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Pareceres e Recomendações Seminários e Colóquios LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO Balanço e Prospetiva sŽůƵŵĞ //

Lei De Bases Do Sistema Educativo: Balanço e Prospetiva ... · e dever de educar. O homem é da família, antes de ser do Estado. É sobre ... absorver a família ou substituir-se

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  • Pareceres e Recomendaes Seminrios e Colquios

    Volume II

    LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO Balano e Prospetiva

    Conselho Nacional de Educao Rua Florbela Espanca 1700-195 Lisboa Portugal Tel.: (+351) 217 935 245 [email protected] www.cnedu.pt

    Pareceres e Recomendaes

  • As opinies expressas nesta publicao so da responsabilidade dos autores e no

    refletem necessariamente a opinio ou orientao do Conselho Nacional de Educao.

    Ttulo: Lei de Bases do Sistema Educativo: balano e prospetiva Volume II

    Autor/Editor: Conselho Nacional de Educao

    Direo: Jos David Justino (Presidente do Conselho Nacional de Educao)

    Coordenao: Manuel Miguns (Secretrio-Geral do Conselho Nacional de Educao)

    Coleo: Seminrios e Colquios

    Organizao e edio: Ana Canelas; Ana Rodrigues; Carmo Gregrio; Erclia Faria;

    Filomena Ramos; Isabel Pires Rodrigues; Marina Peliz; Paula Flix; Rute Perdigo;

    Slvia Ferreira; Teresa Casas-Novas

    Composio e montagem: Paula Flix

    Capa: Teresa Cardoso Bastos //DESIGN

    1 Edio: julho de 2017

    Tiragem: 200 exemplares

    Impresso e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda.

    ISBN: 978-989-8841-17-9 Volume II

    Depsito legal: 429430/17

    CNE Conselho Nacional de Educao

    Rua Florbela Espanca 1700-195 Lisboa

    Telefone: 217 935 245

    Endereo eletrnico: [email protected]

    Stio: www.cnedu.pt

    mailto:[email protected]://www.cnedu.pt/

  • A liberdade de ensino simultaneamente uma liberdade de ensinar e de

    aprender. O direito educao um direito que decorre da

    responsabilidade de educar e ser educado, isto do dever de ensinar e de

    aprender, que diz respeito tanto a quem ensina como a quem ensinado.

    A liberdade de ensino compreende pois o direito de acesso educao. O

    direito de aceder educao, como direito de todos, aponta para a

    igualdade de oportunidades, tanto de educar como de ser educado. S h

    liberdade onde existem condies de leal concorrncia e condies

    paritrias de escolha da educao.

    A liberdade conjuga-se, assim, com a igualdade, no direito educao.

    1. O direito e o dever de educar pertencem, antes de mais e em primeiro

    lugar, famlia e no ao Estado. So os pais, at maioridade dos filhos,

    que tm o direito e o dever prioritrio de educar os filhos, e de escolher

    para eles a educao e o ensino mais consentneos com esse desgnio.

    H uma prioridade da famlia, em relao ao Estado, no que toca ao direito

    e dever de educar. O homem da famlia, antes de ser do Estado. sobre

    os pais e sobre as famlias que recai a obrigao primeira de sustentar e de

    educar os prprios filhos.

    A famlia tem uma prioridade de natureza e, portanto, uma prioridade de

    direitos relativamente sociedade civil. famlia cabe a responsabilidade

    primeira da orientao global do processo educativo. Por isso, se justifica

    a consociao dos pais s escolas frequentadas pelos seus filhos. Por isso,

    se exige que os pais no se demitam da responsabilidade orientadora da

    educao dos filhos, na escola, perante os meios de comunicao social,

    perante os ambientes sociais dos filhos.

    1 Universidade Catlica Portuguesa

  • O direito da famlia de educar os filhos anterior a qualquer direito da

    sociedade civil e do Estado, e , por isso, inviolvel por parte de todo e

    qualquer poder poltico. O poder dos pais sobre os filhos no pode ser

    suprimido nem absorvido pelo Estado.

    Aos pais compete, assim, o direito e o dever primeiro da educao dos

    seus filhos, a que se segue o direito de escolher a educao e a escola para

    os seus filhos, princpio amplamente reconhecido.

    Proclamou-o, solenemente, a Declarao Universal dos Direitos do

    Homem, no seu Artigo 26. (n. 3):

    Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gnero de educao a dar

    aos filhos

    Proclamou-o, igualmente, e por vrias vezes, a Igreja Catlica desde a

    Divini Illius Magistri de Pio XI, de 31 de dezembro de 1929, quando os

    totalitarismos, quer nacionalistas quer internacionalistas, ameaavam

    monopolizar a educao, at recente Exortao Amoris Laetitia do Papa

    Francisco

    A educao consabidamente um processo de socializao, ou seja, de

    progressiva integrao e recriao social. A primeira das instituies de

    socializao a famlia. Por isso se lhe chama instituio de socializao

    primria, no apenas por ser primeira, cronologicamente falando, mas,

    sobretudo, por ser primeira, em termos de importncia social e em termos

    ticos e jurdicos. A socializao primria englobante e integral,

    constituda por relaes comunitrias, sendo por isso a mais marcante ao

    longo da vida.

    Tal primado da misso educativa da famlia no quer dizer que o direito

    educativo dos pais seja absoluto. Primazia no quer dizer unicidade. A

    famlia no tem a exclusividade da educao. O direito e o dever primeiro

    dos pais de educar so partilhados com o Estado. Tambm o Estado tem

    direitos e deveres na educao dos cidados.

    2. No entanto, a funo do Estado na educao uma funo supletiva. Ao

    Estado compete proteger e promover, e ainda suprir e completar, e no

    absorver a famlia ou substituir-se a ela. dever do Estado proteger o

  • direito anterior da famlia sobre a educao dos filhos. O Estado no se

    substitui famlia, mas supre as deficincias, e providencia com os meios

    apropriados. O Estado promove a educao da juventude, favorecendo e

    ajudando a iniciativa das famlias, e completando esse esforo, quando

    no baste, por meio de escolas e instituies prprias. O Estado deve

    respeitar esses direitos anteriores. O Estado deve suprir as incapacidades

    educativas da famlia, quando ela se verificar, ou completar a sua tarefa

    quando a famlia e a sociedade, enfraquecidas, no estiverem em

    condies de exercer as suas funes. O Estado deve ajudar a famlia a

    cumprir os seus deveres educativos para com os filhos, sem substituir a

    famlia e a sociedade nessa tarefa. O Estado deve intervir na educao

    quando o esforo das famlias e da sociedade for insuficiente.

    O dever e o direito de educar pertencem ao Estado em nome da

    responsabilidade que detm de promover o bem comum. O direito que

    assiste ao Estado de promover a educao apenas resultante deste fim,

    devendo pois ater-se aos limites desta promoo do bem comum.

    A educao , seguramente, um bem pblico, mas que no tem de ser

    servido pelo Estado. O servio pblico de educao pode e deve ser

    exercido pela sociedade, e s supletivamente pelo Estado.

    Para alm de supletivo, o papel do Estado na educao deve, tambm, ser

    subsidirio. No deve o Estado fazer aquilo que instncias inferiores

    podem e sabem fazer mais e melhor.

    Este princpio da subsidiariedade, lapidarmente formulado por Pio XI, na

    Quadragesimo Anno, hoje princpio europeu, consignado no tratado de

    Maastricht, onde foi introduzido por alguns lderes europeus,

    designadamente o ento Presidente da Comisso Jacques Delors.

    Ao Estado compete, em nome da prossecuo da justia, garantir a

    educao para todos, sem para tanto absorver funes que pertencem

    prioritariamente a outros.

    Se no compete ao Estado substituir as famlias e a sociedade na tarefa

    educativa, no aceitvel o chamado monoplio educativo do Estado,

    tpico dos regimes totalitrios, pelo qual o Estado nega esse direito e esse

  • dever a todas as demais instituies da sociedade. A Igreja e os Papas

    denunciaram, por diversas vezes, como injusto e ilcito, o monoplio do

    estado na educao que obrigue as famlias fsica ou moralmente, a

    frequentar as escolas do Estado, contra as obrigaes da conscincia crist

    ou mesmo contra as suas legtimas preferncias2

    O monoplio de ensino disse o Conclio Vaticano II3 vai contra os

    direitos inatos da pessoa humana, contra o progresso e a divulgao da

    cultura, contra o convvio pacfico dos cidados, e contra o pluralismo em

    vigor nas sociedades de hoje.

    No compete, pois, ao Estado substituir escolas privadas por escolas

    pblicas, nem criar escolas pblicas onde j existam escolas privadas,

    inviabilizando-as com concorrncia desleal, nem estatizar escolas

    privadas.

    Como processo de socializao, a educao no visa apenas fins pessoais

    como o da construo da personalidade mas tambm fins sociais,

    como o de tornar o homem til sociedade

    Deste ponto de vista ganha relevo a igualdade de oportunidades como

    horizonte de justia. A democratizao da educao consiste precisamente

    em dar a todos as mesmas oportunidades de acesso e de sucesso, o que s

    se consegue num quadro de liberdade, de livre expresso de cada um e de

    todos. A liberdade , assim, condio de justia social.

    3. O Estado no deve nem pode orientar axiologicamente a educao,

    educao que necessariamente um processo de inculcao de valores.

    O processo educativo no axiologicamente neutro. A neutralidade

    educativa uma falcia. No h educao sem orientao por valores e

    para valores. Ora, o Estado, que se pretende neutro do ponto de vista

    axiolgico, no pode, por isso, deixar de respeitar o pluralismo e a

    diversidade social na educao.

    2 Divini Illius Magistri, 48.

    3 Declarao sobre a Educao Crist, 6.

  • Ao Estado compete promover o pluralismo educativo, que tem que ser

    necessariamente um pluralismo institucional. Uma sociedade pluralista,

    que respeita democraticamente a variedade de orientaes axiolgicas,

    tem que promover o pluralismo educativo atravs do pluralismo de

    escolas. O pluralismo prprio ao Estado democrtico escreveu o Prof.

    Jorge Miranda um pluralismo interno nas escolas pblicas e um

    externo nas escolas no-pblicas; interno naquelas, por, na mesma escola,

    coexistirem diferentes perspetivas doutrinais e confessionais dos

    professores, externo nas segundas, porque a diversidade de orientaes de

    escola para escola traduz o pluralismo geral do sistema. O pluralismo

    democrtico, consagrado na constituio de 1976, requer o pluralismo das

    escolas e dos projetos educativos, e este a liberdade de cada escola ter

    como professores aqueles, e somente aqueles, que com esse projeto se

    conformam. O direito de criao de escolas diferentes das estatais (artigo

    43. 4) envolve esse direito e o correspondente dever de integrao dos

    que nela so chamados a ensinar4.

    Ao Estado compete garantir as liberdades fundamentais, entre elas a

    liberdade de ensino, entendida como liberdade de instituio de escolas,

    de acordo com o pluralismo educativo, e como liberdade de escolha

    dessas escolas. O direito que assiste aos pais de escolher a educao para

    os filhos , por conseguinte, um direito a escolher tambm as escolas que

    melhor satisfazem o projeto educativo que acalentam para os seus filhos.

    A liberdade pressupe pluralismo de escolhas, no condicionadas por

    mecanismos destorcedores de concorrncia. As famlias devem poder

    escolher livremente a escola para os seus filhos, sem serem condicionadas

    por razes de carcter econmico.

    O que significa que o Estado, se decide financiar o ensino, tornando-o

    gratuito, no o pode fazer inviabilizando esta liberdade de escolha,

    financiando apenas os estabelecimentos oficiais e obrigando quem opta

    pelos estabelecimentos particulares ou cooperativos a pagar propinas. O

    4 Parecer de 28 de Dezembro de 2009, citado por Manuel Braga da Cruz, Os dias da

    Universidade e outras intervenes, Lisboa, UC Editora, 2012, pp.98-99

  • dinheiro pblico dinheiro de todos os contribuintes e para todos, e no

    apenas para as escolas oficiais e para os seus alunos e professores. A

    igualdade de oportunidades obriga a que o Estado no discrimine os

    cidados, penalizando-os pela sua legtima opo de escola.

    Essa discriminao inaceitvel obriga alguns cidados, precisamente os

    que, em nome da liberdade de ensino que lhes assiste, exercitam o seu

    direito de opo, a pagar duas vezes a educao dos seus filhos, atravs

    dos impostos com que o estado financia a educao dos cidados, e

    atravs das propinas. Tal situao configura uma flagrante injustia social.

    A liberdade de ensino, reduzida a mera liberdade de instituio de

    estabelecimentos, no passa de mera tolerncia. A liberdade de ensino,

    como liberdade de escolha da escola e do projeto educativo para os filhos,

    obriga a uma igualdade de oportunidades, que se deve traduzir, no caso do

    financiamento pblico da educao, num financiamento a todos os

    estudantes ou a todas as famlias.

    4. O processo educativo um processo de avaliao e de classificao,

    no apenas de quem aprende mas tambm de quem ensina. um processo

    atravessado por isso por uma dinmica de competio. Ao Estado compete

    salvaguardar as regras em que essa competio se desenrola.

    A primeira regra da competio educativa a da equidade, ou igualdade

    de condies, o que implica a no-discriminao de instituies e de

    alunos no acesso educao que desejam.

    Se o Estado define, de acordo com a recomendao da Declarao

    Universal dos Direitos do Homem, a gratuitidade da educao obrigatria

    A educao deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino

    elementar fundamental. O ensino elementar obrigatrio (artigo 26, n1)

    -, no pode confinar essa gratuitidade apenas a algumas instituies ou a

    alguns alunos.

    Para que a emulao pela qualidade educativa seja equitativa o Estado no

    pode reservar para seu financiamento apenas as suas escolas, mas deve

    abranger com ele todas as escolas. essa a realidade j em vrios pases

    da Europa. Esse financiamento tanto pode ser feito s instituies, como

  • aos alunos e suas famlias, que pagam com esse financiamento (ou

    cheque-ensino) a educao das escolas.

    5. Infelizmente a nossa Constituio de 1976, fortemente influenciada

    pelos princpios do coletivismo socialista, atribua em 1976 esse dever e

    esse direito ao Estado, no n75.

    Ao Estado competia criar, dizia o n 1 desse artigo, uma rede de

    estabelecimentos oficiais de ensino que cubra as necessidades de toda a

    populao. Era o monoplio tendencial da educao em Portugal. O

    Estado admitia transitoriamente, e supletivamente, o ensino particular.

    Dizia o n2 do mesmo artigo: O Estado fiscaliza o ensino particular

    supletivo do ensino pblico.

    Na reviso constitucional de 1982 foi felizmente abandonada esta

    afirmao do primado do Estado e o carcter supletivo da iniciativa

    privada na educao, substituindo-se, no primeiro desses dois artigos, a

    designao estabelecimentos oficiais pela designao estabelecimentos

    pblicos, admitindo assim que a educao pblica possa ser prestada por

    estabelecimentos no oficiais, e introduzindo nela o direito de criao por

    todos de escolas particulares e cooperativas (artigo 43, n 4), e banindo,

    por conseguinte, da Constituio a conceo supletiva do ensino particular

    em relao ao Estado.

    A reviso Constitucional abriu, assim, o sistema de ensino portugus a

    uma parceria entre a sociedade e o estado, entre a iniciativa do Estado e a

    iniciativa da sociedade, mas sem ainda afirmar claramente o primado

    democrtico da famlia e da sociedade na educao bem como o caracter

    supletivo do Estado.

    Como sublinha Guilherme dOliveira Martins5, a Constituio, revista em

    1982, ao reconhecer no apenas o direito de ensinar e de aprender, por um

    lado, mas tambm o direito fundao de escolas particulares e

    cooperativas, por outro, consagra a liberdade de ensino como um direito

    5 Guilherme dOliveira Martins, Liberdade de aprender e de ensinar, in Liberdade e

    Compromisso. Estudos dedicados ao Prof. Mrio Pinto, vol. I, Lisboa, UC Editora, 2008, p.164

  • pessoal de todos aplicvel universalmente em toda a rede de educao e

    formao, que assim se constitui em rede de servio pblico de

    educao, servio pblico esse que no se confunde com servio

    estatal.

    Entender a obrigao constitucional de o Estado criar uma rede pblica de

    estabelecimentos que cubra todas as necessidades educativas da

    populao como sendo composta apenas por escolas do Estado, equivale a

    negar a existncia, a prazo, de escolas privadas, cuja criao por todos o

    artigo 43, 2 permite, e a recusar liminarmente a liberdade de ensino

    consignada no artigo 43 da Constituio.

    Sendo o ensino obrigatrio gratuito, o Estado tem assim a obrigao de

    subsidiar a educao, tanto ministrada nas escolas oficiais do Estado,

    como nas escolas particulares, mormente as que ministram o ensino

    obrigatrio. No o fazer, limitando-se a subsidiar as escolas estatais, para

    alm de expressamente ilegal, como o recorda Mrio Pinto6, desrespeita a

    liberdade de criao de escolas, a liberdade de funcionamento do sistema,

    acabando por apenas tolerar a iniciativa particular na educao.

    Para alm disso, tolerar o ensino privado apenas para quem tem

    possibilidade de pagar propinas, e obrigar quem no as pode pagar a

    frequentar o ensino estatal, constitui uma inaceitvel discriminao

    socioeconmica, indigna de um Estado democrtico, e configura uma

    grave injustia social.

    5. Apesar de a liberdade de ensino, como liberdade de instituio de

    escolas e como liberdade de escolha de escolas, ser um direito consagrado

    pela constituio a todos os portugueses, estamos, no entanto,

    confrontados em Portugal com a ausncia de plena liberdade de ensino, j

    que esta liberdade no apenas liberdade de criao de estabelecimentos,

    mas tambm liberdade de competio entre eles, s possvel em condies

    de igualdade, e liberdade de escolha por parte das famlias.

    6 In Observador de XI.2015

  • Ora esta liberdade est longe de estar conseguida em Portugal. As famlias

    no so livres de escolher a escola para os seus filhos, pois esto

    condicionadas pela desigualdade de custos da frequncia do ensino estatal

    e do ensino no estatal, que lesa essa liberdade de opo. Enquanto o

    primeiro gratuito, ou quase gratuito no superior, o segundo obrigado a

    cobrar as despesas reais. Desse modo, as escolas no concorrem

    livremente ente si, sendo assim lesada a liberdade e a lealdade da

    competio.

    Esta ausncia de liberdade e de concorrncia leal tambm um problema

    de justia social, como sublinhmos, porque discrimina com base no

    exerccio de um direito legitimamente exercido. Esta disparidade de

    condies, alm de injusta, tambm insustentvel pois poder provocar a

    prazo a impossibilidade de sobrevivncia da iniciativa privada e social no

    domnio da educao.

    6. Assistimos, infelizmente, a uma forte tendncia para a estatizao do

    ensino em Portugal, que contraria a liberdade de ensino consagrada na

    Constituio, e que pretende repor a supletividade do ensino privado em

    relao ao ensino estatal, como se assiste no atual debate sobre a supresso

    e reduo de contratos de associao.

    Demonstrao dessa tendncia o facto de o Estado ter vindo a colocar

    escolas e ofertas educativas desnecessariamente, onde anteriormente

    existiam iniciativas congneres privadas, esbanjando recursos nacionais,

    ou para as eliminar ou estabelecendo com elas uma concorrncia desleal

    pela desigualdade de propinas praticadas, e obrigando desse modo ao seu

    desaparecimento. E f-lo, por vezes, com a confessada inteno de vir a

    assumir sozinho a funo educativa.

    Noutros casos, o Estado prodigaliza exclusivamente s suas escolas apoios

    financeiros de tal grandeza, que recusa s demais escolas, inviabilizando a

    livre competio entre instituies, e proporcionando a instalao de um

    protecionismo monopolizador, que em nada favorece a preparao das

    instituies escolares portuguesas para a competio no espao europeu e

    internacional.

  • Este progressivo estrangulamento da iniciativa privada e social, numa rea

    de tamanha importncia econmica, social, e cultural, contraria, quer o

    esprito europeu, que fez seu o princpio de subsidiariedade, quer as

    orientaes da Unio Europeia, quer a doutrina social da Igreja.

    Alm disso, assistimos hoje a tentativas de reduo dos j poucos

    contratos de associao do Estado com escolas privadas, reduzindo, desse

    modo, a j pouca liberdade de escolha dos poucos que ainda a tinham,

    precisamente dos mais desfavorecidos, em vez de se avanar para a plena

    instaurao da liberdade de ensino.

    Tais contratos de associao, em lugar de serem entendidos como

    parcerias, como expresso, embora limitada, da liberdade de escolha, so

    encarados como expresso da supletividade do ensino privado em relao

    ao ensino pblico, banida da Constituio, e no como parte integrante

    dele.

    7. Portugal fez progressos assinalveis no campo da educao nas ltimas

    dcadas, com um enorme aumento das taxas de escolarizao. No entanto,

    estamos longe ainda de igualar as taxas dos pases mais desenvolvidos.

    As atuais necessidades de promoo da educao e de prossecuo de

    metas mais ambiciosas para educao em Portugal tornam urgente, entre

    ns, uma grande parceria entre a sociedade e o Estado.

    Ora existem entraves ao crescimento das taxas de escolarizao. Entre elas

    est, em primeiro lugar, a falta de crdito da educao junto das famlias e

    pais, que no sentem a necessidade de dar continuidade educao escolar

    dos filhos, preferindo a sua mais rpida e precoce entrada no mercado de

    trabalho. A deficiente articulao entre o sistema de ensino e o mercado de

    trabalho, com a consequente deficiente empregabilidade da escolaridade,

    bem demonstrada pelo particularmente elevado desemprego intelectual,

    repercute-se na procura escolar e explica em parte as, ainda baixas, taxas

    de escolarizao entre ns.

    fundamental aproximar a escola da sociedade, do mundo profissional e

    do mundo empresarial, de molde a garantir a melhor profissionalizao,

    formao para o emprego, empregabilidade das formaes. E isso pede

  • uma maior articulao com a sociedade, que a estadualizao do ensino

    no s no favorece como desincentiva.

    A crescente assuno de responsabilidades por parte do Estado na

    educao desresponsabilizou a sociedade das tarefas da educao. Nos

    pases de mais forte sociedade civil so frequentes as iniciativas sociais

    em prol do financiamento da educao, como a criao de fundaes

    destinadas a recolher e a oferecer bolsas de estudo e prmios escolares,

    para estudantes mais carenciados e de maior mrito. A sociedade tem um

    amplo papel a desempenhar na promoo do ensino e do mrito escolar. A

    sociedade precisa de ser chamada a exercer as suas responsabilidades,

    quer em termos de protagonismo quer em termos de financiamento.

    O modelo estatista na educao nasceu quando o Estado era o grande

    consumidor e beneficirio dos resultados da expanso educativa. Hoje, os

    alunos que se formam no se destinam nem exclusivamente nem

    sobretudo funo pblica, mas antes ao mundo do trabalho e das

    empresas, que devem por isso assumir tambm as responsabilidades da

    formao dos seus quadros e funcionrios.

    Impe-se, por conseguinte, uma parceria com a sociedade para a

    educao, que procure elevar as metas da educao em Portugal, tanto em

    termos quantitativos, como qualitativos. A batalha por melhores resultados

    no acesso escolarizao e no sucesso da escolaridade, requer uma

    especial mobilizao da sociedade e das famlias, de que exemplo a

    apontar, entre ns, a associao EPIS.

    E, com o incentivo da responsabilidade da sociedade, importa valorizar

    uma cultura de mecenato de educao em Portugal. A pouca que havia foi

    destruda pela crescente intromisso do Estado.

    urgente mobilizar a sociedade para a educao: pais e famlias tm

    estado demasiado afastados da educao. As famlias alheiam-se da

    educao. Muitos pretendem mesmo que a escola substitua a famlia na

    educao, o que mais contribui ainda para uma desvalorizao social da

    educao em muitos sectores da sociedade.

  • Para essa reorientao da escola para a sociedade, fundamental voltar a

    colocar no centro da escola o aluno, e fomentar a sua identidade

    comunitria.

    Temos vindo a assistir, com a crescente sindicalizao da escola,

    colocao do professor no centro da escola pblica. O prprio Ministrio

    da Educao se tem tornado numa imensa entidade patronal, absorvida

    primordialmente com negociaes com os professores. O recentrar da

    escola no aluno, mobilizar os professores para a formao de

    comunidades educativas, com cultura e projeto pedaggico prprios,

    reforando as identidades e a capacidade competitiva das escolas. E

    favorecer, seguramente, a emergncia de uma cultura de iniciativa e de

    inovao, o que s uma escola autnoma, aberta inovao e iniciativa

    da sociedade pode garantir cabalmente.

    Portugal precisa de uma escola livre e competitiva, para ter um sistema

    educativo aberto e internacionalmente competitivo, que contribua de

    forma decisiva para o seu desenvolvimento e para a sua afirmao

    internacional.

  • Cest tout ce domaine de limplicite que la philosophie de lducation a pour

    fonction dexpliciter, en dgageant les significations caches, le non-dit ou le non-

    peru qui environnent laction quotidienne. En dautres termes, si sa fonction

    pistmologique est dvaluer la validit des savoirs acquis sur lducation, sa

    fonction lucidatrice est didentifier les valeurs qui la promeuvent, de tirer au clair

    la vision de lHomme qui lanime et den apprcier la pertinence.2

    Da liberdade de ensinar, pode-se dizer, com um exagero menor do que se

    poderia supor, o que Agostinho de Hipona enuncia sobre o tempo: se

    ningum mo pergunta, sei o que ; mas se quero explic-lo, no sei3. Esta

    situao paradoxal revela tratar-se de uma expresso-umbela, de cariz

    filosfico, sem prejuzo da sua traduo jurdica, que comporta uma

    pluralidade de sentidos e de referentes, eventualmente, antinmicos, posta

    a funcionar de modo dialtico. Esse perfil, no menos do que a viabilidade

    da sua efetuao, requer o exerccio sistemtico da hermenutica e da

    crtica, com o objetivo de lidar com uma tal complexidade, bem como a

    sua permanente discusso, destinada a determinar as modalidades da sua

    operacionalizao em cada configurao contextual. Por sua vez, s

    perplexidades tericas, suscitadas pela anlise do conceito, associa-se um

    argumentrio epocal que lhe atribui significaes predominantes, como

    seja a atual confuso com a chamada liberdade de escolha, e lhe confere

    um aparato justificativo peculiar, de cariz liberal e naturalista.

    Este artigo pretende, por conseguinte, constituir um pequeno contributo

    para esse trabalho de desconstruo terica. A partir das trs perguntas

    1 Universidade Nova de Lisboa

    2 Guy Avanzini; Alain Mougniotte, Penser la philosophie de lducation Pourquoi ? Pour quoi?,

    Lyon, Chronique Sociale, 2012, p. 59.

    3 Santo Agostinho, Confisses, XI, XIV, 17, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, p.

    567.

  • indicadas no ttulo, as quais, pelo seu carcter direto, so de molde a

    facultar o acesso a algumas perplexidades fundamentais sobre o objeto da

    educao, o estatuto conferido aos intervenientes no processo educativo,

    as razes que justificam a ideia de uma variedade potencial de tipos de

    ensino e de aprendizagem, procuraremos suscitar uma reflexo sobre os

    limites conceptuais do princpio em causa, que, assim o esperamos, sirva

    sobretudo de mote para o debate em curso. Dado que se trata de uma

    liberdade determinada, isto , referida a um determinado tipo de ao, o

    ensino, realizada num contexto institucional particular, o sistema

    educativo, que se conjuga ou conflitua com outras liberdades, outros

    princpios e outros valores (liberdade de aprender, justia, formao, etc.),

    parece-nos adequado seguir a metodologia avanada por John Rawls,

    ainda que no nos sintamos, por isso, obrigados a perfilhar o conjunto das

    suas teses: A descrio geral de uma liberdade assume, pois, a seguinte

    forma: algum, uma ou mais pessoas, est livre (ou no) de uma restrio

    (ou conjunto de restries) de fazer (ou no fazer) alguma coisa. ()

    Deste ponto de vista, a liberdade uma determinada estrutura

    institucional, um sistema de regras pblicas que definem direitos e

    deveres.4

    Esta forma de equacionar a liberdade de ensino torna patente que,

    independentemente de outras relaes, ela se enquadra no mbito geral de

    uma teoria da justia, como equidade, cujo princpio afirma que algum

    tem a obrigao de fazer aquilo que lhe cabe, consoante o especificado

    pelas regras de uma instituio, sempre que tenha aceite voluntariamente

    benefcios da mesma [].5 No entanto, como salienta o autor, no se

    pode esquecer que o princpio de equidade tem duas partes, uma que

    indica como que contramos obrigaes, praticando voluntariamente

    certos atos, e outra que estabelece a condio de que a instituio em

    causa deve ser justa, seno de modo perfeito, pelo menos to justa quanto

    4 John Rawls, Uma Teoria da Justia, Lisboa, Presena, 2001, p. 168.

    5 Ibidem, pp. 267-268.

  • razovel esperar face a circunstncias concretas.6 Tal significa que,

    mesmo uma compreenso incipiente, no pode deixar de ter em conta esse

    duplo conjunto de condies, respeitantes tanto s aes dos indivduos

    que detm o atributo dessa liberdade (no caso vertente, aqueles a quem

    cabe ensinar, sejam eles pessoas ou instituies escolares), quanto

    funcionalidade do sistema educativo, as quais indiciam o grau de

    efetividade e de justeza do conceito de liberdade de ensino dentro de um

    contexto especfico, que o de uma educao democrtica.

    Como se poder depreender, uma boa parte da complexidade do conceito

    advm deste jogo necessrio entre planos, mais ou menos particulares,

    mais ou menos institucionais, mais ou menos subjetivos, mais ou menos

    normativos, na medida em que a elucidao do seu contedo no saberia

    prescindir daqueles fatores que constituem a problemtica geral da

    educao. Esta implicao decorre de se tratar de uma liberdade

    especfica, a liberdade de ensino. Mas, essa especificidade acarreta,

    igualmente, dois outros aspetos que reforam a sua dificuldade.

    Por um lado, o sistema educativo detm um lugar especial no conjunto dos

    sistemas sociais, pois, no s forma os futuros cidados que iro interagir,

    consolidando ou transformando esse campo institucional, como constitui a

    base dos outros sistemas, ao assegurar a transmisso dos conhecimentos e

    das normas de que o respetivo funcionamento depende, bem como ao

    veicular interpretaes dos mesmos, que assumem o duplo papel de

    valorizadoras de determinados bens, relativamente a outros que acabam

    desvalorizados, e de antecipadoras do agir futuro, de acordo com a sua

    dinmica injuntiva. Mas, sobretudo, por outro lado, nas sociedades

    modernas, de modo ao mesmo tempo constitutivo e estratgico, ao sistema

    educativo cabe a funo de possibilitar a alterao pacfica, isto , nem

    blica, nem revolucionria, do esquema das desigualdades vigentes, por

    via da mediao da educao tida pelo bem dos bens da modernidade, ou

    seja, de realizar, precoce e simbolicamente, um desgnio corretivo e

    compensatrio de justia social. Neste sentido, o sistema educativo no

    6 Ibidem, p. 268.

  • est adstrito apenas ao aspeto normativo da justia (honrar uma promessa,

    um estatuto, etc.), mas totalidade do que cabe nessa categoria,

    nomeadamente, ao aspeto interventivo da justia e a uma espcie de

    funo totalizadora que lhe confere o papel de mobilizadora da eticidade

    coletiva, em suma, lgal et le legal [] un principe de rpartition [],

    une forme de vie thique.7

    Consequentemente, e ao arrepio do que um certo liberalismo pretende, o

    sistema educativo no est comprometido apenas com a transmisso eficaz

    de um conhecimento utilitrio, em funo de um padro de eficcia,

    mensurvel por uma hipottica relao entre as aptides adquiridas e a sua

    aplicao na esfera laboral, mas encontra-se constitutivamente vinculado a

    um desgnio social e poltico de solidariedade, pelo qual o que tido por

    eficaz e o que se corresponde consensualmente ao justo se encontram

    conjugados. Essa a legitimao efetiva para a existncia de um sistema

    de ensino pblico e massificado. A transmisso do saber e do saber-fazer,

    enquanto tais, pode ser levada a cabo por outras vias, como ocorreu ao

    longo da histria, por exemplo, com o ensino familiar, religioso ou

    corporativo.

    Porm, importa no cair na tentao oposta, de um certo pragmatismo

    pedagogista, que o reconduzisse organizao de um processo direto de

    solidariedade, de acordo com o qual a dimenso da objetividade

    epistmica viesse to s a constituir um pretexto instrumental para a

    prtica de relaes intersubjetivas de mtuo reconhecimento. Pelo

    contrrio, das muitas funes atribuveis ao sistema educativo, uma tem de

    manter-se em todas as combinatrias, aquela que consiste em promover

    um determinado processo de aprendizagem. Ora, esta condicionante

    acarreta a consequncia de que a afirmao das vrias liberdades, e a luta

    pelo seu reconhecimento, no seio do sistema educativo, tem como tipo a

    relao de ensino e de aprendizagem. Sem prejuzo da relevncia que as

    expectativas legtimas de reconhecimento individual e coletivo detm no

    quadro de uma sociedade democrtica, o sistema educativo oferece-se

    7 Patrice Canivez, Quest-ce que laction politique ?, Paris, Vrin, 2013, p. 42.

  • como uma espcie de prisma, que as analisa e reorienta, a partir de

    critrios oriundos de uma racionalidade vocacionada para as objetivar e

    universalizar, retirando-lhes deliberadamente o aspeto paroquial e

    agonstico que apresentam partida. Por se tratar de uma arena

    qualificada, precisamente como educativa, apesar de conectada com todas

    as outras (o que cria a iluso de totalidade, na base da atribuio abusiva

    de uma nova srie de deveres que contradizem o preceito segundo o qual

    qualquer dever implica um poder,8o que alimenta a perceo disseminada

    de uma progressiva ineficcia e de uma crescente injustia do sistema

    educativo), no s aplica um princpio de aceitabilidade, como este resulta

    reconduzido, liminarmente e in fine, s condies prprias da prtica

    educativa. Podemos definir um tal princpio do seguinte modo: so

    aceitveis todas as expectativas de reconhecimento que se possam

    justificar nos termos da racionalidade educativa. Por conseguinte, mesmo

    que se seja tentado a concordar que if we could ever be moved solely by

    the desire of solidarity, setting aside the desire for objectivity altogether,

    then we should think of human progress as making it possible for human

    beings to do more interesting things and be more interesting people,9

    impe-se clarificar que essa verso do mundo no aquela que subjaz,

    alimenta e autoriza um sistema educativo que assume a figura de um

    sistema de ensino. Uma vez mais, a histria revela alternativas, sistemas

    iniciticos, de treino, de doutrinao, etc., pelo que se torna fundamental

    no perder de vista essa especificidade decorrente da ensinabilidade.

    O sistema de ensino constitui uma parte do conjunto dos processos

    educativos, que se caracteriza por levar a cabo, no seio de um quadro

    institucional especfico, designado globalmente como Escola, o desgnio

    de solidariedade por via da mediao da ordem disciplinar, na dupla

    aceo epistemolgica e tica, oriunda da modernidade. Por isso, ao

    sistema de ensino das sociedades modernas no cabe transmitir toda e

    qualquer viso da realidade, mas uma certa maneira de conhecer e de ser,

    8 John Rawls, op. cit., p. 193.

    9 Richard Rorty, Solidarity or Objectivity?, Michael Krauz (ed.), Relativism: Interpretation and

    Confrontation, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1989, p. 174.

  • que concomitante de uma leitura cientfica do mundo, a par da axiologia

    que atravessa o projeto inacabado da modernidade, como lhe chamou

    Habermas, na qual pontuam os valores concomitantes da liberdade,

    autonomia, pluralismo, tolerncia, dignidade, cidadania, cosmopolitismo,

    secularidade, etc.. Longe de lhe corresponder uma mera funo

    instrumental, o sistema de ensino inclui e veicula, uma filosofia poltica da

    educao, 10 que dobra a sua realidade emprica com consideraes

    deontolgicas, sobre o que legtimo e o que ilegtimo, o que

    desejvel e o que se afigura indesejvel. Esta filosofia pressupe, assim,

    uma dialtica de fundo, entre objetividade e solidariedade, entre

    transmisso e ao, entre saber e justia, que pode obter a seguinte

    formulao: merece ser ensinado (conhecimentos, atitudes, hbitos,

    valores, regras) o que permite, ao mesmo tempo, legitimar a solidariedade,

    por via de critrios associados ideia da objetividade, e autorizar o

    conhecimento, pelo entremeio do efeito esperado em termos de

    solidariedade.

    Deste modo, se cabe reconhecer que um sistema de ensino pblico e

    universal encontra a sua verdadeira legitimidade num desgnio coletivo de

    solidariedade, no deixa igualmente de ser adequado reconhecer que essa

    finalidade se encontra regulada por exigncias racionais, plasmadas no

    tipo de conhecimento veiculado. Tal deve-se ao facto de que a

    solidariedade, por mais genrica ou universal que se proponha ser, como

    o caso da sua traduo em direitos, se dirige sempre a situaes

    particulares e a exigncias especficas, diferenciadas, ainda quando o

    objetivo seja igualitrio, logo, sempre marcadas por uma validade

    circunscrita, enquanto o conhecimento objetivo (experiencial, filosfico,

    cientfico, literrio, o campo no importa desde que o tipo de

    racionalidade esteja em ao) julgado comum, partilhvel,

    universalizvel, falsificvel, transponvel para uma multiplicidade de

    situaes, desse modo igualador, apesar de diferenciado.

    10 Cf. Marie-Claude Blais et al., Pour une philosophie politique de lducation, Paris,

    Fayard/Pluriel, 2013.

  • No obstante, seria inadequado considerar que os dois elementos, nesta

    equao, esto a par, como se o sistema de ensino cumprisse duas funes,

    numa complementaridade relativa, mas no convergente. Pelo contrrio,

    se a transmisso que prevalece na prtica, na medida em que a equidade

    pensada como dependente do sucesso dessa comunicao, a

    solidariedade que est constantemente a ser visada, uma vez que o que

    est em causa a construo do humano, no uma solidariedade orientada

    para a consagrao da matriz cultural comunitria de base (etnocentrismo

    que, segundo Rorty, seria apangio do pragmatist, dominated by the

    desire for solidarity11) ou da organizao socio-laboral dominante (tese

    dos liberais), mas para a promoo da emergncia de uma humanidade

    menos carenciada, menos insatisfeita, menos sujeita aos efeitos da

    injustia, numa palavra, menos limitada na tentativa de dar um sentido

    sua existncia, seja por via do trabalho, do exerccio da cidadania, do lazer

    ou de outro modo de realizao pessoal. Como sugere Fernando Savater,

    o destino de cada ser humano no a cultura, nem sequer a sociedade,

    em sentido restrito, enquanto instituio, mas os seus semelhantes. E

    precisamente a lio fundamental da educao apenas pode corroborar

    este ponto bsico e deve partir dele para transmitir os saberes

    humanamente relevantes.12

    Assim, por mais que queira estabelecer um vnculo dominante a um grupo

    particular, qualquer sistema de ensino induz um exerccio de distanciao

    que equivale a um princpio de libertao desse elo, razo pela qual, por

    exemplo, se gera, no seio das ditaduras mais ferozes, um nmero crescente

    de contestatrios. Do mesmo modo, a convico de que o ensino visa a

    satisfao das exigncias do mercado de trabalho ignora quer a

    incomensurabilidade entre o percurso formativo e o que deste

    aproveitado pela organizao laboral, indicador claro de que o sistema

    educativo prev uma srie de outras aplicaes, quer, sobretudo, que o

    trabalho s se justifica pelo homem e para o homem, enquanto a

    11 Richard Rorty, art. cit., p. 177.

    12 Fernando Savater, O Valor de Educao, Lisboa, Presena, 1997, p. 29.

  • transformao da natureza fsica ou social tem na mira melhorar

    significativamente a vida.

    Longe de uma relao puramente instrumental, unvoca, dos requisitos do

    mercado para a oferta curricular, a ligao entre o sistema de ensino e a

    esfera laboral consigna o entrosamento exposto da objetividade e da

    solidariedade, uma vez que a gesto dos contedos partilhados, mesmo

    quando no se afigura percetvel, combina as competncias tcnicas e

    investigativas, destinadas eficcia, com uma interpretao tico-

    antropolgica do modo de exerc-las, em conformidade com um

    complexo de valores humanistas que visam viabilizar um incremento

    sustentado dos nveis de justia. Bem compreendida, a leitura cientfica da

    realidade, e, consequentemente, o tipo de conhecimento a que conduz,

    obtm o seu sucesso, menos dos fatores negativos que passaram a ser

    lugares-comuns da crtica da razo objetiva reificao, mecanizao,

    utilitarismo cego -, do que das possibilidades que encerra de integrar

    teoria e produo num projeto poltico de uma humanidade dotada das

    condies necessrias mesmo que no suficientes, como se tem

    sucessivamente tornado evidente para realizar a satisfao das

    expectativas legtimas de uma coexistncia equitativa.

    O sistema de finalidades, que esta forma de equidade, projetada, mais do

    que respeitosa, criativa, mais do que estatutria, institui, desloca, por

    conseguinte, o foco da liberdade de ensino da afirmao do que, nela,

    respeita liberdade, para a zona do que cabe ao ensino, gerando uma

    esfera de necessidade que se impe prpria liberdade. Em consequncia,

    as condies do exerccio dessa liberdade no se esgotam no cumprimento

    das obrigaes legais ou estatutrias, qualquer que seja o agente

    educativo, sem prejuzo, obviamente, de haver correlaes diferenciadas

    em funo do tipo de detentores dessa prerrogativa (instituies, grupos de

    docncia, funcionrios), mas dependem das peculiaridades da atividade

    educativa, enquanto tal, em particular, do que nela envolve a conciliao

    das duas dimenses evidenciadas, quer na procura, por parte das geraes

    antecedentes, de obter liberdades semelhantes para os seus

  • descendentes,13 quer, sobretudo, na generosidade para partilhar modos de

    construir mundos, na suposio de que as geraes seguintes tero, assim,

    acesso a liberdades superiores e a padres de justia mais elevados do que

    aqueles que couberam aos educadores.

    Ora, por um lado, este tipo de intencionalidade, faz, claramente, parte de

    uma prtica de promessa, como forma de assuno livre de uma

    obrigao, 14 que, como decorre do exposto, ainda que realizada por

    indivduos, institucional e coletiva, o que leva a que haja um esquema de

    mtuas restries da liberdade de ensino, determinado, em maior ou

    menor grau, por uma orientao funcional, relativa coeso do sistema

    educativo e s finalidades para as quais se encontra institudo. Dessa feita,

    ainda que o que se compreende por liberdade de ensino, as diferentes

    verses do que aceitvel, como justo, e do que no o pode ser, como

    injusto, no que respeita ao seu exerccio e s respetivas restries, sejam,

    em parte, como tudo o que humano, historicamente transitivas, variando

    segundo os contextos, em funo das possibilidades que estes viabilizam

    de negociao dos interesses e dos significados, de supor a existncia de

    um conjunto de condies limite, s parcialmente transitivo, que, no s

    condiciona todo o processo, como subverte a possibilidade de uma

    aplicao literal da regra rawlsiana da prioridade, segundo a qual os

    princpios da justia devem ser hierarquizados em ordem lexical, e

    portanto, a liberdade s pode ser restringida se tal for para o bem da

    prpria liberdade,15 no que respeita liberdade de ensino.

    Tal implica, por um lado, que a explicitao do conceito de liberdade de

    ensino deve comear por responder pergunta relativa s circunstncias

    em que a liberdade se encontra favorecida ou restringida, para poder dar

    uma resposta satisfatria pergunta sobre quem detm ou merece deter

    uma tal liberdade. D-se, assim, uma espcie de sobredeterminao do que

    cabe compreender por liberdade de ensino pelas condies fundamentais

    13 John Rawls, op. cit., p. 172.

    14 John Rawls, op. cit., p. 271.

    15 John Rawls, op. cit., p. 203.

  • de um sistema pblico de ensino. Consequentemente, o que se afigura

    decisivo o que se conseguir apurar sobre os limites da liberdade de

    ensino, definidos a partir da conceo de ensino em conformidade com

    uma sociedade democrtica, que, h que relev-lo, no s confere um

    contedo a essa liberdade, como, e antes de mais, a converte num seu

    requisito fundamental, ao invs de outras conjunturas histricas nas quais

    passa por secundria, seno mesmo despicienda.

    Este complexo de condies transcendentais, com as quais nos propomos

    analisar a noo de liberdade de ensino, no resulta, portanto, de uma

    qualquer considerao apriorstica sobre a natureza humana ou sobre o

    sentido metafsico da axiologia educacional ou mesmo sobre uma

    teleologia progressiva ou conservadora, com a qual a educao estivesse

    comprometida, mas decorre da prpria ideia moderna, e logo intra-

    histrica, de um sistema educativo moderno, democrtico e universal,

    aquele no seio do qual faz verdadeiramente sentido pensar em tal

    liberdade. Ora, como vimos, estas condies esto balizadas por trs

    categorias fundamentais, conhecimento, justia e democraticidade, que

    devero ser conjugadas de diferentes pontos de vista, mas que no

    podero, sem prejuzo de coerncia e, logo, de significao, estar ausentes

    de uma adequada discusso de qualquer questo relativa ao sistema de

    ensino. So estas categorias que devem ser correlacionadas com a da

    liberdade tendo em vista o esclarecimento dos paradoxos associados

    expresso liberdade de ensino.

    Impe-se insistir, nesta etapa, que estamos a apontar uma forma de

    interao mutuamente constitutiva, no a descrever um estado de coisas tal

    como este se apresenta na concreo emprica, inevitavelmente mais ou

    menos prxima dessa transcendentalidade, hoje, ao que tudo indica, por

    uma espcie de irreflexo generalizada, facilmente disposta a ignorar este

    equilbrio. Mas um dos interesses terico-prticos, a nosso ver, no

    despiciendo, dum tal desenho ideal, para alm da anlise do conceito de

    liberdade de ensino que admite, reside no modo como nos d a ver o limite

    at ao qual a ideia moderna de um sistema de ensino universal mantm o

    seu horizonte de sentido intacto e aquele a partir do qual acaba por perd-

  • lo, de forma a compor um critrio decisivo, de cariz dialtico, em funo

    do cruzamento dos trs termos - cumprimento, objetividade e

    solidariedade -, cada um com exigncias especficas, do que cabe em tal

    projeto e do que se oferece como uma sua eventual negao. Pela

    articulao dos dois tipos ideais, relativos aos dois termos, o de uma

    liberdade como ausncia total de restries e/ou atributo absoluto de um

    sujeito, o de uma ao educativa, responsabilizada pelo objetivo de

    ensinar, como condio, universo e sentido dessa liberdade, dever ocorrer

    uma espcie de mtuo esclarecimento sobre as razes que justificam que a

    liberdade seja uma condio constitutiva do ensino, pertencendo-lhe to

    intimamente que nele encontra o verdadeiro sistema de restries que a

    tornam operativa na concreo do agir.

    Por sua vez, deslocado o centro da explicao da liberdade da questo da

    sua posse, por parte de determinados agentes que, dessa feita, adquiririam,

    liminarmente, o atributo da emancipao discricionria, para a zona do

    que cabe fazer com uma tal autonomia e das restries que o dever de

    ensinar insinua, torna-se vivel enfrentar a diferena entre a liberdade

    como atributo genrico daqueles que tm a tarefa de ensinar, sem a qual

    no poderiam exercer essa atividade de modo efetivo, definida

    positivamente, e a liberdade como compromisso com as finalidades do

    ensino, definida negativamente, a partir daquelas marcas fronteirias, para

    l das quais a autonomia deixa de poder ser atribuda, no em virtude de

    qualquer desgnio transcendente ou deliberao plenipotenciria, mas to-

    s porque uma liberdade de ensinar que obsta ao ensino perde a

    autorizao inaugural por improcedncia.

    Este questionamento, a nosso ver decisivo, em torno do arco que se

    desenha entre a liberdade de partida, a sua sujeio ao crivo dos valores

    que norteiam o sistema educativo, e os consequentes processos de

    justificao, legitimao e autorizao do exerccio de uma autonomia

    intrinsecamente condicionada pela intencionalidade do agir a que est

    adstrita, requer que as trs perguntas, implcitas no mtodo de elucidao

    do conceito de liberdade, proposto por Rawls (quem? de qu? at que

    ponto?) sejam conjugadas com outras trs, relativas sua mtua

  • implicao com o ensino: liberdade de ensinar o qu, a quem, porqu?

    Uma breve advertncia metodolgica: estas perguntas no so de resposta

    direta ou unvoca. Pelo contrrio, destinam-se a operar como indutoras de

    uma perspetiva dialtica que esteie as opes de fundo sobre o que cabe

    entender por liberdade, ensino, aprendizagem, igualdade, equidade,

    justia, democracia, num exerccio crtico, pelo qual as teses propaladas

    no assumam o aspeto doutrinrio to frequente em matrias de poltica da

    educao.

    A expresso liberdade de ensino pode referir-se a diferentes situaes,

    atribuir-se a diferentes agentes e corresponder a diferentes entendimentos

    do conceito de liberdade. Esta diversidade deve ser tida em conta, mesmo

    numa compreenso que esteja focada num s dos sentidos, como tende a

    ser o caso na reconduo atual da liberdade de ensino liberdade de

    escolha do sector, pblico ou privado, ao qual pertencem os

    estabelecimentos de ensino, pois essas diferentes acees esto

    interligadas, levando, assim, a um mtuo esclarecimento. Essa variedade

    pode ser alinhada em duas orientaes principais, consoante se trate da

    liberdade de levar a cabo uma atividade de ensino ou da liberdade como

    condio para o exerccio dessa atividade.

    A primeira esfera de significaes assenta na educabilidade do humano.

    No sentido mais fundamental, ainda que mais genrico, a liberdade de

    ensino resulta da necessidade antropolgica de que o homem seja educado

    pelos outros homens, como to bem formalizou Kant, o que converte

    todos em potenciais ou efetivos educadores, num processo infinito de

    educao recproca. Nesta perspetiva, a liberdade de ensino traduz a

    evidncia de que, se todos educamos, tal equivalente, in extremis, a uma

    espcie de liberdade absoluta medida dessa responsabilidade, tambm

    ela absoluta, e, por conseguinte, que todos temos de possuir uma certa

    margem de operao para cumprirmos esse desgnio inevitvel. Por

    estabelecer uma liberdade universal, ainda que abstrata e indeterminada, a

    qual requer, ao mesmo tempo, a sua concretizao, na medida em que

    educar nunca um termo neutro, mas resulta sempre qualificado (educar

  • desta ou daquela maneira, para este ou aquele fim, de modo a formar este

    ou aquele homem), constitui o verdadeiro princpio das formas mais

    especificadas, pelas quais se tem reconhecido, ao longo da histria, a

    admissibilidade de ofertas educativas institucionalmente diferenciadas. ,

    antes de mais, por se reconhecer que a educao, abarcando uma

    pluralidade de processos, se pode realizar de diferentes maneiras, por

    diferentes indivduos e instituies, sem prejuzo a priori para a

    construo do humano, que se justifica a liberdade de propor e seguir

    caminhos diversificados.

    Nesta admisso de uma liberdade fundamental de educar, da qual a

    liberdade de ensino constitui uma feio, pesa, igualmente, a percepo de

    que, como lembram Avanzini e Mougniotte, il sagit toujours dune

    activit alatoire car la pertinence de linvention nest jamais garantie ni

    dfinitivement tablie.16 No que respeita especificamente liberdade de

    ensino, por se tratar de um processo educativo mais formalizado, este

    princpio de incerteza no se esvai, sendo mesmo de admitir que se

    agudiza, em funo da equao que se estabelece entre o que projetado,

    as condies nas quais esse planeamento se pode realizar e o que se

    concretiza. Porquanto a ideia de ensino supe condies de um tipo

    particular para a sua efetuao, as quais, em parte, resultam do que

    tacitamente se julga ser conveniente em matria educativa, em parte,

    advm da relao pedaggica, nomeadamente da margem de

    subjetividade, de imprevisibilidade e de autonomia que esta requer; em

    parte, resultam da sua inscrio na dinmica de reproduo social, dado

    que o ensino constitui um dos principais processos de transmisso de um

    estado de coisas tido por desejvel; em parte, ocorrem como efeitos da

    retroao inerente a uma atividade que no se limita a reproduzir

    cegamente padres institudos, mas tem o poder de produzir realidade; em

    parte, espelham a dimenso utpica que atravessa qualquer projeto

    educativo; em parte, brotam da margem de falibilidade que se impe em

    matria de metodologias de ensino e de aprendizagem; em parte,

    16 Guy Avanzini; Alain Mougniotte, op. cit., p.73.

  • dependem da orientao do ensino para a construo de alteridades,

    torna-se evidente que nenhuma frmula pode aspirar ao estatuto de

    exclusividade.

    Na consagrao da liberdade de ensinos est, assim, contemplada a

    liberdade de experimentao, num campo em que, no s diferentes

    solues parecem viveis, como no se pode atribuir a nenhuma uma

    legitimidade total. O modo como se valoriza e se estende a liberdade de

    ensinos, entendida como oferta de diferentes modelos para o mesmo tipo

    de ensino (essa variedade existe sempre em funo dos nveis, dos

    objetivos, dos mbitos, etc.), depende, por conseguinte, do grau de

    conscincia dessa espcie de falibilidade constitutiva, do maior ou menor

    consenso sobre o impacto do ensino na educao e da margem conferida

    iniciativa individual na gesto de uma tal circunstncia (razo pela qual se

    afigura mais consentnea com regimes democrticos e contextos de crise).

    Por sua vez, na medida em que o sistema de ensino constitui uma forma de

    solidariedade, quer por via de uma distribuio justa, isto , igualmente

    acessvel a todos, desse bem tido como indispensvel coexistncia digna

    numa sociedade do conhecimento e do poder simblico que confere, quer

    mediante uma sua distribuio equitativa, atenta aos casos excecionais,

    que requerem o exerccio de uma justia compensatria, e, muito

    particularmente, s desigualdades que, a contra sensu, so produzidas no

    seu interior, como efeito tanto do pendor para a reproduo das

    desigualdades de partida, quanto da propenso para potenci-las com a

    sobrevalorizao do esquema de seleo e progresso meritocrtico, a

    liberdade de ensinos encontra nesse desgnio o seu outro fundamento.

    Dessa feita, torna-se aceitvel, seno mesmo desejvel, uma certa

    diferenciao da oferta curricular, uma variedade de instituies, uma

    pluralidade de percursos e perfis de escolaridade, em funo dessa

    supletividade.

    Duas condies se impem imediatamente para o exerccio dessa

    liberdade de oferta. Por um lado, ela no deve alhear-se do propsito de

    redistribuio do poder simblico por via da transmisso de certos

    conhecimentos, prticas, atitudes, hbitos, que constituem o objeto de

  • ensino, fosse por alienar essa dimenso at ao ponto em que ela perdesse

    toda a efetividade, fosse por pretender, liminar e institucionalmente,

    desvincular o ensino do carcter de ensinabilidade, a favor, por exemplo,

    de uma mera funo adestradora, doutrinria, ou ldica. Por outro lado, ela

    no pode ser invocada para extremar desigualdades ou obstar

    igualizao visada, transformando o que h de solidrio nas polticas de

    discriminao positiva numa gesto lenitiva das assimetrias, dessa feita,

    consideradas naturais e insuperveis. A liberdade de ensinos no pode

    servir nem para negar o ensino queles que algum cr estarem

    desprovidos de capacitao ou de interesse suficiente para seguirem o

    processo, nem para ensinar apenas aqueles aos quais se atribui a priori

    uma dotao para a aprendizagem ou uma condio social indutora de

    sucesso futuro.

    Em suma, a liberdade de ensinos encontra a sua razo no modo como

    contribui para responder a alguns impasses inerentes ao prprio ensino,

    ensinabilidade, na dupla aceo do direito ao ensino e da qualidade do

    processo de ensino e de aprendizagem, ao equilbrio entre meritocracia,

    igualdade e equidade. Outros fatores podem servir conjunturalmente para

    justific-la, mas so sempre extrnsecos prpria ideia de liberdade de

    ensino, o que significa que no constituem razo suficiente, nem

    explicao verdadeiramente satisfatria para o facto de haver uma

    liberdade e um poder de propor ensinos curricularmente diferenciados

    e/ou ajustados a algumas particularidades (necessidades especiais,

    desigualdades impeditivas do acesso ao mesmo patrimnio cultural, nas

    mesmas condies pedaggicas, convices ideolgicas, pedaggicas,

    religiosas, etc.). A lgica da justificao vai, assim, do sistema educativo,

    enquanto sistema de ensino, para as outras ordens de legitimao. O

    problema equacionado na perspetiva inversa no s implica a sujeio do

    sistema de ensino a questes que o ultrapassam, como acaba por

    esvazi-lo do seu propsito e do papel que lhe cabe nas sociedades

    modernas, como sucede quando se olha para a Escola como um lugar para

    tudo e para nada, porque sujeita a todo o tipo de exigncias e de

    expectativas menos a de ensinar e, consequentemente, de levar a aprender.

  • Desde logo, fundamental que no se confunda o que cabe ao sistema

    educativo como desgnio e o que lhe compete como ao, pois, sem

    prejuzo da sua extraordinria relevncia, no pode ser tido como o lugar

    exclusivo da educao, da igualizao e da equidade, nem cabe julgar que

    a liberdade de ensinos constitui uma nova panaceia. Se o sistema

    educativo, como qualquer sistema institucional, est obrigado a prticas

    que sejam percecionadas como justas pelos seus atores e pela sociedade

    em geral, relativamente sua esfera de atuao, o sistema educativo

    escolarizado, perante estes trs processos, no s tem uma funo

    preparatria, como, para que a leve a cabo, dever manter-se ao abrigo de

    uma sobre responsabilizao, por parte de uma sociedade que, nas outras

    arenas, aceita, cada vez mais, uma ideologia da concorrncia pela

    concorrncia e da luta de todos contra todos pela obteno dos bens

    mercantis e das posies socialmente mais valorizadas. Sobretudo, a

    liberdade de ensinos, no pode servir de pretexto para a criao ideolgica

    de uma zona onde a aprendizagem e a justia tm de ocorrer de forma

    direta e imediata, para que, depois ou noutras instncias, no se tenha de

    lidar com ela. Ensino, aprendizagem, igualizao, equidade so processos

    globais e coletivos que importa ver cada vez mais concretizados, em todos

    os mbitos da vida comum, mas que s podem ser entendidos como

    realizveis mecanicamente se forem alvo de um emagrecimento extremo

    dos fatores que os compem. A Escola dever-se- nortear por princpios e

    prticas de justia na medida em que constitui o laboratrio de uma

    sociedade mais justa, por via do desenvolvimento da dimenso simblica,

    em detrimento, portanto, da violncia do estado de natureza. Mas essa

    aposta s pode assumir o carcter de um ensaio, no qual se vai testando

    uma forma de igualizao por via do que Connell designou como a justia

    curricular,17 cujo tipo s pode ser a mtua aproximao que ocorre pela

    relao de ensino e de aprendizagem, a qual no anula propriamente as

    diferenas, mas sobreleva-as em proporo do modo como cada um se

    posiciona perante o terceiro termo que o conhecimento. A

    17 Apud Carlos Estvo, Polticas e Valores em Educao, Vila Nova de Famalico, Hmus, 2012,

    p. 278.

  • responsabilidade do ensino est em garantir que um tal tipo

    compreendido como tal.

    Neste sentido, a liberdade de ensinos encontra a sua legitimao na

    maneira como enriquece esse projeto comum, pela instaurao de

    processos pedaggicos destinados a melhor concretizar essas que so

    ideias reguladoras do sistema educativo, desejadas e desejveis por uma

    poltica educativa racional, nunca numa qualquer forma de gerar a iluso

    de que tais ideias j se encontram realizadas, desde que esteja instalada

    uma certa verso da liberdade de ensinos. que, por mais que uma tal

    liberdade de oferta contribusse para aumentar o nvel de justia, haveria

    ainda que acautelar duas situaes. Por um lado, no cabe ignorar a

    afirmao de Aristteles de que s pode haver justia plena entre iguais, a

    qual poder ser lida, no tanto como a expresso de um elitismo, quanto

    como a indicao de que at se atingir a igualdade h sempre uma certa

    injustia. Transposto para o sistema educativo, porquanto nele a justia

    est em processo de formao, seria contraditrio esperar que fosse nele

    que ela se estabelecesse de uma vez por toda. Por outro lado, esta aparente

    fragilidade , contudo, a sua maior fora, mormente do ponto de vista da

    autonomia requerida por uma sociedade democrtica, uma vez que se

    oferece como impeditiva da imposio doutrinria de uma certa viso da

    realidade como um bem definitivo identificado justia que acabasse por

    coartar a liberdade dos aprendizes de projetarem as suas verses do que

    deve entrar no conceito de uma vida justa. O mesmo vale, alis, para a

    transmisso do conhecimento, pois o que relevante no que se ensine

    tudo o que h para aprender, mas que se garanta a possibilidade de uma

    aprendizagem sucessiva e consequente. A liberdade de ensinos s pode ir

    buscar a sua autorizao necessidade de garantir a liberdade de

    aprendizagens, incluindo a da justia, mas uma tal liberdade dever ser

    tida por fortemente processual e fracamente substantiva, para que a

    substancialidade no impea a construo da autonomia alheia.

    Do mesmo modo, torna-se percetvel que a liberdade de ensinos no

    coincide com a distino entre pblico e privado, mesmo quando tal corte

    entre dois sectores de interveno, o do Estado e o da sociedade civil,

  • entre os quais se atribu uma espcie de relao agonstica, se possa

    afigurar contextualmente relevante ou seja incentivado pelas teorias de

    cariz liberal. Com efeito, no s possvel conceber diferentes ofertas

    num mesmo sector, pblico ou privado, como, sobretudo, o bem que cabe

    compartilhar comum e, logo, transversal a tal diferenciao. Se uma

    igualizao formal e uniformizadora no permite repor devidamente uma

    distribuio equitativa, uma diferenciao excessiva e autorizada de modo

    tautolgico s pode levar a uma progressiva acentuao das

    desigualdades, transformando o sistema educativo num mero sancionador

    do statu quo, tomando como inevitveis as fontes de injustia que tem

    como uma das suas finalidades contribuir para reparar. A alternativa no

    corresponderia a uma gesto da liberdade de ensino por via da sua

    especificao numa liberdade de oferta de ensinos, mas a um

    seccionamento dessa oferta em modos privativos. Assim, o que se afigura

    filosoficamente decisivo no escolher, em primeira instncia, entre

    estatismo e privatismo, mas como que se consegue organizar da melhor

    forma a partilha dessa coisa comum que a educao, sem prejuzo da

    evidncia de que o Estado, se entendido e vivido como a organizao

    poltica da sociedade, possu condies privilegiadas para promover uma

    gesto sensata da liberdade de ensinos, ou que a educao um bem

    demasiado precioso para ser entregue a uma improvvel regulao dos

    mercados.

    Na verdade, seja mais do foro do Estado ou da competncia duma rede

    escolar privada, sempre de servio pblico que se trata. Charles Taylor

    aponta a existncia de dois eixos semnticos principais, segundo os quais

    se utiliza o termo pblico. O primeiro associa pblico quilo que afeta a

    comunidade inteira (assuntos pblicos) ou a gesto deles (autoridade

    pblica). O segundo faz da publicidade uma questo de acesso (este

    parque est aberto ao pblico) ou de aparecimento (as notcias

    tornaram-se pblicas). 18 Ora, ambos os sentidos esto diretamente

    relacionados com a educao moderna universal e democrtica, que, por

    18 Charles Taylor, Imaginrios Sociais Modernos, Lisboa, Edies Texto & Grafia, 2010, p. 105.

  • isso, passe o aparente paradoxo, mesmo quando levada a cabo por

    instituies privadas, do ponto de vista jurdico, sempre pblica, ficando,

    assim, sob a alada quer do direito pblico, quer da autoridade poltica e

    do controle administrativo do Estado. Enquanto a educao, levada a cabo

    por um sistema educativo tal como o descrevemos neste artigo, for

    percecionada como um bem comum, ela s poder ser pblica. A

    responsabilidade que compete ao Estado, enquanto curador da res pblica

    e definidor do que seja servio pblico, ainda que se viesse a traduzir na

    escolha da entrega do ensino a instituies privadas, no saberia, portanto,

    ser contestada, salvo se se enveredasse por argumentos elitistas, sectrios,

    parciais, resultando, inevitavelmente, num Estado mais autoritrio, porque

    menos democrtico, ou num sociedade mais injusta, violenta e sediciosa,

    por negar o acesso equitativo de todos a um tal direito.

    Importa, neste caso, ter presente que, em matria de ensino, se pode

    esperar que o Estado tenha uma atuao mais racional e, eventualmente,

    menos intrusiva no que os particulares consigam realizar de motu proprio,

    como se tende a pensar na atualidade, mas essa orientao no pode

    significar nem a demisso do Estado, nem a substituio do servio

    pblico, por uma prestao de servios privados. Para alm do mais, a

    razo para que se pondere uma reduo do papel do Estado na esfera

    educativa s pode ser a de que o sector privado assuma algumas das suas

    prerrogativas, tomando, assim, a seu cargo algumas funes associadas ao

    servio pblico. Passe, mais uma vez, o paradoxo, se se pretender pugnar

    pela partilha do sistema de ensino entre Estado e privados, a frmula no

    pode ser menos Estado, mais iniciativa privada, mas menos

    privativismo, mais servio pblico, no que respeita a instituies do foro

    privado. Consequentemente, se Taylor tem fundamento para considerar

    que, porquanto na idade democrtica, identificamo-nos como agentes

    livres [] pode, pois, surgir, uma questo relativa ao Estado moderno,

    para a qual no existe analogia na maioria das formas pr-modernas: para

    que/quem o Estado? Para a liberdade de quem? Para a expresso de

  • quem?19, o mesmo leque de questes passa a ter cabimento, dirigido

    iniciativa privada, em virtude da relao intrnseca do sistema de ensino

    com o servio pblico.

    Em suma, ao determinar o tipo de procedimento que congrega instituies

    estatais e privadas, vocacionadas para o ensino, o conceito de servio

    pblico articula-se com aqueles que temos vindo a apresentar como

    constituintes de uma efetiva legitimao da liberdade de ensinos,

    estabelecendo, outrossim, um critrio decisivo para enquadrar, delimitar e

    concretizar, de modo pleno, que no arbitrrio ou indiscriminado, o

    exerccio dessa liberdade.

    O mesmo j no acontece com aquela que avanada, por muitos, como a

    razo principal para a liberdade de ensinos: a liberdade de escolha. Esta,

    ainda que fundamental, mormente por constituir a base da prpria

    representatividade democrtica, j que na base da eleio est um ato de

    escolha, afigura-se, desde logo, demasiado genrica para servir de

    justificao a uma liberdade to qualificada e delimitada como a liberdade

    de ensino. Com efeito, tambm a ela se aplica o jogo entre possibilidade e

    poder, eventualmente, com maior peso, na medida em que, para evitar a

    manifesta tautologia resultante da associao do ato de escolher e da

    possibilidade de escolher, se impe sujeit-la a um conjunto de perguntas:

    quem escolhe, em que condies escolhe, como escolhe, por que motivos

    escolhe, em nome de quem, o que cabe escolher, etc.? Consequentemente,

    ao invs do que algumas posies de cariz liberal supem, no h uma

    relao direta entre a possibilidade de escolher e o poder de escolher,

    salvo se a expresso for entendida como um pleonasmo, o que equivale a

    no enunciar uma certa liberdade, mas apenas a afirmar a importncia da

    liberdade, no que concerne ao humano. Tambm no se d uma correlao

    imediata entre a existncia de diferentes ofertas e o poder de escolha, seja

    este equivalente capacidade pessoal de escolher ou existncia das

    condies necessrias e/ou suficientes para levar a cabo a escolha.

    19 Charles Taylor, Op. cit., p. 183.

  • No que respeita relao entre a liberdade de escolha e a liberdade de

    ensino o esquema de correspondncias oferece-se muito complexo,

    porquanto no se trata nem de uma diversidade de oferta, em geral, mas,

    como temos discutido, de uma oferta de ensinos, no seio de um sistema

    moderno, universal, democrtico e secular de ensino, nem de uma escolha,

    em geral, mas de uma escolha do tipo mais adequado de formao, na

    sequncia de um exerccio de discusso e ponderao coletiva. Ora, em

    tais circunstncias, mesmo que exista uma variedade de ofertas educativas,

    o que, como expusemos, no pode ser confundido com a existncia de

    vrios tipos de estabelecimento escolar, a liberdade de escolha encontra-se

    facilmente reduzida ou mistificada, em funo do modo como se articulam

    os contedos correspondentes s vrias perguntas acima formuladas. Sem

    dvida que a existncia das condies para a possibilidade de escolher

    consagra o princpio de pluralidade que contribui para uma verso mais

    equitativa da coexistncia democrtica, mas o seu mrito s se materializa

    se a escolha estiver esteada num exerccio efetivo de discusso e

    ponderao das alternativas, em termos de ensino, ficando assaz

    obnubilado quando funciona como mero pretexto para reproduzir posies

    e privilgios convencionados ou idealizados, que provm de motivaes

    heterogneas racionalidade educativa, a qual, como temos insistido, deve

    ser o fator determinante das escolhas.

    Nesta mesma linha, importa evidenciar o equvoco que consiste em supor,

    como se vem tornando frequente, que a liberdade de escolha funda um

    direito discricionrio dos pais de decidirem sobre a educao dos filhos, o

    qual, dada a diversidade de crenas e convices (sociais, polticas,

    religiosas, etc.) que concorrem nas sociedades modernas, a qual requer a

    liberdade de ensinos, para se concretizar. Ora, se as duas premissas, menor

    e conclusiva, so vlidas, desde que no se reduza a liberdade de ensinos

    oposio entre pblico e privado, ou se converta os princpios de

    pluralidade, tolerncia e secularidade, numa espcie de autorizao para o

    doutrinamento de perspetivas contraditrias, seno mesmo lesivas de tais

    princpios, j a primeira enferma de uma srie de problemas.

  • Desde logo, por esquecer que nas democracias modernas, o sujeito de

    direitos e deveres o indivduo, de tal forma que a formao deste que

    tem de estar em causa aquando de qualquer deciso familiar sobre os

    moldes em que dever ocorrer a sua educao, sendo a famlia uma

    instituio, decerto, privilegiada na tomada de deciso, mas no em

    regime de exclusividade ou de soberania. Mas, igualmente, por parecer

    ignorar que, no caso dos pais, a liberdade de escolha no d lugar a um

    direito absoluto de escolha, mas a uma responsabilidade acrescida, por se

    poder escolher. O direito absoluto em causa, cabe ao indivduo e o de ser

    educado e, em particular, de s-lo de modo a coexistir num mundo

    democrtico e justo. que os pais, como os restantes educadores, so

    chamados a escolher em nome da criana, no em nome prprio, menos

    ainda, em nome da reproduo das suas prprias convices.

    Ter, eventualmente, razo Hannah Arendt, ao considerar que face aos

    jovens, os educadores fazem sempre figura de representantes de um

    mundo do qual, embora no tenha sido construdo por eles, devem assumir

    a responsabilidade, mesmo quando, secreta ou abertamente, o desejam

    diferente do que .20Torna-se, porm, decisivo que no se identifique essa

    responsabilidade pela transmisso conservadora do mundo com um direito

    de impor uma sua conceo to substancial, determinstica e territorial que

    obste liberdade de aprendizagem. O argumento concomitante de que a

    liberdade de oferta encontra a sua justificao no interesse em que certas

    mundividncias particulares, perfilhadas pelos pais, passem para os filhos

    como uma espcie de continuidade hereditria no tem, por conseguinte,

    peso suficiente, face ao desgnio de autonomizao que norteia um sistema

    de ensino universal e democrtico. Pelo contrrio, a existncia de

    diferentes ofertas, alternando vises mais particulares e outras de pendor

    mais universalista, legitima-se pelo modo como possa vir a contribuir para

    uma sociedade mais plural, na qual a autonomia judicativa de cada

    indivduo signifique um incremento da sua participao ativa e tolerante

    nessa pluralizao.

    20 Hannah Arendt, A Crise na Educao, Olga Pombo (ed.), Quatro Textos Excntricos, Lisboa,

    Relgio Dgua, 2000, p. 43.

  • A liberdade de ensinos dever, assim, favorecer uma racionalidade

    educativa modesta, para aplicar a noo que, de acordo com Habermas,

    melhor se combina com o pensamento ps-metafsico, destinada a

    promover um ensino de processos e de esquemas generativos de

    conhecimento que permitam dar contedo construo da autonomia do

    aprendente. Nesta linha, longe de poder visar a consagrao do direito de

    transmitir um mundo fechado e pr-definido, assim concebido pelos

    educadores, a liberdade de ensinos encontra a sua razo profunda na

    evidncia de que la transformation fondamentale que lcole a connue au

    cours du dernier demi-sicle a consist dans la substitution dun systme

    culturel centr sur la transmission un systme culturel centr sur lacte

    dapprendre.21A verdadeira justificao para a liberdade de ensinos h

    que busc-la, portanto, no modo como favorece a liberdade de

    aprendizagens e no na maneira como possibilita uma educao sectria

    ou doutrinadora, a partir da defesa de um princpio de linhagem.

    Tomando a esfera das convices religiosas como exemplo, impe-se

    reconhecer, com Charles Taylor, que a modernidade secular, no no

    sentido frequente, mas um pouco vago da palavra, em que ele designa a

    ausncia de religio, mas antes no facto de que a religio ocupa um lugar

    diferente, compatvel com a aceo de que toda a ao social tem lugar no

    tempo profano. 22 Ora, assim sendo, h que concluir que a eventual

    escolha de um ensino de orientao religiosa no se pode fundar

    devidamente no argumento de um direito familiar a condicionar

    privativamente as convices religiosas da criana, em funo daquelas

    que so seguidas pelos pais, mas to s naquele segundo o qual a

    frequncia de uma tal matriz de ensino possa contribuir para reforar a

    liberdade de escolha sobre os diferentes credos que coexistem nas

    sociedades modernas, incluindo o de no crer.

    Esta reflexo permite assentar uma diferena crucial entre os princpios

    paternalistas, como enformadores das escolhas em matria de educao

    21 Marie Claude Blais et al., Transmettre, apprendre, Paris, Fayard/Pluriel, 2016, p. 7.

    22 Charles Taylor, Op. cit., p. 185.

  • das novas geraes, e o que se veio a designar como a parentocracia. Por

    um lado, como lembra Rawls, aqueles implicam que devemos estar em

    posio de defender que, com o desenvolvimento ou a recuperao dos

    seus poderes racionais, o sujeito em questo aceitar a deciso por ns

    tomada em seu nome e estar de acordo quanto ao facto de que fizemos o

    que era melhor para ele,23 enquanto a viso parentocrtica toma como

    garantido que o statu quo axiolgico parental est dotado de um valor

    intrnseco, incontestado e incontestvel. Por outro lado, ainda na senda de

    Rawls, cabe supor que as escolhas, feitas em nome de outrem, se norteiem

    pelo primeiro princpio de justia (cada pessoa deve ter um direito

    igual ao mais vasto sistema total de liberdades bsicas iguais que seja

    compatvel com um sistema semelhante de liberdade para todos24), o que

    significa que os decisores devero visar o sistema de liberdades, atravs da

    transmisso de uma certa verso substantiva do mundo, ao contrrio da

    sujeio das liberdades a uma determinada conceo do mundo, validada

    enquanto mero conjunto de crenas, que decorre da posio

    parentocrtica. Por sua vez, importa, ainda, ter presente a diferena entre

    um paternalismo forte que consiste en ce que le srieux du bon chef

    (de Famille, dtat, dglise) et la care de la bonne mre protegent

    toujours les personnes delles-mmes, 25 a sustentar o discurso

    parentocrtico, dum paternalismo fraco, em que pais e professores se

    instituem como garantes du droit des enfants la maturation, 26

    entendida como uma progressiva emancipao da menoridade de partida,

    para se reconhecer que s esta verso tem a capacidade de constituir la

    base du discours protectionniste moderne.27

    23 John Rawls, Op. cit., p. 202.

    24 Ibidem, p. 203.

    25 Pierre Billouet, Le minimalisme ducatif, Anne-Marie Drouin-Hans (ed.), Relativisme et

    ducation, Paris, LHarmattan, 2008, p. 53.

    26 Ibidem, p. 54.

    27 Ibidem, p. 54.

  • Desta feita, impe-se concluir que a liberdade de ensinos est no s

    comprometida com a liberdade de aprendizagens, mas, tambm, com as

    aprendizagens da liberdade, no triplo sentido, daquelas que libertam,

    daquelas que abrem para a liberdade dos outros e daquelas que liberalizam

    a prtica da justia, em sentido lato.

    Uma segunda esfera de significaes diz respeito s condies

    fundamentais do exerccio da atividade docente, nomeadamente, ao modo

    como na liberdade de ensino se encontram necessariamente conjugadas as

    liberdades pessoais e, em particular, se indica a proteo devida

    liberdade de conscincia e de pensamento. Estas liberdades que formam,

    segundo Rawls, a base constituinte, 28 que assegura a passagem dos

    princpios morais de autonomia e de objetividade, aceites na posio

    original, para um quadro legislativo justo,29 tm, obviamente, um carcter

    universal, aplicando-se, de jure, a toda e qualquer pessoa, e, de facto, aos

    cidados de uma sociedade democrtica. Mas, no caso do ensino, em

    funo das finalidades preconizadas, da relevncia que o conhecimento

    nele adquire, da segurana que deve acompanhar a transmisso, bem como

    do grau de autonomia que a relao pedaggica supe, quer ao nvel da

    organizao didtica dos saberes, quer no que respeita inventividade e

    imponderabilidade das interaes pessoais e profissionais, estas duas

    liberdades, de conscincia e de convico surgem diretamente associadas

    liberdade de ensino, no de modo genrico, mas como a condio sine

    qua non da ensinabilidade.

    Podemos considerar, portanto, que, nesta aceo da liberdade de ensino, se

    cruzam as trs esferas analisadas por Habermas: a da verdade, associada a

    uma pretenso objetividade, a da adequao, ligada a uma pretenso

    normatividade nas interaes interpessoais, e a da veracidade, referente a

    uma pretenso autenticidade da expresso de cada interlocutor30. Com

    efeito, haveria uma profunda contradio, por isso mesmo indesejvel, se

    28 John Rawls, Op. cit., p. 166.

    29 John Rawls, Op. cit., p. 390-393.

    30 Jrgen Habermas, Racionalidade e Comunicao, Lisboa, Ed. 70, 2002, p. 88.

  • algum que tivesse a tarefa de ensinar, a qual, se oferece como um modelo

    de interao intersubjetiva de tipo comunicativo, claramente, orientada

    para o mtuo entendimento, o fizesse relativamente a contedos,

    perspetivas, regras, etc., opostas ao seu sistema de convices, incluindo

    nesta categoria o conjunto de conhecimentos que, no s possu, por t-lo

    adquirido utilitariamente, mas que detm por neles acreditar. Este

    princpio supe, obviamente, a contrapartida de que, em caso de coliso

    entre as convices individuais e os requisitos estatutrios, os sujeitos

    tenham o dever de abdicar do seu vnculo contratual. A liberdade de

    ensino corresponde, por conseguinte, margem de autonomia requerida

    para que se possa ensinar e para que esse ensino seja profcuo. Cabe,

    ento, distinguir dois sentidos principais envoltos nessa prerrogativa que

    especificam esta segunda esfera de significao da expresso liberdade

    de ensino.

    Em primeiro lugar, trata-se do que nos parece dever designar-se como a

    liberdade ao ensinar, ou seja, a liberdade de levar a cabo o processo de

    ensino e de aprendizagem, com uma margem suficiente de autonomia, no

    s para permitir o cumprimento das exigncias profissionais, ou para a

    construo de um ambiente de confiana recproca, sem o qual a relao

    pedaggica deriva em sucedneos autoritrios e de desrespeito mtuo,

    entre docentes e alunos, mas, sobretudo, para possibilitar a plasticidade

    inventiva,31 inerente didatizao prpria de qualquer processo de ensino,

    que constitui um outro exerccio de equidade, menos bvio, ainda que

    mais persistente. Se tivemos em conta a afirmao de Aristteles de que

    a natureza da equidade , ento, ser retificadora do defeito da lei, defeito

    que resulta da sua natureza universal,32 torna-se percetvel que o ensino

    se constitui como esse permanente trabalho de adaptao do universal das

    leis, dos regulamentos, dos programas curriculares, da totalidade do

    conhecimento passvel de transmisso, da generalidade dos mtodos

    31 Lus Manuel A. V. Bernardo, Plasticidade e Traduo: Algumas Reflexes sobre a Textualidade

    Formativa, Itinerrios de Filosofia da Educao, n 3/1 Semestre de 2006, Porto, Afrontamento,

    pp. 267-292.

    32 Aristteles, tica a Nicmaco, V, X, 1137b1-25, Lisboa, Quetzal, 2004, p. 130.

  • pedaggicos, singularidade da turma, do aluno, do ambiente escolar, do

    tempo, etc., o qual, do ponto de vista da ensinabilidade, equivalente a

    uma retificao consecutiva da justia legal. Assim, na medida em que,

    como lembra Aristteles, a regra do que indefinido tambm ela

    prpria indefinida, 33 esta necessidade intrnseca atuao educativa

    requer um tipo de autonomia, ao mesmo tempo, negativa e positiva, uma

    vez que mista de no ingerncia e de responsabilidade, de real poder de

    deliberao e deciso, de indeterminao liminar e de inventividade

    constante, graas qual o ensino se oriente efetivamente para a

    prossecuo da aprendizagem, quer pela pertinncia do que transmitido,

    quer pela adequao do modo como se efetua a transmisso, quer pela

    justeza da adaptao do transmitido s circunstncias particulares.

    Esta autonomia admite graus, em funo da relao dos sujeitos com o

    saber e das finalidades prprias de cada nvel de ensino e de

    aprendizagem, razo pela qual mais ampla no Ensino Superior, onde, por

    ser suposto a ocorrer a construo do conhecimento e a relao

    pedaggica ser tendencialmente menos assimtrica, os docentes criam os

    seus programas curriculares, do que no Ensino Bsico e Secundrio,

    vinculado dupla meta de assegurar a formao geral do cidado e de

    viabilizar a transio para o nvel seguinte, num regime de maior

    assimetria relacional, com a consequente reduo da margem de criao

    curricular, mas com um eventual acrscimo significativo da criatividade

    didtica e pedaggica. Por ser fundamental relao pedaggica,

    enquanto tal, importa preserv-la das interferncias heternomas ao

    processo de ensino e de aprendizagem, mantendo a dinmica das suas

    restries associada s finalidades do sistema educativo.

    Consequentemente, qualquer que seja o campo de ao, por via da

    exigncia de uma tal liberdade ao ensinar, resulta consagrada a dimenso

    poitica da profisso docente, a qual no se reduz ao cumprimento de

    instrues superiores, mas implica a participao ativa de quem ensina na

    33 Ibidem.

  • definio do que merece ser ensinvel, bem como na gesto das

    modalidades da sua concretizao.

    Num segundo sentido, esta orientao semntica da expresso liberdade

    de ensino, trata da liberdade para ensinar, ou seja, da existncia de

    condies sociais, polticas, jurdicas, deontolgicas, que no sejam

    impeditivas da sua prossecuo