é tão pouco a m edida e critério do conceito, que é n ecessário e verdadeiro, que dele deve antes extrair su a verdade, validar-se e conhecer-se a partir dele" (Ph. Rechts [F ilosofia do direito], E inleitung [“ In trodução” ], VII, p .40-1).

75 D ifferenz [D iferença entre os sistem as filosóficos de Fichte e de Schelling], I, p .59; trad. fr„ p .96.

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tentado a descobri-los em algum lugar ou inseri-los em uma rede de diferen­ças e afastam entos que os imobilizaria.

Vamos resumir: isso é concederm os a nós m esm os a perm issão de di­zer o que nos passa pela cabeça.

Vamos perm anecer provisoriam ente hegelianos. A ntes, portanto, di­gam que isso é revogar aquela outra perm issão que, secretam ente, o filóso­fo se concede para falar sobre coisas, isto é, viajar lentam ente através delas, o tem po de desdobrar os estratagem as que acabarão por torná-lo seu possui­dor. Os m étodos de conhecimento eram esses ritos de sedução cuidadosam en­te regulados. O m étodo do Saber, por sua vez, é um recolhim ento da lingua­gem sobre si m esm a. Com o com pará-los? Os prim eiros nos prom etiam vitórias, conquistas e anexações; o últim o dispensa tais m etáforas topográ­ficas. Se o Saber, com efeito, nos expatria, não é ao nos transferir para outro lugar, mas ao nos fazer perder o gosto por toda paisagem. “O nde estou?” - essa questão que, dizia Merleau-Ponty, reaviva “o profundo m ovim ento pelo qual estam os instalados no m undo” ,76 o Saber torna vã. Pois, para quem a isso se confia, ele tom a antes de tudo a form a que W ittgenstein oferecerá com o específica de um “problem a filosófico” : “Todo problem a filosófico tem a forma: eu não sei mais onde estou” .77 Com a condição de tom ar a fórm ula ao pé da letra e ousar prolongá-la: nunca saberão onde estão, visto que o m ovim ento das significações não deixa de tornar prescritos os siste­mas de coordenadas aos quais eram espontaneam ente referidos - quer se trate de normas lógicas, da temporalidade, de m inha m orte, quer de m inha presença no m undo. Por isso, é a m esm a ilusão, aos olhos do Saber, pergun­tar se H egel respeita ou não o princípio de contradição ou inquietar-se de que tenha barateado tal experiência existencial.

Vocês achavam que esse discurso era fantasioso; agora, julgam que seja louco; mas cuidado para, diagnosticando de tão alto, não privilegiar, ao menos

inconscientemente, um dos inumeráveis referenciais que ele afasta e aos quais vocês não têm mais o direito de referir esse texto, enquanto o lêem. Em pregan­do um a grade, com o não com eter violência contra o texto que tem por objeto rom per todas as grades? Com o não imitar os filólogos que transferem, sem que se dêem conta, os preconceitos da Finitude aos livros sagrados? Com o falar sobre o discurso que se deixa dizer, sem o alojar no “ dom ínio” onde ele perde todo o sentido?

76 M erleau-Ponty, Visible et invisible, p .140-1.77 W ittgenstein, Ph. U nt., p .49; apud Granger, Wittgenstein, p.86.

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A representação é o conhecim ento relativo, isto é, m anchado por um p o s­

tulado. M as, pela m esm a razão, eu m e abstenho dessa expressão que consiste

em designar o A b so lu to com o a unidade da representação e do ser. A repre­

sentação pertence a outro dom ínio que não o do conhecim ento do A b so lu to .78

De nada serve, então, recriminar a im postura. O enigm a permanece: nunca se critica Hegel sem se expor a lhe endereçar queixas que, na verda­de, ele teria tido o descuido de não prever. Críticas que se im põem demais ao bom senso para não serem o indício de que seu autor perm anece em pe­nhado nas distinções e oposições que o discurso abandona no m eio do ca­minho. Denunciarão o im perialism o do Logos. De fato, porém, não lam en­tam que a filosofia, a partir daí, deixe de ser um a narração, keine Erzählung? Q ue o que se tom ava por um relato de viagem não desem boque mais em nada, com o se, ao térm ino da Odisséia, Itaca fosse um nom e no lugar de um a ilha? A s “ coisas m esm as” de que se esperava a revelação, ei-las transm utadas em linguagem . “Quando a inteligência se preenche com a palavra, acolhe a natureza da coisa em si.”

A í está, precisam ente, o que torna patente o absurdo, dirão os que, em Hegel, visam ao últim o m etafísico do conhecim ento: dando-lhe ouvidos, o sistem a que substitui todos os discursos filosóficos de outrora ê somente

linguagem distribuída de outra maneira, mas linguagem da qual nos assegu­ram que, por hora, a “ coisa” nela se esgota. O que equivale a dizer: escutem este poem a, ele os dispensará de suas ciências; falem m eu idiom a e todos os saberes aos quais vocês se apegam soçobrarão na “ Finitude” . A realida­de é inteiram ente outra. Verdadeiramente, bastaria bem pouco para que o

conhecimento estivesse seguro de que, doravante, iria ganhar todas as suas batalhas: decidir que todas as conceitualizações, até hoje, só eram laborio­sas e incertas porque se contentavam com uma linguagem que não ousava se identificar com a “coisa". Isso seria, portanto, o triunfo do conhecimento:

teriam acabado as astúcias e as precauções a tomar; a “coisa” se diz, sem ­pre ela se disse. De fato, essa vitória é obtida com um dispêndio bem pe­queno, para que não se veja desm oronando no charlatanism o das filosofias da “representação” ou do “conhecim ento” : o velho em preendim ento do qual o Saber tom a o lugar repousava em um parti pris ideológico que a própria dem ência do Saber tem o m érito de tornar evidente.

, K jH G É R A R D L E B R U N ■

78 C arta a Duboc, 2 9 /4 /1 8 2 3 (Corr. [C orrespondência], trad. fr., III, p. 17).

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Tal é, sum ariam ente desenhado, o perfil do anti-hegelianism o, mais vivo do que nunca nestes tem pos. Em Hegel, não se vê mais que a figura de proa do “logocentrism o” , o pensador exem plar de urna era passada do pen­samento: “A representação” . Não se trata de examinar, m enos ainda de cri­ticar essas análises recentes. Se a elas nos referim os de passagem , é so- m ente para sugerir que este estudo, por mais decepcionante e negativo que pareça, talvez não seja inteiram ente inútil. Por que essa veem ência contra o “ logos hegeliano” ? Não estaria ela dissim ulando o cuidado ou a esperan­ça de substituí-lo por outro, tendo ele esgotado o tem po de sua validade? Um outro que seria incom ensurável com ele, sem dúvida - dispersando, por exem plo, e não recolhendo - , mas, enfim, princípio de um a ontologia nova. Ora, acreditam os haver defasagem, nesse caso, entre H egel e seus críticos, e que o “ Logos hegeliano” não tem de ser recusado como os Prin­cípios dos Fisiólogos arcaicos. Hegel, por sua vez, não propunha uma on to­logia nova. Para ele, um a ontologia sem pre resulta de uma escolha discur­siva inconsciente, um a decisão de usar categorias de m aneira determinada, portanto mutiladora, para empregá-las mais rapidamente. E por isso que insistim os tanto na diferença do “ especulativo” e do “representativo” , na idéia de que sem pre passam cedo demais ao “concreto” e de que, na espe­rança de descrever, m elhor ou de outra maneira, as “ coisas representáveis”- até m esm o o “ ente” - , sempre abandonam cedo demais o questionam en­to dos conteúdos.

Certam ente, vão replicar: mas isso é apenas descrever a dem ência he- geliana de um outro ângulo. Por que, com efeito, jam ais sair da investiga­ção do λογος, visto que foi decidido que ela coincidia com o Saber? Sempre voltam os à aposta “logocentrista” ...

Resta examinar se o “ Saber” , no sentido de Hegel, está encarregado da m esm a tarefa que nossas ontologias ou ciências; se ele se propõe, seguin­do o exem plo delas, a “dizer o ser” (?), nos informar sobre ele ou sobre algum a de suas regiões; em sum a, se o hegelianism o - sob a cláusula dogm ática do νοειν = είναι, a única que dele retiveram - não foi a prim eira “filosofia” a se contentar em explorar o funcionam ento de sua linguagem e em nunca utilizar essa linguagem . Sob essa luz, tal filosofia já não desdo­braria tanto um Logos cosm oteológico quanto subverteria a acepção da pa­lavra λεγειν, quando se trata do dizer “filosófico” . Se assim fosse, deveriam conceder que, m enos que de qualquer outro, de Hegel não se deveria exigir um a ontologia e um a Weltanschauung, ou julgá-lo por aquelas que lhe foram dadas por em préstim o - conceder que ele foi mais desconhecido que um pensador m aldito.

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E, a partir daí, o anti-hegelianism o deveria ser apreciado sob outro ângulo. Talvez só ponham tanto ardor em desconhecer a originalidade da neutralização da M etafísica - que Hegel, m etam orfoseando-a em Lógica, tinha consciência de efetuar - , porque é insuportável deixar o Conceito, esse puro trabalho da linguagem sobre si m esma, enterrar todas as signifi­cações que ainda são tidas com o sagradas ou primordiais. Pois sempre há algumas palavras ("C ogito” , “D eus” , “Ser” , "origem ” ...), para as quais fa­zem questão de preservar um sentido reconhecível, com as quais enten­dem viver com o se fossem bem mais que destroços de discurso e com o se não bastasse outra gramática para desfigurar seu sentido “bem conheci­do” . O anti-hegelianism o de princípio, então, não é mais apenas o que pre­tendem: a recusa de um A bsoluto que devora. Ele traduz a inquietude de não poder situar o A bsoluto de outra maneira, a não ser recom eçando o discurso, o cuidado de salvaguardar ao m enos um firme com eço. Denegam toda seriedade para o pensam ento de que “tudo se deixaria d izer” . Mas, então, o que se recusa é decerto a oni-“presença" (aliás, a ser redefinida) de um Deus afinal tão “abstrato” ? N ão tem em os ver os objetos da Repre­sentação (desta vez, no sentido de Hegel) se transform ar em palavras? Não é tanto com o dogm atism o que o hegelianism o é insuportável, mas com o instância redutora sempre possível. O que não perdoam ao Deus de Hegel não é o fato de ser um autocrata, mas um Gênio M aligno. N ão o fato de saber ler na natureza m elhor que nós e, na história, antes de nós; mas sem ­pre deixar a suspeita de que nossas convicções, nossas atitudes bem que poderiam ser apenas arranjos discursivos efêmeros. Sim, essa sim ples even­tualidade é m ais in su p ortável que tod os os p rocessos no id iom a do ideologism o: Q uem é você? D e onde você fala? Hegel formulava um a ques­tão m enos indiscreta, porém mais temível: Em que linguagem você está falando neste m om ento? Q uem não se detém antes de “intervir o mais cedo possível nos discursos” , com preende-se, portanto, que tenha tudo a tem er do “ labor do desenvolvim ento consum ado” . Chegando até a ver em perigo seu direito de falar. Por detrás de m uitos requisitórios pronunciados contra Hegel, há tam bém a angústia diante desse niilism o no qual ele nos obrigaria a viver - nós, os "representativos” - , se ele não perm anecesse dogm ático.

Isso é dito para que um livro a mais sobre H egel tenha ao m enos uma desculpa. Seu autor não tinha nenhum a conta a acertar com nem um Logos que fosse; não partia à caça de nenhum im pensado. Tendo chegado a tal ponto de disponibilidade, por que não tom ar ao pé da letra esse “ dogm a­tism o” que se recusava a sê-lo? Por que não se deixar levar pela letra de

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Hegel e seguir os conselhos de paciência que o autor dá ao leitor, até ver onde conduz tal exercício? Vemos o novo discurso apagar, um a após outra, as dificuldades. Som os decerto tentados, aqui ou ali, a recusar as licenças que ele concede. Mas essa resistência era decorrente de um a teim osia sin­tática: concedem os isso um a vez mais ao autor. E, de concessão em conces­são, as formas de todas as m etafísicas conhecidas se dissolvem . Não há conceito de que o leitor não se pergunte, ao menos: “Suponham os que d o­ravante ele tenha esse sentido, o jogo poderá continuar?” . A ssim , diante de nós, a tradição é exibida; seus conceitos, m anipuláveis e deform áveis, ao bel-prazer do operador. Ela não tem, portanto, nada a nos dizer. Para que se pôr à sua escuta? Ela só fizera tartamudear. A liberdade nos é devolvida para trabalharm os sobre os textos e brincar com seus conteúdos, sem que tenham os de nos pôr atenciosam ente à escuta. Por um a vez, um filósofo não propõe nem ruptura nem evasão nem conversão, nada que se pareça com as grandes decisões nas quais o que está em jogo é sua felicidade. Não há nada m ais senão um a maré m ontante que recobre as significações “bem conhecidas” , nada mais que um discurso sem pressa que não constitui se­não a si m esm o.

Cannes, 1968/Túnis, 1970

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BIBLIOGRAFIA PARCIAL

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* D esta lista bib liográfica arrolada pelo autor não constam todas as referências m enciona­das no texto. O intuito básico é o de citar as obras que desem penharam papel particular­m ente significativo no panoram a da erudição hegeliana. (N .E.)

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