70
“Legítima Defesa da Honra” Ilegítima impunidade de assassinos Um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina * Silvia Pimentel Valéria Pandjiarjian Juliana Belloque Introdução: considerações preliminares O tema referente aos “crimes de honra” – a partir de uma perspectiva feminista, sóciojurídica de gênero e de direitos humanos – envolve diversos aspectos relacionados à forma pela qual a legislação interna trata a discriminação e, em especial, os crimes de violência contra as mulheres, bem como, mais especificamente, à forma pela qual os tribunais nacionais aplicam essa legislação em casos concretos. Em que pese os avanços internacionais, regionais e nacionais logrados em relação ao tema, em especial na década de 90, ainda persistem, em pleno século XXI, legislações e decisões jurisprudenciais violadoras dos direitos humanos das mulheres, marcadas pela impunidade de seus agressores e pela incorporação de estereótipos, preconceitos e discriminações contra as mulheres vítimas de violência. * Esse artigo foi produzido originalmente para o projeto sobre “Crimes de honra” de CIMEL/INTERIGHTS (Project on Strategies to Address “Crimes of Honor”. CIMEL – Centre of Islamic and Middle Eastern Law, School of African and Oriental Studies, London University, UK. INTERGITHS – International Centre for the Legal Protection of Human Rights).

Legitima Defesa Da Honra

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Direitos

Citation preview

  • Legtima Defesa da Honra Ilegtima impunidade de assassinos

    Um estudo crtico da legislao e jurisprudncia da Amrica Latina*

    Silvia Pimentel Valria Pandjiarjian

    Juliana Belloque

    Introduo: consideraes preliminares

    O tema referente aos crimes de honra a partir de uma perspectiva feminista, sciojurdica de gnero e de direitos humanos envolve diversos aspectos relacionados forma pela qual a legislao interna trata a discriminao e, em especial, os crimes de violncia contra as mulheres, bem como, mais especificamente, forma pela qual os tribunais nacionais aplicam essa legislao em casos concretos.

    Em que pese os avanos internacionais, regionais e nacionais logrados em relao ao tema, em especial na dcada de 90, ainda persistem, em pleno sculo XXI, legislaes e decises jurisprudenciais violadoras dos direitos humanos das mulheres, marcadas pela impunidade de seus agressores e pela incorporao de esteretipos, preconceitos e discriminaes contra as mulheres vtimas de violncia.

    * Esse artigo foi produzido originalmente para o projeto sobre Crimes de honra de CIMEL/INTERIGHTS (Project on Strategies to Address Crimes of Honor. CIMEL Centre of Islamic and Middle Eastern Law, School of African and Oriental Studies, London University, UK. INTERGITHS International Centre for the Legal Protection of Human Rights).

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    66

    Essas violaes encontram-se em especial no Brasil e em demais pases da Amrica Latina e Caribe refletidas, entre outros aspectos, em certos dispositivos legais penais discriminatrios referentes violncia sexual. Encontram-se tambm em teorias, argumentos jurdicos e sentenas judiciais que, por exemplo, constroem, utilizam e se valem da figura da legtima defesa da honra ou da violenta emoo para de forma direta ou indireta justificar o crime, culpabilizar a vtima e garantir a total impunidade ou a diminuio de pena em casos de agresses e assassinatos de mulheres, em geral praticados por seus maridos, companheiros, namorados ou respectivos ex.

    exatamente sob esses aspectos legais e jurisprudenciais que o presente artigo centrar sua abordagem descritiva e analtica, buscando prover, em sua primeira parte, um breve panorama sobre o tema na Amrica Latina. Em sua segunda parte, proceder a um estudo crtico dessa realidade social e jurdica de forma mais aprofundada e especfica no Brasil, focando em casos exemplares sobre a aplicao da tese da legtima defesa da honra nessa ltima dcada.

    Parte I. Panorama sobre crimes de honra na Amrica Latina

    1. Aspectos relevantes da legislao na regio

    Diversos e inmeros so os contedos discriminatrios na legislao referente violncia contra as mulheres em vrios pases da Amrica Latina. Contudo, para efeitos de anlise do contexto sobre os crimes de honra na regio, centraremos a abordagem do tema em relao a certos aspectos de dispositivos legais penais referentes violncia sexual.1 1 A Parte I desse artigo baseia-se em informaes providas pelo CLADEM/Equality Now, 2004; CLADEM, 2002/2004; CLADEM/ UNIFEM, 2002/2004; no item A honra e os costumes: sobre o bem jurdico protegido na legislao que pune a violncia sexual, ver Tamayo, 2000:180-181. Agradecemos tambm o envio de informaes sobre o tema recebidas do

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    67

    Vale mencionar que, de acordo com os principais tratados e declaraes internacionais de direitos humanos das mulheres2, os Estados se comprometeram a garantir a igualdade e a no discriminao perante a lei e na prtica. Comprometeram-se, ainda, especialmente, a assegurar que se revogue quaisquer leis que discriminem por motivo de sexo, bem como que se elimine o preconceito de gnero na administrao da justia.

    Este mandato no tem sido cumprido, j que alguns pases da regio ainda mantm leis que vulneram de maneira flagrante os direitos humanos das mulheres. Entre eles, merecem destaque os que mantm em seus Cdigos Penais normas que permitem ao estuprador ou abusador sexual livrar-se da pena por meio do casamento com a vtima ou, ainda, do casamento com terceiro.3

    Por um lado certo que vrios pases da regio reformularam em seus Cdigos Penais a qualificao dos ilcitos relativos violncia sexual. Em muitos casos, em que eram considerados como delitos contra a honra e os bons costumes, passaram a ser qualificados como delitos contra a liberdade sexual ou a integridade sexual. Em certos pases, todavia, tal reforma no se operou, e entre outros aspectos

    Centro de Documentao do CLADEM (CENDOC CLADEM), de Susy Garbay, coordenadora do CLADEM Equador e de Moriana Hernndez Valentini, coordenadora do CLADEM Uruguai. 2 Em especial a Conveno sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao contra a Mulher (CEDAW, ONU, 1979) e a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher (Conveno de Belm do Par, OEA, 1994), ambas ratificadas por praticamente todos os pases da Amrica Latina bem como em ateno Plataforma de Ao de Beijing, da IV Conferncia Mundial da Mulher (ONU, 1995). Veja pargrafo 232 (d) da Plataforma de Ao de Beijing. (CLADEM/Equality Now, 2004) 3 CLADEM/Equality Now, 2004.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    68

    discriminatrios, algumas leis penais, por exemplo, ainda conservaram o adultrio como crime, mantiveram termos relativos honestidade da mulher para configurao de delitos, assim como disposies que eximem de pena o agressor por matrimnio da vtima com ele ou inclusive com um terceiro.

    Nesse sentido, examinemos, pois, alguns desses aspectos em relao a vrios pases, destacando avanos, rupturas ou retrocessos no tema, em um breve panorama legal da regio.

    Na Argentina, em 1998, por fora da Lei 25.087, o Ttulo de Delitos contra a Honestidade foi substitudo por Delitos contra a Integridade Sexual. Embora tenha se eliminado a iseno da pena do agressor sexual por matrimnio subseqente com a vtima, criou-se a figura do avenimiento. O avenimiento uma espcie de acordo entre vtima e violador, especialmente em casos de delitos sexuais, quando tenha havido uma relao afetiva prvia entre ambos (art. 132 do Cdigo Penal). Assim, as vtimas maiores de 16 anos podem propor um acordo com o agressor, em cujo caso o Tribunal poder excepcionalmente aceitar a proposta desde que formulada livremente e em condies de plena igualdade , quando, levando em conta a especial e comprovada relao afetiva preexistente, considere que um modo mais eqitativo de harmonizar o conflito, com melhor resguardo para o interesse da vtima. O efeito do acordo a extino do processo penal ou a sua suspenso mediante perodo de prova. Essa possibilidade de se chegar a um acordo entre a vtima e o agressor, caso tenham se conhecido anteriormente, minimiza a importncia da violncia sexual por pessoas conhecidas da vtima e dificulta a punio do estupro no casamento.4 Existe, pois, a possibilidade de extino ou de suspenso do processo

    4 Id., ib.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    69

    penal sob determinadas condies, negociao que se encontra associada ao conceito de reparao da honra.5

    Na Bolvia, a Lei 1.768, de 1997, modificou a denominao do Cdigo Penal de Delito contra os bons costumes para Delitos contra a liberdade sexual. Aumentou as penas para todos estes crimes e suprimiu o termo honesta em delitos como o estupro e o rapto imprprio (artigos 309, 311 e 314 do CP de 1972). Todavia, mantm-se a disposio que outorga impunidade ao agressor por matrimnio com a vtima, sempre que seja livremente por ela consentido, conforme a Lei 2.033, de 1999.6 A referida lei de Proteo a Vtimas de Delitos contra a Liberdade Sexual estabelece, em seu artigo 8, que o artigo 317 do Cdigo Penal se modifica no sentido de que no haver punio quando os imputados, no tendo impedimento algum, contrarem matrimnio com as vtimas, sempre que exista livre consentimento destas.

    No Brasil, o estupro e o atentado violento ao pudor7 foram includos como crimes hediondos, regulados pela Lei 8.072/90 e Lei 8.930/94. Contudo, no Cdigo Penal ainda se utiliza a expresso mulher honesta para caracterizar as vtimas dos delitos de ordem sexual tipificados como rapto

    5 Ver o ponto sobre Privado/pblico: variaes sobre o mesmo tema em Tamayo, 2000/2001. 6 Id., ib. e Reporte de Mecanismos Nacionales para la Prevencin de la Violencia Domestica BOLIVIA, no marco do Projeto CLADEM/UNIFEM de balano sobre esforos e atividades dirigidas a erradicar a violncia contra as mulheres, www.cladem.org. 7 Estupro. Art. 213 Constranger mulher conjuno carnal, mediante violncia ou grave ameaa: Pena recluso, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Pena cominada pela Lei n 8.072, de 25.7.1990); Atentado violento ao pudor. Art. 214 Constranger algum, mediante violncia ou grave ameaa, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjuno carnal: Pena recluso, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Pena cominada pela Lei n 8.072, de 25.7.1990).

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    70

    violento, bem como a expresso mulher virgem para os crimes de seduo. Ainda se criminaliza tambm o adultrio. Os delitos sexuais, embora se refiram liberdade sexual, seguem integrando os Delitos contra os Costumes, da Parte Especial do Cdigo Penal. Em sua Parte Geral, o artigo 107, inciso VII, do Cdigo Penal mantm tambm o dispositivo legal que determina a extino da punibilidade pelo casamento do agente com a vtima em todos os delitos sexuais, chamados crimes contra os costumes. Dentre estes, incluem-se o estupro e o atentado violento ao pudor, nos quais, respectivamente, o agente, mediante violncia ou grave ameaa, constrange a vtima a praticar conjuno carnal ou qualquer outro ato libidinoso. Ainda, o mesmo artigo 107, em seu inciso VIII, descreve o casamento da vtima com terceiro como causa extintiva da punibilidade nos crimes contra os costumes praticados sem violncia real ou grave ameaa, desde que a ofendida no requeira o prosseguimento do inqurito policial ou da ao penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebrao do casamento. O artigo 107 do Cdigo Penal, dessa forma, trata sobre a extino da punibilidade, estabelecendo que o agente de crimes sexuais pode no ser punido quando se casar com a vtima ou quando ela se casar com um terceiro, e o eximindo, assim, de sua responsabilidade penal. A ratio legis consideraria que, dado que a violncia sexual no inviabilizou o matrimnio da vtima, o delito deve ser perdoado.

    No Chile, em 1999, por fora da Lei 19.6178, foi modificado o Cdigo Penal em matria de delitos sexuais, levando em conta a liberdade sexual como bem jurdico protegido no caso de mulheres adultas, e a identidade sexual quando se trata de menores. O delito de estupro e violacin sofreram significativas alteraes conceituais nessa reforma.

    8 A Lei 19.617/99 modificou o Cdigo Penal, o Cdigo de Processo Penal e outros diplomas legais em matrias relativas ao delito de violao.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    71

    Ademais, faz-se referncia violacin ou ao abuso sexual cometidos entre cnjuges ou conviventes, outorgando um tratamento expresso no artigo 369. A propsito, o pargrafo 2 deste artigo contemplou a possibilidade de desistncia por parte do ofendido, qualquer que seja a circunstncia sob a qual se haja perpetrado o delito. Contudo, tal desistncia deve ser examinada pelo tribunal, estando este facultado a no aceitar a solicitao por motivos fundados. Esta normativa constitui um avano na matria, pois difere substancialmente do critrio patriarcal que primava sob a vigncia da lei anterior, manifestada pela ento existncia do inciso 4 do artigo 369, hoje derrogado, o qual permitia a suspenso do procedimento ou a remisso da pena, se o agressor se casava com a vtima.9

    Na Colmbia, em 1997, por fora da Lei 360, foi reformado o Cdigo Penal em matria de delitos sexuais, os quais deixaram de ser considerados como delitos contra a liberdade e o pudor sexual e passaram a ser delitos contra a liberdade sexual e a dignidade humana. Nessa reforma, contemplou-se o aumento de penas e a ateno s vtimas, agravando-se a punio quando cometidos contra o cnjuge ou contra com quem coabite ou tenha coabitado com o agressor, ou ainda com quem se tenha um filho. Eliminou-se tambm a extino do processo penal nos casos em que o autor do delito se case com a vtima.10

    Na Costa Rica, por fora da Lei 4.573 e suas reformas, o artigo 92 estabelece como causa da extino da ao penal ou da pena o matrimnio do processado ou condenado com a ofendida, sempre que legalmente possvel e desde que no haja

    9 Balance en profundidad en Chile sobre cambios institucionales en el sistema de administracin de justicia y servicios conexos, alianzas y estrategias para la erradicacin de la violencia domestica (Projeto CLADEM/UNIFEM). 10 Balance Nacional sobre Violencia Domstica COLOMBIA (Projeto CLADEM/UNIFEM).

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    72

    oposio dos representantes legais da menor e do Patronato Nacional da Infncia. Tambm, segundo o artigo 93, pode ser concedido perdo judicial ao autor de delitos sexuais, incluindo o estupro, caso a pessoa ofendida ou seu representante legal, conjuntamente com o ofensor, assim o solicite, e desde que no haja oposio do Patronato da Infncia. Da mesma forma, poder ser concedido o perdo quando o autor desses crimes manifeste inteno de casar com a ofendida maior de quinze anos, desde que esta e o Patronato da Infncia expressamente consintam, bem como desde que todas as circunstncias do caso indiquem que a oposio ao matrimnio, por parte de quem exera o ptrio poder, infundada e injusta (itens 7 e 8). Constitui circunstncia que atenua a pena dos crimes de homicdio e leso o estado de emoo violenta do agente (respectivamente, artigo 113 e 127, este ltimo alterado pelo artigo 1 da Lei 6.726, de 1982).

    No Equador, apesar das modificaes aos delitos sexuais no Cdigo Penal, a expresso mulher honesta permaneceu na disposio que se refere ao delito de estupro.11 Mediante a Lei 105, de 1998, sobre Emendas ao Cdigo Penal12, foi derrogado o artigo 27, o qual, invocando a honra, eximia de responsabilidade penal o autor de homicdio ou leses na pessoa que mantinha relao sexual qualificada de ilegtima. Contudo, o artigo 22 do Cdigo Penal equatoriano13 estabelece, quanto "legtima defesa da honra conjugal e do pudor, que no h infrao alguma quando um dos cnjuges mata, fere ou golpeia o outro, ou ao correspondente amante, no instante de

    11 Art. 509.- Chama-se estupro a cpula com uma mulher honesta, empregando a seduo ou engano para alcanar seu consentimento. 12 Conforme Resoluo do Tribunal de Garantias Constitucionais publicada no Registro Oficial n. 224, de 3 de julho de 1989, em Tamayo, 2000/2001:270. 13 No Ttulo II Das infraes em geral, Captulo II, referente s Circunstncias da infrao.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    73

    surpreend-los em flagrante adultrio, ou quando uma mulher comete os mesmos atos em defesa de seu pudor, gravemente ameaado. Este artigo no se logrou modificar, em que pese a reforma do Cdigo Penal, em 1998, ter descriminalizado o adultrio, bem como includo novos tipos penais de delitos sexuais e novos elementos na tipificao do delito de estupro. No uma norma que seja alegada de forma comum ou freqente, entretanto, sua permanncia no Cdigo Penal traduz uma viso poltica (sexista) da idia de honra, ademais de constituir uma porta aberta para que muitos delitos, especialmente contra as mulheres, fiquem na impunidade.14

    Em El Salvador, com a promulgao do Decreto Legislativo 345, de 1998, foram revogados tipos penais obsoletos como o adultrio.15

    Na Guatemala, permanece o dispositivo legal que permite ao violador livrar-se da pena por meio do casamento com a vtima, conforme artigo 200 do Cdigo Penal vigente, sempre que a vtima seja maior de 12 anos.16

    Em Honduras, entre as reformas que se operaram no Cdigo Penal17, derrogou-se o item que eximia de responsabilidade o homem que, ao surpreender sua cnjuge ou convivente em flagrante unio carnal com outro, matava ou feria qualquer um deles. De acordo com o art. 122, agora,

    ser sancionado de 4 a 6 anos quem, no ato de surpreender seu cnjuge ou pessoa com quem viva maritalmente em flagrante unio carnal com outro, matar

    14 Cf. expressado por Susy Garbay, coordenadora do CLADEM Equador. 15 Balano nacional sobre violencia domestica en El Salvador (Projeto CLADEM/UNIFEM). 16 CLADEM/Equality Now, 2004. 17 Dec. 144/83, Cdigo Penal e modificaes, Dec. 191/96 e Dec. 59/97. cf. Tamayo, 2000/2001:289.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    74

    ou ferir qualquer um deles ou os dois, sempre que o culpado tiver bons antecedentes e que a oportunidade para cometer o delito no tenha sido provocada ou simplesmente facilitada mediante conhecimento da infidelidade conjugal ou marital.

    Essa disposio aplicvel, em igualdade de circunstncias aos pais, relativamente aos que abusarem sexualmente de suas filhas menores de 21 anos, enquanto elas viverem na casa paterna. Entretanto, o autor ficar isento de responsabilidade se as leses causadas forem algumas das compreendidas no artigo 138 (leses culposas). A violao sexual converteu-se em um delito de ordem pblica. Apesar da tendncia a incrementar as penas para todos os delitos, a pena atribuda aos referidos delitos no foi modificada, permanecendo vigente uma pena de 4 a 6 anos para o homicdio em razo de adultrio, muito inferior aplicada ao homicdio simples, que de 10 a 16 anos. Isso reflete, de alguma maneira, uma cultura que favorece a pessoa que, no ato de surpreender o cnjuge ou a pessoa com que viva maritalmente em flagrante unio carnal com outro, mata ou fere a qualquer um deles ou os dois.

    No Mxico, o Cdigo Penal Federal18 trata dos crimes sexuais em seu Ttulo XV Delitos contra a liberdade e o normal desenvolvimento psicossocial. Entre estes, inclui-se a punio de crimes como hostigamiento sexual, abuso sexual, estupro e violacin (Captulo I, artigos 260 a 266), bem como incesto (Captulo III, artigo 272) e adultrio (Captulo IV, artigos 273 a 276). Castiga, com pena de at 2 anos de priso e privao de direitos civis, os culpveis por adultrio consumado cometido no domiclio conjugal ou com escndalo. Somente se procede

    18 Cdigo Penal para o Distrito Federal em matria de foro comum e para toda a Repblica em matria de foro federal, ver www.oas.org. ltima reforma operada em 12/06/2003.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    75

    mediante pedido do cnjuge ofendido e, se houver perdo deste ao ofensor, cessa o procedimento criminal em favor de todos os responsveis. No Ttulo XIX, dos Delitos contra a vida e a integridade corporal, o artigo 310 (Captulo II, sobre regras comuns para leses e homicdio), por sua vez, estabelece a pena de 2 a 7 anos para o homicdio praticado em estado de emoo violenta, em circunstncias que atenuem sua culpabilidade; no caso de leso, aplica-se a tera parte da pena a que corresponderia.

    Na Nicargua, por ocasio da reforma do Cdigo Penal, embora tenha sido extinta a iseno de responsabilidade penal em caso de matrimnio da vtima com o agressor de delitos sexuais, ainda subsiste a referida iseno em relao figura do estupro.19 Nessa hiptese, o artigo 196 do Cdigo Penal estabelece que o dano ressarcido quando a vtima outorga o perdo ao agressor ou no caso em que aceite se casar com o mesmo.

    No Panam, so extintos o processo ou a pena em alguns delitos sexuais quando o autor se casa com a vtima, com produo de efeitos em relao a todos os acusados. Diz o artigo 225 do Cdigo Penal que,

    19 Cf. art. 196.- Comete estupro quem tiver acesso carnal com outra pessoa, maior de catorze anos e menor de dezesseis, intervindo engano. Comete tambm estupro quem tenha acesso carnal com pessoa maior de dezesseis ano que no haja tido antes, intervindo engano. Para ambos casos se presume engano quando o autor foi maior de vinte e um anos, ou estiver casado ou em unio de fato estvel. O estupro ser punido com priso de trs a cinco anos. Se a pessoa ofendida contrai matrimnio com o ofensor ou lhe outorga seu perdo, suspende-se o procedimento e fica extinta a pena imposta. Se for menor de dezesseis anos o perdo s poder ser outorgado por seu representante legal (...).

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    76

    nos casos dos artigos 21920 e 22221, ficar extinta a ao ou pena, conforme o caso, quando o autor e a ofendida contrarem matrimnio. Os efeitos da extino atingem a todos os participantes. No Paraguai, o Cdigo Penal, reformulado pela Lei

    1.160/97, inclui a tipificao de delitos sexuais no Ttulo I dos Fatos punveis contra a pessoa. Sob tal ttulo, os delitos sexuais esto tratados ainda dentro do Captulo V sobre Fatos punveis contra a autonomia sexual (coao sexual, trfico de pessoas, abuso sexual em pessoas indefesas ou internadas, atos exibicionistas e assdio sexual) e dentro do Captulo VI sobre Fatos punveis contra menores (abuso sexual de crianas, de pessoas sob tutela, estupro, atos homossexuais com menores, proxenetismo e rufianismo, incluindo-se neste captulo tambm o maltrato de menores).

    No Peru, foi substituda, em 1991, a denominao de delitos contra a honra e os bons costumes por delitos contra a liberdade sexual. O Cdigo Penal de 1991 contemplou modificaes importantes no tratamento dos delitos de violncia sexual (proteo da liberdade sexual e maior preciso na descrio dos tipos penais), mas subsistiam at ento outras disposies discriminatrias. Em 1996, o Comit de Direitos Humanos (Comit que monitora o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos) recomendou modificaes em ateno informao fornecida por uma organizao no-

    20 Art. 219: Quem tiver conjuno carnal com uma mulher virgem, maior de 14 anos e menor de 18, com seu consentimento, ser punido com priso de 1 a 3 anos. No caso de mediar promessa de matrimnio, ou se o fato for cometido por um parente, ministro de culto professado pela vtima, tutor, professor ou encarregado, a qualquer ttulo, da educao, guarda ou criao da vtima, a pena ser aumentada at o dobro. 21 Art. 222. Aquele que rapte uma pessoa maior de 12 anos e menor de 15, com seu consentimento, ser punido com priso de 6 meses a 3 anos.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    77

    governamental peruana. O CLADEM-Peru formulou uma proposta integrada de normas sobre violncia sexual. A congressista Beatriz Merino promoveu modificaes: primeiro, sobre a norma que eximia de pena o estuprador por subseqente matrimnio com a vtima (modificao parcial sancionada pela Lei 26.770, de 1997) e, depois, a relativa ao publica, que constitua a mudana efetiva demandada pelas organizaes de mulheres. A Lei 27.115, de 1999, estabeleceu ao penal pblica para os delitos contra a liberdade sexual.

    Em Porto Rico, a Lei n. 6, de 1979, emendou a Regra 154 de Processo Criminal, proibindo, em qualquer procedimento por delito de violncia sexual ou por sua tentativa, que se admita a produo de prova acerca da conduta prvia ou da histria sexual da vtima ou, ainda, acerca de opinio ou reputao sobre essa conduta ou histria sexual para atacar sua credibilidade ou para estabelecer seu consentimento, a menos que existam circunstncias especiais que indiquem que tal prova seja relevante. (Guerrero Caviedes, 2002) Ainda, a Lei 123, de 1994, tambm emendou a Regra 154 de Processo Criminal, eliminando o requisito de Prova de Corroborao, em um processo por delito de violncia sexual ou de sua tentativa, quando da prova surja a existncia de relaes amistosas, amorosas ou ntimas da vtima com o acusado. (Id., ib.)

    Na Repblica Dominicana, o Cdigo Penal22, de 1998, bastante severo de uma maneira geral, e mais especificamente em relao aos delitos de natureza sexual, inclusive quando praticados no mbito das relaes familiares. Na Seo 4a, sobre Atentados integridade fsica ou psquica das pessoas, estabelece que em nenhum dos casos previstos no Pargrafo I das Agresses Sexuais poder-se- acolher circunstncias atenuantes em proveito do agressor ou agressora.

    22 www.oas.org/juridico/mla/sp/dom/sp-dom-int-text-cp.pdf.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    78

    No Uruguai, o artigo 116 do Cdigo Penal vigente conserva a possibilidade de extino de certos delitos ou penas por meio do matrimnio do agressor com a vtima, por exemplo, de violacin, atentado violento ao pudor, estupro e rapto. Assim, a honra, conceito com forte carga de moralidade, tem estado presente e, portanto, tem sido tambm protegida sob vrias disposies estabelecidas nos Delitos contra os bons costumes e a ordem da famlia, que incluem supresso do estado civil, violacin, rapto, atentado violento ao pudor, estupro, corrupo, incesto, aborto. A honra, inclusive, tem sido protegida at mesmo em casos de homicdio e leses. Nesse sentido, por exemplo, a paixo provocada pelo adultrio nos delitos de homicdio e leses apresenta-se como causa de impunidade, atravs do perdo judicial. Para tanto, requer-se que: 1) o delito seja cometido pelo cnjuge que surpreenda in fraganti ao outro cnjuge e que a vtima seja este ou o seu amante e 2) o autor tenha bons antecedentes e que a oportunidade para cometer o delito no haja sido provocada ou simplesmente facilitada, mediante conhecimento anterior da infidelidade conjugal. atenuante do delito a provocao, que consiste em haver ocorrido sob o impulso da clera, produzido por um fato injusto, ou em estado de intensa emoo, determinado por uma grande desventura. Tem-se recebido como atenuante a infidelidade ou o fim da relao amorosa.23

    Na Venezuela, o Cdigo Penal trata dos crimes de estupro, seduo, prostituio ou corrupo de menores e de ultrajes ao pudor no Captulo I (artigos 375 a 383); de rapto no Captulo II (artigos 384 a 387) e dos corruptores no Captulo III (dos artigos 388 a 391), todos integrando o Ttulo VIII dos Delitos contra os bons costumes e a boa ordem das famlias. No Captulo IV, das disposies comuns aos captulos precedentes, o artigo 393

    23 Cf. informao de CLADEM-Uruguai, fornecida pela coordenadora nacional Moriana Hernndez Valentini.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    79

    dispe que as penas estabelecidas pela lei sero reduzidas sua quinta parte quando o crime seja contra prostituta (nos delitos dos artigos 375, 376, 377, 384 e 385). O artigo 395, por sua vez, prev a extino da pena se antes da condenao o agressor contrai matrimnio com a pessoa ofendida; e o juzo cessar em tudo o que se relacione com a penalidade correspondente a estes fatos punveis. Se o matrimnio efetua-se depois da condenao, cessaro a execuo das penas e suas conseqncias penais. Os rus de seduo, estupro ou rapto sero condenados a indenizar civilmente a ofendida, se solteira ou viva, e em todo caso honesta, se no se efetuar o matrimnio. Como se no bastasse a discriminao dos preceitos acima, o Captulo V trata do crime de adultrio (artigos 396 a 401), estabelecendo um tratamento absolutamente desigual para homens e mulheres, ao se referir somente mulher como adltera e penaliz-la assim como ao co-autor com priso de seis meses a trs anos e, por sua vez, ao se referir ao marido como aquele que mantenha concubina na casa conjugal, ou tambm fora dela, castigando-o, to somente se o fato notrio, com priso de trs a dezoito meses, e sua concubina com priso de trs meses a um ano.24 Por fim, cabe mencionar o artigo 67 da Parte Geral que estabelece:

    24 Art. 396.- A mulher adltera ser castigada com priso de seis meses a trs anos. A mesma pena aplicvel ao co-autor do adultrio. Art. 397.- O marido que mantenha concubina na casa conjugal, ou tambm fora dela, se o fato notrio, ser castigado com priso de trs a dezoito meses. A condenao produz de direito a perda do poder marital. A concubina ser punida com priso de trs meses a um ano. Art. 398.- Se os cnjuges estavam legalmente separados, ou se o cnjuge culpvel havia sido abandonado pelo outro, a pena dos delitos a que se referem os dois artigos anteriores, ser, para cada um dos culpveis, priso de quinze dias a trs meses.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    80

    Aquele que cometa o fato punvel em um momento de arrebato ou de intensa dor, determinado por injusta provocao, ser castigado, salvo disposio especial, com a pena correspondente diminuda de um tero at a metade, segundo a gravidade da provocao.25

    2. Anlise da jurisprudncia: casos ilustrativos na regio

    A prtica da reproduo da violncia de gnero contra a mulher encontra-se presente, para alm de certos aspectos da legislao, no contedo de argumentos jurdicos e decises judiciais que incorporam esteretipos, preconceitos e discriminaes contra as mulheres que sofrem violncia, desqualificando-as e convertendo-as em verdadeiras rs dos crimes nos quais so vtimas. Infelizmente, essa prtica ainda bastante comum e se apresenta com freqncia em processos de delitos sexuais praticados contra mulheres, especialmente o estupro. (Pimentel, Schritzmeyer & Pandjiarjian, 1998)

    Contudo, nos chamados crimes de honra e, em geral, em casos de agresses e homicdios contra mulheres, praticados por seus maridos, companheiros, namorados ou respectivos ex sob a alegao da prtica de adultrio e/ou do desejo de separao por parte da mulher que a discriminao e violncia contra as mulheres ganha mxima expresso. A ttulo de defender a honra conjugal e/ou do acusado, buscando justificar o crime, garantir a impunidade ou a diminuio da pena, operadores(as) do Direito lanam mo da tese da legtima defesa da honra ou da violenta emoo, e de todo e qualquer recurso para desqualificar e culpabilizar a vtima pelo crime, em um verdadeiro julgamento no do crime em si, mas do comportamento da mulher, com base em uma dupla moral sexual.

    25 www.oas.org/juridico/mla/sp/ren/sp-ven-int-text-cp.html.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    81

    Nesse sentido, vale a pena trazer anlise algumas situaes que demonstram a discriminao e violncia de gnero institucional reproduzida na interpretao e aplicao da lei nos referidos crimes de violncia contra a mulher.

    Ao analisar o sistema legal e judicial argentino e as normas que definem a situao jurdica das mulheres, Cristina Motta e Marcela Rodrguez26 entendem que a maioria dos sistemas jurdicos no reconhece os esteretipos presentes na prtica jurdica que marcam seu funcionamento, perdendo rigidez e consistncia frente aos comportamentos lesivos no espao familiar. Este tipo de conduta, quando penalizada, tende a ser justificada desde consideraes que escondem esteretipos de gnero e idias ancestrais de famlia e fidelidade.

    Nessa linha, afirmam Motta & Rodrguez que a jurisprudncia argentina relacionada com os delitos de homicdio e leses pessoais agravados pelo vnculo oferece exemplos eloqentes. Nos argumentos de juizes(as), o privado tende a ser o secreto, a violncia privada deve ser tratada com menor severidade. O cime, o desamor ou o descumprimento dos deveres conjugais oferecem razes capazes de justificar uma conduta agressiva, e por isso levam uma atenuao das penas. So vrios os casos decididos por tribunais nesse sentido.

    Em 1989, a Suprema Corte da Provncia de Buenos Aires, segundo as autoras, em um caso em que deveria decidir se um homem que havia matado sua esposa tinha atuado em estado de emoo violenta, expressou que entre as razes que servem de fundamento escusa da emoo violenta encontram-se os

    26 Ver sobre Anlisis del sistema legal y judicial argentino y las normas que definen la situacin jurdica de las mujeres. Trabajo sobre el rol de la justicia. Item II: Jurisprudencia Argentina en lesiones personales y homicidios agravos por el vinculo. (Motta & Rodrgues, pp.54-56).

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    82

    motivos ticos e os direitos conculcados. A Corte afirma que ambos prestam utilidade ao juiz em sua difcil tarefa valorativa e agrega outra que a de

    atender a direitos que o ordenamento jurdico tutela e que se ho visto afetados pelo estmulo determinante da vontade homicida, tratando-se tal estmulo, no mais das vezes, de uma provocao por parte da vtima. 27 Neste caso, a Corte, ao examinar as circunstncias

    excusveis, afirma: Nos autos, as circunstncias de fato que se devem computar para a valorao que conduz escusa so: a) o abandono da esposa do lar conjugal levando o filho de ambos, conduta que causa ao marido um dano material (cuidado da casa, ateno da cozinha e limpeza etc.) e espiritual (a solido, o desapoderamento de sua prole, mais ainda neste caso de deficiente sexualidade e tardia fecundao), colocando-o surpreendentemente em uma situao anormal de difcil superao e b) um motivo do abandono, que a Cmara tem por certo e vlido como uma das causas da separao. Portanto, a Corte diminuiu a pena do homicida por haver cometido seu delito levado por motivaes de ndole tica, condicionadas pelas circunstncias anteriormente mencionadas, em particular por haver se encontrado durante o fato em um estado de intensa comoo afetiva.

    27 Id., ib., referindo-se deciso da Suprema Corte da Provncia de Buenos Aires, em 12 de dezembro de 1989.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    83

    Em outro caso similar na Argentina, mencionam Motta & Rodrguez, o juiz reduziu a pena do acusado de matar sua esposa alegando:

    Quando a grave e inusitada extraordinria infrao por parte da vtima, de seus deveres jurdicos ou morais emergentes do vnculo que a liga com o autor do delito, constitui o nico motivo da reao deste... a conduta da vtima opera como uma circunstncia extraordinria de atenuao ao descartar a idia de uma peculiar perversidade no homicdio e de um grau maior de periculosidade.28 Da mesma forma, outro juiz, em 1988, considerou que

    configuram circunstncias capazes de atenuar a pena, os desvelos e preocupaes e mortificao do imputado ao comprovar a conduta equvoca de sua cnjuge, o drama vivencial por qual atravessou e que gerou a crise no dia do fato em que recebe a confirmao dos prprios lbios de sua cnjuge, da existncia de outro homem em sua vida e seu propsito de abandonar a vida em comum.29 Em todos estes casos, afirmam as autoras, a justia

    argentina demonstra o carter especial dos delitos cometidos no interior da famlia. Para as autoras, o fato mais alarmante levando em conta no somente a realidade sociolgica da Argentina, mas tambm da maioria dos pases do mundo, a qual demonstra que mais de 90% dos casos de violncia intrafamiliar se cometem contra mulheres. Da a extrema compreenso e o discutvel favorecimento que manifesta a

    28 Corte de Apelaciones de Mercedes, Argentina. 29 CN.Crim e Corr. 5 de fevereiro de 1988.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    84

    justia frente a quem agride seus familiares, gerando uma equvoca mensagem de impunidade que incide na segurana das mulheres no lar. (Motta & Rodrguez)

    Em 2003, uma notcia publicada no mais importante jornal argentino30, anunciou a diminuio de pena de um condenado por haver matado sua mulher quando ela pediu o divrcio. Os juizes consideraram que o anncio da mulher chocou o marido, e por isso a diminuio da pena. Embora tenha sido punido com 22 anos de priso, para este crime, segundo as leis de Necochea, caberia a priso perptua. O marido, em maio de 2001, aps uma discusso com sua esposa, quando ela aos gritos anunciou Quero o divrcio!!!!, desferiu-lhe um soco no rosto que a deixou inconsciente no cho; depois a asfixiou com uma toalha e um vestido, colocou-a em um ba e, no seu carro, levou-a a um bosque e a queimou, ainda viva. Nesse caso foi alegada a circunstncia extraordinria de atenuao prevista no Cdigo Penal como emoo violenta e o tribunal entendeu que a estrutura de personalidade distorcida, que o fez atuar em destruio do que mais apreciava, no pode ser valorada da mesma forma como se fosse uma pessoa sem esses traos, bem como que o homicida confesso tinha impossibilidade para aceitar a desagregao do grupo familiar. A famlia da vtima anunciou que recorreria da deciso.

    Em pleno sculo XXI, no Mxico, tambm ainda se justifica o homicdio de mulheres por motivo de honra dos maridos. o que se depreende do caso da advogada Roco Eugenia Mancilla Becerril, assassinada, em 22 de abril de 2000, por seu marido Gaspar Vargas Ros. (Gonzles, 2002) Gaspar teve a pena inicial de dois anos, dez meses e quinze dias de priso, por homicdio praticado em estado de emoo

    30 Polemica Sentencia em Necochea, CLARIN.COM, 25 de junho de 2003, Ano VII, n 2641. www.old.clarin.com/diario/2003/06/25/s-03115.htm

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    85

    violenta, reduzida para um ano e oito meses, pelo Tribunal Superior de Justia. Deu-se, pois,

    valor primordial ao suposto ato sexual que declara o homicida e o suposto adultrio, sem tomar em conta os antecedentes da personalidade violenta nos ditames periciais em psiquiatria de Gaspar Vargas.

    A honra dos homens paga-se com a morte... a morte das mulheres.

    Em outro caso mexicano, a jovem Carolina Gaona31 viu-se em necessidade de sair do lar conjugal com seus dois filhos pr-escolares, em outubro de 2000, no Municpio de Ecatepec (Estado do Mxico), pois tinha denunciado seu marido por hav-la trancado durante 12 horas em sua casa e a ameaado de morte. Carolina foi condenada a voltar para a casa e viver com seu esposo. O juiz entendeu que os atos do marido estavam justificados, pois tal conduta advm do estado de cimes do cnjuge varo, ademais do fato de que suas agresses no estavam suficientemente provadas.

    Ainda no Mxico, por exemplo, no Cdigo Penal do Estado de Oaxaca prevalece o artigo 293 da figura do homicdio por honra. Segundo Reyes Tern, o homicdio por honra fortalece a impunidade e o sentimento de propriedade ou de posse, to arraigado na sociedade:

    o homicdio por honra, conhecido em outros estados como homicdio por estado de emoo violenta, garante uma penalidade muito baixa aos que matam seus cnjuges sob o argumento de encontr-lo/a em ato carnal ou prximo a sua consumao. (CIMAC, 2001)

    31 Expediente 1022/2000-2, www.cimacnoticias.com.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    86

    No Uruguai, segundo informa a coordenadora nacional do CLADEM, Moriana Hernndez Valentini, consideram-se as leses e o homicdio, cometidos majoritariamente por homens contra suas esposas, companheiras, namoradas e respectivas ex., como crimes passionais, praticados em legtima defesa da honra, por questes de momento, sem visualizar estes fatos como uma violncia domstica. Mas, quando as mulheres, que sofreram durante anos a violncia domstica, matam ou lesionam seus agressores, a jurisprudncia no reconhece a legtima defesa, e, portanto, impe penas no inferiores a dez anos, dado que este o mnimo legal aplicvel no caso de esposas e concubinas. Nesta hiptese, os tribunais sustentam argumentos tais como, se certo que a mulher viveu verdadeira tortura por parte de seu esposo, trata-se de um homem doente e de um homicdio, e assim que se julga.

    Segundo Moriana, a honra dos homens resulta protegida na prtica, ao amparo dos preconceitos e da histeria das mulheres, que justifica e explica a conduta daqueles. Tambm afirma que majoritria a situao na qual as mulheres resultam mortas ou gravemente feridas, aps haverem denunciado sistematicamente a agresso, o assdio e a ameaa, sem que seja dada uma resposta efetiva do sistema judicial.

    O Brasil talvez seja um dos pases da regio latino-americana com o mais tradicional, largo e profundo histrico de decises jurisprudenciais que acolheram e muitas vezes ainda acolhem a tese da legtima defesa da honra em crimes de homicdios e agresses praticados contra mulheres por seus companheiros e ex-companheiros, ainda que no haja expressa previso na lei penal a esse respeito.

    sobre estas decises concretas que centraremos nossa ateno na parte seguinte desse artigo, demonstrando os diferentes argumentos e aspectos sciojurdicos que de forma direta ou indireta se valem da referida tese, acolhendo-a ou rejeitando-a.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    87

    Vale lembrar, ainda, como inspirao e respaldo dessa anlise que, ao longo das ltimas dcadas, diversos estudos sociolgicos, antropolgicos e jurdicos no pas tm demonstrado e analisado prticas discriminatrias e de duplicao da violncia de gnero no mbito da lei e da administrao da justia nos crimes em que a vtima mulher.32

    tambm valorosa a ao e reao do movimento feminista e de mulheres por meio de campanhas e demais atividades voltadas a influenciar a sociedade e muito especialmente, o parlamento, executivo, o judicirio e todos os(as) operadores(as) do Direito no sentido de eliminar a violncia e a discriminao de gnero contra as mulheres.

    O tema tambm gera repercusso relevante na mdia e nos meios de comunicao, em especial quando surgem casos de mulheres famosas vtimas dos chamados crimes passionais de homicdio por seus maridos, companheiros, namorados ou respectivos ex. Nesses casos, parece que a sim chocam a sociedade e se tornam notcia (talvez mais pelo fato de serem crimes cometidos contra pessoas famosas do que pelo crime em si e por sua motivao). De qualquer forma, nessas ocasies resgata-se o tema, reacende-se a discusso. Os arquivos jornalsticos esto repletos de casos exemplares nesse sentido.

    E, ainda, no podemos deixar de ressaltar que, vez ou outra, algumas matrias jornalsticas como a recentemente publicada em uma grande revista brasileira (Cotes, 2004:44-48), sem que tivesse havido qualquer crime recente decidem tratar do tema sob a perspectiva da justia, de forma menos sensacionalista, mais realista, responsvel e aprofundada, o que

    32 Para maior consulta sobre esse tema, ver: Amricas Watch, 1991; Besse, 1989:181-97; Ardaillon & Debert, 1987; Azevedo, 1985; Corra, 1981; Eluf, 2002; Gregori, 1993; Hermann & Barsted, 1995; Izumino, 1998; Langley & Levy, 1980; Pimentel, Schritzmeyer & Pandjiarjian, 1998; Saffioti & Almeida, 1992; Soares et alii, 1993.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    88

    contribui sobremaneira para a visibilizao e o enfrentamento do problema.

    Parte II. O cenrio jurdico brasileiro

    1. Disposies discriminatrias do Cdigo Penal brasileiro A inrcia do legislador brasileiro em transformar

    disposies discriminatrias, enraizadas h sculos no nosso direito penal, em muito colabora para a perpetuao de decises judiciais que vo de encontro evoluo dos direitos humanos e ignoram os princpios constitucionais de 1988.

    O Cdigo Penal Decreto-lei n. 2848/1940, reformado em sua parte geral pela Lei n. 7.209/1984 constitui a principal expresso do direito penal positivo brasileiro.

    Diploma antigo, com mais de sessenta anos, elaborado por uma e para uma sociedade patriarcal, ainda carrega em seu corpo preceitos discriminatrios que tm a fora de produzir uma contaminao sistmica no Direito brasileiro.

    Mesmo com a reforma de sua parte geral, que se deu em 1984, remanescem normas inconcebveis numa democracia que consagrou a igualdade entre homens e mulheres33 e assumiu como compromisso jurdico internacional e nacional a proteo das mulheres contra qualquer conduta que cause morte, dano ou sofrimento fsico, sexual ou psicolgico, seja na esfera pblica ou privada, considerando que o direito de toda mulher de viver livre de violncia abrange, entre outros, o direito a ser livre de todas as formas de discriminao.34

    Como um dos mais contundentes exemplos, o artigo 107, inciso VII, do Cdigo Penal determina a extino da 33 Art. 5, inc. I, da Constituio da Repblica de 1988. 34 Artigos e 1 e 6, letra a da Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher, aprovada pela Assemblia Geral da Organizao dos Estados Americanos (OEA) em 09 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    89

    punibilidade pelo casamento do agente com a vtima em todos os chamados crimes contra os costumes. Dentre estes, o estupro e o atentado violento ao pudor, nos quais o agente, mediante violncia ou grave ameaa, constrange a vtima a praticar conjuno carnal ou qualquer outro ato libidinoso.

    Ainda, o mesmo artigo 107, em seu inciso VIII, descreve o casamento da vtima com terceiro como causa extintiva da punibilidade nos crimes contra os costumes praticados sem violncia real ou grave ameaa, desde que a ofendida no requeira o prosseguimento do inqurito policial ou da ao penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebrao do casamento.

    Resta claro que a inteno do legislador proteger a honra da vtima e de sua famlia, ficando em absoluto segundo plano o direito integridade fsica da mulher e, principalmente, liberdade no exerccio de sua sexualidade. O casamento repararia a violao pureza da mulher.

    Essas disposies discriminatrias sustentaram por dcadas o entendimento jurisprudencial de que o constrangimento da prtica de atos sexuais dentro do casamento no se configura como crime de estupro ou atentado violento ao pudor. A conduta do marido que subjuga sua mulher, compelindo-a pela violncia prtica de atos sexuais, foi por muito tempo considerada legtima, respaldada pelo regime de direitos e deveres do casamento. Apenas mais recentemente as decises dos Tribunais reverteram esse quadro, punindo maridos pelo cometimento de estupro e atentado violento ao pudor contra suas esposas.

    Os conceitos e expresses utilizados pelo Cdigo Penal em sua parte especial que tipifica as condutas criminosas tambm acompanham esse cenrio discriminatrio. Os crimes contra a liberdade sexual esto dispostos no Ttulo denominado Dos crimes contra os costumes.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    90

    O bem jurdico tutelado, como entendem diversos autores35, o pudor, as regras sociais estabelecidas em nome da moral e dos bons costumes.

    De outra parte, alguns dos tipos penais da indigitada seo do cdigo acrescem conduta do agente expresses discriminatrias referentes a caractersticas da vtima mulher. So os chamados elementos normativos do tipo, circunstncias cuja demonstrao indispensvel para a configurao do crime.

    Assim estabelece, por exemplo, o art. 215 do Cdigo Penal brasileiro que criminaliza a posse sexual mediante fraude:

    ter conjuno carnal como mulher honesta mediante fraude. Pena recluso, de 1 (um) a 3 (trs) anos. Pargrafo nico. Se o crime praticado contra mulher virgem, menos de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos: pena recluso, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. As expresses mulher honesta e mulher virgem

    repetidas nos crimes de atentado ao pudor mediante fraude (art. 216), seduo (art. 217) e rapto violento ou mediante fraude (art. 219) representam um desrespeito liberdade sexual da mulher e colaboram com a permanncia de uma cultura jurdica que infelizmente ainda tolera vrias formas de violncia praticadas contra as mulheres na sua vida ntima, familiar e social.

    35 Hungria, 1956:103. O autor assevera que o termo costumes inserido na rubrica Dos crimes contra os costumes significa os hbitos da vida sexual aprovados pela moral prtica ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada convenincia e disciplina sociais. No mesmo sentido, ver Noronha, 1998.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    91

    2. Legtima defesa da honra

    Neste caldo da cultura jurdica discriminatria, chama a ateno a absolvio de homens que ferem e matam suas esposas, companheiras ou namoradas ou mesmo ex-esposas, ex-companheiras e ex-namoradas agindo em legtima defesa da honra.

    O Cdigo Penal brasileiro alberga a figura da legtima defesa enquanto uma excludente de ilicitude ou antijuridicidade. Em seu artigo 25 estabelece: Entende-se em legtima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessrios, repele injusta agresso, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

    Para que se configure a legtima defesa importa que a reao no seja exagerada e desproporcional e seja imediata ameaa iminente ou agresso atual a direito prprio ou de outra pessoa.

    A doutrina jurdica, de forma consensual, entende que todo e qualquer bem jurdico pode ser defendido legitimamente, incluindo-se a honra.

    No h consenso, entretanto, em relao ao uso desta figura nos casos em que o homicdio ou a agresso so praticados para defender suposta honra por parte do cnjuge (concubino/companheiro/namorado) trado. Importa ressaltar que so poucos os casos em que a mulher faz uso de tal alegao, mesmo porque, so poucos os casos em que, trada, a mulher reage com tal violncia.

    Assim sendo, a figura da legtima defesa da honra consiste em tese jurdica que visa tornar impune a prtica de maridos, irmos, pais ou ex-companheiros e namorados que matam ou agridem suas esposas, irms, filhas, ex-mulheres e namoradas fundada ou justificada na defesa da honra da famlia ou da honra conjugal. Entretanto, frise-se que, no entender de grande parte da doutrina e jurisprudncia, no h

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    92

    honra conjugal ou da famlia a ser protegida, na medida em que a honra atributo prprio e personalssimo, referente a um indivduo e no a dois ou mais indivduos.

    No final dos anos 70 e incio de 80, o movimento de mulheres brasileiro mobilizou-se contra a tradicional invocao da tese da legtima defesa da honra nos crimes passionais, criando o slogan que se tornou famoso em todo o pas: Quem ama no mata.

    Entretanto, nestes ltimos 15 anos, pouco se tem dado ateno ao tema, no se podendo avaliar em que medida, ainda hoje, esta tese tem sido invocada e acolhida pelo Poder Judicirio brasileiro. Com tal preocupao, realizamos uma primeira aproximao do objeto a ser estudado: as decises dos tribunais brasileiros sobre legtima defesa da honra.

    Este esforo inicial j nos permitiu colher dados significativos sobre o tema. Constatamos que, ainda hoje, no pacfica a jurisprudncia a respeito, havendo acrdos, em menor nmero, que admitem a legtima defesa da honra. Esta tese, portanto, ainda nestas duas ltimas dcadas, continua a ser invocada, s vezes com sucesso, em todas as regies do pas.

    Importa ressaltar que os crimes dolosos contra a vida, por fora de dispositivo constitucional (art. 5, inc. XXXVIII, CF), so julgados pelo Tribunal do Jri, composto por 7 (sete) jurados leigos.

    Em funo da soberania dos veredictos do jri popular, os Tribunais de Justia dos Estados que integram o segundo grau de jurisdio ou a chamada jurisdio recursal apenas podem anular a deciso dos jurados considerada manifestamente contrria prova dos autos, determinando a realizao de novo julgamento pelo Tribunal do Jri, com novos jurados; mas nunca permitido a juizes(as) togados substituir a deciso recorrida.

    Neste contexto, muito comum a situao em que, mesmo aps a anulao da absolvio, o Tribunal do Jri, em

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    93

    segundo julgamento, novamente aceita a aplicao da tese da legtima defesa da honra e acaba por absolver o homicida.

    Importa dizer que h um debate nacional sobre a legitimidade ou no da existncia desse tipo de tribunal popular. Alguns reconhecendo sua relevncia e vendo-o como manifestao de um profundo esprito democrtico. Outros, reconhecendo suas limitaes face ao despreparo jurdico de seus componentes.

    A comunidade internacional reunida na Organizao das Naes Unidas (ONU) j se manifestou, por mais de uma vez h vrios documentos a respeito sua no aceitao e mesmo repdio s prticas culturais desrespeitadoras dos direitos humanos das mulheres.

    A IV Conferncia Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, 1995, em sua Plataforma de Ao, item 224, estabeleceu que a violncia contra as mulheres constitui ao mesmo tempo uma violao aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais e um bice e impedimento a que desfrute deste direito. Ressalta a violncia contra as mulheres derivada dos preconceitos culturais e declara que preciso proibir e eliminar todo aspecto nocivo de certas prticas tradicionais, habituais ou modernas, que violam os direitos das mulheres.

    2.1. Metodologia da pesquisa

    Para comprovar a hiptese desta pesquisa, foram coletados acrdos publicados entre os anos de 1998 e 2003 disponveis nas principais revistas de jurisprudncia do pas e, principalmente, nos sites dos Tribunais brasileiros. Assim, a fonte da pesquisa j significou uma limitao dos resultados, j que em alguns Estados da federao brasileira os Tribunais de Justia no disponibilizam pesquisa de jurisprudncia pela internet. Na verdade, para uma precisa visualizao do cenrio de aplicao da tese de legtima defesa da honra, seria necessrio o acesso a decises proferidas pelo Tribunal do Jri,

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    94

    em primeira instncia, muitas das quais no so atacadas por recurso, o que demandaria uma pesquisa de campo mais aprofundada.

    Como no temos, por enquanto, informaes a respeito das decises dos Tribunais de Jri do pas que no receberam recursos, e como esses acrdos no representam a totalidade dos acrdos proferidos no pas nos ltimos anos, no podemos nem de longe quantificar ou mesmo estimar sua freqncia. Mas podemos afirmar que a legtima defesa da honra, avocada para absolver homens assassinos de suas respectivas mulheres ou ex-mulheres, , incontestavelmente, ainda, uma prtica cultural, por vezes presente em nossos tribunais, como se pode verificar atravs do presente estudo. Esta prtica revela a existncia de preconceitos e esteretipos que necessitam ser enfrentados criticamente.

    Destarte, o presente trabalho se busca qualitativo e no quantitativo. A inteno demonstrar que, contrariamente ao que muitos devem pensar, a cultura da sociedade brasileira, que ingressa no sculo XXI, ainda entende como no recriminvel a conduta de homens que matam ou ferem suas esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou familiar.

    A pesquisa visa salientar que, apesar deste conceito de honra conjugal ou familiar no existir na lei ou nos manuais, a cultura jurdica brasileira permite a impunidade de assassinos em defesa de um modelo de relacionamento interpessoal no qual a mulher permanece submissa ao homem e aos valores de uma sociedade patriarcal.

    As decises foram agrupadas em quatro categorias: acolhimento da tese de legtima defesa da honra ultrajada por conduta sexual de parceiro com terceiro, no acolhimento por falta de requisitos formais do artigo 25 do Cdigo Penal, rejeio absoluta da tese com voto vencido em sentido contrrio e rejeio unnime.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    95

    O contedo discriminatrio dos votos foi o que mais chamou ateno no decorrer do trabalho, por isso a motivao das decises foram ressaltadas.

    A seguir, apresentamos algumas das argumentaes mais relevantes encontradas nos 55 (cinqenta e cinco) acrdos pesquisados.

    Importa dizer, ainda, que este breve estudo visa trazer alguma luz a respeito da utilizao dos argumentos referentes legtima defesa da honra, e, assim, mostrar a relevncia ou no de posterior aprofundamento sobre o tema.

    2.2. Resultados colhidos com a pesquisa de jurisprudncia

    I. Acolhimento da tese de legtima defesa da honra ultrajada por conduta sexual de parceiro com terceiro:

    TRIBUNAL DE JUSTIA DE SO PAULO

    Apelao Criminal n. 137.157-3/1, 23.02.1995. Resumo: acusado que, surpreendendo a mulher em situao de adultrio, mata-a juntamente com seu acompanhante. A tese da legtima defesa da honra foi aceita por expressiva maioria do Tribunal do Jri e confirmada pelo Tribunal de Justia de So Paulo, que negou provimento ao apelo do Ministrio Pblico, mantendo a deciso do Jri popular. Motivao da deciso: Antonio, j antes ferido na sua honra, objeto de caoada, chamado, agora sem rodeios, de chifrudo por pessoas daquela localidade... mal sabia o que o esperava. Entrou em casa e viu sua esposa e J.J. dormindo a sono solto, seminus, em sua prpria cama e na presena de seu filho, cujo bero estava no mesmo quarto... Sasse ele daquela casa sem fazer o que fez e sua honra estaria indelevelmente comprometida. No se pode esquecer que o ru foi educado em outra poca, nas dcadas de 20 e 30, quando a moral e os costumes ainda eram outros e mais rgidos talvez que os de agora, mas que por certo estavam

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    96

    incrustados em seu carter de maneira a moldar sua personalidade com reflexos futuros perenes. Tudo isso, evidncia, deve ter sido aos jurados ou pelo menos por eles analisado, sem contar, ademais, que os juzes de fato, retirados que so do seio da sociedade, representam, no Tribunal do Jri a moral mdia desta... Sabe-se, claro, que a questo relativa legtima defesa da honra no nova. Nem por isso, contudo, perde a atualidade. O assunto tambm no pacfico, quer na doutrina, quer na jurisprudncia. (...) O adultrio, em geral, em todos os tempos, em todas as leis as mais primitivas e modernas, sempre foi considerado um delito, uma ao imoral e anti-social. (...) As ofensas honra, comumente, se exteriorizam de mil maneiras, numa infinidade de atos, palavras, smbolos, formas morais ou materiais, porm, nenhuma a atinge to intensamente como a relao adulterina, como as aes libidinosas ou conjuno carnal com outrem que no o cnjuge. Traduz, em realidade, em nossa opinio, uma dupla agresso dos adlteros, moral e fsica, ao cnjuge inocente, sendo a primeira mais grave, perturbadora, profunda e injusta que a materialidade que se descobre na cena do flagrante. incontestvel, ademais, que um cnjuge tem em referncia ao outro, na constncia do casamento, o absoluto direito fidelidade, de exigir-lhe tal, direito que vai a implicar numa honra como um bem jurdico a ser respeitado e a dever ser mantido.(...) A ofensa do adultrio no ocorre somente em relao ao indivduo mas, tambm, s normas de conduta do grupo social; a reao pessoal algo que possui e movido por uma visvel carga social. Reage o indivduo em funo de sua dignidade e em funo do sentimento comum de valorizao da coletividade. Reage porque a honra s pode ser entendida e existir sob um duplo carter e sob o dever para consigo mesmo e para com a sociedade. Na luta por seu direito, outra no pode ser a sua atitude ou conduta como pessoa e como membro de um grupo numa dada coletividade organizada.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    97

    Organismo social governado por valores que emanam das normas de cultura e das suas regras de conduta e que se relacionam com os seus princpios bsicos... Quem age em defesa de sua personalidade moral, em qualquer dos seus perfis, atua como um verdadeiro instrumento de defesa da prpria sociedade ao combater o delito, a violncia, a injustia, no prprio ato em que se manifestam.(...) Eis uma das razes pelas quais se tm asseverado, constantemente, que a justia penal, no Estado, e a legtima defesa, no particular, so um dos contra-motivos para o crime, duas formas da luta contra o delito, aparecendo o instituto com tonalidades repressivas e preventivas. Daria ensejo, at, conservao da ordem e da paz social e jurdica... Instituto, alis, anterior e superior ao direito legislado, positivo, acima dos cdigos... um direito natural e inalienvel, misto de contedo individual e social. Instituto que por sua humanizao e simplificao moderna tornou-se mais eficiente com a realidade humana e social. (g.n.) Voto vencido: ...pois na pretensa legtima defesa da honra o que ocorre o sacrifcio do bem supremo vida em face de meros preconceitos vigentes em algumas camadas sociais... Honra atributo pessoal, independente de ato de terceiro, donde impossvel levar em considerao ser um homem desonrado porque sua mulher infiel... A lei e a moral no permitem que a mulher prevarique. Mas negar-lhe, por isso, o direito de viver, seria um requinte de impiedade. TRIBUNAL DE ALADA CRIMINAL DE SO PAULO

    Apelao Criminal n. 633.061-7, 06.12.1990. Resumo: ofensa integridade fsica de companheira em razo desta ter-lhe confessado infidelidade. Foi mantida, pelo Tribunal de Alada Criminal de So Paulo, a deciso do juiz que em primeira instncia acolhe a tese da legtima defesa da honra pelo acusado que, dominado por violenta emoo, com moderada repulsa e em consonncia com sua realidade, lesou a

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    98

    integridade corporal de sua companheira, aplicando-lhe alguns socos. Motivao da deciso: Ora, diante do confessrio da infidelidade da mulher, no se pode vislumbrar nenhum arbtrio do julgamento do MM. Juiz de primeiro grau admitindo o reconhecimento da legtima defesa da honra. O decisum recorrido no est alheado da realidade social, no comportando um juzo de reforma. O complexo probatrio determinado no sentido de evidenciar que N. era adltera, inobstante o concubinato que no exclui o dever de fidelidade recproca. (...) Embora hodiernamente se possa reconhecer a atitude de quem mata ou fere a esposa ou companheira que trai, como um preconceito arcaico, in casu, a honra do apelado foi maculada pela declarao da amsia, com quem vivia a longos anos, de que o traa com outro homem, no se podendo olvidar que, apesar da ilicitude da unio, o casal possui quatro filhos. TRIBUNAL DE JUSTIA DO ACRE

    Recurso de ofcio n. 01.001650-3, Rio Branco, 01.03.2002. Resumo: o ru foi absolvido sumariamente da acusao de tentativa de homicdio praticada contra o amante de sua companheira porque teria desferido um golpe de faca na vtima quando o encontrou, em seu quarto, logo aps ter cometido adultrio com sua companheira, circunstncia que levou o juiz togado, ainda na primeira fase do procedimento do Tribunal do Jri, a absolv-lo sumariamente, pois amparado pela legtima defesa da honra. importante dizer que no houve recurso do Ministrio Pblico, sendo que o caso apenas foi analisado pelo Tribunal porque exige o art. 411, in fine, do Cdigo de Processo Penal o reexame da deciso que absolve sumariamente o acusado na primeira fase do procedimento do Jri.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    99

    Motivao da deciso: o juiz togado da primeira fase do procedimento do Tribunal do Jri no teve dvidas em aceitar a tese da legtima defesa da honra, assim fundamentando sua deciso: verifica-se que o acusado, chegando em sua residncia, encontrou sua companheira com a vtima em seu quarto, demonstrando cabalmente o adultrio, o que naturalmente incitou no increpado um sentimento de ferida em seu interior, o que o fez reagir para a proteo de sua integridade moral, de sua famlia e de seu casamento, configurando desta forma a excludente criminal de legtima defesa. (g.n.) O Tribunal de Justia, respondendo remessa de ofcio, POR UNANIMIDADE, manteve a absolvio sumria, entendendo presentes os pressupostos do artigo 25 do Cdigo Penal, que tipifica a legtima defesa como excludente de ilicitude. Descreve-se o principal fundamento da deciso: tendo em vista que o acusado usou moderadamente do meio empregado, ferindo o amante de sua companheira com apenas um golpe de faca, no vejo motivo suficiente para que seja condenado por tentativa de homicdio. O acrdo, ainda, traz colao deciso do TACRIM/SP, na qual se assenta: muito fcil alegar-se que a honra ultrajada ser a do cnjuge infiel e que a conduta deste no fere a honra do outro cnjuge. Mas tal questo fica assim colocada nos livros, longe da realidade, sabido que, especialmente entre ns, latinos, no esse o conceito popular: a honra ultrajada a do cnjuge no culpado.

    Consideraes crticas

    Nesses casos, houve acolhimento da tese da legtima defesa da honra por Tribunais dos Estados de So Paulo e do Acre.

    Um dos acrdos paulistas refere-se ao crime de leso corporal e, na primeira e segunda instncia, entendeu-se que o fato do ru ter dado alguns socos na mulher representou moderada repulsa, explicvel pela violenta emoo do acusado.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    100

    J o outro caso, trata de homicdio da mulher e, na deciso do Tribunal de Justia, que confirmou a do Tribunal do Jri, no aparece referncia ao artigo 25 do Cdigo Penal que apresenta a moderao da resposta agresso como um dos requisitos da legtima defesa. O homicdio por parte do marido trado visto como a nica forma deste ter evitado que sua honra ficasse indelevelmente comprometida.

    A argumentao da deciso preocupante, pois significa mais do que uma justificativa da ao homicida. Significa mesmo uma louvao a ela, pois considera seu agente um verdadeiro instrumento da prpria sociedade; ressalta no s o aspecto repressivo, mas o preventivo da legtima defesa da honra.

    Em termos filosficos jurdicos, esta deciso, contrria lei, apresenta referncias ao culturalismo jurdico e ao direito natural.

    Em pas como o Brasil alis, em toda a Amrica Latina que apresenta uma tradio jurdica marcada pelo positivismo formalista de Hans Kelsen, este aparente esforo de humanizao extremamente insidioso. In casu, serve para justificar e louvar o ato que tira a vida de mulheres. Importa registrar que as teorias crticas ao positivismo jurdico formalista s propem um alargamento/expanso interpretativa da lei e, por vezes, mesmo uma deciso contrria a ela, nos casos em que, se aplicada, exegeticamente, vier a propiciar decises injustas e absurdas.

    Importa esclarecer que as vrias correntes do pensamento jurdico deste sculo, incluindo o positivismo em suas vrias manifestaes, representam esforos no sentido de melhor resguardar os direitos das pessoas. Mesmo que, por vezes, isto se d de forma explcita ou implcita. A grande crtica ao positivismo formalista que ele insuficiente para tal. Assim sendo, transcender-se o direito positivo, captando-se valores sociais e culturais no constitudos pelo ordenamento jurdico,

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    101

    seria apenas legtimo nos casos em que estes valores servissem para melhor e maior garantia dos direitos das pessoas.

    Fica evidente que a desvalorizao da mulher, de sua vida, que est subjacente a decises dessa ordem.

    Princpios e normas de proteo aos direitos humanos estabelecidos pela ONU e pela OEA, em vrios de seus documentos, servem de embasamento firme rejeio de posturas como a desta deciso.

    Este acrdo fere, dentre outros, o artigo III da Declarao Universal dos Direitos Humanos que estabelece que toda pessoa tem direito vida, liberdade e segurana pessoal; o artigo V, letra a da Conveno da Mulher36 que estabelece que

    os Estados-Parte tomaro todas as medidas apropriadas para modificar os padres socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcanar a eliminao de preconceitos e prticas consuetudinrias e de qualquer outra ndole que estejam baseados na idia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funes estereotipadas de homens e mulheres.

    Fere, ainda, o artigo I da Conveno de Belm do Par37 que preceitua:

    Para o efeitos desta Conveno deve-se entender por violncia contra a mulher qualquer ao ou conduta baseada no gnero, que cause a morte, dano ou sofrimento fsico, sexual ou psicolgico mulher, tanto no mbito pblico como no privado.

    36 Conveno sobre a Eliminao de todas as formas de Discriminao contra a Mulher, aprovada pela Organizao das Naes Unidas (ONU) em 1979 e ratificada pelo Brasil em 01 de fevereiro de 1984. 37 Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    102

    No marco nacional, fere a Constituio brasileira, em seu artigo 5, caput, a qual estabelece que todos so iguais perante a lei, garantindo-se o direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, e, em seu inciso I, segundo o qual homens e mulheres so iguais em direitos e obrigaes. Fere, tambm, o artigo 25 do Cdigo Penal brasileiro que tipifica a legtima defesa da honra.

    O voto vencido apresenta firme argumentao que, entretanto, foi relegada pela maioria do colegiado do Tribunal que preferiu privilegiar preconceitos em detrimento do bem supremo da vida.

    O caso julgado em Rio Branco-AC chama a ateno pela inrcia do Ministrio Pblico diante da postura do juiz togado que sequer permitiu uma avaliao do caso pelos jurados populares, absolvendo sumariamente o denunciado j na primeira fase do procedimento do Jri sob a alegao da tese de legtima defesa da honra. A unanimidade da deciso no Tribunal de Justia tambm surpreende, principalmente considerando que se trata de acrdo de 2002.

    II. No acolhimento da tese de legtima defesa da honra ultrajada por conduta sexual de parceiro com terceiro por falta de requisitos formais do artigo 25 do Cdigo Penal:

    SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA STJ

    Recurso Especial n. 203632/MS (1999/0011536-8), DJ 19.12.2002, p. 454. Resumo: o Tribunal de Justia do Mato Grosso do Sul manteve a deciso do Tribunal do Jri que absolveu o marido da acusao de homicdio de sua mulher, de quem estava separado de fato h mais de 30 dias, motivado pela tentativa frustrada de reconciliao. Assim dispunha a ementa do acrdo recorrido: se a verso do ru encontra-se amparada, mesmo que razoavelmente, nas provas, onde testemunhas afirmam que a vtima tinha

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    103

    comportamento desregrado e em desacordo com a vida de casada, h que se dar crdito motivao da prtica do delito aludida pelo agente, mantendo-se a absolvio (2 Turma Criminal Apelao Criminal n. 1000.057290-7, DJ 16.04.1998). Entendeu o Tribunal de Justia que a separao de fato no desnatura a excludente da legtima defesa da honra, enfatizando que a vtima no tinha comportamento recatado. Motivao da deciso: o Superior Tribunal de Justia, em votao no unnime, vencido o relator que no conheceu do recurso pela necessidade de re-anlise ftica reformou a deciso, por afronta ao art. 25 do Cdigo Penal brasileiro, pois ausente, no caso concreto, o requisito de atualidade da agresso, necessrio configurao da legtima defesa. Acentuou o Min. Fernando Gonalves: patente, ento, representar o acrdo em debate violao letra do art. 25 do Cdigo Penal, no ponto em que empresta referendo tese da legtima defesa da honra, sem embargo de se encontrar o casal separado h mais de trinta dias, com atropelo do requisito relativo atualidade da agresso por parte da vtima. Entende-se em legtima defesa, reza a lei, quem, usando moderadamente dos meios necessrios, repele injusta agresso, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Ora, na espcie, sem adentrar ao contexto probatrio, o fato da separao atribui ao caso mais o carter de revide do que de defesa. (g.n.) J o voto do Min. Paulo Gallotti foi mais enftico, refutando de modo absoluto a tese da legtima defesa da honra. Declarou ser este um julgamento histrico, em que o Superior Tribunal de Justia est afirmando que a tese da legtima defesa da honra, pelo menos no mbito da Sexta Turma, no aceita. Acrescenta que este tipo de fundamento absolvio de criminosos deve ser banido do sistema jurdico-penal da seguinte forma: No podemos afirmar que no possa o Tribunal do Jri vir a reconhecer a tese da legtima defesa da honra, mas talvez o magistrado venha a se recusar a elaborar o quesito respectivo (referindo-se ao quesito O ru, assim

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    104

    agindo, repeliu agresso a sua honra?), com a devida justificativa, o que temos entendido ser possvel. TRIBUNAL DE JUSTIA DE SANTA CATARINA

    Recurso em sentido estrito n. 97.006669-4, 23.09.1997. Resumo: marido que, suspeitando da traio da esposa, causa a sua morte com um tiro pelas costas. Pronunciado por homicdio doloso, o ru interps recurso objetivando a sua impronncia ou alternativamente a desclassificao para homicdio culposo e, por fim, a absolvio sumria diante do fato de ter agido em legtima defesa de sua honra, sempre argumentando que agiu mediante violenta emoo. O Tribunal no acolheu a tese da defesa, determinando a pronncia do ru e, por conseguinte, a sua submisso ao julgamento pelo Tribunal do Jri. Motivao da deciso: Controvertida a possibilidade da legtima defesa da honra, inegavelmente, o sentido da dignidade pessoal, a boa fama, a honra, enfim, so direitos que podem ser defendidos, mas a repulsa do agredido h de ater-se sempre aos limites impostos pelo art. 25. TRIBUNAL DE JUSTIA DE SO PAULO

    Apelao Criminal n. 297.909-3/2-00, Caconde, 01.09.2003. Resumo: o recorrente foi condenado pela prtica de homicdio contra a sua ex-mulher e apelou da deciso alegando ter agido em legtima defesa da honra. Motivao da deciso: manteve o Tribunal a condenao com base no seguinte argumento: a alegao de legtima defesa da honra foi bem repelida pelos jurados, porque possvel infidelidade conjugal da ofendida, que teria motivado a ao homicida, no ficou seriamente comprovada nos autos, acrescentando que o casal se encontrava separado judicialmente.

    Apelao Criminal n. 279.800-3/3-00, Suzano, 20.03.2002. Resumo: o ru foi absolvido do homicdio praticado contra sua esposa, tendo reconhecido o jri popular a excludente de

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    105

    legtima defesa da honra porque o mesmo tomara conhecimento de um relacionamento extraconjugal mantido pela vtima. Motivao da deciso: o Tribunal anulou o julgamento por manifesta contrariedade prova dos autos, acatando as seguintes alegaes do promotor de justia: tendo em vista que o apelado aguardou um momento muito posterior ao que ele confirmou que estava sendo trado, premeditando o crime (tanto que no dia dos fatos levou sua filha para a casa dos seus pais e comprou gasolina usada posteriormente para queimar o corpo), para surpreender a vtima desarmada, amarr-la e atear-lhe fogo, inequvoca a vontade de matar e impossvel a alegada legtima defesa da honra, posto que no esto presentes nenhum dos requisitos legais.

    Apelao Criminal n. 279.749-3/0, Assis, 19.12.2001. Resumo: o ru foi condenado pela prtica de leses corporais de natureza grave em sua ex-companheira, mediante golpes de faco, alegando em seu recurso ter agido em legtima defesa da honra e sob violenta emoo. Motivao da deciso: o Tribunal manteve a condenao, fundamentando sua deciso notadamente no fato do casal encontrar-se separado h 3 (trs) meses do ocorrido: Ora, a par de questionvel a invocao da fidelidade como direito do convivente trado a ttulo de excludente da antijuridicidade, cedio que s existe legtima defesa contra a agresso atual ou iminente, nunca contra agresso passada ou consumada. Sendo assim, falece razo ao recorrente, pois, separado da ofendida, aguardou-a covardemente e golpeou-a de inopino...

    Apelao Criminal n. 269.617-3/0, So Jos do Rio Preto, 31.05.2001. Resumo: o ru foi condenado pela prtica de homicdio qualificado contra sua esposa, mediante golpes de faca, alegando em seu recurso ter agido em legtima defesa da honra.

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    106

    Motivao da deciso: o Tribunal manteve a condenao, fundamentando sua deciso principalmente na ausncia, no caso concreto, do requisito da atualidade da agresso para a configurao da legtima defesa. Assim dispe o voto vencedor do relator: Ainda que se admita a sua verso de que a vtima o trasse com outros homens, a excludente invocada no teria aplicao no caso presente. Em primeiro lugar porque, como afirmou o prprio apelante em seus vrios interrogatrios, tinha ele conhecimento de tal situao (das traies da vtima) h vrios anos e com ela concordava, tanto que continuou a coabitar com a ofendida e sempre perdoou-a. Em segundo ligar porque, quando do homicdio, a vtima no estava praticando adultrio e, assim, eventual agresso anterior honra do apelante pecaria por falta do elemento atualidade.

    Apelao Criminal n. 263.415-3/4, Juqui, 27.05.2000. Resumo: o ru foi absolvido da acusao de homicdio do suposto amante de sua companheira, utilizando-se de um espeto, tendo o jri reconhecido a excludente da legtima defesa da honra porque o mesmo surpreendeu a vtima, dentro de sua prpria casa, em trajes menores. Motivao da deciso: o Tribunal anulou o julgamento por manifesta contrariedade prova dos autos porque o prprio ru deixou claro, em seu interrogatrio, que desconhecia o envolvimento da vtima com sua companheira, justificando a sua ao pelas agresses fsicas que teria sofrido por parte do ofendido. Assim, entenderam os Desembargadores que a vontade do ru no era a de defender a sua honra ou a da mulher.

    Apelao Criminal n. 250.140-3/9, Batatais, 13.10.1999. Resumo: o ru foi condenado pela prtica de leso corporal de natureza grave contra o namorado de sua ex-mulher e recorreu alegando ter agido em legtima defesa de sua honra.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    107

    Motivao da deciso: o Tribunal manteve a condenao, sendo que a fundamentao do acrdo pauta-se na anterior e j consumada separao do casal, de modo que esta rompe com o dever recproco de fidelidade, no se caracterizando como legtima, portanto, a agresso fsica perpetrada pelo ru.

    Apelao Criminal n. 75.026-3, 02.05.1990. Resumo: acusado do homicdio de sua esposa adltera foi absolvido pelo Tribunal do Jri que reconheceu a legtima defesa da honra. Entretanto, o Tribunal de Justia de So Paulo, embora reconhecendo ser esta excludente admissvel em tese, no admitiu a sua aplicao no caso em questo, pois ausente o requisito da atualidade da agresso. Motivao da deciso: No se pode repelir, preconceituosamente, a possibilidade da legtima defesa da honra em casos do tipo sub-judice. H opinies divergentes na jurisprudncia sobre o tema... No h negar que julgados dos tribunais tm admitido a legtima defesa quando o cnjuge ultrajado mata o outro cnjuge ou o seu parceiro. Mas, via de regra, nessas decises h uma constante: a flagrncia do adultrio... Ora, na hiptese a repulsa no foi imediata. TRIBUNAL DE JUSTIA DO RIO DE JANEIRO

    Apelao Criminal n. 2002.050.02092, 19.11.2002. Resumo: o foi absolvido pelo jri popular da acusao de ter matado sua esposa em legtima defesa da honra, sendo a deciso cassada pelo Tribunal por manifestamente contrria prova dos autos. Motivao da deciso: o acusado confessa que matou a vtima, sua esposa, no seio de uma discusso, em que fora ofendido verbalmente, agindo, portanto, em legtima defesa da honra. O Tribunal de Justia reconheceu como motivo do crime, pela narrativa de testemunhas presenciais, o fato da vtima ter insistido na separao judicial do casal, sendo que o acrdo afasta a legtima defesa da honra por ausncia de requisitos do

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    108

    art. 25 do CP, j que no estava o ru repelindo injusta agresso a sua pessoa ou tampouco usou moderadamente dos meios necessrios.

    Apelao Criminal n. 2001.050.02707, 26.02.2002. Resumo: condenado pela prtica de homicdio qualificado contra o namorado de sua companheira, pretendeu o apelante o reconhecimento da legtima defesa da honra ou do homicdio privilegiado. Negou o Tribunal provimento ao recurso. Motivao da deciso: o acrdo fundamenta-se essencialmente no fato do apelante e sua companheira j estarem separados quando aquele descobriu o relacionamento entre ela e a vtima.

    TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESPRITO SANTO

    Apelao Criminal n. 11.266, 02.03.1988. Resumo: ex-concubino comete homicdio sob a alegao de ter perdido a cabea com a vtima por ela ter insistido em dizer que iria dormir com outrem. O Tribunal do Jri acatou a tese da legtima defesa da honra. O Tribunal de Justia do Esprito Santo no reconheceu esta excludente no caso, ordenando novo julgamento. Motivao da deciso: manifestamente contrria prova dos autos a deciso do jri que reconhece legtima defesa da honra, ensejando a desclassificao para o excesso culposo, se o ru j no mais mantinha o concubinato com a vtima e barbaramente a esfaqueou sob a alegao de ter perdido a cabea... TRIBUNAL DE JUSTIA DO MATO GROSSO DO SUL

    Apelao Criminal n. 38.420-3, 17.08.1994. Resumo: o ru cometeu homicdio contra o suposto amante de sua esposa em razo de meros boatos ou suspeita de adultrio. O Tribunal do Jri acolheu a tese de legtima defesa da honra e o Tribunal de Justia do Mato Grosso do Sul, descaracterizando-a, determina que o ru seja submetido a novo jri.

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    109

    Motivao da deciso: A defesa postulou perante o plenrio do Tribunal do Jri a tese da legtima defesa da honra, uma vez que a vtima vinha espalhando em toda cidade de Trs Lagoas, que o acusado era um corno, porque ele vtima vinha mantendo relacionamento amoroso com a ex-esposa do apelado. ...tese manifestamente alheia realidade processual, porque a situao ftica a de que Na poca dos fatos o ru estava separado da mulher, embora o tivesse negado, mas afirma que perdera a confiana nela depois dos comentrios a respeito de sua infidelidade consistente em um caso amoroso que teria tido com a vtima. TRIBUNAL DE JUSTIA DE RONDNIA

    Apelao Criminal n. 99.002591-8, Porto Velho, 16.03.2000. Resumo: o ru foi condenado pela prtica de homicdio qualificado pela torpeza por ter desferido golpes de faca contra sua convivente. Pretendeu a reverso da deciso, utilizando-se, no recurso de apelao, da alegao de ter agido em legtima defesa da honra, pois a vtima, com seus procedimentos anti-sociais, violou uma unio estvel, sendo surpreendida com o amante aos abraos e beijos. Motivao da deciso: o Tribunal no acolheu a tese da legtima defesa da honra principalmente por falta do requisito de reao imediata. Assim: ele, o apelante, ainda que estivesse convivendo com a vtima, no seria alcanado pelas teses, porque, aps ver a vtima abraando Dino, mesmo estando armado, deixou o local, l retornando pouco depois com o objetivo de elimin-la. Agiu movido pela vingana, que , sem dvida, motivo torpe. TRIBUNAL DE JUSTIA DA PARABA

    Apelao Criminal n. 2001.003790-7, Campina Grande, 2001. Resumo: o ru foi absolvido da acusao de homicdio cometido contra sua ex-companheira sob o acolhimento, pelo jri, da excludente de legtima defesa da honra. Motivao da deciso: o Tribunal apenas negou aplicao suposta excludente levantada, anulando a deciso porque o

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    110

    casal j se encontrava separado quando da ao homicida, no subsistindo, portanto, o dever de fidelidade. Assim dispe a ementa do acrdo: No pode alegar legtima defesa da honra o acusado que perpetra violncia contra sua ex-companheira, ainda mais se esto separados, no existindo entre ambos qualquer compromisso de fidelidade.

    Consideraes crticas

    Estes acrdos demonstram uma grande relutncia por parte dos Tribunais de Justia de todas as regies do Brasil em afastar por completo a aplicao da tese de legtima defesa da honra.

    As decises anulam a absolvio nos casos concretos, mas no afirmam a ilegalidade da tese em abstrato. Preferem invocar o no preenchimento dos requisitos legais para a configurao da legtima defesa, sendo estes a atualidade da repulsa injusta agresso e a moderao dos meios utilizados.

    III. Rejeio absoluta da tese de legtima defesa da honra, com voto vencido em sentido contrrio:

    SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIA

    Recurso Especial 1.517, 11.03.1991. Resumo: em duplo homicdio praticado pelo marido que surpreende sua esposa em flagrante adultrio, o Tribunal do Jri absolveu o ru, acatando a legtima defesa da honra. O Tribunal de Justia do Paran confirmou a deciso do jri de Apucarana, mas a Procuradoria Geral de Justia interps recurso especial e o Superior Tribunal de Justia rejeita a tese da legtima defesa da honra por manifestamente contrria prova dos autos, de modo a submeter o ru a novo julgamento. (Informao quanto ao desfecho posterior deste caso: Em

  • Silvia Pimentel, Valria Pandjiarjian & Juliana Belloque

    111

    segundo julgamento pelo Tribunal do Jri, foi o ru novamente absolvido pelo acolhimento da legtima defesa da honra). Motivao da deciso: ...a figura da legtima defesa, tipificada no art. 25, do Cdigo Penal, apresenta regras inflexveis e s se efetiva, quando o fato concreto revela a ao do agente que usando moderadamente os meios necessrios, repele injusta agresso, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Ora, a hiptese dos autos jamais comportaria reao de quem, supondo ofendido em sua honra, deixa de recorrer aos atos civis da separao e do divrcio, preferindo abater a mulher, ou o comparsa, ou a ambos, procedendo de modo absolutamente reprovvel, desde que foi ela que, ao adulterar, no preservou a sua prpria honra.(...) Ora, no Brasil no fazemos uso do direito costumeiro, a pretender justificar a ao do marido na hiptese dos autos, to s, porque assim entendem os jurados simples pessoas do povo. O direito positivo, ao dispor sobre o instituto da legtima defesa, delimitou as hipteses de seu emprego no sendo elstico ao ponto de se prestar para cobrir qualquer ao delituosa. (...) Entre os autores estrangeiros, vale citar o eminente Jimenez de Asa...no existe esse honor conyugal. El honor s personal; el honor s prprio. El hombre que as reacciona, o que sigue esa norma y muchos han matado a la mujer porque no habia ms remedio para conservar un falso credito -, han realizado el acto acaso en un momento de transtorno mental transitorio, motivados por celos agudissimos; pero no s possible hablar aqui de defensa personal. Voto vencido: A norma jurdica h de ser interpretada culturalmente. verdade, h de obedecer coerncia do ponto de vista dogmtico, no possvel, porm, esquecer o aspecto valorativo que o tipo penal encerra... alguns autores e at decises jurisprudenciais entendem ser possvel a legtima defesa da honra quando o titular desta honra, no momento em que este valor est sendo afetado, reage a fim de fazer cessar a agresso. Data vnia, o casamento acarreta obrigaes recprocas. Uma delas, a fidelidade do ponto de vista conjugal... (...) Enquanto os juzes togados se vinculam mais ao aspecto formal, dogmtico da norma jurdica, os jurados, leigos no so necessrios

  • Legislao e jurisprudncia da Amrica Latina

    112

    especialistas em direito julgam de acordo com as normas da vida, com as normas culturais, com as exigncias histricas de um determinado instante. Os magistrados ajustam o homem lei. Os jurados adaptam a lei ao homem. (...) O aspecto cultural h de ser interpretado de acordo com o lugar do fato. Se ainda, neste local, se entende que a honra do marido maculada desta forma enseja ou autoriza reao violenta, extrema individualmente contrasta com meu pensamento entretanto esse o entendimento do jri. No podemos dizer que o Tribunal do Jri tenha errado. Podemos dizer que julgou mal. Ele est manifestando uma cultura brasileira.(...) O entendimento no Brasil polmico. Enquanto Vossa Excelncia [o relator] e tantos outros entendem que a interpretao deve ser meramente dogmtica, formal, h outros, e so os jurados, procuram fazer interpretao do ponto de vista da justia material. De acordo com o art. 25 essa reao moderada est at na exposio dos motivos de 1940. No matematicamente dosada, mas analisada de acordo com as caractersticas da ao e da reao. TRIBUNAL DE JUSTIA DO MATO GROSSO DO SUL

    Apelao Criminal n. 2001.000766-8/0000-00, Campo Grande, 08.05.2001. Resumo: o acusado foi absolvido da prtica de leses corporais contra sua esposa e homicdio contra seu amante, motivado pelo flagrante adultrio de ambas as vtimas. O Tribunal cassou a deciso manifestamente contrria prova dos autos, determinando a realizao de novo julgamento. Todavia, o voto vencido do relato