Lehmann - Religiao e Globalizaçao

Embed Size (px)

Citation preview

Religio e globalizao: uma perspectiva comparativa e histricaDavid Lehmann**

Resumo A religio e a globalizao interagem por meio da conquista e da colonizao, pela disseminao de idias e prticas atravs de fronteiras religiosas e culturais, e pela disseminao de tradies religiosas particulares, ou subtradies fora de suas localidades histricas ou ancestrais. Alm do mais, a modernidade traz, tanto o secularismo e com ele oportunidades infinitas de fragmentao da autoridade religiosa , quanto a justificao de pertenas religiosas baseadas mais na crena do que na tradio, levando proliferao de movimentos conduzidos pela converso que hoje tm adquirido uma influncia sem precedncia no campo religioso, e alm dele. A partir dessas premissas, o artigo desenvolve um referencial baseado no contraste entre a igreja oficial e a popular, e entre dois padres de globalizao, chamados, respectivamente, de cosmopolita e global. Depois analisa a postura defensiva na qual se encontra a religio institucionalizada e as estruturas da autoridade herdada face massiva migrao mundial e a disseminao epidmica do fundamentalismo e movimentos evanglicos no judasmo, cristianismo e islamismo. Palavras-chave: Globalizao, movimentos religiosos, fundamentalismo, movimentos evanglicos, judasmo, islamismo, cristianismo. Abstract Religion and globalization interact through conquest and colonization, through the spread of ideas and practices across religious and cultural frontiers, and through the spread of particular religious traditions and sub-traditions away from their historic, or ancestral, locations. In addition, modernity brings secularism and thus infinite opportunities for the fragmentation of religious authority and the justification of religious belonging by*A traduo do original Religion and Globalization: a comparative and historical perspective de autoria de Fernanda Guimares. Esse artigo foi traduzido do artigo Religion and Globalization de David Lehmann, publicado originalmente em Religions in the Modern World, 2 Edio, Woodhead et al., 2009, reproduzido com a gentil permisso de Taylor & Francis Books UK Ltd. * *David Lehmann socilogo e professor da Universidade de Cambridge na Inglaterra.

7

claims of belief, rather than heritage, leading to the proliferation of conversion-led movements which have today acquired an unprecedented influence in the religious field and beyond. Starting from these premises this paper develops a framework based on the contrast between official and popular religion, and between two patterns of globalization, called respectively the cosmopolitan and the global. It then tracks the defensive posture in which institutionalized religion and inherited authority structures find themselves in the face of mass worldwide migration and the epidemiological spread of fundamentalist and evangelical movements in Judaism, Christianity and Islam. Key words: Globalization, religious movements, fundamentalism, evangelical movements, Judaism, Islam, Christianity.

8

1. Autoridade, fronteiras e globalizao Quando falamos em modernidade, referimos-nos a muitas coisas, dentre as quais a secularizao e o uso de critrios racionais e impessoais para decidir, alocar, julgar e avaliar. Um dos sinnimos de secularizao a aplicao desses critrios ao campo religioso: dizse que a cultura moderna no necessariamente estimula a descrena, mas estimula a crena racional, ou seja, uma crena baseada em doutrina, em princpios, em textos. Esta uma maneira de retratar a secularizao. No entanto, para a maioria das pessoas, a religio no um conjunto de crenas ao qual chegam por meio da reflexo a partir de princpios bsicos: um sistema simblico que confere identidade e delineia fronteiras sociais e tnicas, entre outras, e cujos rituais marcam momentos cruciais no ciclo da vida, alm de prover mecanismos emocionais e metassociais para a resoluo de tenses psicolgicas e sociais que ocorrem no dia a dia. Vemos nas instituies da Igreja Anglicana um exemplo de religio que toma emprestada a racionalidade da cultura democrtica moderna, no porque sua doutrina seja necessariamente racional, mas por conta de seus procedimentos impessoais: burocracia, um snodo eleito, separao entre as finanas e a funo religiosa e, mesmo at certo ponto , oportunidades iguais para membros de ambos os sexos. Como instituio ela se encaixa bem em um Estado secular, mas, nesta sociedade secular, a igreja institucionalizada nominalmente dominante, como outras na Europa, no possui um monoplio da vida ritual da sociedade. Onde h religio institucionalizada, geralmente h uma corrente subterrnea, ou uma contracorrente de religio popular, que se encarrega do sagrado fora da cultura impessoal esboada acima. Nessas contracorrentes, a autoridade incorporada em pessoas a quem so atribudos poderes especiais: eles no so clrigos anglicanos, ou os padres catlicos; so lderes carismticos que surgem como que do nada e exercem as prerrogativas de seu ofcio no pelo reconhecimento (e pagamento) da Igreja, mas na medida em que eles mantm adeptos. Sua autoridade uma autoridade incorporada. Esta uma manifestao, dentre muitas, da profunda tenso entre o institucional, ou erudito, e o popular na vida religiosa do Ocidente e das antigas colnias da Europa. Outra verso de religio popular, mas sem liderana carismtica, observada na devoo a santos, ou santurios aos quais so atribudos poderes sobrenaturais, especialmente os poderes de cura e de afastar o infortnio. De maneira geral, tais devoes no contestam a autoridade institucional, que as v com indiferena benevolente, salvo em casos de cooptao de grande visibilidade, como o Santurio de Lourdes e outros locais de turismo ou peregrinao religiosa. Em uma era de colonialismo e globalizao, estas questes de autoridade podem ser vistas sob uma luz distintiva. Se aceitarmos que os ciclos rituais de festivais e festas e a representao simblica de foras de sade e doena, boa fortuna e infortnio, so marcadores de identidade e diferena separando povos, grupos tnicos e coletividades primrias de diferentes tipos, e tambm se aceitamos que rituais e smbolos so a manifestao exterior da autoridade pessoalizada, diferente da impessoal, ento podemos comear a perceber9

por que que conquista e colonialismo estiveram quase invariavelmente associados com expanso e conflito religioso. Para estabelecer dominao preciso pessoalizar o poder, e faz-lo de forma que seja compreensvel para o povo subjugado. J que os conquistadores no tm nenhuma base legal-racional para legitimar seu poder sobre os conquistados, mtodos religiosos/simblicos que conferem autoridade s suas pessoas (independentemente de um conjunto de princpios), so um recurso til para sua imposio. O que dizer, ento, da forma contempornea de conquista e colonizao, multidimensional e caleidoscpica, que a globalizao? Diferente dos imprios do passado, temos, aqui, um modelo em que todos os tipos de fronteiras (polticas, econmicas, culturais, religiosas) esto aparentemente rompidas, e at mesmo reduzidas a nada, na criao de uma rede inconstil de relaes de mercado e das instituies legais e humanitrias da democracia capitalista, com regras globais de governana. Em um mundo globalizado de capitalismo democrtico, espera-se que toda autoridade seja racional e impessoal, que todos os agentes econmicos sejam autmatos otimizadores e que a religio seja uma questo de escolha pessoal individual, experimentada em um cenrio institucional governado pelos mesmos princpios democrticos que o prprio Estado. O ponto de partida deste artigo que esse quadro do lugar (ou no-lugar) da religio pblica na globalizao enganoso. A razo pela qual ele enganoso no que o avano dessa cultura secularizada impessoal esteja simplesmente avanando com vagar, ou que ele esteja penetrando em algumas partes do mundo mais lentamente do que em outras, ou mesmo que suas ameaas aos modos de vida tradicionais produzam um retorno ao fundamentalismo, irredentismo e lealdades universais desse gnero. Esse quadro enganoso porque a vida de ritual e simbolismo, que reside no corao da religio popular, est redesenhando fronteiras a todo momento; porque incontveis formas populares de religio so, elas mesmas, globalizadoras ativas, abrindo ou violando fronteiras culturais, tnicas e nacionais, e tambm assim redefinindo novas fronteiras, porque comunidades rituais ou religiosas no podem existir sem demarcar fronteiras. A globalizao no de modo algum, portanto, um processo que molda todas as culturas encerradas em sua dinmica de forma a integrar um todo nico e homogneo. De fato, igualmente plausvel afirmar o contrrio: a globalizao pode desenfardar complexos culturais locais, mas nesse processo ela cria identidades locais multifacetadas e fronteiras que se entrecruzam, de modo que a diversidade vem dominar mais do que nunca os espaos locais, mesmo que semelhanas e vnculos tambm se tornem mais evidentes por entre distncias sociais e espaciais. Para ilustrar com um exemplo no campo religioso: embora milhes de africanos tenham sido dominados por missionrios ingleses, escoseses e americanos nos sculos XIX e XX, isso no significa que tenham trocado um pacote religioso por outro: pelo contrrio, os prprios pacotes foram remodelados, e no apenas na frica (Maxwell, 2006). por isso que o cristianismo africano, reexportado metrpole colonial pelos migrantes ps-coloniais, to diferente de qualquer instituio religiosa britnica como testemunham as inmeras igrejas pentecostais do Caribe, as igrejas Ala10

dura nigerianas, ou sucursais das Assemblias de Deus africanas do Zimbbue e igrejas pentecostais ganesas na Gr-Bretanha e alhures (Haar, 1998; Hunt e Lightly, 2001). A religio atravessa fronteiras, e nesse processo constri rapidamente outras novas, porque religies antigas e modernas, monotestas, politestas e totmicas, com seus aparatos de prticas rituais, cdigos internos e de propriedade, so demarcadores, marcos. Quando a religio cruza fronteiras, ou rompe barreiras, mesmo quando o faz da maneira mais violenta, o resultado no pode ser a abolio de um conjunto de crenas e prticas para dar lugar a outro, assim como tentativas de promover um Deus universal abrangendo todas as religies nunca progridem, no obstante o quo tolerante e inclusiva possa ser sua viso. Lado a lado com a violncia e a espoliao econmica, com a escravido e o trabalho servil e a subjugao poltica, a colonizao europeia foi, tambm, uma aventura em termos de manipulao de mentalidades e culturas. Sistemas polticos foram dizimados e, em seguida, moldados com elaborados mecanismos internos e externos de criao e manuteno de fronteiras. Logo, para que a frase religio como globalizadora tenha qualquer fora analtica, ela deve ser sustentada por um conceito de conquista e encontro religioso que envolve mais do que os massacres e a destruio de templos e dolos, e por um conceito de globalizao enraizado na experincia contempornea que, como esboado acima, evoca no a homogeneizao, mas, antes, o redesenho e a multiplicao de fronteiras sociais. Quando os primeiros conquistadores espanhis chegaram s Amricas, eles mal podiam imaginar que os seres que encontraram eram humanos (Abulafia, 2008:86). um trao caracterstico do mundo moderno do mundo que aqueles mesmos conquistadores geraram que esses rearranjos e reinvenes sejam historicizados, o que significa dizer que as pessoas envolvidas, vtimas e perpetradores do colonialismo em suas formas variadas, so conscientes de que eles mesmos tm um lugar na (origem da) histria e um lugar no espao (razes), tanto quanto os povos com quem eles formam alianas ou entram em confrontos, e essa localizao em tempo e espao que contribui para a constituio da identidade em termos sociolgicos. De forma semelhante, no processo de tomar de emprstimo, impor e apropriar-se de rituais, tabus, procedimentos de cura e msica, por meio do encontro e da conquista religiosa, uma teoria transmitida. A transmisso do aparato da religio acompanhada por uma disputa de vontades para apropriar-se de e mesmo domesticar os poderes e virtudes advindos do invasor e do conquistado, o outro, e isso requer uma teoria, um conjunto de idias fundadoras interrelacionadas, sobre quem so os outros, suas origens e suas razes, de onde vieram e de onde vm seus poderes ou sua singularidade e, dessa maneira, ao adquirir este conceito de histria, de origens terrenas e de causalidade social, as vtimas da necessidade se unem modernidade. 2. Consideraes preliminares A abordagem da interao ritual da religio com a globalizao comea por um entendimento sobre como o exerccio da autoridade varia em contextos religiosos e por uma firme apropriao da dialtica, na vida religiosa, entre o erudito, ou institucional, e o po11

pular. O terceiro elemento distintivo nesta abordagem a viso da religio como, entre muitas outras coisas, um meio de manter fronteiras. Estes elementos interagem de acordo com o nexo religio-globalizao: a coexistncia complementar do secularismo com igrejas institucionais dominantes na Europa e na Amrica Latina abalada por movimentos carismticos e pela migrao; fontes de autoridade herdadas pela religio perdem espao para a intruso do Estado (na educao e no cuidado com a sade, por exemplo); a religio popular se torna global; e a religio, tal como a etnia, cria novos limites em ritmo acelerado, rompendo antigas fronteiras de nao, cultura, idioma e da prpria religio por meio da migrao, da comunicao, das campanhas de converso e do comprometimento poltico. Minha abordagem difere daquela de Robertson, por exemplo talvez o mais destacado e, certamente, o primeiro estudioso destes assuntos , porque ela analisa a globalizao em sua base popular, em vez de deduzir o nus social de caracterizaes abrangentes da sociedade ou das sociedades como um todo. Seu trabalho (Robertson, 1992), e o de Peter Beyer (1994) - que tem seguido as pegadas tericas de Robertson -, podem ser pensados como o primeiro estgio na evoluo de nossa compreenso acerca da interao da globalizao com a religio. So baseados em suposies advindas da tradio sociolgica clssica: - O entendimento de que a globalizao uma extenso, atravs das fronteiras nacionais, do processo de modernizao aplicado a quase todas as sociedades pela corrente dominante da Sociologia desde a Segunda Guerra Mundial; - O uso de sociedades como unidades bsicas de anlise, cujas fronteiras coincidem com aquelas dos Estados-nao; - A suposio de que revivals religiosos so uma expresso de identidades tradicionais e uma reao contra a modernidade, e que tal concepo de tradio apenas pode existir em meio cultura e autocompreenso de uma sociedade moderna. Esta linha de anlise marca o comeo de um distanciamento de suposies estticas sobre modernidade e tradio e o carter unificado da cultura e da sociedade modernas, sendo a primeira aventura desbravadora rumo a um estudo sociolgico da religio menos provinciano. Mas no h qualquer registro dos tipos de ambiguidade e mecanismos de dominao e resistncia que podem ser vistos por meio da dialtica da religio popular e erudita, nem das mudanas, ora devastadoras, ora altamente criativas, que a coliso e as assimilaes mtuas entre prticas religiosas e rituais escreveram no decorrer da longa histria do colonialismo e suas sequelas ps-coloniais. O carter mltiplo dessas foras mais visvel no prximo estgio da interpretao da interao da religio com a globalizao, decorrente do florescimento da etno-histria, notadamente no trabalho dos Comaroff na frica (Comaroff e Comaroff, 1991), baseado, tanto na etnografia contempornea, como na documentao historiogrfica, com12

estudos do pentecostalismo na frica, especialmente por Maxwell (2006), e, na Amrica Latina, por David Martin (1990), ambos tendo-a situado firmemente no contexto de sua disseminao internacional, e enfatizando sua modernidade. Subsequentemente, a proeminncia do isl poltico no cenrio mundial inspirou modelos diferentes, destacando-se o de Olivier Roy (2004), que inverte o contraste modernidade-tradio ao insistir na modernidade do fundamentalismo islmico, ou ao menos em sua variante como isl poltico, apesar da sua utopia proclamada de restaurao da umma em todo o mundo. Por isso o socilogo S. N. Eisenstadt (2002) fala em modernidades mltiplas. 3. O conceito de religio popular e o movimento cosmopolita de globalizao cultural A institucionalizao da religio demarca uma fronteira entre prticas oficiais e populares, como, por exemplo, entre os procedimentos regulados em uma missa catlica ou uma liturgia anglicana comandada por um padre qualificado e certificado e os rituais e festividades menos, ou no regulados. Estes ltimos so igualmente simblicos e liminares (ou seja, reforadores de limites), incluindo as festividades no dia de um santo local, em locais de peregrinao, ou na poca do Natal. O catolicismo distinguido, entre as religies contemporneas altamente institucionalizadas, pela proliferao de formas populares de celebrao e adorao, especialmente na Itlia, na Pennsula Ibrica e na Amrica Latina. visvel, pelo menos para o observador ocasional, que a religio inglesa (no a irlandesa!), seja ela catlica ou anglicana, tem sido, de certa forma, empobrecida a este respeito, embora isso possa estar mudando com o crescimento das formas evanglicas e carismticas, do New Age e de formas pags. Ainda assim, mesmo na Inglaterra, a verso popular, a verso no regulada pela hierarquia da Igreja, est presente, ainda que embutida na vida comercial, como no ritual de troca no Natal que, como ocasio anual de famlia, retm ao menos um vestgio do carter de ritual religioso. No isl, especialmente no Oriente Mdio, ritmos institutionais religiosos centrados em mesquitas e seu corpo de funcionrios existem em tenso com uma infinidade de curandeiros, videntes e msticos (ou sufis), e, no Norte da frica, classicamente, o isl do interior, centrado no culto aos santos, coexiste com o isl das cidades, mais apoiado em textos e profissionalizado (Gellner, 1981). No Sul da sia, no sculo XX, uma divergncia mais poltica se desenvolveu entre os deobandi doutrinrios e seus rivais menos rigorosos barelvi, na ndia, bem como entre os muulmanos do Sul da sia radicados na Europa. A desestabilizao, que no cristianismo causada por expoentes de uma religiosidade antiintelectual carismtica, no isl vem de pessoas educadas produzindo leituras desregulamentadas de textos sagrados espalhadas nas populaes urbanas islmicas do mundo inteiro. A crise de autoridade, mais profunda e mais difusa que no cristianismo, tem muitas causas, mas esta dissidncia educada globalizada certamente uma delas (Roy, 2008). No protestantismo, tendncias evanglicas (populares) costumam se dividir em inmeras seitas, frequentemente fissparas, enquanto a Igreja Anglicana est hoje, ela mesma,13

dividida entre o elemento erudito (ou liberal) que controla a instituio e o cada vez mais vociferante movimento evanglico que se levanta dos bancos das igrejas mais confortveis da Inglaterra, e das dioceses da Nigeria, da Ruanda e da Uganda. No cristianismo e no judasmo, o institucionalizado e o popular influenciam um ao outro ao longo do tempo: as seitas judaicas chassdicas com tendncias msticas tm tido persistente influncia em outras tendncias ultra-ortodoxas e tambm em formas de judasmo que contemporizam mais facilmente com o mundo secular, por meio de sua nfase em uma maneira judaica de viver, marcada por cima e acima at das questes de doutrina e aprendizado; prticas pentecostais como o canto efusivo, a cura e o falar em lnguas esto ganhando terreno entre catlicos na forma da Renovao Carismtica, ilustrando como as formas populares se difundem e atravessam fronteiras, dando pouca ateno s sensibilidades da autoridade hierrquica ou oficial e a Igreja Catlica tem uma histria de dois mil anos de cooptao e acomodao do popular em seu amplo campo de ao. No contexto da globalizao contempornea, esse pentecostalismo e a Renovao Carismtica Catlica, juntos, formam um vasto movimento carismtico multinacional, que transcende fronteiras religiosas herdadas e se desvia da diviso institucional-popular em uma mudana historicamente nova. Eles so capazes de dispensar o patronato institucional, episcopal, que no passado abenoou o catolicismo popular, no obstante o quo remotamente em algumas instncias. A globalizao possibilita o acesso dos movimentos populares a recursos independentemente de hierarquias em uma escala at agora desconhecida, e a secularizao minou o monoplio da religio institucional e, por conseguinte, a sua habilidade de cooptar a religio popular. A prpria definio de religio se torna objeto de controvrsia, em um mundo onde os aparatos institucionais tradicionais de gerncia do sagrado no podem mais demandar respeito por sua viso do que aceitvel e do que no, ao serem essencialmente excludos de reivindicar autoridade final sobre o assunto pelo carter oficialmente secular de muitos aparatos do Estado. Na Europa, o Estado, por meio do Executivo ou do Judicirio, e, nos Estados Unidos, por meio das Cortes, decide o que conta como religio quando surgem disputas sobre educao, por exemplo, ou o direito ao status de instituio sem fins lucrativos ou (na Frana) ao status de associao religiosa. Retornando ao catolicismo, podemos agora relacionar a dialtica do erudito e do popular conceito que deve muito a Carlos Rodrigues Brando (ver Brando, 2007) em meio ao vasto e elaborado edifcio institutional ao alcance global da cultura catlica. As estratgias da Igreja para lidar com o outro um outro que a Igreja foi bem-sucedida em tornar seu tm sido bastante diferentes da experincia correspondente dos diversos tipos de protestantismo. A qualidade defensiva do Papado faz com que a Igreja no explique a sua cumplicidade na opresso das populaes indgenas nas Amricas, que foi real, mas no completamente, enquanto a defesa do Papa das campanhas de destruio da religio indgena do sculo XVI na Amrica Latina como evangelizao (notadamente durante uma visita ao Brasil em 2007) dissimuladamente apresentada como se fosse a histria completa. Para ns, importante reconhecer que o sincretismo persistiu, e que14

foi tolerado e cooptado. Ao estabelecer o catolicismo a sua presena institucional, a converso dos povos indgenas e a implantao de um catolicismo barroco poduziram uma vasta srie de festas e fraternidades locais sob cujos auspcios foram desenvolvidos cultos a santos no muito diferentes daqueles j existentes na Pennsula Ibrica, enquanto as crenas preexistentes em espritos e entidades sobrenaturais controlando as vidas das pessoas foram incorporadas a uma cosmogonia semicrist, apesar das campanhas da Igreja. Tentativas de transmitir a doutrina crist por meio de representaes de animais e espritos para pessoas que afora as elites falavam pouco ou nenhum espanhol ou portugus, tm sido descritas como um tipo de jogo de esconde-esconde semiolgico em que, por exemplo, a comunho dos santos se tornaria o jogo dos santos e a Santssima Trindade seria representada, entre outras tentativas, como trs Cristos por artistas tentando retratar o trs em um e um em trs sem arriscar mal-entendidos (Saignes, 1999:114). Esta confuso lingustica acompanhou todo tipo de coero exercida pelas autoridades e, tambm, pelos muitas vezes oportunistas intermedirios indgenas, mas acabou por se assentar em um padro de sincretismo inventivo que perdura at os dias atuais. Relatos como estes so repetidos em termos muito semelhantes em estudos da frica Ocidental, como Translating the Devil, de Meyer, que descreve trocas lingusticas inexatas entre missionrios pietistas alemes e seus potenciais convertidos do povo ewe de Gana (Meyer, 1999). J no sculo XVI, dissidentes no mbito da Igreja alegavam que, se diferentes povos praticavam diferentes religies, essa era a sua maneira de adorar o mesmo Deus universal. O maior de todos os defensores dos ndios, o frei dominicano e Bispo Bartolom de las Casas (1484-1566), chegara ao ponto de dizer que a prtica dos indgenas mexicanos de sacrificar humanos, longe de ser obra do Diabo, era a maneira deles de adorar o mesmo Deus que os cristos, e de denunciar como violadores das leis de Deus os conquistadores espanhis que os estavam massacrando em nome da cristandade. Um sculo mais tarde, em 1648, a Igreja mexicana fixou as bases para aquilo que se tornaria o culto mais popular das Amricas, o de Nossa Senhora de Guadalupe, a partir da apario da Virgem a Juan Diego, um ndio humilde, que se dizia ter ocorrido em 1531, na sequncia da Conquista do Mxico (1519-21). A moral da histria dupla: a Virgem apareceu no para um bispo ou um padre, ou para um espanhol, mas para um ndio iletrado, e o mesmo ndio foi capaz de mostrar provas convincentes de um milagre para o ctico arcebispo do Mxico (Brading, 2001). O ndio superou os espanhis e o iletrado superou os educados, em uma histria que tem diversos emblemas de um mito das origens: brevidade extrema, o estabelecimento de uma relao de quase parentesco entre um humano e um ser divino, e tanto a contestao, quanto a confirmao de uma instituio poltico-religiosa. Este o mito fundador da Igreja Mexicana um dos mais florescentes do mundo em termos da devoo e participao religiosa de seus seguidores e da nao mexicana. Este padro em que fronteiras so erguidas e em seguida perfuradas padro que combina o atravessar de fronteiras com a cooptao sob os auspcios da elite foi alimentado, na globalizao, por meio do culto multicultural do autntico e, claro, pela15

migrao. No Mxico e no Peru observamos cultos neonativos cujos praticantes no alegariam ser indgenas, mas que reencenam rituais de um passado pr-colombiano em stios de interesse arqueolgico e nos trios de museus e catedrais (Galinier, 2006:87). Na migrao global de africanos e de maneira mais importante na migrao de imagens e idealizaes da frica, vemos como projees e teorias ps-modernas de autenticidade cultural tm levado disputas locais para uma arena global e miditica: por dcadas, no Brasil, diferentes tendncias de cultos de possesso competiram pelo reconhecimento como sendo verdadeiramente africanos, ou de representar uma verso superior e mais pura de uma ou outra cultura africana. Agora, nos Estados Unidos, seguindo importaes africanas no da frica, mas de Cuba, Porto Rico, Haiti e mesmo do Brasil, os lderes dos cultos se pem a desacreditar os demais ostentando a sua prpria pureza africana, legitimada por temporadas em terras dos iorubs, mas tambm escoradas por reivindicaes de um universalismo derivado, por exemplo, da sabedoria africana que deu luz no apenas o Egito e a Etipia, mas a vida humana no Vale do Rift (do livro apologtico de Joseph Murphy, Santera: an African religion in America, Boston, Beacon Press, 1988, citado em Capone, 1999). Note-se que nos Estados Unidos a reivindicao de pureza da herana africana tambm sinaliza uma identidade negra exclusivista, ao passo que na Amrica Latina a diviso racial anuviada, e a frica frequentemente considerada musical, artstica e espiritualmente uma herana compartilhada. Tambm observamos como a histria da relao da Europa com a ndia configurou a implantao alm-mar de verses da religio hindu, mas desta vez em meio social muito afastado das vastas disporas sul-asiticas da Europa e da Amrica do Norte. Desarraigados de seu contexto original de sociedade de castas, transformados por um conceito inteiramente novo de guru que lder de um movimento, ou de organizaes, em vez de um guia pessoal, os cultos neo-hindustas tambm se voltam para preocupaes mundanas derivadas de modernas tecnologias ocidentais de autocura, destacando-se a meditao transcendental e a yoga, como distintas do foco na reencarnao e no karma das culturas religiosas sul-asiticas (Altglas, 2005; 2007). Assim como o apologista da santeria citado acima, eles podem alegar um universalismo bastante ps-iluminista, abarcando todas as religies e, algumas vezes, incorporando Jesus Cristo em seu panteo. Gurus neo-hindus e suas organizaes esto, por conseguinte, envolvidos no desenvolvimento de uma religio de estilo ocidental, embora tendo mais afinidade com a Nova Era do que com as tradies abramicas. No obstante, o seu atributo diferencial reforado a todo tempo a sua identificao com um outro distante e uma Histria remota no Sul da sia. A interao religio e globalizao parece mudar a localizao de fronteiras de duas maneiras: uma, que eu chamo de cosmopolita, traz prticas antigas a novos grupos em novos cenrios uma variante do desenraizamento, de que um exemplo a j mencionada converso da Amrica Espanhola, e outros so vistos no enxerto e na remodelagem de religies orientais fora da sia. A outra variante, que eu chamo de global, estende e intensifica as ligaes transnacionais entre grupos de prticas semelhantes e cria redes e, por vezes,16

at comunidades firmemente entrelaadas e distendidas ao longo de vastas distncias e limites no-religiosos de idioma, etnia e raa, como os pentecostais, o movimento de renovao pietista muulmano Tablighi Jamaat e seitas e culturas judaicas ultra-ortodoxas. Enquanto a variante cosmopolita combina a converso com uma receptividade a outros rituais, tais como os nativos, a variante global considera a converso como jogo de somazero, chegando a ser um ponto de enfrentamento, muito hostil aos nativos. A implicao disso que temos que discernir entre a observao de similaridades atravs das fronteiras e a interpretao de mudanas nas prprias fronteiras. razoavelmente claro que o movimento de Renovao Carismtica Catlica se envolve em prticas muito semelhantes e em invocaes sobrenaturais como aquelas dos pentecostais (Lehmann, 2003), ainda que at este momento raramente se oua falar de pregadores de congregaes se unindo ou cooperando, ou mesmo tomando conhecimento um do outro embora no seja surpreendente se no futuro esta afirmao se tornar menos precisa. Por outro lado, as mudanas nas esferas geopolticas de influncia, em favor, por exemplo, do movimento pentecostal, provocam redesenhos das fronteiras geogrficas junto com mudanas substanciais dentro dessas fronteiras. Diferentes tradies, e diferentes correntes dentro delas, atribuem importncia variada densidade das fronteiras. A Igreja Catlica tem fronteiras sociais finas, permitindo o casamento interreligioso e o sincretismo, enquanto os pentecostais, embora pouco preocupados com o casamento misto, tendem a ser mais rgidos quanto ao sexo, ao decoro e ao lcool. Judeus e muulmanos enfatizam as barreiras ao casamento interreligioso, mas diferentes correntes as executam com severidade e condies variadas. O que claro, no entanto, que a religio no sentido da palavra que foi consagrado por sculos de uso na Europa se parece etnia em sua preocupao com fronteiras, que so demarcadas de muitas formas. De fato, uma das dificuldades enfrentadas pelas verses ocidentais das tradies hindustas para conseguir reconhecimento que elas so muito abertas e tolerantes, fazendo poucas exigncias queles que frequentam seus centros e podendo ser vistas, portanto, como provedoras de um servio mais de conselheiros, ou profissionais de medicina alternativa, do que de agentes religiosos. 4. Da heterogeneidade cosmopolita homogeneidade global: movimentos carismticos e fundamentalistas surgindo das tradies religiosas abramicas A frase que encabea esta seo foi formulada, principalmente, para dar conta dos movimentos e culturas religiosos que criam fortes laos transnacionais de pertencimento e semelhana ao enfatizar as fronteiras entre seus seguidores e seu ambiente social. Eles acentuam a homogeneidade transnacional. Isto pode ser aplicado ao isl poltico, s inmeras igrejas, seitas e tendncias evanglicas e carismticas descendentes da tradio protestante e associadas a nomes como as Assemblias de Deus, bem como ao Evangelho da Prosperidade - todos os quais constroem organizaes transnacionais exibindo diferentes graus de centralizao , mas tambm a culturas diaspricas, como o judasmo ultraorto17

doxo. Elas se destacam como as vigas-mestras da globalizao religiosa porque distendem vastas fronteiras polticas, lingusticas e geogrficas, criando comunidades transnacionais e redes de afiliao e solidariedade. Estes movimentos e culturas se beneficiam e tiram vantagem da globalizao de modo a fortalecer ou manter fronteiras e conduzindo campanhas de converso. No caso de situaes diaspricas, em que a migrao levou a uma separao dos migrantes de seus parentes e das paisagens de sua memria, a globalizao permitiu s populaes religiosas e tnicas preservar seus vnculos por meio, por exemplo, do casamento, dos feriados, das transferncias de pessoal religioso, do investimento em propriedade e da educao, enquanto, ao mesmo tempo, os lderes religiosos diaspricos procuram adaptar-se ao seu novo ambiente por meio de conexes polticas, desenvolvimento comercial, ou inovao educacional, como se observa nas experincias de judeus ultraortodoxos e muulmanos na construo de suas instituies. As igrejas pentecostais, embora sejam um movimento e no uma organizao internacional centralizada, exibem um extraordinrio grau de similaridade de liturgia, organizao, ideologia e tica nos contextos mais amplamente variveis do Chile China. Isto inesperado, porque a religio, como fenmeno cultural, deve se encaixar em traos (tradies, no jargo tradicional) culturais herdados, e no se impor a modelos unificados mundialmente. A unidade do modelo o produto de um sculo de experimentao e comunicao: ela observada em estilos de pregao, numa mensagem em comum sobre as tentaes do mundo e na salvao por meio da submisso a Jesus. Mas h, tambm, a adaptao local de caractersticas especficas como os nomes dos demnios e dos espritos perigosos (Meyer, 1999). Os pentecostais usam o imaginrio e o simbolismo extrados de culturas locais, especialmente os cultos de possesso, e, principalmente, quando adotam uma abordagem adversria com relao a eles (Maxwell, 2006:57). No Brasil e na frica Ocidental isto fica particularmente visvel. Desde o fim do perodo colonial na frica Central e Meridional o seu mtodo apelava aos jovens e s mulheres excludas da religio do patriarcado ancestral [] dando-lhes uma vantagem ntida em relao s igrejas de misses racionalistas histricas, que se recusavam a reconhecer o muito real medo da feitiaria (idem). Onde os cultos lidam com a possesso por espritos e entidades que determinam a vida de uma pessoa, e com curas e procedimentos esotricos elaborados para convocar ou afastar espritos de diferentes tipos, os pastores pentecostais conduziro atividades para livrar as pessoas desses mesmos espritos, e da influncia diablica das supostas curas oferecidas pelos mdiuns. Isto no significa que ambos sejam iguais, posto que no o so, mas realmente mostra que esses pentecostais reconhecem a eficcia dos espritos, da possesso espiritual e do estar possudo pelo demnio, ou seja, no h tanta distncia da maldio ao exorcismo. A diferena que os pentecostais, como outros evanglicos, exortam indivduos a mudar suas vidas, a adotar uma conduta de austeridade e devoo igreja por exemplo, ao comparecer diariamente ao culto, ao parar de beber, fumar e viver licenciosamente , enquanto em cultos de possesso o mdium ou feiticeiro retm o controle da comunicao entre os espritos e os humanos, cujo destino eles18

controlam, e exige oferendas em reconhecimento por seus servios. Mesmo no incio, nos primeiros anos do sculo XX, naquilo que era a agitada cidade fronteiria de Los Angeles, o pentecostalismo era um movimento multicultural e multitnico que atraa sua assistncia negros americanos e migrantes mexicanos, europeus e asiticos. Hoje, uma de suas caractersticas mais impressionantes mundo afora o apelo a todo tipo de classe: o registro etnogrfico na frica mostra que so fortes entre os desesperadamente pobres (Englund, 2007), entre as classes mdias aspirantes (Meyer, 1998; Garner, 2000), entre populaes urbanas e rurais (Maxwell, 2006) e em meio dispora africana na Europa. De fato, eles talvez possam simplesmente ser bons de marketing de nicho, como no caso da Igreja Deus Amor, que parece mirar os muito pobres e os muito idosos (Lehmann, 1996). Aliados aos seus proclamados poderes taumaturgos, os pastores pentecostais tambm so muito adeptos de se congraarem com polticos, porque eles podem transferir de maneira confivel os votos de seus fiis (Freston, 1994; 2001). A cultura do cristianismo evanglico foi levada por missionrios da Inglaterra e da Esccia primeiro para a frica no incio do sculo XIX, e desde o comeo esta transferncia foi marcada por continuadas tentativas, por parte dos africanos, de deturpar os smbolos e o significado dos aparatos simblicos e rituais dos missionrios e das autoridades coloniais. Por exemplo, impressionados com as habilidades mdicas dos missionrios, alguns africanos preferiam escal-los no papel de curandeiros para consternao dos missionrios, que queriam que eles fossem convencidos da verdade de sua mensagem por seus prprios mritos (Comaroff e Comaroff, 1991). Mas os missionrios deviam, por assim dizer, culpar apenas a eles mesmos, j que propagavam a Bblia e suas inumerveis histrias de vises, milagres, nascimento virgem, encarnao, ressurreio dos mortos e assim por diante. Para africanos nativos, a converso tambm representava um movimento de ascenso social e uma aspirao por integrar a sociedade dos colonos, apesar de, especialmente na frica do Sul, eles terem sido banidos de altos postos na Igreja. Portanto, no surpreendente que no incio do sculo XX eles tenham estabelecido seus prprios movimentos cristos, ou semicristos, seja em seu formato messinico, em que rituais e tabus do Velho Testamento foram incorporados (como nas igrejas sionistas da frica do Sul) (Sundkler, 1948), ou nas igrejas inspiradas por missionrios negros americanos que tinham rompido com igrejas que os discriminavam nos Estados Unidos. Pastores tm usado as lies e os recursos de homens de igreja expatriados e coloniais para se estabelecerem independentemente e, como exemplo recente, para africanizar a Bblia, lembrando vigorosamente que Jesus no era um homem branco, e tinha sido levado, quando menino, ao Egito para escapar da perseguio dos romanos (Maxwell, 2006:103). A Bblia , atualmente, tratada como um vasto repositrio de histrias edificantes que so organizadas e recombinadas pelos pastores, que no precisam da legitimidade de uma qualificao acadmica ou teolgica. um veculo que ajuda a colnia a contra-atacar e reivindicar uma posio de comando no cristianismo global. A propagao global de igrejas surgidas em pases pobres e de renda mdia requer19

um tipo mais elaborado de organizao que as abordagens clssicas populares das igrejas pentecostais. Por exemplo, uma fonte confessadamente comprometida (Adams, 1997) afirmou que, j em 1994, havia 16 mil missionrios em tempo integral da frica, sia e Amrica Latina nos Estados Unidos, e o Evangelho da Sade e da Riqueza (ou Prosperidade), que nos anos 1990 pode ter sido menosprezado como um tipo de fast-food da religio agora parece ser a fora dominante na expanso pentecostal. Esta varivel combina uma nfase na feitiaria e no exorcismo (jogando com temas nativos de possesso e cura) com a promessa de uma vida saudvel e prspera (Gifford, 2004; 2008). Em meio aos pobres urbanos ela preenche um vcuo institucional em favelas onde h mais igrejas do que latrinas (em Nairbi, por exemplo), ou em bairros onde a nica instituio rival o trfico de drogas (como no Rio de Janeiro). Pequenas igrejas podem se beneficiar de se irmanar ou estabelecer patrocnio com correlatos norte-americanos, ou se vincularem a federaes multinacionais que podem ajudar a prover treinamento e educao em instituies religiosas no exterior (Gifford, 2008). Alm das pequenas igrejas que proliferam, o Evangelho da Prosperidade tambm mantido por organizaes centralizadas e multinacionais de larga escala com apelo multiclasse, que so conhecidas como neopentecostais, exemplificadas pelos templos da Igreja Universal do Reino de Deus (www.igrejauniversal. org.br). Esta organizao est agora presente em pases como Argentina, Chile, Peru, Mxico, Portugal, Inglaterra, Sua, Moambique, Angola e na frica do Sul, onde reproduz exatamente o mesmo repertrio de dispositivos rituais e simblicos ao redor do mundo como o corao vermelho envolvendo uma pomba branca , de modo que os smbolos agem mais como um logotipo. Apenas os nomes dos demnios mudam para se adaptar linguagem local; igrejas baseadas ou originadas na frica incluem a Igreja Internacional Capela do Farol (Lighthouse Chapel International) e a Royalhouse Chapel International baseadas em Gana, ou a Church of the Embassy of God, na Ucrnia, que comandada por um pastor nigeriano (www.godembassy.org). Movimentos pela converso Tanto os fundamentalistas islmicos quanto os judeus empreendem atividades e campanhas para trazer judeus ou muulmanos secularizados ou no-praticantes de volta observncia estrita. O maior dos movimentos muulmanos deste tipo o Tablighi Jamaat, que conta milhes de seguidores mundo afora (Kepel, 1987; Metcalf, 1996) e que cresceu no apenas na ndia e no Paquisto, mas nas populaes de dispora em todo o mundo. Os seguidores do Tablighi so apolticos e quietistas, e estabelecem suas prprias mesquitas e escolas. Pouco parece se saber a respeito de sua estrutura organizacional, no entanto, eles constroem mesquitas e dirigem escolas, e seus seguidores masculinos tm um modo muito caracterstico de se vestir. Tal como o pentecostalismo, o Tabligh atribui prioridade atividade missionria e de pregao, podendo-se descrever a sua disseminao como epidemiolgica por entre as frestas da sociedade, pela amizade, pela palavra20

transmitida, e pela afinidade. Entre judeus, os pioneiros modernos daquilo que se conhece como o movimento de volta s razes, ou de penitncia, so da seita chassdica Lubavitch-Chabad, tambm conhecida como Chabad. Sob a liderana de seu carismtico e altamente inovador rebbe Menachem Mendel Schneerson, o Chabad cresceu de um pequeno grupo beira da extino no perodo logo aps a Guerra para uma das maiores seitas chassdicas e uma das foras mais influentes na cultura judaica contempornea. Usando uma frmula semelhante dos pentecostais, o rebbe deu incio a um sistema pelo qual missionrios so despachados para lugares longnquos, para campi de universidades, para comunidades desprovidas de orientao ou de professores, onde se espera que se tornem autossuficientes, passados dois ou trs anos. Eles enfatizam a idia de as pessoas mudarem as suas vidas, abandonar a frivolidade e, acima de tudo, adotar um estilo de vida em sintonia com o judasmo tradicional da Europa Oriental. Se o processo seguido at o fim, os reconvertidos mudam de emprego, abrem mo de antigas amizades e podem at se distanciar de suas famlias, passando a confiar fortemente na seita. Se forem jovens, possvel que sejam pressionados a se casar sob os auspcios da seita, e suas muitas crianas sero inteiramente socializadas no estilo de vida chassdico. A idia do Chabad-Lubavitch de trazer as pessoas de volta , agora, amplamente reproduzida, mas a rede mundial de indivduos e instituies da seita se mantm incomparvel em sua abertura a judeus de toda sorte (Friedman, 1994; Lehmann e Siebzehner, 2006). Em um primeiro momento, pode parecer que Tabligh e Chabad-Lubavitch so muito diferentes dos pentecostais porque operam entre muulmanos e judeus que so trazidos de volta sua herana, enquanto os pentecostais exploram o filo de converter pessoas que de modo algum so crists (os pentecostais no veem os catlicos como cristos). Por outro lado, como os pentecostais, ambos os movimentos operam atravessando fronteiras e alargando os mais variados ambientes sociais e culturais. No caso dos Tabligh da ndia e do Paquisto, isso acontece pela Europa e a Amrica do Norte; no do Chabad, em toda parte, de Moscou a Catmandu, passando pela Europa e pelas Amricas. muito difcil saber em qualquer tipo de detalhe como a sua organizao principal funciona: missionrios do Chabad parecem ter uma ligao prxima com os quartis-generais no Brooklin, em Nova York, onde se renem todo ms de novembro, vindos do mundo todo. Na Rssia, os emissrios do Chabad ganharam controle sobre as instituies judaicas reconhecidas, incluindo a chefia do Rabinato da Rssia, tornando-se a fora principal no renascimento da vida judaica graas organizao e tambm ao apoio de alguns homens de negcio gabaritados. Uma das habilidades do Chabad a capacidade de obter doaes de pessoas que sabidamente nem sempre so, elas mesmas, muito observantes. Isto mais ou menos comparvel aos pentecostais, principalmente agora que h tantas igrejas neopentecostais centralizadas e multinacionais. Em todos os casos Tabligh, Chabad, neopentecostais seguidores so estratificados em diferentes nveis de participao, e no Chabad e nos neopentecostais pode-se distinguir claramente diferentes crcu21

los: a espinha dorsal dos quadros em tempo integral, que so posicionados por um ncleo central de autoridade e recursos; ativistas locais em tempo integral que ensinam, pregam e escutam; numerosos ativistas voluntrios que dedicam tempo ao movimento e so adeptos verdadeiros e rigorosos; participantes frequentes que tomam parte nos servios e celebraes religiosos; e aqueles que frequentam, que aparecem de tempos em tempos. Os pentecostais tambm parecem adeptos de levantar fundos, ainda que primordialmente de seus fiis e, algumas vezes, de polticos, mas raramente de indivduos abastados. Em todos estes casos observamos como os lderes administram volumosos recursos mundo e fronteiras culturais afora, enquanto mantm um ncleo unificado de ritual, de estilo de vida e de simbolismo. Eles, portanto, absorveram muito da globalizao e da modernidade, chegando mesmo ao ponto de apreender o uso de logos e marcas registradas. 5. Fundamentalismo radical, nacionalismo messinico e islamismo poltico A questo do fundamentalismo, no entanto, distingue, de fato, o Chabad dos pentecostais e, dentro do isl, o isl poltico daqueles algumas vezes chamados de neofundamentalistas (Roy, 2004). Definies de fundamentalismo normalmente apontam para uma insistncia na infalibilidade textual como uma caracterstica central: a isto devemos acrescentar um conceito personalizado de autoridade legtima, em que a autoridade de interpretar o texto depositada apenas em determinadas pessoas. No caso do isl, a crise mundial de autoridade permitiu a todo tipo de lderes locais reivindicar a interpretao correta do texto, mas como eles no reconhecem a avaliao erudita impessoal, de estilo acadmico, eles precisam de adeptos que aceitaro a sua interpretao simplesmentes porque sua. Uma ateno redobrada criao e ao estreitamento de fronteiras simblicas e sociais delimitando o grupo ou a assistncia e, portanto, a regras de comportamento sexual, reforam a autoridade pessoal ao predispor os adeptos a aceitar o comando de um lder. Assim como no Chabad, o estilo de vida tem prioridade sobre a aceitao da doutrina. Enquanto os acadmicos se recusam a rotular o Tabligh como fundamentalista, o islamismo neofundamentalista e seu congnere, o isl poltico, certamente contam como tal. Em ambos os casos as organizaes estabeleceram a si mesmas como as nicas habilitadas a interpretar a tradio, as normas, as regras e os textos. Diz-se com frequncia que a lei Sharia flexvel e varia conforme o contexto, mas, ainda assim, os juzes Sharia tm desfrutado de respeito e prestgio nas terras em que o isl foi estabelecido, h sculos, bem como os ims e os mullahs, ento o ambiente social relativamente estvel protegeu a lei e a doutrina religiosa do desafio profundamente divisrio. A crise de autoridade trazida pela profunda mudana social no sculo XX comeou com a fundao de duas organizaes principais que deram luz o isl poltico. Uma delas a Irmandade Muulmana, fundada no Egito, em 1928, para promover a renovao islmica que fosse capaz de rivalizar com e resistir ao Ocidente depois do declnio e, por fim, do colapso do Imprio Otomano. At agora, ela gerou numerosas ramificaes e imitaes, includo o Hamas palestino e a22

Al-Qaeda, permanecendo como uma fora influente, ilegal, mas no-violenta no prprio Egito. A outra foi a Jamaat-e-Islami, fundada na ndia, em 1941, por Maulana Maududi tambm uma organizao que gerou ramificaes e imitaes no Paquisto, onde um partido poltico, e em outras partes, incluindo o Talib (Metcalf, 2002). Organizaes fundamentalistas e seitas no isl falam uma lngua que, de certa forma, caracteristicamente moderna e definitivamente global. moderna porque eles rejeitam, tanto a autoridade estabelecida, mas arraigada isto , a autoridade que opera sob a gide de um estado que nomeia juzes Sharia oficiais , quanto muitos costumes associados por outros muulmanos com a sua religio, mas vistos por fundamentalistas como pagos ou meros adereos culturais, como cerimnias de casamento requintadas, ou mesmo casamentos arranjados pelas famlias. Neofundamentalistas esto em busca daquilo que Roy chama de umma global, uma utopia enraizada na modernidade, incentivada pela situao da dispora na Europa, e removida das terras e culturas histricas do isl junto com seus costumes e tradies. O Tabligh uma verso pietista disto. A princpio, pode-se talvez esboar uma distino, como faz Roy, entre este imaginrio global desenraizado e os movimentos e seitas islmicos (polticos) que esto tentando derrubar governos em pases muulmanos e em outras partes; mas, na prtica, ambos se sobrepem e trocam ideias e modos de comportamento. A evoluo do isl poltico para um fenmeno global ilustrada de forma chocante pelo caso do campo de refugiados Ain al-Hilweh, no Lbano, descrito em uma etnografia de rara fundamentao sobre um campo de refugiados palestinos (Rougier, 2007). O campo o lar de uma populao originada na expulso de seus pais e avs da Palestina, em 1948, mas sua poltica foi se afastando do antes dominante nacionalismo palestino para a jihad global. Lderes locais de origem indistinta, que foram formados principalmente, mas no s, no Afeganisto, detm domnio violento sobre a vida do que agora uma cidade, embora no seja reconhecida como tal porque os seus habitantes no possuem status de cidadania. A liderana jihad manipulada pela Sria secularista e o Ir xiita, o que pode soar estranho, j que o governo srio ferozmente hostil ao islamismo. Essa hostilidade , contudo, em relao ao islamismo na Sria: no Lbano e na Palestina o seu principal inimigo a Al-Fatah e ela dirige seus esforos a impedir a criao de qualquer entidade palestina independente no controlada pela Sria, portanto a jihad global um aliado til. Isto tambm explica o apoio da Sria, e mesmo do Ir, ao Hamas, inimigo do Fatah, o que , de resto, confuso, j que o Hamas islamita e sunita. Isto apenas um exemplo: a crise de autoridade no isl, especialmente no isl sunita, repetida na dispora europeia onde, por exemplo, ims importados de Bangladesh ou do Paquisto so incapazes de se comunicar com jovens muulmanos nascidos na GrBretanha, agora j possivelmente filhos de pais nascidos na Gr-Bretanha, que no falam nenhuma palavra de bengali ou urdu (Lewis, 1994; 2004). Aqui a globalizao pode agir para reforar a tradio, porque esposas, maridos e ims podem ser trazidos da sia para renovar hbitos sociais resistentes a um estilo de vida Ocidental; mas tambm pode fun23

cionar para minar a tradio, ao fazerem campanha, entre os jovens, os movimentos que contestam a autoridade e proclamam um isl mais militante, mas tambm mais global. O neofundamentalismo , no isl, mais uma questo de controle da moral pessoal. No entanto, o tema da hostilidade em relao ao Ocidente, democracia e a qualquer forma de expresso pblica do corpo feminino se misturou com o isl poltico e, por conseguinte, a sua influncia tender a reforar a da variante mais poltica. Ambos so, em lugares, graus e tempos diferentes, beneficirios do financiamento do regime saudita, que gasta vultosas somas de dinheiro de formas aparentemente indiscriminadas, fundando mesquitas, madraais e escolas, por exemplo, na Europa, onde amarguradas pregaes anti-Ocidente passam incontestes. Assim, o umma global, a reforma da vida pessoal e o isl poltico so foras que se sobrepem, embora no necessariamente sempre se reforem mutuamente. Tal como o pentecostalismo, elas todas esto constantemente evolundo, portanto as tipologias precisas dificilmente sero vlidas por muito tempo. A interao do isl com a globalizao, para usar os termos elaborados acima, segue padres tanto cosmopolitas quanto globais (Lehmann, 1998). Por um lado, a globalizao permite que as disporas muulmanas resistam influncia do secularismo, da educao e dos costumes sexuais ocidentais, porque hbitos, normas e rituais de sua terra natal no esto perdidos como podem ter estado nos dias em que migrantes deixavam suas terras natais para trs e perdiam contato para sempre. Isto visvel nos enclaves de cidades do Norte da Inglaterra e em reas de Londres, como Slough e o East End. Ligados a locais distantes, mas ainda assim chamados, talvez ilusoriamente, de terras natais, estes so complexos culturais homogneos espalhados pelo Globo, mantendo tradies de vestimenta, comida, msica e casamento. Em contraste, a reafirmao da renovao do isl entre muulmanos educados e profissionais construda com base na ideia doutrinria de um umma global, em que as culturas nacionais e regionais so apagadas em favor de um credo unificado e um estilo de vida que une muulmanos das mais variadas origens tnicas e geogrficas embora divises como as entre sunitas e xiitas dificilmente sero borradas. Entre judeus ultraortodoxos encontramos padres no muito diferentes em termos de valores e atitudes com relao a textos sagrados, mas encontramos um padro muito diferente no tocante construo de instituies, um maior esforo conjunto por parte de figuras de autoridade de se adaptarem para poder sobreviver, e um extremo poltico muito mais marginal. Por exemplo, os Chabad-Lubavitch foram pioneiros na educao de mulheres, e outras seitas chassdicas e meios ultraortodoxos seguiram os seus passos na criao de programas amplos dirigidos a judeus secularizados. Nada disto se d s custas de amenizar as fronteiras demarcando a ultraortodoxia. Variantes liberais, reformistas ou conservadoras, que incluem a maioria dos judeus na Amrica do Norte e no Reino Unido, chegam a mal ser reconhecidas como judaicas pelos ultraortodoxos. J que o judasmo reformado e o liberal so perfeitamente compatveis com um entendimendo de hebraico e de textos antigos e rabnicos, colocar a compreenso intelectual antes da adoo do estilo24

de vida seria admitir que a ultraortodoxia tem fronteiras indefinidas e permitiria meiasmedidas, e isso seria um antema (Topel, 2005). O ncleo comum da ultraortodoxia hoje muito mais estvel no judasmo do que no isl. Recm-convertidos ou reconvertidos raramente conseguem posies de grande influncia at a segunda, ou mesmo a terceira gerao, e a liderana est nas mos dos herdeiros da sucesso rabnica entre os dirigentes do Yeshiva (centro de estudos), ou das famlias dinsticas mergulhadas na tradio e cercadas por Cortes e burocracias. Apesar da aparncia de comando de um homem s nas seitas chassdicas, as decises institucionais (no-religiosas ou no-rabnicas) so tomadas por comits, de uma forma que remonta ao incio do perodo moderno na Polnia (Hundert, 2004). A liderana se adaptou aos desafios do final do sculo XX e no sculo XXI ao criar um ideal inteiramente novo, de natalidade muito alta e profundo desdm pelos valores da sociedade permissiva, ou mesmo da vida secular em geral. No Leste Europeu do perodo anterior Segunda Guerra a maior parte dos seguidores da ultraortodoxia trabalhava para se sustentar, e apenas os mais talentosos estudavam em tempo integral e ensinavam, mas hoje em dia despontou o ideal da sociedade da aprendizagem (Friedman, 1986; Soloveitchik, 1994; Stolow, 2004). Isto uma cultura global, densamente entrelaada atravs de cinco continentes: casamentos so rotineiramente contratados entre pessoas em lugares distantes, jovens so enviados pelo mundo para completar sua formao em misses (como no Chabad) ou em seminrios israelitas; uma altssima taxa de natalidade, acompanhada por um interminvel ciclo de ritos de passagem, une as pessoas de todo o mundo (isto , se elas podem arcar com os custos). Para sustentar esse estilo de vida, os lderes se tornaram muito adeptos de obter fundos do Estado, especialmente, mas no exclusivamente, em Israel, fazendo lobby poltico para ober subsdios para projetos como escolas, moradias de baixo custo, casas de sade e similares, e levantamento de fundos entre judeus de todas as filiaes. Isto poderia, em sentido amplo, ser pensado como o equivalente das redes diaspricas do isl. A ultraortodoxia uma bancada de votos extremamente eficiente, obviamente em Israel, mas tambm, at um certo ponto, em Londres e Nova York, tal como organizaes diaspricas na Gr-Bretanha esto agora entrando em uma relao com o Estado, no contexto de programas de integrao social e de combate ao extremismo violento dirigido pelo Departamento das Comunidades e do Governo Local. Para alm desta cultura judaica ultraortodoxa institucionalizada, pudemos testemunhar, desde a guerra de 1967, um nacionalismo messinico no judasmo, que algo razoavelmente novo, porque se concentra em um direito divino a um pedao de terra venerado pela palavra infalvel de Deus na Bblia. Isto contrrio, tanto ao sionismo clssico secular, quanto ao democrtico social, mas tambm tradio do ensinamento rabnico que tratou o texto sagrado, ao longo de sculos, como fonte de lei e base para um interminvel debate hermenutico entre especialistas, mas nunca como um conjunto de prescries polticas concretas a serem proclamadas pelos novios e reconvertidos. O movimento chegou a dominar o Partido Nacional Religioso, antes amansado, e a exercer influncia25

muito forte no partido principal de direita de Israel, o Likud. um movimento de respaldo popular que abriu caminho para o estabelecimento da Cisjordnia, criando situaes de fato que os polticos so pressionados, com eficcia, a reconhecer (Sprinzak 1991). Ao longo do tempo, o movimento colonizador adotou, de maneira alusiva e desprogramada, todo tipo de acessrios ultraortodoxos, de certa forma detalhistas, mas muito visveis, da indumentria masculina e feminina, como as franjas, fceis de se notar, penduradas das vestimentas dos homens, ou as saias compridas e lenos para a cabea das mulheres, misturados com um cdigo de vesturio conscientemente desalinhado, projetado para exibir falta de cuidado pelo corpo. O movimento no muito fcil de ser estudado, mas parece ter um nmero desproporcional de ativistas que, ou so imigrantes recentes de Israel, ou que recm-retornaram observncia estrita, ou uma combinao dos dois, destacando a fraca conexo com a sociedade israelense e o globalismo concomitante do movimento. Vale a pena ressaltar, novamente, os traos em comum com o umma global: o movimento apenas incidentalmente implantado em um contexto estatal particular, j que para esses colonizadores ideolgicos a terra de importncia suprema e o Estado israelense mero detalhe, um irritador. De fato, visto que no segue a lei religiosa, e que para muitos deles apenas o retorno do Messias anunciar a fundao de um Estado judaico merecedor do nome, Israel, como Estado, mal chega a ser legtimo aos seus olhos. 6. Concluso importante, ao concluir, lembrar ao leitor que este artigo se concentra em apenas dois aspectos de um assunto vasto, quase ilimitado. Um tratamento mais completo demandaria, entre outras coisas, uma histria da difuso das religies pelo mundo e das diferenas entre as maneiras como as religies orientais e ocidentais (entre as quais eu incluo o isl como f abramica) lidaram com fronteiras e diferena, alm de um relato do cristianismo ortodoxo na Rssia e nos Blcs. Tambm teria que explicar as enormes variaes do isl pela Europa, frica, Oriente Mdio e sia. Do ponto de vista terico, uma cobertura global teria que questionar, ou ao menos contextualizar, a definio de religio nas Cincias Sociais, indelevelmente marcada pela polaridade que ope o monotesmo, e suas suposies decorrentes sobre textos e doutrinas, ao paganismo e possesso, como nos exemplos africano e latino-americano usados aqui. Ser que este conceito nos ajudaria a entender como as filiaes religiosas orientais se propagaram, absorveram e influenciaram mutuamente umas s outras? O artigo se concentrou em duas das preocupaes polticas mais proeminentes dos nossos tempos a poltica da identidade e o fundamentalismo. A primeira parte tinha dois propsitos. Um, foi lembrar os leitores da necessidade de ver os problemas contemporneos de uma perspectiva histrica, para, tanto entender o que realmente novo e o que recorrncia de fenmenos antigos, quanto entender a extenso pela qual os fenmenos contemporneos carregam o peso da histria que os precede, especialmente no campo de26

religio e identidade, que to profundamente marcado por herana e origens. Em segundo lugar, tomando a globalizao como um processo de criao e redefinio de fronteiras de diversos tipos polticas, lingusticas, religiosas e tnicas demarcou-se o papel da religio, ao criar, adensar e perfurar fronteiras sociais, e com isso a sua contribuio para realinhamentos de afiliao por vezes dramticos. Esta anlise fundamentada na suposio de que fronteiras sociais frequentemente se entrecruzam a tnica, a religiosa, a nacional e a lingustica no so normalmente sobrepostas, e a religiosa, em particular, pode mudar, e isto mais visvel no contexto contemporneo, em que a migrao internacional mais multidirecional do que antes, e em que movimentos religiosos pela converso adquiriram uma importncia qualitativa e quantitativa que fez deles fatores determinantes nas estratgias religiosas em muitos lugares do mundo ocidental, incluindo a frica. Em muitos casos, a religio mudou no contexto da guerra e das conquistas e embora os exemplos dados sejam ps-1492, poderia haver inumerveis outros de perodos anteriores da Histria. Exemplos das histrias coloniais da Amrica Latina e da frica contrastaram duas tradies que gerem a relao do institucional para o popular de maneiras diferentes: o carter mais cosmopolita do catolicismo contrastado pela tradio protestante, bem menos inclinada ao sincretismo e a uma projeo do outro. Ainda assim, em ambas as tradies o intercmbio de rituais e doutrinas atravs das fronteiras infindvel. Apesar de um comeo pouco auspicioso (para dizer o mnimo), o catolicismo acabou por encontrar acomodaes criativas com as culturas indgenas, dando lugar a uma presena variada e institucionalmente diferenciada que permeia a sociedade, mesmo nos dias atuais. Neste processo, os prprios nativos foram tanto protagonistas, quanto objetos, ponto que se coloca com fora ainda maior na frica, onde pastores nativos construram suas prprias igrejas a partir do incio do sculo XX e, em tempos mais recentes, trouxeramnas para a Europa, algumas vezes levando-as a patamares globais, tornando-se as foras mais dinmicas no protestantismo europeu um fenmeno que descrevemos como a colnia contra-ataca. Este ltimo padro foi chamado por ns de global, contrastando com cosmopolita, porque ele minimiza e at mesmo rejeita a distino cultural embora ao mesmo tempo esteja embebido em possesso, exorcismo e cura, que tm ressonncias distintas em cultos nativos africanos e afrobrasileiros. Depois desta primeira seo com seu foco no imaginrio, a segunda seo desceu realidade, com relatos de culturas religiosas e movimentos que transcendem fronteiras e distncias nacionais e geogrficas e claramente obtm fora do aspecto mais material da globalizao a revoluo em traslados e comunicaes. Ela se concentrou no fundamentalista e nos movimentos pela converso (evanglica) porque (a) eles representam muito da modernidade que a globalizao promove, e (b) enquanto a globalizao encontrou muito do cristianismo institucionalizado, especialmente na tradio do protestantismo institucional, em um estado de confuso quase entorpecida, e o isl sunita em uma grande crise de autoridade, os pastores e empresrios pastorais destes movimentos tiraram vantagem das oportunidades que ela oferece entre os pobres e deserdados, entre migrantes,27

e entre a juventude muulmana desorientada da Europa Ocidental, do Paquisto e do Oriente Mdio, e tambm em meio a uma intelligentsia apreensiva com relao a assuntos como identidade e religio. Novamente o tema das fronteiras emerge, j que todos estes movimentos prestam uma ateno redobrada, s vezes obsessiva, em desenhar fronteiras simblicas na forma de cdigos de vestimenta, uso do idioma, cdigos de casamento e tambm fronteiras materiais na forma de regras que comandam o uso do tempo pelas pessoas, a classificao de empregos em termos de sua aceitabilidade, a presso para contribuir financeiramente ou em espcie. O judasmo ultraortodoxo o mais elaborado exemplo de sustentao de fronteira, e embora apenas algumas de suas seitas sejam evanglicas por vocao, trazendo judeus secularizados de volta, elas todas passaram por um processo de retradicionalizao no perodo desde o sua Holocausto, tornando as regras cada vez mais severas e usando os recursos da modernidade para consolidar posio, com sucesso notvel. Por fim, chegamos aos casos mais diretos de movimentos transnacionais, e vimos no exemplo do campo de refugiados Ain al-Hilweh, no Lbano, os extremos de muitas caractersticas do nexo religio-globalizao: uma populao desenraizada a segunda e a terceira geraes de palestinos no exlio; um movimento sem nenhuma base territorial, mas dedicado a uma causa poltico-religiosa pura a jihad global; e, tragicamente, as manipulaes de poderes do Estado. Modernidade e globalizao esto transformando a prpria definio da religio, pelo menos a definio que foi adotada na Europa Ocidental, de uma herana, uma cultura imbuda na infncia e um conjunto de procedimentos estveis e simples que dirige os ritos de passagem, mas tambm como conjunto de valores consensuais. Talvez isso tenha sido sempre um mito mas hoje a reivindicao de uma retido doutrinria religiosa est no centro de alguns de nossos mais intratveis conflitos e guerras culturais. Isto no equivale a culpar a religio pois, como vimos, a prpria religio um conceito mltiplo e apenas a noo mais superficial e equivocada de agncia ou causalidade poderia atribuir qualquer influncia adicional religio em geral.

28

Referncias bibliogrficas ADAMS, A. Jumping the puddle: a case study of Pentecostalisms journey from Puerto Rico to New York to Allenstown, Pennsylvania. In CLEARY, E. e STEWARTGAMBINO, H., Power, politics and pentecostals in Latin America. Boulder: Westview, 1997. ALTGLAS, V. Le nouvel hindouisme occidental. Paris: CNRS Editions, 2005. _____. The global diffusion and westernization of neo-Hindu movements: Siddha Yoga and Sivananda Centres. Religion in South Asia, vol. 1, n 2, 2007, p. 217-237. BAYAT, A. Making Islam democratic: social movements and the post-Islamist turn. Stanford: Stanford University Press, 2007. BEYER, P. Religion and globalisation. Londres: Sage, 1994. BRANDO, C. R. Os Deuses do povo: um estudo sobre a religio popular. Uberlndia, MG: Editora da Universidade Federal de Uberlndia, 2007. BRADING, D. A. Mexican Phoenix. Our Lady of Guadalupe: image and tradition across five centuries. Cambrigde: Cambridge University Press, 2001. CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado: organizaao e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrpolis: Vozes, 1997. COMAROFF, J. e COMAROFF, J. Of revelation and revolution, Volume One: Christianity, colonialism and consciousness in South Africa. Chicago: Chicago University Press, 1991. CORTEN, A. Os pobres e o Esprito Santo: o pentecostalismo no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1996. _____ e MARSHALL-FRATANI, R. (eds.). Between Babel and Pentecost: transnational Pentecostalism in Africa and Latin America. Londres: Hurst & Company, 2001. ENGLUND, H. Pentecostalism beyond belief: trust and democracy in a Malawian township. Africa: Journal of the International African Institute, vol. 77, n 4, 2007, p. 477-499.29

EISENSTADT, S. N. (ed.). Multiple modernities. Multiple moderntities. New Brunswick: Transaction Books, 2002. FRESTON, P. Evanglicos na poltica brasileira. Curitiba: Encontro Editora, 1994. _____. Evangelicals and politics in Africa, Asia, and Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. FRIEDMAN, M. Life tradition and book tradition in the development of ultra-orthodox Judaism. In GOLDBERG, H. (ed.). Judaism viewed from within and from without: anthropological studies. Albany, NY: SUNYPress, 1986, p. 235-255. _____. Habad as messianic fundamentalism: from local particularism to universal Jewish mission. In MARTY, M. e APPLEBY, R. S. Accounting for Fundamentalism. Chicago: Chicago University Press, 1994. GARNER, R. Religion as a source of social change in the new South Africa. Journal of Religion in Africa, vol. 30, n 3, 2000, p. 310-343. GELLNER, E. Muslim society. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. GIFFORD, P. Ghanas new Christianity: Pentecostalism in a globalizing African economy. Londres: Hurst and Co., 2004. _____. Christianity, politics and public life in Kenya. Londres: Hurst & Co., 2008. HAAR, G. T. Halfway to paradise: African Christians in Europe. Fairwater, Cardiff: Cardiff Academic Press, 1998. HUNDERT, G. Jews in Poland-Lithuania in the eighteenth century: a genealogy of modernity. Berkeley: University of California Press, 2004. HUNT, S. e LIGHTLY, N. The British black Pentecostal revival: identity and belief in the new Nigerian churches. Ethnic and Racial Studies, vol. 24, n 1, 2001. KEPEL, G. Les banlieues de lIslam: naissance dune religion en France. Paris: Seuil, 1987. LEHMANN, D. Struggle for the spirit: religious transformation and popular culture in Brazil and Latin America. Oxford: Polity Press, 1996.30

_____. Fundamentalism and globalism. Third World Quarterly, vol. 19, n 4, 1998, p. 607-634. _____. Dissidence and conformism in religious movements: what difference - if any separates the Catholic Charismatic Renewal and Pentecostal churches? Concilium, n 3, 2003. _____ e SIEBZEHNER, B. Remaking Israeli Judaism: the challenge of Shas. Londres: Hurst, 2006. LEWIS, P. Islamic Britain: religion, politics and identity among British Muslims. Londres: I. B. Tauris, 1994. LEWIS, P. New social roles and changing patterns of authority amongst British Ulam. Archives de Sciences Sociales des Religions, n 125, 2004. MARTIN, D. Tongues of fire: the Pentecostal revolution in Latin America. Oxford: Blackwells, 1990. MAXWELL, D. African gifts of the spirit: Pentecostalism & the rise of a Zimbabwean transnational religious movement. Oxford: James Currey, 2006. METCALF, B. New Medinas: the Tablighi Jamaat in America and Europe. In METCALF, B. Making Muslim space in North America and Europe. Berkeley: University of California Press, 1996, 264 p. _____. Traditionalist Islamic activism: Deoband, Tablighis and Talibs. ISIM Working Papers, n 4, 2002. MEYER, B. Make a complete break with the past: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse. Journal of Religion in Africa, vol. 28, n 3, 1998. _____. Translating the devil: religion and modernity among the Ewe in Ghana. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. MURPHY, J. Santera: a religion in America. Boston: Beacon Press, 1988. ORO, A. P. A presena religiosa brasileira no exterior: o caso da Igreja Universal do Reino de Deus. Estudos Avanados, vol. 1, n 52, 2004.31

_____ e STEIL, A. (eds.). Globalizao e religio. Petrpolis: Vozes, 1997. ROBERTSON, R. Globalization: social theory and global culture. Londres: Sage, 1992. ROUGIER, B. Everyday jihad: the rise of militant Islam among Palestinians in Lebanon. London: Harvard University Press, 2007. ROY, O. Globalised Islam: the search for a new Ummah. London, Hurst, 2004. _____. La sainte ignorance. Paris: Seuil, 2008. SAIGNES, T. The colonial condition in the Quechua-Aymara heartland. In SALOMON, F. e SCHWARTZ, S. (eds.). The Cambridge history of the native peoples of the Americas, South America. Volume III: Parte 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. SOLOVEITCHIK, H. Rupture and reconstruction: the transformation of contemporary orthodoxy. Tradition, vol. 28, n 4, 1994, p. 64-130. SPRINZAK, E. The ascendance of Israels radical right. New York: Oxford University Press, 1991. STOLOW, J. Transnationalism and the new religio-politics: reflections on a Jewish orthodox case. Theory, Culture & Society, vol. 21, n 2, 2004, p. 109-137. SUNDKLER, B. Bantu Prophets in South Africa. Londres: Lutterworth Press, 1948. TOPEL, M. Jerusalem & So Paulo: a nova ortodoxia judaica em cena. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

32