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Legend (Legend #1) - Marie Lu

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A verdade se tornará lenda – Ambientado na cidade de Los Angeles em 2130 D.C., na atual República da América, conta a história de um rapaz – o criminoso mais procurado do país – e de uma jovem – a pupila mais promissora da República –, cujos caminhos se cruzam quando o irmão desta é assassinado e a ela cabe a tarefa de capturar o responsável pelo crime. No entanto, a verdade que os dois desvendarão se tornará uma lenda. O que outrora foi o oeste dos Estados Unidos é agora o lar da República, uma nação eternamente em guerra com seus vizinhos. Nascida em uma família de elite em um dos mais ricos setores da República, June é uma garota prodígio de 15 anos que está sendo preparada para o sucesso nos mais altos círculos militares da República. Nascido nas favelas, Day, de 15 anos, é o criminoso mais procurado do país; porém, suas motivações parecem não ser tão mal-intencionadas assim. De mundos diferentes, June e Day não têm motivos para se cruzarem – até o dia em que o irmão de June, Metias, é assassinado e Day se torna o principal suspeito. Preso num grande jogo de gato e rato, Day luta pela sobrevivência da sua família, enquanto June procura vingar a morte de Metias. Mas, em uma chocante reviravolta, os dois descobrem a verdade sobre o que realmente os uniu e sobre até onde seu país irá para manter seus segredos.

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LOSANGELES,CALIFÓRNIAREPÚBLICADAAMÉRICA

POPULAÇÃO:20.174.282HABITANTES

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Parte1

OMENINOQUECAMINHASOBALUZ

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DAY

Minhamãepensaqueestoumorto.Obviamente,nãoestoumorto,porémémaisseguroparaelapensarque

estou.Pelo menos duas vezes por mês vejo meu cartaz de “Procura-se”,

exibidonostelõesdeTVespalhadosnocentrodeLosAngeles.Eleparecemeio deslocado lá. A maioria das fotos nas telas mostra coisas felizes:criançassorridentessobumcéudebrigadeiro,turistasposandodiantedasruínas da Golden Gate, comerciais da República em cores de néon. Hátambém propaganda anticolônias. “As Colônias querem nossas terras”,afirmamos anúncios. “Elesqueremoquenão têm.Nãopermitaqueelesconquistemseuslares.Apoienossacausa!”

Eentãoapareceminha fichacriminal.Ela iluminaos telõesdeTV,emtodaasuaglóriamulticolorida:

PROCURADOPELAREPÚBLICA

ArquivoNº462178-3233“DAY”

--------------------------------------------------

PROCURADOPORAGRESSÃO,

INCÊNDIO,ROUBO,DESTRUIÇÃODE

PROPRIEDADESMILITARES,EPOR

PREJUDICAROESFORÇODEGUERRA.

RECOMPENSADE200.000NOTAS

DAREPÚBLICAPORINFORMAÇÕES

QUELEVEMÀPRISÃODESSEELEMENTO.

Oscartazessempre trazemuma fotodiferentecomminha ficha.Certavezeraadeummeninodeóculos,comacabeçacheiadegrossoscachoscor de cobre. De outra vez, a foto era de um garoto de olhos negros ecarequinha. Às vezes sou negro, às vezes, branco, outras vezes pardo,moreno, amarelo ou vermelho, ou qualquer outra coisa que lhes venha àcabeça.

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Em outras palavras: a República não tem ideia da minha aparência.Parecequeelesnãosabemquasenadasobremim,excetoquesoujovemeque,quandoverificamminhas impressõesdigitais,nãoencontramnoseubanco de dados nenhuma que corresponda. É por isso que me odeiam,porquenãosouocriminosomaisperigosodopaís,esimomaisprocurado.Eufaçoqueelespareçamineficientes,poisnãoconseguemmecapturar.

Estamosnoiníciodanoite,masjáestáumbreuláfora,eosreflexosdastelasgrandesdeTVsãovisíveisnaspoçasdarua.Eumesentonoparapeitoesfaceladodeumajanelaatrêsandaresdealtura,ocultodavisão,atrásdasvigasdeaçoenferrujadas.Oprédioeraumconjuntodeapartamentos,masagoraestáemruínas.Lâmpadasquebradase cacosdevidro seespalhamdesordenadamentenochãodestecômodo,etodasasparedesestãocomatinta descascada. Em um canto, no chão, um velho retrato do PrimeiroEleitor jaz no chão, virado para cima. Eume pergunto quemmorava ali.Ninguémépiradoobastanteparadeixar seu retratodoPrimeiroEleitorabandonadonochãodaquelejeito.

Meucabelo,comosempre,estáenfiadonumvelhobonéde jornaleiro.Meusolhosestãofixosnapequenacasadeumandardooutroladodarua.Minhasmãosmexemcomomedalhãopenduradonomeupescoço.

Tess se debruça na outra janela do cômodo, ela me observaatentamente.Estouinquietoe,comosempre,elapercebeisso.

ApragaatingiucomforçaosetorLake.Obrilhodostelõespossibilita,aTesseamim,verossoldadosnofimdarua,àmedidaqueelesinspecionamtodasascasas,comsuascapasnegrasreluzentes,usadassoltasporcausado calor. Cada um deles usa uma máscara de gás. Às vezes, quandoaparecem, marcam uma casa com um grande X vermelho na porta dafrente. Depois disso, ninguém entra ou sai da casa. Pelo menos, nãoenquantoalguémestáolhando.

–Vocêaindanãoconsegueveroscaras?–MurmuraTess.Assombrasocultamsuaexpressão.

Numatentativademedistrair,montoumestilingue improvisadocompedacinhosdeantigostubosdePVC:

–Elesnãojantaram.Fazhorasqueelesnãosesentamàmesa.Eumudodeposiçãoeestendomeujoelhoruim.–Vaiverelesnãoestãoemcasa.

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OlhoirritadoparaTess.Elaestátentandomeconsolar,masnãoestouafim:

–Uma luzestáacesa.Vejaaquelasvelas.Mamãenãogastariavelasseninguémestivesseemcasa.

Tessseaproximaediz:–Agentedeviasairdacidadeporumasduassemanas,né?–Elatenta

manteravozcalma,masdáparanotarseumedo.–Logoapragavaiacabarevocêpodevoltarparavisitar.Temosdinheiromaisdoquesuficienteparaduaspassagensdetrem.

Sacudoacabeçaedigo:– Uma noite por semana, lembra? Só quero ver como eles estão uma

noiteporsemana.–Sei…vocêveioaquitodasasnoitesessasemana.–Sóquerotercertezadequeelesestãobem.–Esevocêficardoente?–Voumearriscar.Evocênãoprecisavatervindocomigo,podiaterme

esperadoemAlta.Tessdádeombrosediz:–Alguémtemdevigiarvocê.Elatemdoisanosamenosdoqueeu,emboraàsvezespareçavelhao

bastanteparatomarcontademim.Observamosemsilêncioenquantoossoldadosseaproximamdacasada

minha família. Toda vez que eles param numa casa, um soldado bate àporta enquanto um segundo homem fica ao lado, de arma em punho. Seninguémabreaportaemdezsegundos,oprimeirosoldadoaarrombacomumpontapé.Não consigo vê-los quando entramàs pressas,mas conheçoesseprocedimento:umsoldadovaicolherumaamostradesanguedecadamembrodafamília,depoisvaiconectá-lanumleitorportátilparaverificarseháindíciosdapraga.Todooprocessodemoradezminutos.

Contoascasasentreolocalondeossoldadosestãoagoraeondemoraminha família. Vou precisar esperar uma hora antes de saber o queaconteceucommeusfamiliares.

Ouve-seumguinchovindodooutroladodarua.Meusolhossemovemrapidamente em direção ao barulho, e minha mão agarra a faca

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embainhadanomeucinto.Tessengoleemseco.É uma vítima da praga. Essa mulher deve estar se deteriorando há

meses,porquesuapeleestárachadaesangrando.Eumeperguntocomoossoldadosnãorepararamnelanas inspeçõesanteriores.Elacambaleiaporumtempo,desorientada,depoisvaiàfrente,tropeçaecaidejoelhos.Olhomais atrás, nadireçãodos soldados. Eles agora a veem.O soldado comaarma namão se aproxima, enquanto os outros onze ficam onde estão eobservam.Umavítimadapraganãoéumagrandeameaça.Osoldadoergueaarmaemira.Umasalvadefaíscasacabacomamulherinfectada.

Ela desmorona, depois fica imóvel. O soldado volta a unir-se aoscompanheiros.

Eugostariaquepudéssemospegarumadasarmasdossoldados.Umaarmabonitacomoaquelanãocustamuitonomercado,480Notas,menosque um fogão. Como todas as armas, tem precisão, é guiada por ímãs ecorrenteselétricas,epodeatingircomexatidãoumalvoatrêsquarteirõesde distância. É tecnologia roubada das Colônias, disse papai uma vez,embora seja claro que a República jamais admitiria isso. Tess e eupoderíamoscomprarcincoarmasdaquela,sequiséssemos…Aolongodosanos aprendemos a estocar odinheiro extraque roubamos, e amantê-loescondido,paraemergências.Masoverdadeiroproblemaemterumaarmanãoéadespesa,équeémuitofácildeserrastreada,levandoatévocê.Todaarma tem um sensor que informa o formato da mão de quem a usa,impressõesdigitais,elocalização.Seissonãomedenunciasse,nadamaisofaria. Então, permaneço comminhas armas caseiras, estilingues de tubosdePVCeoutrasbugigangas.

– Eles encontraram outra casa – diz Tess. Ela aperta os olhos paraconseguirvermelhor.

Olho e vejo os soldados saírem rapidamente de outra casa. Um delessacodeumalatadespraydetintaedesenhaumXvermelhogigantesconaporta. Conheço essa casa. Há tempos, a família que mora lá tinha umafilhinha daminha idade.Meus irmãos e eu brincávamos com ela quandoéramos mais novos, de pega-pega e hóquei de rua, com pás de ferro ebolinhasdepapel.

Tess tentame distrair ao apontar com a cabeça para o embrulho depanopertodosmeuspés:

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–Quefoiquevocêtrouxeaídentro?Sorrioedepoismeabaixoparadesamarraronódopacote:–Algumasdas coisasque a gente conseguiu esta semana.Vão render

umaótimacomemoraçãodepoisqueelespassarempelainspeção.Metoamãonapequenapilhadeobjetoslegaisnopacoteemostroum

parusadodeóculosdeproteção.Euosexaminobem,paramecertificardeque os vidros não estão rachados. “Para John, umpresente adiantado deaniversário.”Meu irmãomaisvelho fazdezenoveanosno fimdasemana.Eletrabalhaemturnosdecatorzehorasnafábricadefornosdefricçãodobairro,semprechegaemcasaesfregandoosolhosporcausadafumaça.Deia maior sorte de poder surrupiar esses óculos de um carregamento dematerialmilitar.

Largo os óculos e reviro o resto das coisas. A maioria é de latas deensopadinhodecarneebatataqueroubeidadespensadeumavião,alémdeumvelhopardesapatoscomassolasintactas.Euqueriamuitoestarnasala com eles quando entregar esses troços todos, mas John é a únicapessoaquesabequeestouvivo,eeleprometeunãocontaràmamãenemaoÉden.

Daqui a dois meses Éden faz dez anos, o que quer dizer que eleprecisará então submeter-se à Prova. Eu próprio fui reprovado quandocompletei dez anos. Por issome preocupo comÉden, porquemesmo elesendoomaisinteligentedostrêsirmãos,pensademaneiramuitoparecidacomaminha.QuandotermineiminhaProva,tinhatantacertezadasminhasrespostas, que nem me preocupei em ver as notas que receberiam.Aconteceu,porém,queosadministradoresme levaramparaumcantodoestádio onde a Prova foi realizada, com um grupo de outros garotos.Carimbaramnãoseioquênomeuexameemeenfiaramnumtremquesedirigiaaocentrodacidade.Nãopude levarnadacomigo,excetoocordãoqueusavanopescoço.Nãopudenemmedespedir.

VáriascoisaspodemacontecerdepoisquesefazaProva.Você consegue o número perfeito de pontos: 1.500. Ninguém jamais

alcançouessacontagem,istoé,àexceçãodeunsgarotosháalgunsanos,arespeitodequemosmilitaresfizeramomaiorestardalhaço.Quemsabeoque acontece com alguém com um número tão alto de pontos?Provavelmente,muitodinheiroepoder,nãoé?

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Sevocêmarcaentre1.450e1.499pontos,podesedarumtapinhanascostas, porque vai ter acesso instantâneo a seis anos de ensinomédio edepois a quatro anos nas melhores universidades da República: Drake,Stanford e Brenan. Depois o Congresso o contrata e você ganha umafortuna.Emseguida,vocêvaitermuitaalegriaefelicidade.Pelomenos,deacordocomaRepública.

Se você consegue uma boa marcação, entre 1.250 e 1.449 pontos,frequenta o ensino médio, e em seguida o enviam para uma faculdade.Nadamau.

Sevocêsóconseguemarcarentre1.000e1.249pontos,oCongressooimpede de frequentar o ensino médio, e você passa a fazer parte dospobres,comoaminhafamília.Vocêprovavelmentevaiseafogarenquantoestivertrabalhandonasturbinasdeágua,oumorrerásufocadopelovapordascentraiselétricas.

Vocêéreprovado.Quase sempre osmeninos das favelas não passam na prova. Se você

estánessacategoria infeliz,aRepúblicamandafuncionáriosdogovernoàcasadasuafamília.Elesforçamseuspaisaassinarumcontrato,dandoaogoverno custódia total sobre você. Dizem que você foimandado para oscamposdetrabalhoforçadodaRepúblicaequesuafamílianãooverámais.Seuspaistêmdefazerumsinalpositivocomacabeçaeconcordar.Algunspaischegamacomemorar,porqueaRepúblicalhesdámilNotas,comoumpresente de condolências. Ganhar dinheiro e ter menos uma boca paraalimentar?Quegovernoatencioso!

Excetoque isso tudoémentira.Umacriança inferiorcommausgenesnãoéútil aopaís. Sevocê tiver sorte,oCongressoodeixarámorrer semantes ser mandado a um laboratório, para ser examinado em busca deimperfeições.

Restamcincocasas.Tesspercebeapreocupaçãonosmeusolhosepõeamãonaminhatesta:

–Vocêestáficandocomdordecabeça?–Não,euestoubem.Espreitoacasademinhamãepelajanelaaberta,evejoderelanceum

rostofamiliar.Édencaminha,entãoolhasorrateiramentepela janelaparaossoldadosqueseaproximam,eapontaparaelesumaengenhocademetal

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feita àmão. Depois se esconde rapidamente, e desaparece de vista. Seuscachos louros como trigo reluzem sob a luz vacilante do poste.Conhecendo-o, calculo que ele tenha construído aquele dispositivo paramediradistânciaemqueestáumapessoa,oualgoassim.

–Eleestámaismagro–sussurro.–Eleestávivoeandandobem–respondeTess.–Paramim, isso jáé

lucro.Minutos depois, vemos John e minha mãe passando pela janela,

conversandomuito. John e eu somosbemparecidos, embora ele sejaumpoucomais corpulento devido aos longos dias de trabalho na usina. Seucabelo, comoodamaioriaquevivenonossobairro,passadosombroseestá amarrado num rabo de cavalo. Seu colete está manchado de barrovermelho.Dápraverquemamãeo está repreendendopor algumacoisa,possivelmenteporterdeixadoÉdenespiarpelajanela.ElaafastaamãodeJohn com um tapa quando um acesso de sua tosse crônica a ataca. Eususpiro.Bem,pelomenoselestrêsestãosaudáveisobastanteparaandar.Mesmo se um deles estiver infectado, há tempo suficiente para serecuperar.

Não consigo parar de imaginar o que acontecerá se um dos soldadosmarcaraportadaminhamãe.Minhafamíliaficaráparalisadananossasaladevisitasmuitotempodepoisdeossoldadospartirem.Depoismamãevaiexporseucostumeirorostocorajoso,maspassaráanoitetodasemdormir,silenciosamente enxugando as lágrimas. De manhã, eles vão começar areceber pequenas quantidades de alimento e água, então simplesmenteesperarãoserecuperar.Oumorrer.

Minhamente vagueia até a pilha de dinheiro roubado que Tess e eutemos escondida. Duas mil e quinhentas Notas. O bastante para nosalimentardurantemeses,masnãoosuficienteparacomprarosfrascosderemédiocontraapragadequeminhafamíliaprecisa.

Osminutossearrastam.GuardomeuestilingueecomeçoajogarPedra,Papel,TesouracomTess.(Nãoseiporquê,maselaéferanessejogo.)Olhoderelanceváriasvezesparaajaneladaminhamãe,masnãovejoninguém.Elesdevemestarjuntospertodaporta,prontosparaabri-latãologoouçamumpunhobatendonamadeira.

Eentãochegaahora.Eumedebruçotantoparaafrentenoparapeito,

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que Tess agarra meu braço para garantir que eu nãome esborrache nochão.Ossoldadosbatemnaporta.Minhamãeabreimediatamente,deixaossoldadosentrarem,edepoisfechaaporta.Eumeesforçoparaouvirvozes,passos, qualquer coisa que venha da minha casa. Quanto antes issoterminar,maiscedopossoentregarfurtivamenteospresentesaoJohn.

Osilênciosearrasta.Tessmurmura:–Faltadenotíciaséboanotícia,certo?–Muitoengraçado!Contoossegundosmentalmente.Umminutosepassa.Depois,passam-

sedois,depoisquatroe,finalmente,dezminutos.Edepoisquinze.Vinteminutos.OlhoparaTess,eeladádeombros:–Vaiveraleitoraportátildelesestáenguiçada.Decorrem trinta minutos. Não ouso sair daminha vigília. Receio que

algoaconteçatãodepressa,quepassedespercebidopormim,seeupiscar.Meusdedostamborilamritmadamentecontraocabodaminhafaca.

Quarentaminutos.Cinquentaminutos.Umahora.–Algumacoisaestáerrada–murmuro.Tessfranzeoslábiosediz:–Vocênãosabeseestá.–Seisim.Oquepoderiademorartanto?Tess abre a boca para responder, mas antes de poder dizer alguma

coisa, os soldados saem daminha casa, numa fila única, e com os rostosimpassíveis.Finalmente,oúltimosoldado fechaaportaepegaumacoisaenfiadanacintura.Subitamente,ficotonto:seioquevaiacontecer.

O soldado borrifa uma linha diagonal comprida e vermelha na nossaporta,depoisborrifaoutralinha,formandoumX.

Xingo silenciosamente e começo a me virar de costas, mas então osoldadofazumacoisainesperada,queeununcahaviavisto.

Ele borrifa uma terceira linha, vertical, na porta da minha mãe,cortandooXpelametade.

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JUNE

13H47.UNIVERSIDADEDEDRAKE,SETORBATALLA.22°CEMAMBIENTEFECHADO.

Estousentadanasaladasecretáriadoreitor.Denovo.Dooutroladodaportadevidrofosco,vejoumgrupodecolegasmeusdeclasse(veteranos,todos pelomenos quatro anosmais velhos do que eu), andando por ali,numatentativadeouviroqueestáacontecendo.Váriosdelesmeviramserarrancadadoexercíciovespertinodaclasse(auladehoje:comocarregaredescarregar um rifle XM-621) por uma dupla de guardas ameaçadores.Semprequeissoacontece,anotícialogoseespalhanocampustodo.

A pequena menina-prodígio favorita da República está encrencada denovo.

A sala está silenciosa, exceto pelo fraco zumbido do computador dasecretária do reitor. Memorizei todos os detalhes desta sala, os pisos demármorecortadosàmãoeimportadosdoestadodeDakota,324azulejosquadrados de plástico no teto, seismetros de cortinas cinzentas pendemnosdoisladosdoretratodogloriosoEleitornaparededosfundosdasala.Umateladetrintapolegadasnaparedelateral,semsomtemumalegendaque diz: “Grupo de ‘Patriotas’ traidores lança bomba sobre uma basemilitarlocalematacinco”,seguidapor“ARepúblicaderrotaasColôniasnabatalhaporHillsboro”.ArisnaWhitaker,asecretáriadoreitor,estásentadaà sua mesa, dando pancadinhas no vidro do móvel; sem dúvida estáteclandomeurelatório.Esseserámeuoitavorelatórioestetrimestre.PossoapostarquesouaúnicaestudantedaDrakequejáconseguiuoitorelatóriossobrecomportamentoinadequadonumsótrimestresemserexpulsa.

– Machucou a mão ontem, Sra. Whitaker? – Pergunto, após umtempinho.

Elaparadeteclaremeolhafixamente.–Porqueachaisso,Srta.Iparis?–As pausas quando a senhora tecla estão desencontradas. A senhora

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estáusandomaisamãoesquerda.ASra.Whitakersuspiraeserecostanacadeira:–Machuqueisim,June.Torciopulsoontemnumjogodekivaball.–Lamento.Asenhoradeviatentarbalançarmaisobraço,nãoopulso.Minha intenção era simplesmente declarar um fato. Masminha frase

sooumeiozombeteira,enãoadeixoumuitocontente.Eladisse:–Vamosdeixarclaraumacoisa,Srta.Iparis.Asenhoritaseachamuito

inteligente. Talvez pense que suas excelentes notas a fazemmerecer umtipodetratamentoespecial.Épossívelatéqueachequetemadmiradoresnesta escola, por causa desse burburinho lá fora. – Ela apontou para osestudantesreunidosdo ladodeforadaporta.–Maseunãoaguentomaisnossas reuniões na minha sala. E pode acreditar, quando a senhorita seformareestepaísescolherumpostoondeasenhoritavaitrabalhar,suasgracinhasnãovãoimpressionarseussuperiores.Entendido?

Acenoafirmativamentecomacabeça,porqueéissoqueelaquerqueeufaça, mas a Sra. Whitaker está enganada. Eu não apenas me achointeligente. Sou a única pessoa em toda a República que alcançou apontuaçãomáximade1.500nasuaProva.Designaram-meparacá,paraamelhoruniversidadedopaís,aosdozeanos,quatroanosantesdohabitual.Euaindapuleimeusegundoanodefaculdade.Hátrêsanosreceboasnotasmáximas na Universidade de Drake. Eu sou inteligente. Tenho o que aRepública define como bons genes. Meus professores sempre dizem quegenesmelhoressãoabasedosmelhoressoldados,dosquetrazemmaioresoportunidades de vitória contra as Colônias. Acho que meus exercíciosvespertinosnãoestãomeensinandoosuficientesobrecomoescalarmurosportandoarmas,então…bem,nãofoiculpaminhaeuterprecisadoescalaralateraldeumedifíciodedezenoveandarescomumaarmaXM-621presaporumacorreiaàsminhascostas.Foiumautoaperfeiçoamento,pelobemdomeupaís.

CorreporaíqueDayumavezescaloucincoandaresemmenosdeoitosegundos. Se o criminoso mais procurado da República é capaz dessafaçanha, como é que nós vamos conseguir prendê-lo se não formos tãorápidos quanto ele? E se a gente não conseguir prendê-lo, como vamosvenceraguerra?

AmesadaSra.Whitakeremiteumsinal sonoro trêsvezes.Elaaperta

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umbotãoediz:–Poisnão?–OCapitãoMetiasIparisestáaquinoportão–respondeumavoz.–Ele

querfalarcomairmã.–Tudobem,podemandá-loentrar.–Asecretáriasoltaobotãoeaponta

um dedo para mim. – Espero que esse seu irmão comece a fazer umtrabalho melhor quanto ao seu comportamento, porque se você vier àminhasalamaisumaveznestetrimestre…

– Metias faz um trabalho melhor do que nossos falecidos pais –respondo,talvezmaisrispidamentedoquepretendia.

Umsilêncioconstrangedordominaasala.Após o que parece uma eternidade, finalmente escuto um tumulto do

lado de fora. Os estudantes que estavam comprimidos contra a porta devidroabruptamentesedispersam,esuassombrassemovimentamparaolado,paraabrircaminhoparaumasilhuetaalta:meuirmão.

Quando Metias abre a porta e entra, vejo algumas garotas no hallabafandorisinhoscomasmãos.Metias,porém,concentraemmimtodaasuaatenção.Temososmesmosolhos,negros comumbrilhodourado, osmesmos cílios compridos e cabelos pretos. Os longos cílios se acentuamespecialmenteemMetias.Mesmocomaporta fechada,aindapossoouvirossussurroseosrisinhosdoladodefora.Parecequeeleveiodiretodesuaronda obrigatória para meu campus. Ele está usando seu uniformecompleto:umpaletónegrodeoficial,comfilasduplasdebotõesdourados,luvas(deneoprene,forrodepolietileno,ornamentosdopostodecapitão),dragonasreluzentesnosombros,quepemilitarformal,calçaspretas,botasenvernizadas.Meusolhosseencontramcomosdele.

Eleestáfurioso.ASra.WhitakersorriafavelmenteparaMetiaseexclama:–Capitão!Queprazeremvê-lo!Metiastocanaabadoquepe,numcumprimentogentil,ediz:– É uma pena que seja mais uma vez nessas circunstâncias. Minhas

desculpas.–Semproblema,capitão.Asecretáriadoreitoracenademodoindiferente.Tremendapuxa-saco,

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especialmentedepoisdoqueeladissesobreoMetias!–Aculpanãoésua,capitão.Flagraramsua irmãescalandoumprédio

alto na hora do almoço hoje. Ela se afastou dois quarteirões do campusparafazerisso.Comoosenhorsabe,osalunossódevemusarasparedesdeescalada no campus durante o treinamento físico, além disso, sair docampusnomeiododiaéproibido…

–Sim,euestouapardisso.–Metiasparadefalareolhaparamimcomocantodo olho. –Vi helicópteros sobrevoando aDrake aomeio-dia, entãodesconfieiqueaJunetalvezestivessemetidanisso.

Foramtrês helicópteros.Comonãopodiamescalara lateraldoprédioparametirardali,tiveramdemepuxarcomumarede.

–Obrigadapelaajuda–disseMetiasàsecretáriadoreitor.Estalouosdedosparamim,oqueeraadicaparaeumelevantar.–QuandoJunevoltaraocampus,garantoqueseucomportamentoserámuitomelhor.

Ignoro o sorriso dissimulado da Sra.Whitaker enquanto saio da salacommeuirmãoechegamosaohall.Osestudantesvêmimediatamenteaténós.

–June–dizumgarotochamadoDorian,aosereuniranós.Elehaviameconvidado,semêxito,doisanosseguidos,paracompareceraobaileanualdaDrake.–Éverdademesmo?Aquealturavocêchegou?

Metiasointerrompecomumolharseveroediz:–AJuneestáindoparacasa.Ele põe uma das mãos firmemente no meu ombro e me afasta dos

colegasdeclasse.Olhoparaelesderelanceedou-lhesumsorriso.– Catorze andares – grito para eles, o que os faz recomeçar a falar

animadamente. De alguma forma, esse é o relacionamentomais próximoque tenho com os outros alunos da Drake. Sou respeitada, discutem efofocamsobremim,masninguémfalapravalercomigo.

Essa é a vida de uma estudante veterana de quinze anos, numauniversidadedestinadaaalunosdedezesseisanosparacima.

Metias não diz mais uma palavra enquanto caminhamos peloscorredores,passamospelosgramadoscentraisbemtratados,pelagloriosaestátua do Eleitor, e finalmente por um dos ginásios cobertos. Passamospelos exercícios vespertinos, nos quais eu supostamente deveria estar.Observomeuscolegasdeclassecorrernumatrilhagigantescacercadapor

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uma tela de 360 graus, simulando uma estrada desolada num front deguerra. Eles estão segurando rifles à sua frente, tentando carregá-los edescarregá-losomaisdepressapossível,enquantocorrem.Namaioriadasoutrasuniversidades,nãohátantosalunossoldados,mas,naDrake,quasetodos nós estamos a caminho de designações de carreira nas forçasarmadasdaRepública.AlgunsoutrossãoselecionadosparaapolíticaeoCongresso,eoutrossãoescolhidosparalecionar.Drake,porém,éamelhoruniversidadedaRepública,esabendoqueosmelhoresalunossãosempredesignadosparaas forçasarmadas,a salade treinamentoestá repletadeestudantes.

Quando chegamos a umadas ruas fora daDrake, eu subo no assentotraseiro do jipe militar que nos espera. Metias mal consegue conter suaraiva:

– Suspensa por uma semana?Dá prame explicar o que houve?Voltodepoisdepassaramanhã lidandocomos rebeldesPatriotas, eoquemecontam? Que há helicópteros a dois quarteirões da Drake porque umagarotaestáescalandoumarranha-céu.

Troco um olhar amigável com Thomas, o soldado no assento domotorista,emurmuro:

–Desculpe.Metiasseviradoassentodocaronaeestreitaosolhosparamim:– Porque você fez essa idiotice? Você sabia que tinha ido além do

campus?–Sabia.–Éclaro,vocêtemquinzeanos.Vocêescaloucatorzeandaresdeum…–

Elerespirafundo,fechaosolhos,esecontrola.–Sópravariar,eugostariaque você me deixasse cumprir meus deveres diários sem morrer depreocupaçãocomoquevocêpossaestaraprontando.

TentotrocarolharescomThomasdenovopeloespelhoretrovisor,masele está olhando fixamente para a rua. É claro que eu não devo esperarnenhuma ajuda dele. Ele está tão arrumado como sempre, com o cabeloperfeitamentepenteadoeouniformeperfeitamentepassado.Nãoháumfioforadolugar.ThomasdevesermuitosanosmaisnovodoqueMetias,éumsubordinadonasuapatrulha,porémémaisdisciplinadodoquequalquerpessoaqueconheço.Àsvezesgostariadeserdisciplinadaassim.Éprovável

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queeledesaproveminhastravessurasaindamaisdoqueMetias.SaímosdocentrodeLosAngelesepercorremosemsilêncioasinuosa

rodovia.Dosarranha-céusdecemandaresdocentrodeBatallaopanoramase altera para as densamente populosas torres de caserna e conjuntoshabitacionaisdecivis,cadaumcomvinteoutrintaandaresdealtura,comluzes vermelhas indicadoras piscando nos telhados, a maioria com apintura desbotada depois da série de tempestades desse ano. Vigasmetálicasdeapoioseentrecruzamnasparedes.Esperoqueembreveelesfortaleçam essas vigas. Ultimamente a guerra tem sido intensa, e com asvárias décadas de recursos de infraestrutura sendo desviados paraabastecerofront,nãoseiseosprédiosaguentariammaisumterremoto.

Depoisdealgunsminutos,Metiascontinua,comvozmaiscalma:– Você hoje realmente me assustou. Tive medo de que eles te

confundissemcomoDayeatirassememvocê.Sei que ele não quer que essa frase soe como um elogio, mas não

consigoevitardesorrir.Debruço-meparafrenteparadescansarosbraçosemcimadoassentodele.

– Ei! – digo, puxando-lhe a orelha, como eu fazia quando criança. –Desculpaterdeixadovocêpreocupado.

Ele emite um risinho debochado, mas percebo que sua raiva estádiminuindo.

–Sei…vocêdiz isso todavez, Joaninha[1].ADrakenãoestáocupandoseucérebroosuficiente?Senãoestá,entãonãoseioquepoderiafazerisso.

–Sabedeumacoisa?Sevocêmelevasseemalgumasdesuasmissões,éprovávelqueeuaprendessemuitomaisenãomemetesseemconfusão.

– Boa tentativa, mas você não vai a lugar algum até se formar edesignaremsuaprópriapatrulha.

Mordo a língua. Metias me escolheu uma vez – uma vez – para umamissãonoanopassado,quandotodososalunosdoterceiroanodaDraketiveram de seguir de perto uma divisão das forças armadas. Seucomandante o mandou matar um prisioneiro de guerra fugitivo dasColônias.Metiasmelevoucomele,ejuntosperseguimosoPDG[2]cadavezmais para dentro do nosso território, distante das cercas divisórias e dafaixadeterraentreDakotaeoTexasOcidental,queseparaaRepúblicadasColônias. Chegamos bem longe do front de guerra, onde aeronaves

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pontilham o céu. Eu o encurralei num beco em Yellowstone City, emMontana,eMetiasomatouatiros.

Duranteaperseguição,quebreitrêscostelasemeenfiaramumafacanaperna.AgoraMetiasserecusaamelevaraqualquerlugar.

QuandoMetiasfaladenovo,mostra-securioso,emborarabugento.–Mecontaumacoisa–elesussurra–,emquantotempovocêescalou

aquelescatorzeandares?Thomas faz um som desaprovador com a garganta, mas eu abro um

sorriso:atempestadepassou.Metiasvoltouameamar.– Seis minutos – murmuro para meu irmão – e quarenta e quatro

segundos.Quetal?–Deve ser um recorde.Mas isso, você sabe, não quer dizer que você

devafazeroquefez.Thomasparaojipenumsinalvermelho,dirigeumolharexasperadoa

Metias,entãodiz:–Francamente,capitão!June,istoé,aSrta.Iparisnãovaiaprendernada

seosenhorcontinuaraelogiá-laporquebrarasnormas.– Anime-se, Thomas! – Metias se inclina e dá uma pancadinha nas

costasdomotorista.–Éclaroquequebrarumanormadevezemquandoétolerável,especialmentesevocêfizerissoparaaumentarsuashabilidadesemproldaRepública.VitóriacontraasColônias,certo?

Acende-seosinalverde.Thomasvoltaamanteroolharconcentradonarua(eleparececontarmentalmenteatétrêsantesdedarpartidaaojipe).

–Certo–resmunga–,masmesmoassimosenhordevetomarcuidadocomo que está incentivando a Srta. Iparis a fazer, especialmente porqueseuspaisjáfaleceram.

AbocadeMetias secontrai, eumaexpressão familiar tensa lhesurgenosolhos.

Independentemente do alto grau de percepção de minha intuição,independentementedecomoeumesaiabemnafaculdade,oudacontagemmáximaquesemprealcançonosexercíciosdedefesaealvo,etambémnocombate corpo a corpo, os olhos deMetias sempre expressammedo. Elereceiaquealgumacoisapossaacontecercomigoumdia,comooacidentedecarroquematounossospais.Essemedoestásempreestampadonoseurosto.EThomassabedisso.

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Não conheci nossos pais tempo bastante para sentir falta deles comoMetias. Sempre que choro por causa da morte deles, choro porque nãotenho nenhuma lembrança dos dois, apenas lembranças nebulosas depernascompridasdeadultossemovimentandononossoapartamento,oudemãosmeerguendodaminhacadeirinhadecriança.Esóisso.Todasasdemais lembranças de minha infância, ao olhar para a plateia quandoreceboumprêmio, ao tomar sopa feita paramimquando adoeço, ou serpostanacama,sãodeMetias.

PassamosdecarropormetadedaáreadeBatallaealgunsquarteirõesdegentepobre.“Seráqueessesmendigosnãopodemseafastardonossojipe?”FinalmentechegamosaoscintilantesprédioscomvarandasdoRuby,estamos em casa. Metias salta primeiro. Quando me preparo para sair,Thomasmesorrilevemente.

–Atémais,Srta.Iparis–elediz,tocandonoquepe.Pareidetentarconvencê-loamechamardeJune,elenuncavaimudar.

Entretanto,nãoémauserchamadadealgoadequado.TalvezquandoeuformaisvelhaeMetiasnãodesmaiaràideiadeeunamorar…

–Tchau,Thomas.Obrigadapelacarona.Eulhesorrioantesdesaltardojipe.Metiasesperaaportase fecharantesdesevirarparamimebaixara

voz:–Vouchegartardehojeànoite–elediz.Seusolhosvoltamaexpressar

tensão.–Nãosaiasozinha.Recebiumanotíciadofrontdeoperaçõesdequevãocortaraluzdascasasestanoiteparaeconomizarenergiaparaasbasesdos aeroportos. Portanto, sossegue o facho, está bem? As ruas vão ficarmaisescurasdoquedecostume.

Fico decepcionada. Queria que a República se apressasse e ganhasselogoaguerra,paraqueagentepudesse tereletricidadesemapagõesummêsinteiro.

–Aondevocêvai?Possoirjunto?– Vou supervisionar o laboratório do centro de Los Angeles. Vão

entregar lá frascos de um vírus emmutação. Não deve demorar a noitetoda.Eeujádisseavocêquenão,nadademissões.–Metiashesita.–Vouchegaromaiscedopossível.Temosmuitoqueconversar.–Elepõeasmãosnosmeusombros, ignoraminhaexpressãoperplexa,emedáumbeijinho

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natesta.–Euteamo,Joaninha–essaésuamarcaregistradaaosedespedir.Eleseviraeentranojipedenovo.

–Eunãovouficaracordadaesperandovocê–gritoparaele,masaessaalturaelejáestádentrodojipe,queseafasta.–Tenhacuidado!–Digoemvozbaixa.

Masagoraéinútil.Metiasjáestálongedemaisparameouvir.

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DAY

Quandoeutinhaseteanos,meupaipassouumasemanadelicençaemcasa, vindo do front. Seu trabalho era pôr em ordem as coisas que ossoldadosdaRepúblicabagunçavam,porissoeleestavaquasesempreforadecasa,emamãetinhadenoscriarsozinha.Daquelavez,quandoeleveiopara casa, as patrulhas da cidade fizeram uma inspeção de rotina noimóvel, então arrastarammeu pai para a sede da polícia local, para serinterrogado.Achoqueelesdevemterencontradoalgumacoisasuspeita.

A polícia o trouxe de volta com os dois braços quebrados, e o rostosangrandoemachucado.

Váriasnoitesdepois,mergulheiumaboladegelotrituradonumalatadegasolina, deixei que o óleo revestisse o gelo numa espessa camada, e aacendi. Depois a arremessei com meu estilingue pela janela da sede dapolícia local. Eu me lembro dos carros de bombeiros que pouco depoisvieramzunindoemredordoquarteirão,edasruínascarbonizadasdaalaoestedoprédiodapolícia.Nuncadescobriramquemfoioresponsável,eeu,claro,nãomedenunciei.Afinalde contas, nãohaviaprovas.Eu cometerameuprimeirocrimeperfeito.

Minhamãecostumavateraesperançadequeeurenasceriademinhashumildesraízes,dequemetornariabem-sucedido,eatéfamoso.

Famosoeusou,masnãodaformaqueelatinhaemmente.

Éanoitecerdenovo,maisde48horasdesdequeossoldadosmarcaramaportadaminhamãe.

EsperonassombrasdeumbeconosfundosdoHospitalCentraldeLosAngeles e observo os funcionários entrando e saindo pela entradaprincipal. A noite está nublada, não há lua, assim, não consigo nemdistinguir no alto do edifício o cartaz despedaçado da Torre do Banco.Luzes elétricas brilham em cada andar, um luxo que apenas os prédiosgovernamentaiseascasasdaelitepodemter.Jipesmilitaresseacumulamna rua enquanto esperam autorização para entrar nos estacionamentossubterrâneos. Alguém verifica suas identidades. Eu fico imóvel, com os

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olhosfixosnaentrada.Eu estou incrível hoje. Estouusandomeubelo par de botas, feitas de

couroescuroeamaciadocomotempo,comcadarçosfortesebicodeaço.Eucompreiessasbotascom150Notasdodinheiroguardado.Escondiumafacanasoladecadabota.Quandomexoospés,sintoometalfrionapele.Minhascalçaspretasestãoenfiadasnocanodasbotas,ecarregoumpardeluvaseumlençopretonosbolsos.Umacamisapretademangascompridasestá amarrada ao redor da minha cintura. Meu cabelo solto passa dosombros. Desta vez borrifei de preto meu cabelo louro como trigo, ficoucomoseeuotivessemergulhadoembreu.Maiscedo,Tesshaviatrocado5Notas por um balde de sangue de leitão, no beco dos fundos de umacozinha.Meusbraços,minhabarrigaemeurostoestãolambuzadosdessesangue.Tambémpasseilamanorosto,porprecaução.

Ohospital ocupa os primeiros doze andares do edifício,mas só estouinteressado no andar sem janelas. É o terceiro andar, que abriga olaboratório onde estão as amostras de sangue e os remédios.Do ladodefora,olaboratórioficatotalmenteescondidoatrásdesofisticadosentalhesdepedra e desgastadas bandeiras daRepública. Atrás da fachada, há umvastoandar,semhallesemportas:éumcômodogigantesco,commédicose enfermeiras atrás de máscaras brancas, tubos de ensaio e pipetas,incubadorasemacas.Euseidissoporque jáestive lá.Estive lánodiaemquefuireprovadonaminhaProva,odiaemqueeusupostamentedeviatermorrido.

Meusolhosexaminamaslateraisdatorre.Àsvezesconsigoinvadirumedifíciopelo ladode fora, depoisdeobservá-lo, de ver sehá sacadasdasquaissaltareparapeitosdejanelasondemeequilibrar.Umavezescaleiumedifíciodequatroandaresemmenosdecincosegundos,masessatorreélisademais,semapoioparaospés.Vouprecisaralcançarolaboratóriopeloladodedentro.Estremeçoumpouco,mesmonocalor,emearrependodenãoterchamadoaTessparavircomigo.Entretanto,émaisfácilpegardoisinvasores do que um. Além disso, não é a família dela que precisa deremédios.Certifico-medeterescondidomeumedalhãodebaixodacamisa.

Um caminhão de remédios estaciona atrás dos jipesmilitares. Váriossoldados sobem e cumprimentam as enfermeiras, enquanto outrosdescarregamascaixasdocaminhão.Olíderdogrupoéumrapazdecabelopreto, todovestidodepreto, excetoporduas fileirasdebotõesdourados

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queseenfileiramnoseupaletódeoficial.Esforço-meparaouviroqueeleestádizendoaumadasenfermeiras:

–… do redor da beira do lago. – O homem aperta as luvas. Vejo quecarrega uma arma no cinto. –Meus homens estarão nas entradas hoje ànoite.

–Sim,capitão–dizaenfermeira.Ohomemacumprimentacomoquepe:–MeunomeéMetias.Sevocêtiveralgumapergunta,falecomigo.Esperoatéqueossoldadosseespalhempeloperímetrodohospital,eo

homem chamadoMetias se concentre numa conversa com dois dos seushomens. Vários outros caminhões com remédios vêm e vão, largandosoldados,algunscommembrosquebrados,outroscomcortesprofundosnacabeçaoulaceraçõesnaspernas.Respirofundo,depoissaiodassombrasemedirijoaostropeçõesàentradadohospital.

Uma enfermeira me vê, perto das portas principais. Seus olhospercebemrapidamenteosanguenosmeusbraçoserosto.

–Possoserinternado,amiga?–Perguntoaela.Gemo,comoseestivessesentindodor.–Temalgumquartovago?Eupossopagar.

Elameolhasempiedade,antesdevoltararabiscarnumblocodenotas.Acho que ela não gostou do afetuoso amiga. Um crachá de identidadebalançanoseupescoço.Elapergunta:

–Queaconteceu?Eumedobroemdoisquandomeaproximodelaeficodejoelhos:–Foiumabriga–digo,gemendo.–Achoquemeapunhalaram.A enfermeira não volta ame olhar. Acaba de escrever, aponta com a

cabeçaparaumdosguardas,eordena:–Revistem-no.Fico imóvel enquanto dois guardasme revistam, à procura de armas.

Dou um gemido no momento certo, quando eles tocammeus braços ouminha barriga. Eles não encontram as facas enfiadas nas minhas botas.ApanhamopequenomaçodeNotaspresoaomeucinto,pagamentoparaserinternadonohospital.Éclaroqueelesfariamisso.

Se eu fosse um mauricinho do setor dos ricos, seria internado sempagarnada.Oumandariamummédicomeatenderdegraçanaminhacasa.

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Quandoossoldadosfazemàenfermeiraumsinalcomospolegaresparacima,elameapontaaentradaediz:

–Asaladeesperaéàesquerda.Sente-selá.Eu agradeço e vou aos tropeções pelas portas giratórias. O homem

chamado Metias me observa quando passo. Ele está ouvindopacientementeumdossoldados,masvejoqueexaminameurostocomosefosseinusitado.Eutambémgravomentalmenteorostodele.

Por dentro, o hospital é fantasmagoricamente branco. Vejo a sala deespera àminha esquerda, comodisse a enfermeira, é umenormeespaçolotado de gente com todos os tipos e tamanhos de ferimentos. Muitaspessoas gemem de dor. Uma pessoa está imóvel no chão. Nem queroadivinharháquanto tempoalgumasdelasestãoali,nemquantopagaramparaseratendidas.Reparoondeestãotodosossoldados.Doisestãoaoladodajaneladasecretária,doisaoladodaportadomédico,acertadistância,váriospertodoselevadores,cadaumusandoumcrachádeidentificação,eentão ficoolhandoparao chão.Ando comdificuldade até a cadeiramaispróximaemesento.Destavez,meujoelhoruiméútilemeajudacommeudisfarce. Mantenho as mãos comprimindo a lateral do meu corpo, porprecaução.

Conto mentalmente até dez minutos, tempo suficiente para novospacienteschegaremàsaladeesperaeossoldadosseinteressaremmenospormim.Entãomelevanto,finjotropeçar,eandovacilanteemdireçãoaosoldadomaispróximo.Suamão,numreflexo,peganaarma.

–Sente-sedenovo–elediz.Tropeçoecaiocontraele.–Precisoiraobanheiro–sussurro,comvoz

rouca.Minhasmãos trememquandoseguronouniformepretodele,parameequilibrar.Osoldadomeolhacomnojoealgunsdosseuscolegasriemdebochadamente. Vejo os dedos dele se mexerem lentamente e seposicionarem no gatilho da arma, mas um dos outros soldados sacodenegativamente a cabeça. Nada de tiros no hospital. O soldado me afastacomumempurrão,entãoapontacomaarmaparaofimdocorredor.

–Élá–dizrispidamente.–Vejaselimpaumpoucodessasujeiranasuacara.Esevocêmetocarnovamente,vouteencherdebalas.

Eu o solto e quase caio de joelhos. Depoisme viro e cambaleio até obanheiro. Minhas botas de couro rangem ao pisar nos azulejos do chão.

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Sinto os olhos do soldado emmimquando entro no banheiro e tranco aporta.

Nãoimporta.Elesvãoseesquecerdemimdaquiaunsdoisminutos.Evaidemorarváriosminutosantesqueosoldadoaquemmeagarreisedêcontadequeoseucrachásumiu.

Dentro do banheiro, abandono minha pequena farsa de doente. Jogoáguanorostoeesfregoatésairamaiorpartedosanguedoleitãoedalama.Descalçoasbotaserasgoaspalmilhasparapegarminhasfacas,queentãoenfionocinto.Voltoacalçarasbotas,depoisdesatoacamisadegolapretadacinturaeavisto,abotoandoatéopescoçoeprendendoossuspensóriosnela.Puxoocabeloparatrásnumrabodecavaloapertadoeenfioapontanacamisa,paraqueelefiquecomprimidocontraminhascostas.

Finalmente,calçoasluvaseamarroumlençopretoemvoltadabocaedonariz. Se alguémmepegar agora, vou sermesmoobrigado a fugir, demodoqueémelhoresconderorosto.

Quando termino, uso a ponta de uma das facas para desaparafusar atampa do duto de ventilação do banheiro. Então pego o crachá deidentificaçãodosoldado,prendo-oaocordãonomeupescoço,ememetodecabeçanotúneldoduto.

O ar no duto temum cheiro esquisito. Ainda bemque estou comumlenço no rosto. Voume esgueirando pouco a pouco, omais rapidamentequeposso.Odutonãodevetermaisdesessentacentímetrosdelarguraemqualquer direção. Cada vez que eumemexo à frente, tenho de fechar osolhosemelembrarderespirar,lembrarqueasparedesdemetalàminhavolta não estão me comprimindo. Não preciso ir longe, nenhum dessesdutos leva ao terceiro andar. Só tenho de ir longe o bastante para sairpróximodeumadasescadasdohospital, longedossoldadosnoprimeiroandar.Esforço-meparaavançar.PensonorostodeÉden,nosremédiosqueele, John e minha mãe vão precisar tomar, e no estranho X vermelhoatravessadoporumalinha.

Depoisdeváriosminutos,ovãochegaaofim.Olhopelorespiradouro,esob as nesgas de luz enxergo parte de uma escada curvada. O chão éimaculadamentebranco,quaselindo,e,oqueémaisimportante,estávazio.Contomentalmente até três, esticomeus braços para trás omáximo queposso,entãoempurrocomforçaatampadoduto.Atampavoa.Consigoverbem a curva da escada: é uma câmara grande e cilíndrica, com altas

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paredesdegessoeminúsculas janelas.Éumenormeconjuntodeescadasemespiral.

Agora me mexo a toda velocidade e sem nenhuma dissimulação.“Corre!”Eumeespremoparasairdodutoesubocorrendoosdegraus.Nametadedo caminho, agarroo corrimãoemearremesso até a curvamaispróximaealta.Ascâmerasdesegurançadevemestarfocalizadasemmim.A qualquer instante vai soar um alarme. Segundo andar, terceiro andar.Meu tempo está acabando. Quando me aproximo da porta do terceiroandar,arrancoocrachádeidentidadedomedalhãoeparotemposuficientepara passá-lo pela leitora da porta. As câmeras de segurança nãodispararam o alarme em tempo de trancar a passagem pelas escadas. Otrincodaportaclica:estoudentro.Abroaportacomrapidez.

Estou num enorme cômodo com fileiras de macas e substânciasquímicas com tampas metálicas. Doutores e soldados me olhamestupefatos.

Agarro aprimeirapessoaque vejo: um jovemmédicopertodaporta.Antes que um dos soldados possa apontar uma arma na nossa direção,pego uma das minhas facas e a ponho junto do pescoço do homem. Osdemaismédicoseenfermeirasficamparalisados.Váriosdelesgritam.

–Sealguématirar,eleéquevaiseratingido–gritoparaossoldados,porbaixodomeu lenço.Asarmasdelesmiramemmim.Omédico tremeenquantoeuosegurofirmemente.

Pressionominha facamais fortementecontraoseupescoço, tomandocuidadoparanãomachucá-lo.

–Nãovoumachucarvocê–murmuroaoouvidodele.–Ésómedizerondeestãoosremédiosparacurarapraga.

Eleemiteumgemidosufocado,esintoqueestásuando.Eleapontaparaas geladeiras.Os soldados continuama hesitar,mas umdeles se dirige amim:

–Solteodoutor!–Grita.–Elevanteasmãos.Tenhovontadederir.Osoldadodeveserumnovorecruta.Atravessoo

cômodocomodoutor,parojuntoàsgeladeiras,edigoaele:–Mostreondeestão.Omédicoergueamãotrêmulaeabreaportadageladeira.Umalufada

deventogeladonosatinge.Eumeperguntoseomédicopodesentirque

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meucoraçãoestábatendoamil.–Aíestão–elemurmura.Dou as costas para os soldados tempo bastante para ver o médico

apontar para a prateleiramais alta do frigorífico. Metade dos frascos naprateleira está rotulada com o X de três linhas: T. Filoviridae VirusMutations.Aoutrametadedosfrascosestáetiquetada11.30Curas.Todosos frascos,porém,estãovazios:osremédiosacabaram.Digoumpalavrãobaixinho.Meusolhospercorremoutrasprateleiras,maselassóapresentamredutores da praga e diversos antibióticos. Digo outro palavrão. É tardedemaisparavoltar.

–Vousoltá-lo–sussurroparaomédico.–Abaixe-se.Solto o homem e o empurro com força bastante para que ele caia de

joelhos.Ossoldadosabremfogo,masestoupreparadoparaeles:eumeescondo

atrásdaportaabertadageladeira,easbalas ricocheteiam.Agarrováriosvidros de redutores e osmeto na camisa. Eume protejo. Uma das balasperdidas me pega de raspão, sinto uma dor lancinante no braço. Estouquasenasaída.

Um alarme dispara quando me arremesso pela porta da escadaria.Ouvem-sevários cliquesquando todasasportasnaescadaria se trancampelo lado de dentro. Estou encurralado. Os soldados podem vir porqualquer porta, eu não vou conseguir sair. Gritos e passos ecoam nolaboratório.Umavozgrita:

–Eleestáferido!Meusolhosseconcentramnasminúsculasjanelasnasparedesdegesso

da escadaria. Elas estão muito longe para que eu possa alcançá-las dosdegraus.Ranjoosdentesepegominhasegundafaca.Agoratenhoumaemcadamão. Rezo para que o gesso sejamacio o bastante, depois pulo dosdegrausemeatirocontraasparedes.

Enfioumafacanogesso.Meubraçomachucadojorrasangue,eeugritopor causa do esforço. Estou pendurado a meio caminho entre minhaplataformadelançamentoeajanela.Balançoparafrenteeparatráscomamaiorforçaqueconsigo.

Ogessoestácedendo.Atrás de mim, ouço a porta do laboratório se abrir violentamente e

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soldados saírem correndo. Balas cruzam de todos os lados. Eu mearremessorumoàjanelaesoltoafacaenfiadanaparede.

A janela estoura de repente, então, subitamente, me vejo do lado defora, na noite, e caindo, caindo, caindo como um cometa até o primeiroandar.Rasgominhacamisademangacompridaeelaseenchedearatrásdemim enquanto pensamentosme percorrem a cabeça.Meus joelhos sedobram.Primeiroospés.Relaxoosmúsculos.Batocomassolasdospés.Rolo o corpo. O chão parece se precipitar contramim. Tento aguentar ochoque.

O impactome causadificuldadepara respirar. Eu giroquatro vezes eme esborracho na parede do outro lado da rua. Por um instante fico aliatordoado,completamente impotente.Acimademimouçovozes furiosas,vindasdajaneladoterceiroandar,aopassoqueossoldadossedãocontade que vão ter de voltar para o laboratório e desarmar o alarme. Meussentidospoucoapoucoseaguçam.Agoratenhototalconsciênciadadoremum lado do corpo e no braço. Meu peito lateja. Acho que fraturei umacostela. Quando tento me levantar, percebo que também torci umtornozelo.Nãoseidizerseaadrenalinaestáevitandoqueeusintaoutrosefeitosdaqueda.

Ouçogritosvindosdaesquinadoprédio.Forço-mearaciocinar.Estoupertodosfundosdoedifício,então,háváriosbecosatrásdemimquelevamàescuridão.Voumancandoemdireçãoàsombra.

Quandoolhoporcimadoombro,vejoumpequenogrupodesoldadoscorrendo para o local onde caí, eles apontam para os cacos de vidro e osangue.Umdossoldadoséojovemcapitãoqueviantes,ohomemchamadoMetias.Eleordenaaseussubordinadosqueseespalhem.Apressoopassoetentoignorarador.Curvoosombrosparaqueminharoupaemeuscabelosnegrosajudemamemisturarnaescuridão.Mantenhoosolhosparabaixo.Precisoencontrarumatampadebueiro.

Oscantosdaminhavisãoestãoturvos.Ponhoumadasmãosnaorelha,para ver se está sangrando. Por enquanto não, o que é um bom sinal.Momentos depois, avisto uma tampa de bueiro na rua. Suspiro, ajeito olençonegroquemecobreorosto,emeinclinoparalevantaratampa.

–Parado!Fiqueondeestá.DouumavoltacomocorpoevejoMetias,ojovemcapitãodaentradado

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hospital,me encarando. Tem uma arma apontada diretamente parameupeitomas, paraminha surpresa, ele não a dispara.Agarro a faca quemeresta.Algumacoisamudanoolhardele,euseiqueelemereconhece:souogarotoquefingiucambalearparaentrarnohospital.Sorrio,euagoratenhoumbocadodeferimentosparaohospitaltratar.

Metiasestreitaosolhosediz:–Mãosparacima.Vocêestápresoporroubo,vandalismoeinvasãode

propriedade.–Vocênãovaimeprendervivo.–Tereiprazeremlevá-lomorto,sevocêpreferir.Oqueaconteceemseguidaéumanévoaparamim.VejoMetiastenso,

prestesadispararsuaarma.Atirominhafacacontraelecomtodaaforça.Antesqueelepossadisparar,minhafacaoatingenoombrocomforçaeelecai para trás, com um baque. Não espero para vê-lo se levantar. Eu medebruço e, com esforço, levanto a tampa do esgoto, depois desço pelaescadaepenetronaescuridão,apóscolocaratampanolugar.

Meus ferimentos estão se fazendo sentir agora. Tropeço enquantopercorro os esgotos. Minha visão entra e sai de foco, uma das mãoscomprimecomforçaumladodomeucorpo.Tomocuidadoparanãotocarnas paredes. Cada vez que respiro, sinto dor. Eu devo ter fraturado umacostela. Estou alerta o bastante para saber em que direção estou medirigindoemeconcentroemrumarparaosetorLake.Tessestará lá.Elavaimeencontraremeajudaraficaremsegurança.Pensoouviroestrondode passos acima, gritos de soldados. Sem dúvida alguém já descobriu oMetias, e é capazdeeles teremsedirigidoparaosbueiros também.Elestalvez estejamme perseguindo bem de perto, com umamatilha de cães.Resolvodarváriasvoltaseandarnaáguaimundadoesgoto.Atrásdemim,ouçorespingosesonsdevozes.Doumaisvoltas.Asvozesseaproximam,depoisseafastam.Mantenhominhadireçãooriginalfixanacabeça.

Seriairônico,nãoseria?Terfugidodohospitaleacabarmorrendoaqui,perdidonumlabirintovertiginosodebueiros.

Conto os minutos para me impedir de desmaiar. Cinco minutos, dezminutos,trintaminutos,umahora.Ospassosatrásdemimsoamdistantesagora,comoseestivessemnumcaminhodiferentedomeu.Àsvezesouçosons estranhos, algo parecido comum tubode ensaio borbulhante, e um

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somdetubulaçãodevapor,umalufadadear.Issovaievemduranteduashoras. Duas horas e meia. Quando vejo a próxima escada que leva àsuperfície, resolvo arriscar e me puxar para cima. Corro o perigo dedesmaiaragora.Recorroatodaaforçaquemerestaparamearrastaratéarua. Estou num beco escuro. Quando recupero a respiração, pisco paradesanuviaravista,eexaminoosarredores.

Consigo enxergar a estação de trem, a Union Station, a váriosquarteirões de distância. Não estou longe agora. Tess vai estar lá,esperandopormim.

Maistrêsquarteirões.Maisdoisquarteirões.Sófaltaumquarteirão.Nãosuportomais.Encontroumlocalescurono

becoedesmoronoderepente.Aúltimacoisaquevejoéasilhuetadeumagarotaadistância.Talvezelaestejavindonaminhadireção.Eumeenroscotodoedesmaio.

Antes de apagar, percebo que meu medalhão já não está no meupescoço.

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JUNE

Aindame lembrododia emquemeu irmãoperdeu sua cerimôniadepossenoserviçomilitardaRepública.

Eraumatardededomingo.Quenteesuja.Nuvenspardascobriamocéu.Eu tinhaseteanos,eMetias,dezenove.Meu filhotedecãopastorbranco,Ollie,dormianochãofriodemármoredenossoapartamento.Euestavadecama, com febre, comMetias sentadoaomeu lado, seu rosto franzidodepreocupação.Davaparaouvirosalto-falantesláfora,tocandooJuramentode Lealdade à República. Quando chegou a parte mencionando nossopresidente,Metiaslevantou-seefezumacontinêncianadireçãodacapital.NossoilustrePrimeiroEleitorhaviaacabadodeaceitaroquartomandatopresidencial.Issosignificavaseudécimoprimeiroperíododegestão.

– Você sabe que não precisa ficar aqui comigo, né? – Eu disse a eledepoisqueterminouoJuramento.–Vátomarposse.Dequalquerjeito,euestoudoentemesmo.

Metiasmeignorouepôsmaisumatoalhafrianaminhatesta.–Euvoutomarpossedequalquermaneira,indoounãoàcerimônia–

eledisse,emedeuumafatiadelaranja.Lembrodeledescascandoalaranjaparamim.Elecortouumalinhacompridaeretanacascadafruta,depoisretiroutudodeumasóvez.

–MaséaComandanteJameson.–Pisqueicomosolhosinchados.–Elafezumfavorquandonãotedesignouparao front, vai ficaraborrecidasevocê não comparecer. Será que ela não vai anotar isso no seu histórico?Vocênãovaiquererserexpulsocomosefosseumvigaristaqualquer.

Metiasbateudelevenomeunariz,demaneiradesaprovadora,edisse:–Nãochameaspessoasassim,Joaninha:égrosseiro.Eelanãopodeme

expulsardasuapatrulhaporeunãoter idoàcerimônia.Alémdisso–eleacrescentou,piscandooolho–,eupossoinvadirobancodedadosedeixarminhafichalimpinha.

Deiumrisinho.Eutambémqueriatomarpossecomomilitar,usandoostrajespretosdaRepública.Talvezeuaté tivessea sortedeserdesignadaparaumcomandanterenomado,comoaconteceucomoMetias.Abriaboca

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paraelemedarmaisumpedaçodelaranjaedisse:–VocêdeviairmenosaBatalla.Quemsabeassimvocêarranjariauma

namorada?Metiasriuerespondeu:–Eunãoprecisodenamorada.Tenhouma irmãzinhadequem tomar

conta.–Cortaessa!Algumdiavocêvaiarranjarumanamorada.–Vamosver.Achoquesoumuitoexigente.Pareieolheimeuirmãodiretamentenosolhos:–Metias,nossamãetomavacontademimquandoeuestavadoente?Ela

faziaessetipodecoisaquevocêestáfazendo?Metiassedebruçouetiroufiossuadosdecabelodomeurosto.–Nãosejaboba,Joaninha.Éclaroquemamãetomavacontadevocê,e

faziaissomuitomelhordoqueeu.– Não. Você é quem melhor toma conta de mim – disse. Minhas

pálpebrasestavamficandopesadas.Meuirmãosorriuedisse:–Legalvocêdizerisso.–Vocênãovaimedeixartambém,né?Vocêvaificarcomigomaistempo

doquemamãeepapai?Metiasmebeijounatestaerespondeu:–Vouficarcomvocêparasempre,pequena,atévocênãoaguentarmais

olharpraminhacara.

00H01.SETORRUBY.22°CEMAMBIENTEFECHADO.

SeiquealgumacoisaestáerradanoinstanteemqueThomasaparecenanossaporta.Falta luzemtodososprédiosresidenciais,exatamentecomoMetias disse que aconteceria, e apenas lampiões a óleo iluminam oapartamento.Ollieestálatindoporcausadatempestade.Estouvestidacom

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meu uniforme de treinamento, um colete preto e vermelho, botasamarradas e o cabelo preso num rabo de cavalo apertado. Por ummomento,ficocontentedenãoserMetiasesperandonaporta.Elemeveriade pé, e assim saberia que estou pronta para sair, desobedecendo à suaordem,maisumavez.

Quando abro a porta, Thomas tosse nervosamente por causa daexpressãodesurpresadomeurosto,logofingesorrir.Háumamanchadegraxapretanasuatesta,provavelmentefeitapeloseudedoindicador.Issoquer dizer que ele poliu seu rifle de tardinha e que a inspeção de suapatrulhaéamanhã.Cruzoosbraços.Elemecumprimentagentilmentecomoquepe:

–Olá,Srta.Iparis–elediz.Respirofundoedigo:–Estouindoàpistadetreinamento.OndeestáMetias?–AComandanteJamesonpediuqueasenhoritavácomigoaohospitalo

maisdepressapossível.Thomashesitauminstanteecontinua:–Émaisumaordemdoqueumpedido.Sintoumvazionoestômagoepergunto:–Porqueelanãometelefonou?–Elapreferequeeuacompanheasenhorita.–Porquê?–Elevoavoz.–Ondeestámeuirmão?AgoraéThomasquerespirafundo.Pressintooqueelevaidizer:–Sintomuito.MataramoMetias.Nesteinstante,omundoaomeuredorficasilencioso.Como se de uma grande distância, vejo que Thomas continua a falar,

gesticular, eme abraça. Eu também o abraço, semme dar conta do queestoufazendo.Nãosintonada.Acenoquesimcomacabeçaquandoelemeampara eme pede para fazer uma coisa: segui-lo. Ele põe um braço emvolta dosmeus ombros. O focinho úmido de um cachorro cutucaminhamão. Ollie me segue quando saio do apartamento, eu mando que fiquequieto. Tranco a porta, ponho a chave no bolso e deixo que Thomas nosguie na escuridão até a escada. Ele fala semparar,masnão escutonada.Fico olhando fixamente para os adornos metálicos espelhados que

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revestemaescadaria,paraosreflexos,meuedeOllie,distorcidos.Nãoconsigoexpressarnenhumaemoção.Nemseisetenhouma.Metiasdevia terme levadocomele.Esseémeuprimeiropensamento

coerentequandochegamosaoandartérreodonossoprédioaltoesubimosnojipequenosespera.Olliepulaparaoassentotraseiroemeteacabeçaparaforadajanela.Oveículotemumcheiroúmido,comoborracha,metalesuorrecente.Umgrupodepessoasdeveterviajadoaquihápoucotempo.Thomassesentanoassentodomotoristaesecertificadequeestoucomocintodesegurançaafivelado.Quecoisapequenaeirrelevante!

Metiasdeviatermelevadocomele.Essepensamentonãomesaidacabeça.Thomasnãofalamaisnada.Ele

me deixa ficar olhando a cidade às escuras enquanto viajamos, eocasionalmentemeolhahesitante.Umapequenapartedemimressaltaquedevopedirdesculpasaeledepois.

Meus olhos vidrados observam os edifícios familiares à medida quepassamosporeles.Pessoas,amaioriadeoperárioscontratadosnasfavelas,se aglomeram em estandes no primeiro andar, mesmo com as luzesapagadas, debruçadas sobre tigelas de comida barata no andar daslanchonetes.Nuvensdevaporflutuamàdistância.Telões,sempreligados,independentemente da escassez de luz, exibem as advertências maisrecentessobreinundaçõesequarentenas.AlgumassãosobreosPatriotas.DessavezpormaisumbombardeioemSacramento,quematoumeiadúziadesoldados.Unscadetes,meninosdeonzeanoscom faixasamarelasnasmangas,permanecemnosdegrausexternosdeumaescolapreparatória,naqualasletrasantigas,gastas,quasecompletamentedesbotadas,dizemSalade Concertos Walt Disney. Vários outros jipes militares passam pelocruzamento na rua, e vejo o rosto impassível dos soldados. Alguns usamóculosdeproteção,demodoquenãoconsigoverosolhosdeles.

O céu está mais encoberto do que o normal, o que significa umatempestade iminente.Puxoocapuzparacobriracabeça,casoeuesqueçaquandofinalmentesairmosdojipe.

Quandoconcentrominhaatençãonovamentenajanela,vejoapartedocentro da cidade, que fica dentro de Batalla. Todas as luzes desse setormilitarestãoacesas.Atorredohospitalaparecedistorcida,aapenasalgunsquarteirõesdedistância.

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Thomasreparaqueestouesticandoopescoçoparavermelhor,ediz:–Estamosquasechegando.Ao nos aproximarmos, vejo as fitas de isolamento amarelas

circundandoaparteinferiordatorre,umgrupodepatrulheirosmunicipais(com faixas vermelhas nas mangas, como Metias), alguns fotógrafos epoliciaismunicipais, furgões pretos e caminhões de remédios. Ollie soltaumgemido.

–Suponhoquenãotenhamprendidoapessoa–digoaThomas.–Comovocêpodesaber?Apontocomacabeçaparaoedifício:– É espantoso – digo. – Quem fez isso sobreviveu a um salto de dois

andaresemeio,eaindateveforçaparafugir.Thomasolhaparaatorreetentaveroqueeuvejo:ajanelaquebradada

escadariadoterceiroandar,olocalisoladocomfitaadesivabemembaixo,ossoldadosprocurandonosbecos,afaltadeambulâncias.

–Agenteaindanãopegouosujeito–eleadmite,apósummomento.Agraxaderiflenatestalhedáumaexpressãoaturdida.–Masissonãoquerdizerquenãovamosencontrarocorpodeledepois.

–Vocêsnãovãoencontrarocorpo,senãoacharamatéagora.Thomasabreabocaparadizeralgumacoisa,masresolveficarcaladoe

voltaaseconcentrarnarua.Quandoojipefinalmentepara,aComandanteJamesonseafastadogrupodeguardascomquemestáesedirigeàportadomeuveículo.

– Eu lamento – Thomas me diz abruptamente. Sinto uma pequenapontadaderemorsoporminhafriezaeresolvoacenarcomacabeçaparaele.Seupaihaviasidozeladordonossoprédiodeapartamentosantesdemorrer, e sua falecida mãe trabalhara como cozinheira na minha escolaelementar.MetiashaviarecomendadoThomas,quetevepontuaçãoaltanaProva, às prestigiosas patrulhasmunicipais, apesar de seus antecedenteshumildes.Eledeve,então,sesentirtãoentorpecidoquantoeu.

AComandanteJamesonvematéojipeedáduaspancadinhasnajanelaparachamarminhaatenção.Seuslábiosfinosestãopintadosdevermelhoforte,eànoiteseucabeloruivoparececastanho-escuro,quasepreto.

– Ande logo, Iparis. O tempo é essencial. – Seus olhos se mexemvacilantes ao verem Ollie no assento traseiro. – Esse não é um cão da

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polícia,garota.–Mesmoagora,suaatitudeéinabalável.Desçodojipeeacumprimentocomumarápidacontinência.Olliesalta

parajuntodemim.–Asenhoramandoumechamar,Comandante.AComandanteJamesonsequercomentaoqueeudisse:elacomeçaase

afastar, e sou forçada a me apressar ao lado dela, esforçando-me paramanterseuritmo.Eladiz:

–SeuirmãoMetiasestámorto.–Seutomdevozsemantéminalterado.–Édomeuconhecimentoqueseutreinamentocomoagenteestáquasenofim,certo?Equevocêjáterminouseuscursosderastreamento?

Eume esforçopara respirar. Era a segunda confirmaçãodamorte deMetias.

–Éissomesmo,Comandante–consigodizer.Nós nos dirigimos ao hospital. A sala de espera está vazia, todos os

pacientes foram liberados. Guardas se amontoam perto da entrada daescadaria.Éprovavelmentealiquecomeçaacenadocrime.AComandanteJamesonmantémosolhosparaa frenteeasmãosatrásdascostas,entãomepergunta:

–QualfoisuacontagemnaProva?–Milequinhentos,Comandante.–Todomundonaáreamilitarsabeda

minhacontagem,masaComandantefingenãosabernemseimportar.Elanãoparadeandarediz:–Ah,estácerto.–Dizcomosefosseaprimeiravezqueouvisse.–Afinal

decontas,talvezvocêsejaútil.LigueiparaaUniversidadedeDrakeedisseaelesquevocêestádispensadademais treinamento.Dequalquer forma,vocêestáquaseterminandoseuscursos.

Enrugoatestaepergunto:–Comoassim,Comandante?– Recebi o histórico integral de suas notas na faculdade. Elas são

perfeitas.Você já quase acabouamaioriados seus cursos emmetadedonúmeronormaldeanos,certo?Elestambémmedisseramquevocêéumacriadoradecasos.Issoéverdade?

Nãoentendooqueelaquerdemimerespondo:– Às vezes, Comandante. Estou com algum problema? Eles me

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expulsaram?AComandanteJamesonsorrieresponde:– Absolutamente. Eles a diplomaram com antecedência. Siga-me. Há

umacoisaquequeroquevocêveja.TenhovontadedeperguntarsobreMetias,sobreoqueaconteceu,masa

friezadesuaatitudemedetém.Percorremos um corredor do primeiro andar até chegarmos a uma

portadesaídadeemergêncianofinal.Lá,aComandanteJamesondispensaossoldadosquevigiavamaportaemefazentrar.Ollieemiteumpequenorosnado.Saímosparaumlocaldescoberto,destaveznosfundosdoprédio.Perceboqueestamosnaáreacercadapelafitaadesivaamarela.Dezenasdesoldadosseamontoamaonossoredor.

–Depressa!–Ordena-meaComandanteJameson.–Apresseopasso.Um instante depois, compreendo o que ela quer me mostrar e onde

estamosandando.Perto,háumobjetocobertoporumlençolbranco.Tem1,83m,éhumano.Ospéseosmembrosparecemintactosdebaixodopano.Éclaroqueelenãopodetercaídotãonaturalmenteassim,alguémtevedeendireitá-lo.Começoatremer.QuandoolhoparaOllie,vejoqueestácomopelo eriçadonas costas. Eu o chamo várias vezes,mas ele se recusa a seaproximar, demodoque sou obrigada a seguir a Comandante Jameson edeixá-loparatrás.

“Metias me beijou na testa e respondeu: ‘Vou ficar com você parasempre,pequena,atévocênãoaguentarmaisolharparaaminhacara.’”

A Comandante Jameson para em frente do lençol branco, então seinclinaeoatiraparaolado.Olhofixamenteparaocadáverdeumsoldadovestido de uniforme militar preto, com uma faca ainda sobressaindo nopeito.Sangueescurolhemanchaacamisa,oombro,asmãos,asranhurasdocabodafaca.Osolhosestãofechados.Ajoelhoàfrentedeleeretirodoseurostofiosdocabelopreto.Éestranho.Nãoabsorvonenhumdetalhedacena.Continuosemsentirnada,estouprofundamenteentorpecida.

– Conte-me o que pode ter acontecido aqui, cadete – ordena-me aComandante Jameson. – Considere isto um questionário improvisado. Aidentidadedestesoldadodevemotivá-laarespondercorretamente.

Nem amordacidade das palavras delame abala. Os detalhes vêm emjorro,ecomeçoafalar:

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–Quemoatingiucoma faca,oapunhalou,outemumbraçoqueatiracommuitaforça.Eédestro.–Passoosdedosnocabodafaca,manchadodesangue.–Amiradessesujeitoéimpressionante.Afacafazpartedeumpar,certo?Estávendoessepadrãodesenhadonapartemaisbaixada lâmina?Eleseinterrompeabruptamente.

AComandanteJamesonconcordacomacabeçaediz:–Asegundafacaestáenfiadanaparededaescadaria.Olhoparaobecoescuroparaoqualapontamospésdomeu irmão,e

reparonatampadobueiroaváriosmetrosdedistância.Digoentão:– Foi por ali que ele fugiu. – Calculo a direçãoque indica a tampado

esgoto.–Eletambémécanhoto.Interessante.Eleéambidestro.–Continue,porfavor.–Daqui,osesgotosolevammaisparadentrodacidade,ouparaomar,

aoeste.Elevaiescolheracidade,provavelmenteestámachucadodemaispara agir de outra maneira, mas agora já é impossível rastreá-loexatamente. Se ele for pelo menos um pouco inteligente, deu uma meiadúziadevoltasláembaixoefezomesmonoesgototambém.Elenãodevetertocadonasparedes,paranãonosdarumapistapararastreá-lo.

–Voudeixarvocêficaraquiumpouquinho,parapôrseuspensamentosemordem.Encontre-meemdoisminutosnaescadadoterceiroandar,paraquepossamosdaralgumespaçoaosfotógrafos.Elarelanceiaoolharumavez para o corpo de Metias antes de se virar para ir embora. Por uminstante, seu rosto se suaviza e ela diz: – Que desperdício de um bomsoldado!–Depoiselasacodeacabeçaevaiembora.

Euaobservoirembora.Osdemaisaomeuredorficambemafastados,aparentementepreocupadosemevitarumaconversaconstrangedora.Olhonovamenteorostodomeuirmão.Paraminhasurpresa,elepareceempaz.Suapele está bronzeada, e nãopálida, como supusque estaria. Euquaseespero que seus olhos pisquem rapidamente, ou que sua boca sorria.Pedacinhosdesanguesecocaemnasminhasmãos.Quandotentotirá-los,eles grudam à minha pele. Não sei se é isso que provoca minha raiva.Minhasmãos começama tremer tanto, que eu as comprimona roupadeMetias,numatentativadefirmá-las.Eudeveriaestaranalisandoacenadocrime,masnãoconsigomeconcentrar.

–Vocêdeviatermelevadocomvocê–sussurroaele.Depoisencostoa

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cabeça na dele e começo a chorar. Mentalmente, faço uma promessasilenciosadirigidaaoassassinodomeuirmão:

“Vouperseguirvocêatéoinferno.VouvasculharasruasdeLosAngelesàsuaprocura.Sepreciso,vouprocuraremtodasasruasdaRepública.Vouenganarvocê,usardetruques,mentir,fraudar,roubarparaencontrarvocê,atraí-lo para que saia do seu esconderijo, e persegui-lo até você não termaisparaondefugir.Estoufazendoumjuramento:suavidaéminha”.

Antes do que eu esperava, chegam soldados para levarMetias para onecrotério.

03H17MMEUAPARTAMENTO.NAMESMANOITE.COMEÇOUACHOVER.

Estou deitada no sofá, abraçando Ollie. O lugar ondeMetias costumasentar está vazio. Pilhas de álbuns de fotos antigas e diários de Metiasenchem a mesinha de centro. Ele sempre adorou o estilo antiquado denossos pais, e mantinha registros escritos, da mesma forma que eleshaviam guardado todas as fotos de papel. “Você não pode rastrear nemidentificá-las on-line” – ele dizia sempre. Isso era muito irônico, em setratandodeumhackermuitohabilidoso.

FoimesmoestatardequeelemepegounaDrake?Queriafalarcomigoumacoisaimportante,poucoantesdeirembora,masagoraeununcavousaberoqueeletinhaadizer.Papéiserelatoscobremminhabarriga.Umadasminhasmãosapertaumcordão,umaprovaqueeutenhoexaminadoháalgum tempo. Eu olho de soslaio para sua superfície lisa, sua falta depadrões.Depoisdeixoamãocair,comumsuspiro.Minhacabeçadói.

SoubemaiscedoporqueaComandanteJamesonmetiroudaDrake.Hámuito tempo ela estava de olho em mim. Agora, subitamente, ela temmenosumelementonapatrulha,Metias,eestáprecisandoacrescentarumagente. Era a hora perfeita para me contratar, antes que outrosrecrutadoresofizessem.Apartirdeamanhã,ThomasvaiassumirocargodeMetias,provisoriamente,entãoeuvouparticipardapatrulhacomoumaagenteemtreinamento.

Minhaprimeiramissãoderastreamento:Day.

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“Já tentamos diversas táticas para pegar Day, mas nenhuma delasfuncionou”, disse-me Jameson pouco antes de me mandar para casa.“Então, isto é o que vamos fazer: eu vou continuar com os projetos daminha patrulha. Quanto a você, vamos testar suas habilidades comexercíciosrepetitivos.Mostre-mecomovocêrastreariaoDay.Talvezvocêconsiga ter sucesso, talvez não. Mas você é um elemento com novasperspectivas das coisas e, se me impressionar, vou promovê-la a agenteefetiva de patrulha. Vou tornar você famosa: a agentemais jovemque jáhouve.

Fechoosolhosetentopensar.Day matou meu irmão. Sei disso porque encontrei um crachá de

identidaderoubadonametadedaescadariaeissonoslevouaosoldadoqueaparecianocrachá,queindicavaumadescriçãodaaparênciadogaroto.Suadescrição não combinava com nada que nós tínhamos no arquivo sobreDay,masaverdadeéquesabemospoucosobrecomoeleé,excetoqueémuitojovem,comoogarotodohospitaldessanoite.Asimpressõesdigitaisnocrachádeidentidadesãoasmesmasencontradasnomêspassadonumacenadecrime ligadaaoDay,masnãocombinamcomasdenenhumcivilqueaRepúblicatenhanosbancosdedados.

Dayestevenohospital.Ele foidescuidadoobastanteparadeixar láocrachádeidentidade.

Oquemefazpensar.Dayinvadiuolaboratórioàprocuraderemédios,comopartedeumplanodesesperado,deúltimahora,emalelaborado.Eledeveterroubadosupressoresdapragaeanalgésicosporquenãoconseguiuencontrar nada mais forte. Ele certamente não está infectado, pois, seestivesse, não teria conseguido fugir, mas outra pessoa que ele conhecedeveestarcomapraga,alguémcomquemeleseimporteosuficienteparaarriscaravida.AlguémquemoreemBlueridge,Lake,WinterouAlta,áreasrecentemente afetadas pela praga. Se isso for verdade, tão cedoDay nãosairá da cidade. Ele está ligado aqui por esse vínculo, motivado poremoções.

Daytambémpodeteralguémqueopatrocine,queotenhacontratadopara fazeresseserviço.Comoohospitaléum lugarperigoso,ele teriadeter dado muito dinheiro a Day. Mas se tanto dinheiro assim estivesseenvolvido no esquema, ele certamente teria planejado maisminuciosamente, e saberia quando chegaria ao laboratório o próximo

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carregamento de remédios contra a praga. Além disso, em nenhum dosseus crimes Day agiu como mercenário. Ele já havia atacado sozinhopropriedadesmilitaresdaRepública,atrasadoaviõesecaçasdestinadosaofront. Ele tem uma espécie de agenda para nos impedir de vencer asColônias. Durante algum tempo, pensamos que ele poderia estartrabalhandoparaasColônias,masas tarefasqueeleexecutasãosimples,não requerem equipamentos de alta tecnologia nem recursos financeirosevidentes. Isso não émesmo o que se espera de um inimigo. Ao que eusaiba, esse garoto nunca foi criminoso de aluguel, e é improvável quecomeçasse agora. Quem contrataria um mercenário inexperiente? Outropossível patrocinador seriam os Patriotas, mas se Day estivessetrabalhando para eles nessa tarefa, um dos Patriotas já teria fixado suabandeira(trezefaixasvermelhasebrancas,comcinquentapontosbrancosnumretânguloazul)numaparedeemalgumlugarpertodacenadocrime.Elesnuncaperdemumaoportunidadededeclararsuasvitórias.

Entretanto, o que mais me intriga é isto: Day nunca matou ninguémantes.EssaéoutrarazãopelaqualnãoachoqueeletenhaalgumaligaçãocomosPatriotas.Emumde seusdelitos anteriores, ele rastejouatéumazonadequarentena,tendoamarradoumpolicial.Opolicialnãosofreuumarranhão(excetoporumolhoroxo).Numaoutravez,ele invadiuocofre-forte de um banco,mas nãomachucou nenhum dos quatro guardas queficavamnaentradadosfundos,oquedeixouosguardasestupefatos.Certaocasião, ele incendiou um esquadrão de caças num aeródromo vazio, nomeiodanoite, e emduasoutrasvezes impossibilitouaviõesdealçarvooporterdanificadoseusmotores.Numaoutra,elevandalizoualateraldeumprédio militar. Ele já roubou dinheiro, alimentos e produtos, mas nãocolocabombasnaslateraisdasestradas.Elenãoatiraemsoldados.Elenãotentaassassinarninguém.Elenãomata.

Então,porqueoMetias?Daypoderiaterfugidosemomatar.SeráqueDaytinhaalgumressentimentocontraele?TeriameuirmãoprejudicadooDaynopassado?Amortenãofoiacidental:afacaentroudiretonocoraçãodeMetias.

Diretonoseucoraçãointeligente,burro,teimosoesuperprotetor.Abro os olhos, levanto a mão e analiso de novo o medalhão. Ele

pertence ao Day, segundo nos informaram as impressões digitais. É umdisco circular semnada gravado, umobjeto que encontramosnopiso da

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escadaria do hospital, com o crachá roubado. Não representa nenhumareligiãoqueeuconheça.Emtermos financeiros,nãovalenada:é feitodeníquelecobreordinários,apartedocordãoéfeitadeplástico.Oquequerdizer que ele não deve tê-lo roubado, esse objeto tem um significadodiferenteparaele,evaleapenaandarcomelemesmocorrendooriscodeperdê-looudeixá-locair.Talvezsejaumamuletodesorte.Talvezlhetenhasidodadoporumapessoacomquemeletenhalaçosemocionais.Talvezsetrate damesma criatura para quemele tentou roubar remédios contra apraga.Esseobjetotemumsegredo,nãoseiqual.

AsaçõesdeDaycostumavammefascinar,masagoraeleémeuinimigo,meualvo,minhaprimeiramissão.

Emdoisdias, concluomeuspensamentos.No terceirodia, ligopara aComandanteJamesonedigo:tenhoumplano.

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DAY

Sonho que estou em casa de novo. Éden está sentado no chão,desenhando. Ele está comquatro ou cinco anos, comas bochechas aindaredondasdobebêgordoquefoi.Detemposemtempos,eleselevantaemepedeparadizeroqueachodesuaarte.Johneeuestamossentadoscomosjoelhosdobradosnosofá,tentandoemvãoconsertarumrádioqueestánanossafamíliaháanos.Aindamelembrodequandopapaiolevouparacasae disse: “Ele vai nos informar quais os quarteirões atacados pela praga”.Agora,porém,osparafusoseomostradordoaparelhoestãodesgastadoseinertesemnossoscolos.PeçoajudaaoÉden,maseleapenasdáumrisinhoedizparaagentesevirarsemele.

Mamãeestásozinhananossaminúsculacozinha, tentandoprepararojantar. Conheço bem essa cena. Suas mãos estão enroladas em espessasataduras. Ela deve ter se machucado com garrafas quebradas ou latasvaziasenquantolimpavaoslatõesdelixoemredordaUnionStationhoje.Ela tremededorquandoabrepacotesdemilho congelado coma lâminalisadeumafaca.Suasmãosferidasestremecem.

“Para, mãe, eu te ajudo.” Tento me levantar, mas meus pés parecemestargrudadosnochão.

Após algum tempo, levanto a cabeça para ver o que Éden estádesenhandoagora.Aprincípionãoconsigodistinguiroque significamasimagens, estão todasmisturadas, amontoadas em padrões aleatórios sobsuamãozinhaágil.

Quandoolhomaisdeperto,perceboqueeleestádesenhandosoldadosinvadindonossacasa.Eleosdesenhacomumlápisdeceravermelhocordesangue.

Acordoassustado.Raiosindistintosdeluz,cinzentosepoucointensos,passamatravésdeumajanelapróxima.Escutoumprimeirosomfracodechuva.Estounoquepareceumquartoabandonadodecriança.Opapeldeparedeéazuleamarelo,eestádescascadonoscantos.Duasvelasiluminamoquarto.Sintomeuspéspenduradosnaextremidadedacama.Debaixodaminhacabeçaháumtravesseiro.Quandomudodelugar,emitoumgemidoefechoosolhos.

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AvozdeTesschegaatémeusouvidos.–Vocêpodemeouvir?–elapergunta.–Nãofaletãoalto,amiga.Minhavozsaicomoumsussurropelosmeuslábiossecos.Minhacabeça

lateja,comumaenxaquecalancinante.Tessreconheceadornomeurostoeentão se cala, enquanto eumantenho os olhos fechados e espero. A dorcontinua,comoumpicadordegelonaminhanuca.

Depois de uma eternidade, a enxaqueca finalmente começa a ceder.Abroosolhosepergunto:

–Ondeestou?Vocêestábem?FocalizoorostodeTess.Elaprendeuocabeloparatrásnumapequena

trança,eseuslábioscor-de-rosaestãosorridentes:–Seeu estoubem?–elapergunta.–Vocêsaiudoar fazmaisdedois

dias.Comosesente?A dor me atinge em ondas. Desta vez sinto os ferimentos do corpo.

Respondo:–Estouótimo.OsorrisodeTessesmaeceeeladiz:–Destavezfoiporumtriz,cara.Seeunãotivesseencontradoalguém

paranosacolher,achoquevocêjáestarianoandardecima.De repente me lembro rapidamente de tudo. Lembro da entrada do

hospital,docracháde identidaderoubado,dasescadarias,do laboratório,da queda lá do alto, da minha faca atirada no capitão, dos bueiros, dosremédios.

“Dosremédios!”Tentomesentar,masmemexomuitodepressaeadormefazmorderolábio.Minhamãotocanomeupescoço,lánãoestámaisomedalhão para eu agarrar. Alguma coisa me dói no peito. “Perdi omedalhão.”Meupai tinhamedado essemedalhão, e eu fui descuidadoobastanteparaperdê-lo.

Tesstentameacalmar:–Ei,dáumtempo.–Minhafamíliaestábem?Algumremédiosobreviveuàminhaqueda?– Uma parte. – Tess me ajuda a deitar de novo antes de apoiar os

cotovelos naminha cama. – Acho que supressores sãomelhores do que

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nada.Jáentregueioquesobrounacasadasuamãe,comseuembrulhodepresentes.FuipelosfundoseentregueitudoaoJohn.Elemepediuqueteagradecesse.

–VocênãocontouaoJohnoqueaconteceu,nãoé?Tessreviraosolhosepergunta:–Vocêachaqueconsigoocultarissodele?Todomundojásabesobrea

invasãodohospital, Johnsabequevocêsemachucou.Eleestádanadodavida.

–Elecontouquemestádoente?ÉoÉden?Ouamamãe?Tessmordeoslábioseresponde:–ÉoÉden.Johndizqueosoutrosestãobem,porenquanto.MasoÉden

está falando normalmente e parece bem. Ele tentou sair da cama paraajudar suamãea consertarovazamentodebaixoda suapia,paraprovarqueestava forte,maséclaroqueelaomandoudevoltaparaacama.Elarasgou duas blusas para usar como compressa, para diminuir a febre doÉden,por isso Johnmandoudizerque sevocêencontraralgumas roupasquedeemnasuamãe,elevaificarmuitofelizemaceitá-las.

Respiroprofundamente.Éden.ÉclaroqueéoÉden,aindaagindocomoumpequenoengenheiro,mesmocomapraga.Pelomenosconseguialgunsremédios.“Tudovaidarcerto.”Édenvaificarlegalporalgumtempo,eeunão me importo de ter de ouvir os sermões de John. Quanto ao meupingente perdido… bem, por um instante fico satisfeito por mamãe nãosaberoquehouve,porqueissolhepartiriaocoração.

– Eu não consegui encontrar nenhum remédio específico e não tivetempodeprocurar.

–Tudobem–respondeTess.Elapreparaumanovaataduraparameubraço.Vejomeuantigoeusado

boné,penduradonascostasdacadeiradela.– Sua família ainda dispõe de algum tempo. Vamos ter outra

oportunidade.–Estamosnacasadequem?Logoquefaçoessapergunta,ouçoumaportasefechar,edepoispisadas

no cômodoao ladodonosso.OlhoparaTess, assustado.Ela fazumsinaltranquilizadorcomacabeçaemedizparameacalmar.

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Umhomementra,sacudindogotassujasdechuvadeumguarda-chuva.Nasmãos,umsacodepapelpardo.Elemediz:

–Vocêestáacordado,ótimo!Examino seu rosto. Ele é muito pálido e meio rechonchudo, tem

sobrancelhascerradaseumolharbondoso.– Menina – ele diz, olhando para Tess –, você acha que ele pode ir

emboraamanhãànoite?–Aessaaltura,jáestaremoscomopénaestrada.Tesspegaumagarrafacomalgumacoisaclara–suponhoqueálcool–e

molhaabeiradaatadura.Recuoquandoelatocaondeumabalapassouderaspãopelomeubraço.Asensaçãoédeum fósforoacesonaminhapele.Tessdiz:

–Obrigada,senhor,porterdeixadoqueficássemosaqui.O homem resmunga, com expressão insegura, e, constrangido, acena

afirmativamente com a cabeça. Olha ao redor do quarto, como seprocurassealgumacoisaperdida,ediz:

–Receioqueeunãopossaabrigarvocêsmaisdoqueesseperíodo.Apatrulha do controle da praga vai fazer outra varredura em breve. – Elehesita,entãotiraduaslatasdosacodepapeleaspõeemcimadacômoda.–Istoaquiéchili[3]paravocês.Nãoéomelhor,masvaisatisfazervocês.Eutambémvoutrazerpão.

Antesqueumdenósdoispossadizeralgumacoisa,elesaiapressadodoquarto,comorestodeseusmantimentos.

Pela primeira vez, olho para o meu corpo. Estou vestindo calçasmilitares marrons, meu peito e braço nus estão cobertos por ataduras,assimcomoumadasminhaspernas.

–Porqueeleestáanosajudando?–perguntobaixinhoàTess.Elaergueosolhosdaataduranovaqueestavapondonomeubraçoe

responde:–Nãoseja tãodesconfiado.Ele teveumfilhoquecombateuno front e

morreudapragaháalgunsanos.DouumgrunhidoquandoTessamarraumnónaatadura.Elamediz:–Respireparaeuver.Façocomoeladisse.Váriasefortespontadasmecausamdoresagudas

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quando ela pressiona os dedos delicadamente em partes do meu peito.Suasfacesficamrosadasenquantoelatrabalha.

–Épossívelquevocêtenhaumafissuraemumadascostelas,masnãoénada de fratura. Você em breve deve estar curado. Como o homem nãoperguntou nosso nome, eu também não perguntei o dele. É melhor nãosaber.Euconteiaeleporquevocêficoutãomachucado.Achoqueissolhelembrouofilho.

Deitoacabeçanotravesseiro.Todoomeucorpodói.–Perdiminhasduasfacas–sussurro,paraqueohomemnãomeouça.

Eramboasfacas.–Lamentosaberdisso,Day–dizTess.Elatiraumfiodocabelodorostoesedebruçaparamim.Levantaum

sacoplásticotransparente,comtrêsbalasdepratadentro.–Achei estasbalasnasdobrasdas suas roupas, acheiquevocê talvez

possausarnoseuestilingueouemoutracoisaqualquer.–Elameteosacoemumdosmeusbolsos.

Sorrio.QuandoconheciTesshátrêsanos,elaeraumaórfãmagriceladedez anos de idade vasculhando latas de lixo no setor Nima. Naquelesprimeiros anos ela havia precisado tanto da minha ajuda, que às vezesesqueçooquantodependodelaagora.

– Obrigada, amiga – digo. Ela murmura algo que não compreendo, edesviaoolhar.

Depoisdealgumtempo,voltoadormirprofundamente.Quandoacordodenovo, não sei quanto tempo se passou. A dor de cabeça foi embora, eestá escuro lá fora. Pode ser o mesmo dia, embora eu sinta que dormidemais para isso. Nada de soldados, nada de polícia. Continuamos vivos.Ficoimóvelporuminstante,bemacordadonaescuridão.Parecequenossoguardiãonãonosdenunciou.Aindanão.

Tessestácochilandonabeiradacama,comacabeçaentreosbraços.Àsvezes tenhovontadedeencontrarumbom larpara ela, comuma famíliagenerosadispostaaaceitá-la.Mastodavezquetenhoessepensamento,euoafasto,porqueTessestariadevoltaàtuteladaRepúblicasefizessepartedeumafamíliadeverdade,eseriaobrigadaafazeraProva,porquenuncaafez. Ou, pior ainda, saberiam de sua ligação comigo e a interrogariam.Sacudoacabeça.Elaémuitoingênua,muitofacilmentemanipulada.Eunão

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aconfiariaanenhumaoutrapessoa.Alémdisso…eusentiriafaltadela.Osprimeiros dois anos que passei vagando sozinho pelas ruas forammuitosolitários.

Cautelosamente,façoumcírculocomotornozelo.Estámeioduro,masnão me causa dor, não rompi músculos, nem está muito inchado. Oferimentoàbalaaindaqueimaeminhascostelasdoempracaramba,masdesta vez consigo me sentar sem problema. Minhas mãos vãoautomaticamenteparameucabelo,queestásolto,epassadosombros.Comumadasmãos, façoumrabodecavalodequalquer jeito,eoprendocomum forte nó. Depoisme inclino sobre Tess, pego na cadeira omeu bonésurrado,eoponho.Meusbraçosardemcomoesforço.

Sinto o cheiro de chili e pão. Há uma tigela com vapor subindo dacômodaaoladodacama,eumpãoequilibradonabeiradatigela.Lembrodasduaslatasquenossoanfitriãohaviapostonacômoda.

Meuestômagorosna.Devoroatigelatoda.Quandoestoulambendodosdedosoquerestadochili,ouçoumaporta

se fechar em algum lugar da casa e, instantes depois, ruídos de passoscorrendoaténossoquarto.Ficotenso.Ameulado,Tessacordadesúbitoeagarrameubraço.

–Quefoiisso?–Perguntaderepente.Euponhoumdedonoslábios,emsinaldesilêncio.

Nosso guardião se apressa a entrar no quarto, com um roupãoesfarrapadoemcimadopijama.Elesussurra:–Vocêsdevempartiragora.–O suor lhe pinga da testa. – Acabei de saber que um homem estáprocurandoporvocês.

Eu o olho intensamente. O rosto de Tess mostra uma expressãoapavorada.

–Comoéqueosenhorsabe?–Pergunto.Ohomemcomeçaalimparoquarto,agarraminhatigelavaziaearruma

acômoda:– Ele está dizendo por aí que tem remédios para curar a praga, para

quemprecisar.Eledizsaberquevocêestáferido.Nãodissenenhumnome,masdeveestarfalandodevocê.

Eumesentoeretoejogoaspernasparaoladodacama.Agoranãoháescolha.

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–Eleestáfalandodemim,sim–concordo.Tesspegaalgumasataduraslimpaseasenfiadebaixodablusa:–Éumaarmadilha.Vamosemboraimediatamente.Ohomemfazumsinalpositivocomacabeçaediz:– Vocês podem sair pela porta dos fundos. Vão diretamente pelo

corredor,àsuaesquerda.Poruminstante,euoencaroeperceboqueelesabeexatamentequem

soueu,masnãoodizemvozalta.Comooutraspessoasemnossosetorquecompreenderam quem eu era e me ajudaram. Ele não desaprova osdistúrbiosquecausoàRepública.

–Nóssomosmuitogratos–digoaele.O homem não responde. Agarro a mão de Tess e saímos do quarto,

percorremosocorredoresaímospelaportadosfundos.Anoiteestámuitoúmida. Meus olhos se enchem de lágrima, causada pela dor dos meusferimentos.

Caminhamos por becos silenciosos durante seis quarteirões, atéfinalmente desacelerarmos. Minhas lesões estão doendo muito. Toco opescoço para ver se o medalhão me consola um pouco, mas então melembrodequeelejánãoestánomeupescoço.Meuestômagosecontraidemedo. E se a República decifrar o que ele significa? Será que nosdestruirão?Seráquevãorastrearopingenteatéaminhafamília?

Tesscai,exausta,nochãoeapoiaacabeçanaparededobeco.–Precisamossairdacidade–eladiz.–Aquiestámuitoperigoso,Day,

vocêsabequeestá.ArizonaouColoradoseriamaisseguroou,até,Barstow.Nãomeimportocomosarredores.

Poisé,poisé,eusei.Olhoparabaixoedigo:–Eutambémqueroirembora.–Masvocênãovai.Estáescritonasuacara.Ficamoscaladosporumtempo.Sedependessedemim,euatravessaria

opaísinteirosozinho,efugiriaparaasColôniasnaprimeiraoportunidade.Nãomeimportodearriscaravida,mashámuitasrazõespelasquaisnãopossoir.Tesssabedisso.Johnemamãenãopodemsimplesmentedeixarotrabalhoquelhesfoidesignadoparaentãofugircomigo,nãosemdespertarsuspeitas.Nem é possível Éden deixar de frequentar a escola que lhe foi

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atribuída.Anãoserquequeiramsetornarfugitivoscomoeu.–Vamosvernoquedá–eudigofinalmente.Tessmedáumsorrisotrágico:– Quem você acha que está te procurando? – Ela pergunta, após um

momento.–ComosabemquevocêestánosetorLake?–Seilá.Podeserumrevendedordemateriaisquesoubedainvasãodo

hospital.Vaiverelespensamquesoupodrederico.Podeserumsoldado,até um espião. Perdi meu medalhão no hospital. Não sei como eles ousariam para saber alguma coisa sobre mim, mas tem sempre algumapossibilidade.

–Oquevocêvaifazer?Doudeombros.O ferimentoàbala começaa latejar, emeencostona

parede.–Nãoseidequemsetrata,masconfessoqueestoucuriosoparavero

queeletemadizer.Eseeletivermesmoosremédiosparacurarapraga?Tess me olha fixamente, com a mesma expressão da noite em que a

conheci:esperançosa,curiosaemedrosa,tudoaomesmotempo.– Bem, não pode ser mais perigoso do que a sua pirada invasão do

hospital,certo?

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JUNE

NãoseiseéporqueaComandanteJamesonficoucompenademim,ouse realmente sentea faltadeMetias,umde seusmelhores soldados,masela estámeajudandoaprovidenciaro enterrodele, emboranunca tenhafeitoissoparanenhumdeseussubordinados.Elaserecusaadizerporquedecidiuagirassim.

Famílias ricas como a nossa sempre têm funerais pomposos. O deMetias acontece num edifício com elevadas arcadas barrocas e vitrais.Cobriram o piso com tapetes brancos, e mesas de banquete redondas ebrancas, transbordandode lilasesbrancos, enchemo recinto.As cores seoriginamdasbandeirasdaRepúblicaedoemblemacirculardouradoquependeatrásdoaltarprincipal.OretratodenossogloriosoEleitorsobressaiemmeioaoresto.

Todos os presentes usam suasmelhores roupas brancas. Eu visto umrefinadovestidobranco longode renda comespartilho, comuma saiadesedaporcima,ecamadasdrapeadasnascostas.Umminúsculobrochedeouro branco com o emblema da República está preso ao corpete. Ocabeleireiroprendeumeucabelonoaltodacabeça, comcachinhossoltossobre um ombro, e pôs uma rosa branca atrás daminha orelha.Há umagargantilha de pérolas em redor do pescoço. Minhas pálpebras estãorevestidas de sombra branca brilhante, meus cílios estão brancos, asolheirasavermelhadassobmeusolhosestãodisfarçadascompódearrozbranco.Tudoemmimestásemcor,assimcomoaminhavidadepoisqueMetiasfoitiradodemim.

Metiascertavezmedissequenãoerasempreassim,quesomenteapósas primeiras inundações e erupções vulcânicas, depois que a Repúblicaerigiu uma barreira ao longo do front para evitar que os desertores dasColônias fugissem ilegalmente para nosso território, só então é que aspessoas começaram a mostrar luto usando branco. Ele disse: “Após asprimeiras erupções, quando cinzas vulcânicas brancas caíram dos céusdurantemeses,osmortoseosmoribundosficaramcobertasporelas.Porisso,usarbrancoagoraérelembrarosmortos.”

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Ele me contou isso porque perguntei como havia sido o enterro denossospais.

Agora perambulo entre os convidados, perdida, sem rumo,respondendo às palavras solidárias dos que me rodeiam com respostasadequadaseensaiadas.Elesdizem:“Lamentomuitosuaperda”.Reconheçoalguns dos professores, colegas soldados e superiores de Metias. Estãopresentes até alguns colegasmeus da Drake. Fico surpresa ao vê-los: eununcativemuitahabilidadeparafazeramigosdurantemeustrêsanosdefaculdade,considerandominhaidadeeapesadacargadeestudos.Maselesestão aqui, alguns vindos dos exercícios vespertinos, outros da aula dehistória da República, classe 421. Eles pegam minha mão e sacodem acabeça, dizendo: “Primeiro seus pais, e agora seu irmão. Nem consigoimaginarcomodeveestarsendoduroparavocê”.

Nãoconseguemesmo,massorriogentilmenteeinclinoacabeça,porquesei que a intenção deles é boa, e digo: “Obrigada por ter vindo. Significamuitoparamim.SeiqueMetiassentiriaorgulhopor terdadoavidapeloseupaís”.

Às vezes percebo um olhar rápido de admiração de alguém no outroladodorecinto,masignoro.Essetipodesentimentonãomeadiantanada.Meutrajenãosedestinaaeles,éapenasemhomenagemaMetiasqueusoeste vestido desnecessariamente deslumbrante, para demonstrar sempalavrasoquantooamo.

Depois de algum tempo, sento-me a uma mesa perto da frente dorecinto, encarando o altar decorado de flores que logo será ocupado porumafiladepessoaslendoseusdiscursoslaudatóriosaomeuirmão.Inclinoa cabeça respeitosamente para as bandeiras da República. Depois meusolhosvagueiamatéocaixãobrancoaoladodasbandeiras.Deondeestou,consigoapenasverumindíciodapessoaqueestánocaixão.

–Vocêestáencantadora,June.LevantoosolhosevejoThomas fazerumamesura,depoissentar-sea

meu lado. Ele trocou o uniformemilitar por um terno elegante de coletebranco,eocabelofoicortadorecentemente.Perceboqueoternoénovoemfolha,devetercustadoumafortuna.

–Obrigada,vocêtambém.Istoé,vocêestáótimoparaascircunstâncias,emvistadetudoqueaconteceu.

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–Entendooquevocêquerdizer.Eumedebruçoedouumapancadinhanamãodele,pararestaurar-lhea

confiança. Ele sorri para mim. Parece ter vontade de dizer mais algumacoisa,masdecidenãoofazeredesviaoolhar.

Demorameiahoraatéquetodosencontremseusassentos,emaismeiahoraatéqueosgarçonscomecemachegarcomtravessasdealimentos.Eunão como nada. A Comandante Jameson está sentada àminha frente, naextremidadedamesadebanquete,entreelaeThomasestão trêscolegasmeusdaDrake.Trocoumsorrisoforçadocomeles.Aomeuladoesquerdoestá um homem chamado Chian, que organiza e supervisiona todas asProvasrealizadasemLosAngeles.Eleadministrouaminha.Sónãoentendooqueeleestáfazendoaqui,nemporquesequerseimportacomamortedeMetias. Ele era um conhecido de nossos pais, demodo que sua presençanãoéinesperada,masporquesesentoubemameulado?

EntãomelembroqueChianhaviasupervisionadoMetiasantesqueelefizessepartedaunidadedaComandanteJameson.Metiasoodiava.

O homem franze as sobrancelhas cerradas para mim e põe uma dasmãosnomeuombronudurantealgumtempo.Elepergunta:

–Comoestásesentindo,minhacara?Suaspalavrasdistorcemas cicatrizesno seu rosto: um talhonaparte

superiordonarizeoutramarcairregularquevaidaorelhaàparteinferiordoqueixo.

Consigodarumsorrisoconstrangidoerespondo:–Melhordoqueesperado.–Concordo.–Eledáumagargalhadaqueme faz recuaremeolhade

cimaabaixo.–Essevestidofazquevocêpareçaumaflordesabrochando.Precisomecontrolarmuitoparamanterosorriso.Fiquecalma, digoa

mimmesma.Chiannãoéhomemparasetercomoinimigo.– Eu gostava demais do seu irmão – ele continua, com simpatia

exagerada. – Lembro quando ele era garoto. Você devia tê-lo visto. Elecostumava correr na sala de visitas dos seus pais, com amão estendidacomosesegurasseumaarma.Eleestavadestinadoafazerpartedosnossosbatalhões.

–Obrigada,senhor–digo.Chiancortaumnacodebifeeoenfianaboca:

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– Metias era muito atento quando eu fui seu mentor. Era um lídernatural.Elechegouacomentarcomvocê?

Umalembrançapassarapidamentepelaminhacabeça.AnoitechuvosaemqueMetiascomeçouatrabalharparaChian.ElehavialevadoamimeaThomas,queaindaestavanocolégio,aosetorTanagashi,ondecomiminhaprimeira tigeladeedame[4] deporco comespaguete e rolinhosde cebolaadocicada. Lembro que eles dois estavam de uniforme completo: Metiascomopaletóabertoeacamisasolta,Thomascomopaletócompletamenteabotoadoeocabelocuidadosamentepenteadoparatrás.Thomasimplicoucomigo por causa das minhas trancinhas todas bagunçadas, mas Metiasestava quieto. Então, uma semana depois, seu aprendizado com Chianterminou abruptamente.Metias tinha solicitadomudar de patrulha, e foitransferidoparaapatrulhadaComandanteJameson.

–Eledissequeeratudoconfidencial–euminto.Chianriediz:– Era um bom garoto, o Metias. Um grande aprendiz. Imagine meu

desapontamento quando ele foi designado para as patrulhas municipais.ElemedissequenãotinhainteligênciaparajulgarasProvasnemorganizaros garotos que se submetiam a elas. Ele era muito modesto. Sempre foimaisinteligentedoqueachavaser.Igualzinhoavocê.

Ele ri para mim. Concordo com a cabeça. Chian fez que eu mesubmetesseàProvaduasvezes,porquealcanceiomáximodepontosemtempo recorde: 1hora e10minutos. Ele achouque eu tinha colado.Nãoapenas sou a única adolescente que tem o maior número de pontos danação, como provavelmente também sou a única jovem que fez a Provaduasvezes.

–Osenhorémuitogentil–respondo.–Meuirmãofoiumlídermelhordoqueeujamaisserei.

Chianmefazcalarcomumgestoediz:–Bobagem,minhacara.–Eentãoseinclinaconstrangedoramentepara

pertodemim.Háalgumacoisaescorregadiaedesagradávelnele.–Estoupessoalmentearrasadopelaformacomoelemorreu,nasmãos

daquelemeninoperverso.Quepena!–Chianapertaosolhos,oquefazsuassobrancelhas parecerem ainda mais cerradas. – Fiquei muito satisfeitoquando aComandante Jamesonme contouque você está encarregadade

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achar esse garoto. Este caso precisa de um par de olhos novos eobservadores, você é exatamente a criaturinha adequada. Que joia demissão-teste,hem?

Eu o abomino com todo o meu ser. Thomas deve ter notado minharigidez,porquesintosuamãosobreaminhadebaixodamesa.Façaojogodele, está tentando me dizer. Quando Chian finalmente se vira pararesponder a uma pergunta de um homem no outro lado, Thomas sedebruçaparamimesussurra:

–ChiantemumrancorpessoalporDay.–Verdade?–Murmurodevolta.Elefazquesimcomacabeça:–Quemvocêachaquefezaquelacicatriznele?Foi Day? Não escondo a expressão de surpresa. Chian é um homem

grandão, e trabalha há anos na administração da Prova. É um oficialcompetente. Um adolescente poderia mesmo feri-lo daquela maneira? Eteriaconseguidosesafar?OlhoderelanceparaChianeexaminoacicatriz.É bem definida, foi feita com uma lâmina de pontamacia. Deve ter sidoexecutadarapidamente,porqueéumalinhareta.NãopossoimaginarChianparadoenquantoalguémlhefatiavaorostodaquelemodo.Porumafraçãode segundo, fico do lado de Day. Olho de relance para a ComandanteJameson, que me olha fixamente, como se estivesse lendo meuspensamentos.Issomedeixasemgraça.

AmãodeThomasvoltaatocarnaminha:– Ei! – Ele diz. –Day não pode se esconder do governo para sempre,

maiscedooumaistardevamoschegaraesseratoderuaefazerdeleumexemplo.Elenãoépáreoparavocê,especialmentequandovocêsededicaafazeralgumacoisa.

OsorrisobondosodeThomasmeafeta,edesúbitosintoqueéMetiassentadoameu lado,dizendo-mequevaidartudocerto,garantindoqueaRepúblicanãomevaidecepcionar.Meuirmãoqueumavezmeprometeuficar ameu lado para sempre. Desvio o olhar de Thomas e o focalizo noaltar, para que ele não veja as lágrimas em meus olhos. Não consigoretribuirseusorriso.Achoquenuncamaisvoltareiasorrir.

–Vamosacabarlogocomisso–sussurro.

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DAY

Está tremendamente quente, mesmo sendo de noitinha. Manco pelasruasaolongodoslimitesdossetoresdeAltaeWinter,aolongodolagoeacéu aberto, perdido na multidão que vai e vem. Meus ferimentos estãoaindanoprocessodecura.Usoascalçasdoexércitoquenossoanfitriãomedeu,comumacamisetafinadegolaqueTessencontrounumalatadelixo.Aabadomeubonéestápuxadaparabaixo,eacrescenteiameudisfarceumtapa-olho sobre o olho direito.Nada de incomum, na verdade, não nessemar de operários com lesões causadas pelo trabalho nas fábricas. Hojeestou sozinho: Tess está na encolha, a várias ruas daqui, escondida noparapeitodeumsegundoandar.Nãohárazãoparanosarriscarmosjuntos,anãoserquenecessário.

Barulhos familiares me rodeiam, camelôs anunciam aos gritos suasmercadorias: olhos cozidos de ganso, rosquinhas fritas e cachorros-quentes.Vendedoresficamàportademerceariase lanchonetes,tentandoatrair fregueses. Um carro que deve ter algumas décadas passachocalhando.Operáriosdosegundoturnolentamentesedirigemparacasa.Algumasgarotasreparamemmimeficamtímidasquandoasolho.Barcospercorremo lagocomseussonsexplosivos, tomandocuidadoparaevitaras gigantescas turbinas d’água que giram e causam agitação ao longo damargem.Assirenesqueanunciaminundaçõesestãosilenciosaseapagadas.

Algumas áreas estão bloqueadas. Fico longe delas, os soldados asdemarcaramcomozonasdequarentena.

Osalto-falantesqueseaglomeramnostelhadosdosedifíciosestalameemitem sons agudos, telões fazem uma pausa nos comerciais. Ou, emalgunscasos,alertam-nossobremaisumataquedosPatriotasemostramum vídeo com nossa bandeira. Todomundo para nas ruas e fica imóvelquandocomeçaojuramento.

“Juro fidelidade à bandeira da nossa grande República da América, anosso Primeiro Eleitor, a nossos gloriosos estados, à unidade contra asColônias,ànossavitóriaiminente!”

Quando surge o nomedoPrimeiro Eleitor, prestamos continência em

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direçãoàcapital.Resmungoojuramentobaixinho,masficocaladonasduasúltimaspassagens,quandoospoliciaismilitaresnãoestãoolhandoparacá.Eume pergunto o que dizia o juramento antes de entrarmos em guerracomasColônias.

Quando o juramento termina, a vida continua. Vou a um bar commotivoschinesescobertosdegrafite.Oporteiromedáumlargosorriso,evejoquelhefaltamváriosdentes.Elerapidamentemefazentrarnobar.

–Temosaverdadeira cervejaTsingtaohoje–ele cochicha. –Caixotesque sobraram de um presente importado enviado para nosso gloriosoEleitor.Aofertavaleatéàsseishoras.

Os olhos do homem semexemnervosamente quando ele diz isso. Euficoolhandofixamenteparaele.CervejaTsingtao.Tácerto,ficacombinado.Meu pai teria rido. A República não assinou nenhum contrato deimportaçãocomaChinaparaenviarprodutosdequalidadeparaasáreasdefavelas(ou,comoaRepúblicaafirmacomprazer,“queremosconquistaraChinaeassumirseusnegócios”).Éprovávelqueessesujeitoestejamuitoatrasadonopagamentodosimpostosbimestraisaogoverno.NãoháoutrarazãoparasearriscarecolocarrótulosfalsosdeTsingtaonasgarrafasdesuacervejafeitaemcasa.

Agradeço ao cara e entro no bar. Este é um lugar tão bom paraconseguirinformaçõesquantoqualqueroutro.

Estáescuro.Oarcheiraafumaçadecachimbo,carnefritaelampiõesagás. Ando com dificuldade pela confusão de mesas e cadeiras, pegandocomida de algumas travessas desprotegidas e enfiando-a debaixo dacamisa, até chegar ao balcão. Atrás de mim, um grande número defreguesestorcediantedeumalutadeSkiz.Achoqueestebartolerajogosilegais. Se eles forem inteligentes, devem estar prontos para, a qualquerminuto, subornar os guardasmunicipais comparte de seus lucros, a nãoserquequisessemassumirqueestãoganhandodinheirolivredeimpostos.

Aatendentedobarnemverificaminhaidade.Aliás,nemolhaparamim.Elapergunta:

–Oquequerbeber?Sacudoacabeçaerespondo:–Sóágua,porfavor.–Atrásdenósouçomuitosgritos,quandoumdos

lutadoreséderrubado.

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Ela me olha de relance, sem acreditar. Seus olhos imediatamentefocalizamaataduranomeurostoeelapergunta:

–Queaconteceucomseurosto,garoto?–Umacidentedetrabalho:eutomocontadevacas.Elafazumaexpressãodenojo,maspareceestarinteressadaemmim:–Poxa,quepena!Temcertezadequevocênãoquerumacervejapara

aliviarissoaí?Devedoer.Sacudoacabeçadenovoedigo:–Obrigada,amiga,maseunãobebo.Gostodeficarsemprealerta.Ela sorri para mim. É bonitinha sob a luz vacilante do lampião, com

sombra verde reluzente nos olhos de pálpebras suaves, e cabelo pretocurtoeliso.Umatatuagemdevideiracomeçanopescoçoedesaparecenablusa justa. Um par sujo de óculos, provavelmente proteção contra asbrigasdobar, estápenduradonopescoço.Ficomeiochateado.Seeunãoestivesse ocupado atrás de informações, gastaria um tempo com essagarota,bateriaumpapoetalvezconseguisseunsdoisoutrêsbeijos.

–VocêédoLake,né?–Elapergunta.–Resolveudarumgiroporaquiedeixarumasmeninascaídasporvocê?Ouvocêvailutar?–ElaapontacomacabeçaparaalutadeSkiz.

Douumrisinhoerespondo:–Deixoissopravocê.–Porquevocêpensaqueeuluto?Aponto as cicatrizes nos braços e as contusões nas mãos. Ela sorri

lentamenteparamim.Eudoudeombrosedigo,apósuminstante:– Nem morto eu pisaria num desses ringues. Estou apenas me

protegendodosolumpouco.Sabe?Vocêpareceserumacompanhialegal.Istoé,desdequevocênãoestejacomapraga.

Éumapiadauniversal,masmesmoassimelari,debruça-senobalcãoediz:

–Eumorobemnolimitedosetor.Atéagora,nãotevenenhumcasodepragaporlá.

Eumeinclinoparaelaedigo:–Vocêtemsorte.–Ficosério.–Hápoucotempo,marcaramaportade

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umafamíliaqueconheço.–Quechato!–Queroperguntaruma coisa, sópor curiosidade.Vocêouviu falarde

umhomemandandoporaquirecentemente?Umcaraquedizterremédiosparaapraga?

Elalevantaasobrancelhaeresponde:–Ouvi,sim.Temumagaleraquerendoencontraressecara.–Vocêsabeoqueeledizàspessoas?Elahesitaum instante.Reparoque amoça temminúsculas sardasno

nariz.Elaresponde:–Ouvidizerqueeleestádizendoaopovoquequerdarumremédioque

curaapragaaumapessoa,sóaumapessoa.Equeessapessoavaisabersobrequemeleestáfalando.

Tentoparecerqueachograça:–Pessoasortuda,hem?Eladáumrisinhoediz:– Falando sério: ele disse que essa pessoa deve se encontrar com ele

hojeàmeia-noite,nolugar-dos-dez-segundos.–Lugar-dos-dez-segundos?Aatendentedobardádeombrosediz:–Nãotenhonoçãodoqueissoquerdizer.Aliás,ninguémtem.–Elase

debruçanobalcãoeabaixaavoz.–Sabeoqueeuacho?Achoqueessecaraépiradaço.

Riocomela,masminhacabeçaestágirando.Nãotenhodúvidadequeessapessoaestáprocurandopormim.Háquaseumano,invadiumbancoemArcádiapelobecoque ficaatrásdobanco.Umdosseguranças tentoumematar. Quando ele cuspiu emmim eme disse que os raios lasers docofre-fortedobancoiammefazervirarpicadinho,debocheierespondiqueemdezsegundoseu ia invadirasaladocofre-forte.Elenãoacreditouemmim,mas o que acontece é queninguémnunca acredita noquedigo atéque eu acabo fazendooquedisse. Comaqueledinheiro, comprei umparlegaldebotas,eatéumabombaeletromagnéticanomercadonegro,umaarmaquedesativaarmasàsuavolta.Elafoibemútilquandoataqueiumabase aérea. E Tess ganhou um guarda-roupa completo, blusas, sapatos e

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calças compridasnovasem folha, alémdeataduras, álcool eumvidrodeaspirina. Nós dois conseguimos comprarmuita comida. O resto eu dei àminhafamíliaeaumpessoalzinholádoLake.

Depoisdeváriosminutosdeflerte,eumedespeçodaassistentedobarevouembora.Osolaindaestánocéu,esintogotasdesuornorosto.Agorajáseiosuficiente.Ogovernodeveterencontradoalgumacoisanohospitalequermeatrairparaumaarmadilha.Vãomandarumcaraparao lugar-dos-dez-segundosàmeia-noite,eposicionarsoldadosnobecodosfundos.Apostoquepensamqueestoumuitodesesperado.

Provavelmente também vão levar remédios contra a peste, para meatrair.Apertoos lábios enquantopenso, e aímudodadireçãoparaondeestavaindo.Vouparaaáreafinanceira.

Eutenhoumencontromarcado.

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JUNE

23H29.SETORBATALLA.22°CEMAMBIENTEFECHADO.

As luzes no Batalla Hall são frias e fluorescentes. Visto-me numbanheiro no andar de observação e análise. Estou usandomangas pretascompridas por baixo de um colete preto listrado, calças pretas justasenfiadasnasbotas,eumlongosobretudopreto,queenvolvemeusombrose me cobre como um cobertor. Uma faixa branca passa pelo centro dosobretudo e vai até o chão. Umamáscara preta cobremeu rosto, óculosinfravermelhos protegem-me os olhos. Fora isso, tudo o que tenho é umminúsculomicrofone e um fone de ouvidomenor ainda. E uma arma. Sóporprecaução.

Preciso parecer sem qualquer característica feminina, genérica, nãoidentificável.Precisomepassarporcontrabandista.Alguémricoobastanteparacomprarosremédiosquecuramapraga.

Matiasacenariaparamimnegativamentecomacabeça.“Vocênãopodeir sozinha numa missão confidencial, June”, ele diria. “Você pode semachucar.”Queironia!

Aperto o fecho quemantémminha capa no lugar (é de aço borrifadocom um jato líquido de bronze, provavelmente importado do TexasOcidental)edepoismedirijoàescadaquemelevaráparaforadoBatallaHall,rumoaobancoArcádia.OndesupostamentedevoencontraroDay.

Meuirmãofoimortohá120horas.Pareceque foiháumaeternidade.Hásetentahoras,obtiveautorizaçãoparanavegarnainternetedescobriomáximo que pude sobre Day. Há quarenta horas, mostrei à ComandanteJameson um plano que preparei para rastrear Day. Há 32 horas ela oaprovou. Duvido que se lembre dos detalhes. Há trinta horas, enviei umolheiro a todosos setores infectadospelapraga emLosAngeles:Winter,Blueridge, Lake e Alta. Ele espalhou o boato: alguém tem um remédiocontra a praga para você, vá ao lugar-dos-dez-segundos. Há 29 horas,

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assistiaofuneraldomeuirmão.Nãoplanejo pegarDayhoje à noite.Nãoplanejo sequer vê-lo. Ele vai

saber exatamente onde é o lugar-dos-dez-segundos e que eu sou umaagente enviada pelo governo ou pelos corretores domercado negro quepagam impostos ao governo. Ele não vai mostrar a cara. Mesmo aComandanteJameson,queestámetestandocomessaprimeiratarefa,sabequenãovamosconseguirvê-lonemderelance.

Mas eu sei que ele estará lá. Precisa desesperadamente de remédioscontraapraga.Eeleaparecerétudoqueesperoestanoite:umapista,umponto de partida, algo que inalize a direção a ser seguida, alguma coisapessoalsobreessegarotocriminoso.

Tomocuidadoparanãoandarsobospostesdeluz.Naverdade,euteriaandadopelostelhados,senãoestivesseindoparaosetorfinanceiro,ondeguardassepostamnostelhados.Àminhavoltaos telõesexpõememsomaltoeestridentesuascampanhascoloridas,osomdistorcidoefortedeseuscomerciais sai dos alto-falantes.Um telãomostraumperfil atualizadodeDay,destavezcomcabelopretocomprido.Pertodostelõesestãooperáriosdoturnodanoite,policiaisecamelôs.Devezemquando,passaumtanque,seguido por vários pelotões de tropas. Eles têm faixas azuis nasmangas.São soldados de volta do front, ou em rodízio para irem para o front.Mantêmasarmasao ladodocorpoeasseguramcomasduasmãos.Paramim,todosseparecemcomMetias,entãoprecisorespirarcommaisforça,andarmaisdepressa,paracontinuarconcentrada.

Tomo um caminho mais comprido até Batalla, pelas transversais dosetor e pelos edifícios abandonados, e só paro quando estou a uma boadistânciadaáreamilitar.

Osguardasmunicipaisnãopodemsaberqueestounumamissão.Semeviremvestidaassim,equipadacomóculosinfravermelhos,certamentevãomeinterrogar.

O banco Arcádia fica numa rua sossegada. Dou a volta pelo lado dosfundosdobanco, atéestarem frenteaumestacionamentono fimdeumbeco.Lá,esperonasombra.Meusóculoseliminamamaiorpartedascoresdo local.Olhoao redorevejo filasdealto-falantesnos telhados,umgatoperdido cujo rabo bate na tampa de uma lata de lixo, um quiosqueabandonadocomfolhetosantigoscontraasColôniascoladosnele.

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Orelógiodomeuvisordizquesão23h53.Passootempomeforçandoarefletir sobre a história de Day. Antes do roubo desse banco, a fichacriminaldeDayjáapontavatrêsdelitos.Essesforamosúnicosincidentesonde encontramos suas impressões digitais. Imagino os inúmeros outroscrimescometidosporele.Olhomaisdetidamenteobecodobanco.Comoele conseguiu invadir o banco em dez segundos, com quatro guardasarmadosnaentradadosfundos?Obecoéestreito.Eletalveztenhaachadosuficientespontosdeapoioparasubiratéosegundoouterceiroandar,otempo todo usando as armas dos guardas contra eles mesmos.Provavelmente conseguiu que os guardas atirassem uns nos outros.Provavelmente quebrou os vidros de uma janela para entrar. Isso teriademoradoapenasalgunssegundos.Oqueelefezquandoentrou,nãotenhoamínimaideia.

JáseiqueDayémuitoágil.Sobreviveraumaquedadedoisandaresemeiocomprovaisso.Maselenãovaiteroportunidadedefazerissohojeànoite. Nãome interessa o quanto ele é ágil: não se salta de um prédio edepois se espera andar normalmente. Day não vai escalar paredes nemescadariaspelomenospormaisumasemana.

De repente fico tensa. Passam doisminutos dameia-noite. Um cliqueecoa de algum lugar distante, e o gato sentado na lata de lixo corre,assustado. Pode ser um isqueiro, o gatilho de uma arma, ou uma luzvacilantedarua,podeserummontedecoisas.Examinoostelhados.Nadaainda.

Masosfiosdecabelonaminhanucaseeriçam.Seiqueeleestáaqui.Seiqueestámeobservando.

–Saiadaí–digo.Ominúsculomicrofonecolocadopertodaminhabocafazminhavozparecermasculina.

Silêncio.Nemmesmoascamadasdeprospectosgrudadosnoquiosquesemovem.Nãoháventoestanoite.

Retiroumfrascodeumcoldrenomeucinto.Minhaoutramãonãolargaocabodaminhaarma.

–Eutenhooquevocêquer–digo,acenandocomofrascoparaenfatizarafrase.

Nadaainda.Destavez,contudo,ouçooquepareceumligeirosuspiro.Um respirar. Meus olhos se dirigem imediatamente para os alto-falantes

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nos telhados. O clique era isso. Elemexeu com a fiação para poder falarcomigosemdenunciarondeestá.Sorrioatrásdamáscara:euteriafeitoamesmacoisa.

–Euseiquevocêprecisadisto–digo,acenandodenovocomofrasco.Euovironasminhasmãoseolevanto.–Eletemtodososrótulosoficiais,oselo de aprovação. Garanto a você que é o remédio verdadeiro contra apraga.

Maisumrespirar.– Alguém com quem você se importa gostaria que você viesse me

cumprimentar.–Olhoparaosmeusóculos.–Sãomeia-noiteecinco.Eulhedoudoisminutos.Depois,vouembora.

O beco volta a ficar silencioso. De vez em quando, escuto um leverespirar vindo dos alto-falantes. Meus olhos se movem da hora no meuvisor para as sombras dos telhados. Ele é esperto. Não consigo saber deondeeleestátransmitindo.Poderiasernestarua,ouaváriosquarteirõesdaqui,oudeumandarmaisalto.Masseiqueeleestápertoobastanteparamever.

Ahoranomeuvisormostra00h07.Eumeviro,enfioofrascodenovonomeucintoecomeçoameafastar.

–Queéquevocêquerpelacura,amigo?A voz é quase um sussurro, mas pelos alto-falantes soa instável e

assustada,tãodébil,quetenhodificuldadeemcompreenderoqueelediz.Os detalhes me acorrem rapidamente a cabeça. É homem. Tem um levesotaque.NãoédeÓregon,Nevada,Arizona,NovoMéxico,TexasOcidental,nemdeoutroestadodaRepública.NasceunosuldaCalifórnia.Usaotermofamiliaramigo, que o pessoal do setor Lake usa muito. Ele está perto obastanteparatermevistoguardarofrasco,masnãotãopertoqueosalto-falantes possam transmitir sua voz claramente. Deve estar no próximoquarteirão,comumaboaperspectiva,istoé,estánumandaralto.

Subjacenteaosdetalhesquemepercorremamentesurgeumódioforteecrescente.Essaéavozdoassassinodomeuirmão.Podetersidoaúltimavozquemeuirmãoouviu.

Espero dois segundos antes de voltar a falar. Quando falo,minha vozestásuaveecalma,enãomostranenhumsinaldeira:

–Oqueeuquero?–Perguntoaele.–Depende.Vocêtemdinheiro?

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–MileduzentasNotas.Notas, não ouro da República. Ele rouba a classe alta, mas não tem

capacidade para roubar os extremamente ricos. Provavelmente agesozinho.Rioedigo:

–CommileduzentasNotasvocênãocompraestefrasco.Quemaisvocêtem?Bensdevalor?Joias?

Silêncio.–Outemhabilidadesaoferecer,comoestoucertodequetem?–Nãotrabalhoparaogoverno.Seupontofraco.Naturalmente.–Nãoquisofender,pergunteiporperguntar.Ecomovocêsabequeeu

não trabalhoparaoutrapessoa?Nãoachaqueestávalorizandodemaisogoverno?

Ligeirapausa,edepoisavozvolta:–Onódasuacapa.Nãoseioqueé,masnãoparececoisadecivil.Issomesurpreendeumpouco.Onódaminhacapaérealmenteumnó

canto, um nó vigoroso que os oficiais militares gostam de usar.Aparentemente,Daytemalgumconhecimentoespecíficodaaparênciadosuniformes do governo. Ele é muito observador. Rapidamente disfarçominhahesitação:

–Ébomencontraralguémquesaibaoqueéumnócanto,masaconteceque viajomuito, amigo. Vejo e conheçomuitas pessoas, gente comquemnãotenhovínculos.

Silêncio.Espero, tentando ouvir outro respirar através dos alto-falantes.Nada,

nem mesmo um clique. Não respondi com a rapidez adequada, a brevehesitaçãodaminhavoz foiobastanteparaconvencê-lodequenãopodiaconfiar emmim. Aperto omanto ao redor domeu corpo e percebo quecomeceiasuarnocalordanoite.Meucoraçãobateamilporhora.

Outravozsoanaminhacabeça.Destavezvemdomeuminúsculofonedeouvido:

–Vocêestáaí,Iparis?ÉaComandanteJameson.Ouçooruídodeoutraspessoasnasaladela.–Elefoiembora–murmuro–,masmedeupistas.

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–Vocêdeupistasaelesobreparaquemtrabalha,nãodeu?Bem,ésuaprimeiraveztrabalhandosozinha.Dequalquerforma,tenhoasgravações.VejovocênoBatallaHall.

Sua repreensãome irrita umpouco.Antes que eupossa responder, aestáticainterrompeachamada.

Espero mais um minuto, só para ter certeza de que não interpreteierradoasaídadeDay.Silêncio.Eumeviroecomeçoairemboradobeco.Queria contar à Comandante Jameson qual seria a solução mais fácil,simplesmente reunir todos do setor Lake cujas portas estivessemmarcadas.IssoatrairiaDayparaforadoesconderijo.Maspossoatéouviraresposta incisiva da Comandante Jameson: “Absolutamente não, Iparis.Seriamuitodispendioso,eoquartelnãoaprovaria.Vocêvaiterdepensaremoutracoisa”.Olhode relancepara trás,naesperançadeverumvultovestidodepretomeseguindo,masobecoestávazio.

NãosereiautorizadaaforçarDayaviramim,oquesómedeixaumaopção:euvouterdeiratrásdele.

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DAY

–Vêsecomealgumacoisa,tá?AvozdeTessmedespertadaminhavigília.Desviooolhardolagoea

vejomeestendendoumpedaçodepãocomqueijo,insistindoparaeupegá-lo. Eu devia estar com fome. Só comi metade de uma maçã desde meuencontrocomoestranhoagentedogovernoontemànoite,masopãocomqueijo, ainda que seja fresco, da loja onde Tess havia trocado algumasNotaspreciosasporeles,nãomeabreoapetite.Mesmoassim,euopego.Não tenho a menor vontade de desperdiçar um alimento perfeitamentesaudável,especialmenteporquedevemoseconomizartudoquetemos,paracomprarosremédioscontraapraga.

Tess e euestamos sentadosnaareiadebaixodeumpíer, napartedolagoqueatravessanossosetor.Nósnoscomprimimosaomáximocontraoladodamargem,paraevitarquesoldadosàtoaeoperáriosbêbadosacimapossamnosverdepoisdogramadoedaspedras.Nósnosmisturamosàssombras.Deondeestamossentados,sentimosogostodosalnoar,evemosas luzes do centro de Los Angeles refletidas na água. Ruínas de prédiosmais antigos salpicam o lago, são edifícios que foram abandonados porproprietários de negócios e residentes quando as águas da inundação seelevavam.Gigantescasrodase turbinashidráulicasseagitamao longodabeira da água, atrás de cortinas de fumaça. Essa é provavelmenteminhavistafavoritadenossopequeno,devastadoebonitosetorLake.

Retiro o que disse. Esta éminha favorita e também amenos favoritavista. Porque, embora as luzes do centro da cidade ofereçam um bonitopanorama, tambémconsigover, indistintamentea leste, o estádioondeaProvaérealizada.

– Você ainda tem tempo – Tessme diz. Ela desliza para tão perto demimqueconsigosentirseubraçonucontraomeu.Seucabelocheiraapãoecanelada loja.–Provavelmenteummêsoumais.Tenhocertezadequeantesdissoagentevaiencontrarosremédioscontraapraga.

Para uma garota sem família e sem casa, Tess é surpreendentementeotimista.Tentosorrirparaagradaredigo:

– Talvez. Quem sabe o hospital relaxa a guarda daqui a umas duas

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semanas.–Mas,emmeucoração,seiquenãoébemassim.Maiscedo,arrisqueidarumaespiadanacasadaminhamãe.Oestranho

X continuava marcado na porta. Minha mãe e John pareciam bem, pelomenosfortesobastanteparaandarpelacasa.MasoÉden…dessavezÉdenestavadeitadonacama,comumpanonatesta.Mesmoaalgumadistância,dava pra ver que ele já havia emagrecido. Sua pele estava pálida, a voz,débilerouca.QuandomaistardeencontreiJohnatrásdanossacasa,elemedissequeoÉdennãocomiadesdeaúltimavezemquefui lá.LembreiaoJohn que ficasse fora do quarto do Éden sempre que pudesse. Ninguémsabecomoessamalditapragaestá seespalhando. Johnmeadvertiuparaparardegracinhas,paranãosermorto.Tivederirquandoeledisse isso.Johnnuncavaiadmitirparamim,masseiquesouaúnicaoportunidadedesalvamentoparaÉden.

A praga pode acabar com a vida de Éden antes mesmo que ele sesubmetaàProva.

Talvezsejaumabênçãodisfarçada.Édennuncaprecisariaficardoladode foradanossaporta emseudécimoaniversário, esperandoumônibusparalevá-loaoestádiodaProva.Nuncateriadeseguirdezenasdecriançassubindoosdegrausdoestádioparachegaraocírculointerno,oudarumavoltacompletanapistadecorridaenquantoosadministradoresdaProvaanalisamsuarespiraçãoepostura,nemresponderapáginasepáginasdeperguntas idiotas de múltipla escolha, nem sobreviver a uma entrevistafeitapormeiadúziadeoficiaisimpacientes.NãoprecisariaesperaremumdosváriosgruposdepoisdaProva,semsaberquaisvoltariamparacasaequaisseriamenviadosparaosassimchamadoscamposdetrabalho.

Não sei bem. Se o pior acontecer, talvez a praga seja um meio maispiedosodepartirdestavida.

–Sabe,oÉdensempreadoece–digoapósumtempo.Douumagrandemordidanosanduíchedequeijoecontinuo:–Quandoeleerabebê,quasemorreu.Pegouumtipodevírus, ficoucomfebreeassaduras, chorouporumasemanainteirinha.OssoldadosquasemarcaramnossaportacomumX,mas obviamente a doença não era uma praga, e ninguémmais pegouaquilo.–Sacudoacabeçaedigo:–Johneeununcaficamosdoentes.

Destavez,Tessnãosorri.–TadinhodoÉden!–Depoisdeuminstante,elacontinua:–Euestava

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muito doente quando a gente se conheceu. Você se lembra de como euestavacheiadeperebas?

De repente me sinto culpado por estar falando tanto sobre meusproblemasnosúltimosdias.Pelomenoseutenhoumafamíliacomaqualmepreocupar.Ponhoumbraçoaoredordoombrodelaedigo:

–É,vocêestavacomumaaparênciapéssima.Tessri,masseusolhoscontinuamfocalizadosnas luzesdacidade.Ela

encosta a cabeça nomeu ombro. Essamenina faz isso desde a primeirasemanaemqueaconheci,quandoalocalizeinumbeconosetorNima.

Aindanãoseioquemefezpararefalarcomelanaquelatarde.Talvezocalor tivesse me abrandado, ou talvez eu só estivesse de bom humorporque tinha encontrado um restaurante que jogara fora a produção desanduíchesencalhadosdodiainteiro.Eugriteiparaela:

–Ei!Duasoutrascabeçassurgiramaoladodelatadelixo.Recuei,surpreso.

Eramumamulhermaisvelhaeumadolescente,queimediatamentesaíramdesordenadamente da bagunça e fugiram correndo do beco. Aquelaterceira pessoa, uma menina que não parecia ter mais de dez anos,permaneceu onde estava, tremendo ao me ver. Era magricela como umpalito, vestia uma blusa e uma calça rasgadas. O cabelo estava curto ecortadodequalquerjeitologoabaixodoqueixo,eeraruivoàluzdosol.

Espereiuminstanteparanãoaassustar,comohaviaacontecidocomosoutros.

–Ei!–Repeti.–Possomejuntaravocê?Elameolhou fixamentesemdarumapalavra.Eumalpodiadistinguir

seurosto,detantafuligem.Quandoelanãorespondeu,deideombrosecomeceiairaseuencontro.

Talvezeupudesseresgataralgumacoisaútildalatadelixo.Nominutoemquechegueiatrêsmetrosdagarota,elasoltouumgrito

angustiadoecomeçouacorrer.Corriatãodepressaquetropeçouecaiunoasfalto,commãosepés.Eumanqueiatéela.Minhaantigalesãonojoelhoestavapior,melembroquetropeceiaocorrer.

–Ei!–Gritei.–Vocêestábem?Elarecuouelevantouasmãosarranhadasparaprotegerorosto.

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–Porfavor!–Eladisse.–Porfavor!–Porfavoroquê?–Entãosuspirei,constrangidoporminhairritação.Vi

que os olhos dela começavama se encher de lágrimas. – Pare de chorar.Nãovoumachucarvocê.

Ajoelhei ao lado dela. A princípio ela choramingou e começou a seafastarengatinhando,mas,quandoeunãomemexi,elaparouemeolhoufixamente.Apeledosdoisjoelhostinhasidoarrancadanaquedaeacarnenasrótulasestavamuitovermelhaeirritada.

–Vocêmoraperto?–Perguntei.Ela concordou com a cabeça. Depois, como se tivesse se lembrado de

algo,elasacudiuacabeçaedisse:–Não.–Possoajudá-laachegaràsuacasa?–Eunãotenhocasa.–Nãotem?Ondeestãoseuspais?Elabalançouacabeçadenovo.Suspirei,largueiminhasacoladelonano

chãoeestendiamãoparaela:–Escuteumacoisa:vocênãoquerficarcomosjoelhosinflamados.Eute

ajudo a limpar os dois e depois você pode continuar seu caminho. Eutambémpossolhedarumpoucodaminhacomida.Bomnegócio,não?

Elademoroumuitoparapôramãonaminha,esuspirou–Tudobem–tãobaixinho,quemalaouvi.

Naquelanoite, acampamosatrásdeuma lojadepenhores, onde tinhaduascadeirasvelhaseumsofárasgado,emumbeco.Limpeiosjoelhosdagarotacomálcool roubadodeumbar,epediqueelamordesseumtrapoparanãogritare chamaraatençãoparanós.Anãoserquandoeuestivecuidandodos ferimentos,elanuncadeixavaqueeumeaproximassedela.Sempre que minha mão acidentalmente passava pelo seu cabelo ouencostava em seu braço, ela recuava como se estivesse sendo queimadapelo vapor de uma chaleira. Finalmente desisti de tentar falar com ela.Deixeiquedormissenosofá.Enquantoisso,dobreiacamisaparaservirdetravesseiroetenteificarconfortávelnochão.

– Se você quiser ir embora demanhã, pode ir – eu disse a ela. –Nãoprecisameacordar,nemsedespedir,nemfazernada.

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Minhas pálpebras estavam ficando pesadas, mas a garota continuavabem acordada, olhando fixamente paramim, sem piscar,mesmo quandoadormeci.

Elacontinuavaládemanhã.Seguia-meenquantoeuescarafunchavaaslatasdelixo,pegandoroupasvelhaseporçõesaindacomestíveisdesobrasdecomida.Tenteipediraelaque fosseembora, tenteiatégritarcomela.Umaórfãseriaumaenormeinconveniência,mas,emboraeuatenhafeitochoraralgumasvezes,quandoeuolhavaporcimadoombroaguriaaindaestavalá,seguindo-meapoucadistância.

Duasnoitesdepois,quandoestávamossentadospertodeumafogueiraimprovisada,elafinalmentefaloucomigo:

–MeunomeéTess–murmurou.Depoisexaminoumeurosto,comosequisesseadivinharminhareação.

Sódeideombrosedisse:–Ébomsaber.Enadamaisfoidito.

Tessacordasubitamente.Seubraçobatenaminhacabeça.– Ai! – exclamo e esfrego a testa. A dor percorre meu braço em

recuperação.Ouçoo tinirnomeubolsodasbalasdeprataqueTess tiroudasminhasroupas.–Sevocêqueriameacordar,erasómetocar.

Ela ergue um dedo até os lábios. Agora eu é que me assusto. Aindaestamossentadosdebaixodopíer,masdevemfaltarumasduashorasparaoamanhecer,asilhuetadosedifíciosaindaestáescura.Aúnicaluzvemdeváriosantigospostesàbeiradolago.OlhoderelanceparaTess.Seusolhosbrilhamnaescuridão.

–Vocêouviualgumacoisa?–Elacochicha.Franzo a testa.Normalmente escuto algo suspeito antes deTess,mas

desta vez não escuto nada. Nós dois ficamos imóveis por um longomomento. Ouço o bater ocasional de ondas, o som agitado do metalempurrandoaáguae,devezemquando,umcarroquepassa.

OlhodenovoparaTessepergunto:–Oquefoiquevocêouviu?–Pareciaalgumacoisaborbulhando–elasussurra.

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Antesqueeupossarefletirsobreisso,ouçopassosedepoisumavozseaproximandonopíeracimadenós.Nósdoisnosencolhemosaindamaisnasombra. A voz é de homem, e seus passos soam estranhamente pesados.Dou-meconta,uminstantedepois,dequeohomemestáandandocomumoutro.Deveserumadupladeguardasmunicipais.

Chego aindamais para trás namargem, parte dapoeira e das pedrassoltascedeerolasilenciosamenteatéaareia.Continuoameempurrarparatrásatéminhascostasatingiremumasuperfície firmee suave.Tess fazamesmacoisa.

–Temalgumacoisapraacontecer–dizumdosguardas.–ApragadestavezapareceunosetorZein.

Ospassosdosdoisfazembarulhoacima,evejoovultodelescaminharao longo do início do píer. A distância, os primeiros sinais de luz estãocolorindoohorizontecomumcinzaturvo.

–Nuncaouvifalarqueapragaestivessenaqueleslados.–Deveserumsurtomaisforte.–Oqueelesvãofazer?Tentoouviroqueooutroguardatemadizer,masaestaalturaosdois

já andaram para bem longe e suas vozes são agora murmúrios. Respirofundo.OsetorZein ficaauns50quilômetrosdaqui.Mas, e seaestranhamarcavermelhanaportadaminhamãesignificarqueelesestãoinfectadoscomnovosurto?EoqueoEleitorvaifazerarespeito?

–Day–murmuraTess.Euaolho.Elaseviracontraamargem,demodoquesuascostasficam

defrenteparaolago.Elaapontaparaaprofundareentrânciaquefizemosnamargem.Quandomeviro,vejooobjetoqueelaestáindicando.

Asuperfícieduranaqualeuhaviaencostadoé,naverdade,umaplacademetal.Quando espalhomais das pedras e dapoeira, vejo que ometalestá profundamente enterrado na margem e que deve ser o que estámantendoamargemnolugar.Reexaminoasuperfície.

Tessolhaparamimediz:–Estáoco.–Oco?Encostominhaorelhanometalgelado.Umaondaderuídosmeinvade:

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oborbulhareosomsibilantequeTessouviuantes.Estanãoéapenasumaestruturametálica para sustentar asmargens do lago. Quandome afastodela e olho mais detidamente para o metal, reparo que há símbolosentalhadosnasuasuperfície.

UmdeleséabandeiradaRepública,gravadanometalmasjáperdendoorelevo.Outroéumpequenonúmeroemvermelho:318.

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JUNE

–Euéquedeviairlá,nãovocê.Cerro os dentes e tento não olhar para Thomas. Suas palavras são

idênticasàsqueMetiasteriadito.Respondoentão:–Euvouparecermenossuspeitadoquevocê.Podeserqueaspessoas

confiememmimmaisfacilmente.Estamos em frente a uma janela na ala norte do Batalla Hall,

observandoaComandanteJamesontrabalharnooutroladodovidro.Hojepegaram um espião das Colônias que estava divulgando secretamentepropaganda sobre “como a República está mentindo para você!”Geralmenteenviam-seosespiõesparaDenver,massesãoapanhadosnumacidadegrandecomoLosAngeles,nósosprendemosantesqueacapitalfaçaisso. Neste instante ele está pendurado de cabeça para baixo na sala deinterrogatórios.AComandanteJamesonseguraumatesoura.

Inclino umpouco a cabeça para olhar para o espião. Já o odeio tantoquantoodeioqualquercoisaquedigarespeitoàsColônias.ÉcertoqueelenãotemligaçãocomosPatriotas,masissootornaaindamaiscovarde.Atéagora, todoPatriotaqueencurralamos sematouantesde serpreso.Esseespiãoéjovem,deveterunsvinteetantosanos.Maisoumenosdamesmaidadequemeuirmãotinha.Lentamente,estoumehabituandoafalarsobreMetiascomoverbonopassado.

Pelo canto do olho, vejo que Thomas continua a me olhar. AComandanteJamesonopromoveuoficialmenteparaocargodomeuirmão,masThomastempoucopodersobreoqueescolherfazernessamissãodeteste,eissoolevaàloucura.Eleteriaserecusadoamedeixarirdisfarçadaao setor Lake por incontáveis dias: não sem uma dupla forte de apoio eumaequipeparameseguir.

Masvaiacontecerdequalquermodo,apartirdeamanhãdemanhã.– Preste atenção: não se preocupe comigo. – Através do vidro, vejo o

espiãodobrarascostas,emagonia.–Possotomarcontademim.Daynãoébobo,seeu tiverumaequipemeseguindopelacidade,elevaireparardecara.

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Thomasdáascostasparaointerrogatórioemediz:–Euseiquevocêéboanoquefaz.–Esperoo“mas”nafrase,porémele

não a pronuncia. –Mantenha omicrofone ligado. Eu tomo conta de tudoporaqui.

Sorrio para ele e agradeço. Ele nãome olha, mas vejo seus lábios seinclinaremnoscantos.Talvezestejaselembrandodequandoeucostumavacaminhar com ele e Metias, fazendo a eles perguntas tolas sobre comotrabalhavamosmilitares.

Atrás do vidro, o espião subitamente grita algo para a ComandanteJameson e se atira violentamente contra as correntes. Ela nos olha derelanceefazumsinalcomamãoparaqueentremos.Nãohesito.Thomaseeu, emais um soldado que estava perto da sala de interrogatório, todosentramosapressadamenteenosespalhamospertodaparededos fundos.Instantaneamente sinto que a sala é abafada e quente. Observo oprisioneirocontinuaragritar.

–Oquefoiqueasenhoradisseaele?–PerguntoàComandante.Elamedirigeumolhargélidoediz:– Eu disse a ele que o próximo alvo das nossas aeronaves vai ser a

cidade natal dele. – Ela se volta para o prisioneiro. – Ele vai começar acolaborar,setiverjuízo.

O espião nos olha furioso.O sangue lhe escorre da boca até a testa ecabelos,egotejanochãoembaixodele.Semprequesesacodecomforça,aComandanteJamesonpisatambémcomforçanacorrenteemvoltadoseupescoço,entãoosufocaatéeleparar.

Ele agora rosna e cospe sangue nas nossas botas, fazendo que eu,enojada,esfregueasminhasnochão.

AComandanteJamesonseinclinaesorriparaele:–Quetalrecomeçarmos?Qualéseunome?Oespiãodesviaoolharenãodiznada.A Comandante Jameson suspira e faz um sinal com a cabeça para

Thomas.–Minhasmãosestãocansadas–eladiz.–Façavocêashonras.–Sim,senhora.Thomasbatecontinênciaedáumpassoàfrente.Endureceamandíbula,

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fecha o punho e soca o espião violentamente no estômago. Os olhos doespião se arregalam, e ele tossemais sangue no chão. Eume distraio aoanalisar os detalhes de sua roupa: botões de bronze, botasmilitares, umpinoazulnamanga.Issoquerdizerqueelesedisfarçoudesoldado,equeopegamospertodeSanDiego, aúnica cidadeque requerque todomundouse esses pinos azuis. Sei o que o denunciou também.Umdos botõesdebronzeparece ligeiramentemaischatodoqueos feitosnaRepública.Elemesmodeveterpregadoessebotão,umbotãodeumantigouniformedasColônias.Burrice!UmerroqueapenasumespiãodasColôniascometeria.

– Qual é seu nome? – Pergunta-lhe de novo a Comandante Jameson.Thomasabreumafacaeagarraumdosdedosdoespião.

Oespiãoengoleemsecoeresponde:–Emerson.–Emersondequê?Sejamaisespecífico.–EmersonAdamGraham.– Sr. Emerson Adam Graham, do Texas Oriental – diz a Comandante

Jameson, com voz suave e persuasiva. – É um prazer conhecê-lo, jovemsenhor. Diga, Sr. Graham, por que as Colônias o mandaram para nossaótimaRepública?Paraespalharmentiras?

Oespiãoridebilmente:–ÓtimaRepública… – Retruca. – A suaRepública não vai durarmais

umadécada.Eomelhoréque,quandoasColôniasdominaremasterrasdevocês,elasasutilizarãomelhordoquevocês.

Thomasatingeoespiãonorostocomocabodafaca.Umdenterolanochão.QuandoolhonovamenteparaThomas,seucabelolhecaiunorostoeum prazer cruel substituiu a habitual bondade. Franzo a testa. Não vejomuitoessaexpressãonorostodeThomas.Elameapavora.

AComandanteJamesonparaàsuafrenteantesqueelepossabaternoespiãodenovo.

– Tudo bem. Vamos ouvir o que nosso amigo tem a dizer contra aRepública.

O rosto do espião está bastante vermelho por ter ficado penduradomuitotempo:

–Vocêschamamissoderepública?Matamseuprópriopovoetorturamosqueeramseusirmãos?

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Reviroosolhosaoouviressafrase.AsColôniasqueremquepensemosque permitir que eles nos dominem é uma coisa positiva, como se elesestivessemnosanexando,ounosfazendoalgumfavor.Éassimqueelesnosconsideram:umapobrenaçãomarginal,comoseelesfossemospoderosos.Essa noção é domaior interesse para eles, afinal, pois ouvi dizer que asinundaçõesalagarammuitomaisáreasdasterrasdelesdoquedasnossas.Estesemprefoiomotivobásicodetudo:terra,terra,terra.Mastornar-seumaunião… issonunca aconteceu,nem acontecerá.Nós os derrotaremosprimeiro,oumorreremostentando.

Oespiãocontinua:–Nãovoucontarnadaavocês.Podemtentaromáximoquequiserem,

masnadaouvirãodaminhaboca.AComandante JamesonsorriparaThomas,que retribuio sorriso.Ela

diz:–Bem,vocêouviuoqueoSr.Grahamdisse.Tentemosomáximo.Thomasvaiparacimadelee,apóscertotempo,ooutrosoldadonasala

precisa unir-se a ele paramanter o espião no lugar. Eume forço a olharenquanto eles tentam extrair informações do homem. Preciso aprenderisso,precisomefamiliarizarcomisso.Nosmeusouvidosressoamosgritosde dor do espião. Ignoro o fato de que o cabelo do espião é liso e pretocomo o meu, ou que sua pele é pálida. Sua juventude não para de melembrarMetias.DigoamimmesmaqueMetiasnãoéapessoaqueThomasestátorturando.Issoseriaimpossível.

Metiasnãopodesertorturado:elejáestámorto.

Naquelanoite, Thomasme acompanhade volta ameu apartamento emebeijanorostoantesdeirembora.Recomendaqueeutenhacuidado,edizqueeleestarámonitorandotodososruídosatravésdomeumicrofone.

–Todomundovaificardeolhoemvocê–elemegarante.–Vocêsóvaificarsozinhasequiser.

Consigoretribuiro sorriso.PeçoaelequecuidedeOllieenquantoeuestiverfora.

Quando finalmente entro no apartamento, enrosco-me no sofá edescansoobraçonascostasdeOllie.Eleestádormindoprofundamente,ese espremeu contra a lateral do sofá. Provavelmente sente a ausência de

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Metias tantoquantoeu.Namesinhade centro,pilhasde fotos antigasdenossospais,fotosqueestavamnoarmáriodoquartodeMetias,equeestãoagora espalhadas no vidro. Assim comoperiódicos e um livreto onde elecostumava guardar pequenas memórias das coisas que fazíamos juntos:uma ópera, jantares tarde da noite, exercícios feitos de manhãzinha napista.DesdequeThomassaiu,tenhoolhadotodasessascoisas,esperandoqueoassuntosobreoqualMetiasqueriame falarestejamencionadoemalgum lugar. Folheio os escritos de Metias e releio as notas que papaigostava de escrever nos rodapés das fotos. A foto mais recente mostranossospaisjuntodeMetias,bemjovem,emfrenteaoBatallaHall.Todosostrêsestão fazendoogestopositivo, comospolegarespara cima.A futuracarreiradeMetiasestáaqui!12demarço.Olhofixamenteparaadata.Afotofoitiradaváriassemanasantesdemeuspaismorrerem.

Meugravadorestánabeiradamesinhadecentro.Estaloosdedosduasvezes,edepoisescutorepetidamenteavozdeDay.Querostocombinacomessa voz? Tento imaginar a aparência de Day. Jovem e atlético,provavelmente,emagro,devidoaosanospassadosnasruas.Avozsaidosalto-falantes mas tão interrompida e distorcida que há trechosincompreensíveis.

–Ouveisso,Ollie?–Sussurro.Ollieroncaumpoucoeesfregaacabeçanaminhamão.–Esseéocaraqueprecisamosachar.Eeuvouconseguir.

AdormeçocomaspalavrasdeDayressoandoemmeusouvidos.

06h25.

Estou no setor Lake, observando a luz do dia, cada vez mais forte,colorindodedouradoas rodaseas turbinasdeáguaqueseagitam.Umacamadadefumaçapairaperpetuamentesobreabeirad’água.Dooutroladodo lago vejo o centro de Los Angeles pertinho da margem. Um guardamunicipal se aproxima e me manda parar de vadiar e sair andando.Concordo com a cabeça sem dizer uma palavra e continuo ao longo dabeira.

Àdistância,memisturocompletamenteaosquecaminhamameuredor.MinhablusademeiamangaegolaveiodeumbrechónadivisaentreLakeeWinter.Minhascalçasestãorasgadasesujas,ocourodasminhasbotasestá

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descascando.Tenhomuitocuidadocomotipodenóqueusoparaamarraros cadarços: é um simples nó rose, coisa que qualquer operário usaria.Puxei o cabelo para trás, num rabo de cavalo apertado. Uso um boné dejornaleiro.

OmedalhãodeDayestábemseguronomeubolso.Éinacreditávelcomosãosujasasruasdaqui,talvezaindamaissujasdo

queosarredoresdeterioradosdeLosAngeles.Aterraébaixa,ficanoníveldaágua,igualaosdemaissetores.Provavelmenteporisso,semprequecaiumatempestadeo lago inundatodasasruaspertodamargem,comáguasuja e contaminada por esgotos. Todos os prédios estão desbotados, emruínas, e pichados, à exceção, obviamente, da sededa polícia. As pessoascaminhamaoredordepilhasdelixoqueestãoencostadasnasparedeseécomo se não estivessem lá. Moscas e cachorros perdidos permanecemperto do lixo, assim como algumas pessoas. Torço o nariz por causa dofedor(declaraboiasfumegantes,gordura,esgoto).Entãoparo,percebendoque, se quero passar por uma cidadã do Lake, tenho de fingir que estouhabituadaàfedentina.

Várioshomenssorriemparamimquandopasso.Umchegaatéagritarparamim.Euos ignoroecontinuoandando.Eramumbandodepanacas,homensquemalhaviampassadonaProva.Seráquepossopegarapragadessagente,emboraestejavacinada?Sabe-seláporondeelesandam.

Eu então me detenho. Metias me disse para nunca julgar os pobresassim.Bem,eleeraumapessoamelhordoqueeu,pensoamargamente.

O minúsculo microfone dentro da minha face vibra um pouquinho,entãoouçoumsomdébilvindodofonedeouvido:

–Srta.Iparis.–AvozdeThomassoacomoumzunidobaixinhoquemalpossoouvir.–Tudodandocerto?

–Tudo–murmuro.Opequenomicrofonecaptaasvibraçõesdaminhagarganta.–EstouagoranocentrodoLake.Vouficaremsilêncioumpouco.

–Tudobem–dizThomas,esecala.Façoumsomdecliquecomalíngua,paradesligaromicrofone.Passoamaiorpartedessaprimeiramanhãfingindoreviraraslatasde

lixo. Dos outrosmendigos escuto histórias sobre vítimas da praga, sobrequaisasáreascomqueapolíciasepreocupamaisequaisdelascomeçaramaserecuperar.Elesindicamosmelhoreslugaresparaencontrarcomidae

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água potável, osmelhores lugares para se esconder durante os furacões.AlgunsdosmendigossãojovensdemaisparateremfeitoaProva.Osmaisnovosfalamsobreospaisecomobateracarteiradeumsoldado.

MasninguémcomentasobreDay.Ashorassearrastamatéchegaroentardecer,edepoisanoite.Quando

encontroumbecotranquiloondedescansar,comalgunsoutrosmendigosjádormindonaslatasdelixo,eumeencolhonumcantoescuroeligomeumicrofone.DepoistirodobolsoopingentedeDay,olevantoligeiramenteparaanalisarsuaformalisa.

–Acabeiporhoje–cochicho.Minhagargantamalvibra.Meufonedeouvidochiacomaestática.–Srta.Iparis?–DizThomas.–Tevesortehoje?–Não,nenhuma.Amanhãvoutentaralgunslugarespúblicos.–Tudobem.Vamostergenteaquiparadarapoio24horaspordia,em

todososdiasdasemana.Por “genteaquiparadarapoio24horaspordia, em todososdiasda

semana”, sei que Thomas quer dizer que ele é o único que vai ficar meouvindo.

–Obrigada–digo.–Estáescurecendo.Desligoomicrofone.Meuestômagoroncade fome.Pegouma fatiade

frangoqueencontreinosfundosdacozinhadeumalanchoneteemeobrigoamastigá-la, ignorando a camada de gordura fria. Se preciso viver comouma cidadã do Lake, tenho de comer como se fosse. Talvez eu devaconseguirumemprego,penso.Aideiamefazrircomdesdém.

Quando finalmente adormeço, tenho um pesadelo, do qualMetias fazparte.

No dia seguinte não encontro nada substancial, nem no dia depoisdesse.Meu cabelo fica todo embaraçado e opacopor causado calor edafumaça, a sujeira começoua seespalharnomeurosto.Quandoolhomeureflexo no lago, dou-me conta de que agora pareço exatamente umamendiga. Tudo parece sujo. No quarto dia, vou até a divisa entre Lake eBlueridge,edecidopassarotempovagandoentreosbares.

Éentãoqueaconteceumacoisa:doudecaracomumalutadeSkiz.

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DAY

AsnormasparaseassistiraumalutadeSkiz,eseapostar,sãobastantesimples:

Escolhaquemvocêpensaqueseráovencedor;Apostenessapessoa.

É só isso. O único problema quando se temmá reputação é correr oriscodeserpresopelapolíciaaofazerumaapostapública.

Nestatardeestouagachadoatrásdachaminédodepósitodeumandarem ruínas. Daqui consigo ver amultidão reunida no prédio abandonadovizinho a este. Estou perto o bastante para conseguir escutar algumasconversasdaspessoas.

ETess.Elaestálácomeles,ocorpodelicadoquaseperdidonaconfusão,comumapochetecomnossodinheiroeumsorrisonorosto.Euaobservoenquantoelaescutaosapostadoresdiscutiremsobreoslutadores.Elalhesfaz uma série de perguntas. Não ouso tirar os olhos dela. Guardasmunicipais insatisfeitoscomsuaspropinasàsvezesinterrompemaslutasdeSkizparaprenderosfrequentadorese,porisso,nãoficocomamultidãoquandoTesseeuassistimosàslutas.Seelesmepegaremetiraremminhasimpressõesdigitais, está tudo acabadoparanós. Tess, porém, é esbelta eastuta.Elaconsegueescapardeumabatidamuitomaisfacilmentedoqueeu,masissonãoquerdizerqueeuvádeixá-lasozinha.

–Continuesemovimentando,amiga–resmungobaixinhoquandoTessficaparadapararirdapiadadeumjovemjogador.Nãoseaproximemuitodela,suazebra!

Ouve-seumaalgazarranaoutraextremidadedamultidão.Meusolhossedesviampara láporumsegundo.Umadas lutadorasestá incentivandoos presentes, acenando com os braços e berrando. Sorrio. O nome dessagarotaéKaede,segundomeinformamosgritosdopovo.Kaedeéamesmaatendentedebarqueconhecihádias,enquantopassavapelosetorAlta.Elaflexionaospulsos,depoisficasaltitandocomospésesacodeosbraços.

Kaede já ganhou uma partida. Seguindo as regras tácitas do Skiz, elaagora precisa lutar até perder um round, até que a adversária a atire no

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chão.Cadavezqueelavence,recebepartedasapostasfeitasemsuarival.Meusolhosvagueiamatéagarotaqueelaescolheuparadesafiá-laagora.Amenina tem a pelemorena, com sobrancelhas cerradas e uma expressãoindefinida. Reviro os olhos. Obviamente a multidão deve saber que essaluta vai ser mole. Essa garota vai ter sorte se Kaede deixar que elasobreviva.

Tessesperaummomentoemqueninguémestáprestandoatençãonelaeolhade relancenaminhadireção.Levantoumdedo.Eladáumrisinho,pisca paramime olha para os frequentadores.Dádinheiro à pessoaqueorganiza as apostas, um grandalhão parrudo. Apostamos 1.000 Notas,quasetodoonossodinheiro,emKaede.

A luta demoramenos de umminuto. Kaede soca rapidamente e comforça,dandoestocadaseatingindoagarotabrutalmentenorosto.Aoutramoça cambaleia. Kaede brinca com ela como um gato brincando com acomida,antesdeatacardenovocomospunhos.Aadversáriaseesborrachano chão e bate com a cabeça no piso de cimento, onde fica estiradaparalisada.Nocaute.Opovogrita.Váriaspessoasajudamameninaasairdoringueaostropeções.TrocoumlevesorrisocomTess,querecolhenossosganhosepõeomontededinheironumabolsa.

1.500Notas.Enguloemseco,masmeadvirtoparanãomeentusiasmarmuito.Estouumpassomaispertodeconseguirumfrascodecuradapraga.

Volto minha atenção para o pessoal que aplaude. Kaede balança ocabeloparaaplateiaefazumaposedezombaria,oqueoslevaàloucura,epergunta:

–Queméapróxima?Amultidãoresponde:–Escolhe!Escolhe!Kaede olha vagarosamente o círculo de gente, sacudindo a cabeça ou

inclinando-aparaolado.MantenhoosolhosemTess.Elaestánapontadopé, atrás de várias pessoas mais altas, esforçando-se para conseguir verdireito. Então ela dá uma pancadinha hesitante nos ombros delas, dizalguma coisa e abre caminho aos empurrões. Ao ver isso, aperto amandíbula.Dapróximavezeuficocomela.Elaentãovaipodersentarnosmeusombroseverdireitoaslutas,emvezdechamaratençãoindesejadaparasimesma.

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Um segundo depois, eu me contraio todo. Tess abriu caminho aoempurrar um dos jogadoresmais fortes. Ele grita algo para ela, irado, eantesqueTesspossasedesculpar,vejoqueeleaempurragrosseiramenteparaocentrodoringue.Elatropeça,amultidãotemumacessoderiso.

Araivacomeçaafervernomeupeito.Kaedesedivertecomtudoisso,egrita:

–Estámedesafiando,garota?–Umsorrisolhesurgenorosto.–Issovaiserbemdivertido.

Tess olha em volta, atônita. Tenta recuar para juntar-se novamente àmultidão,maselesbloqueiamapassagem.QuandovejoKaedeapontarcomacabeçanadireçãodeTess,eumelevanto.EssaidiotavaiescolherTess.

Droga!não!Nãocomigoolhando.NãoseKaedequersobreviver.Desúbito,umavozsoadebaixo.Paro.Umagarotachegouà frentedo

ringue,deondeolhafixamenteparaKaede.Elareviraosolhosegrita:–Issonãomepareceumalutajusta.EntãoKaedereplica:–Quem tupensa que é, falando assim comigo, garota? Tuacha que é

melhordoqueeu?Ela aponta para amenina, e amultidão aplaude. Vejo Tess se afastar

rapidinhoparavoltaràsegurançadamultidão.AnovagarotaficanolugardeTess,querendoounão.

Emitoum longosuspiro.Quandomeacalmo,olhodetidamenteparaanovaoponentedeKaede.

Elanãoémuitomais altadoqueTess e certamenteémaismagradoque Kaede. Por um segundo parece que a atenção das pessoas aconstrangeu, quase acho que ela não é de nada, até examiná-la de novo.Não,essagurianãoécartaforadobaralho.Elaestáhesitandonãoporquetenha medo de lutar, nem porque receie perder, mas porque estárefletindo.Calculando.Seucabelonegroestáamarradonumrabodecavalo,noaltodacabeça,eseucorpoéesbeltomasatlético.Elaestádepédemodoconfiante, comosenadanomundoapudessepegardesprevenida.Acaboadmirandoseurosto.

Porummomento,ficoperdidoemmeuspensamentos.A menina sacode a cabeça para Kaede. Isso tambémme surpreende,

nuncavininguémserecusaralutar.Todomundoconheceanorma:sevocê

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éescolhido,temdelutar.Essagarotanãoparecetemerairadamultidão.Kaederidemododebochadoedizalgoquenãoconsigoentenderdireito.MasTessescuta,emelançaumolharrápidoepreocupado.

Desta vez a garota concorda com a cabeça. A multidão aplaudenovamente,Kaedesorri.Eumedebruçoumpouquinhodoladodetrásdachaminé. Essamenina tem alguma coisa diferente. Não sei o que é, masseus olhos parecem emitir faíscas, e embora esteja quente e possa serminhaimaginação,creioverumesboçodesorrisonorostodela.

Tess me dirige um olhar interrogativo. Hesito por uma fração desegundo e depois volto a erguer um dedo. Estou grato a essa garotamisteriosapor ajudarTess,mas, como émeudinheiro que está em jogo,resolvonãoarriscar.Tessconcordacomacabeça,depoisfaznossaapostaafavordeKaede.

Mas no instante em que a nova menina pisa no ringue e vejo suaatitude…concluoquecometiumgrandeerro.Kaedeatacacomoumbúfalo,comoumaríete.

Eameninaatacacomoumavíbora.

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JUNE

Nãoestoucomreceiodeperderessaluta.Estoumaiscomreceiodemataracidentalmenteminhaadversária.Mas,seeucorreragora,sereimorta.Silenciosamenteme censuro. Por que fuime envolver com este jogo?

Quandoviessegrupodejogadores,quisdeixarpralá.Nãoquerianadacomrixas.Nãoeraumbomlugarparaserpresapelapolíciamunicipalelevadaao centro da cidade para ser interrogada.Mas então achei que talvez euconseguisseumasinformaçõesvaliosasdeumgrupocomoeste.Comtantoshabitantes locais, talvez alguns até conhecessem Day pessoalmente.CertamenteDaynãoéumcompletodesconhecidoparatodomundonoLake,esealguémsabequeméele,éamultidãoquefrequentaaslutasilegaisdeSkiz.

Maseunãodeviaterditonadasobreamagricelaqueempurraramnoringue:elaquesevirasseprasedefender.

Masagoraétardedemais.AgarotachamadaKaedeinclinaacabeçaparamimedáumsorrisinho

quando nos enfrentamos no ringue. Suspiro profundamente. Ela jácomeçou a me rodear, intimidando-me como uma presa. Analiso suapostura. Ela dá um passo à frente com o pé direito. Ela é canhota.Normalmenteissoseriaumavantagemcontrasuasoponentes,queficariamdesnorteadas, mas treinei para isso. Mudo meu modo de andar. Meusouvidossãoabafadospelobarulho.

Deixo que ela ataque primeiro. Ela arreganha os dentes para mim eavançaparaafrenterapidamente,comopunhoerguido.Masvejoqueelasepreparaparamechutar,entãomedesvioparaolado.Opontapépassadiretamentepormim.Usoesseimpulsoparabatercomforçaquandoelaseviradecostas.Elaperdeoequilíbrioequasecai.Amultidãoaplaude.

Kaede se move em círculos para me encarar de novo. Desta vez seusorriso desapareceu: consegui deixá-la com raiva. Elame ataca de novo.Bloqueio seus dois primeiros socos, mas seu terceiro soco me pega noqueixoefazminhacabeçagirar.

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Todos os músculos do meu corpo querem acabar com essa históriaagora,maseumeobrigoameacalmar.Seeulutarbemdemais,aspessoaspodemdesconfiar.Meuestiloémuitoprecisoparaumamendigaderua.

DeixoqueKaedemeatinjaumaúltimavez.Amultidãovemabaixo.Elarecomeçaasorrir,suaconfiançaestávoltando.Esperoatéelaestarprontapara atacar, e logo me lanço à frente, esquivo-me e a faço tropeçar. Elaestava desprevenida e cai pesadamente de costas. A multidão grita,aprovando.

Kaedeselevantacomesforço,emboraamaioriadoslutadoresdeSkizconsiderassederrotadooadversárioquecainofimdeumround.Elalimpaum pouco de sangue da boca. Antes que possa sequer voltar a respirarnormalmente, emite um grito furioso e se atira contramim de novo. Eudevia ter vistoominúsculo sinal de luzpertode seupulso.Osprimeirossocos de Kaede atingem violentamente um lado do meu corpo, eu sintoumadorterríveleaguda.Euaafastocomumempurrão.Elapiscaparamimecomeçaamerodeardenovo.Tocoumladodomeucorpoeéaíquesintoalgumacoisaquenteemolhadanacintura.Olhoparabaixo.

Foiumafacada.Apenasumafacaserrilhadapoderiaterrasgadominhapeledessamaneira.ApertoosolhosparaKaede.Supostamente,armasnãodevem fazerpartedeuma lutadeSkiz,masestanãoébemuma lutaemqueasregrassãoseguidas.

A dorme deixa tonta e zangada. Ah, então é assim? Nada de regras.Tudobem.

QuandoKaedemeatacanovamente, eumeesquivoe torço seubraçocomforça.Comummovimento,euoquebro.Elagritadedor.Quandotentase livrar, continuoa segurá-la, torcendoobraçoquebradoatrásdas suascostas até ver sangue lhe escorrer do rosto. Uma faca se solta de suacamisetaefazbarulhoaocairnochão.Éumafacaserrilhada,exatamentecomopensei.Kaedenãoéumaindigentecomum.Ela temahabilidadedeconseguirumaboaarmacomoaquela,oquequerdizerquepodeestarnomesmoramodeatividadesqueDay.Seeunãoestivessesobdisfarce,euaprenderia na hora e a levaria para ser interrogada.Meu ferimento arde,mascerroosdentesecontinuoagarrandoobraçodela.

FinalmenteKaedeme estapeia freneticamente comaoutramão. Eu asolto. Ela desabano chão, de joelhos, se apoiandonobraçoquenão estáquebrado. A turba vai à loucura. Seguro o lado sangrento domeu corpo

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comamaiorforçapossível,e,quandoolhoemvolta,vejodinheirotrocandodemãos. Duas pessoas a ajudam a sair do ringue, elame olha com ódioantesdevirarascostas,eorestodosespectadorescomeçaagritar:

–Escolhe!Escolhe!Escolhe!Talvez seja a dor vertiginosa do meu ferimento que me deixa

imprudente. Já não consigo conter a raiva. Eu me viro sem dizer umapalavra,enroloasmangasdablusaatéoscotoveloselevantoagola.Depoissaiodoringueecomeçoaabrircaminhoaosempurrõesentreamultidão.

O coro do grupo agoramuda: começam as vaias. Fico tentada a ligarmeumicrofoneeadizeraoThomasparamandarsoldadoscomoreforço,masficoemsilêncio.Euhaviaprometidoamimmesmasópedirapoioemúltimocaso, certamentenãovoudestruirmeudisfarceporcausadeumarixaderua.

Quando consigo sair doprédio, arriscoolharpara trás.Meiadúziadeespectadoresmesegue,eamaioriapareceenraivecida.Pensoentão:Essessão os apostadores, os caras que são viciados na luta. Eu os ignoro econtinuoaandar.

–Voltaaqui!–Berraumdeles.–Tunãopodeirembora!Começoacorrer.Malditoferimentodefaca!Chegoaumagrandelixeira,

consigogirareentrarnela,depoismepreparoparapularatéoparapeitodeumajaneladosegundoandar.Seeuconseguirsubiraltoobastante,elesnãovãomealcançar.Saltonaalturamáximaqueposso,econsigoagarrarabeiradoparapeitocomumadasmãos.

Mas o ferimentome faz desacelerar. Alguém agarraminha perna e apuxa firmemente. Largo o parapeito, fico toda arranhada por causa daparede,emeesborrachonochão.Batocomacabeçacomforçasuficienteparaverestrelas.Elesentãomearrastamatémecolocaremdepéedevoltaàturbaquegrita.Eumeesforçoparapensarclaramente.Estrelasaparecememmeucampodevisão.Tentoclicarmeumicrofone,masminhalíngua,detão lenta, parece estar coberta de areia. Sussurro “Thomas”, mas acabasaindo“Metias”.Semvernada,estendoamãoparaomeuirmão,maslogomelembroqueelejánãopodesegurá-la.

De repente escuto um estouro e alguns gritos. As pessoasme soltam.Volto a cair no chão.Tentome levantardequalquer jeito,mas tropeço evolto a cair. De onde veio tanta poeira? Aperto os olhos, tentando ver

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alguma coisa. Ainda ouço o barulho e o caos provocados entre osespectadores.Alguémdeveterexplodidoumabombadepoeira.

Entãoouçoumavozmemandandolevantar.Quandoolhoparaolado,vejo um adolescente estendendo a mão para mim. Ele tem olhos azuisbrilhantes,poeiranorosto,eumbonésurradonacabeça.Nestemomentoachoqueéogarotomaisgatoquejávinavida.

–Venha–eleincentiva.Pegosuamão.Em meio à poeira e à confusão, descemos correndo a rua e

desaparecemosnassombrasprolongadasdatarde.

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DAY

Elanãoquerdizerseunome.Compreendomuitobem.MuitosadolescentesdasruasdoLaketentam

mantersuaidentidadesecreta,especialmentedepoisdeparticipardealgoilegal como uma luta de Skiz. Além disso, não quero saber o nome dela.Continuochateadoporterperdidoaaposta.AderrotadeKaedemecustou1.000Notas.Essedinheiroeradestinadoàcompradeumfrascodacuradapraga.Otempoestáacabando,etudoporculpadessamenina.Soumesmoburro. Se ela não tivesse sido responsável por tirar Tess do ringue, eu ateriadeixadosevirarsozinha.

Mas sei que Tess ficaria me olhando triste como um cachorrinhoabandonado,eduranteorestododia,porissoajudeiagarota.

Tesscontinuaa fazerperguntasenquantoajudaaMenina(achoqueéassimquevouchamá-la)alimpardamelhorformapossíveloferimentonalateral de seu corpo. Fico calado a maior parte do tempo. Estou alerta.Depois da luta de Skiz e da bomba de detritos, nós três acabamosacampandonasacadadeumaantigabiblioteca. (Seráquepodeaindaserconsideradaumasacada,setodaaparededesmoronouedeixouoandaraoarlivre?)Naverdade,quasetodososandarestêmparedesdesmoronadas.A biblioteca é parte de um antigo edifício que agora está quaseinteiramentecheiod’água,ficaacentenasdemetrosdamargemorientaldolago, todo coberto por vegetação selvagem. É um bom lugar para gentecomo nós encontrar abrigo. Observo as ruas à procura de apostadoresfuriososqueaindaestejamàprocuradaMenina.Deondeestousentado,nabeira da sacada, olho para as duas, por cima do ombro. A Menina dizalgumacoisaàTess,queretribuiosorrisocautelosamente.

–MeunomeéTess–euaouçodizer.Elasabequenãodevedizeromeu,mas continua falando. – De que parte do Lake você é? Você é de outrosetor?–ElaexaminaoferimentodaMenina.–Éumaferidafeia,masnadaquenãopossa ser curado.Vou tentarencontrar leitede cabrademanhã.Vai serbomparavocê.Até lá,vocêvai terdecuspirnela. Issoajudacominfecções.

PelaexpressãodaMenina,deduzoqueelajásabedisso.

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–Obrigada–elamurmuraparaTess.Olhaderelancenaminhadireçãoediz:–Sougrataporsuaajuda.

Tesssorridenovo,masperceboqueatéelaestápoucoàvontadecomessarecém-chegada.

–Eeusougratapelasua.Endureçooqueixo.Daquiamaisoumenosumahoraseránoite,etenho

umadesconhecidalesionadaacrescentadaàsminhasobrigações.Apósumtempo,eumelevantoemejuntoàTesseàMenina.Emalgum

lugar, à distância, começa a retumbar o juramento de fidelidade àRepública,pelosalto-falantesdacidade.

–Agentevaipassaranoiteaqui. –OlhoparaaMeninaepergunto:–Comovocêestásesentindo?

–Legal–elaresponde,maséóbvioqueestásentindodor.Nãosabeoquefazercomasmãos,porissoficatocandonaferida,edepoisretirandoamão.Sintoumimpulsodeconsolá-la.

Elapergunta:–Porquevocêmesalvou?Eudigo,demodomeioáspero:–Nãotenhoamenorideia.Sóseiquevocêmecustouumanotapreta.AMenina sorripelaprimeiravez,masháalgoeternamente cauteloso

emseusolhos.Elapareceabsorvereanalisarcadapalavraqueeudigo.Elanãoconfiaemmim.

–Vocêapostaalto,nãoé?Desculpepeloqueaconteceu.Elamedeixoufuriosa!–Elasemexedolugar.–SuponhoqueKaedenãoeraamigasua.

–ElaéatendentedebarnadivisaentreAltaeWinter.Eusóaconhecihápoucotempo.

Tessriemeolhadeumjeitoquenãoconsigointerpretar,ediz:–Elegostadeconhecergarotasbonitinhas.Euarepreendo:–Mordaalíngua,amiga.Jánãochegavocêterquasemorridohoje?Tessconcordacomacabeça,sorritimidamente,ediz:–Voupegaráguapragente.Elaselevantacomumsaltoesedirigeàescadariaabertaatéabeirada

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água.Depois que ela sai, eu me sento ao lado da Menina, e minha mão

acidentalmente toca a sua cintura. Ela respira assustada, e eume afasto,commedodetê-lamachucado.

– Esse ferimento deve ficar bom logo, se não infeccionar. Mas vocêtalvezqueiradescansaralgunsdias.Podeficarcomagente.

AMeninadádeombrosediz:–Obrigada.Quandoeumesentirmelhor,vouatrásdaKaede.EumeencostoeanalisoorostodaMenina.Elaéumpoucomaispálida

doqueasoutrasgarotasquevejonosetor,temgrandesolhosnegrosquebrilham dourados à luz do entardecer. Não sei dizer o que ela é, mas éincomumporaqui.Talvezsejanascidaaquimesmo,ouentãocaucasiana.Ououtracoisa.Elaébonita,deumaformaquemedistraiaatenção,comofeznoringuedeSkiz.Não,bonitanãoéapalavracerta.Linda adescrevemelhor.Enãosó isso:elamelembraalguém.Talvezsejaaexpressãodosolhos, algo ao mesmo tempo friamente lógico e ferozmente desafiador.Sintomeurostoficandocorado,ederepentedesviooolhar,felizporqueaescuridão está chegando. Talvez eu não devesse tê-la ajudado. É umatentaçãomuito grande. Nestemomento tudo em que penso é no que eudaria pela oportunidade de beijá-la ou passar os dedos por seu cabelonegro.

–Menina–digo,apósalgumtempo–,suaajudahojevaleu!ParaTess,istoé.Ondevocêaprendeualutardaquelejeito?VocêquebrouobraçodaKaedesemnemtentar!

Ameninahesita.Pelocantodoolho,vejoquemeobserva.Viro-meparaencará-la,elafingeobservaraágua,comoseestivesseconstrangidaporserapanhadameolhando.Eladistraidamente toca seu ladomachucadoe fazumsomdeestalocomalíngua,comosefosseumhábito.

– Eu passo muito tempo na divisa de Batalla, gosto de observar oscadetesseexercitarem.

–Nossa,vocêgostadesearriscar,maslutamuitobem.Apostoquevocênãotemmuitoproblemaemsevirarsozinha.

AMeninari:–Dápravocêvercomomesaíbemsozinhanalutahoje.–Elasacodea

cabeça. Seu comprido rabo de cavalo balança. – Eu nem devia ter ficado

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para ver a luta de Skiz, mas o que posso dizer? Sua amiga precisava deajuda.–Elaentãomeolhacomfirmeza.Aexpressãocautelosaaindaestápresenteemseusolhos.–Evocê?Estavaassistindotambém?

–Não.Tessestava láembaixoporqueelagostadeaçãoeéumpoucomíope.Eugostodeobservaraumacertadistância.

–ATessésuairmãmaisnova?Hesitoerespondo:– Somosmuito ligados. Era realmente a Tess que eu queriamanter a

salvocomminhabombadedetritos,sabe?A Menina levanta a sobrancelha e me olha. Observo seus lábios se

curvaremnumsorriso:–Vocêémuitogentil.Todomundoporaquisabefazerumabombade

detritos?Acenoamãonumgestodedesinteresse:–Claro,atéosguris.Nãoénadademais,éfácil.–Olhoparaela.–Você

nãoédosetorLake,é?AMeninasacodeacabeça:–SoudosetorTanagashi,querdizer,eumoravalá.–Tanagashiémuito longe.Vocêpercorreuessecaminhotodosópara

verumalutadeSkiz?–Claroquenão.–AMeninasedebruçaecuidadosamentesedeita.Vejo

queocentrodaataduraestáficandovermelhoescuro.–Euficofuçandoasruas.Batomuitapernaporaí.

–OLakenãoéumlugarseguroagora–digo.Umrespingoazulturquesano canto da sacada me chama a atenção. Há um pequeno ramo demargaridinhas crescendo de uma rachadura no chão. Eram as floresfavoritasdemamãe.–Vocêpodepegarapragaaqui.

A Menina sorri para mim, como se soubesse uma coisa que não sei.Gostariadesaberquemelamelembra.

–Nãosepreocupe–elamediz. –SouumaMenina cautelosa, quandonãoestouzangada.

Quando a noite finalmente chega, aMenina cai em um sono bastantesobressaltado. Peço à Tess para ficar com ela para eu poder dar umafugidinhaevercomoestáminhafamília.Tessaceitacomprazer.Iràsáreas

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doLakeinfectadaspelapragaadeixanervosa,eelasemprevoltacoçandoosbraços,comoseainfecçãoestivesseseespalhandoporsuapele.

Enfio um punhado de margaridinhas na manga da camisa e algumasNotasnobolso,porprecaução.Tessmeajudaaenrolarasmãosnumpano,paraevitarqueeuvádeixandoimpressõesdigitaisemtudoqueélugar.

A noite está surpreendentemente fresca. Nenhuma patrulha contra apragaperambulapelasruas,eosúnicossonsvêmdecarrosocasionaisedoestardalhaçodistantedoscomerciaisnostelões.OestranhoXaindaestánanossaporta,maisevidentedoquenunca.Naverdade,tenhoquasecertezadequeossoldadosvoltarampelomenosumavez,porqueovermelhodoXestá muito vivo, a tinta está fresca. Eles devem ter feito uma segundaverificaçãonaárea.Oqueosfezmarcarnossacasaaparentementeficousópor ali mesmo. Espero na sombra perto da casa de minhamãe, perto obastanteparapoderespreitaratravésdosvãosdacercapoucoestáveldenossoquintal.

Quando tenho certeza de que ninguém está patrulhando nossa rua,corronasombraemdireçãoàcasaeengatinhoatéumatábuarachadaquelevaatéavaranda.Deslizoatábuaparaoladoemearrastoatéumafendaescura com cheiro de mofo, então puxo a tábua de volta no lugar logodepoisquepasso.

Pequenas réstias de luz vêm de entre as tábuas do assoalho doscômodos acimademim.Ouço a vozdeminhamãenos fundos, onde ficanosso único quarto de dormir. Vou até lá. Depoisme agacho ao lado daventilaçãodoquartoeolhoparadentro.

John está sentado na beirada da cama com os braços cruzados. Suaposturaindicaqueeleestáexausto.Ossapatosestãosujosdeterra.Seiquemamãedeve tê-lo repreendidopor causadisso. Johnestáolhandoparaooutroladodoquarto,ondemamãedeveestar.

Ouço de novo a voz dela, desta vez alta o bastante para eucompreender:

–Nenhumdenósestádoenteainda.–Johndesviaoolhareobservaacama. – Não é contagiosa. E a pele do Éden continua boa. Não estásangrando.

– Ainda não – responde John. – Temos de nos preparar para o pior,mamãe.CasooÉden…

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Avozdemamãeéfirme:– Não admito que você diga isso naminha casa, John. Ele precisa de

maisdoquesupressores.Quemnosdeuaquelesémuitogeneroso,masissonãobasta.

Johnsacodea cabeçae se levanta.Mesmoagora,especialmente agora,eleprecisaprotegerminhamãedaverdadesobreomeuparadeiro.Quandoele seafastadacama,vejoqueÉdenestádeitadocomumcobertoratéoqueixo, apesar do calor. Sua pele está oleosa de suor. A cor também éestranha, de um verde doentio. Não me lembro de outras pragas comsintomasassim.Sintoumnónagarganta.

O quarto está exatamente igual, os poucos objetos que contém estãovelhos e usados, mas ainda é confortável. Há o colchão rasgado no qualÉdenestádeitado,easeuladoacômodadesgastadanaqualeucostumavarabiscar.HátambémoretratoobrigatóriodoEleitorpenduradonaparede,cercadoporumpunhadodefotografiasnossas,comoseelefossemembrodafamília. Issoé tudooquenossoquartocontém.QuandoÉdenerabempequenininho, John e eu costumávamos segurar suas mãos e ajudá-lo aandardeum ladodoquartoaooutro. Johnbatiacomapalmadamãonapalmadamãodelesemprequeeleofaziasozinho.

Agoravejoasombrademamãe,paradanomeiodoquarto.Elanãodiznada.Imaginoseusombroscurvados,suacabeçaentreasmãos,eseurostosemaexpressãocorajosadesempre.

John suspira. Passos ecoam acima de mim, sei que ele deve teratravessadooquartoparaabraçá-la:

– Éden vai ficar bem. Talvez esse vírus sejamenos perigoso e ele serecuperesozinho.–Johnfazumapausa.–Vouveroquetemosparaasopa.–Euoouçosairdoquarto.

EstoucertodequeJohndetestatrabalharnacentraldeenergiaavapor,mas,pelomenosquandoelesaidecasa,desanuviaamenteporumtempo.Agoraeleestáencurraladoemcasa,semumamaneiradeajudarÉden.Issodeve estar acabando com ele. Agarro a terra solta debaixo de mim e aapertocomamaiorforçaqueposso.

Sepelomenosohospitaltivesseremédioparacurarapraga…Umpoucodepoisvejomamãeatravessaroquartoesentarnabeirada

da cama de Éden. Suas mãos estão de novo envoltas em ataduras. Ela

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sussurraalgoparaconsolá-loesedebruçaparalhetirarocabelodorosto.Fechoosolhos.Mentalmente formouma lembrançado rostodela, suave,lindoepreocupado,osolhosazuisbrilhanteseabocarosadaesorridente.Minhamãemecolocavanacama,alisavameuscobertoresesussurravaodesejodeque eu tivesse lindos sonhos. Eumeperguntooque ela estarásussurrandoparaoÉdenagora.

Subitamente a saudadedelame sufoca.Quero sair correndodaqui debaixoebateremnossaporta.

Afundo asmãos na terra. Não, o risco émuito grande.Vou encontraruma forma de ajudá-lo, Éden, prometo. Eu me xingo por arriscar tantodinheiroemumaapostadeSkiz,emvezdeacharummeiomaisconfiáveldeconseguirdinheiro.

Tirodamangadacamisaasmargaridinhasqueeutinhaguardadonela.Alguns dos brotos estão amassados, mas eu os arrumo cuidadosamente,comsuavidadelimpo-osdaterra.Mamãeprovavelmentenuncavaivê-los,maseuseiqueelesestãoaqui.Asfloressãoumaprovaparamimmesmodequecontinuovivo,esempretomandocontadaminhafamília.

Algo vermelho na terra ao lado dasmargaridasme chama a atenção.Franzo a testa, depois tiro mais terra para ver melhor. Há um símbolonelas,algoescritodebaixodaterraedoscascalhos.

Éumnúmero,comooqueTesseeuhavíamosvistonamargemdolago,excetoquedestavezonúmeroé2544.

Eucostumavameesconderaquialgumasvezesquandoeramaisnovo,meusirmãoseeubrincávamosdeesconde-esconde.Masnãomelembrodetervistoissoantes.Eumeinclinoeencostoaorelhanaterra.

Aprincípionãohánada.Depoisouçoumsomdébil,outrorápido,umsibilante e outro murmurante. Como um tipo de líquido ou vapor.Provavelmenteháumsistema inteirode tubulações lá embaixo, algoquelevaatéo lago.Ponhode ladomais terra,masnenhumoutro símbolooupalavraaparece.Onúmeroparecedesbotadocomotempo,apinturaestálascada,semalgunspequenosflocos.

Fico lá algum tempo, silenciosamente analisando aquilo. Olho derelancemaisumavezparaoquartopelaventilação,depoisabrocaminhodebaixodavaranda,penetronaescuridão,evouemboraparaacidade.

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JUNE

Acordoaoamanhecer.Aluzmefazestreitarosolhos.Deondeelaestávindo?Detrásdemim?Poruminstante,ficodesorientada,semsaberporqueestoudormindonumprédioabandonadodefrenteparaooceano,commargaridas marinhas crescendo a meus pés. Uma dor aguda no meuestômago me obriga a respirar com dificuldade. Fui esfaqueada, dou-meconta,apavorada.EntãomelembrodalutadeSkiz,dafacaedogarotoquemesalvou.

Tessseapressaavirparajuntodemim,quandovêquememexi:–Comoestásesentindo?Elaaindameolhadesconfiada:–Dolorida–murmuro.Nãoqueroquepensequenãofezdireitominha

atadura,porissoacrescento:–Masmuitomelhorqueontem.Levoumminutoparaperceberqueogarotoquemesalvouestásentado

nocantodocômodo,balançandoaspernassobreavarandaeobservandoaágua. Preciso esconder meu constrangimento. Num dia normal, semferimento de faca, eu nunca deixaria um detalhe como esse passardespercebido.Ele foiaalgum lugarontemànoite.Enquantoeudormiaeacordava,anoteimentalmenteadireçãoqueeletomou:sul,rumoàUnionStation.

–Esperoquevocênão se importedeesperaralgumashorasantesdecomer–elemediz.Estáusandoseuvelhobonédejornaleiro,masdápraveralgunsfiosdecabelolourocomotrigosoboboné.–ComoperdemosodinheirodaapostanoSkiz,estamossemdinheiroparacomidaagora.

Ele me culpa por haver perdido. Eu simplesmente concordo com acabeça.RelembroosomdavozentrecortadadeDayvindadosalto-falanteseacomparosilenciosamentecomadessegaroto.Elemeolhauminstantesem sorrir, como se soubesse o que estou pensando, depois retoma suavigília. Não, não tenho certeza se a voz é a dele.Milhares de pessoas noLakepodemteressavoz.

Dou-me conta de que o microfone na minha bochecha ainda estádesligado.Thomasdeveestarumaferacomigo.Digoentão:

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–Tess,voudarumpuloatéaágua.Nãodemoro.–Temcertezadequeconsegueirsozinha?–Elapergunta.–Semproblema.–Eusorrio.–Massevocêmevirboiandoinconsciente

rumoaooceano,porfavor,vámebuscar.Os degraus deste edifício certamente eram parte de uma escadaria

interna, mas agora estão ao ar livre. Levanto-me e desço mancando osdegraus, um de cada vez, tomando cuidado para não escorregar e meprecipitardentrodaágua.OqueTessfezontemànoiteestádandocerto.Emboraumladodomeucorpocontinueardendo,adorestámenosagudaeconsigoandarcommenosesforçodoqueontem.Chegoaotérreodoprédiomais rapidamente do que pensava. Tessme lembraMetias, de como elecuidoudemimquandoeunãoestavabem,nodiadesuaformaturacomomilitar.

Masnãopossomeentreter com lembrançasdeMetiasneste instante.Pigarreioemeconcentroemtrilharocaminhoatéabeiradadaágua.

Osolnascendoalestejáestáaltoobastanteparabanharolagointeironumapenumbradourada,evejoatênuefaixadeterraqueseparaolagodooceano Pacífico. Dirijo-me ao andar do prédio que fica bem ao nível daágua.Todasasparedesdesteandarestãoderrubadas,demodoquepossocaminhar reto até a beira do edifício e aliviar na água a dor das pernas.Quandoolhoparaasprofundezas,vejoqueestavelhabibliotecacontinuapormuitosandares.Talvezhajaunsquinzepavimentos,ajulgarpelaformacomoosprédiosestãonacostaecomoaterraseinclinaapartirdabordadaágua.Eaproximadamenteseisandaresdevemestardebaixod’água.

Tesseogarotosesentamnotopodoprédio,váriosandaresacimademim,ondecertamentenãopossamserouvidos.Olhoparaohorizonte,douumpequenoestalocomalíngua,eligoomicrofone.

Escuto vários ruídos de estática domeu fone de ouvido. Um segundodepois,ouçoumavozfamiliar:

–Srta.Iparis?–perguntaThomas.–Éasenhoritamesmo?–Soueu–murmuro–,eestoubem.–Gostariadesaberoqueasenhoritaandouaprontando.Tenhotentado

contatá-lanasúltimas24horas.Jáestavaprontoparamandarunssoldadosa sua procura, e nós dois sabemos que a Comandante Jameson adorariaisso.

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–Estoubem–repito.MinhasmãostiramdomeubolsoomedalhãodeDay.–TiveumpequenoferimentonumalutadeSkiz,nadasério.

Ouçoumsuspirodooutrolado,eThomasdiz:– Bem, você não vai ficar mais tanto tempo assim com o microfone

desligado,entendido?–Tudobem.–Encontroualgumacoisa?Olhoderelanceparaondeogarotoestábalançandoaspernasedigo:– Não sei direito. Um menino e uma menina me ajudaram a sair da

bagunçadoSkiz.A garota fezumaataduranomeu ferimento.Estou comelestemporariamente,atépoderandarmelhor.

– Andar melhor? – Thomas levanta a voz. – Que tipo de pequenoferimentoéesse?

–Umferimentoafaca.Nadademais.–Thomasemiteumsomsufocado,mas eu ignoro e continuo falando: –Bem, issonão importa.O garoto fezuma pequena e sofisticada bomba de pó para nos livrar damultidão doSkiz.Eletemhabilidades.Nãoseiquemé,masvouobtermaisinformações.

–VocêachaqueeleéoDay?–Thomaspergunta.–Daynãomepareceotipodecaraqueandaporaísalvandogente.

A maioria dos crimes de Day envolve o salvamento de pessoas. Todos,menosMetias.Respirofundoerespondo:

–Não,achoquenão.Baixo a voz até soar praticamente um sussurro. É melhor não ficar

lançando suposições infundadas paraThomas agora, para que ele não seprecipite e mande tropas atrás de mim. A Comandante Jameson vai meexpulsardiretodasuapatrulhaseagentefizerumacoisacaradessassemcomprovação.Alémdisso,essesdoismelivraramdeumproblemagrave.

Eentãocontinuo:–MaselestalvezsaibamalgumacoisasobreDay.Thomas se cala ummomento. Escuto uma confusão lá no fundo, um

pouco de estática, depois a voz baixa dele, falando com a ComandanteJameson.Eledeveestarcontandoaelasobremeuferimento,perguntandoseéseguromedeixaraquisozinha.Suspiro,irritada.Atéparecequenuncafuiferidaantes.Apósalgunsminutos,elevoltaafalar:

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– Bem, tome cuidado. – Thomas faz uma pausa e depois diz: – AComandanteJamesonmeinstruiuamantervocênasuamissão,desdequeseu ferimento não esteja incomodandomuito. Ela agora está preocupadacomapatrulha,masestouavisando: se seumicrofone ficar foradoardenovopormaisdealgumashoras,eumandosoldadosatrásdevocê,mesmoqueissoarruíneseudisfarce.Entendido?

Eu me esforço para conter a irritação. A Comandante Jameson nãoacredita que eu possa fazer alguma coisa nesta missão, sua falta deinteresseestáevidenteemcadapalavradarespostadeThomas.QuantoaThomas… ele raramente fala tão firmemente comigo. Só posso imaginarcomodeveterficadoestressadonasúltimashoras.Entãoeurespondo:

–Sim,senhor.QuandoThomasnãoreage,olhodenovoparaogaroto.Insistocomigo

mesma para observá-lomais atentamente quando subir a escada, e paranãodeixarquemeuferimentomedistraia.

Guardoopingentenobolsodenovoemelevanto.

Observomeusalvadorodiatodo,enquantoosigopelosetorAltadeLosAngeles.Memorizotudo,mesmoquesejaumdetalhemínimo.

Por exemplo, ele dá preferência a andar com a perna esquerda. Elemancatãoligeiramente,quenãoperceboissoquandoestáandandoaoladodeTessedemim.Eusóreparoquandosesentaou levanta;háuma levehesitaçãoquandoeledobrao joelho.Ouéuma lesãogravequenunca securou,ouumalesãopequenamasrecente, talvezcausadaporumaquedafeia.

Essanãoésuaúnicacontusão.Devezemquandoeleestremecequandomoveobraço.Depoisdeelefazerissoumasduasvezes,perceboquedeveterumaespéciededistensãonoantebraço,quedóiquandoeleoestendemuitoparacimaouparabaixo.

Seu rosto é perfeitamente simétrico, uma linda combinação anglo-asiática, oculta pela terra e pelas manchas de sujeira. O olho direito éligeiramentemaisclarodoqueoesquerdo.Aprincípioachoquepossaseruma ilusão causada pela luz,mas fico observando quando passamos porumapadariaeadmiramosospães.Eumeperguntocomoele ficouassim,ouseédenascença.

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Observo também outras coisas: que ele conhece bem as ruas muitodistantesdosetorLake,eachoatéquepoderiaandarvendadonelassemseperder;queseusdedossãomuitoágeisquandoalisamaspregasnocósdasuacamisa;queeleolhaparaosedifícioscomosequisessememorizá-los.Tess nunca se refere a ele pelo nome. Da mesma forma que eles mechamamdeMenina,nãousamnadaqueidentifiquequemeleé.Quandomecanso e fico tonta de caminhar, o garoto nos para e vai pegar água paramimenquantodescanso.Eleécapazdeperceberminhaexaustãosemqueeupronuncieumapalavra.

Atardevemchegando.Fugimosdopiorcalordosolaoficarmospertodosvendedoresdomercado,naáreamaispobredoLake.Debaixodotoldoondeestamos,Tessestreitaosolhosparaasbarracas.Nósestamosamaisde cinco metros delas. Tess é míope, mas de alguma forma conseguedistinguirasdiferençasentreosvendedoresdefrutaseosdelegumes,osrostosdosdiversosvendedores,quemtemdinheiro,equemnão tem.Seidissoporqueperceboosmovimentossutisdorostodela,suasatisfaçãoaodistinguiralgo,ousuafrustraçãoaonãoconseguirfazerisso.

–Comovocêfazisso?–Pergunto.Tessolhaderelanceparamimeseuolharmudadefoco.–Quê?Fazeroquê?–Vocêémíope.Comoconseguevertantascoisasaseuredor?Tess fica surpresa por um instante, e depois, impressionada. Ao lado

dela,reparoqueogarotomeolharapidamente.Tessresponde:– Consigo distinguir as diferenças sutis entre as cores, embora elas

fiquem meio enevoadas. Consigo ver Notas de prata saindo da bolsadaquelehomem,porexemplo.

Elaolharapidamenteparaumdosfreguesesfalandocomumvendedor.Acenocomacabeçaparaelaedigo:–Vocêémuitoesperta.Tessenrubesceeolhaparaossapatos.Poruminstanteelaparecetão

suave que não consigo deixar de rir,mas namesma hora sinto remorso.Comopossoestarrindopoucodepoisdamortedomeuirmão?Essesdoistêmoestranhodomdemefazerperderapostura.

–Vocêémuitoobservadora,Menina–dizogaroto, tranquilamente.–Osolhosdeleestão fixosnomeu.–Entendobemporquevocêsobrevive

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nasruas.Euapenasdoudeombrosedigo:–Éaúnicaformadesobreviver,nãoé?Omeninodesviaoolhar.Soltoarespiração.Perceboquetinhaestado

semrespirarenquantoosolhosdelememantinhamparalisadanolugar.Eleprossegue:– Talvez você possa nos ajudar a roubar comida, e não eu. Os

vendedores sempre confiammaisnumagarota, especialmenteumacomovocê.

–Nãoentendioquervocêquisdizer.–Vocêémuitoobjetiva.Nãoconsigoevitarumsorriso,edigo:–Assimcomovocê.Quando paramos para observar as barracas, faço algumas anotações

parameuuso.Possomedar ao luxodepermanecer comestesdoismaisumanoite, até eume recuperaro suficientepara ir atrásde informaçõessobreDay.Quemsabeelesatémedeemumapista?

Quando a noite finalmente chega, e o calor do sol começa a diminuir,voltamosparaabeiradadaáguaeprocuramosumlugarparaacampar.Aonossoredorvejo luzesdevelaestremecendonas janelas,mesmonassemvidro,eportodoo ladooshabitantes locais fazempequenas fogueirasaolongodasbordasdosbecos.Novosturnosdepoliciaismunicipaiscomeçama fazer as rondas. Agora já são cinco noites em campo. Ainda não mehabituei às paredes desmoronadas, às fileiras de roupas usadaspenduradas nas varandas, ou aos grupos de jovensmendigos esperandoque os passantes lhes deem algo para comer. Porém, no mínimo, meudesprezodiminuiu.Relembro,envergonhada,anoitedofuneraldeMetias,quando deixei um enorme bife intocado no prato, sem hesitação. Tesscaminhaànossafrente,completamentealheiaaosarredores,comoandaralegreedespreocupado.Euaouçocantarolarbaixinhoumacanção.

–AValsadoEleitor–digoemvozbaixa–,reconhecendoacanção.Omeninomeolhadesoslaio,andandoaomeulado,edáumrisinho:–ParecequevocêéfãdaLincoln,nãoé?NãopossodizeraelequetenhotodososdiscosdaLincoln,bemcomo

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algunsobjetosautografados,nemquejáavicantarhinospolíticosaovivonumbanquetemunicipal,nemqueelacertavezescreveuumacançãoemhonradecadaumdosgeneraisdofrontdaRepública.Emvezdisso,apenassorrioeconcordo:

–É,sousim.Eleretribuimeusorriso.Seusdentessãoperfeitos,osmaisbonitosque

jávinestasruas.Elecomenta:–ATessadoramúsica.Elasempremearrastaparaosbaresdaquienos

fazesperardoladodeforaenquantoescutaoshinosqueestãotocandoládentro.Seinão,masachoqueissodevesercoisademulher.

Meiahoradepois,ogarotoreparadenovonomeucansaço.ChamaTessenoslevaparaumdosbecos,ondeumasériedegrandeslixeirasdemetalestãocolocadasentreduasparedes.Eleempurraumadelasparaafrente,paranosdarespaço,depoisseagachaatrásdela, fazsinalparaTesseeunossentarmos,ecomeçaadesabotoarajaqueta.

Fico vermelha que nem um tomate e agradeço a todos os deuses domundopelaescuridãoquenoscerca.

–Nãoestoucomfrionemsangrando–digoaele.–Podeficarvestido.Omeninomeolha.Euachavaqueseusolhosbrilhantesficariammenos

vivosànoite,maselesparecemrefletiraluzquevemdasjanelasacimadenós.Elebrinca:

–Quemdissequeestoufazendoissoparavocê,meubem?Eletiraa jaqueta,dobradireitinhoeacolocanochão,ao ladodeuma

dasrodasdalixeira.Tesssesentae,semamenorcerimônia,apoiaacabeçanajaqueta,comosefosseumantigohábito.

Pigarreioemurmuro,semgraça:–Éclaroquenão.–Ignoroarisadinhadogaroto.Tessselevantaeconversaconosco,maslogosuaspálpebrascomeçama

fechar,eelaadormececomacabeçanajaquetadogaroto.Eleeeuficamosemsilêncio.MeuolharseconcentraemTess.

–Elaparecetãofrágil–sussurro.–Verdade,masémaisresistentedoqueparece.Euolhoderelanceparaeleedigo:–Sorteasuaelaestarcomvocê.

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Meuolharsefixanapernadele,quepercebemeuolharerapidamenteendireitaapostura.

–Eladevetersidoútilquandocuidoudasuaperna.Elesedácontadequepercebiqueelemancaediz:–Não.Eufiqueiassimhámuitotempo.–Elehesita,depoisresolvenão

tocar mais no assunto e me pergunta: – A propósito, como está acicatrizaçãodeseuferimento?

Façoumgestodedesinteresseerespondo:– Nada demais – mas cerro os dentes quando falo isso. Andar o dia

inteironãoajudounada,eadorestávoltandofirmeeforte.Oadolescentevêatensãonomeurosto:– Vamos trocar as ataduras. – Ele se levanta e, sem incomodar Tess,

habilmentepuxaum rolo depanos brancosdobolsodela. –Não sou tãobomquantoela–murmura–,masprefironãoacordá-la.

Ele se senta ameu lado e abre dois botões daminha blusa, depois apuxaparacimaatéexporminhacinturacobertapelaatadura.Suapeleroçanaminha.Tentomantero foconasmãosdele.Ele tirado ladode trásdeumadassuasbotasoquepareceumafacacompactadecozinha,comcabode prata sem padrão e a beira desgastada. Ele deve tê-la usado muitasvezes, e o objeto deve ter cortado coisasmuitomais duras do que pano.Umadesuasmãosseapoianomeuestômago.Apesardeseusdedosteremcaloscausadospelosanospassadosnarua,sãotãocuidadososesuavesquesintoasbochechasquentes.

–Fiquebemquieta–elesussurra,colocandoafacaentreminhapeleeas ataduras, e rasga o pano. Eu me contraio. Ele tira a atadura do meuferimento.

MinúsculasgotasdesangueaindaescorremlentamentedeondeafacadeKaedemeatingiu,masfelizmentenãohásinaisdeinfecção.Tesssabeoquefaz.Ogarotoretiraorestodasatadurasdaminhacintura,jogaparaoladoecomeçaaaplicarnovasataduras.

–Vamos ficaraquiatéo finaldamanhã–elediz, enquantoexecutaatarefa. – A gente não devia ter viajado tanto hoje, mas acho que vocêconcordaquefoibomvocêficarbemdistantedopessoaldoSkiz.

Não consigo evitar de olhar para o rosto dele. Esse garoto deve terpassado raspando pela Prova, mas isso não faz sentido. Ele não se

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comportacomoumgarotoderuadesesperado.Temtantasfacetas,quemeperguntoseelesempremorounossetorespobres.Elemeolhaderelance,vêqueeuoestouanalisando,eparaporuminstante.Umaemoçãosecretasurgerapidamenteemseusolhos.Umlindomistério.Eledeveterperguntassemelhantessobremim,sobrecomosoucapazdeimaginartantosdetalhesde sua vida. Talvez esteja até se perguntando o que vou deduzir emseguida. Ele agora está tão perto do meu rosto, que consigo sentir suarespiração.Enguloemseco.Elechegamaisperto.

Poruminstante,achoquevaimebeijar.Masentãoelerapidamenteolhaparameuferimento.Suasmãosroçam

minhacinturaenquantoelecolocaaatadura.Perceboquesuasbochechastambémestãorosadas.Eleestátãoenvergonhadoquantoeu.

Finalmenteeleapertaaatadura,põeminhablusadevoltano lugar, erecua.Encostanaparedeatrásdemim,descansaosbraçosnos joelhosepergunta:

–Cansada?Sacudoacabeça.Meusolhosvagueiampelasroupaspenduradasláem

cima, a vários andares de altura. Se nós ficarmos sem ataduras, é lá quevamosconseguirpanoparaoutras.

– Acho que daqui a umdia já vou poder deixar vocês empaz – digo,apósalgumtempo.–Seiqueestouatrapalhando.

Sinto um certo pesar, mesmo enquanto as palavras saem da minhaboca. Estranho. Eu não quero deixá-los tão cedo. Há alguma coisa dereconfortante em estar com Tess e esse garoto, como se a ausência deMetiasnãotivessemetiradocompletamenteaspessoasquese importamcomigo.

Eunãodevoestarbatendobem.Esseéumgarotoqueveiodasfavelas.Fui treinada para lidar com caras assim, a observá-los do outro lado dovidro.

–Praondevocêvai?–Ogarotopergunta.Eumeconcentroeminhavozsaifriaeequilibrada:–Talvezparaoleste.Estoumaishabituadaaossetoressituadosmaisno

interior.Omeninomantémoolharparafrenteediz:–Vocêpodeficarmaistempocomagente,setudoquevaifazerébater

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pernapelasruasemoutrolugar.Umaboalutadoracomovocêpodeserútilamim. Podemos ganhar uma grana rapidinho em lutas de Skiz e dividirnossacomida.Vaisermelhorpratodomundo.

Ele apresenta sua ideia com tanta sinceridade, que tenho de sorrir.ResolvonãoperguntarporqueelemesmonãolutaSkiz,edigo:

–Obrigada,masprefirotrabalharsozinha.Eleficaimpassível,ediz:–Tudobem.Depois, encosta a cabeça na parede, suspira e fecha os olhos. Eu o

observoporuminstante,esperandoqueeleexponhaseusolhosbrilhantesnovamente, mas ele não o faz. Após um tempo, ouço sua respiração sefirmaresuacabeçapender,entãoseiqueeleadormeceu.

PensoemcontatarThomas,masnãoestouafimdeouvirsuavozagora.Não sei bem por quê. Amanhã de manhã, então, cedinho. Eu tambémencostoacabeçanaparedeefocalizoasroupaspenduradasacimadenós.Anãoserpelos sonsdistantesdas turmasdo turnodanoiteeocasionaistransmissõesnostelões,éumanoitesossegada,igualzinhaàsquepassoemcasa.OsilênciomefazpensaremMetias.

Tomo cuidado para que o somdomeu choro não acordeTess nemogaroto.

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DAY

EuquasebeijeiaMeninaontemànoite.Masnadadebompode resultar se você se apaixonarpor alguémnas

ruas.Essaé apior fraquezaque sepode ter, assimcomo teruma famíliapresanumazonadequarentenaouumaórfãderuaprecisandodevocê.

Mesmo assim… parte de mim ainda quer beijar essa garota,independentemente de poder ser uma pisada de bola. Essa Meninaconseguedetectarumdetalhenasruasadoisquilômetrosdedistância.“Aspersianas nas janelas do terceiro andar daquele prédio devem ter sidoretiradasdeumsetorrico.Amadeiraécerejeirasólida”.Comumafaca,emum arremesso apenas, ela pode atingir um cachorro-quente de umabarraca cujo vendedor não esteja presente. Percebo sua inteligência emtodasasperguntasqueelamefazeemtodasassuasobservações.Contudo,aomesmotempo,háumainocênciaqueatornacompletamentediferentedamaioriadaspessoasque conheci. Elanão é cínicanemcética.As ruasnãoadebilitaram,pelocontrário,adeixaramfortalecida.

Comoamim.Durante toda a manhã, procuramos mais oportunidades de ganhar

dinheiro:guardasingênuosdosquaispossamosbateracarteira,coisasemlixeiras para revender, caixotes não vigiados no píer para que possamosabri-los.Enquantoissoéfeito,buscamosumnovolocalparapassaranoite.Tento concentrar meus pensamentos no Éden, no dinheiro que precisoantesquesejatardedemais,mas,emvezdisso,começoapensaremnovasmaneiras de bagunçar a campanha de guerra da República. Eu poderiapegar carona num avião, extrair com um sifão seu precioso combustível,depoisvendernomercadooudividirentrepessoasqueprecisemdele.Eupoderiadestruircompletamenteaaeronave,antesqueelapartisseparaofront.OupoderiatambémmarcarcomoalvosasredeselétricasdeBatallaou os aeroportos, cortar a energia deles e impedi-los de operar. Essespensamentosmemantêmocupado.

Mas, de vez emquando, quando olho rapidamente para aMenina, ousintoqueelaestámeolhando,nãoconsigodeixardepensarnela.

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JUNEQUASE20H00.QUASE25º

Ogarotoeeuestamossentados ladoa ladonosfundosdeoutrobeco,enquantoTessdorme,aumapequenadistânciadenós.Ogarotodeuparaelasua jaqueta,denovo.Observoenquantoele lixaasunhasaoraspá-lascomapontada faca.Desta vez, tira o bonéda cabeça e penteia o cabeloemaranhado.

Eleestádebomhumor,emepergunta:–Querumgole?Uma garrafa de vinho doce está entre nós. É uma bebida barata,

provavelmentefeitadasuvasbrancassuavesquesãocultivadasemáguasoceânicas,masomeninoagecomoseessevinho fosseamelhorcoisadomundo.NofimdatardeeleroubouumacaixadegarrafasdeumalojadosetorWinterevendeutodas,menosesta,ganhandoumtotalde650Notas.Elenuncadeixademesurpreendercomarapidezcomquesemovimentaentreossetores.SuaagilidadeéequivalenteàdosprincipaisestudantesdaDrake.

Eurespondo:–Sevocêbeber,eutambémbebo.Nãopossodesperdiçarosprodutos

quevocêrouba,nãoé?Eledáumrisinho.Observoenquantoeleenfiaafacanarolhadagarrafa,

aretiraeviraacabeçaparatrásaotomarumgrandegoledabebida.Limpaoslábioscomopolegaresorriparamim:

–Umadelícia!Tomeumgole.Aceitopegandoagarrafaetomoumgolinhoantesdedevolvê-laaele.O

saborémeiosalgado,comoeupensava.Pelomenospodealiviaradorquesintodeumladodocorpo.

Continuamosnosalternando.Golesgrandesparaele,epequenosparamim,atéelevoltarapôrarolhanagarrafa,noinstanteemquepensaqueabebidaestáatrapalhandoasuapercepção.Mesmoassim,seusolhosestão

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maisbrilhantes,asírisazuisexpressamumreluzirencantadorereflexivo.Elepodenãoterperdidosuacapacidadedeconcentração,maspercebo

queovinhoodeixoumaisàvontade,porissoresolvoperguntar:–Meconteumacoisa:porquevocêprecisadetantodinheiro?Ogaroto

riediz:–Estáfalandosério?Queméquenãoquermaisdinheiro?Nuncasetem

obastante,nãoé?– Você gosta de responder às minhas perguntas fazendo perguntas

também?Eleridenovo,masquandofala,suavozsoatriste:–Dinheiro é a coisamais importantedomundo, guria.Dinheiropode

comprar felicidade,nãome importocomoqueosoutrosdizem.Dinheiropodecompraralívio,status,amigos,segurança…todotipodecoisas.

Observoseusolhosexpressaremalgodistanteedigo:–Masvocêestácommuitapressadejuntardinheiro.Destavezelemedirigeumolhardivertidoefala:–Eporqueeunãoestaria?Vocêprovavelmentevivena ruahá tanto

tempoquantoeu.Vocêdevesaberaresposta,certo?Olhoparabaixo.Nãoqueroqueelevejaaverdade.Digo:–É,podeser.Ficamossentadosemsilêncioporalgumtempo.O garoto então fala. Ao fazê-lo, seu tom de voz é tão terno, que não

consigodeixardeolharparaele.–Nãosei sealguém já tedisse isto.–Elenãoenrubesce,e seusolhos

não se desviam. Eu me vejo olhando fixamente para dois oceanos: umperfeito,ooutromanchadoporumaminúsculaondulação.Elecontinua:–Vocêémuitoatraente.

Jáfuielogiadaporminhaaparênciaantes,masnuncanessetomdevoz.De todas as coisas que ele disse, não sei por que essa me pegadesprevenida,masmeassustatanto,quedigo,impetuosamente:

– Posso dizer omesmo a seu respeito. – Faço uma pequena pausa. –Casovocênãosaiba.

Umrisinhomaliciososeespalhanorostodele,quediz:–Ah,nãosepreocupe,eusei.

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Eurio:–Ébomouviralgumacoisasincera.–Nãoconsigodeixardeencararo

olhar fixo dele. Finalmente, consigo acrescentar: – Sabe? Acho que vocêbebeuvinhodemais,meuamigo.–Mantenhoavozomaissuavepossível.–Achoqueumsoninhovaitefazerbem.

Mal as palavras saemdaminha boca, omenino se debruça naminhadireção e coloca a mão no meu rosto. Todo o meu treinamento deveriafazerquebloqueasseamãodeleeaprendessenochão,maseunadafaço,permaneçototalmenteimóvel.Elemepuxaparasi.Prendooarantesqueseuslábiostoquemosmeus.

Sinto o sabor do vinho nos lábios dele. Ele me beija suavemente aprincípioedepois,comoseestivessequerendomaisalgumacoisa,elemeempurra contra a parede e me beija com mais força. Seus lábios sãoquentes e muito macios, seu cabelo roça minha face. Eu tento meconcentrar.Estanãoéaprimeiravezdele,quecertamentejábeijououtrasmeninas,eeudiriaquemuitasmeninas.Ele…elepareceestarcomfaltadear. Os detalhes desaparecem. Tento agarrá-los, mas em vão. Levo uminstanteparaperceberqueeuoestoubeijandocomamesmaavidez.Sintoa facana sua cintura contraminhapele, estremeço.Aqui fazmuito calor,meurostodeveestaremfogo.

Ele se afasta primeiro. Nós nos olhamos fixamente, num silêncioespantado, como se nenhum dos dois pudesse entender o que acaba deacontecer.

Eleentãorecuperaapostura,eumeesforçopararecuperaraminha.Eleseencostanaparedeaomeulado,esuspira.

– Desculpe – elemurmura eme olhamaliciosamente. – Eu não pudeevitar,maspelomenosagoraacabou.

Continuo olhando firmemente para ele, ainda sem conseguir falar.Minha mente me impele fortemente a ordenar meus pensamentos. Omeninoretribuimeuolhar,depoissorri,comosesoubesseoefeitoqueeletem,entãodáascostas.Eurecomeçoarespirar.

É aí quevejoumgestoqueprovocaumsolavancoe fazminhamentevoltartotalmenteaolugar:antesdesedeitarparadormir,eletentapegarumacoisapenduradaaopescoço.Éummovimento tão inconsciente, queduvido de que ele se dê conta de tê-lo feito. Olho fixamente para seu

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pescoço,masnãovejonadapendurado.Elehaviaagarradoofantasmadeumcordão,ofantasmadeumacorrentinhaouumfio.

Eéentãoquemelembro,nauseada,docordãonomeubolso:opingentedeDay.

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DAY

Quando a Menina finalmente adormece, eu a deixo com Tess e vouvisitarminhafamílianovamente.Oarmaisfrescomedesanuviaacabeça.Quando estou a uma boa distância do beco, respiro fundo e apresso opasso.Eunão devia ter feito aquilo, digo amimmesmo.Eunãodevia terbeijadoaMenina.Principalmente,eunãodeviaestarcontentedeter feitoisso,masestou.Aindasintooslábiosdelanosmeus,apelemaciaegostosado rosto e dos braços dela, o ligeiro tremor de suas mãos. Já beijei umbocadodegarotasbonitasantes,masnãocomoessa.Euqueriaterbeijadomais.Nãoacreditoqueconseguimeafastar.

Doqueadiantouficarmelembrandoparanuncameapaixonarporumagarotadasruas.

EuagorameobrigoameconcentraremmeencontrarcomJohn.TentoignoraroestranhoXnaportademinhafamíliaevoudiretoatéastábuasdochãoaoladodavaranda.Velastremeluzempertodajanelaquebradadoquarto.Minhamãedeveestaracordadaatétarde,cuidandodoÉden.Eumeagachonaescuridãoporumtempo,olhoporcimadoombroparaasruasvazias,depoisempurroatábuaparaoladoecaiodejoelhos.

Alguma coisa se agita na sombra do outro lado da rua. Paro por umminutoeespreitoanoite.Nada.Comonãovejonadamais,abaixoacabeçaerastejodebaixodavaranda.

Johnestáaquecendoumasopanacozinha.Emitotrêspequenosapitosquesoamcomoosdeumgrilo.FaçoalgumastentativasantesdeJohnouvire se virar. Então saioda varanda emedirijo àportados fundosda casa,ondeencontromeuirmãonaescuridão.

– Tenho 1.600 Notas – sussurro. Mostro a ele a pochete. – Quase obastanteparaacura.ComoestáoÉden?

John sacode a cabeça. A ansiedade no rosto dele me irrita, porquesempreesperoqueelesejaomaisfortedenós.

– Nada bem – ele responde. – Emagreceu mais, porém está semprealerta,enosreconhece.Achoqueeletemmaisalgumassemanas.

Faço um aceno positivo com a cabeça. Não quero pensar napossibilidadedeperderoÉdenedigo:

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–Prometoquevouterodinheiroempoucotempo.Sóprecisodemaisumgolpedesorte,vouaohospital,eagentevaiteroremédioparaele.

–Vocêestá tendocuidado,certo?–elepergunta.Noescuro,podemospassar por gêmeos: temos o mesmo cabelo, os mesmos olhos, a mesmaexpressão. – Não quero que você se coloque em perigodesnecessariamente.Seháalgumjeitodeeuajudá-lo,ésódizer.Talvezeupossasairàsescondidascomvocêalgumasvezese…

Franzoatestaedigo:–Nãosejaburro.Seossoldadostepegarem,vocêstodosmorrem,você

sabe disso. – A expressão frustrada de John me faz sentir culpado porrecusartãorapidamenteaajudadele.–Eutrabalhomelhorassim.Sério.Émelhor que só um de nós esteja atrás do dinheiro. Você não vai fazernenhumbemàmamãeseformorto.

Johnacenacoma cabeça, emboraeupercebaqueelequerdizermaiscoisas,oqueeuevitoaomevirarparairembora:

–Precisoiragora.Agentesevêlogo.

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JUNE

Daydeveterpensadoqueadormeci,maseuovejoselevantaresairnomeio da noite, e então vou atrás. Ele penetra numa zona de quarentena,entra numa casa marcada com um X de três linhas, e reaparece váriosminutosdepois.

Étudoqueeuprecisosaber.Subo até o telhado de um prédio próximo. Quando chego lá, eu me

agachoàsombradeumachaminéeligoomicrofone.Estoucomtantaraivademimmesmaquenãoconsigoimpedirqueminhavozfiquetremida.Eumedeixei encantarpelaúltimapessoaporquemqueria.Aúltimapessoaporquemeuqueriasofrer.

TalvezDaynãotenhamatadoMetias,disseamimmesma.Talveztenhasidooutrapessoa.MeuDeus!Euagoraestouinventandojustificativasparadefenderessegaroto?

Agi como uma idiota como assassino deMetias. Será que as ruas doLake me transformaram numa débil mental? Será que acabei deenvergonharamemóriademeuirmão?

–Thomas–sussurro–,encontreiosujeito.Decorre um minuto de estática antes que eu ouça o Thomas me

responder.Quandoeleofaz,soaestranhamentealheio:–Poderepetirisso,Srta.Iparis?Ficomuitonervosa:–Eudisse que encontrei o cara, oDay. Ele acabade visitar uma casa

numadaszonasdequarentenadoLake,umacasacomumXdetrêslinhasnaporta.NaesquinadeFigueroacomWatson.

–Temcerteza?–Thomasestámaisalertaagora.–Estáabsolutamentecerta?

Tiroomedalhãodomeubolso:–Estou.Nãotenhoamenordúvida.Escutoumtumultodooutroladodalinha.Avozdeleficaanimada:–EsquinadeFigueroacomWatson.Éesseocasoespecialdepragaque

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tencionamosinvestigaramanhãdemanhã.AsenhoritaestácertadequeéoDay?–perguntadenovo.

–Estou!–Ambulânciasvãoaessacasaamanhã.Vamoslevarosmoradorespara

oHospitalCentral.–Entãomandemais tropas.Quero reforçoquandoDayaparecerpara

protegersuafamília.–LembrodaformacomoDayengatinhoudebaixodastábuasdochão.–Elenãovaitertempodetirarosparentesdelá,demodoque provavelmente vai esconder o pessoal na casa. Devemos levar todospara a ala hospitalar do Batalla Hall. Ninguém deve semachucar. Querotodoselesláparasereminterrogados.

Thomasficasurpresocomomeutomeconseguedizer:– A senhorita vai ter as tropas que quer. E espero sinceramente que

estejacerta.AsensaçãodoslábiosdeDay,nossobeijoardente,asmãosdeletocando

minhapele…issonãopodesignificarmaisnadaparamim.Menosquenada.–Euestoucerta.VoltoparaobecoantesqueDaydêporminhafalta.

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DAY

Naspoucashorasdesonoqueconsigoantesdoamanhecer,sonhocomminhacasa.

Pelomenos,pareceacasadequeeumelembro.Johnestásentadocomnossa mãe numa extremidade da mesa de jantar, lendo para ela contossobreaantigaRepública.Mamãefazumsinalpositivodeincentivocomacabeça,quandoelecheganofimdapáginasemtrocarpalavrasnemletras.Eusorrioparaelesdeondeestou,doladodaporta.Johnéomaisfortedenós,maseletemumacaracterísticaqueeunãoherdei,adeserpacienteesuave.Éumtraçodenossopai.Édenestárabiscandonumpapel,naoutraextremidadedamesa.Nosmeussonhos,Édenestásempredesenhando.Elenuncalevantaosolhos,masseiqueestáouvindoahistóriadeJohn,porquerinashorascertas.

EntãomedoucontadequeaMeninaestádepéameulado.Eusegurosuamão.Elamedáumsorrisoqueenchede luzasala,eeuretribuoseusorriso.

–Gostariaquevocêconhecesseminhamãe–digoaela.Elasacodeacabeça.Quandovoltoaolharparaamesadejantar,Johne

mamãecontinuamlá,masÉdendesapareceu.OsorrisodaMeninaesmaece,eelameolhacomolhostrágicos.–OÉdenmorreu–eladiz.Umasirenedistantemeacorda,comumsusto.Continuo deitado silenciosamente por um tempo, olhos abertos,

tentando respirar direito. Meu sonho está fortemente nítido na minhacabeça. Concentro-me no som da sirene para me distrair, mas depoispercebo que não estou ouvindo o som agônico normal de uma sirene depolícia,nemodeumaambulância.Éosomdeumaambulânciamilitar,asqueseusamparatransportarsoldadosferidosparaohospital.Émaisaltaeaguda do que as demais porque ambulâncias militares têm prioridademáxima.

Acontece que não temos soldados feridos voltando para Los Angeles.Elessãotratadosnafronteiradofront.Aoutracircunstânciaemqueessasambulânciassãousadaséparatransportarcasosespeciaisdepragaparaos

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laboratórios,devidoaseusmelhoresequipamentosdeemergência.AtéaTessreconheceosomepergunta:–Aondeelesestãoindo?–Sei lá–digo.Sento-meeretoeolhoemvolta.AMeninapareceestar

acordadajáfazalgumtempo.Elaestásentadaaalgunsmetrosdedistância,com as costas para a parede, os olhos observando a rua, o rosto sério econcentrado.Elaestátensa.

–Dia–digoaela.Meusolhossefixamrapidamentenoslábiosdela.Serámesmoverdadequeeuabeijeiontemànoite?

Elanãomeolha.Suaexpressãonãomuda.–Suafamíliaestácomaportamarcada,nãoestá?Tessaolha,surpresa.Olho fixamenteparaaMenina,semsaberoque

responder.ÉaprimeiravezquealguémquenãosejaTessmefaladaminhafamília.

–Vocêmeseguiuontemànoite.Digo a mim mesmo que deveria estar zangado, mas não sinto nada,

apenas confusão.Eladeve termeseguidopor curiosidade.Fico surpreso,naverdade,chocado,comosilênciocomqueelaconsegueselocomover.

MasalgumacoisaestádiferentenaMeninanestamanhã.Ontemànoiteela estava tão a fim de mim quanto eu dela, mas hoje ela está distante,retraída. Será que fiz alguma coisa para ela ficar tão arredia assim? AMeninameolhadiretamenteemepergunta:

–Épraissoquevocêestáeconomizandotodoessedinheiro?Paracurarapraga?

Elaestámetestando,masnãoseiporquê.–É–respondo.Porquevocêseinteressa?–Vocêestámuito atrasado– eladiz. –Porquehoje apatrulha contra

pragavaibuscarsuafamíliaelevartodoselesembora.

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JUNE

NãoprecisodizermuitomaisparaconvencerDayasemovimentar.Eassirenesdeambulância,quasecertamentedirigindo-seaFigueroaeWatson,vieramexatamentecomoThomasprometeu.

– Que é que você quer dizer? – pergunta Day. O choque ainda não oabalou. – Que é que você quer dizer com a patrulha contra praga vembuscarminhafamília?Comovocêsabe?

–Nãofaçaperguntas.Vocênãotemtempoparaisso.Euhesito.OsolhosdeDayparecemtãoaterrorizados,tãovulneráveis,

quederepenteprecisodetodaaminhaforçaparamentirparaele.Tentorecorreràraivaquesentiontemànoite:

–Vivocêvisitara zonadequarentenade sua famíliaontemànoiteeouvi alguns guardas comentando sobre a varredura de hoje. Elesmencionaram a casa com o X de três linhas. Émelhor você se apressar.Estoutentandoajudar,estoufalandosérioquandodigoquevocêprecisairatéláimediatamente.

Eu me aproveitei da maior fraqueza de Day. Ele não hesita, não sedetém para questionar o que eu disse, nem se pergunta por que eu nãoconteitudologoquesoube.Emvezdisso,selevantadeumsalto,localizaadireçãodeondeestãosoandoassirenes,esaicorrendodobeco.Sintoumasurpreendentepontadaderemorso.Eleconfiaemmim.Eleconfiaemmimde verdade, insensatamente, de todo o coração. Na verdade, não sei sealguémantesdeleacreditounoqueeudissetãoprontamente.TalveznemmesmoMetias.

Tess o observa ir embora com uma expressão de medo crescente, eexclama:

–Andalogo,vamosatrásdele!–Elasepõedepécomumpuloeseguraminhasmãos–Elepodeprecisardenossaajuda!

–Não–retruco.–Vocêespereaqui.Euvouatrásdele.Fiqueabaixadaesemfazerbarulho;umdenósvoltaráparabuscarvocê.

NemesperoarespostadeTess,começoadescerarua.Quandoolhoporcimadoombro,vejoTessdepénobeco,comosolhosfixosnaminhafigura

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quedesaparece.Resolvovoltar,masdepoismudodeideia:émelhordeixá-laforadisso.SeprendermosDayhoje,oquevaiacontecercomela?Douumestalidocomalínguaeligoomicrofone.

Por um instante, ouço a estática zunir em meu minúsculo fone deouvido,depoisescutoavozdeThomas:

–Contetudo.Queestáacontecendo?Ondeestávocê?– Day está indo para Figueroa eWatson nestemomento. Estou atrás

dele.Thomasengoleemseco:–Certo.Nossaunidademilitarjáestápronta.Vejovocêdaquiapouco.–Espereminhainstrução:ninguémdeveserferido…–começoadizer,

masaestáticainterrompeachamada.Corro velozmente rua abaixo.Meu ferimento lateja, protestando. Day

nãopodeestarlonge,elesaiumenosdemeiominutoantesdemim.TomoadireçãoquemelembrodetervistoDaytomarnavéspera:sul,indoparaaUnionStation.

Efetivamente, em pouco tempo vejo o boné velho de Day sesobressaindobemàminhafrentenamultidão.

Toda a minha raiva, medo e ansiedade se concentram em sua nuca.Precisome obrigar amanter distância suficiente entre nós, para que elenãodescubraqueoestouseguindo.Partedemimrecordaamaneiracomoelemesalvouda lutadeSkiz,queelemeajudouacuraro ferimentoqueardia em um lado do corpo, que suas mãos foram muito suaves. Querogritar comele.Queroodiá-lopormedeixar tão confusa.Meninoburro! Ésurpreendente que você tenha conseguido escapar do governo por tantotempo,masagoravocênãopode seesconder,nãoquandosua famíliaouamigosestãoemrisco.Eunão tenhonenhumasimpatiaporumcriminoso,lembroduramenteamimmesma.Tenhoumacertodecontasafazer.

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DAY

NormalmentesougratopelasmultidõesnasruasdoLake:éfácilentraresairdelas,despistandoquempossaestarmeseguindoouatrásdebriga.Jáperdiacontadonúmerodevezesqueuseiasruasatravancadasemmeubenefício. Hoje, porém, as pessoas estão me atrasando. Mesmo com umatalhoaolongodolago,estoucorrendopraticamenteàfrentedassirenesenãotereicomomeadiantarparachegaràcasadaminhafamília.

Nãoterei tempode tirá-losde lá,maspreciso tentar.Precisochegaraelesantesdossoldados.

De vez em quando paro, para ter certeza de que as ambulânciascontinuama ir na direção emquepensoque estão indo.Realmente, elasprosseguem em caminho reto até nosso bairro. Corro mais rápido. Nãoparonemmesmoquandoacidentalmenteesbarronumvelho.Eletropeçaecainacalçada.–Desculpe!–Grito.Elegritacomigo,masnãoousoperdertempoolhandoparatrás.

Estoutodosuadoquandomeaproximodanossacasa,aindasilenciosaevedada,comopartedaquarentena.Eumeesgueiropelosbecosdosfundosaté chegar à cerca em ruínas do nosso quintal. Então consigo entrar porumafendanacerca,empurroparaoladoatábuasolta,eengatinhodebaixodavaranda.Asmargaridinhasquedeixeidebaixodaventilaçãocontinuamlá, intocadas,mas já feneceramemorreram.Através das fendas do chão,vejominhamãesentadanacabeceiradeÉden.Johnestálavandoumpanodepratonumabaciapróxima.MeusolhossefixamrapidamenteemÉden.Eleparecepior, comose todaa cor lhe tivesse sido retiradadapele. Suarespiraçãoésuperficialeáspera,etãoalta,queconsigoouvi-laaqui.

Minhamente clamapor uma solução. Eupoderia ajudar John, Éden eminha mãe a fugir agora mesmo, e me arriscar a dar de cara com aspatrulhas contra praga ou os guardas municipais. Talvez pudéssemosencontrarrefúgionoslugaresemqueTesseeucostumamosnosesconder.Johneminhamãesãocertamentefortesobastanteparacorrer,mascomoÉden poderia acompanhar o ritmo deles? John conseguiria carregá-loapenasduranteumcertoperíodo.Talvezeupossaencontrarummeiodecolocá-los furtivamente num trem de carga, e ajudá-los a fugir para o

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interioraté…algumlugar,seilá.SeaspatrulhasjáestãoatrásdeÉden,ascoisas não vão piorar se John emamãe simplesmente abandonarem seuemprego e fugirem. De qualquer forma, eles estão de quarentena. Eupoderiaajudá-losachegaraoArizonaoutalvezaoTexasOcidental,então,depois de certo tempo, talvez as patrulhas não se preocupem mais emprocurá-los. Além do mais, para começo de conversa, eu talvez estejaenganado.QuemsabeaMeninaestáerrada,easpatrulhasnãoestãovindopegarminha família? Eu posso continuar economizando para comprar oremédiocontraapragaparaoÉden.Todaessaminhaansiedadetalvezsejaàtoa.

Mas,àdistância,ouçoasirenedaambulânciacadavezmaisalta.EstãovindopegaroÉden.Tomoumadecisão.Saiodequalquerjeitodedebaixodavarandaeme

apresso até a porta dos fundos. Daqui consigo escutar as ambulânciasmuito mais claramente. Elas estão se aproximando. Abro a portas dosfundosesubocorrendoospoucosdegrausquelevamànossasaladeestar.

Respirofundo.Abroaportacomumpontapé,ecorroparaaluz.Minha mãe solta um grito assustado. John gira o corpo na minha

direção.Ficamosuminstanteparadosnosolhando,semsaberoquefazer.–Qualéoproblema?–Orostodeleficalívidoaoverminhaexpressão.–

Oquevocêestáfazendoaqui?Queaconteceu?Ele tenta firmar a voz,mas sabe que alguma coisa estámuito errada,

algumacoisatãogravequemeforçouamerevelarparaafamíliainteira.Tiro meu boné desgastado da cabeça. Meu cabelo cai de repente na

minhatesta,numaconfusãosó.Mamãepõeamãocomataduranafrentedaboca.Seusolhosmostramdesconfiança,depoissearregalam.

–Soueu,mamãe.ÉoDaniel.Observo várias emoções lhe passarem pelo rosto: descrença, alegria,

confusão,antesqueeladêumpassoàfrente.SeusolhossefixamemJohneemmim.Nãoseidizeroqueadeixamaisatônita, seéo fatodeeuestarvivooudeJohnparecerquejásabiadisso.

–Daniel?–Elasussurra.É estranhovê-lapronunciandomeuantigonomedenovo.Corropara

pegarasmãosferidasdemamãe.Elastrememeeudigo:

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–Nãohátempoparaexplicaçõesagora.Tento ignorar a expressão dos olhos dela. Outrora eles eram azuis e

brilhavam,exatamentecomoosmeus,masodesgostoosesmaeceu.Comoencararminhamãe,quemejulgavamortohátantosanos?Eudigo:

–EstãovindopegaroÉden.Vocêstêmdeescondê-lo.–ÉmesmooDaniel?–Seusdedos tiramocabelodosmeusolhos.De

repente,volteiaserseumenininho.–MeuDaniel,vocêestávivo!Issodeveserumsonho.

Euapegonosombrosedigo:– Escute, mamãe. A patrulha contra praga está chegando, com uma

ambulânciamilitar.SejaláqualforovírusqueoÉdentem,elesvãolevá-lo.Temosdeescondervocêstodos.

Elameobservauminstante,depoisconcordacomacabeça,emelevaàcamadeÉden.DepertopossoverqueosolhosescurosdeÉden,dealgumaforma, agora são negros. Não há nenhum reflexo neles, me dou conta,horrorizado,queelesestãonegrosporqueasírisestãosangrando.Mamãee eu cautelosamente ajudamos Éden a se sentar. Sua pele está ardendo.John suavemente o levanta e o põe nos ombros, sussurrando palavrastranquilizadorasaofazê-lo.

DagargantadeÉdensaiumchorinhodolorido,suacabeçasependura,frouxamente,paraumlado,eencostanopescoçodeJohn.

–Ligueosdoiscircuitos–elediz.As sirenes lá fora continuam a tocar. Devem estar a menos de dois

quarteirões.Trocoumolhardesesperadocomminhamãe.–Debaixodavaranda–elasussurra.–Nãotemostempodefugir.NemJohnnemeuacontrariamos.Mamãeapertaminhamãocomforça.

Saímospelosfundos.Paroporumminutoláfora,verificandoadireçãoeadistânciadaspatrulhas:elasestãoquasechegando.Corroparaavarandaedeslizoatábuaparaumlado.

Mamãemurmura:–Édenprimeiro.John ajusta Éden em seu ombro, depois se ajoelha e engatinha até

entrar no lugar. Em seguida eu ajudo mamãe, depois entroprecipitadamenteatrásdeles,limpoqualquermarcaquetenhamosdeixado

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na terra, e cuidadosamente coloco a tábua de volta no lugar. Espero quesejaobastante.

Nósnosamontoamosnocantomaisescuro,ondemalconseguimosnosver.Olhofixamenteparaosraiosdeluzquepassampelasventilações.Elesdividem o chão de terra em pedaços, e só consigo distinguir asmargaridinhas amassadas. As sirenes da ambulância soam distantes porummomento. Estão fazendo a volta em algum lugar. Então, de repente,ficamensurdecedoras.Botaspesadassãoouvidasemseurastro.

Malditos infelizes! Pararam do lado de fora da nossa casa e estão sepreparandoparaentraràforça.

– Fiquem aqui – murmuro. Torço meu cabelo em cima da cabeça edepoisometodevoltanoboné.–Voudespistaressescaras.

–Não–dizJohn.–Nãovoltelá,émuitoperigoso.Sacudoacabeçaedigo:–Émuitoperigosoparavocêsseeuficar.Confiememmim.Olhorapidamenteparaminhamãe,queestáseesforçandoaomáximo

para controlar o medo, enquanto conta uma história ao Éden. Eu melembrodecomoelapareciasemprecalmaquandoeuerapequeno,comsuavozsuaveesorrisogentil.FaçoumsinalcomacabeçaparaJohn,edigo:

–Voltorapidinho.Láemcima,ouçoalguémbaternaportaeumavozgritar:–Patrulhacontrapraga!Abramaporta!Corro até a tábua solta, cuidadosamente ponho-a de lado alguns

centímetros, depoismeesgueiro e saio.Reponho cautelosamentea tábuano lugar.A cercadanossa casame impedede ser visto,mas atravésdasfendaspossoverossoldadosesperandodoladodeforadaporta.Precisoagir rapidamente.Elesnãodevemestaresperandoalguémrevidaragora,especialmentealguémquenãopodemver.Voudepressaeemsilêncioparaosfundosdanossacasa,consigomeapoiarfirmementenumtijolosolto,eme arremesso para cima. Agarro a beira do nosso telhado, depois giro ocorpoesubonele.

Os soldados não conseguem me ver aqui, por causa de nossa largachaminéedassombras lançadaspelosedifíciosmaisaltosanossoredor.Mas eu tenhoumaboa visãodeles.Na verdade, a visãome faz parar.Háalgumacoisaerrada.Temospelomenosumapequenapossibilidadecontra

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uma patrulha contra praga, mas há muito mais do que uma dúzia desoldadosemfrenteànossacasa.Contopelomenosvinte,talvezmais,todoscommáscarasbrancaspresasfirmementeemvoltadaboca.Algunstêmnorosto máscaras completas contra gases. Dois jipes militares estãoestacionadospertodaambulância.Emfrenteaumdeles,umaoficialdealtapatenteestáesperando,comuniformeornadoporfranjasvermelhaseumquepedecomandante.Aseuladoestáumrapazdecabelopreto,vestindoumuniformedecapitão.

Eàfrentedele,imóvelesemproteção,estáaMenina.Franzo o rosto, confuso. Eles devem tê-la prendido, e agora a estão

usandoparaalgumacoisa.IssoquerdizerquedevemterapanhadoaTesstambém.Procuronamultidão,masnãovejoTess.Viro-medenovoparaaMenina.Elaestácalmaeimperturbável,mesmocomomardesoldadosqueacercam.Elaapertasuamáscaraemredordaboca.

Eentão,numafraçãodesegundo,perceboporqueaMeninatinhameparecido tão familiar: seus olhos. Aqueles olhos escuros, com tonsdourados.OjovemcapitãochamadoMetias.Osujeitodequemescapeinanoiteemque invadioHospitalCentraldeLosAngeles.Ele tinhaosolhosexatamentecomoosdela.

Metias deve ser parente dela. Como ele, ela também trabalha para osmilitares.Nãopossoacreditarnaminhaburrice.Eudeveriaterpercebidoisso antes. Rapidamente examino o rosto dos outros soldados,perguntando-me se o próprio Metias também está presente, mas vejoapenasaMenina.

Elesamandaramparameachar.Eagora,porcausadaminha idiotice,elamerastreoudiretamenteaté

minha família. Talvez tenha até matado Tess. Fecho os olhos. Eu haviaconfiadonessamenina, tinha até sido induzido a beijá-la. E atémesmo agostardela.Essepensamentomedeixaloucoderaiva.

Umbarulhoaltorepentinovemdanossacasa.Ouçogritoseberros.Ossoldados os encontraram. Eles quebraram as tábuas do chão e osarrastarampara fora.Desça já para lá! Por que você está escondido nestetelhado?Ajudesuafamília!Masissosóserviriapararevelarnossarelação,eodestinodelesestariadefinido.Meusbraçosepernasficamparalisados.

Então, dois soldados com máscaras de gás surgem por trás da casa,

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arrastandominhamãe.BempertodeleshásoldadoscontendofortementeJohn,quegritaparaqueelesdeixemnossamãeempaz.Doismédicossaemporúltimo.ElasprenderamÉdenaumamaca,queestãoempurrandoatéaambulância.

Precisofazeralgumacoisa.Domeubolso,tiroastrêsbalasdeprataqueTessme deu, as três balas obtidas naminha invasão do hospital. Ponhoumadelasnomeuestilingueimprovisado.Alembrançadequandoeutinhasete anos e arremessei a bola de neve em chamas na sede da políciamevemàcabeça.ApontooestilingueparaumdossoldadosqueseguramJohn,puxoomáximoquepossoparatrás,eatiro.

Ele raspa o pescoço dele com tanta força, que vejo sangue sairprovocadopeloimpacto.Osoldadocai,eagarrafreneticamenteamáscara.Nomesmoinstante,outrossoldadosapontamasarmasparaotelhado.Euestouagachado,imóvel,atrásdachaminé.

AMeninadáumpassoàfrenteediz:–Day!–Suavozressoanarua.Devoestardelirandoporquecreio ter

percebido solidariedade na sua voz. – Eu sei que você está aqui, e seitambémporquê.

Ela aponta para John e minha mãe. Éden já desapareceu dentro daambulância.

Agora minha mãe sabe que sou o criminoso que ela vê em todos osalertas nos telões, mas eu não digo nada. Ponho mais uma bala noestilingueeoapontoparaaMenina.

–Vocêquersuafamíliaasalvo,eucompreendoisso–elacontinua.–Eutambémqueriaqueminhafamíliaestivesseasalvo.

Eurecuomeubraço.AvozdaMeninaficamaissuplicante,eatéurgente:–Euestoudandoumaoportunidadedesalvarsuafamília.Entregue-se,

porfavor.Ninguémvaisemachucar.Um dos soldados perto dela levanta sua arma. Por instinto, giro o

estilingueparaeleedisparo.Abalaoatingebemno joelhoe fazqueelecaiaparaafrente.

Os soldados disparam uma saraivada de balas contra mim. Eu meescondoatrásdachaminé.Fagulhasvoamportodaparte.Cerroosdentesefechoosolhos.Nãopossofazernadanestasituação.Estouimpotente.

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Quandootiroteiopara,olholáparabaixoevejoaMeninaaindalá.Suacomandantecruzaosbraços.EaMeninanãosemove.

Então vejo a comandante dar um passo à frente. Quando a Meninacomeçaaprotestar,elaaempurraparaolado.

–Vocênãopode ficaraíparasempre–gritaacomandanteparamim.SuavozémuitomaisfriaqueadaMenina.–Eseiquevocênãovaideixarsuafamíliamorrer.

Ponhoaúltimabalanoestilingueemirodiretamentenacomandante.Elasacodeacabeçaquandonãodigonada.– Tudo bem, Iparis – ela diz à Menina. – Tentamos sua tática, agora

vamostentaraminha.–Elaseviraparaocapitãodecabelopreto,fazumsinalcomacabeçaediz:–Acabecomela.

Nãotenhotempodeimpediroqueaconteceemseguida.Ocapitãolevantaaarma,aponta-aparaminhamãe,entãoatiraemsua

cabeça.

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JUNE

AmulheremqueThomasatiraaindanemcaiunochãoquandovejoogarotoselançardotelhado.Ficoparalisada.Estátudoerrado.Nãoeraparaninguém se machucar. A Comandante Jameson não me informou quepretendia matar alguém da casa. Nós devíamos levar os moradores aoBatalla Hall, para serem presos e interrogados. Meus olhos se fixamrapidamenteemThomas,emeperguntoseelesenteomesmohorrorqueeu,maselepermaneceimpassível,comaarmaaindanamão.

–Seguremessegaroto!–Grita Jameson.Omeninocaiemcimadeumsoldadoeoderrubanochão,comumanuvemdesujeira.–Vamoslevá-lovivo!

OmeninoqueagoraseiserDayemiteumgritoagudo,eatacaosoldadomais próximo quando eles o cercam. De alguma forma, ele consegueagarraraarmadomilitar,maslogooutrosoldadoatiradesuasmãos.

AComandanteJamesonolhaparamimetiraapistoladocinto.–Comandante,nãofaçaisso!–Gritodesúbito,masamulhermeignora.

ImagensdeMetiasmepassampelacabeça.–Nãovouesperarqueelematemeussoldados–elaretruca,edepois

miraapernaesquerdadeDayedispara.Euestremeço.Abalaerraoalvo.Elatinhamiradoarótula.Masatingeacarnedaparteexteriordacoxa.Daygritadeagonia,depoiscaiemmeioaumcírculodesoldados.Seubonécaida cabeça. Seu cabelo louro se espalha. Um soldado o chuta com força obastanteparadeixá-loforadeação.Depoisossoldadosoalgemam,vendameamordaçam,eoarrastamatéumdosjipesàespera.Demoroumminutoparaconcentrarminhaatençãonooutroprisioneiroque tiramosdacasa,umrapazquedeveserirmãoouprimodeDay.Elegritaalgoininteligível.Ossoldadosoempurramparadentrodosegundojipe.

Thomas me dá um olhar de aprovação, mas a Comandante Jamesonapenasfranzeatestaparamimediz:

–EntendoporqueaDraketechamoudeencrenqueira.Istoaquinãoéumafaculdade.Nãosequestionaasminhasações.

Parte demimquer pedir desculpas,mas estou impressionada demaiscomoqueaconteceu,commuitaraiva,ansiosaoualiviada.

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–Enossoplano?Comandante,comodevidorespeito,nãodiscutimosamortedecivis.

AComandanteJamesonriironicamenteediz:– Ah, Iparis! Passaríamos a noite inteira aqui, se negociássemos. Viu

comofoitudomaisrápido?Emuitomaispersuasivoparanossoalvo.–Eladesvia o olhar. – Não importa. Está na hora de você entrar num jipe evoltarmosaoquartel-general.

Ela fazummovimentorápidocomamão,eThomasgritaumaordem.Osoutrossoldadosseapressamparacomporsuasformações.Elasobenoprimeirojipe.

Thomasseaproxima,mecumprimentacomoquepe,dizendo:–Parabéns, June.–Elesorri.–Vocêrealmenteconseguiu.Espetacular

suamaneiradeagir.VocêviuaexpressãonorostodoDay?Vocêacaboudematarumapessoa!NãoconsigoolharparaThomas.Não

consigoperguntarcomoelesuportacumprirordenstãopassivamente.Meuolhar se dirige para onde está o corpo damulher na calçada.Médicos jácercaram os três soldados feridos, sei que eles serão colocadoscuidadosamentenaambulânciaelevadosdevoltaaoquartel-general,maso cadáver da mulher jaz sozinho, abandonado. Algumas cabeças nosespreitam das outras casas da rua. Algumas delas veem o corpo erapidamente dão as costas, enquanto outras olham timidamente paraThomas e paramim. Uma pequena parte demim quer sorrir à visão dasenhoraimóvel,quersentiraalegriaporcausadamortedemeuirmãotersidovingada.Façoumapausa,masnãosintonada.Minhasmãosseabremefechamcomforça.Apoçadesanguedebaixodamulherestácomeçandoamedeixarnauseada.

Euficomedizendo:Lembre-sequeDaymatouMetias,DaymatouMetias,DaymatouMetias.

Aspalavrasressoamocaseincertasnaminhacabeça.– Pois é –, digo aThomas.Minha voz soa como a de uma estranha. –

Achoqueconseguimesmo.

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Parte2

AMENINAQUEESTILHAÇA

OVIDRORELUZENTE

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DAY

O mundo está enevoado. Lembro-me de armas e vozes altas, e dorespingo de água gelada naminha cabeça. Às vezes reconheço o som deuma chave virando numa fechadura, ou o cheiro metálico de sangue.Máscarasdegásolhamparamim.Alguémnãoparadegritar.Umasirenedeambulância, de sompungente, não cessa de soar. Quero desligá-la, e ficotentando achar o interruptor, mas meus braços estão estranhos. Nãoconsigomovê-los.Umadorterrívelnaminhapernaesquerdaumedecedelágrimasmeusolhosefaces.Talvezminhapernainteiraestejaperdida.

Visualizo várias vezes omomento em que o capitão atirou naminhamãe, como se fosse um filme que congelou na mesma cena. Nãocompreendoporqueela está tão imóvel.Grito a elaque semexa,que seesquive,quefaçaqualquercoisa,maselacontinuaparadaatéqueabalaaatinge,eelatombanochão.Seurostoestáapontadoparamim,masaculpanãoéminha,nãoé.

O que estava enevoado entra em foco após uma eternidade. Quantotemposepassou?Quatrooucincodias?Ummês,talvez?Nãotenhoideia.Quandofinalmenteabroosolhos,vejoqueestounumacelapequenaesemjanelas,comquatroparedesdeaço.Soldadosestãodepénosdoisladosdeumaporta pequena, semelhante à de um cofre-forte. Façouma careta dedor.Minhalínguaestárachadaecompletamenteseca.Lágrimassesecaramnaminhapele.Umacoisaquedáasensaçãodealgemasdemetalprendeminhasmãoscomforçanoespaldardeumacadeira,levouminstanteparame dar conta de que estou sentado. Meu cabelo cai no rosto em tiraspegajosas.Sanguemanchaminhajaqueta.Ummedosúbitotomacontademim:Meuboné.Estoutotalmenteexposto.

Então sinto dor na minha perna esquerda. É a pior que já tive, pioraindadoqueaprimeiravezemquemecortaramnaquelejoelho.Começoasuar frio e vejo estrelas cintilarem nos cantos dos meus olhos. Nessemomento, eu daria qualquer coisa por um analgésico ou por gelo, paraextinguir o ardor naminha coxamachucada, ou atémais uma bala paraacabardevezcomminhainfelicidade.Tess,precisodevocê.Ondeéquevocêestá?

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Quando ouso olhar para minha perna, porém, vejo que está envoltanumaataduraapertadaeencharcadadesangue.

Umdossoldadosreparaqueestoumemexendo.Elecomprimeamãocontraaorelhaediz:

–Eleacordou,senhora.Minutosdepois,talvezhoras,aportademetalseabreeacomandante

queordenouamortedeminhamãeentranacela,comgrandespassadas.Estávestindoseuuniformecompleto,commantoetudo,esuainsígniadetrêssetasreluzsobasluzesfluorescentes.Eletricidade.Estounumprédiodogoverno. Ela diz alguma coisa para os soldados no outro lado da porta,depoisafechadenovo,entãocaminhavagarosamente,esorrindo,atéondeestou.

Nãoseiseanévoavermelhaquemeembaçaavisãoécausadapeladornaminhaperna,oupelafúriadapresençadela.

A comandantepara à frentedaminha cadeira, inclina-se atépertodomeurosto,ediz:

–Meu caro rapazinho. – Percebo a ironia em sua voz. – Fiqueimuitoanimadaquandomedisseramquevocêestavaacordado.Euprecisavavirvê-lopessoalmente.Vocêtemmuitasorte:osmédicosdizemquevocênãoestáinfectadopelapraga,mesmodepoisdeterpassadoalgumtempocomaquelebandoinfectadoquevocêchamadefamília.

Eu me mexo rapidamente para trás e cuspo nela. Mesmo essemovimentoésuficienteparafazerminhapernatremerdetantador.

–Vocêéumgaroto lindo. –Elamedáumsorrisovenenoso. –Éumapenaquetenhaescolhidoumavidadecriminoso.Sabequevocêpoderiatersetornadoumacelebridadeporseuprópriomérito,comumrostodesses?Seriavacinadogratuitamentecontraapragatodososanos.Nãoseriabom?

Eu seria capaz de arrancar a pele de seu rosto nesseminuto, se nãoestivesseamarrado.

–Ondeestãomeusirmãos?–Minhavozsoatristeerouca.–OquevocêfezcomoÉden?

Acomandanteapenassorridenovoeestalaosdedosparaossoldadosatrásdela.

–Acreditequandodigoqueadorariaficarparabatermosumpapo,mastenhodeconduzirumasessãodetreinamento.Háumapessoamuitomais

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ansiosa para ver você do que eu. Vou deixar que ela assuma daqui parafrente.

Amulhersaisemdizermaisnenhumapalavra.Então vejo outra pessoa, alguém menor, com uma estrutura mais

delicada,entrarnacelacomoruídodeumacapanegra.Demoroumminutopara reconhecê-la. Não está mais usando calças rasgadas nem botaslamacentas,enãoháterraemseurosto.AMeninaestálimpaearrumada,como cabelopretopuxadopara trásnumrabode cavalo alto e lustroso.Veste um uniforme elegante, dragonas douradas brilham do alto de suavestimentamilitar commanto, cordas brancas lhe circundamos ombros,uma insígniacomumasetaduplaestágravadaemambasasmangas.Seumantovaiatéospés,etemumafaixapretaedourada.Umnórequintadoprendeaparte superiorda capa firmementeno lugar.Fico surpresocomsua aparência jovem, ainda mais jovem do que quando a conheci.CertamenteaRepúblicanãodariaaumagarotadaminhaidadeumpostotãoelevado.Olhoparasuaboca:osmesmoslábiosquebeijeibrilhamcomum tom suave de gloss. Um pensamentomeio doidome vem à cabeça etenhovontadederir.Seelanãotivesseprovocadoamortedaminhamãeeaminhacaptura,seeunãodesejassequeelaestivessemorta,euaachariaabsolutamentedeslumbrante.

Eladeveterpercebidooreconhecimentoemmeurosto.– Você deve estar tão emocionado quanto eu estou por nos

reencontrarmos.Podeatribuiraumgestodeextremabondadedaminhaparteeuterpedidoquepusessemumaataduraemsuaperna–eladizderepente. – Quero ver você de pé quando for executado, não quero quemorradeinfecçãoantesdeeuacabarcomvocê.

–Valeu!Vocêémuitogentil.Elaignorameusarcasmoediz:–QuerdizerquevocêéoDay.Ficoemsilêncio.AMeninacruzaosbraçosemeolhademodopenetrante:–Mas suponho que eu deva te chamar de Daniel. Daniel AltanWing.

ConseguiextrairessainformaçãodoseuirmãoJohn.À menção do nome de John, eu me inclino para frente e no mesmo

instantelamentoterfeitoisso,quandominhapernaexplodededor:

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–Falelogo!Ondeestãomeusirmãos?Aexpressãodelanãomuda,elanemsequerpisca:–Vocênãoprecisamaissepreocuparcomeles.Ela dá vários passos à frente. São passos firmes, indubitavelmente,

passosdaelitedaRepública.Elaosdisfarçavaincrivelmentebemnasruas.Issomedeixamaisiradoainda.

– Eis como a coisa funciona, Sr. Wing. Vou fazer uma pergunta, e osenhorvaimeresponder.Vamoscomeçarcomumaperguntafácil:qualasuaidade?

Euolhofixamenteparaelaedigo:–Eununcadevia tê-lasalvadodaquela lutadeSkiz.Devia terdeixado

quemorresse.AMeninaolhaparabaixo,depoistiraumaarmadocintoemebatecom

forçanorosto.Porumsegundosóconsigoverumaluzbrancaofuscante.Ogostode sanguemeencheaboca.Ouçoumclique, logodepoisummetalfrionasminhastêmporas.

–Resposta errada. Vou ser bem clara. Se vocême der outra respostaerrada, vougarantirquevocêouçadaquiosgritosdo seu irmão John. Sevocême responder errado pela terceira vez, seu irmãozinho, Éden, podepartilharomesmodestino.

John eÉden. Pelomenos ambos estão vivos. Então percebo, pelo somocodocliquedasuaarma,queaarmanãoestácarregada.“Aparentementeelasóquermebater.”

AMeninanãoafastaaarma.–Quantosanosvocêtem?–Quinze.–Assimémelhor.–AMeninaabaixaorevólverumpouco.–Éhorade

algumasconfissões.VocêfoioresponsávelpelainvasãodobancoArcádia?Olugarqueinvadiemdezsegundos:–Fui.–Entãovocêdevetambémseroresponsávelpeloroubode1.650Notas

delá.–Éissomesmo.– Você foi o responsável por vandalizar o Departamento de Defesa

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Internahádoisanos,edestruirosmotoresdedoisaviõesdofront?–Fui.–VocêincendiouumasériedecaçasF-472estacionadosnabaseaérea

deBurbankpoucoantesdeelesrumaremparaofront?–Issoaímedeixouatéorgulhoso.– Você agrediu um cadete que estavamontando guarda na divisa da

zonadequarentenadosetorAlta?–Euamarreiocaraeleveicomidaparaumasfamíliasqueestavamde

quarentena.Medeixeempaz.AMenina despejamais alguns dosmeus delitos passados, alguns dos

quais eumalme lembro. E depois ela indaga sobremais um crime,meuúltimo:

– Você foi o responsável pela morte de um capitão da patrulhamunicipalduranteumaincursãonoHospitalCentraldeLosAngeles?Vocêroubousuprimentosmédicoseinvadiuoterceiroandar?

Levantooqueixoedigo:–OcapitãochamadoMetias.Elameolhafriamenteediz:–Issomesmo.Meuirmão.Ah!Éporissoqueelameperseguiu.Respirofundoedigo:–Seuirmão.Eunãoomatei,eunãopoderiaterfeitoisso.Aocontrário

devocês,idiotasqueadoramdispararumgatilho,eunãomatopessoas.AMeninanãoresponde.Ficamosnosolhandoummomento.Sintouma

estranhasensaçãodesolidariedade,masrapidamenteaafasto.NãopossoterpenadeumaagentedaRepública.

Elasedirigeaumdossoldadosaoladodaporta:–Oprisioneirona6822.Decepeosdedosdasmãosdele.Avanço subitamente para frente, mas as algemas e a cadeira me

impedem.Minhapernaexplodededor.Nãoestouhabituadoaquealguémtenhatantopodersobremim.Eugrito:

– Sim, eu fui o responsável pela invasão! Mas estou sendo sinceroquandodigoquenãoomatei.Admitoqueoferi,porqueeuprecisavafugireele tentoumedeter.Mas não há como a faca que atirei nele ter causadomais do que um ombro machucado. Por favor, vou responder às suas

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perguntas.Atéagorajárespondiatudoquevocêmeperguntou.AMeninameolhadenovo:–Nadamaisdoqueumombromachucado?Vocêdeviaterverificado.Seusolhosexpressamprofundafúria,emeassustam.Tentolembrarda

noite em que enfrentei Metias, do momento em que ele tinha a armaapontadaparamim,eeu,minhafacaapontadaparaele.Euatireia facaeelaatingiuoombrodele,tenhocerteza.

Tenhomesmo?Apósuminstante,elamandaosoldadonãofazernada.– De acordo com os bancos de dados da República – ela continua –

DanielAltanWingmorreuhácincoanos,devaríola,numdenossoscamposdetrabalho.

Dou um risinho de desdém ao ouvir isso. Campos de trabalho, é? Meenganaqueeugosto.EoEleitoréeleitolegalmenteemtodososmandatostambém. Essamenina acredita de verdade nessa bosta que inventam, ouestáquerendomesacanear.Umaantigalembrançavemàtona,umaagulhainjetadanumdosmeusolhos,umamacademetalfrioeumaluzacimadaminhacabeça,masdesaparecerapidamente.

–Danielestámorto–respondo.–Euodeixeiparatráshámuitotempo.–Achoqueissofoiquandovocêcomeçousuafarracriminosanasruas,

hácincoanos.Parecequevocêsehabituouasedarbemcomseusdelitos.Começouabaixaraguarda,foi?Vocêjátrabalhouparaalguém?Alguémjátrabalhouparavocê?VocêjáfoiafiliadoaosPatriotas?

Sacudo a cabeça. Uma pergunta apavorante me vem à cabeça, umaperguntaquetenhomuitomedodefazer:OquefoiqueelafezcomaTess?

–Não.Elestentarammerecrutar,masprefiroagirsozinho.– Como você escapou dos campos de trabalho? Como você acabou

aterrorizando Los Angeles, quando devia estar trabalhando para aRepública?

Então é isso que a República pensa das crianças que não passam naProva.

–Oqueinteressa?Estouaquiagora.Destavezconsigo irritaraMenina.Elachutaminhacadeirapara trás,

aténãopoderavançarmais,depoisbateminhacabeçanaparede.Estrelas

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meembaçamavisão.– Vou dizer por que interessa – ela diz, sibilando e com raiva. –

Interessaporque,sevocênãotivessefugido,meuirmãoestariavivoagora.E quero me certificar de que mais nenhum delinquente safado das ruasenviadoparaoscamposdetrabalhofujadosistema,paraqueessecenáriojamaisserepita.

Rionacaradela.Adornaminhapernaalimentaminharaiva:– Ah, é só com isso que você está preocupada? Com um bando de

criançasquesesubmeteramàProvaeconseguiramescapardamorte?É,suponhoquecriançasdedezanosdeidadesejamumgrupoperigoso,nãoé? Eu afirmo que você está com os fatos distorcidos. Eu não matei seuirmão,masvocêmatouminhamãe.Foivocêquemcolocouaquelaarmanacabeçadela!

A expressão da Menina se endurece, mas subjacente a ela, perceboalgumacoisavacilar,porummomento,eelapareceagarotaqueconhecinas ruas.Ela se inclinaparamim, tãopertoqueseus lábios tocamminhaorelha e sinto seu respirar naminha pele. Um calafrio percorre aminhacolunavertebral.Elabaixaavoznumsussurroquesóeupossoouvir:

– Lamento por suamãe.Minha comandante tinhame prometido quenãomachucarianenhumcivil,masnãocumpriuapalavra.Eu…–Suavozestremece.Elapareceestarsedesculpando,comoseissoadiantasse.–EuqueriaterimpedidooThomas.Vocêeeusomosinimigos,nãoseiluda,maseunãoqueriaqueaquiloacontecesse.–Elaentãoseaprumaecomeçaairembora:–Issoétudoporenquanto.

– Espere! – Com grande esforço, engulo meu orgulho e pigarreio. Aperguntaqueeutemiafazermeescapaantesqueeupossamedeter:–Elaestáviva?Quefoiquevocêfezcomela?

AMeninameolhaderelance.Aexpressãoemseurostomedizqueelasabeexatamenteaquemmerefiro:Tess.Elaestáviva?Eumepreparoparaopior.

Emvezdisso,aMeninaapenassacodeacabeçaediz:–Nãosei.Elanãomeinteressa.Elafazumacenocomacabeçaparaumdossoldadoseordena:–Nãolhedêáguaatéofimdodia,eotransfiraparaumacelanofimdo

corredor.Talvezamanhãdemanhãeleestejamenostemperamental.

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Éesquisitoverosoldadoprestarcontinênciaaalguémtãojovem.ElaestámantendoTessemsegredo.Perceboentão.Pelomeubem?Pelo

bemdeTess?AMeninasai,ficosozinhonacelacomossoldados.Elesmetiramcom

forçadacadeira,mepuxamcomforçapelochãoepelaporta.Minhapernaferidasearrastanosazulejos.Nãoconsigoseguraraslágrimasquedescemdosmeusolhos.Adormedeixatonto,comoseeuestivessemeafogandonumlagosemfundo.Ossoldadosestãomelevandoporumlargocorredorquepareceterdoisquilômetrosdeextensão.Tropasestãoemtudoqueélugar,assimcomomédicosusandoóculosprotetoreseluvasbrancas.Devoestarnaalamédica,provavelmenteporcausadaminhaperna.

Minha cabeça cai para frente. Já não consigo mantê-la na posiçãonormal. Namente, vejo a imagem do rosto da minhamãe, encolhida nochão.“Eunãomatei”,querogritar,masnãosainenhumsomdaminhaboca.Adornapernaferidameimpede.

PelomenosTessestáasalvo.Tentoenviarumalertamentalaela,dizerquesaiadaCalifórniaecorraparaolugarmaisdistantepossível.

Éentãoque,nametadedocorredor,umacoisamechamaaatenção:umpequenonúmerovermelho,umzero,escritodamesmaformacomoosquevidebaixodavarandadanossacasaenasmargensdolagodonossosetor.É aqui.Viro a cabeçaparaolharmelhor enquantopassamospelasportasduplas em que o zero está pintado. As portas não têm janelas, mas noinstanteemqueumafiguramascaradaevestidadebrancoentra,douumaolhada para dentro. Não vejo muito mais do que névoas, mas consigoperceberumacoisadentrodeumsaco,emcimadeumamaca:umcorpo.OsacoestámarcadocomumXvermelho.

Entãoasportasdeslizamesefecham,enóscontinuamosaandar.Umasériede imagens começaapassarnaminhacabeça.Osnúmeros

vermelhos.AmarcadoXdetrêslinhasnaportadacasadaminhafamília.Asambulânciasmilitaresque levaramÉden.OsolhosdeÉden:grandesesangrentos.

Queremalgumacoisadomeuirmãozinho.Algumacoisaquetemavercomadoençadele.VisualizodenovooXdetrêslinhas.

EsenãofoiacidentalmentequeÉdenpegouapraga?Esenãoforporacasoqueoutraspessoastenhamseinfectado?

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JUNE

Nessanoite,eumeobrigoausarumvestidoparaparticipardeumbailenãoplanejado,comThomasmesegurandoobraço.Essebailedegalaestásendorealizadoparacelebraracapturadeumperigosodelinquente,eparanosrecompensarporterconseguidofazerquesejajulgado.Ossoldadosseesforçam para agradar, atémantêm as portas abertas paramim quandochegamos. Outros me prestam continência. Grupos de oficiais queconversamsorriemparamimquandopasso,meunomeécitadoemquasetodas as conversas que escuto sem querer. “Essa é a Iparis… Ela parecemuito jovem… Só tem quinze anos, meu amigo… O próprio Eleitor estáimpressionado.”Algumaspalavrasdenotammaisinvejadoqueoutras:“Naverdade,nãofoinadademais…Parasersincero,éaComandanteJamesonquemereceoreconhecimento…Elanãopassadeumacriança…”

Entretanto, independentemente do tom de voz, sou eu que estou naberlinda.

Tento me orgulhar disso. Chego a dizer a Thomas, enquantopercorremosomagníficosalãodebaile,comsuasintermináveismesasdebanqueteecandelabros,queprenderDaypreencheuovácuoqueamortede Metias deixou na minha vida, mas, mesmo quando digo isso, nãoacreditonasminhaspalavras.Tudoaquimepareceerrado,tudoarespeitodestesalão,comosefossetudoumailusãoqueseespatifaráseeuestenderobraçoeotocar.

Eume sintomal, como se tivesse feito uma coisa terrível ao trair umgarotoqueconfiouemmim.

–Quebomquevocêestáaliviada–dizThomas.–PelomenosDayestáservindoparaalgumacoisa.

O cabelo dele está cuidadosamente penteado para trás, e ele parecemais alto do que normalmente, no seu impecável uniforme franjado decapitão. Ele toca meu braço com uma das mãos enluvadas. Antes doassassinatodamãedeDay,eu teriasorridoparaele,masagorasintoumcalafrioeretiroobraço.

ÉporcausadeDayquefuiforçadaausarestevestido,querodizer,mas,

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em vez disso, apenas amacio o tecido já liso da minha roupa de baile.Thomas e a Comandante Jameson haviam insistido que eu usasse umvestido bem bonito, mas nenhum dos dois me disse por quê. Jamesonapenasfezumgestodedesinteressecomamãoquandoperguntei:

–Paravariar,Iparis–eladisse–,façaoquemandamenãoquestione.Então ela acrescentou algo sobre uma surpresa, o surgimento

inesperadodealguémdequemgostomuito.Porummomentoilógico,penseiqueelatalvezsereferisseameuirmão.

Que de alguma forma ele havia sido ressuscitado e que eu o veria nessanoitedecelebração.

Porenquanto,sópermitiqueThomasmeconduzisseentreamultidãodegeneraisearistocratas.

Acabeiescolhendoumvestidocordesafiracomcorpete, revestidodeminúsculos brilhantes. Um dosmeus ombros está coberto de renda, e ooutro,escondidosobumlongotrechodeseda.Meucabeloestálisoesolto,oqueéumdesconfortoparaquempassaamaioriadosdiasdetreinamentocom o cabelo puxado firmemente para trás. Thomas ocasionalmente meolha,ecora.Maseunãoentendoporquetantaonda.Jáuseivestidosmaisbonitos,esteémuitomodernoeassimétrico.Estevestidopoderiacomprarcomidaparaváriosmesesparaumagarotadasfavelas.

–AcomandantemeinformouquevãolavrarasentençadeDayamanhãde manhã – diz Thomas um instante depois, quando terminamos decumprimentarumcapitãodosetorEsmeralda.

ÀmençãodeJameson,desvioorosto,semsabersequeroqueThomasobserveminhareação.Parecequeele jáesqueceuoqueaconteceucomamãe de Day, como se vinte anos tivessem se passado, mas resolvo sereducada,edigo:

–Já?– Quanto antes, melhor, certo? – A súbita irritação na voz dele me

assusta. – E pensar que você foi obrigada a passar tanto tempo nacompanhia dele! Fico surpreso por ele não ter tematado enquanto vocêdormia.Euestou…–Thomasfazumapausa,edecidenãoterminarafrase.

EurecordoocalordobeijodeDay,amaneiracomoelepôsumaataduranomeu ferimento.Desde sua captura, jápensei intrigada sobre issoumacentena de vezes. O Day que matou meu irmão é um criminoso cruel e

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impiedoso,masqueméoDayqueconhecinasruas?Queméessemeninoque arriscaria a própria segurança por uma garota que nem conhecia?QueméoDayquesofretãoprofundamenteporsuamãe?Seuirmão,John,com aparência quase idêntica à dele, não pareceu má pessoa quando ointerroguei na sua cela, barganhando sua vida pela deDay, barganhandodinheiro escondido pela liberdade de Éden. Como é possível que umcriminoso tão implacável seja parte dessa família? A lembrança de Daypresoàcadeira,padecendoporcausadapernaferida,medeixazangadaeconfusaaomesmotempo.Eupoderia tê-lomatadoontem.Eupoderia tercarregadoaarmacomalgumasbalas,poderiaterdisparadoorevólvereomatado,entãooassuntoestariaresolvido,masdeixeiaarmasembalas.

– Esses maus elementos de rua são todos iguais – continua Thomas,repetindo o que eu disse a Day na sua cela. – Você soube que o irmãodoentedeDay,opequenino,tentoucuspirnaComandanteJamesonontem?Elequeriainfectá-lacomapragaqueocontaminou.

O assunto do irmãomais novo de Day ainda não foi investigado pormim.Eudigo,pausandoparaolharparaThomas:

–Medigaumacoisa:oqueexatamenteaRepúblicaestáquerendocomessemenino?Porqueolevaramparaolaboratóriodohospital?

Thomasbaixaavoz:–Nãopossodizer.Grandepartedahistóriaéconfidencial,masseique

váriosgeneraisdofrontvieramvê-lo.Franzoatestaepergunto:–Vieramsóparavê-lo?–Bem,muitosdelesestãoaquiparaumareunião,masfizeramquestão

deiraolaboratório.–PorqueofrontestariainteressadonoirmãozinhodoDay?Thomasdádeombros:– Se for alguma coisa que a gente precise saber, os generais vão nos

contar.Momentos depois, somos interceptados por um grandalhão com uma

cicatrizquevaidoqueixoàorelha.ÉChian.Eledáumenormesorrisoaonosverepõeamãonomeuombro:

–Agente Iparis! Estanoite é a suanoite.Você éumaestrela!Vou lhedizer,minha cara, todomundo nos escalões superiores está comentando

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sobre seu desempenho prodigioso, especialmente sua comandante, elapareceumamãecoruja.Parabénsporsuapromoçãoaagenteepelaótimarecompensa. Duzentasmil Notas devem dar para comprar uma dúzia devestidoselegantes.

Consigoinclinaracabeçaeducadamenteedizer:–Osenhorémuitogentil.Chian sorri, distorcendo sua cicatriz, e bate palmas com as mãos

enluvadas.Seuuniformetemsuficientesinsígniasemedalhasparaafundá-lonumoceano.Surpreendentemente,umadasinsígniaséroxaedourada,oque quer dizer que Chian já foi herói de guerra, embora eu ache difícilacreditar que ele tenha arriscado a vida para salvar seus companheiros.Tambémquerdizerqueelesofreuaperdadeummembro.Suasmãosestãointactas,entãoeledeveterumaprótesenaperna.Oângulosutilemqueeleestáinclinadomedizqueelefavoreceapernaesquerda.

–Siga-me,agenteIparis.Eosenhortambém,capitão–instruiChian.–Háumapessoaquequerconhecê-la.

DeveserapessoaqueaComandanteJamesonmencionou.Thomasmedirigeumsorrisodissimulado.

Chiannosconduzpelocorredordobanqueteepelosalãodebaile,emdireçãoaumaespessacortinaazul-acinzentadaqueisolagrandepartedasala.MastroscombandeirasdaRepúblicaestãoposicionadosemambososladosdacortina,e,quandonosaproximamos,vejoqueacortina tambémtemumpálidodesenhodabandeira.

Chianabreacortinaparanós,eafechadepoisqueeleentranorecinto.Há doze poltronas de veludo dispostas em círculo, em cada uma está

sentadoumoficialcomuniformecompletonegro,osombrosadornadosdereluzentesdragonasdouradas,bebericandodedelicadastaças.Reconheçoalguns deles: são generais do front, os mesmos que Thomas mencionouantes. Um deles nos vê e se aproxima, com um jovem oficial atrás, masquando eles saem do círculo, o resto do grupo se levanta e faz umareverêncianasuadireção.

O oficial mais velho é alto, com cabelo grisalho nas têmporas e umqueixofinamentemoldado,comoseporumcinzel.Suapeleparececansadae abatida. Eleusaummonóculo comarosdourados sobreo olhodireito.Chian está ereto, e quando Thomas solta meu braço, vejo que ele faz a

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mesmacoisa.Ohomemacenacomamão,entãotodosficamemposiçãodedescanso.Sóagoraeuoreconheçoafinal.Eleédiferenteempessoadoquenosseusretratosounostelõesdacidade,ondeacordesuapeleémuitomaissaudável,enãotemrugas.Eutambémreconheçoalgunsdosguarda-costasespalhadosentreosoficiais.

EssesenhoréonossoPrimeiroEleitor.– Você deve ser a agente Iparis. – Seus lábios sorriem quando ele vê

minhaexpressãoatônita,masseusorrisonãoénadacaloroso.Eleagarraminhamãoeaapertafirmeerapidamente.–Essescavalheirosmecontamcoisasexcelentessobrevocê.Dizemqueéumprodígioe,maisimportante,quepôsumdosnossosmaisprocuradoscriminososatrásdasgrades.Porisso, achei apropriado que eu pessoalmente a cumprimentasse. Setivéssemosmais jovens patriotas como você, commentes tão brilhantesquantoasua,teríamosvencidoaguerracontraasColôniashámuitotempo.Concorda? – Ele faz uma pausa para olhar para os outros, e todosmurmuramemaprovação.–Eulhedouosparabéns,minhacara.

Inclinoacabeçaedigo:–Éumagrandehonraconhecê-lo,senhor.Éumprazer,Eleitor,fazero

quepossopornossopaís.Ficosurpresacomaserenidadedaminhavoz.OEleitorfazumgestoparaojovemoficialaseuladoediz:–Esteémeufilho,Anden.Hojeelefazvinteanos,porissoeuquistrazê-

locomigoaestaencantadoracelebração.EumeviroparaAnden.Eleseparecemuitocomopai,éalto(ummetro

e noventa), tem aparência refinada, e o cabelo é preto e encaracolado.ComoDay,eletemsangueasiático,mas,diferentementedeDay,seusolhossãoverdes,esuaexpressão, insegura.Usa luvasdecombateCondor,comrevestimentobemtrabalhado.Eleé canhoto.Asabotoadurasdeouronasmangas do paletó negro do smoking militar têm o brasão do Coloradogravado. O que significa que ele nasceu lá. Está de colete escarlate, comfileiradupladebotões.Eleusaseupostonaaeronáuticaemprimeirolugar,aocontráriodopai.

Andensorri comaminhareverênciademorada, fazumareverência,epegaminhamão.Emvezdeapertarminhamãocomo fezoEleitor, elealevaaoslábiosebeijaodorso.Ficoconstrangidaporquemeucoraçãoestá

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amilporhora.–AgenteIparis–elediz,fixandoosolhosemmimporummomento.–Éumprazer–respondo,inseguraquantoaoquedizer.–MeufilhovaiconcorreraocargodeEleitornofimdaprimavera.–O

EleitorsorriparaAnden,quesecurva.–Animador,vocênãoacha?–Então,eudesejoaelemuitasortenaeleição,emboraestejacertade

queelenãovaiprecisardela.OEleitordáumrisinhoediz:– Obrigado, minha cara. Nossa conversa chegou ao fim. Por favor,

agenteIparis,divirta-seestanoite.Esperoquetenhamosoportunidadedenosrever.

Eleseviraevaiembora.AndenosegueeoEleitordiz:–Dispensado.Chiannoslevaparaforadaáreaacortinadaedevoltaaosalãodebaile.

Respirodenovo.

01H.SETORRUBI.21ºEMAMBIENTEFECHADO.

Depois que termina a celebração, Thomasme acompanhade volta aomeuapartamentosemdizernada.Elepermaneceum instantedo ladodeforadaminhaporta.

Eusouaprimeiraaquebrarosilêncio:–Obrigada.Foidivertido.Thomasconcordacomacabeçaediz:–É.NuncaantesviaComandanteJamesontãoorgulhosadeumdeseus

soldados.VocêéameninadeourodaRepública.Emseguida,eleficaemsilênciodenovo.Estátriste,edealgumaforma

eumesintoresponsável.–Vocêestábem?–Pergunto.–Hem?Estou, estou ótimo. – Thomaspassa umadasmãosno cabelo

liso.Umpoucodegelsainaluvadele.–EunãosabiaqueofilhodoEleitorestarialá.

Vejoumaemoçãomisteriosanosolhosdele.Raiva,ciúme?Issoanuviao

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seusemblanteelhedáumaexpressãofeia.Deixopralá.–ConhecemosopróprioEleitor.Dáparaacreditar?Achoque foiuma

noite vitoriosa. Ainda bem que você e a Comandante Jameson meconvenceramausarumvestidobonito.

Thomasmeexamina.Elenãoparececontente.–June,tenhoqueridolheperguntar…–Elehesita.–Quandovocêestava

comDaynosetorLake,eletebeijou?Façoumapausa.Meumicrofone.Éassimqueelesabe.Meumicrofone

deve ter ligadoquandonosbeijamos, ou talvez eunãoo tenhadesligadodireito.OlhoparaThomaserespondofirmemente:

–Beijou.Amesmaemoçãovoltaaoolhardele.–Porqueelefezisso?– Talvez ele tenhame achado atraente, porém, omais provável, seja

porque ele bebeu um vinho ordinário, e eu também. Eu não queriacomprometeramissãodepoisdeterchegadotãolonge.

Ficamosemsilêncioummomento.Então,antesqueeupossaprotestar,uma das mãos enluvadas de Thomas roça meu queixo enquanto ele sedebruçaparamebeijarnoslábios.

Eumeafastoantesquesuabocatoqueaminha,masagoraelepassaamãonaminhanuca.Ficosurpresacomarepulsaquesinto.Tudoquevejoàminhafrenteéumhomemcomsanguenasmãos.

Thomas me olha demoradamente, depois me solta e recua. Odescontentamentoestáestampadonosseusolhos.

–Boanoite,Srta.Iparis.Ele sai apressadamente pelo corredor antes que eu possa responder.

Enguloemseco.Certamentenãopossomeencrencarporcumpriroqueseesperademimquandoestouemmissãonarua,masnãoéprecisosergêniopara ver que Thomas ficou aborrecido. Eu me pergunto se ele vai fazeralgumacoisacomessainformação.

Euovejodesaparecer,abroaportaelentamenteentroemcasa.Olliemecumprimentacomentusiasmo.Euoacarinho,solto-onaárea

dosfundos, tiroovestidoassimétricoeentronochuveiro.Quandoacabo,

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vistoumajaquetapretaeumabermuda.Tentoemvãodormir.Muita coisaaconteceuhoje:o interrogatóriode

Day,conheceroPrimeiroEleitoreseu filho,edepoisoatodeThomas.Acena do crime de Metias volta a meus pensamentos, mas, enquanto arelembro, vejoo rostodele se transformarnodamãedeDay.Esfregoosolhos, pesados de exaustão. Minha cabeça gira com tantas informações,tentandoprocessartodasemeconfundindoàsvezes.Tentoimaginarmeuspensamentoscomoblocosdedadosorganizadosemcaixinhasarrumadas,todasclaramenteetiquetadas.Contudo,opadrãonãofazsentidoestanoitee estou muito cansada para raciocinar logicamente. O apartamento estávazioeesquisito.QuasesintofaltadasruasdoLake.Meusolhosvagueiamparaumapequenacômodadebaixodaminhamesadetrabalho,cheiadas200milNotasque recebi por capturarDay. Sei quedeviapôrodinheironumlugarmaisseguro,porémnãoconsigotocarnele.Depoisdeumtempo,saltodacama,enchoumcopod’águaevouatéomeucomputador.Jáquenãovoudormir,possomuitobemcontinuarapesquisarosantecedentesdeDayeasprovascontraele.

Passo o dedo no monitor, bebo um gole de água, depois entro comminhasenhaparaacessarainternet.AbroosarquivosqueaComandanteJameson me mandou. Estão cheios de documentos, fotos e matérias dejornais escaneadas. Toda vez que examino coisas assim, escutomentalmente a voz de Metias: “Parte da nossa tecnologia já foi melhor.Antes das inundações, antes que milhares de bancos de dados fossemeliminados”. Ele suspirava com ironia, depois piscava para mim e dizia:“Legaleuterescritominhasinformaçõesàmão,hem?”

Analiso os documentos que já li antes, e logo começo com osdocumentosnovos.Minhamenteseparaosdetalhes:

NOME: DANIELALTANWINGIDADE/SEXO: 15/M.ANTESETIQUETADO

COMOFALECIDOAOS10ANOS

ALTURA: 1,78PESO: 66,40TIPOSANGUÍNEO: oCABELO: MUITOLOURO,COMPRIDOOLHOS: AZUIS-CLAROSPELE: MORENACLARA

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ETNIAPREDOMINANTE: MONGOL

Interessante.Éumaaltaproporção,paraoquenoensinoelementarnosensinaramserumpaísextinto.

ETNIASECUNDÁRIA: CAUCASIANASETOR: LAKEPAI: TAYLORARSLANWING.FALECIDOMÃE: GRACEWING.FALECIDA

Minhamentefazumapequenapausa.Maisumavezvisualizoamulhercaída na rua em cima do próprio sangue, mas rapidamente me livro daimagem.

IRMÃOS:JOHNSURENWING,19ANOS/SEXOMASCULINOÉDENBATAARWING,9ANOS/SEXOMASCULINO

Seguem-sepáginasepáginasdedocumentosdetalhandoosdelitosdeDay. Tento examiná-los o mais rapidamente que posso, mas não possoevitardemedeternoúltimo:

CASOSFATAIS: CAPITÃOMETIASIPARIS

Fechoosolhos.Olliegemeameuspés, comosesoubesseoqueestoulendo,depoisencostaofocinhonaminhaperna.Distraidamente,acaricio-lheacabeça.

“Eunãomateiseuirmão.”Foiissoqueelemedisse.“Masfoivocêquemcolocouaquelaarmanacabeçadaminhamãe.”

Eume obrigo a passar para outro documento. De qualquer forma, jámemorizeiorelatóriodocrimedocomeçoaofim.

Souatraídaentãopor algumacoisa. Sentomais ereta.OdocumentoàminhafrentemostraacontagemdaProvadeDay.Éumpapelescaneado,comumgigantescocarimbovermelho,muitodiferentedocarimboazulquevinaminhaProva.

DANIELALTANWING

CONTAGEM:674/1500

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REPROVADO

Algo sobre esse númerome incomoda: 674? Nunca soube de alguémcomumacontagemtãobaixa.Umgarotoqueconhecinoensinoelementarfalhou,massuacontagemfoiquase1.000.Amaioriadascontagensdosquesão reprovados fica entre 825 e 890, nunca menos de 800. E essas sãoalcançadaspelascriançasqueseesperaquesejamreprovadas,asquenãoprestamatenção,ounãotêmcapacidade.

Mas674?–Eleéinteligentedemaisparaisso–digobaixinho.Volto a ler o relatório, caso eu tenha perdido algum detalhe, mas o

númerocontinualá.Impossível.Dayébemarticuladoeracional,esabelereescrever.EledeveriaterpassadonaentrevistadaProva.Éapessoamaiságil que já conheci, deveria ter tirado o grau máximo nos testes físicos.Tendo contagens elevadas nessas áreas, teria sido impossível para elemarcarmenosde850pontos,oqueaindaoreprovaria,masseriamaisdoque 674. E ele só teria feito 850 pontos se tivesse deixado toda a partediscursivaembranco.

Penso então: “a Comandante Jameson não vai ficar satisfeita comigo”.AbroumaferramentadebuscaeapontoparaumaURLconfidencial.

AscontagensfinaisdaProvasãodeconhecimentocomum,masosreaisdocumentosdaProvanuncasãorevelados,nemmesmoaosinvestigadorescriminais.MasmeuirmãoeraoMetias,enósnuncativemosproblemaemteracessoaosbancosdedadosdaProva,graçasaosconhecimentosdele.Fechoosolhos,relembrandooqueelemeensinou.

“DetermineoSistemaOperacional,econsigaprivilégiosderoot[5].Vejase consegue alcançar o sistema remoto. Conheça seu alvo e proteja asegurançadesuamáquina.”

Encontroumaportaabertanosistemadepoisdeumahoraescaneando,eentãoassumoosprivilégiosdaadministração.Ositeapitaumsomdebipuma vez, antes de mostrar uma única barra de busca. Silenciosamente,digitoonomedeDaynomeucomputador.

DANIELALTANWING.Aparece a página da frente do documento da sua Prova. A contagem

aindaindica674/1500.Vouentãoparaapáginaseguinte,comasrespostas

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de Day. Algumas das perguntas são de múltipla escolha, ao passo queoutrasrequeremváriasfrasescomoresposta.Examinotodasas32páginasantesdeconfirmaralgomuitoestranho.

Não hámarcas vermelhas. Na verdade, todas as respostas dele estãointocadas.SuaProvaparecetãocorretaquantoaminha.

Voltoàprimeirapágina.Depoisleiocadarespostacomomaiorcuidadoearespondomentalmente.Levoumahorapararespondê-lastodas.

Todasasrespostassãoiguaisàsminhas.Quando chego ao fim desse documento da Prova, vejo as contagens

separadasparaasseçõesdeentrevistaeasfísicas.Ambasestãoperfeitas.Aúnicacoisaestranhaéumabreveanotaçãojuntoàcontagemdaentrevistadele:“Atenção”.

Daynão foi reprovadona suaProva.Nãochegounempertodisso.Narealidade, ele alcançou a mesma contagem que eu: 1500/1500. Não soumaisoúnicoprodígiodaRepúblicaquetemumacontagemperfeita.

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DAY

–Levanta.Tánahora.Ocabodeumriflemecutucaascostelas.Souarrancadodeumsonho

agitado: minha mãe me levando para o curso elementar, depois as írissangrentas deÉden, e o número vermelhonanossaporta.Dois pares demãos me põem de pé com violência antes que eu possa veradequadamente, grito quando minha perna contundida tenta suportarpartedomeupeso.Nãoacheiquefossepossívelapernadoermaisdoqueontem,masé issoqueestá acontecendo. Lágrimas caemdosmeusolhos.Quandominha visãomelhora, vejo queminha perna está inchada sob asataduras. Tenhovontadede gritar novamente,masminhaboca está secademais.

Ossoldadosmepuxampara foradacela.Acomandanteque tinhamevisitadonavésperaestáesperandopornósnocorredore,aomever,sorriediz:

–Bom-dia,Day.Comovai?Nãorespondo.Umdossoldadosparaeprestaumacontinênciarápidaà

comandante.– Comandante Jameson – ele pergunta –, a senhora está pronta para

levá-loparareceberasentença?Acomandanteconcordacomacabeçaediz:– Sigam-me e, por favor, ponham uma mordaça nele, se não se

importam. Não queremos que ele fique berrando obscenidades o tempotodo,nãoé?

O soldado presta continência novamente, e logo enfia um pano naminhaboca.

Vamos caminhando pelos compridos corredores. Passamosmais umavezpelasportasduplascomonúmerovermelho,depoisporváriasportasfortementevigiadas,eoutrascompainéisdevidroespesso.Minhamenteestánumturbilhão.Precisodeumaformadeconfirmarmeupalpite,umaformadefalarcomalguém.Estoufracoporcausadadesidratação,adormedeixaoestômagoembrulhado.

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De vez em quando, vejo uma pessoa dentro de uma das salas compainéis envidraçados, algemada a uma parede e gritando. Por seusuniformesrasgados,deduzoquesãoprisioneirosdeguerradasColônias.EseJohnestiveremumadessassalas?Quevãofazercomele?

Após um tempo que parece uma eternidade, entramos num enormecorredorprincipal,depé-direitoalto.Doladodefora,umamultidãoentoaumcântico,masnãoconsigodistinguiraspalavras.Soldadosseenfileiramjuntoàsportasquelevamàfrentedoprédio.

Eentãoossoldadossedividem.Estamosdoladodefora.Aclaridadedodia me cega, e ouço os gritos de centenas de pessoas. A ComandanteJamesonergueumadasmãoseseviraparaadireita,entãoossoldadosmearrastamparaumaplataforma.Consigoagoraver finalmenteondeestou:emfrenteaumedifícionocentrodeBatalla,osetormilitardeLosAngeles.Umaenormemultidãoestápresenteparamever,eécontidaepatrulhadaporumpelotão,quaseigualmentetãonumeroso,desoldadosempunhandoarmas.Eunãotinhaideiadequetantaspessoasseimportavamobastanteparameverempessoahoje.Levantoacabeçaomaisaltoquepossoevejoostelõesembutidosnosprédiosaoredor.Todoselestêmumclosedomeurosto,acompanhadopormanchetesfrenéticasdenotíciascomoestas:

PRESOONOTÓRIOCRIMINOSOCONHECIDOCOMODAY.

ELEDEVERÁRECEBERSUASENTENÇAHOJE,

DOLADODEFORADOBATALLAHALL

FINALMENTECAPTURADAAPERIGOSAAMEAÇA

ÀSOCIEDADE

ADOLESCENTEBANDIDOCONHECIDOCOMODAY

AFIRMAAGIRSOZINHO,SEMLIGAÇÃO

COMOSPATRIOTAS

Olhofixamenteparameurostonostelões.Estoumachucado,sangrandoe apático.Uma linha vívida de sanguemanchaum trecho grossodomeucabelo, que adquire um tom vermelho-escuro. Meu couro cabeludo deveestarcomumcorte.

Porummomentoficocontenteporminhamãenãoestarvivaparame

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verassim.Ossoldadosmeempurramparaumblocoelevadodecimentonocentro

da plataforma. À minha direita, um juiz com toga vermelha e botões deouroesperaatrásdeumpódio.AComandanteJamesonestáaseulado,eàsuadireitaestáaMenina.Elaestáusandoseuuniformecompletodenovo,austeraealerta.Suafaceimpassívelestáviradaparaamultidão,masumavez, apenas uma vez, ela se vira e olha paramim, antes de rapidamentedesviaravista.

–Ordem!Porfavor,ordemnamultidão!–Soaavozdojuizpelosalto-falantesdostelões,masopovocontinuaagritareossoldadosempurramaspessoasparatrás.Todaafiladafrenteestáocupadaporrepórteres,comsuascâmerasemicrofonesdirigidosparamim.

Finalmente, um dos soldados grita uma ordem. Eu o olho. É o jovemcapitãoqueatirounaminhamãe.Seussoldadosdisparamváriostirosparaoalto.Issoacalmaamultidão.Ojuizesperaalgunssegundosparagarantirqueosilênciosemantenha,depoisendireitaosóculos.

–Obrigadopelacooperação–elecomeçaadizer.–Seiqueestáfazendomuitocalorestamanhã,porissoasentençaserárápida.Comoossenhorespodemver,nossos soldadosestãopresentese servempara lhes recordarquedevemsemantercalmosduranteestesprocedimentos.Permitam-mecomeçarcomoanúnciooficialdequenodia21dedezembro,às8h36mdamanhã, horário padrão da Costa Oeste, o delinquente de quinze anosconhecidocomoDayfoipresoepostosobcustódiamilitar.

Ouvem-se vários vivas. Embora eu esperasse por isso, ouço tambémalgo queme surpreende,muitas pessoas damultidão vaiam, e não estãocomospunhosnoar.Algunsdosqueprotestammaisaltosãoabordadospelapolícia,algemadosearrastadosdolocal.

Umdossoldadosquemesegurammegolpeianascostascomseurifle.Caiode joelhos.No instanteemqueminhaperna feridaatingeocimento,grito o mais alto que posso. O som é abafado pela mordaça. A dor meatormenta, minha perna inchada estremece com o impacto, e sinto umjorro de sangue fresco nas ataduras. Quase caio, mas os soldados melevantam.Quandoolhopara aMenina, vejoque ela vacila aomeolhar, econcentraosolhosnochão.

Ojuizignoraotumulto.Começaalistarmeuscrimes,depoisconclui:

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–Emvistadosdelitosdo réue, emespecial,de suasofensascontraagloriosa nação da República, a alta corte da Califórnia recomenda oseguinteveredicto:Dayé,comoresultadodoexposto,condenadoàmorte…

Amultidãosemanifestadenovo.Ossoldadosseguramaspessoas.– … por um pelotão de fuzilamento, ato a ser realizado quatro dias

depoisdestadata,nodia27dedezembroàs18horas,horáriopadrãodaCostaOeste,emlocalnãorevelado…

Quatrodias!Comovoupodersalvarmeusirmãosantesdisso?Levantoacabeçaeolhofixamenteparaamultidão.

–…asertransmitidoaovivoparaacidade.Incentivam-seoscidadãosapermanecerem vigilantes para alguma possível atividade criminosa quepossaocorrerantesedepoisdetalacontecimento…

Vãofazerdemimumexemplo.– … e a relatarem imediatamente qualquer atividade suspeita aos

guardasmunicipaisouà sededapolíciamaispróximados senhores. Issoconcluioficialmentenossasentença.

O juiz se apruma e sai do pódio. Amultidão continua a se empurrarcontra os soldados. Eles estão gritando, dando vivas, vaiando. Sinto queestou sendo arrastado de novo para ser colocado de pé. Antes que elespossammeempurrarparadentrodoBatallaHall,vejopelaúltimavezquea Menina me olha fixamente. Sua expressão parece impassível, mas,subjacente a ela, alguma coisa hesita. É amesma emoção que vi em seurosto antes de ela saber a minha verdadeira identidade. Depois de uminstante,essaemoçãodesaparece.Pensoentão:Euprecisoteodiarpeloquevocê fez, mas seus olhos permanecem em mim, de uma forma que serecusamamedeixar.

Depois da sentença, a Comandante Jameson não permite que seussoldados me levem de volta à minha cela. Em vez disso, entramos numelevador sustentado por enormes rodas dentadas e correntes, e subimosumnível,depoisoutro,depoismaisoutro.Oelevadornos levaaotelhadodoBatallaHall,adozeandaresdealtura,ondeassombrasdosprédiosquenoscercamnãonosprotegemdosol.

A Comandante Jameson conduz os soldados para um pátio circular eliso,noaltodoedifício,umterraçocomoemblemadaRepúblicagravadoe

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pesadascorrentespresasemvolta.AMeninanoslevaatéapartetraseira.Sinto o olhar dela nas minhas costas. Quando chegamos ao centro docírculo,ossoldadosmeforçamaficardepéenquantounemminhasmãosalgemadaseospésàscorrentes.

–Eledeveficaraquipordoisdias–dizaComandanteJameson.–Osoljá enevoou minha visão, o mundo parece banhado por uma neblinabrilhante.Ossoldadosmesoltam.Despenconochão,eascorrentesfazembarulhoquandomearrasto.

–AgenteIparis,vocêficaencarregadadetomarcontadele.Verifiquedevezemquandoegarantaqueelenãomorraantesdadatadesuaexecução.

AvozdaMeninadiz,emtomalto:–Sim,senhora.–Elepodetomarumcopod’águapordia,ecomerumavezdiariamente.

Acomandantesorri,enquantoapertaasluvas.–Sequiser,sejacriativaaodarascoisasaele.Apostoquevocêpodefazerqueeleimploreporelas.

–Sim,senhora.–Ótimo.AComandanteJamesonsedirigeamimpelaúltimavez:–Parecequefinalmentevocêestásecomportando.Antestardedoque

nunca.ElaentãovaiemboraedesaparecenoelevadorcomaMenina,deixando

orestodossoldadosparamevigiar.Atardeestásilenciosa.Ganhoepercoaconsciência.Minhapernamachucadalatejasegundoos

batimentosdomeu coração, às vezesdepressa, às vezes lentamente, e àsvezestãofortequeachoquevoudesmaiar.Minhabocarachacadavezqueeu a movimento. Tento pensar em onde poderá estar o Éden: nolaboratório doHospital Central, numa divisãomédica do Batalla Hall, oumesmonumtremrumoao front.Estoucertodequevãomantê-lovivo.ARepúblicanãovaimatá-loatéqueapragaofaça.

E o John? Só posso tentar adivinhar o que fizeram com ele. Podemconservá-lovivo,casoqueiramextrairmaisinformaçõessobremim.Talveznós dois sejamos executados ao mesmo tempo. Ou talvez ele já estejamorto.Umanovadormeapunhalaopeito.PensonodiaemquefizaProva,quando John foi me pegar e me viu ser levado num trem, com outros

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garotos que tinham sido reprovados. Depois que fugi do laboratório eadquiri o hábito de tomar conta da minha família à distância,ocasionalmentevia John sentadoàmesade jantar coma cabeçaentre asmãos, soluçando. Ele nuncadisse emvoz alta,mas achoque ele se culpapelo que me aconteceu. Pensa que devia ter me protegido mais. Ou meajudadoaestudarmais.Algumacoisa,qualquercoisa.

Seeuconseguirfugir,aindatereitempodesalvá-los.Aindapossousarminhas armas. E tenhoumapernaque está legal. Eu aindapoderia fazerisso…sesoubesseondeelesestão.

Omundoapareceedesaparece.Minhacabeçabatenopátiodecimento,meus braços estão imobilizados pelas correntes. Lembranças do dia daProvamepassamrapidamentepelacabeça.

Oestádio.Asoutrascrianças.Ossoldadosvigiandotodasasentradasesaídas.Asfaixasdeveludoquenosmantinhamseparadosdascriançasdefamíliasricas.

Aprovafísica.Oexameescrito.Aentrevista.Aentrevista,principalmente.Lembrodabancaquemequestionou,um

grupodeseispsiquiatras,edooficialqueoschefiou,umtaldeChian,quetinha um uniforme enfeitado com medalhas. Ele fez a maioria dasperguntas.“QualéojuramentodefidelidadeàRepública?Bom,muitobom.Dizaquiemseuboletimescolarquevocêgostadehistória.Emqueanoseformou oficialmente a República? O que você gosta de fazer no colégio?Ler… isso é muito bom. Um professor certa vez informou que você foifurtivamente a uma área restrita da biblioteca, procurando por antigostextosmilitares. Podeme dizer por que fez isso?Qual sua opinião sobrenossoilustrePrimeiroEleitor?Sim,eleérealmenteumbomhomemeumgrande líder. Mas você está enganado ao chamá-lo dessas coisas, meumenino.Elenãoéumhomemcomovocêeeu.Aformacorretadesereferiraeleénossogloriosopai.Sim,aceitosuasdesculpas.”

Asperguntasdelenãoacabavam,foramváriasdezenas,cadaqualmaisalucinantequeaoutra,atéqueeujánemtinhacertezadeporquerespondicomorespondi.Chianescreveuanotaçõesnomeurelatóriodaentrevistaotempo todo, enquanto um de seus assistentes gravava a sessão com umminúsculomicrofone.

Achei que tinha me saído bem. Pelo menos, tive o cuidado de dizer

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coisasqueeujulgueiquefossemagradar.Masentãoelemecolocounumtrem,eotremnoslevouaolaboratório.A lembrança me faz tremer, mesmo enquanto o sol continua

causticante,assandominhapeleatédoer.PrecisosalvaroÉden,digoamimmesmo sem parar. Daqui a um mês Éden faz dez anos. Quando ele serecuperardapraga,vaiterdesesubmeteràProva.

Minha perna machucada parece que vai explodir com as ataduras eincharatéficardotamanhodoterraço.

Ashorassepassam.Percoanoçãodotempo.Ossoldadosserevezamemseusturnos.Osolmudadeposição.

Então, quando o sol piedosamente começa a se enfraquecer, vejoalguémsurgirdoelevadorecaminharnaminhadireção.

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JUNE

Eumal reconheçoDay, embora apenas setehoras tenhamsepassadodesde que ele recebeu sua sentença. Ele está encolhido no centro doemblema da República. Sua pele está mais escura, seu cabelo estácompletamente encharcado de suor. Ainda se vê sangue seco agarrado auma longa mecha de cabelo, como se ele tivesse escolhido tingi-lo: estáquase preto agora. Ele vira a cabeça na minha direção quando eu meaproximo.Entretanto,nãoseibemseconseguemever,porqueosolaindanãosepôscompletamenteeprovavelmenteestáofuscandosuavista.

Mais um prodígio, e não apenasmediano. Já conheci outros prodígiosantes,mas certamentenuncaumque aRepública tenhadecididomanterescondido.Especialmenteumprodígiocomumacontagemperfeita.

Um dos soldados em volta do círculome presta continência. Ele estásuado,eseucapacetelevenãoprotegesuapeledosol.

– Agente Iparis – ele diz. (Seu sotaque é do setorRuby, e a fileira debotõesdoseuuniformeestábempolida.Eleprestaatençãoaosdetalhes.)

Olhode relanceparaosdemais soldadosantesdevoltar aolharparaele:

– Todos vocês estão dispensados por enquanto. Mande seus homensbeberem água e ficarem à sombra. E envie um recado para que seussubstitutoscheguemcedo.

–Sim,senhora.O soldado bate os calcanhares antes de mandar os outros se

dispersarem.QuandoelessaemdotelhadoeficosozinhacomDay,tiroacapaeme

ajoelhoparavermelhorseurosto.Eleestreitaosolhosparamever,maspermanece calado. Seus lábios encontram-se tão rachados que umpouquinhodesanguegotejouatéoqueixo.Eleestádebilitadodemaisparafalar.Olhoparasuapernaferida.Estámuitopiordoquedemanhã,oquenão é surpreendente, está inchada duas vezes mais do que o tamanhonormal. Uma infecção deve ter se instalado. Sangue goteja das beiras daatadura.

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Distraidamente, toco a ferida à faca no meu corpo. Já não dói tantoquantoantes.

“Vamosprecisarteressapernaexaminada.”Suspiro,eretiroocantildomeucinto.

–Tome.Bebaágua.Nãoestouautorizadaadeixarvocêmorrerainda.Pingoáguanoslábiosdele.Eleestremeceaprincípio,masdepoisabrea

bocaedeixaqueeudespejeumpoucodeágua.Esperoenquantoeleengole,demoradamente,edepoisdeixoquebebamaisainda.

– Obrigado – elemurmura, então dá uma risadinha seca. – Acho quevocêjápodeiragora.

Euoanalisouminstante.Suapeleestáqueimadaeorosto,ensopadodesuor,masosolhoscontinuambrilhantes,emboraumpoucoforadefoco.Derepentemelembrodoprimeiromomentoemqueovi.Erapoeiraemtodosos lugares, mas, mesmo com ela, surgia esse garoto lindo, com os olhosmaisazuisquejávi,estendendosuamãoparameajudaramelevantar.

–Ondeestãomeusirmãos?–Elemurmura.–Osdoisestãovivos?Acenocomacabeçaerespondo:–Estão.–EaTessestáasalvo?Ninguémaprendeu?–Nãoqueeusaiba.–QueestãofazendocomoÉden?ReflitonoqueThomasmedisse:queosgeneraisdofrontvieramvero

menino.–Nãosei.Dayviraacabeçaefechaosolhos.Eleseconcentraemrespirar,elogo

murmura:–Bem,nãomatemeusirmãos.Elesnãofizeramnada…eÉden…nãoé

umacobaia.–Elesecalaporuminstante.–Eununcasoubeseunome.Achoqueissoagoranãoénadademais,certo?Vocêjásabeomeu.

Euoolhofixamenteerespondo:–MeunomeéJuneIparis.–June–sussurraDay.Sintoumcalorestranhoaoouvirmeunomedito

pelos lábiosdele.Eleseviraemeencara:–June, lamentoamortedoseuirmão.Eunãosabiaquealgumacoisaaconteceriacomele.

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Soutreinadaparanãoacreditarnapalavradeumprisioneiro:seiquetodos eles mentem e que dizem qualquer coisa para tornar seu captorvulnerável.Mas esse garoto soa diferente. Não sei como,mas ele parecemuito sincero, muito sério. E se estiver me contando a verdade? E sealguma outra coisa aconteceu com Metias naquela noite? Respiroprofundamente, e me obrigo a olhar para baixo. Digo a mim mesma: Alógicaacimadetudo.Alógicasempresalva,quandonadamaissalva.

–Ei!–Lembrodeumacoisaagora.–Abraosolhosdenovoeolheparamim.

Elefazoquemando.Eumedebruçoparaanalisá-lo.Sim,aindacontinualá, aquela pequena e estranha manchinha num dos seus olhos, umapequenaondulaçãonumaírisdacordooceano.

–Comovocêconseguiuessacoisinhaemseuolho?–Apontoparameusprópriosolhos.–Essaimperfeição?

Alguma coisa pareceu engraçada, porqueDaydá uma risada antes deseracometidoporumacessodetosse:

–EssaimperfeiçãofoiumpresentedaRepública.–Comoassim?Ele hesita. Percebo que está com problema para formular seus

pensamentos:–Équeeu jáestiveantesno laboratóriodoHospitalCentral.Nanoite

emquefizaProva.–Eletentalevantarumadasmãosparaapontarparaoolho,masas correntes se juntamearrastamseubraçoparabaixo.–Elesinjetaramumacoisanoolho.

Franzoatestaepergunto:–Na noite do seu décimo aniversário? O que você estava fazendo no

laboratório?Vocêdeviaestaracaminhodoscamposdetrabalho.Daysorricomoseestivessequasedormindo:–Penseiquevocêfosseinteligente…Aparentementeosolnãocozinhousuaatitudeatrevida.–Eoferimentoantigodoseujoelho?–A suaRepública tambémmeofereceu isso.Namesmanoiteemque

meofereceuaimperfeiçãodomeuolho.–PorqueaRepública tecausariaesses ferimentos,Day?Porqueeles

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iamquererdanificaralguémqueatingiuacontagemmáximade1.500naProva?

Issochamaaatençãodele:–Queéquevocêestádizendo?FuireprovadonaProva.Ele não estava sabendo. Evidente que não saberia. Baixominha voz e

murmuro:–Não,nãofoi.Vocêconseguiuapontuaçãomáxima.– Issoéalgumapegadinha?–Daymexeaperna feridae fica tensode

tanta dor. – Pontuação máxima… sei… Não conheço ninguém que tenhafeito1.500pontos.

Cruzoosbraçosedigo:–Eufiz.Eleergueasobrancelhaemeolha:–Vocêfez?Évocêotalprodígiocomacontagemperfeita?– Sou – faço um gesto com a cabeça para ele. – E, pelo visto, você

tambémé.Dayreviraosolhosedesviaoolhar:–Issoéridículo!Doudeombrosefalo:–Acreditesequiser.–Nãofazsentido.Eunãodeviaterseucargo?Nãoéesseoobjetivoda

sua preciosa Prova? – Day parece querer parar, hesita, mas depoiscontinua:

–Injetaramumtroçonumdosmeusolhosqueardiacomoapicadadeuma vespa. Também cortaram meu joelho, com um bisturi. Depois meobrigaram a tomar um remédio, e quando me dei conta, estava deitadonumporãodohospitalcomumaporçãodecadáveres.Maseunãoestavamorto.–Eleridenovo,esuavozsoamuitofraca.–Aniversáriomaneiro!

Elesousaramcomocobaia,provavelmenteparausomilitar.Estoucertadisso agora, e esse pensamento me enoja. Estavam tirando minúsculasamostrasdetecidodojoelhodele,bemcomodeseucoraçãoedeseuolho.Do joelho, eles devem ter querido estudar suas incomuns habilidadesfísicas, sua velocidade e agilidade. Do olho, talvez não tenha sido umainjeção e sim uma extração, algo para testar por que sua visão era tão

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apurada. Seu coração, deram a ele algum remédio para ver a quantodiminuiriamseusbatimentoscardíacos,edevemterficadodecepcionadosquandoo coraçãodeleparou temporariamente. Foi aí quepensaramqueestava morto. O raciocínio subjacente a isso tudo é claro: queriamdesenvolverasamostrasdetecidoemalgumacoisa,nãoseioquê:pílulas,lentes de contato, algo que aperfeiçoasse nossos soldados e os fizessecorrermaisvelozmente,vermelhor,pensardemodomais inteligente,ouresistirasituaçõesmaisdifíceis.

Tudoissomepassarapidamentepelacabeça,emumminuto,antesqueeu possa impedir. Demaneira nenhuma. Isso não está de acordo com osvaloresdaRepública.Porquedesperdiçarumprodígioassim?

Anãoserquetenhampercebidoalgoperigosonele.Umapersonalidadedesafiadora,omesmoespíritorebeldequeeletemagora.Algumacoisaqueos fez pensar que seria mais arriscado instruí-lo do que sacrificar suaspossíveis contribuições à sociedade. No ano passado 38 criançaspontuaramacimade1.400.

TalvezaRepúblicadesejassequeessemeninodesaparecesse.Mas Day não é apenas um prodígio qualquer. Ele tem uma contagem

perfeita.Oquedeixouosmilitarestãonervosos?–Possotefazerumaperguntaagora?–Daypergunta.–Chegouaminha

vez?– Chegou. – Olho para o elevador, de onde chega agora um novo

revezamentodeguardas.Levantoumadasmãosemandoquefiquemondeestão.–Vocêpodeperguntar.

–QuerosaberporquelevaramoÉden.Apraga.Seiquevocês,quetêmgrana, recebem tudo de bandeja: novas vacinas contra a praga todos osanos, e seja lá do que precisem. Mas você não se perguntou… nunca seperguntou por que essa doença nunca vai embora? Nem por que voltaperiodicamente?

Meusolhossefixamnele:–Oquevocêestátentandodizer?Dayconseguefocalizarosolhosemmim.–Oqueeuestou tentando dizer?Ontem,quandomearrastarampara

foradaminhacela,viumzerovermelhogravadoemalgumasportasduplasnoBatallaHall.VinúmerosassimnoLaketambém.Porqueelesaparecem

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nos setorespobres?Oqueestão fazendo lá?Oqueestãodespejandonossetores?

Estreitomeusolhosepergunto:–VocêachaqueaRepúblicaestáenvenenandoaspessoasdepropósito?

Day,vocêestápisandoemterritóriominado.MasDaynãopara.Pelocontrário,suavozassumeumtommaisurgente:–ÉparaissoqueelesqueriamoÉden,nãoé?–Elesussurra.–Paraver

osresultadosdovírusmutantedapragaqueelescriaram,certo?Qualseriaooutromotivo?

–Queremimpediranovadoençaqueeleestáespalhando.Dayri,masvoltaatossir:–Não.Elesestãousandomeuirmão,estãousandomeuirmão.–Suavoz

baixadetom.–Estãousandomeuirmão.Seusolhosficampesados.Oesforçodefalaroexauriu.–Vocêestádelirando–respondo.MasenquantootoquedeThomasme

cause repulsa, não sinto isso em relação a Day, embora eu devesse. Massimplesmente não consigo ter nojo dele. – Uma mentira dessas é umatraição contra a República. Além disso, por que o Congresso autorizariaumacoisadessas?

Daynão tira os olhosdemim, e logoquandopensoque ele perdeu aforçapararesponder,suavozsoaaindamaisinsistente:

– Pense sobre o assunto desta forma: como eles sabem que vacinasaplicar em vocês todos os anos? Elas sempre dão certo. Você não achaestranhoqueelesfaçamvacinasquecombinamcomtodasasnovaspragasquesurgem?Comopodempreverdequevacinasvãoprecisar?

Eu titubeio. Jamais questionei as vacinas anuais que as autoridadesexigemdenós,nuncativerazãoparaduvidardesuanecessidade.Eporqueeudeveria?Meupaitrabalhavaatrásdessasportasduplasedavaduroparaencontrar novas maneiras de combater a praga. Não, não consigo maisescutaroqueDayestásugerindo.Tiroacapadochãoeaenfiodebaixodobraço.

–Maisumacoisinha–sussurraDayquandomelevanto.Olhodevoltaparaele;seusolhosardememmim.–Vocêachaquevamosparacamposdetrabalho se somos reprovados na Prova? June, os únicos campos detrabalhosãoosnecrotériosnosporõesdoshospitais.

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Nãomeatrevoademorarmais.EumeafastodaplataformaedeDay,masmeucoraçãoparecequevaiexplodirnopeito.Ossoldadosesperandoaoladodoelevadorficamaindamaiseretosquandomeaproximo.Consigofazerquemeurostoexpressepurairritação.

–Tireascorrentesdele–ordenoaumdossoldados.–Leve-oparaaaladohospitalemandequeconsertemapernadele,equedeemaelecomidaeágua,porquesenãoelenãovaipassardestanoite.

Osoldadomefazcontinência,masnemolhoparaeleantesdefecharaportadoelevador.

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DAY

Voltoaterpesadelos.Destavez,comTess.Estou correndo nas ruas do Lake. Àminha frente, Tess também está

correndo,mas não sabe onde estou. Ela vira para a esquerda e a direita,desesperadaparavermeurosto,massóencontradesconhecidoseguardasmunicipais e soldados. Grito o nome dela, mas minhas pernas malconseguemsemexer,comoseeuestivessecaminhandocomdificuldadenolodo.

“Tess!”Grito.“Estouaqui,bematrásdevocê!”Ela não consegueme ouvir. Olho impotente quando ela esbarra num

soldado, e quando ela tenta escapar dele, ele a agarra e a atira no chão.Gritoalgumacoisa.OsoldadoempunhaaarmaeaapontaparaTess.EntãoeuvejoquenãoéTess,queéminhamãe,caídanumapoçadesangue.Tentocorrer até ela,mas, em vez disso, eume escondo atrás de uma chaminénumtelhado,agachadocomoumcovarde.Éculpaminhaelaestarmorta.

Entãoderepenteestoudevoltaaolaboratóriodohospital,osmédicoseas enfermeiras me rodeiam. Aperto os olhos sob a luz ofuscante. A dorrepuxaminha perna. Estão abrindomeu joelho de novo, puxandominhacarnepararevelarosossos,raspando-acomseusbisturis.Curvoascostasegrito. Uma das enfermeiras tenta me conter. Meu braço se debate, ederrubaumabandejaemalgumlugar.

–Ficaquieto!Droga,menino,nãovoumachucá-lo.Demoroumminutoparaacordar.A cenaenevoadadohospitalmuda,

então me dou conta de que estou olhando fixamente para uma luzfluorescente,equeummédicoestámeolhando.Eleusaóculosdeproteçãoemáscara.Grito e tentome sentar reto,masestoupresoaumamesadeoperaçãoporumpardecintos.

Omédicosuspiraeabaixaamáscara,dizendo:– Que absurdo! Eu tendo de pôr ataduras num criminoso, quando eu

podiaestarajudandosoldadosdofront.Olhoemvolta,confuso.Guardasseenfileiramcontraasparedesdesta

sala de hospital. Uma enfermeira está limpando equipamentosensanguentadosnapia.

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–Ondeestou?Omédicomeolha,impaciente:–VocêestánaalahospitalardoBatallaHall.AagenteIparismeordenou

que cuidasse de sua perna. Parece quenão temospermissãopara deixarvocêmorrerantesdesuaexecuçãoformal.

Levantoacabeçaaomáximo,eolhoparaminhaperna.Ataduraslimpascobremoferimento.Quandotentomexerapernaumpouquinho,notocomsurpresa que a dor diminuiu muito. Olho de relance para o médico epergunto:

–Oquefoiqueosenhorfez?Eleapenasencolheosombros, tiraas luvasecomeçaa lavarasmãos

emumadaspias:–Deiumjeito.Vocêvaipoderficardepéemsuaexecução.–Elefazuma

pausaediz:–Nãoseisevocêqueriaouvirisso.Eu desabo de novo namaca e fecho os olhos. A pouca dor naminha

pernamealivia tantoquetentosaboreá-la,mastrechosdomeupesadelopermanecem na minha cabeça, recentes demais para serem eliminados.OndeestaráTess?Seráqueelaconseguesesairbemsemninguémláparacuidar dela? Ela é míope. Quem vai ajudá-la quando não conseguirdistinguirassombrasdanoite?

Quanto à minha mãe… não estou forte o bastante para pensar nelaagora.

Alguémbateruidosamentenaporta:–Abram!–Gritaumhomem.–AComandante Jamesonestáaquipara

veroprisioneiro.Prisioneiro…sorrioaoouvir isso.Ossoldadosnãogostamnemdeme

chamarpelonome.Os guardas na salamal têm tempo para destrancar a porta e sair do

caminhoantesqueaComandanteJamesonirrompanoquarto,visivelmenteaborrecida.Elaestalaosdedosemanda:

– Tirem esse garoto da maca e o prendam com correntes – elapraticamenterosna.Depoispõeodedonomeupeitoediz:–Vocêaí.Vocênãopassadeummenino.Nuncafrequentouumafaculdade,foireprovadoem sua Prova! Como conseguiu sermais esperto do que os soldados nasruas? Como provoca tantos transtornos? – Ela arreganha os dentes para

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mim.–Eusabiaquevocêiriaserumproblemamuitomaiordoqueaquiloque você vale. Você tem a tendência de desperdiçar o tempo dos meussoldados,paranãocitarossoldadosdeváriosoutroscomandantes.

Preciso cerrar os dentes para não revidar seus gritos. Soldados vêmrapidamenteatéondeestouecomeçamasoltaroscintosdamaca.

Ameulado,omédicoinclinaacabeçaepergunta:–Senãoseimporta,Comandante,algumacoisaaconteceu?Oqueestá

havendo?Jamesonfixaneleoolharfurioso.Eleseencolhetodo:–Genteprotestandoem frenteaoBatallaHall–ela responde.–Estão

atacandoapolíciamunicipal.Os soldados me puxam da maca e me põem de pé. Eu me contraio

quandotransfiromeupesoparaminhapernamachucada.–Genteprotestando?–É.Baderneiros. –AComandante Jameson agarrameu rosto: –Meus

próprios soldados foram convocados para ajudar, o que quer dizer queminha agenda está inteiramente desorganizada. Um dos meus melhoreshomens já voltou para cá com lacerações no rosto. Delinquentesdesprezíveis,comovocênãoimagina,estãoenfrentandonossossoldados.–Elaempurrameu rostoparao lado,possessa, edáas costasparamim.–Levem-nodaqui–elagritaparaossoldadosmesegurando.–Erápido.

Saímosdoquartodohospital.Nocorredorsoldadoscorremparacáeparalá.AComandanteJamesoncomprimeumadasmãosnaorelha,escutaatentamente,depoiscomeçaagritarordens.Enquantosouarrastadoparaoelevador,vejováriosgrandesmonitores,eparoumminutoparaadmirar,porque nunca os vi no setor Lake, estão transmitindo exatamente o queJamesonnoscontou.Nãoconsigoouviravozdonarrador,masaslegendassão inequívocas: “Tumulto do lado de fora do Batalla Hall. Unidadesmilitares reagem. Aguardam futuras ordens”. Dou-me conta de que essanãoéumatransmissãopública.OvídeomostraapraçaemfrenteaoBatallaHall apinhada, comvárias centenasdepessoas.Vejo a cenados soldadosvestidosdepretolutandoparaconteramultidãopertodaentrada.Outrossoldados correm em telhados e parapeitos, posicionando-se rapidamentecom seus rifles. Quando passamos pelo último monitor, tenho uma boavisão dos que protestam, dos que estão reunidos debaixo das luzes dos

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postes.Algunsdelespintaramumafaixavermelho-sanguenocabelo.Então chegamos aos elevadores. Os soldados me empurram para

dentro.Elesestãoprotestandoporminhacausa.Essepensamentomeenchede animação e medo. De jeito nenhum os militares vão deixar que issopasseembranco.Vãoisolarossetorespobresinteiramente,eprendertodomanifestantenapraça.

Ouvãomatá-los.

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JUNE

Quandoeuera criança, àsvezesMetiasera convocadopara lidar comrevoltaspoucoimportantes,edepoiselemecontavaarespeito.Ahistóriaera sempre a mesma: mais ou menos uma dúzia de gente pobre(normalmente adolescentes, às vezes rapazes mais velhos) que estavacausandotumultoemumdossetores,comraivadasquarentenasdapragaou dos impostos. Várias bombas de poeira depois, eram todos presos elevadosajulgamento.

Mas eu nunca tinha visto uma rebelião como esta, com centenas depessoasarriscandoavida.Aliás,nuncaviumarevoltasequerparecidacomesta.

– Qual é o problema com este pessoal? – Pergunto a Thomas. –Enlouqueceram!

EstamosnaplataformaelevadaforadoBatallaHall,comtodaapatrulhadeThomas encarando amultidão ànossa frente, simultaneamente, outradaspatrulhasdaComandanteJamesonempurraaspessoasparatrás,comescudosecassetetes.

Antes,euhaviadadoumaespiadaemDayenquantoomédicooperavasuaperna. Eumepergunto se ele está acordado e vendo esse caospelosmonitoresdohall.Esperoquenão.Nãohánecessidadedequeelevejaoqueprovocou.Pensarnele, eemsuaacusaçãodequeaRepúblicacriaaspragasematacriançasreprovadasnaProva,medeixafuriosa.Tiroaarmadocoldre.Ébomqueelaestejapronta.

–Vocêjáviualgumacoisasemelhante?–Pergunto,tentandomanteravozserena.

Thomassacodeacabeçaeresponde:–Sóumavez,fazmuitotempo.Parte de seu cabelo escuro cai no rosto.Não está bempenteadopara

trás,comodecostume.Eledevetersemetidonamultidãomaiscedo.Umadesuasmãosestánaarmapresaaocinto,enquantoaoutraseguraoriflependuradonoombro.Elenãomeolha.Aliás,nãomeolhadireitodesdequetentoumebeijarontemànoitenocorredor.

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–Sãoumbandode idiotas–elecontinua.–Senãopararem logocomisso,oscomandantesvãofazerquesearrependam.

Olho de relance e vejo vários comandantes em uma das varandas doBatalla Hall. Está muito escuro para eu ter certeza, mas acho que aComandante Jameson não está com eles. Sei, porém, que ela está dandoordensatravésdoseumicrofone,porqueThomasescutaatentamente,comumadasmãospressionadanaorelha.Mas seja láoqueelaestádizendo,visaapenasThomas,enãotenhoideiadoqueelaestáordenandoaele.Amultidão abaixo de nós continua empurrando. Deduzo, por suas roupas,camisasecalçasrasgadas, sapatosquenãocombinam,cheiosdeburacos,quequasetodoselessãodossetorespobrespertodoLake.Secretamente,esperoquesedispersem.Vãoemboradaquiantesqueascoisaspiorem.

Thomas se inclina paramim e aponta com a cabeça para o centro damultidão:

–Estávendoaquelebandodedesgraçados?Eujáhaviareparadonoqueeleestáapontando,masmesmoassimolho

educadamente para o que ele me mostra. Um grupo de manifestantespintou uma faixa vermelha no cabelo, imitando a mecha manchada desangueexpostaporDayquandoelesepostouláparaouvirsuasentença.

–Escolherammal seuherói –prossegueThomas. –Day estarámortoemmenosdeumasemana.

Concordocomacabeça,masnãodigonada.Amultidãosoltaalgunsgritos.Agoraumapatrulhaestánosfundosda

praça, e encurralou amultidão, empurrando as pessoas para o centro dapraça.Franzoatesta.Essenãoéoprotocoloparasetratarumamultidãoincontrolável. Na escola, ensinaram-nos que bombas de poeira ou gáslacrimogêneosãomaisdoquesuficientespararesolveroassunto,masnãohásinaldisso:nenhumsoldadousamáscarascontragases.Agoramaisumapatrulhacomeçouaafastarosretardatáriosreunidosforadapraça,ondeasruassãomuitolotadaseestreitasparaseprotestaradequadamente.

–OqueaComandanteJamesonestálhedizendo?–PerguntoaThomas.Ocabeloescurodelelhecaiemcimadosolhoseescondesuaexpressão.–Eladizqueéparanósficarmosparadoseesperarmossuasinstruções.Não fazemosnadapormaisdemeiahora.Umadasminhasmãosestá

nobolso,distraidamenteesfregandoopingentedeDay.Dealgumaforma,a

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multidão me lembra do Skiz. Provavelmente, algumas daquelas pessoasestãopresentes.

Éentãoquevejosoldadoscorrendonostelhadosdosprédiosdapraça.Alguns se apressam ao longo dos parapeitos, enquanto outros estãoreunidos numa fila reta nos telhados. Estranho! Soldados costumam terinsígniaspretaseumaúnicafileiradebotõesprateadosnasfardas.Emvezdisso, uma faixa branca atravessa diagonalmente o peito deles e suasbraçadeiras são cinzentas. Levoum segundoparamedar contadequemsãoeles.

–Thomas–eudouumtapinhanoseuombro–,executores.Seurostonãodemonstrasurpresa,nemháemoçãoemseusolhos.Elepigarreiaediz:–Éissomesmo.–Queéqueelesestãofazendo?–Levantoavoz.Olhoderelanceparaos

manifestantesnapraça,depoisolhodenovoparaostelhados.Nenhumdossoldadostembombasdepoeiranemmáscaracontragáslacrimogêneo.Emvezdisso,cadaumdelestrazumaarmapresaaoombro.–Ossoldadosnãoestãodispersandoopovo,Thomas.Elesosestãoencurralando.

Thomasmeolhacomseveridadeediz:–Fiquefirme,June.Observeamultidão.Quandomeusolhosmiramostelhados,reparonaComandanteJameson

chegando ao topo do Batalla Hall, cercada por soldados. Ela fala em seumicrofone.

Passam-se diversos segundos. Uma terrível sensação percorre meupeito:seinoqueissotudovaidar.

Desúbito,Thomasmurmuraalgoemseumicrofone.Éumarespostaaumcomando.Euoolhoderelance.Elepercebemeuolharporuminstante,depoisolhaparaorestodapatrulhaqueestánaplataformaconosco,entãogrita:

–Atiremàvontade!– Thomas! – Quero dizer mais, porém, nesse instante, ouvem-se

disparos vindos dos telhados e da plataforma. Dou um pulo para frente.Não sei o que pretendo fazer. Acenar os braços em frente dos soldados?MasThomasagarrameuombroantesqueeupossaavançar.

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–Recue,June!– Mande seus homens descerem! – Grito, conseguindo,

desajeitadamente,melivrardele.–Mandequeeles…NesseinstanteThomasmeatiranochãocomtantaforça,quesintoque

oferimentodoladodomeucorposeabriu.–Droga,June!–Elediz.–Recue!O chão está surpreendentemente frio. Eu me agacho, totalmente

desorientada,incapazdememexer.Nãocompreendobemoqueacabadeacontecer.Apele ardeao redordaminha ferida.Uma saraivadadebalasatinge a praça. As pessoas na multidão caem como barragens numainundação.Thomas, pare! Por favor, pare! Querome levantar e gritar nacaradele,magoá-lodealgumaforma.SeMetiasestivessevivo,Thomas,eleomatariaporfazerisso.Mas,emvezdisso,tampoasorelhas.Osdisparossãoensurdecedores.

Otiroteioduraapenasumminuto,setanto,maspareceumaeternidade.Thomasfinalmenteordenaocessar-fogo.Aspessoasdamultidãoquenãoforam atingidas caem de joelhos e levantam as mãos sobre a cabeça.Soldados correm até elas, algemando-lhes os braços atrás das costas,obrigando-as a se agruparem. Eu me ajoelho. Minhas orelhas ainda seressentemdotiroteio.Examinoacenadomassacre,comsangue,corposeprisioneiros.Há97,98mortos.Não,pelomenos120.Ecentenasmaisemcustódia.Nãoconsigomeconcentrarosuficienteparacontá-los.

Thomasmeolhaderelanceantesdesaltardaplataforma:seurostoestásisudo,demonstraatéculpa,massei,lamentavelmente,queelesósesenteculpadoportermeatiradonochão,nãopelomassacrequeeledeixouparatrás.ElesedirigedevoltaaoBatallaHall,comváriossoldados.Eudesviooolhar,paranãoprecisarvê-lo.

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DAY

Subimosváriosandaresatéeuouvirascorrentesdoelevadorpararem,comumruídorascante.Doissoldadosmearrastamparaumcorredorquejá conheço.Acredito que estejamme levandode volta àminha cela, pelomenosporenquanto.Pelaprimeiravezdesdequeacordeinamaca,sinto-meexaustoebaixoacabeçaatéopeito.Odoutordeveteraplicadoalgoemmimparaevitarqueeumedebatessemuitoduranteaoperação.Tudoaomeuredorparecetremidonasbordas,comoseeuestivessecorrendo.

Então os soldados param subitamente nametade do corredor, a umaboadistânciadaminhacela.Ergoosolhos, surpreso.Estamosdo ladodeforadeumadassalasqueeuhaviaobservadoantes,acomportadevidrotransparente.As salas são câmarasde interrogatório. Issoquerdizerqueelesqueremmaisinformaçõesantesdemeexecutarem.

Háestática,depoisvemumavozatravésdeumdosfonesdeouvidodeumsoldado.Eleconcordacomacabeçaediz:

–Ocapitãodissequejáestáchegando.Ficodoladodedentro,esperando,àmedidaquesepassamosminutos.

Guardascomexpressãoimpassívelficamaoladodaporta,enquantooutrosdoissegurammeusbraçosalgemados.Seiqueestasalaésupostamenteàprovadesom,masjuroqueouçoosomdearmaseasvibraçõesdegritosdistantes.Meucoraçãoseacelera.Astropasdevemestardisparandocontraamultidãonapraça.Aspessoasestãomorrendoporminhacausa?

Passa mais tempo. Espero. Minhas pálpebras ficam pesadas. Queroapenasmeenroscarcomoumabolanocantodaminhacela,edormir.

Finalmente,ouçopassosseaproximando.Aportaseabrederepente,erevelaumrapazvestidodepreto,comcabeloescuroquelhecainosolhos.Dragonasprateadasestãofixasemcadaombro.Osoutrossoldadosbatemoscalcanhares.

Ohomemosdispensa.Agoraeuoreconheço.Éocapitãoqueatirounaminha mãe. June já o havia mencionado: seu nome é Thomas. AComandanteJamesondevetê-lochamado.

–Sr.Wing–elediz.Eleseaproximademimecruzaosbraços.–Éumprazerconhecê-loformalmente.Euestavacomeçandoamepreocuparcom

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ahipótesedeissonuncaacontecer.Eudecidoficarcalado.Eleparecesesentirpoucoàvontadeporestarno

mesmorecintoqueeu,suaexpressãorevelaqueelemeodeiadeverdade.– Minha comandante quer que eu lhe faça umas perguntas de praxe

antes da data de sua execução. Vamos tentarmanter a conversa cordial,embora,éclaro,tenhamoscomeçadocomopéesquerdo.

Nãoconsigoevitardesufocarumrisoedizer:–Émesmo?Essaésuaopinião?Thomasnão responde,masvejoqueeleengoleemseco,numesforço

paranãoreagir.Eletiradomantoumpequenocontroleremotocinza,eoaponta para a parede em branco da sala. Surge uma projeção. É umrelatóriopolicial,comfotosdeumapessoaquenãoreconheço.

–Vou lhemostrarumasériede fotos,Sr.Wing–elediz.–AspessoasqueosenhorverásãosuspeitasdeenvolvimentocomosPatriotas.

OsPatriotastinhamtentadoemvãomerecrutar.Combilhetescifradosrabiscadosnasparedesdosbecos, logoacimadeondeeudormia.Oucomalgumsegurançanumaesquinaderuaquemepassavaumbilhete.Ouumpacotinho de dinheiro com uma proposta. Depois de ignorar suaspropostasporumtempo,deixeideternotíciasdeles.

Retruco:–EununcatrabalheicomosPatriotas.Sealgumdiaeumatar,seráde

acordocomasminhasconvicções.–Osenhorpodeafirmarnãoternenhumaligaçãocomeles,mastalvez

alguns deles tenham cruzado seu caminho, e talvez o senhor queira nosajudaraencontrá-los.

–Ah,semdúvida!Vocêmatouminhamãe.Podeimaginarqueeuestejamorrendodevontadedeajudá-lo.

Thomasconseguemeignorardenovo.Olhaderelanceparaaprimeirafotoprojetadanaparede:

–Conheceestapessoa?Sacudoacabeça:–Nuncavinavida.Thomasacionaoremoto,aparecemaisumafoto:–Eesta?

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–Não.Outrafoto:–Eesta?–Não.Maisumadesconhecidasurgenaparede:–Jáviuestagarota?–Nuncanavida.Maisrostosdesconhecidos.Thomasvaiclicandoocontrolesempiscar

nemquestionarminhasrespostas.Elenãopassadeumamarioneteburradogoverno.Euoobservoàmedidaquecontinuamos,desejandonãoestaralgemado,porqueentãoeuatirariaessecaranochão.

Maisfotos.Maisrostosdesconhecidos.Thomasnãoquestionanenhumadas minhas respostas concisas. Na verdade, parece que ele mal podeesperarparasairdasalaeficarlongedemim.

Então surge a foto de alguém que reconheço. A imagem enevoadamostra uma garota de cabelo comprido,mais comprido do que o cabelocurto de que me lembro. Ainda sem nenhuma tatuagem de videira.Aparentemente,KaedeéumaPatriota.

Nãoousopermitirquemeurostoexpresseoreconhecimento,edigo:– Se liga, cara. Se eu conhecesse alguma dessas pessoas, você acha

mesmoqueeutediria?Thomasestáseesforçandomuitoparamanterapostura.–Terminamos,Sr.Wing.–Ah,paracomisso!Dápraverquevocêdariaqualquercoisaparame

darumaporrada.Façaisso.Eutedesafio.Seusolhosreluzemdefúria,maselesecontém:–Minhasordensforamparalhefazerumasériedeperguntas–elediz,

tenso.–Ejáfizisso.Porisso,terminamos.–Porquê?Poracasoestácommedodemim?Vocêsóécorajosopara

mataramãedosoutros,né?Thomasapertaosolhosedádeombros:–Elaéummarginalamenoscomquemtemosdelidar.Cerroopunhoecusponacaradele.

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Issoacabacomaposedele.Seupunhoesquerdobatecomforçaemmeuqueixo,minhacabeçaviraparao lado.Estrelasexplodemdiantedemeusolhos.

–Você seacha,nãoé?–Elediz. – Sóporquepregoualgumaspeçasebancouoassistentesocialparaaescóriadarua?Bem,vou lhecontarumsegredo.Eu também venho de um setor pobre,mas segui as normas.Meesforceiparasubirnavida,emereciorespeitodomeupaís.Vocêstodossósabem ficar sentados, reclamando e culpando o Estado pela sua falta desorte.Vocêsnãopassamdeumbandodemeliantesimundosepreguiçosos.

Elemedáoutrosoco.Minhacabeçaseviraparatrás,esintogostodesangue.Meu corpo tremede tanta dor. Ele agarraminha gola emepuxaparapertodele.Minhasalgemasfazembarulho.–ASrta.Iparismecontouoqueosenhor fezcomelanas ruas.Comoéqueousousemeterabestacomalguémdaposiçãodela?

Ah! É isso que o está incomodando: acho que ele descobriu sobre obeijo.Nãopossoevitardedarumrisinho,apesardemeurostoestarcheiodedor.

–Agoraentenditudo.Éissooqueestáperturbando,nãoé?Járepareino jeito como você olha para ela. Você está louco por ela, não é? Vocêtambémestátentandomerecerficarcomela,seuidiota?Lamentodestruirsuaesperança,maseunãoaforceiafazernada.

Orostodeleficavermelhodeódio:–Elaestáansiosapelasuaexecução,Sr.Wing.Possolhegarantir isso.

Douumarisada:–Mauperdedor,hem?Voufazervocêsesentirmelhor.Voucontartudo

quesepassouentrenósdois.Saberdetalheséasegundamelhorcoisa,nãoacha?

Thomasagarrameupescoço.Suasmãostremem.–Euteriacuidadoseestivesseemseulugar–elediz,comdesprezo.–

Talvez tenha se esquecido de que tem dois irmãos, e que ambos estão àmercê da República. Cuidado com a língua, a não ser que queira ver oscorposdelesenfileiradosjuntosaodesuamãe.

Ele me bate de novo, e um dos seus joelhos me atinge o estômago.Respiro com dificuldade. Imagino Éden e John, então me obrigo a meacalmareaforçaradorairembora.Fiqueforte.Nãodeixequeeleotiredo

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sério.Elemedámaisdoissocos.Estárespirandocomforça.Comumgrande

esforço,eleabaixaosbraçoseexpira.–Agoraestamosmesmoterminados,Sr.Wing–eledizemvozbaixa.–

Euovereinodiadesuaexecução.Nãoconsigo falarde tantador,por isso tentoapenasmanterosolhos

focalizadosnele.Osujeitotemumaexpressãoestranha,comoseestivessezangadooudesapontadoporqueeuofizperderapose.

Eleseviraesaidorecintosemdizerumapalavra.

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JUNE

Naquelanoite,Thomaspassameiahoradoladodeforadaminhaporta,dandoumadúziadedesculpas.Eleestárealmentearrependido,nãoqueriame magoar, não queria que eu resistisse às ordens da ComandanteJameson,nãoqueriaqueeumemetesseemcomplicação,estavatentandomeproteger.

FicosentadanosofácomOllie,olhandoparaonada.Nãoconsigotirarosomdasmetralhadorasdacabeça.Thomassemprefoidisciplinado.

Hojenãofoidiferente.Elenãohesitounemporumsegundoaobedecerà comandante. Executou o extermínio como se estivesse se preparandoparaumavarredurarotineiracontraapraga,ouparaumanoitevigiandoumaeroporto.Serápiorqueeletenhaseguidoasordenstãoaopédaletraouqueelenão façaamenor ideiadequesejapor issomesmoquequeroqueelesedesculpe?

–June,vocêestámeouvindo?EumeconcentroemcoçarOllieatrásdasorelhas.AsanotaçõesdeMetiascontinuamespalhadasnamesinhadecentro,comosálbunsde

retratosdenossospais.–Vocêestáperdendoseutempo–gritoparaele.–Porfavor,deixe-meentrar,querovervocê.–Vejovocêamanhã.–Prometoquenãodemoro.Eulamentomuitomesmo.–Thomas,vejovocêamanhã.–June…Levantoavoz:–Jádissequevejovocêamanhã!Silêncio.Esperomaisumminuto,tentandomedistrairacariciandoOllie.Depoisdeumtempo,eumelevantoeolhopeloolhomágico.Ocorredor

estávazio.

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Finalmentemeconvençodequeelefoiembora.Ficodeitadanosofápormaisumahora.Minhamentesemoverapidamente,vaidosacontecimentosna praça ao aparecimento de Day no telhado, e até as afirmaçõesultrajantes de Day sobre a praga e a Prova, e depois volta a Thomas. OThomasqueobedececegamenteàsordensdaComandante JamesonéumThomas diferente daquele que se preocupava com minha segurança nosetor Lake. Ao crescer, Thomas era desajeitado mas sempre gentil,especialmente comigo. Ou talvez seja eu que tenha mudado. QuandorastreeiafamíliadeDayeviThomasatirarnamãedele,ouquandoolheihojeparaamultidãonapraçasendoalvejada.Nasduasvezesfiqueiimóvelenãofiznada.IssomefazigualaoThomas?Estamosfazendoacoisacertaaoseguirasordensquenosdão?SeráverdadequeaRepúblicaéqueestácerta?

Quanto ao que Day me contou… fico irada só de pensar. Meu paitrabalhou atrás daquelas portas duplas, Metias trabalhou com Chian nasupervisão das Provas. Por que envenenaríamos e mataríamos nossoprópriopovo?

Suspiro, sento no sofá e agarro uma das anotações de Metias namesinhadecentro.

Estaésobreumasemanadetrabalhoexaustivodefaxina,depoisqueofuracão Elias devastou Los Angeles. Outro registro detalha sua primeirasemana na patrulha da Comandante Jameson. Um terceiro é curto, temapenas um parágrafo, e reclama sobre trabalhar dois turnos noturnosseguidos. Isso me faz sorrir. Ainda me lembro das palavras dele. “Malconsigo ficar acordado”. Metias me disse depois da primeira noite emserviço. “Será que ela achamesmo que a gente consegue vigiarqualquercoisadepoisdetrabalharduasnoitesseguidas?Euestavatãocansadohoje,queoprópriochancelerdasColôniaspoderiaterentradonoBatallaHall,eeunemteriapercebido.”

Sintoumalágrimamedescernorostoerapidamenteaseco.Olliegemeameu lado.Estendominhamãoeaafundonoespessoebrancopeloemvoltadopescoçodele,eledescansaacabeçanomeucolo,comumsuspiro.

Metiasseinquietariacomessascoisastãopequenas.Meus olhos vão ficando pesados à medida que continuo a ler. As

palavras começam a se embaralhar na página, até que já não consigocompreendertotalmenteoquecadaregistrosignifica.Finalmente,ponhoo

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diáriodeladoecaionosono.Day aparece emmeus sonhos. Ele seguraminhasmãos entre as suas,

meucoração seaceleraa seu toque. Seucabelo lhe cainosombros comouma cortina de seda e tem uma faixa vermelha de sangue. Seus olhosexpressamdor. “Eunãomateiseu irmão.”Elemepuxaparapertodoseucorpo.“Garantoavocêqueeunãopoderiaterfeitoisso.”

Quando acordo, fico deitada imóvel por algum tempo, e deixo que aspalavras de Day percorramminha cabeça.Meus olhosmiram amesa docomputador. O que realmente aconteceu naquela noite fatídica? Se DayatingiuoombrodeMetias,comoafacafoipararnopeitodeMetias?Essaideiamedádornocoração.OlhoparaOllie.

–QuemiaquererferiroMetias?–Eupergunto.Olliemeretribuioolharcomolhospesarosos.–Eporquê?

Váriosminutosdepoismelevantodosofá,depoisvouatéminhamesadetrabalhoeligoocomputador.

Volto ao relatório do crime emitido peloHospital Central. São quatropáginas de texto e uma de fotos. Resolvo examinar minuciosamente asfotos. Afinal de contas, a Comandante Jameson só tinha me concedidoalgunsminutosparaanalisarocorpodeMetias,eeuuseimalessetempo.Mas como eu poderia ter me concentrado? Nunca duvidei de que oassassino fosse outra pessoa que não o Day. Não estudei as fotos tãodetidamentequantodeveria.

Clicoduasvezesnasprimeirasfotoseasamplioparaatelatoda.Oquevejomedeixatonta.OrostofrioesemvidadeMetiasviradoparaocéu,seucabeloestáespalhadodebaixodacabeça,numpequenocírculo.Sanguelhemanchaacamisa.Respirofundo,fechoosolhosedigoamimmesmaparame concentrardesta vez. Eu sempre conseguia ler o textodos relatórios,mas jamais consegui estudar as fotos. Agora, preciso fazer isso. Abro osolhosefocalizonovamenteocorpodomeuirmão.Euqueriateranalisadopessoalmenteosferimentosquandotiveoportunidade.

Primeiromecertificodequeafacanafotoestárealmenteenterradanoseupeito.Gotasdesanguemanchamocabo.Nãovejonenhumpedaçodalâmina.EntãoolhoparaoombrodeMetias.

Embora esteja coberto pela manga, é possível ver que um grandecírculo de sangue mancha o tecido. Não poderia ser do sangue que se

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espalhoudopeito:devehaveroutroferimento.Amplioafotodenovo.Nãodáparaverdireito,estámuitoenevoada.

Mesmosehouverumcortesemelhanteaodeumafacanoombrodele,nãoconsigoverdesteângulo.

Fechoafotoeclicoemoutra.É então quemedou conta de uma coisa. Todas as fotos desta página

foram tiradas do mesmo ângulo. Mal consigo distinguir os detalhes noombro, e até da faca. Franzo a testa. Fotos mal tiradas de uma cena decrime. Por que não há fotos em close dos ferimentos? Volto ao início dorelatório, procurando páginas que eu tenha deixado de ver. Mas é tudo.Voltoàmesmapáginaetentoencontraralgumsentidonela.

Talvezasdemaisfotossejamconfidenciais.EseaComandanteJamesonaspegou,paramepouparo sofrimento?Sacudoa cabeça.Não, isso seriaburrice. Se fosse assim, ela não teria mandado nenhuma foto com orelatório. Olho fixamente para a tela, então me atrevo a imaginar umaalternativa.

EseaComandanteJamesonpegouasfotosparaesconderalgumacoisademim?

Não,de jeitonenhum.Eumerecostonacadeirae fixoaprimeira fotomaisumavez.PorqueaComandanteJamesoniriaquereresconderdemimosdetalhesdoassassinatodomeu irmão?Elaadora seus soldados. FicouindignadacomamortedeMetias,atéprovidenciouofuneral.Elaoqueriaemsuapatrulha.Foielaqueopromoveuacapitão.

Masduvidoqueo fotógrafoda cenadocrimeestivesse tãoapressadoquetirasseumconjuntotãoruimdefotos.

Penso no assunto sob vários ângulos, mas chego sempre à mesmaconclusão.Esserelatórioestáincompleto.Passoamãonocabelo,frustrada.Nãocompreendo.

Subitamente,olhomaisdepertoafacanafoto.Estágranulada,équaseimpossíveldistinguirosdetalhes,masalgoacendeumaantiga lembrançaque fazmeuestômagodarumnó.O sangueno caboda faca está escuro,mas lá também há outra marca, algo mais escuro do que o sangue. Aprincípiopensoqueépartedopadrãoesmaecidodafaca,masessasmarcasestãoemcimadosangue.Elassãopretas,espessaseirregulares.Tentomelembrar da aparência da faca na noite do acontecimento, quando tive

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oportunidadedevê-lapessoalmente.Essasmarcaspretasparecemgraxaderifle.Quasecomoamanchade

graxanatestadeThomas,naprimeiravezqueovinaquelanoite.

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DAY

Quando June volta a me visitar, na manhã seguinte, até ela seimpressiona,pelomenosporumsegundo,comaminhaaparência,largadocontraumaparededacela.Inclinoacabeçanadireçãodagarota.Elahesitaaomever,masrapidamenteserecompõe.

–Suponhoquevocêtenhafeitoalguémsezangar–eladiz,eestalaosdedosparaossoldados.–Todosparafora.Queroconversaremparticularcomoprisioneiro.–Elaapontacomacabeçaparaascâmerasdesegurançaposicionadasemcadacantodacela.–Edesliguemessascâmerastambém.

Osoldadoencarregadoprestaumacontinênciaediz:–Sim,senhora.Quando vários soldados se apressama desligar as câmeras, eu a vejo

pegarduasfacasdocinto.Achoquefizalgumacoisaqueaaborreceu.Umarisadaborbulhanaminhagargantaese transformanumataquede tosse.Bem,achoquedevemosnoslivrardoquenosatrapalha.

Quandoossoldadosvãoemboraeaportasefecha,Juneseaproximaeseagachaameulado.Eumepreparoparasentirumalâminacontraminhapele.

–Day.Elanãosemexeu.Emvezdisso,repõeasfacasnocintoepegaumcantil

deágua.Achoque foi sóum teatrinhoparaos soldados.Eladerramaumpoucodolíquidofrioemmeurosto.Euvacilo,masdepoisabroabocaparapegarumpoucodaágua,quenuncafoitãosaborosa.

Junederramaalgumaáguadiretamentenaminhaboca,edepoisguardaocantil.

–Seurostoestáhorrível!–Hápreocupaçãoemaisalgumacoisaemsuaexpressão.–Quemfezissocomvocê?

–Legalvocêperguntar.–Ficosurpresoporelaseimportar.–Vocêpodeagradeceraseuamiguinhocapitão.

–Thomas?– É esse sujeito aí. Acho que ele não estámuito satisfeito porque eu

ganhei um beijo de você, e ele não. Por isso, eleme interrogou sobre os

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Patriotas.Aparentemente,aKaedeéumaPatriota.Mundopequeno,né?OrostodeJuneexpressasuaraiva:–Elenãomencionounadadisso.Ontemànoiteele…bom,voulevaro

assuntoàComandanteJameson.– Obrigado. – Lágrimas gotejam dos meus olhos. – Eu estava me

perguntando quando você viria. – Hesito por um segundo e pergunto: –VocêjátemalgumanotíciasobreTess?Elaestáviva?

Junebaixaoolhareresponde:–Desculpe.Nãotenhocomosaberondeelaestá.Tessdeveestarasalvo,

desdequesemantenhadiscreta.Nãofaleisobreelacomninguém.Elanãofoipresarecentemente…nemmorta.

Ficofrustradocomafaltadenotícias,masaliviado,aomesmotempo.–Emeusirmãos,comoestão?Juneapertaoslábiosediz:–Não tenho acesso aoÉden, embora esteja certadeque ele continua

vivo. John está indo tão bem quanto o esperado. – Quando ela ergue osolhosdenovo,vejoqueelesmostramconfusãoetristeza:–LamentovocêterprecisadolidarcomoThomasontem.

–Obrigado–sussurro.–Háalgumarazãoespecialparavocêestarmaislegalcomigohojedoquedehábito?

Não espero que June considere essa pergunta seriamente, mas issoacontece. Elame olha fixamente, depois se senta àminha frente com aspernasdobradasdebaixodocorpo.Juneestádiferentehoje.Dócil,talvez,eatétriste.Insegura.Comumaexpressãoquenuncaviantes,mesmoquandoaconhecinasruas.

–Algumacoisaaestáperturbando?Juneficaemsilêncioporumlongomomento,comosolhosparabaixo.

Finalmente,elameolha.Perceboqueestáprocurandoalgumacoisa.Estarátentandoencontrarumaformadeconfiaremmim?

–Ontemànoitevolteiaestudarorelatóriodacenadoassassinatodomeuirmão.

Sua vozbaixa atéummurmúrio, precisome inclinarpara frenteparaouvi-la.

–Edaí?–Indago.

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OsolhosdeJuneprocuramosmeus.Elahesitadenovo:– Day, você pode afirmar, sincera e verdadeiramente, que nãomatou

Metias?Eladeve terdescobertoalgumacoisa.Elaquerumaconfissão.Anoite

no hospital lampeja em meus pensamentos: meu disfarce, Metias meobservando quando entrei no hospital, o jovemmédico que fiz refém, asbalasricocheteandonageladeira,minha longaquedaatéochão,depoisoconfrontocomMetias,amaneiracomoatireiafacanele.Euviqueatingiuseu ombro, tão longe do peito que não poderia nunca tê-lo matado.EnfrentooolhardeJuneedigo:

–Eunãomateiseuirmão.–Estendoobraçoparatocarsuamãoehesitocomadorquesobepelomeubraço.–Nãoseiquemomatou.Lamentotê-lomachucado,maseu tinhadesalvaraminhavida.Euqueria ter tidomaistempopararefletirsobreoquefazer.

Juneacenapositivamentecomacabeça.Aexpressãoemseurostoétãoemocionante que por um segundo tenho vontade de abraçá-la. Alguémprecisaabraçá-la.

–Sintomuitafaltadele–elasussurra.–Penseiqueelefosseviverpormuitotempo,entende,alguémcomquemeusemprepoderiacontar.Eleeratudo que tinhame sobrado. E agora ele foi embora. Eu queria saber porquê.

Elasacodeacabeçalentamente,comosederrotada,depoisfazqueseusolhosencontremosmeusmaisumavez.Suatristezaatornaincrivelmentelinda,comonevecobrindoumapaisagemárida:

–Eeunãoseiporquê.Essaéapiorparte,Day.Eunãoseiporqueelemorreu.Porquealguémoquereriamorto?

Suas palavras são tão semelhantes ameus pensamentos sobreminhamãe,quemalconsigorespirar.EunãosabiaqueJunehaviaperdidoospais,emboraeudevesseteradivinhadopelamaneiracomosecomporta.NãofoiJunequeatirounaminhamãe.Não foi elaque levouapragaparaminhacasa.Elaeraumagarotaqueperdeuoirmãoealguémalevouaacreditarquetinhasidoeu.Então,angustiada,elahaviamerastreado.Seeuestivessenoseulugar,teriafeitoalgodeoutramaneira?

Ela está chorando. Eu lhe dou um pequeno sorriso, depois me sentomais ereto, e estendo a mão para seu rosto. As algemas no meu pulso

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chacoalham.Secoas lágrimassobumdosseusolhos.Nenhumdenósdizcoisaalguma.Nãoépreciso.Elaestápensando.Seeuestoucertosobreoseuirmão,sobrequemaiseunãoestariacerto?

Depoisdeuminstante, Junepegaminhamãoeapressionacontraseurosto. Seu toque faz que um calor gostoso percorra meu corpo. Ela éfascinante. Morro de vontade de puxá-la para junto de mim, comprimirmeuslábiosnosdela,edesfazeradorquevejoemseuolhar.Queriamuitovoltaràquelanoitenobecoporapenasumsegundo.

Souoprimeiroafalar:–Épossívelquevocêeeutenhamosummesmoinimigo.Eeletenhanos

colocadoumcontraooutro.Junerespirafundo:–Nãotenhocertezaainda–eladiz,emboraeupossadizerpelasuavoz

queelaconcordacomigo.–Éperigosonósestarmosconversandoassim.–Ela desvia o olhar, enfia a mão no manto e tira algo que eu pensei terperdidonohospital. –Tome.Querodevolver istoavocê.Não tenhomaisusoparaele.

Tenho vontade de tirá-lo da sua mão, mas o peso das correntes meimpede.Napalma,estámeumedalhão,atexturalisadasuperfíciegastaesuja,masaindaquaseinteira.Apartedocolarestáempilhadanamãodela.

– Você estava com ele! – murmuro. – Você o encontrou no hospitalnaquelanoite,nãofoi?Foiporissoquemereconheceuquandofinalmentemeencontrou.Eudevotertentadopegá-lo.

Juneacenacomacabeça,depoispegaminhamãoelargaopingentenaminhapalma.Euoolho,emocionado.

Meupai.Nãoconsigoafastar sua lembrançaagora,queestoudenovocontemplandomeumedalhão.Recordoodiaemqueelenosvisitou,depoisdeseismesessemumapalavra.Quandoeleestavaasalvodentrodecasa,fechamosascortinasdas janelas, eleabraçouminhamãecom forçae lhedeu um demorado beijo. Manteve uma das mãos de modo protetor noestômagodela.John,comasmãosnosbolsos,esperoupacientementeparacumprimentá-lo. Eu ainda era muito novo, e abracei suas pernas. Édenaindanãoeranascido,aindaestavanabarrigadamamãe.

–Comovãomeusmeninos?–Meupaiperguntou,depoisdefinalmente

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largarmamãe.Elemedeuumtapinhanasbochechas,esorriuparaJohn.Johnlhedeuumsorrisograndeedentuço.Elehaviaconseguidodeixar

ocabelocrescerobastanteparaprendê-lonumrabodecavalo.Eledisse:–Pai!EupasseinaProva!–Verdade?Meu pai deu um tapinha nas costas de John, como se ele fosse um

homem.Aindamelembrodoalívioemseusolhos,otremordealegrianavoz. Naquele tempo, todos nos preocupávamos que John pudesse serreprovadonaProva,considerandoadificuldadequeeletinhaparaler:

–Estouorgulhosodevocê,Johnny.Bomtrabalho!Depois ele olhou para mim. Lembro de ter analisado seu rosto. O

emprego oficial de papai naRepública era fazer a limpeza depois que ossoldadosvoltavamdofront,mashaviaindíciosdequeessanãoeraaúnicatarefa que ele tinha. Indícios como as histórias que ele às vezes contavasobreasColônias,sobresuascidadesreluzentes,suatecnologiaavançada,seus feriados festivos. Nesse momento, eu quis perguntar a ele por quenunca ia para casa, mesmo quando o rodízio no trabalho deveriaproporcionarisso,porqueelenuncaiaveragente.

Masoutracoisamedistraiu:–Temumacoisanobolsodesuajaqueta,papai.Era verdade: uma protuberância circular estava comprimida contra o

tecido.Eledeuumrisinho,depoispegouoobjeto:–Issomesmo,Daniel.–Eleolhouderelanceparamamãeecomentou:–Eleémuitoobservador,nãoé?Mamãesorriuparamim.Meupaihesitou,depoisnosmandouirparaoquarto,entãodissepara

mamãe:–Grace,vejaoqueencontrei.Elaolhoudetidamenteparaoobjeto,eperguntou:–Queéisto?–Émaisumacomprovação.A princípio papai tentou mostrar o objeto apenas à mamãe, mas

conseguiverdireitinhooqueera,quandoeleo revirounasmãos.Deum

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ladohaviaumpássaro,dooutro,operfildeumhomem.“EstadosUnidosdaAmérica, Confiamos em Deus, Vinte e Cinco Centavos” estampado emrelevodeumlado,e“Liberty”e“1990”nooutro.

–Viu?Prova.–Elecomprimiuamoedanamãodela.–Ondevocêachouisto?–Mamãeperguntou.– Nos pântanos sulistas, entre os dois fronts. É umamoeda oficial de

1990.Viuonome?EstadosUnidos.Eraverdade.Os olhos deminhamãe brilharam de animação,mas ainda assim ela

olhoumuitosériaparapapai,edisse:–Estaéumacoisaperigosadeter–sussurrou.–Nãovamosficarcom

istoemnossacasa.Meupaiconcordoucomacabeçaedisse:–Masnãopodemosdestruí-la.Temosdeprotegê-la;peloquesabemos,

estapode ser aúltimamoedade sua espécienomundo. –Eledobrouosdedosdaminhamãesobreamoedaedisse:–Voufazerumacapademetalparaela,algumacoisaquecubraambososlados.Vousoldarbem,paraqueamoedafiquesegura.

–Quevamosfazercomela?– Esconder em algum lugar. – Meu pai fez uma breve pausa, depois

olhouparaJohneparamim.–Omelhorlugarpodeserumlocalóbvioparaqualquerpessoa.Dêamoedaaumdosmeninos,talvezcomoummedalhão.Aspessoasvãopensarqueéapenasumenfeiteinfantil.Mas,seossoldadosaencontraremaquiemcasaquandoderemumabatida,escondidadebaixodeumpiso,vãotercertezadequesetratadeumacoisaimportante.

Fiqueicalado.Mesmonaquelaidade,eucompreendiaapreocupaçãodemeupai.Nossacasajátinhasidovasculhadaanteseminspeçõesderotinapelaspatrulhas, comotodasascasasdenossarua.Sepapaiescondesseamoedaemalgumlugar,elesaencontrariam.

Nodiaseguintemeupaisaiucedo,antesmesmodonascerdosol.Nóssóvoltaríamosavê-lomaisumaúnicavez.Depois,elenuncamaisfoiparacasa.

Aquelas lembranças percorremminhamente nummomento. Ergo os

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olhosparaJuneedigo:–Obrigadoporencontraristo.–Eumeperguntoseelaconsegueperceberatristezanaminhavoz.–Obrigadomesmo,pormedevolverestepingente.

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JUNE

NãoconsigoparardepensaremDay.Quando deito para descansar um pouco à tardinha, no meu

apartamento,sonhocomele.SonhoqueDayestámeabraçandoenãoparade me beijar, suas mãos acariciam meus braços, meu cabelo e minhacintura,seupeitoestáapertadocontraomeu,sintosuarespiraçãoemmeurosto,pescoçoeorelhas.Seucabelocompridoroçaemmim,seusolhosmeafogam em sua profundidade. Quando acordo e me vejo sozinhanovamente,malpossorespirar.

Suas palavras se embaralham na minha cabeça até que nem consigocompreendê-lasmais.QueoutrapessoamatouMetias.QueaRepúblicaestáintencionalmente espalhandoapraganos setorespobres.Recordo-medequandoestávamosnas ruasdoLake, quandoele arriscava sua segurançaporqueeuprecisavadescansar.Elembrodehoje,elesecandoaslágrimasdomeurosto.

Nãoseiondeestáaraivaqueeucostumavateremrelaçãoaele.Eseeudescobrir uma prova de que outra pessoamatouMetias, seja lá por querazão,issoquerdizerquenãotenhoqualquermotivoparaodiá-lo.Anteseuficava fascinada pela sua lenda, por todas as histórias que ouvi antes deconhecê-lo.Agorasintoamesmasensaçãodefascíniovoltando.Imaginoorosto dele, tão lindo mesmo depois de ele sentir dor, ser torturado epadecer, seus olhos azuis brilhantes e sinceros. Tenho vergonha dereconhecerquegosteidopoucotempoquepasseicomelenasuacela.Suavoz podeme fazer esquecer tudo sobre os detalhes quemepercorrem amente, trazendo comela emoçõesdedesejooudemedo, às vezes atéderaiva,massempreprovocandoalgumacoisaemmim.Algumacoisaqueeununcasentiantes.

19H12.SETORTANAGASHI.26°C.

–SoubequevocêteveumaconversaparticularcomDayhojeàtarde–Thomas me diz, quando nos sentamos num café para comer tigelas de

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edame.OcafééomesmoquefrequentávamosquandoMetiasestavavivo.Aescolha de Thomas desse local não tranquiliza meus pensamentos. Nãoconsigoesqueceragraxaderiflebesuntadanocabodafacaquematoumeuirmão.

Talvezeleestejametestando.Talvezelesaibadoqueeudesconfio.Douumamordidanacarnedeporcoparanãoprecisarresponder.Fico

satisfeitadenósdoisestarmossentadosaumaboadistânciaumdooutro.Thomaspassoumuitotempomeconvencendoaperdoá-lo,adeixarqueelemelevasseparajantar.Nãoseibemporqueelefezisso.Parameinduziradizeralgo?Paraqueeurevelassealgumacoisaporacaso?Paraverseeurecusaria, e depois levar essa informação à Comandante Jameson?Não épreciso termuitasprovaspara começaruma investigação contra alguém.Talvezestasaídasejaapenasumaisca.

Mas,poroutrolado,talvezeleestejarealmentequerendofazeraspazescomigo.

Nãosei,porissoficopisandoemovos.Thomasmeobservacomerepergunta:–Quefoiquevocêdisseaele?Háciúmeemsuavoz.Minhavozsoafriaedistante:– Não se incomode com isso, Thomas. – Estendo o braço e toco seu

braço,paradistraí-lo.–Seumgarotomatassealguémquevocêama,vocênãotentariadescobrirporqueelefezisso?Acheiqueeletalvezseabrissecomigo se os guardas não estivessem presentes,mas já desisti dele. Vouficarmaisfelizquandoelemorrer.

Thomasseacalmaumpouco,mascontinuaaanalisarmeurosto.–Talvezvocênãodevessemaisveressegaroto–elesugere,apóslongo

silêncio. – Isso não a está ajudando. Posso pedir à Comandante Jamesonque mande outra pessoa dar ao Day sua porção diária de água. Detestopensarquevocêtenhadeinteragirtantocomoassassinodeseuirmão.

Concordo com a cabeça e dou mais umamordida nos grãos de soja.Ficarcaladaagoranãoseriabom.Eseeuestiverjantandocomoassassinodomeuirmão?Sejalógicaecautelosa.Pelorabodoolho,vejoasmãosdeThomas.EseessasforemasmãosqueesfaquearamemcheioocoraçãodeMetias?

– Você tem razão – digo, sem hesitar. Faço minhas palavras soarem

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gratas e atenciosas. – Ainda não consegui nenhuma informação dele atéagora.Dequalquermodo,elevaimorrerdaquiapoucotempo.

Thomasdádeombrosediz:–Quebomquevocêpensaassim!–EledeixacinquentaNotasnamesa

quandoogarçomseaproxima.–Dayéapenasumcriminosonocorredordamorte. As palavras dele não devem importar para uma garota da suaposição.

Doumaisumamordidaantesderesponder:– E elas não importammesmo. É amesma coisa que se eu estivesse

falandocomumcachorro.Mas,internamente,penso:AspalavrasdeDayvãofazerdiferençaseele

estiverdizendoaverdade.

MuitodepoisdeThomastermeacompanhadoatémeuapartamentoeidoembora, emuitodepoisdameia-noite, fico sentadana frentedemeucomputador,estudandoorelatóriodoassassinatodeMetias.Jáolheiparaas fotosvezes suficientesparanãoprecisarmaismeesquivardeanalisá-las, mas elas ainda me causam um nó no estômago. Todas as fotos sãotiradasdeumângulodistantedosferimentos.Quantomaiseuolhoparaasmanchaspretasnocabodafaca,maisconvencidaficodequesãoresíduosdegraxaderifle.

Quando não consigomais olhar as fotos, volto para o sofá e examinonovamente os relatos de Metias. Se meu irmão tinha outros inimigos,certamente haveria uma pista qualquer em seus textos. Mas ele não erabobo:nuncateriaescritoalgumacoisaquepudesseserusadacomoprova.Li um número considerável de páginas de suas antigas anotações, todasirrelevantese triviais.Àsvezesele falasobrenós.Paramim,essassãoasmaisdifíceisdeler.

UmaanotaçãocomentaanoiteemqueelefoiadmitidonoesquadrãodaComandante Jameson, quando fiquei doente. Outra descreve acomemoraçãoquetivemosjuntos,quandomarquei1.500pontosnaminhaProva. Pedimos sorvete e dois frangos inteiros, e, a certa altura danoite,cheguei a experimentar um sanduíche de frango com sorvete, que talveznão tenha sido a melhor ideia que já tive. Ainda consigo ouvir nós doisrindo,assimcomoosaromassaborososdefrangoassadoepãoquente.

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Comprimoospunhosemmeusolhosfechados,respirofundoesussurroaOllie:–Oqueestoufazendo?–Meucachorroinclinaacabeçaparamim,do lugar onde está deitado no sofá: – Estou defendendo um criminoso eafastandopessoasqueconheçominhavidainteira!

Ollie me olha com aquela sabedoria canina universal, depoisrapidamentevoltaadormir.Euocontemploporalgunsmomentos.Nãofazmuitotempo,MetiasestariacochilandocomosbraçosaoredordascostasdeOllie.EumeperguntoseOllieestaráimaginandoissoagora.

Demoroumminutoparamedar contadeumacoisa.Abroosolhos evoltoaolharparaaúltimapáginaque linorelatodeMetias.Achoquevialgumacoisalá.Estreitoosolhosparaorodapédapágina.

Eraumapalavraescritadeformaerrada.Franzoatesta.–Estranho!–digo em voz alta. A palavra está grafada com um g a mais: ggeladeira.Nunca na vida soube de algum erro de grafia cometido por Metias. Euanaliso a palavra por mais um minuto, sacudo a cabeça, então decidocontinuar.Anotomentalmenteonúmerodapágina.

Dez minutos depois, encontro outro erro. Desta vez a palavra éelevação,masMetiasescreveuelevaçãa.

Duas palavras escritas erradamente.Meu irmãonunca teria feito issoporacaso.Olhoemredor,comosepudessehaverumacâmeradevigilânciana sala. Depois me debruço na mesinha de centro, e começo a peneirartodas as páginas dos relatos de Metias. Guardo na cabeça as palavrasescritaserradamente.Nãohárazãoparaele tê-lasescritoassimparaquealguémasencontrasse.

Achoumaterceirapalavra:burguesia,escritabowrguesia.Depois,umaquartapalavra:emanação,grafadaemamenação.

Meucoraçãocomeçaadisparar.QuandoterminodeexaminartodososdozerelatóriosdeMetias,jásão

24 palavras escritas erradamente. Todas vêm de relatórios escritos nosúltimosmeses.

Encosto-menosofáefechoosolhosparavisualizaraspalavras.TantaspalavrasgrafadascomerroporMetiassópodemsignificarumrecadodeleparamim,aúnicapessoacommaisprobabilidadedeexaminartudoqueeleescreveu.Umcódigosecreto.Deveserporissoqueeletiroutodasascaixasdoarmárionaquelatardefatídica.Essatalvezsejaacoisaimportanteque

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elequeriadiscutircomigo.Alternoaordemdaspalavras,tentandoformarumafrasequefaçasentido,equandoissonãodácerto,trocoasletrasparaversecadaumadelaspoderiaserumanagramaparaoutracoisa.

Não,nada.Esfregoastêmporas.Depoistentooutracoisa.EseMetiasqueriaqueeu

juntasseas letrasqueestão faltandodecadapalavramas tambémasquenãodeveriamestarlá?Calmamenterelacionoessasletrasnaminhacabeça,começandocomogdeggeladeira.

GAOWMESANAWIJHTNCNWIOPOOM

Franzoassobrancelhas.Nãofazsentido.Embaralhoasletrasrepetidasvezesnacabeça,tentandoformarváriascombinaçõesdepalavras.Quandoeueracriança,Metiasbrincavacomigode jogosdepalavras:atiravaumaporçãodeblocoscomletrasnamesa,entãomeperguntavaquepalavraseupoderiaformarcomelas.Agoratentoexperimentaressejogodenovo.

Jogoporalgumtempoatédepararcomumacombinaçãoquefazmeusolhossearregalarem.

“Joaninha!”OapelidodeMetiasparamim.Enguloemsecoetentoficarcalma. Lentamente, alinho as letras que sobraram e tento formar maispalavrascomelas.Diversascombinaçõesmepassampelacabeça,atéqueumadelasmefazparar.

SIGA-ME,JOANINHA.

AsúnicasletrasquesobramdepoisdissosãotrêsWs,edepoisOPTONMCO.Issodeixavaapenasumopçãológica.WWWSIGA-MEJOANINHAPONTOCOM

Umsite.Reúnoas letrasváriasvezesnacabeça,parameassegurardeque minha hipótese está correta. Depois olho de relance para meucomputador.

Primeirodigito o código secretodeMetias, quemepermite acessar ainternet.Colocoasdefesaseasproteçõesquemeu irmãomeensinou:nomundo virtual, há espiões em todos os lugares. Depois desabilito ohistóricodomeubrowser,edigitoaURLcomdedostrêmulos.

Surgeumapáginaembranco.Sóumalinhadetextoaparecenoaltodapágina.

“Deixequeeupeguesuamão,queeulhedareiaminha.”

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SeiexatamenteoqueMetiasquerqueeufaça.Semhesitar,estendoumadasmãoseapressionocomfirmezanomeumonitor.

A princípio, nada acontece,mas depois ouço um clique, vejo uma luzfraca passar por minha pele, e a página em branco desaparece. Em seulugarsurgeoquepareceserumblog.Minharespiraçãoparanagarganta.Há seis curtas anotações no blog. Inclino-me para frente na cadeira ecomeçoaler.

Oquevejomedeixaatônitadepavor.

12dejulhoIsto é para ser lido apenas por June. June, você pode facilmente

deletar todos os traços deste blog ao pressionar sua palma direita natelaedigitarCtrl+Shift+S+F.Não tenhooutro lugarondeescrever isto,porissotemdeseraquimesmo.Paravocê.

Ontemvocêfezquinzeanos.Contudo,gostariaquevocêfossemaisvelha, porque émuito difícil paramim contar a uma garota de quinzeanos o que descobri, especialmente quando você deve estarcomemorando.

Hoje encontrei uma fotografia tirada por nosso falecido pai. Foi aúltimadoúltimoálbumdeles,eeununcahavia reparadoantesporquepapai a havia escondidoatrás deuma fotomaior. Você sabeque vivoolhando as fotos de nossos pais. Gosto de ler os bilhetinhos deles,parecequeelesaindapodemfalarcomigo.Dessavez,porém,noteiqueaúltimafotodaqueleálbumeramuitogrossa.Quandomexinela,afotosecretacaiu.

Papai havia fotografado seu local de trabalho, o laboratório noBatallaHall.Papainuncafalavaconoscosobreseutrabalho,mastirouessafoto.Estavaenevoadaedistorcida,masconseguidistinguiraformadeumrapaz,numamaca,implorandopelavida.Eletinha,estampadoemsuabatahospitalar,umsinalemvermelhomuitointenso,indicandoaltoriscodeinfecção.

Sabeoquepapaiescreveunocantoinferiordessafoto?“Voupedirdemissãohoje,6deabril.”

Nosso pai tinha tentado se demitir na véspera do dia em que ele emamãesofreramaqueleacidentefataldecarro.

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15desetembroHásemanas,procuropistas.Nadaainda.Quempoderiadizerqueo

bancodedadosdoscivisfalecidosfossetãodifícildeinvadir!Masnãovou desistir ainda. Há alguma coisa estranha por trás da morte denossospais,evoudescobrirqualé.

17denovembroVocêmeperguntouporqueeuparecia forademimhoje.June,se

vocêestá lendo isto, provavelmente vai se lembrar dessedia, e agorasaberáporquê.

Tenhoidoatrásdepistasdesdeminhaúltimaanotação.Nosúltimosmeses venho fazendo perguntas sutis a outros empregados dolaboratório,avelhosamigosdopapai,epesquisandoon-line.Bem,hojeencontreiumacoisa.

Hoje finalmente consegui acessar o banco de dados dos civisfalecidos de Los Angeles. Foi a coisa mais complicada que já fiz. Euestava tentando entrar de maneira errada. Eles têm uma falha desegurança nos seus servidores que eu não havia observado antes,porqueelesaenterravamdebaixode todo tipode…bem,dequalquermodo,issopermitiuqueeuconseguisseacessarobancodedados.Paraminhagrandesurpresa,naverdadeacheiumrelatóriosobreoacidentedecarrodenossospais.

Excetopelofatodequenãofoiacidente.June,nuncavouconseguirdizerissoemvozaltapravocê,porissoespero,desesperadamente,quevocêtomeconhecimentodetudoporaqui.

O Comandante Baccarin, outro ex-estudante de Chian (você selembradoChian,certo?)apresentouorelatório.OdocumentodiziaqueoDr.MichaelIparishaviadespertadoadesconfiançadosadministradoresdo laboratóriodoBatallaHallquandoquestionouoverdadeiroobjetivodesuaspesquisas.Elesempretrabalhouparacompreenderosvírusdapraga, evidentemente, mas deve ter descoberto algo que o perturboutanto,quefezqueeletranquilamentesolicitasseumamudançaemsuadesignação de tarefas. Lembra-se disso, June? Foi poucas semanasantesdacolisãodocarro.

Orestodorelatórionãoabordouaspragas,masmedisseoqueeuqueria saber. June, os administradores do laboratório do Batalla Hall

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ordenaramaoComandanteBaccarinqueficassedeolhoemnossopai.Quandonossopaitentouqueodesignassemparaoutratarefa,Baccarinsoubequeele tinhadeduzidoarazãoparasuaspesquisas.Comovocêpode imaginar, isso não caiu muito bem. Ordenaram ao ComandanteBaccarin que “encontrasse uma forma de resolver o problema”. Orelatório termina afirmando que o assunto foi resolvido, sem baixasmilitares.

Datadorelatório:umdiaapósoacidentedecarro.Elesmataramnossospais.

18denovembroConsertaram a falha de segurança do servidor. Vou precisar

encontraroutromododeacessarosdados.

22denovembroOcorre que o banco de dados dos civis falecidos tem mais

informaçõessobreaspragasdoqueeusupunha.Éclaroqueeudeviater sabidodisso, poisaspragasmatamcentenasdepessoas todososanos.Mas sempre achei que as pragas eram espontâneas. Bem, nãosão.

Joaninha, você precisa saber disso. Não sei quando você vaiencontrar essesmeus registros,mas sei que vai acabar encontrando.Escutecomcuidado: quandovocê terminara leitura, nãomedigaquesabedealgumacoisa.Nãoqueroquevocêfaçanadaprecipitadamente.Entendido?Penseprimeiroemsuasegurança.Vocêpodeencontrarumaformadeajudar,euseiquepode.Sealguémpode,essealguémévocê.Mas, em nome da minha segurança, não faça nada que chame aatençãoparavocê.EumematareiseaRepúblicaatacarvocêporreagiràsinformaçõesqueacabeiderevelar.

Se vocêquiser se rebelarcontrao sistema, faça-odedentrodele.Issoémuitomaisfortedoqueserebelarestandoforadosistema.Esevocêescolherserevoltar,leve-mecomvocê.

PapaidescobriuqueaRepúblicaéqueprovocaaspragasanuais.Elascomeçamnoslugaresmaisóbvios.Aquelasencostaselevadas

cheiasdeanimaispastandonãosãooslocaisdeondevemamaioriadacarne que comemos. Você sabia disso? Eu devia ter adivinhado. A

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Repúblicatemmilharesdefazendassubterrâneasparaosanimais.Elasficam a dezenas de metros de profundidade. A princípio o Congressonão sabia o que fazer com os vírus malucos que continuavam a sedesenvolver láeadizimar fazendas inteirasdeanimais. Issoeramuitoinconveniente, certo?Masentão lembraramdaguerradasColônias. Eassim,todavezqueumnovoeinteressantevírusaparecenasfazendasdegado,oscientistascolhemamostraseastransformamemvírusquepodem infectar os humanos. Depois criam uma vacina e a curaadequadas.Edepoisentregamrequisiçõesdevacinaçõesobrigatóriasatodomundo,menosaalgunssetoresdefavelas.CorremboatosdequeumnovosurtoestásendopreparadoparaLake,AltaeWinter.

Eles bombeiam o vírus nas favelas por meio de um sistema detubulaçõessubterrâneas.Àsvezes,no fornecimentodeágua,àsvezesdiretamente em algumas casas específicas, para ver como ele sepropaga.Issodáinícioaumnovosurtodepraga.Quandopensamquejáviram provas suficientes do que o vírus pode fazer, secretamenteinjetamemtodos(istoé,todosqueaindaestejamvivos)acura,durantealgumavarreduraderotinanossetores,entãoapragaéeliminadaatéopróximo teste. Também fazem alguns experimentos individuais com apraga em algumas crianças reprovadas na Prova. Elas não vão paracamposdetrabalho,June.

Nenhumadelasvai.Elastodasmorrem.Vocêentendeaondequerochegarcomisso?Usamaspragaspara

matarapopulaçãoquetemgenesfracos,damesmaformaqueaProvaseleciona os mais fortes. Mas estão também criando vírus para usarcontra as Colônias. Há anos que empregam armas biológicas contraelas.NãodouamínimaparaoqueacontececomasColônias,nemparaexatamente o que nossa República deseja infligir a elas, mas June,nosso próprio povo virou cobaia nos laboratórios. Papai trabalhavanesseslaboratórios,equandoeletentouirembora,elesomataram.Eamamãe.Acharamqueosdois fossemcontara verdadea todomundo.Quemquerummotimemmassa?CertamentenãooCongresso.

Todos nós vamosmorrer assim, June, se alguém não fizer algumacoisa. Daqui a algum tempo, um vírus não vai poder ser controlado,nenhumavacinanemcuraserácapazdedetê-lo.

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26denovembroThomas sabe. Ele sabe de que eu desconfio, que eu acho que o

governopodetermatadonossospaisdepropósito.Fico me perguntando como ele sabia que eu havia pirateado meu

acesso ao banco de dados dos civis falecidos. Tudo em que possopensar é que deixei algum indício, assim os caras da tecnologia queconsertaramafalhadesegurançaencontraramesseindício,econtaramaele.Porissoelemeabordouhoje,meperguntandoarespeito.

Eudissea ele queeuaindaestavapranteandoamorte denossospais, e que fiquei meio paranoico. Acrescentei que não achei nada.Disse ainda que você também nada sabia a respeito, e que ele nemdeveriamencionarofatoavocê.Eledissequemanteriasegredo.Achoque posso confiar nele, mas é estressante saber que alguém sabe,mesmoqueumpouquinho,sobreminhadesconfiança.Querodizer,vocêsabequeeleàsvezestemacessosderaiva.

Tomei uma decisão. No fim de semana, vou comunicar àComandanteJamesonquequerodeixarsuapatrulha.Vou reclamardonúmero de horas de serviço, dizer que fico muito pouco tempo comvocê,qualquercoisaassim.Vouatualizaressasanotaçõesquando fordesignadoparaoutroposto.

SigoasinstruçõesdeMetiasedeletoabsolutamentetudodeseublog.DepoismeenrosconosofáedurmoatéThomas telefonar.Apertoum

botãodemeutelefoneeavozdoassassinodomeuirmãoencheasaladeestar.Thomas,osoldadoquesenteprazeremexecutarqualquerordemdaComandante Jameson,mesmo se forparamatarumamigode infância.OsoldadoqueusouDaycomoumconvenientebodeexpiatório.

–June?–Elediz.–Vocêestábem?Sãoquasedezhoraseaindanãotevi.AComandanteJamesonquersaberondevocêestá.

Inventoumamentirinha:–Nãoestoupassandobem.Voudormiratéumpoucomaistarde.

–Sei…–Pausa.–Quaissãoseussintomas?–Euvouficarbem.Estousódesidratadaefebril.Achoquecomialguma

coisa estragada ontem à noite naquele café. Diga à Comandante Jameson

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quedevomesentirmelhornocomeçodanoite.–Tudobem,então.Lamentosaberdisso.Melhorasrápidas.–Maisuma

pausa.–Sevocêaindaestiverdoenteànoite,voupreencherumrelatórioemandar a patrulha contra a praga para examinar você. Protocolo, vocêentende.Esevocêprecisarqueeuváatéaí,ésóchamar.

Vocêéaúltimapessoaquequerover.–Seforocaso,euaviso.Obrigada.Edesligo.Minha cabeça dói. Sãomuitas lembranças,muitas revelações.Nãome

admiraqueaComandanteJamesontenhamandadoquelevassemocorpodeMetiascomtantapressa.Eeufuiburraobastanteparapensarqueelafezissoporsolidariedade.Nãomesurpreendequeelatenhaorganizadoofuneral. Mesmo minha missão-teste de rastrear Day deve ter sido umartifícioparamedistrair,enquantodestruíamqualquerprovaquerestasse.

Penso na noite em que Metias resolveu pedir demissão da tarefa deacompanharChianedeserumdosexecutoresdosresultadosdasProvas.Eleestavacaladoereservadoquandofoimepegarnocolégio.Lembrodeterperguntado:“Vocêestábem?”

Elenãorespondeu.Apenaspegouminhamãoesedirigiuparaaestaçãodetrem.

–Vamosembora,June.Vamosparacasa.Quandoolheiparaasluvasdele,viminúsculasmanchasdesangue.Metiasnãotocounojantar,nemmeperguntoucomofoimeudia,oque

me aborreceu, até eume dar conta de que ele estavamuito perturbado.Finalmente,poucoantesdahoradedormir,fuiatéondeeleestavadeitado,nosofá,emeaconchegueisoboseubraço.Elebeijouminhatesta.

–Euteamo–sussurrei,esperandoobteralgumainformaçãodele.Elesevirouemeolhou;seusolhosestavammuitotristes.–June–eledisse–,achoquevousolicitaroutromentoramanhã.–VocênãogostadoChian?Metiasficouemsilêncioalgumtempo;depoisbaixouosolhos,comose

estivesseenvergonhado:–HojeeuatireinumapessoanoestádiodaProva.Era isso que o estava perturbando. Fiquei calada e deixei que ele

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continuasseafalar.Metiaspassouamãopelocabeloedisse:– Atirei numa garota. Ela foi reprovada na Prova e tentou fugir do

estádio.Chiangritouqueeuatirassenela…eeuobedeci.–Ah!–Naocasiãoeunãosabia,masagoratenhocertezadequeMetias

se sentiu comose tivesseatiradoemmim,quandomatouamenininha. –Lamento–murmurei.

Metiasficouolhandoparaovazio.Depoisdelongosilêncio,eledisse:– Poucas pessoasmatampelas razões certas, June. Amaioria faz isso

pelas razões erradas. Só espero que você nunca se encontre em algumadessascategorias.

Alembrançasedilui,ficopresaaosfantasmasdaspalavrasdele.Não me mexo nas horas que se seguem. Quando o juramento de

fidelidadeàRepúblicateminícioláfora,ouçoaspessoasnasruasentoandocânticos,masnemmelevanto.NãoprestocontinênciaquandoonomedoPrimeiroEleitorécitado.Ollieficasentadoameulado,olhandofixamenteparamim, e choramingando de vez em quando. Eu olho para ele. Estoupensando, calculando. Preciso fazer alguma coisa. Penso em Metias, emmeus pais, na mãe e nos irmãos de Day. A praga lançou suas garras aoredordenós todos,deuma formaoudeoutra.Apragaassassinoumeuspais.ApragainfectouoirmãodeDay.ApragamatouMetiaspordescobriraverdadedetodaafarsa.Elameroubouaspessoasqueamo.EsubjacenteàpragaestáaprópriaRepública.Opaísdoqualeumeorgulhava.Opaísque faz experiências com crianças e as mata se não passam na Prova.Camposde trabalho… todos fomosenganados.TeriaaRepública tambémmatado parentes dosmeus colegas de classe da Drake, todas as pessoasquemorreramemcombate,deacidentesoudeenfermidades?Oquemaisésecreto?

Levanto,vouatéocomputadoreapanhomeucopod’água.Olhofixaeinexpressivamente para ele. De algum modo, a visão dos reflexosdesarticulados de meus dedos no vidro me assusta. Lembro das mãosensanguentadasdeDay,docorpofraturadodeMetias.Essecopoantigofoiumpresente,supostamenteimportadodasilhasdaRepública,naAméricado Sul. Vale 2.150 Notas. Alguém poderia ter comprado a cura da pragacomodinheirogastonessecopoemqueeucostumobeberágua.Talveza

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República nem seja proprietária dessas ilhas. Talvez nada do queme foiensinadosejaverdade.

Numsúbitoacessoderaiva,levantoocopoeoatirocontraaparede.Ovidro se espatifa em mil cacos reluzentes. Eu permaneço de pé, imóvel,trêmula.

SeráqueseMetiaseDaytivessemseconhecidoemoutrolugar,quenãoasruasdofundodohospital,teriamsealiado?

Osolmudadeposição.Chegaatarde.Continuoparada,depé.Finalmente, quando o pôr do sol inunda meu apartamento de tons

laranja e dourados, saio do meu transe. Recolho os cacos do vidroquebrado.Vistomeuuniforme completo.Certifico-medequemeu cabeloesteja penteado para trás impecavelmente, que meu rosto esteja limpo,calmoedesprovidodeemoção.Noespelho,pareçoamesmadeantes,massou uma pessoa diferente internamente. Sou um prodígio que conhece averdade,eseimuitobemoquevoufazer.

VouajudaroDayafugir.

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DAY

Hojeànoitevoutentarfugirdaprisão.Éassimquevaiacontecer.Quandoanoitecai,merestammaistrêsdiasdevida.Ouçomaisgritose

um pandemônio vindo dos monitores do lado de fora da minha cela.Patrulhas contra a praga isolaram totalmente os setores Lake e Alta. Osaltosebaixosdotiroteiovindodastelasmedizqueaspessoasquevivemnaquelessetoresdevemestarenfrentandoastropas.Apenasumladotemavantagemdasarmas.Nãoédifíciladivinharquemestávencendo.

Meus pensamentos vagueiam até June. Sacudo a cabeça, surpreso aorecordarcomopermitimeabrir tantocomela.Eumeperguntooqueelaestará fazendo agora, em que estará pensando. Talvez emmim. Gostariaqueelaestivesseaqui.Dealgumaforma,sempremesintomelhorcomela.É como se June pudesse solidarizar-se completamente com meuspensamentosemeajudasseaafastá-los.Sinto-meconfortadoaoolharparaseurostotãobonito.

Seu rosto também me dá coragem. Sempre tive problema em sercorajososemTess,John,ouminhamãe.

Tenho pensado nisso o dia inteiro. Se eu conseguir encontrar umaforma de escapar desta cela, deme equipar com as armas e um colete àprovadebalasdealgumsoldado,tenhoumaoportunidadeconcretadesairdoBatallaHall.Jávioladodeforadesteprédiováriasvezes.AslateraisnãosãotãoescorregadiasquantoasdoHospitalCentral.Seeuconseguirfugirporumajanela,possocorreraolongodosparapeitosquecercamoedifício,mesmo com minha perna ainda em processo de cura. Os soldados nãopoderãome seguir: teriam de atirar emmim do chão ou do ar,mas sourápidoquandoencontropontosdeapoioparaospés,epossotoleraradornasmãos.VoutertambémdedarumjeitoderetirarJohnpelajanela.Édenprovavelmente jánãoestánoBatallaHall,maseume lembroclaramentedoqueJunemedissenoprimeirodiadaminhacaptura:“Oprisioneiroda6822.”EssedeveseroJohn…evouencontrá-lo.

Masprimeiroprecisoplanejarummododeescapardestacela.Olho para os soldados enfileirados na parede e perto da porta. São

quatro.Cadaumusaumuniformepadrão,botaspretas,camisapretacom

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umaúnica fileiradebotõesprateados, calças cinza-escuro, coleteàprovadebalaseumaúnicabraçadeiraprateada.Cadaumdelestemumriflequemata à queima-roupa e uma arma adicional nos coldres do cinto. Minhamentepensarapidamente.Numcômodocomoeste,comquatroparedesdeaço,nasquaisasbalaspoderiamricochetear,osriflesprovavelmenteusamoutromaterialquenãomuniçãodechumbo.Talvezbalasdeborracha,paramedeixartonto,senecessário.Atétranquilizantes.Masnadaquepossamemataroumatá-los.Nada,istoé,anãoserquedisparadoàqueima-roupa.

Pigarreio. Os soldados se viram para me olhar. Espero mais algunssegundos,façoumsomdeengasgo,ecurvoocorpo.Sacudoacabeçacomosefosseparaclarearospensamentos,depoismeencostonaparedeefechoosolhos.

Os soldados ficam alertas. Um deles aponta o rifle para mim. Elespermanecemcalados.

Continuo com meu teatrinho por mais dez minutos, aparento estarengasgando duas vezes enquanto os soldados não deixam de me olhar.Então,semavisar,finjoterânsiadevômito,depoisirrompoemacessosdetosse.

Os soldados se entreolham. Pela primeira vez, percebo um brilho deinsegurançanosolhosdeles.

– Qual é o problema? – Um deles me pergunta, irritado. É o queempunhaorifleengatilhado.Eunãorespondo.Finjoestarconcentradoemcontermaisumaânsiadevômito.

Outrosoldadoolhaderelanceparaele,ediz:–Vaiveréapraga.–Besteira.Umdosmédicosjáfezexamesnele.Osoldadosacodeacabeçaecontinua:–Ele ficouperto dos irmãos.Aquele novinho, o paciente zero, não é?

Talvezosmédicosnãotenhampercebidoadoençaentão.PacienteZero.Eusabia!Engasgodenovo,tentandodarascostasparaos

soldadosenquantofinjo,paraqueelesnãopensemquequerochamarsuaatenção.Euvomitoecusponochão.

Osguardashesitam.Finalmente,oqueempunhaorifleengatilhadofazumsinalcomacabeçaparaosoldadoaseuladoediz:

– Bem, eu não quero ficar por aqui, se for mesmo um outro vírus

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esquisito e mutante da praga. Chame uma equipe de técnicos. É bom agentelevarogarotoparaascelasdaalamédica.

O outro soldado acena com a cabeça, depois bate na porta. Escuto aporta ser destrancada pelo lado externo. Um soldado no corredor o levaparafora,depoisrapidamentevoltaatrancaraporta.

Oprimeirosoldadoseencaminhanaminhadireção.–Orestodevocêsmantenhaosriflesapontadosparaele–elediz,por

cimadoombro.Eleseguraumpardealgemas.Finjonãoperceberqueeleseaproxima,porestarmuitoocupadoemengasgaretossir.–Levante-se.–Eleagarraumdosmeusbraçosemepuxacomforçapelospés.Eugritodedor.

Ele solta uma das minhas mãos da corrente, depois a prende nasalgemas. Não luto. Depois ele solta a segunda mão, e se prepara paratambémprendê-lanasalgemas.

Desúbito,euviroocorpo,eemumafraçãodesegundoficolivre.Antesqueelepossareagir,douumgirorápidocomocorpo,arrancosuaarmadocoldre,eaapontodiretamenteparaele.Osoutrosdoisguardasmiramseusrifles em mim, mas não disparam: não podem fazer isso sem atingir oprimeirosoldado.

–Mande seus homens lá fora abrirem a porta – digo ao soldado quemantenhocomorefém.

Eleengoleemseco.Osoutrossoldadosnãoseatrevemapiscar.–Abramaporta!–Elegrita.Háumtumultonocorredor,depoisalgunscliques.Oprimeirosoldado

arreganhaosdentesparamimediz,rudemente:–Temdúziasdelesaífora.Vocênuncavaiconseguirescapar.Eusimplesmentepiscoparaele.Noinstanteemqueaportaabreuma

nesga, agarro a camisa do soldado e o empurro numa parede. Um dosoutros guardas tenta atirar emmim,mas eume esquivo e rolo no chão.Tirossãodisparadosameuredor,soamcomobalasdeborracha.Paroderolarnochãobemnahoradedarumarasteiranumsoldado,queofazseestatelardecostas.Mesmo issome fazcerrarosdentesdedor.Drogadepernadoente!Eumearremessopelaaberturaantesqueelespossamfechá-la.

Absorvo a cena no corredor num piscar de olhos. Soldados se

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amontoamnapassagem.Azulejosnoteto.Curvaemânguloretonofimdocorredor. Na parede está escrito 4º andar. O soldado que abriu a portacomeçouareagir:amãoempunhaaarmacomoemcâmeralenta.Douumpulo,alcançoumaparede,entãoagarroasaliênciasuperiordaporta.Minhapernamachucadame desequilibra completamente, quase volto a cair nochão. Soam mais tiros. Balanço o corpo em direção ao teto, e agarro ainterseçãometálicaentreosazulejos.“Cela6822–sextoandar.”Balançoocorpoparabaixo, e chuto a cabeçadeum soldado comminhapernanãomachucada.Elecai,eurolocomele.Sintoduasbalasdeborrachaatingi-lonoombro.Elegrita.Eumeagachoesaiocorrendopelocorredor,driblandosoldadosearmas,econsigomedesviardasmãosqueseestendemparamepegar.

Preciso chegar até o John. Se conseguir tirá-lo da cela, podemos nosajudaraescapar.Seeuconseguir…

A essa altura, uma coisa pesada me atinge no rosto. Minha visãoescurece.Lutoparameconcentrar,massintoquecaionochão.Tentomelevantarcomumsalto,masalguémmederrubadenovo,umadoragudafazminhas costas se contorcerem. Um soldado deve terme golpeado com ocano de um rifle. Sinto mãos prenderemmeus braços e pernas. Respirocommuitadificuldade.

Tudoacontecetãorapidamentequemalconsigoregistrartudo.Minhacabeçaestázonza.Achoquevoudesmaiar.

Escutoumavozfamiliaracimademim.ÉadaComandanteJameson.– Que diabo está acontecendo aqui? Ela continua a gritar com seus

soldados.Minha visão volta gradativamente. Percebo que ainda estou tentando

melivrardosoldadoquemeprende.Certamão agarrameuqueixo.De repente estou olhandodiretamente

paraosolhosdaComandanteJameson.Eladiz:–Tentativaidiota,essa.LançaumolharparaThomas,quelheprestacontinência.Elaordena:– Thomas, leve-o de volta à cela e, só para variar, ponha guardas

eficientesparavigiá-lo.Elasoltameuqueixoeesfregaasmãosenluvadas:–Queroqueoshomensqueoguardavamsejamdispensadoseexpulsos

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daminhapatrulha.–Sim,senhora.Thomas bate continênciamais uma vez, depois começa a dar ordens

grosseiramente.Minhamãolivreestápresaàsalgemasaindapenduradasnooutropulso.Pelocantodoolho,vejooutraoficial,vestidadepreto,aoladodeThomas.É June.Meu coraçãoquase saipelaboca.Ela estreitaosolhosparamim.Emsuamãovejooriflequeelausouparamegolpear.

Arrastam-mechutandoegritandodevoltaàminhacela. June ficaporperto quando os soldados me acorrentam novamente à parede. Então,quandoelesrecuam,elasedebruçaparapertodomeurostoediz,demodorude:

–Recomendoquevocênãotenteissodenovo.Só há uma fúria gélida em seus olhos. Perto da porta, vejo a

ComandanteJamesonsorrir.Thomasobserva,comexpressãoséria.Nesseinstante,Juneseinclinadenovo,entãosussurraemmeuouvido:– Não tente de novo, porque você não vai conseguir sozinho. Vai

precisardaminhaajuda.De todas as coisas que eu poderia ter imaginado saindo de sua boca,

essasnãofiguravamcertamenteentreelas.Tentomanterminhaexpressãoinalterada,masmeucoraçãodeixadebaterporumsegundo.Ajuda? Junequermeajudar? Esta é amesma garota que acabou deme golpear emedeixar num estado semiconsciente no corredor. Será que está tentandofazerqueeucaianumaarmadilha?Ouseráqueestásendosincera?

June se afasta de mim no instante em que termina a última palavra.Finjo estar zangado, como se ela me tivesse murmurado um insulto. AComandanteJamesonlevantaoqueixodelaediz:

–Muitobemdito,AgenteIparis.–Juneprestaumabrevecontinência.–SigaThomasatéohallenosencontraremoslá.

Juneeocapitãosaem.FicosozinhocomaComandante Jamesoneumnovorevezamentodesoldadospertodaportadacela.

– Sr. Wing – ela me diz, após algum tempo –, foi uma tentativaimpressionantedesuaparte.OsenhoréverdadeiramentetãoágilquantoafirmouaAgente Iparis.Detesto verum talento assimdesperdiçado comcriminosos imprestáveis,mas a vida não émuito justa, certo? – Ela sorriparamim.

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– Pobre menino! O senhor acreditou mesmo que poderia escapar deumafortalezamilitar,nãofoi?

A Comandante Jameson vem até onde estou, inclina-se, e apoia ocotovelonumjoelho.

– Vou lhe contar uma pequena história – ela diz. – Há alguns anos,prendemos um jovem renegado que tinhamuita coisa em comum comosenhor,eraousadoeintrépido,estupidamentedesafiadoreinconveniente.Ele tambémtentouescaparantesdesuaexecução.Sabeoqueaconteceu,Sr.Wing? – Ela estende amão, que põe naminha testa,me empurrandopara trás, até comprimirminha cabeçanaparede. –Essegaroto foi até aescadaria, onde o pegamos. Quando chegou a data de sua execução, otribunalme concedeupermissão paramatá-lo pessoalmente, ao invés decolocá-loem frenteaopelotãode fuzilamento.–Suamãoapertaaminhatesta.–Achoqueeleteriapreferidoopelotãodefuzilamento.

– Algum dia a senhora vai morrer de um jeito pior do que ele –retruqueiasperamente.

AComandanteJamesonsoltaumagargalhadaediz:–Mal-humorado até o fim, não é? – Ela soltaminha cabeça e levanta

meuqueixocomumdedo.–Osenhorémuitodivertido,meulindorapaz.Estreitoosolhos.Antesqueelamepossa impedir,eumesoltodasua

pegada emordo suamão para valer. Ela emite um grito agudo.Mordo omaisfortequeposso,atésentirogostodesangue.AComandanteJamesonmeatiracomviolêncianaparede.Ogolpeme fazverestrelas.Elasegurafirmementeamão,desempenhandoumadançaagônicaenquantoeupisco,lutando para ficar acordado. Dois soldados tentam ajudá-la, mas aComandanteosrepele.

– Espero ansiosa sua execução, Day – ela me diz, quase babando deraiva.Suamãogotejasangue.–Vouficarcontandoosminutos!–Depoiselasaiquenemumfuracão,batendoaportadacelacomviolência.

Fechoosolhoseenterroacabeçanosbraços,paraqueninguémpossavermeurosto.Sanguepermanecenaminhalíngua,estremeçocomogostometálico.Nãotiveaindaacoragemdepensarnadatadaminhaexecução.Comoseráficardediantedeumesquadrãodefuzilamento,esemmaneiradefugir?MeuspensamentosvagueiamedepoisseconcentramnoqueJunemedisse:“Vocênãovaiconseguirsozinho.Vaiprecisardaminhaajuda”.

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Ela deve ter descoberto alguma coisa: quem realmente matou seuirmão, ou alguma outra verdade sobre a República. Ela agora não temnenhuma razão para me fazer cair numa armadilha. Não tenho nada aperder, nem ela a ganhar. Espero até que esse raciocínio seja bemabsorvido.

UmaagentedaRepúblicavaimeajudarafugir.Vaimeajudarasalvarmeusirmãos.

Devoestarenlouquecendo.

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JUNE

Aprendi na Universidade de Drake que amelhormaneira de andar ànoitesemservistaénostelhadosdosprédios.Ficopraticamenteinvisívelaumaalturadessas.Aspessoasconcentramsuaatençãonarua,alémdisso,ládecimaconsigoamelhorvistadolugarparaondemedirijo.

HojeànoiteestareidevoltaàdivisaentreLakeeAlta,ondememetinaluta de Skiz com Kaede. Tenho de encontrá-la logo, antes de voltar aoBatallaHalldemanhãediscutircomaComandanteJamesonosdetalhesdafuga frustrada de Day. Kaede vai ser minha melhor aliada na iminenteexecuçãodeDay.

Pouco depois da meia-noite, visto-me toda de preto: botas pretas decaminhada,umafinajaquetapretadeaviador,facasnocinto,umapequenamochilapretanosombros.Nãoestoucomasminhasarmas:nãoqueroqueninguémmerastreieatéossetoresdapraga.

Chegoatéotopodoedifício,atéestarsozinhanotelhadocomoventosibilando ameu redor. Dá para sentir o cheiro da umidade do ar. A estahora,algumasencostasaindatêmanimaispastando.Aoolharparaeles,ficomeperguntandosetenhoestadovivendosobreumafazendasubterrâneade carne esse tempo todo. Daqui posso enxergar todo o centro de LosAngeles,bemcomováriosdossetoresqueocercam,eamargemfinaqueseparaoenormelagodooceanoPacífico.Éfácildiferenciarondeossetoresricosfazemdivisacomosmaispobres,ondealuzelétricaestáveldálugaralanternastremeluzentes,fogueirasecentraisdeenergiaavapor.

Usoumlançadoraéreodecordasparaestenderumfinocaboentredoisprédios.Depoisdeslizosilenciosamentedeprédioemprédio,atéestarbemdistante dos setores Batalla e Ruby. Aquiminha tarefa émais complexa,porque os edifícios não são tão altos, e os telhados estão em péssimascondições, alguns até ameaçam desmoronar completamente se forçaexcessivaosatingir.Escolhocuidadosamenteosalvos.Algumasvezessouforçada amirar o lançadormais baixo do que o telhado, depois apoiar ocorpoatéotopodosprédiosquandochegoaooutrolado.QuandoalcançoosarredoresdosetorLake,sintoosuorpingandonopescoçoenascostas.

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A margem do lago fica a apenas alguns quarteirões. Quando olhoatentamente para o setor, reparo que fitas adesivas vermelhas estão emquase todososquarteirões,esoldadosdaspatrulhascontraapraga,commáscaras de gás e capas pretas, estão em cada esquina. Marcas de Xaparecemem filas e filas de portas. Vejo umapatrulha indodeporta emporta, fingindo estar fazendo mais uma varredura rotineira. Tenho umpalpite de que estão distribuindo curas, exatamente como disse Metias.Daqui a algumas semanas, essa praga terá “magicamente” desaparecido.Esforço-meparanãoolharnemparapertodeondeficaacasadeDay,ou,talvez,ondeficava.Comoseocorpodesuamãeaindaestivesselá,caídonarua.

Demoromaisdezminutospara chegar ao local, já do ladode foradoLake, onde conheci Day. Aqui os telhados são muito frágeis para meulançador aéreo de corda. Cuidadosamente ando tateando, pelo chãomesmo.Souágil,masnãosouDay.Sigopelosbecossombreadosatéabeiradolago.Areiamolhadavaisendoesmigalhadapelosmeuspés.

Vou caminhando pelos becos dos fundos, com cuidado para evitar ospostes,osguardasmunicipaiseainfindávelmultidãodarua.DaycertavezmecontouqueconheceuKaedenumbaraqui,nadivisaentreAltaeWinter.Vou examinando a área enquanto caminho. Dos telhados eu já podia verquehaviacercadeumadúziadebaresqueseenquadravamnolocalenadescriçãoqueDayfez,masaquinochão,contonovedeles.

Paroembecosváriasvezes,paracoordenarmeuspensamentos.Semeapanharemaqui e alguémdescobrir o que estou fazendo, provavelmentemematarão.Semfazerperguntas.Essaideiaacelerameucoração.

Mas então recordo as palavras de meu irmão. Isso basta para fazermeus olhos arderem, e cerrar meus dentes. Já vim longe demais paradesistiragora.

Perambulo inutilmenteporváriosbares.Todosparecemiguais:poucoiluminados, cheios de fumaça e bagunça, a ocasional luta de Skizacontecendo num canto escuro. Verifico todas as lutas, embora tenhaaprendido minha lição o suficiente para ficar afastada dos círculos.Perguntoatodososatendentesdebarseconhecemumagarotacomumatatuagemdevideira.MasnadadeKaede.

Cercadeumahorasepassa.

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E,então,euaencontro.Naverdade,elaéquemeencontra.Nemtenhoaoportunidadedeentrarnobar.

Malsaiodeumbecoadjacenteeestouindoemdireçãoàportalateraldeumbar,quandosintoalgopassarvoandopormeuombro.Éumaadaga.Instantaneamente pulo para fora do caminho, meus olhos percorremrapidamenteo local.Alguémsaltadosegundoandar, investecontramim,derrubando nós duas na sombra.Minhas costas batem violentamente naparede.Nomesmo instantepegominha facano cinto, antesdeverquemmeatacou.

–Évocê!–Exclamo.Ameninaquemeencaraestáfuriosa.Aluzdaruarefletesuatatuagem

devideira,amaquiagempretaepesadalhedelineiaosolhos.–Tudobem–dizKaede.–Seique tu estáprocurandopormim.Você

querfalartantocomigoqueestábatendopernaemtodososbaresdaAltafazmaisdeumahora.Queéquetuquer?Umarevancheoucoisaassim?

Vouresponder,quandoperceboummovimentonas sombrasatrásdeKaede.Ficoparalisada.Hámaisalguémconosco.

QuandoKaedevêmeuolharsedeslocarpara láeparacá,elaergueavozediz:

–Nãoseaproxime,Tess.Émelhorvocênãoverisso.–Tess?–Estreitoosolhosparaaescuridão.Ovultodepéépequeno,

temumaestruturadelicada,eocabelopareceestarpuxadoparatrásnumatrança malfeita. Olhos grandes e luminosos me examinam por trás deKaede.Tenhovontadedesorrirparaela:seiqueessanotíciavaifazerDaymuitofeliz.

Tessdáumpassoàfrente.Elaparecesaudável,apesardasolheiras.Aexpressãodesconfiadafazqueeumesintaenvergonhada.

–Olá!–Eladiz.–ComovaioDay?Estábem?Façoumsinalpositivocomacabeça.–Porenquanto.Ficofelizporvocêtambémestarbem.Oquevocêestá

fazendoaqui?Ela me dá um sorriso cauteloso, depois aponta com os olhos,

nervosamente,paraKaedequeaolhaaborrecida,meapertandocommaisforçanaparede.Entãoperguntaraivosamente:

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–Quetalvocêresponderprimeiroàminhapergunta?TessdeveterentradoparaosPatriotas.Deixocairminhafacanochão,

depoismostrominhasmãosvaziasparaasduas:– Estou aqui para negociar com você. – Devolvo o olhar fixo com

tranquilidade.–Kaede,precisodesuaajuda.PrecisofalarcomosPatriotas.Issoapegadesprevenidaeelapergunta:–PorquevocêachaquesouumaPatriota?–Trabalho para aRepública. Sabemosmuitas coisas, e algumas delas

podemlhesurpreender.Kaedeestreitaosolhosparamimediz:–Vocênãoprecisadaminhaajuda,estámentindo.Vocêéumsoldado

daRepública,eentregouoDay.Porquedeveríamosconfiaremvocê?Pegominhamochila, abro o zíper e retiro um grossomaço deNotas.

Tesssoltaumpequenosuspiro.–Querodarissoavocê–respondo,entregandoodinheiroaKaede.–E

temmais,deondeveioisso,masprecisoquevocêmeescute,enãotenhomuitotempo.

Kaede examina as notas, com a mão de seu braço sem ferimentos, etesta uma com a ponta da língua. Seu outro braço está numa tipoia. Derepente eumepergunto se foiTessquepôs a ataduranaquelebraço.OsPatriotasdevemachá-laútil.

–Apropósito,lamentoterfeitoisso–digo,apontandoparaseubraço.–Tenhocertezadequevocêcompreendeporquefizisso.Euaindacarregoosferimentosquevocêmecausou.

Kaededáumarisadasecaediz:– Tudo bem. Pelo menos agora a gente tem mais uma médica nos

Patriotas.EladáumtapinhanogessoepiscaparaTess.– Fico satisfeita em saber – digo, olhando de lado para Tess. – Tome

contadeladireito.Elatemmuitovalor.Kaedeanalisameurostoumpoucomaise finalmentemesolta.Então

fazumsinalcomacabeçaparameucinto:–Larguesuasarmas.Nãodiscuto. Tiro quatro facas do cinto,mostro-as para ela, depois as

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atironochãodobeco.Kaedeasafastademimcomumchute.–Vocêtemalgumequipamentoderastreamento?Algumdispositivode

escuta?–Elapergunta.PermitoqueKaedeverifiqueminhasorelhaseminhaboca,erespondo:–Nãotenhonadadisso.–Seeuouvirnemquesejaumapisadavindopracá–dizKaede–,eute

matonahora.Entendido?Façoquesimcomacabeça.Kaede hesita, depois abaixa o braço e nos leva ainda mais para as

profundezasdassombrasnobeco.Eladiz:–De jeitonenhumeuvoute levaratéoutrosPatriotas.Nãoconfioem

vocêosuficiente.Tupodefalarcomnósduas,aíeudecidosevaleapenapassarainformaçãoadiante.

EumeperguntoseosPatriotastêmmuitosseguidoreserespondo:–Semproblema.Deinício,contoaKaedeeTesstudoquedescobri.ComeçocomMetiase

sua morte. Conto sobre minha perseguição a Day, e o que aconteceuquandoeuoentreguei.FalooqueThomasfezaMetias,masnãomencionoaKaedeporquemeuspaismorreramnemoqueMetiasrevelousobreaspragas nos registros de seu blog. Ficomuito envergonhada, não consigocontar essa história nojenta diretamente a duas pessoas que vivem nossetorespobres.

–Quer dizer que o amigo de seu irmãomatou ele, né? Kaede assobiabaixinho.–PorqueelesabiacomoaRepúblicamatouospaisdevocês?EarmaramparaoDay?

FicoirritadacomotomindiferentedeKaede,masdeixoissodelado,esórespondo:

–É.–Poxa,taíumahistóriatriste.Mecontaquediaboissotemavercomos

Patriotas.–QueroajudarDayafugirantesquesejaexecutado.Eeusoubequeos

Patriotastentamrecrutá-lohámuitotempo.Vocêsprovavelmentetambémnãoqueremqueelemorra.TalvezosPatriotaseeupossamoschegaraumacordo.

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AraivanosolhosdeKaedetransformou-seemceticismo:–Querdizerquevocêquervingaramortedeseuirmãoouoquê?Tuvai

darascostasàRepúblicaporcausadoDay?– Quero justiça, quero libertar o garoto que não matou meu irmão.

Kaederesmunga,enãoacredita:–Vocêtemumavidamaneira,né?Protegidanumapartamentogostoso

num setor rico. Você sabe que se os mandachuvas da Repúblicadescobriremquetufaloucomigo,elesvãotebotardiantedeumpelotãodefuzilamento,igualaoDay.

Amenção de Day de pé diante de um pelotão de fuzilamento faz umarrepiopercorrerminhaespinha.Pelocantodoolho,vejoTesssecontrairtambém.

–Eusei–respondo.–Vocêvaimeajudar?–VocêéloucapeloDay,nãoé?Esperoqueaescuridãoescondaorubornasminhasfaceserespondo:–Issonãotemnadaaver.Eladáumagargalhadaediz:– Essa foi demais! A pobremenina rica se apaixonou pelo criminoso

maisfamosodaRepública!Eépiorainda,porqueéporsuacausaqueeleestápreso,certo?

Acalme-se.–Vocêvaimeajudar?–Perguntodenovo.Kaededádeombroseresponde:–AgentesemprequisoDay.Elepodiaserumperfeitoaliadoparanós,

tá sabendo? Mas a gente não trabalha em nenhum negócio de caridade.Somosprofissionais,temosumaagendalongaacumprir,quenãotemnadaavercomprojetosdeboasações.–Tessabreabocaparaprotestar,masKaede faz ummovimentopara que ela fique calada. –Daypode ser umafigurapopularaquinasruas,maseleésóumcara.Qualéavantagempragente?Sóaalegriadetereledonossolado?OsPatriotasnãovãoarriscarumadezenadevidassóparalibertarumcriminoso.Issoépouco.

Tesssuspira.Trocamosolhares.CompreendoqueissoéumacoisaqueelavemtentandoemvãoconvencerKaedeafazer,desdequeDayfoipreso.EssatalvezsejaatéarazãopelaqualTesstenhaentradoparaosPatriotas:

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implorarquesalvemDay.–Eusei.–PegominhamochilaeajogoparaKaede.Elanãoaabre.–Foi

poressa razãoqueeu trouxe isto.Aídentro tem 200milNotas,menosoqueeujátedeiantes.Essedinheiroéumapequenafortuna.Éodinheirodarecompensa que ganhei por capturarDay, deve ser suficiente para pagarpor sua ajuda. – Abaixo a voz. – Também incluí uma bombaeletromagnética.Nível três.Vale6milNotas.É capazdedesativar armaspordoisminutos,numraiodeoitocentosmetros.Estoucertadequevocêsabequeémuitodifícilconseguirumadessasnomercadonegro.

Kaedeabreozíperdamochilaeexaminaoconteúdo.Nãodiznada,masdá para perceber sua alegria, por sua linguagem corporal, pela maneiracomqueelasedebruçaavidamentesobreasnotasepassaamãosaudávelna superfície fria do dinheiro. Ela emite um gemido de encantamentoquandoencontraabomba,eseusolhossearregalamenquantoelaergueaesferametálicaparaexaminá-la.Tessaobservacomumolharesperançoso.

– Esse dinheiro não passa de troco para os Patriotas – ela diz aoterminar a inspeção –, mas tu está certa: deve ser o bastante paraconvencermeuchefeadeixarqueeuteajude.Mascomoagentepodetercertezadequeissonãoéumaarmadilha?VocêvendeuoDayàRepública.Esevocêestivermentindoparamimtambém?

Chamar de troco essa dinheirama só se os Patriotas estiverem commuitos,masmuitosrecursosfinanceirosmesmo.Maseuapenasconcordocomacabeça,edigo:

– Você tem o direito de desconfiar demim,mas pense no caso destaforma:vocêpode iremboraagora,com200milNotaseumaarmamuitoútil,enuncalevantarumdedoparameajudar.EstouconfiandoemvocêenosPatriotas,eimploroqueconfieemmim.

Kaederespirafundo.Dáparaverqueelaaindanãoestáconvencida:–Bem,qualéseuplano?Meucoraçãoseacelera,esorriosinceramenteparaela:– A prioridade número um: John, o irmão de Day. Planejo ajudá-lo a

fugir amanhã à noite, não antes das onze horas da noite, não depois dasonze e meia. – Kaede me olha incredulamente, mas eu a ignoro. – Umamorte falsa, vamos afirmar que John está contaminado pela praga. Se eupuder ajudá-lo a escapardoBatallaHall amanhãànoite, vouprecisarde

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você e de uns dois Patriotas para tirá-lo do setor, depois mantê-lo emsegurança.

–Agentevaiestarlá,sevocêconseguirlibertarocara.–Ótimo.OcasodoDayvaiserobviamentemaiscomplicado.Aexecução

dele acontece daqui a duas noites, exatamente às 18 horas. Dezminutosantes, eu serei a primeira pessoa a levá-lo para o pátio do esquadrão defuzilamento.Eu tenhouma identidadedeacessoseguro–devoconseguirtiraroDayporumadasseissaídasdosfundos,peloladolestedocorredor.Faça que alguns Patriotas nos esperem lá. Calculo que umamultidão depelo menos 2 mil pessoas compareça à execução, o que significa umaequipedepelomenosoitentaguardasdesegurança.Assaídasdosfundosprecisam estar o menos vigiadas possível. Faça alguma coisa, qualquercoisa,paragarantirqueamaioriadossoldadospreciseajudarlánafrente.Se o primeiro quarteirão depois do Batalla Hall não estiver commuitosseguranças,vocêsvãoterumaboavantagemdetempoparafugir.

Kaedelevantaumasobrancelhaediz:–Tunãobatebem.Sabequeissopareceimpossível,nãosabe?–Sei.–Façoumapausa.–Masnãotenhomuitaescolha.–Bem,continua.Eapraça?–Desviotático.–Meusolhosse fixamnosdeKaede.–Tentecriarum

caos pra valer na Batalla Square, omaior tumulto que você conseguir. Osuficiente para obrigar amaioria dos soldados que vigiam as saídas dosfundos a ir para a praça e ajudar a conter a multidão, mesmo que poralgunsminutos. É aí que a bomba eletromagnética pode ajudá-la. Solte abomba no ar, ela vai fazer estremecer o chão do Batalla Hall e seusarredores.Nãovaimachucarninguém,mascertamentevaicriarpânico.Eseasarmasnasproximidadesestiveremdesativadas,osguardasnãovãopoder atirar no Day, mesmo se o virem fugir pelo telhado. Vão ter depersegui-looutentarasortecomarmasmenosprecisas,quesóimobilizamouatordoam.

–Legal,tuéumgênio!–Kaederi,demodosarcástico.–Mastenhoumacoisinhapra teperguntar: comoéque você, vai conseguir tirar oDaydoprédio? Acha que você vai ser o único soldado que vai levar ele até opelotãodefuzilamento?Outrossoldadosdevemacompanharvocês.Talvezumpelotãointeiro!

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Sorrioparaelaedigo:–Vaihaveroutros soldados.Masquemdissequeelesnãopodemser

Patriotasdisfarçados?Ela não me responde, não com palavras, mas vejo um sorriso se

espalhando em seu rosto, então percebo que mesmo que ela me achemaluca,jáconcordouemajudar.

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DAY

Duas noites antes da data daminha execução, sonhomuito enquantotento dormir encostado à parede da minha cela. Não me lembro dosprimeiros sonhos. Eles semisturamnuma combinação confusa de rostosfamiliaresedesconhecidos,algoquepareceorisodeTess,outracoisaquesoa como a voz de June. Todos estão tentando falar comigo, mas nãoconsigocompreendernenhumdeles.

Masmelembrodoúltimosonhoquetiveantesdeacordar.ÉumatardelindanosetorLake.Estoucomnoveanos.John,comtreze

anos,haviaentradonaquelafasedecrescerrepentinamente.Édensótemquatroanos,estásentadonosdegrausdaportadafrente,olhandoJohneeujogarmoshóqueiderua.Mesmonessaidade,Édenéomaisinteligentedenóse,aoinvésdeparticipardojogo,eleprefereficarsentadolá,brincandocompeçasdeumvelhomotordeturbina.

Johnatiraumabolinhadepapelemmim.Eumalconsigopegá-lacomocabodomeutaco.

–Vocêjogoulongedemais–protesto.Johnapenasdáumrisinhoediz:–Vocêvaiprecisarmelhorarseusreflexos,sequiserpassarnosexames

físicosdaProva.Batodevoltanabolacomamaior forçaqueposso.Elapassazunindo

porJohneatingeaparedeatrásdele.–VocêconseguiupassarnasuaProva–digo.–Apesardeseusreflexos.–Eunãopegueiessaboladepropósito.Johnriaoseviraredarumacorridinhaatéabola.Eleapegaantesque

abrisapossa jogá-lapara longe.Váriospedestresquasepisamnela. Johndiz:

–Eunãoquisdestruircompletamenteoseuego.Éumbomdia.Johnhaviasidorecentementecontratadoparatrabalhar

nanossacentraldeenergiaavapor.Paracelebrar,mamãevendeuumdeseus dois vestidos e ummonte de vasos antigos, e passou toda a última

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semanasubstituindosuascolegasde trabalhoemseus turnos.Odinheiroextra deu para comprar um frango inteiro, que ela está preparando, nacozinha. O aroma de carne e caldo é tão bom que mantemos a portaentreaberta, para sentirmos um pouquinho do cheiro. John não costumaestar tão bem-humorado quanto hoje. Pretendo me aproveitar disso aomáximo.

Johnatiraabolaparamim,euapegocommeutacoea jogodevolta.Jogamosrápidaeempenhadamenteporváriosminutos;nenhumdosdoiserra, e às vezes damos saltos tão ridículos para pegar a bola que Édenmorrederir.Ocheirodofrangoencheoar.Hojenãoestáfazendocalor;naverdade, o dia está perfeito. Paro por um segundo enquanto John correparapegaraboladenovo.Tentotirarumafotomentaldessedia.

Atingimosabolamaisalgumtempo.Então,cometoumerro.Um guarda municipal perambula pelo nosso beco quando estou me

preparandoparaatiraraboladevoltaparaJohn.Pelocantodoolho,vejoÉdenficardepénosdegraus.AtéJohnvêoguardaseaproximar,antesdemim,eestendeumadasmãosparamedeter.Masétardedemais.Jáestounomeiodobalançodocorpo,ejogoaboladiretonacaradoguarda.

É claroque a bola quica e cai – é depapel e nãomachuca –,mas é osuficiente para o policial parar de repente. Seus olhos me fuzilam. Ficoparalisado.

Antesqueumdenóspossasemexer,oguardatiraumafacadabotaecaminhacompassosfirmesatéondeestou.Elegrita:

– Está pensando que você pode se safar depois de uma coisa dessas,moleque?–Eleerguea facae sepreparaparamegolpearo rosto comocabo.Emvezdemeencolher,olhoparaelecomraivaememantenhofirme.

Johnalcançaopolicialantesqueelepossamealcançar.–Senhor!Senhor!John se põe rapidamente à minha frente e estende as mãos para o

guarda.–Lamentomuitooqueaconteceu.EsteéDaniel,meuirmãozinho.Elenãoteveaintenção.

O policial empurra John de sua frente. O cabo da facame golpeia norosto, eu caio no chão. Éden grita e corre para dentro de casa. Eu tusso,tentandocuspiraterraquemeencheaboca.Nãoconsigofalar.Oguardachutao ladodomeucorpo.Meusolhossearregalam.Eumecurvonuma

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posiçãofetal.–Para,porfavor!Johncorredenovoparapertodopoliciale fica firmementeentrenós

dois.Deondeestoucaídonochão,olhorapidamenteparanossavaranda;minhamãeveiocorrendoatéaentrada,comÉdenescondidoatrásdela.Elagrita,desesperada,paraopolicial.Johncontinuasuplicandoaoguarda:

–Eupossopagaraosenhor.Agentenãotemmuito,masosenhorpodelevaroquequiser,porfavor.

AmãodeJohnseabaixaeagarrameubraço.Elemeajudaaficardepé.Oguardapara,analisaaofertadeJohn,entãoolhaparaminhamãe:–Vocêaí!–Elegrita.–Pegaascoisasquevocêtiver.Evêsecriamelhor

essepestinha.Johnmeempurramaisparatrásdele,erepete:–Elenão tevea intenção, senhor.Minhamãevaicastigarelepeloseu

comportamento.Eleémuitonovo,nãosabedireitooquefaz.Minhamãevoltaapressadaalgunssegundosdepois,comumembrulho

depano.Opolicial o abre e verifica todas asNotas. Perceboque équasetodo o nosso dinheiro. John fica em silêncio. Depois de algum tempo, opolicialvoltaaembrulharodinheiroeoenfianobolsodasuajaqueta.Eleolhadenovoparaminhamãeepergunta:

– Você está cozinhando frango lá dentro? Isso é um luxo para umafamíliacomoasua.Vocêgostadedesperdiçardinheirocomfrequência?

–Não,senhor.–Entãomedáessefrangotambém–ordenaohomem.Mamãevolta correndoparadentro, e sai em seguida comuma sacola

fortemente amarrada, dentro está o frango, embrulhado em um pano. Oguarda pega a sacola, apoia por cima do ombro eme dámais um olharenojado:

–Molequesderua!–Resmunga.Enosdeixaparatrás.Obecoficaemsilênciodenovo.

John tenta dizer alguma coisa para consolar mamãe; ela, porém, nãoescuta e se desculpa com John pela refeição perdida. Ela não me olha.Depois de um tempo, entra correndo em casa para atender a Éden, quecomeçouachorar.

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Johngiraocorpoparameencarardepoisquemamãesai.Agarrameuombroemesacodecomforça.

–Nuncamaisfaçaisso,entende?Nãoseatreva.–Eunãoquisacertar!–grito.Johnemiteumsomraivosoediz:–Não se tratadissoe simdo jeitoquevocêolhoupara ele.Você tem

minhocanacabeça?Nuncaolheparaumpolicialdaquele jeito,entendeu?Vocêquerqueelesnosmatematodos?

Meu rosto ainda arde do golpe com o cabo da faca, emeu estômagoqueima,comoresultadodochutedopolicial.Consigomesoltarde Johnedigo,irritado:

–Vocênãoprecisavamedefender.Eupodiaterdadocontasozinho.Euvourevidar.

Johnmeseguracomforçadenovoediz:–Vocêécompletamentepirado.Presteatençãoaoquedigo,paravaler.

Certo?Nãoéprarevidar.Nunca!Agentefazoqueosguardasmandam,enãodiscutecomeles.–Partedaraivadesaparecedosseusolhos.–Prefiromorreraveressepessoalmachucarvocê.Compreende?

Eu me esforço para responder com algo inteligente, mas, para meuconstrangimento,lágrimasmeenchemosolhoseeudigonumimpulso:

–Lamentovocêterficadosemseufrango.MinhaspalavrasprovocamumpequenosorrisodeJohneelediz:–Venhacá,menino.Ele suspira, e me envolve num abraço. Lágrimas escorrem em meu

rosto.Tenhovergonhadelas,porissotentonãodeixarescaparnenhumsom.

Não sou uma pessoa supersticiosa, mas, quando acordo desse sonho,dessa lembrança dolorosamente nítida de John, sinto uma horrívelsensaçãonopeito.

Prefiromorreraveressepessoalmachucarvocê.Eusubitamentereceioque,dealgumaforma,dealgummodo,oqueele

dissenosonhovaisetornarrealidade.

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JUNE

08H00.SETORRUBY.18°CEMAMBIENTEEXTERNO.

Dayseráexecutadoamanhãànoite.Thomas aparece na minha casa. Ele me convida para uma sessão de

cinema, bemcedo, antesdenos apresentarmosnoBatallaHall.O filme éGloryoftheFlag[6].

–Escuteicomentáriosfavoráveis–elemediz.–ÉsobreumagarotadaRepúblicaquecapturaumespiãodasColônias.

Concordo em ir. Se vou ajudar John a fugir hoje à noite, é melhorgarantir um bom relacionamento com Thomas. Não quero que eledesconfie.

O furacão iminente, o quinquagésimo primeiro este ano,mostra seusprimeiros sinais quando Thomas e eu pisamos na rua: um vendavalagourento, uma rajada de vento gélido, assustadora, de ar úmido. Ospássarosestãoinquietos.Cachorrossemdonoseabrigam,emvezdevagar.Veem-se menos motocicletas e carros nas ruas. Caminhões entregamgarrafõesextrasdeáguapotávelealimentosenlatadosaosresidentesdosespigões. Sacos de areia, lampiões e rádios portáteis estão sendoracionadostambém.MesmoosestádiosondeasProvassãofeitasadiaramasqueestavamprogramadasparaosdiasdatempestade.

– Suponho que você deva estar animada, em vista de tudo que estáacontecendo – diz Thomas, quando entramos no cinema. – Falta poucoagora.

Concordocomacabeçaesorrio.Asessãoestálotada,apesardotempotempestuosoedasameaçasdeapagão.Ànossafrenteavultaogigantescocubodecinema,umtelãodequatrolados,comumladoapontadoparacadabloco de assentos. Ele mostra uma série ininterrupta de comerciais enotíciasatualizadas,enquantoesperamos.

–Nãocreioqueanimadasejaomelhortermoparaoqueestousentindo–respondo–,masdevoadmitirqueestouansiosa.Vocêsabeosdetalhesda

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execução?–Bem,euseiqueeuvousupervisionarossoldadosnapraça.–Thomas

mantémaatençãonoscomerciaisqueserevezam.Onossoladomostraumaviso chamativo que diz: “Está chegando a hora da Prova de seu filho?Matricule-o no Ace Trials, para uma consultoria grátis de instruções!” –Nuncasesabeoqueamultidãopodefazer.–Eledizainda.–Opovojádeveestar se reunindo. Quanto a você, provavelmente vai ficar do lado dedentro,e levaráDayparaopátiodo fuzilamento.AComandante Jamesonnosdarámaisinformaçõesquandoforahora.

–Tudobem.Fico repensando meu plano, detalhes que têm passado pela minha

cabeçadesdeque encontreiKaedeontemànoite.Vouprecisarde tempoparaentregaruniformesaelaantesdaexecução,tempoparaajudarváriosdos Patriotas a entrar furtivamente no Hall. Não deve ser precisomuitoesforçoparaconvenceraComandanteJamesonamedeixaracompanharoDayatéo ladode fora.MesmooThomasparececompreenderquequerofazerisso.

–June.–AvozdeThomasinterrompemeuspensamentos.–Sim?Elemeolhacuriosamenteefranzeatestaumpouco,comoseacabasse

deselembrardealgo:–Vocênãoestavaemcasaontemànoite.Fiquecalma.Douumsorriso,depoisolhoderelanceparaotelão.–Porquevocêpergunta?–Bem,dei umapassadapelo seu apartamentonomeiodanoite.Bati

pormuitotempo,masvocênãoatendeu.PareciaqueOllieestava,porissoeusabiaquevocênãotinhaidoparaapistadecorrida.Ondevocêestava?

OlhoparaThomascomamaiorcaradepauedigo:– Eu não consegui dormir. Fiquei no telhado por algum tempo,

observandoasruas.–Vocênãolevouofonedeouvido.Tenteiligarparavocê,massóouvia

estática.–Émesmo?–Sacudoacabeça.–Arecepçãodeviaestarruim,porqueeu

estavacomofonedeouvido.Ontemànoiteventoumuito.

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Eleacenapositivamentecomacabeçaediz:–Vocêdeveestarexaustahoje.ÉmelhorvocêinformaràComandante

Jameson,ouelaécapazdeexigirmuitoesforçodevocê.Destavezeuéquefranzoatesta.“Invertaasituação:amelhordefesaé

oataque.”– O que você estava fazendo à minha porta no meio da noite? Era

alguma coisa urgente? Eu não perdi nenhuma instrução da ComandanteJameson,perdi?

–Não,não,nadadisso.–Thomasmeolhaencabulado,epassaamãonocabelo. Não consigo entender como alguém com sangue nas mãos podeparecer tão despreocupado. – Para ser sincero, eu tambémnão conseguidormir.Fiqueipensandoemcomovocêdeviaestaransiosa.Então,quislhefazerumasurpresa.

Douumtapinhanobraçodeleedigo:–Obrigada,masvou ficarmuitobem.VamosexecutarDayamanhã.E

depois disso vou me sentir muito melhor. É como você disse: não vaidemorarmuitomais.

Thomasestalaosdedos:–Háumaoutrarazãoporqueeuqueria teverontemànoite.Eunão

deviatecontar,porqueéumasurpresa.Surpresasnãomeparecemdivertidasagora,masfinjoestaranimada:–Émesmo?Qual?–A Comandante Jameson sugeriu, e fez que os tribunais aprovassem.

Achoqueela continuapossessa coma força comqueDaymordeuamãodelaquandoeletentoufugir.

–Elafezqueostribunaisaprovassemoquê?– Ah, eis o anúncio. – Thomas olha para o telão e aponta para o

comercialqueaparece.–VamosanteciparadatadaexecuçãodoDay.Ocomercialéapenasumcartazdigital,umaúnica imagemcongelada.

Parece festiva. O texto é em azul-escuro e as fotos surgem num fundopadronizado branco e verde. Vejo a foto de Day nomeio disso: “Apenaslugaresempé,emfrenteaoBatallaHall,naquinta-feira,26dedezembro,às 17 horas, para a execução de Daniel Altan Wing. Espaço limitado. Aexecuçãosópoderáservistanostelões.”

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Ficototalmentesemar.OlhoparaThomasepergunto:–Vaiserhoje?Thomasdáumsorrisinhoeconcorda:– Hoje à noite. Não é ótimo? Você não vai precisar se afligir durante

maisumdiainteiro!Mantenhoavozalegre:–Ótimo!Ficosatisfeitaemsaber.O turbilhão de meus pensamentos se transforma em um pânico

crescente.Issopoderiasignificarmuitascoisas.AComandanteJamesonterconvencidootribunalaanteciparaexecuçãoemumdiainteiroé,porsisó,incomum. Isso quer dizer que Day enfrentará o pelotão de fuzilamentodaquiaapenasoitohoras,bemquandoosolcomeçarasepôr.Nãopossolibertar John agora – o dia todo será gasto com as providências para aexecuçãodeDay.Atéahoramudou.OsPatriotastalveznãopossamestarlácomigohoje.Nãovoutertempodeconseguiruniformesparaeles.

NãopossoajudarDayafugir.Mas isso não é tudo. A Comandante Jameson preferiu não me contar

sobreamudança.SeThomasjáestavaaparontemànoite,issoquerdizerqueelacontouaelenomáximoontemànoite,antesdemandá-loparacasa.Porquenãoquismecontar?EladeveriaacharqueeuficariasatisfeitadesaberqueDayiriamorrer25horasantesdoplanejado.Anãoserqueelasuspeite de alguma coisa. Talvez ela quisesseme deixar por fora apenasparatestarminhareação.SeráqueThomassabedealgumacoisaqueestáescondendo de mim? Todo esse desconhecimento sobre o plano seráapenasumamáscaraparaocultar a verdade?Ou seráque aComandanteJamesontambémestádeixandooThomasdefora?

Começaofilme.DougraçaspornãoprecisarfalarmaiscomThomas,eentãopoderpensaremsilêncio.

Tenho demudarmeus planos. Do contrário, o garoto que nãomatoumeuirmãomorreráhojeànoite.

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DAY

Anovadatadaminhaexecuçãochegasemalarde,anãoserobarulhoocasionaldostrovões,quevemdoladodeforadoedifício.Éclaroquenãoconsigo ver a tempestade daminha cela, com suas paredes nuas de aço,câmerasdesegurançaesoldadosnervosos,demodoquesópossocalcularaaparênciadocéu.

Às6horasdamanhã,ossoldadostiramminhasalgemaseascorrentesquemeprendemàparededacela.Éumatradição.Quandoumcriminosotornadopúblicovaienfrentaropelotãodefuzilamento,oBatallaHallantestransmitecenasemqueeleapareceemtodosostelõesdapraça.Elestiramascorrentesdapessoaparaqueelapossateraoportunidadedefazeralgodivertido. Já vi isso acontecer, e os espectadores na praça adoram.Geralmenteacontecealgumacoisa:adeterminaçãododelinquentecomeçaa enfraquecer, então ele suplica e implora diante dos guardas, ou tentafazerumacordoouconseguirumaextensãodeprazo,ouàsvezeschegaatéa tentar fugir.Ninguém jamaisconseguiu.Eles transmitemaovivoparaapraça a imagem do condenado, até chegar a hora da execução, depoisfocalizamopátiodopelotãode fuzilamentonoBatallaHall,emseguidaacâmeramostrao infeliz indoaoencontrodoscarrascos.Osespectadores,na praça, ficam ofegantes e gritam, às vezes de prazer, quando ocorre ofuzilamento. E a República fica feliz por ter feito de um bandido umexemploanãoserseguido.

Durante vários dias após a execução, ainda repetem as cenas dofuzilamento.

Estoulivreparaandarnaminhacela,mas,emvezdisso,simplesmenteficosentadoemeencostonaparede,apoiandoosbraçosnosjoelhos.Nãotenhovontadededivertirninguém.Minhacabeçadóideansiedadeemedo,prevendo, preocupado, o que vai acontecer. Guardei meu medalhão nobolso.Não consigo deixar de pensar em John.O que farão com ele? Juneprometeu me ajudar. Ela deve ter planejado alguma coisa para John,também.Éoqueespero.

Se June planeja me ajudar a fugir, ela está testando sua sorte até oslimites.Amudançanadatadaminhaexecuçãonãodevetê-laajudadoem

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nada. Meu peito dói com a ideia do perigo a que ela está se expondo.Gostariadesaberasrevelaçõesqueelaobteve.Oquepodetê-lamagoadotantoque,apesardeseusprivilégios,tenhasetornadoumaadversáriadaRepública?Eseelaestavamentindo…bem,porqueelamentiriasobremesalvar? Talvez se importe comigo. Rio um pouquinho dessa ideia. Quepensamentodoidonumahoracomoesta!Talvezeuconsigalheroubarumbeijodedespedidaantesdeirparaopátio.

Masdeumacoisaeusei:mesmoseoplanode June falhar,mesmoseestiver isolado e sem aliados quando me dirigir para o pelotão defuzilamento…voulutar.Ossoldadosvãoterdemeencherdebalasparameimobilizar. Trêmulo, respiro. Ideias corajosas, mas será que estoupreparadoparalevarissoacabo?

Osguardasnaminhacelaestãomaisarmadosdoquedecostume,etêmtambémmáscarasdegásecoletesdeproteção.Nenhumdelesseatreveatirar os olhos demim. Estão certos de que eu vou fazer alguma coisa dedoido.Olhofixoparaascâmerasdesegurança,imaginandoaaparênciadamultidãonapraça.

– Vocês devem estar adorando isto – digo, após algum tempo. Ossoldadosmovemospés,algunsempunhamasarmas.–Desperdiçandoumdiadesuavidameassistindonumacela.Quebarato!

Silêncio.Ossoldadosestãocommuitomedoenãorespondem.Visualizoamultidãoláfora.Oqueopovoestaráfazendo?Talvezalguns

delescontinuematerpenademimeaindaestejamdispostosaprotestarpormim.Quemsabealgunsdeles estejamprotestando, emborademodonão tão intenso quanto da última vez, pois nesse caso eu provavelmenteescutaria parte da gritaria no corredor. Muitos deles certamente meodeiam,devemestardandovivas.Outros,ainda,podemestarláapenasporcuriosidademórbida.

Ashorassearrastam.Agoraeuestouatéansiandopelaexecução.Pelomenos vou ver outra coisa que não as paredes cinzentas daminha cela,mesmoqueporpoucotempo.Topoqualquercoisaparadeterestaesperaterrivelmentemaçante.Alémdisso,seJunenãotiverêxitocomseuplano,vouafinaldeixardepensaremJohn,naminhamãe,naTess,noÉden,emtodomundo.

Ossoldadosserevezamnacela.Seiqueas5horasdatardedevemestar

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próximas. É quase certo que a praça já esteja lotada. Tess. Talvez elatambémesteja lá, commuitomedo de ver a execução,mas também commuitomedodeperdê-la.

Ouçopassosnocorredor,edepois,umavozquereconheço.AdeJune.Levantoacabeçaeolhoparaaporta.Chegouahora?Daminhafuga…oudaminhamorte?

Aportaseabre.OsguardasabremcaminhoquandoJuneentranacela,de uniforme completo, acompanhada pela Comandante Jameson e porvários outros soldados. Prendo minha respiração quando a vejo. Nuncahavia visto June nessa roupa antes: dragonas reluzentes e luxuosas nosombros, uma elegante capa espessa de veludo caindo até os pés, umrefinadocoletevermelho,botascomfivelanopeitodopé,umquepemilitartípico.Umamaquiagemsimplesressaltaseurostoeocabeloestápenteadonum rabo de cavalo impecável no alto da cabeça. Esse deve ser avestimentapadrãodosagentesparaeventosespeciais.

Juneparaaalgumadistânciademime,quandomeesforçoparaficardepé,elaolhaparaorelógioediz:

–São4h45datarde.–Elameolha.Tentoexaminarseusolhos,paraverseconsigoadivinharqualéseuplano.–Algumúltimopedido?Sevocêquerrezarouolharpelaúltimavezparaseuirmão,émelhornosinformaragora.Éoúnicoprivilégioquevaiterantesdemorrer.

Claro. Últimos pedidos. Olho fixamente para ela e mantenho minhaexpressãoingenuamenteimpassível.Oqueelaquerqueeudiga?OsolhosdeJuneestãointensoseardentes.

–Eu…–começo.Todososolhosestãoemmim.Vejo June fazer ummovimento muito sutil com os lábios. “John”, ela

pronuncia.OlhoderelanceparaaComandanteJameson.–Querovermeuirmão,John–digo.–Pelaúltimavez,porfavor.Acomandantefazumgestoimpacientecomacabeçaparamim,então

estalaosdedos,depoisresmungaalgoparaosoldadoqueseaproximadela.Elebate continênciae sai.Elameolhaediz:–Concedido.–Meucoraçãobatemaisforte.Juneeeutrocamosbrevesolhares,masantesdeeupoderme focalizar nela, ela se vira para pedir alguma coisa à ComandanteJameson.

– Tudo está no lugar, Iparis – responde a comandante. – Pare deme

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aborrecer.Esperamos em silêncio por vários minutos, até eu ouvir passos no

corredor de novo. Desta vez, há o som de alguém sendo arrastado,misturado com a marcha firme dos soldados. Deve ser John. Engulo emseco.Junenãoolhadenovoparamim.

EntãoJohnentranacela,cercadopordoisguardas.Estámaismagroepálidodoqueantes.Seucabelocompridoemuitolouroestápenduradoemmechassujas,eelenemparecenotarquepartedelasestágrudadaemseurosto.Meucabelodeveestarcomamesmaaparência.Elesorriaomever,emborahajapoucaalegrianosorriso.Tentoretribuirosorriso.

–Oi!–Digo.–Oi!–Eleresponde.Junecruzaosbraçosediz:–Cincominutos.Digaoquequereacabelogocomisso.Concordocomacabeça,enãodigonada.AComandanteJamesonlançaumolharparaJune,masnãofazmenção

deirembora.–Certifique-sedequesejamexatoscincominutos,nemmaisum segundo. – Ela então pressiona uma dasmãos na orelha e começa agritarmaisordens,semtirarosolhosdemim.

Durante vários segundos, John e eu apenas nos entreolhamos. Tentofalar,masminha garganta está engasgada,minhaspalavrasnão saem.AscoisasnãodeviamserassimparaJohn.Talvezparamim,masnãoparaele.Souumcararejeitado,umcriminoso,umfugitivo.Repetidasvezesinfringialei.MasJohnnãofeznadadeerrado.FoiaprovadonaProvademaneirajustaecorreta.Eleéamoroso,responsável.Nadaparecidocomigo.

–VocêsabeondeestáoÉden?–Johnfinalmentequebraosilêncio.–Eleestávivo?

Sacudoacabeçaerespondo:–Nãosei,masachoquesim.–Quandovocêencararopelotão–continuaJohn,comvozrouca–,não

abaixeacabeça,estábem?Nãodêmoleparaeles,nãodeixequeoafetem.–Nãovoudeixar.–Façaqueelesseesforcem.Dêumsocoemalguém,seprecisar.–John

medáumsorrisotristeevelhaco.–Vocêéumgarotoassustador.Então…

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assusteessagente!Atéofim.Pela primeira vez em muito tempo sinto-me como seu irmãozinho.

Precisoengoliremsecoparamanterosolhossecos.–Deixacomigo–sussurro.Nosso tempo acaba depressa demais. Nós nos despedimos, e os dois

guardasquevigiamJohnagarramseusbraços,tiram-nodaminhacelaeolevam de volta à sua. A Comandante Jameson parece mais tranquila,obviamentealiviadaporquemeupedidochegouaofim.Elagesticulaparaosdemaissoldadoseordena:

– Façam fila. Iparis, acompanhe os guardas de volta à cela desserapazinho. Eu volto daqui a pouquinho. – A Comandante Jamesondesaparecepelaporta.

Respirofundo.Precisodeummilagreagora.Vários minutos depois, levam-me para fora. Faço o que John disse e

mantenhoacabeçaereta,osolhosinexpressivos.Agoraouçoamultidão.Osomaumentaediminui;éumfluirconstantedevozeshumanas.Passoosolhos pelos painéis de tela plana nas paredes do corredor, enquantocaminhamos. As pessoas na praça estão inquietas, mudando de posiçãocomo ondas num dia de tempestade, e consigo distinguir as filas desoldados que as cercam.De vez em quando, vejo pessoas comuma faixavermelha bem escura pintada no cabelo. Soldados estão percorrendo amultidão e cercando-a para prendê-las, porém elas parecem não dar amínima.

Junesereúneanóseacompanhaafila,pertodosúltimossoldados.Douuma olhadinha para trás de mim, mas não consigo ver o rosto dela. Ossegundossearrastam.Queaconteceráquandoalcançarmosopátio?

Finalmente,chegamosaoscorredoresquelevamaopátiodopelotãodefuzilamento.

ÉaíqueescutoThomas,ojovemcapitão,dizer:–Srta.Iparis!–Poisnão?–PerguntaJune.Então,ouvipalavrasquequase fazemmeucoraçãoparar.Duvidoque

elatenhaplanejadoisto:– Srta. Iparis – ele repete –, a senhorita está sob investigação.

Acompanhe-me.

Page 230: Legend (Legend #1) - Marie Lu

JUNE

MeuprimeiroinstintoéatacarThomas.Éissoqueeuteriafeitoseeletivessemepegadosemtantossoldadosporperto.Euavançariacontraelecom tudo, bateria nele até deixá-lo inconsciente, depois pegaria Day ecorreriaatéassaídas.JáestariacomJohn.Emalgumlugardoscorredorespor onde o levam de volta à sua antiga cela estariam os dois guardasdesmaiados no chão. Avistaria John no poço de ventilação. Ele estariaesperando lá para eu tomarminha próxima providência. Eu iria libertarDay, gritarum sinal, então John surgiriadaparede comoum fantasma, efugiriaconosco.MasnãopossovencerumalutacontraThomasetodososguardassemoelementosurpresa.

Porissodecidofazeroqueelediz:– Investigação?–Pergunto, coma testa franzida.Ele tocagentilmente

no boné, como se estivesse se desculpando, depois pega um dos meusbraçosecomeçaamelevarparalongedossoldadosquevigiamDay.

–AComandanteJamesonmepediuparadetervocê–elediz.Rodeamoso canto do corredor e nos dirigimos à escadaria. Mais dois soldados sejuntamaele.–Tenhoalgumasperguntasparalhefazer.

Exiboumardeirritação:– Isso é ridículo! Será que a comandante não poderia escolher um

momentomenosdramáticoparaessabobagem?Thomasnãoresponde.Elemeconduzpelaescadaria,descemosdoisandares,atéchegarmosao

porão onde as salas de execução, redes elétricas e câmaras dearmazenamento ficam ao longo dos corredores. Agora sei por que estouaqui.Elesdescobriramque faltaumabombaeletromagnética,aquedeiàKaede.Geralmenteolevantamentodeestoquesóacontecenofimdomês,masThomasdevetê-lo feitohojedemanhã.Consigonãotransparecernorostoopânicocadavezmaiscrescente.Concentre-se,lembroamimmesmaraivosamente.Umapessoaapavoradaéumapessoamorta.

Thomasparanolanceinferiordaescada.Põeamãonocinto,epercebooreluzirdocabodesuaarma.

Page 231: Legend (Legend #1) - Marie Lu

–Uma bomba eletromagnética desapareceu. – As luzes que balançamacimalançamsombrasmalévolasnorostodele.–Euviqueestavafaltandohoje cedo, depois que bati na porta de seu apartamento. Você disse queestavanotelhadoontemànoite,certo?Vocêsabealgumacoisasobreessedesaparecimento?

Olhocomfirmezaparaorostodeleecruzoosbraços:–Vocêachaqueeufuiaresponsável?– Não a estou acusando de nada, June. – Sua expressão é trágica, até

suplicante,maselenãoafastaamãodaarma.–Masacheiqueeramuitacoincidência. Poucas pessoas têm acesso ao arsenal, e sabemos mais oumenosondeestavamasoutraspessoasontemànoite.

–“Sabemosmaisoumenos?”–Digocomsarcasmosuficienteparafazê-lo corar. – Isso é meio vago. As câmeras de segurança me filmaram? AComandanteJamesonencarregouvocêdemeinterrogar?

–Respondaàpergunta,June.Euoolhofuriosamente.Elehesita,masnãosedesculpapelamudança

detom.Seráquechegouminhahora?–Eunãotireiabombadelá–afirmo.Thomasnãoestáconvencido:–Vocênãotirouabombadelá…–elerepete.–Quemaispossolhedizer?Fizeramoutraverificaçãodoestoque?Você

temcertezaquefaltaalgumacoisa?Thomaspigarreiaediz:–Alguémadulterouascâmerasdesegurançaaquidebaixo,porissonão

temos nada filmado. – Ele dá um tapinha na arma. – Foi um trabalhobenfeito. E quando penso em trabalho benfeito, penso em uma pessoa:você.

Meucoraçãoacelera.– Eu não quero fazer isto. – A voz de Thomas ficamais suave. –Mas

acheiestranhovocêpassartantotempointerrogandoDay.Vocêagoraestácompenadele?Vocêplanejoualgumacoisapara…

Elenãochegaaofimdafrase.Subitamente,umaexplosãosacodetodoocorredorenosatiracontraa

parede.Poeiraescorrepeloteto,centelhastremeluzemnoar.OsPatriotas.

Page 232: Legend (Legend #1) - Marie Lu

Abombaeletromagnética.Elesaexplodiramnapraça.Afinaldecontas,elesacabaram vindo de acordo com o programado, momentos antes de Dayentrar no pátio do pelotão de fuzilamento. O que significa que todas asarmasdesteedifíciovão ficar inativasporexatosdoisminutos.Obrigada,Kaede.

Empurro Thomas com força contra a parede, antes que ele possarecuperaroequilíbrio,depoisarrancoafacadeseucinto,alcançoacaixadaredeelétricaeaabro.Atrásdemim,Thomastentapegarsuaarma,comoseestivesseemcâmaralenta.

–Peguemessamoça!Pegoafacaecortotodaafiaçãoelétricadacaixadeluz.Háumestalo,umachuveiradadefagulhas,todooporãoficaàsescuras.

EscutoThomasxingar:eledescobriuquesuaarmanãoestá funcionando.Ossoldados tropeçamunssobreosoutros.Eurapidamentevou tateandoatéaescadaria.

– June!–GritaThomasdealgum lugaratrásdemim.–Vocênãoestáentendendo!Éparaseuprópriobem!

Aspalavrastransbordamdaminhaboca:–Sei,foiissoquevocêdisseaoMetias?Nãovaidemorarparaaenergiadereservafuncionar.Nãoesperopela

respostadeThomas.Chegoaosdegrausesubodetrêsemtrês,contandoossegundosdesdequeabombaexplodiu.Atéagora,onze segundos.Faltam109segundosparaasarmasvoltaremaserativadas.

Chego impetuosamente ao primeiro andar e encontro um caos.Soldadoscorrendoparaapraça,passosecoandoemtodososlugares.Abrocaminhodiretamentedevoltaaopátiodopelotãodefuzilamento.Detalhesmepercorrema cabeça comouma saraivada de pensamentos. Faltam97segundos. Há 33 soldados correndo do outro lado, sendo que doze naminha direção. Algumas telas planas estão negras, deve ser o corte deenergia,outrasmostramopandemônionamultidão lá fora.Algumacoisaestá caindo do céu até a praça. Dinheiro! Os Patriotas estão jogandodinheirodostelhados.Metadedamultidãoestálutandoparasairdapraça,enquantoaoutrametadeseembaralhatodaparapegarasNotas.

Setentaedoissegundos.Chegoaocorredordopelotãodefuzilamentoenuminstanteabsorvoacena: trêssoldados inconscientes. JohneDay,ele

Page 233: Legend (Legend #1) - Marie Lu

comumavendasoltanopescoço,queosguardasdevemterpostonosolhosdele antes de a bomba explodir. Os dois estão lutando com um quartosoldado. Os outros devem ter sido chamados para ajudar a conter otumultonapraça,masnãovãodemorar,devemvoltarlogo,logo.Corroatéelesechutoospésdosoldado, fazendoquecaianochão. John lhedáumsoconoqueixo.Osoldadoapaga.

Sessenta segundos. Day está oscilante, como se fosse desmaiar. Umsoldadodevetê-logolpeadonacabeça,outalvezsuapernaestejacausandooproblema.Johneeuoapoiamosentrenós,eeuosconduzoaumcorredormais estreito, separado dos corredores do pelotão de fuzilamento.Começamos a caminhar rumo às saídas. A voz da Comandante Jamesonretumbanosinterfonesumsegundodepois.Elaestáfuriosa.

– Executem esse garoto! Agora! Garantam que a praça transmita ofuzilamento!

– Droga! – Murmura Day. Sua cabeça se inclina para um lado, seusreluzentes olhos azuis estão opacos e desconcentrados. Troco um olharcomJohnevamosadiante.Soldadosestarãovoltandoagora,paraarrastarDaydevoltaaopátio.

Vinteesetesegundos.Estamosaquase80metrosdassaídas.Estamospercorrendoummetro

emeioporsegundo,27vezes1,5equivaleapoucomaisde40metros.Em40metros,asarmasserãoreativadas.Jápossoouvirasbotasdossoldadosnos corredores adjacentes aos nossos, fazendo barulho no piso.Provavelmente procurando por nós. Precisamos de pelo menos mais 27segundos para alcançar as portas, antes que eles nos peguem nestecorredor. Eles vão disparar até nosmatar,muito antes de conseguirmossair.

Detestoessesmeuscálculos.Johnmeolharapidamenteediz:–Nósnãovamosconseguir.Entrenós,Dayestánumaespéciedetorpor.Seosirmãoscontinuareme

eu correr de volta para enfrentar os soldados, provavelmente só vouconseguirderrubaralguns, antesqueelesacabemcomigo, evãoalcançarJohneDay.

Johnparadeandar.SintoopesodeDayemcimademim.

Page 234: Legend (Legend #1) - Marie Lu

–Oque…–começoadizer,atéquevejoJohntiraravendadopescoçodeDayeviraro corpo.Arregaloosolhos. Seioqueelepretende fazer. –Não,não,fiquecomagente!

– Vocês precisam de mais tempo – diz John. – Eles querem umaexecução?Poisvãoteruma.

Elecomeçaaseafastardenóscorrendo,voltandoparaocorredor.Voltandoparaopátiodopelotãodefuzilamento.Não!“Não,não,John!Aondevocêvai?”Gastoumsegundoolhandopara

ele,medebatendoemdúvidas,semsabersedevopersegui-lo.Johnvaifazeroqueplaneja.EntãoacabeçadeDayseencostanomeuombro.Faltamseissegundos.

Não tenho escolha. Mesmo quando ouço os gritos dos soldados atrás denós,nohallquelevaaopelotãodefuzilamento,eumeobrigoaolharparafrenteeiradiante.

Zerosegundo.As armas são reativadas. Continuamos avançando. Passam-se mais

segundos.Escutoumtumultonoscorredoresatrásdenós.Tomoocuidadodenãoolharparatrás.

Entãochegamosàssaídas,saímosapressadamenteparaarua.Umpardesoldadosnosalcança. Jánãotenhoforçapara lutar,mastento.Eisquealguémestálutandocomigo,ossoldadoscaem.Kaedecorrenaminhalinhadevisão,gritando:

–Elesestãoaqui!Vai!Eles estavam escondidos perto das saídas dos fundos, como

combinamos.OsPatriotasvieramnosajudar.QuerodizerparaesperaremporJohn,masseiquenãoadianta.Elesnosagarramenoslevamparasuasmotocicletas. Tiro minha arma do cinto e a atiro no chão. Não possopermitir que o rastreadorme acompanhe. Day vai numamotocicleta, eu,emoutra.“VamosesperarpeloJohn”,tenhovontadededizer.

Masentãopartimos.OBatallaHallseafastadenós.

Page 235: Legend (Legend #1) - Marie Lu

DAY

Um clarão forte de relâmpago, um retumbar de trovão, o barulho dechuva forte. Longe daqui, o som pungente das sirenes que avisam sobreinundações.Abroosolhos,eosestreitoparaveraáguacaindoneles.Porum instante, não consigome lembrar de nada, nem domeu nome. Ondeestou? O que aconteceu? Estou sentado bem ao lado de uma chaminé,encharcado.Estounotelhadodeumedifícioalto.Achuvacobreomundoao meu redor, o vento assobia através da minha camisa ensopada,ameaçando me fazer voar. Busco abrigo atrás da chaminé. Quando olhoparaocéu,vejoumcampointermináveldenuvensquesemovem,negrasefuriosas,iluminadaspelosraios.

De repente, lembro de algumas coisas. Do pelotão de fuzilamento, docorredor, das telas planas. De John. Da explosão. De soldados em todaparte.DeJune.Eraparaeuestarmorto,comocorpocrivadodebalas.

–Vocêacordou!Largada,quaseinvisívelnanoite,usandoumtrajepreto,estáJune.Ela

está sentadadesconfortavelmente, encostadanaparededa chaminé, semse importarcomo toróque lheescorrenorosto.Eumudode lugaremeviro para ela. Um espasmo de dor me percorre a perna machucada.Palavrasparecemseprendernaminhalíngua,eserecusamasair.

–EstamosnosarredoresdeValencia.OsPatriotasnostrouxeramparaolugarmaislongeaquesedispuseram.Daqui,foramparaLasVegas.

–Lágrimasescorremdeseusolhos.–Vocêestálivre.SaiadaCalifórniaenquantopode.Elesvãocontinuaranosperseguir.

Abro e fecho a boca: estarei sonhando? Apresso-me a me aproximardela.Umadasminhasmãostocaseurosto.

–Que…queaconteceu?Vocêestábem?ComovocêmetiroudoBatallaHall?Elessabemquevocêmeajudou?

June apenas olha fixamente para mim, como se tentando decidir serespondia ou não às minhas perguntas. Finalmente, ela olha de relanceparaabeiradotelhado:

–Vejavocêmesmo.

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Esforço-me para me levantar. Agora posso olhar do telhado para ostelõesqueforramasparedes.Voumancandoatéabeiradotelhado,atéagrade e olho para baixo. Estamos mesmo nos arredores. Agora dá paraperceberqueoedifícioemqueestamosempoleiradosestáabandonadoetapadocomtábuas,equeapenasdoistelõesnestequarteirãointeiroestãofuncionando.Olhoparaastelas.

Amanchetequenelasaparecemedeixasemfôlego:

DANIELALTANWINGEXECUTADOHOJE

PORUMPELOTÃODEFUZILAMENTO

Umvídeoémostradoatrásdamanchete.Vejoumagravaçãoemqueeuestousentadonaminhacela.Olhoparaacâmera,eentãoovídeocortaparao pátio, onde o pelotão de fuzilamento está perfilado. Vários soldadosarrastamatéocentrodopátioumrapazqueluta.Nãomelembrodenadadisso.Ogarotoestávendado,comasmãos fortementealgemadasàssuascostas.Eleparecemeusósia.

Exceto por alguns detalhes que somente eu poderia observar, seusombrossãoligeiramentemaislargosdoqueosmeus.Elecaminhacomseestivessemancandofalsamente,suabocaparecemaiscomadomeupaidoquecomadaminhamãe.

Apertoosolhosatravésdachuva.Nãopodeser…O rapaz para no centro do pátio. Seus guardas lhe dão as costas e se

apressamemvoltaraolugarondeestavam.Umafiladesoldadoslevantaasarmas.Oshomensasapontamparaele.Háumbreveeterrívelsilêncio.Eentãofagulhasefumaçasaemdasarmas.Vejoogarotosecontorceracadadisparo,edepoiscairderostoparabaixonaterra.Ouvem-semaisalgunstiros,elogovoltaosilêncio.

O pelotão de fuzilamento rapidamente começa a agir. Dois soldadosapanhamocorpodogarotoeolevamparaascâmerasdecremação.

Minhasmãoscomeçamatremer.OgarotoéJohn.GiroocorpoeencaroJune.Elameobservaemsilêncio.–EsseaíéoJohn!–Grito,emmeioàchuva.–EssegarotoéJohn!Oque

eleestavafazendolánopátio?

Page 237: Legend (Legend #1) - Marie Lu

Junenãodiznada.Nãoconsigorespirardireito.Compreendoagoraoqueelafez.– Você não o levou de volta à cela! – Consigo balbuciar. – Você

simplesmentenostrocou!–Nãofuieuquefizisso–elaresponde.–Foielemesmo.Vou mancando até ela. Agarro seus ombros e a empurro contra a

chaminé.– Quero que vocême conte o que aconteceu! Por que ele fez isso? –

Grito.–Euéquedeviatersidoexecutado!June grita de dor, então me dou conta de que está ferida. Tem um

profundocortenoombro, suablusaestámanchadadesangue.Queestoufazendo,gritandocomela?Rasgoumafaixadetecidodapartedebaixodaminhacamisa,etentopassá-lapeloombrodela,comofariaTess.Apertootecidoeoamarro.Juneseretrai.

– Não é nada sério – elamente. – Foi só uma bala queme pegou deraspão.

–Vocêestáferidaemalgumoutrolugar?Passoasmãosnoseuoutrobraço,depoissuavementelhetocoacintura

easpernas.Elaestátremendo.– Acho que não – ela responde. – Estou bem. – Quando ponho fios

molhadosdoseucabeloatrásdassuasorelhas,elameolhaediz:–Day,ascoisas não correram de acordo commeu plano. Eu queria libertar vocêsdoisepodiaterfeitoisso,mas…

A imagem do corpo inanimado de John mostrada no telão medesconcentra.Respirofundoepergunto:

–Oqueaconteceu?– Não havia tempo suficiente. – Ela faz uma pausa. – Por isso John

voltou. Ele ganhou tempo para nós ao voltar para o corredor. ElespensaramqueJohneravocê.Eleestavaatéusandosuavenda.Ossoldadosoagarrarame levaramdevoltaparaopátiodopelotãode fuzilamento.–Elasacodeacabeçadenovo.–MasaestaalturaaRepúblicajádevesaberqueelescometeramumerro.Vocêprecisafugir,Day.Enquantopode.

Lágrimasescorrempelomeurosto.Nãomeimporta.AjoelhoemfrenteàJuneeagarrominhacabeçacomasduasmãos,depoiscaionochão.Nada

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mais faz sentido. Meu irmão estava preocupado comigo enquanto eubobeavanaminhacela,comoummolequemimadoeegoísta.Johnsempremepunhaemprimeirolugar.

–Elenãodeviaterfeitoaquilo–sussurro.–Eunãomereço.AmãodeJuneseapoianaminhacabeçaeeladiz:–Elesabiaoqueestavafazendo,Day.–Lágrimastambémaparecemnos

seusolhos.–AlguémprecisasalvaroÉden.PorissoJohnsalvouvocê.Comoqualquerirmãofaria.

Osolhosdelameolhamcomfervor.Ficamosaqui,imóveis,paralisadospelachuva.Pareceumaeternidade.Recordoanoitequedesencadeouissotudo,anoiteemqueviossoldadosmarcaremaportadaminhamãe.Seeunão tivesse ido àquele hospital, se eu não tivesse cruzado o caminho doirmão de June, se eu tivesse encontrado a cura para a praga em outrolugar…seráqueas coisas seriamdiferentes?Estariamminhamãee Johnaindavivos?EstariaÉdenasalvo?

Nãosei.Estoucommedodemaisparaavaliaressespensamentos.–Você jogou tudo fora.–Levantoamãoe tocoseurosto,para tirara

chuvadosseuscílios.–Todaasuavida,suasconvicções.Porquefez issopormim?

June nunca esteve mais linda do que agora, sem enfeites e sincera,vulnerável mas invencível. Quando um raio percorre o céu, seus olhosnegrosreluzemcomoouro.

–Porquevocêestavacerto–elasussurra.–Emrelaçãoatudo.Quandoeuapuxoparaabraçá-la,Junesecaumalágrimadomeurostoe

me beija. Depois enterra a cabeça no meu ombro. E aí eu me permitochorar.

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JUNE

TRÊSDIASDEPOIS.BARSTOW,CALIFÓRNIA.23H40.11°C.

OfuracãoEvôniafinalmentecomeçouaabrandar,masachuva,forteefria, não para de cair em camadas. O céu continua a se agitar em fúria.Mesmoassim,oúnicotelãodeBarstowtransmiteasnotíciasquechegamdeLosAngeles:

ABANDONARCIDADE:OBRIGATÓRIOPARA

ZEIN,GRIFFITH,WINTER,FOREST.

RECOMENDA-SEQUETODOSOSCIDADÃOS

DELOSANGELESBUSQUEMABRIGOEMLOCAIS

DECINCOANDARESOUMAISALTOS.

QUARENTENASUSPENSANOSSETORES

LAKEEWINTER.

REPÚBLICAOBTÉMVITÓRIADECISIVASOBRE

COLÔNIASEMMADISON,DAKOTA.

LOSANGELESDECLARAPERSEGUIÇÃOOFICIAL

AOSREBELDESPATRIOTAS.

DANIELALTANWINGEXECUTADOEM26DEZEMBRO

PORPELOTÃODEFUZILAMENTO.

ÉclaroqueaRepúblicadivulgariaqueaexecuçãodeDayfoiumêxito,embora Day e eu saibamos que não foi bem assim. Já começaram ossussurrosnas ruasenosbecosescuros,osboatosdequeDayenganoua

Page 240: Legend (Legend #1) - Marie Lu

morte mais uma vez. E que uma jovem soldado da República o ajudounisso.Osmurmúrioscontinuammurmúrios,porqueninguémquerchamaraatençãodaRepública,mas,mesmoassim,opovocontinuaafalar.

Barstow, mais tranquila do que o interior de Los Angeles, continuasuperlotada de gente, mas a polícia daqui não está procurando por nós,comoapolíciadametrópoledeveestar.Cidadedeferroviasedeedifíciosem ruínas. Bom lugar para Day e eu nos abrigarmos. Gostaria que Olliepudessetervindoconoscotambém.SeaComandanteJamesonnãotivesseantecipadoaexecuçãoemumdia…Euqueriatê-losoltadodoapartamento,tê-loescondidonumbecoedepoisvoltarparaapanhá-lo,masagoraétardedemais. Que farão com ele?A ideia deOllie, assustado e sozinho, latindoparaossoldadosque invademmeuapartamento,mecausaumapertonagarganta.EleéaúnicalembrançapalpávelquemerestadeMetias.

AgoraDayeeunosesforçamos,porcausadachuva,paravoltarparaopátio ferroviário,ondevamosmontaracampamento.Tomocuidadoe ficonas sombras, mesmo nesta noite tempestuosa. Day mantém o bonéinclinadosobreosolhos.Metimeucabelodentrodagoladablusaepasseium velho cachecol, agora encharcado, na parte inferior do rosto. Nestemomento, isso é tudo que podemos fazer para nos disfarçarmos. Velhosvagões se acumulam no pátio da sucata, desbotados e enferrujados pelotempo.São26,seconsiderarmosumvagãodecargapelametade,todosdaUnion Pacific. Preciso me inclinar segundo a direção do vento, para nãocair. A chuva causa fisgadas em meu ombro ferido. Nem Day nem eudizemosumasópalavra.

Quandofinalmenteencontramosumvagãovazio(umvagãodecargade150metros, comduasportasdeslizantes–uma fechadapela ferrugem,aoutraabertapelametade;deve ter sidoprojetadopara carregarvolumessólidos),localizadodemodoseguro,atrásdeoutrostrêsnofundodopátio,entramos nele e nos acomodamos num canto. O local estásurpreendentemente limpo, suficientementeaquecidoe,mais importante,estáseco.

Day tira o boné e retorce o cabelo. Dá para ver que sua perna estádoendo.Elediz:

– É bom saber que os alertas contra as inundações continuamfuncionando.

Concordocomacabeçaecomento:

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–Achodifícilaspatrulhasnoslocalizaremcomestetempo.Façoumapausaparaobservá-lo.Mesmoagora,exaustoedesarrumado,

ecompletamenteencharcado,eletemumaespéciedeelegânciaindomável.–Quefoi?–Eleparadetorcerocabelo.Doudeombrosedigo:–Vocêestácompéssimaaparência.Isso fazDay sorrir umpouco,mas o sorriso vai embora tão depressa

quanto veio.A culpa toma seu lugar. Eume calo. Entendoporque ele sesenteassim.

–Logoquea chuvaparar – elediz –, quero rumarparaVegas.Queroencontrar Tess e ver que ela está a salvo com os Patriotas, antes que agenteváatéofrontparaacharoÉden.NãopossodeixaraTessparatrás.Tenhode saber se ela estámelhor comos Patriotas do que conosco. – Écomoseeleestivessetentandomeconvencerdequeessaéacoisacertaafazer.–Vocênãoprecisair.–Elecontinua.–Pegueumoutrocaminhoatéofront emeencontre lá. Podemosescolheropontodeencontro.Émelhorarriscarapenasumdenós,doqueosdois.

QuerodizeraDayqueéloucurairaumacidadeocupadapormilitarescomoVegas,masnãodigo.Tudooqueconsigoversãoosombrosestreitoscurvados e os olhos arregalados. Day já perdeu a mãe e um irmão. NãopodeperderTesstambém.Digoaele:

– Você deve mesmo tentar encontrá-la. Não precisa me convencer afazerisso,masvoucomvocê,nemadianta.

Dayfala,comexpressãocarrancuda:–Não,vocênãovai.–Vocêprecisadereforço.Sejarazoável.Sealgumacoisalheacontecer

duranteotrajeto,comovousaberquevocêestácomproblemas?Day olha para mim. Mesmo na escuridão, não consigo tirar os olhos

dele.Achuva limpouseurosto.A faixaavermelhadadesanguenocabelodesapareceu. Restam apenas alguns hematomas. Ele parece um anjo, sebemquelesionado.

Desvioosolhos,constrangida,ejustifico:–Nãoqueroquevocêvásozinho.Daysuspira:

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–Tudobem.VamosaofrontparadescobrirondeestáoÉden,edepoisatravessamos a divisa. As Colônias provavelmente vão nos receber bem,talvezaténosajudar.

As Colônias. Há pouco tempo, elas me pareciam o maior inimigo domundo.

–Tudobem–digo.Daysedebruçaatéondeestoueestendeamãoparatocarmeurosto.

Perceboqueaindalhedóimexerosdedos,assuasunhasestãoescurascomosangueseco.Elediz:

–Vocêémuitointeligente,maséumabobadeficarcomalguémcomoeu.

Fechoosolhosquandoelemetoca:–Entãonósdoissomosbobos.Dayme puxa para ele, entãome beija antes que eu possa dizermais

algumacoisa.Suabocaéquenteemacia,equandoelemebeijacommaisímpeto, passo meu braço pelo pescoço dele e retribuo seu beijo. Nessemomento,nãomeimportocomadoremmeuombro.Nãomeimportosesoldadosnosacharemnestevagão ferroviárioenosarrastarempara foradaqui.Nãoqueroestaremnenhumoutrolugar.Sóqueroficaraqui,seguracontraocorpodeDay,presaemseuforteabraço.

– É estranho – digo depois para Day, quando nós dois nosaconchegamosnochão.Láfora,ofuracãomostratodasuaira.Emalgumashorasvamosprecisariremboradaqui.–Éestranhoestaraquicomvocê.Eumaloconheço…masàsvezesparecequesomosamesmapessoa,nascidaemdoismundosdiferentes.

Ele ficaemsilêncioum instante;umadasmãosbrincadistraidamentecommeucabelo.Aídivagoumpouco:

– Eu imagino como seria se eu tivesse nascido para viver uma vidacomoasua,evocêtivessenascidoparaviverumavidacomoaminha.Eumeperguntoseseríamoscomosomosagora.SeráqueeuseriaumdosmaisaltossoldadosdaRepública?Evocê?Seriaumfamosodelinquente?

Tiroacabeçadoombrodeleeoolho:–Nuncalhepergunteisobreessenomedeguerra.PorqueDay?– Porque cada dia7 significa novas 24 horas. Cada dia quer dizer que

tudoépossíveldenovo.Vocêpodeaproveitarcadainstante,podemorrer

Page 243: Legend (Legend #1) - Marie Lu

num instante, e tudo se resumeaumdia apósooutro. –Ele olhapara aporta abertadovagãoda ferrovia, onde faixas escurasde água cobremomundo.–Eaívocêtentacaminharsobaluz.

Fecho os olhos e penso em Metias, em todas as minhas lembrançasfavoritas, e até naquelas que eu preferiria esquecer, então o imaginobanhadoemluz.Naminhacabeça,eumeviroparaelee façoumaúltimadespedida.Algumdiaeuovereinovamente,econtaremosnossashistóriasum ao outro…mas, por enquanto, eu o tranco em segurança, num lugarondesuaforçapossameinspirar.Quandoabroosolhos,Dayestáolhandoparamim. Ele não sabe o que estou pensando,mas sei que reconhece aemoçãoemmeurosto.

Permanecemos deitados juntos, observando os raios e escutando ostrovões,eesperandopelocomeçodeumamanhecerchuvoso.

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Notas

[1]Junebug,nooriginal,umaespéciedebesouronorte-americano.(N.T.)[2]Prisioneirodeguerra.(N.T.)[3]Umaespéciedeensopadomexicano,comcarne,feijãoepimenta.(N.T.)[4]Pratojaponês.(N.T.)[5]Privilégiosderootéteracessosdeadministradoraumadeterminadamáquinacomossistemascitadosacima.(N.T.)

[6]Aglóriadabandeira.(N.T.)[7]Day,doinglês,significadiaemportuguês.(N.T.)

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AAutora

MARIE LU trabalhou durante anos como diretora de arte na indústria devídeogames,masatualmente sededica em tempo integral à sua carreiracomoescritora.ElaseinspirouaescreverLegendenquantoassistianaTVaumaadaptaçãodeLesMisérablesecomeçouaseperguntardequemodoorelacionamento entre um famoso criminoso e um prodigioso detetivepoderia ser apresentado emumahistóriamais contemporânea. ElamoranacidadedeLosAngeles,nosEstadosUnidos,ondepassamaistempodoque gostaria em engarrafamentos que parecem não ter fim. Você podeconhecermaissobreaautoraemwww.marielu.org.