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Lei e Ordem na Sociedade do Barroco Dra. Vera Alice Cardoso Silva Universidade Federal de Minas Gerais INTRODUÇÃO Para o historiador Caio Prado Júnior, no clássico estudo sobre a formação do Bra- sil contemporâneo, o que o país veio a ser resultou de processo que foi, originariamen- te, o de instituição de uma empresa colonial. Esta deveria ser rentável para a Coroa portuguesa. A concepção de ocupação do território que prevaleceu incorporava duas premissas principais, a saber, a atividade econômica permitida pelas autoridades deve- ria estar positivamente ligada ao circuito do comércio e das finanças de Portugal na Europa; a administração local, aí incluída a estrutura judicial e de manutenção da or- dem pública, deveria ser custeada por tributos pagos pelos habitantes da colônia . Tal sentido da colonização resultou em um traço perverso do modo de consti- tuição da sociedade brasileira que se revela na convivência complicada e ambígua de uma burocracia dirigida por princípios fiscalistas exacerbados e uma estrutura de administração pública ou de governo rotineiro muito pouco capaz de criar coe- são social efetiva. A noção de coesão social é aqui empregada para denotar formas de convivência que vinculam os indivíduos por meio de atitudes e comportamentos de valorização do respeito às leis e às autoridades governantes, sendo tais orientações baseadas em senti- mentos de confiança nas instituições. Diferentes relatos e descrições da sociedade co- lonial brasileira mostram a fragilidade deste tipo de vínculos entre governados e gover- nantes. Destaca-se, ao contrário, o predomínio de certo tipo de individualismo que expressava o espírito aventureiro dos colonos livres, mais preocupados com a obten- ção de riqueza pessoal, muitas vezes conquistada por meios ilícitos, do que com o fortalecimento das instituições e da estrutura de autoridade do governo português. Estas são características gerais do processo de formação da sociedade brasilei- ra. Mas, diferentes tipos de estudos sobre o modo de ocupação do território na fase colonial indicam variações significativas nas formas de exploração econômica e de articulação das relações sociais. São elas tipificadas na seqüência dos ciclos eco- Prado Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia. São Paulo: Martins, 942.

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Lei e Ordem na Sociedade do Barroco

Dra. Vera Alice Cardoso SilvaUniversidade Federal de Minas Gerais

INTRODUÇÃO

Para o historiador Caio Prado Júnior, no clássico estudo sobre a formação do Bra-sil contemporâneo, o que o país veio a ser resultou de processo que foi, originariamen-te, o de instituição de uma empresa colonial. Esta deveria ser rentável para a Coroa portuguesa. A concepção de ocupação do território que prevaleceu incorporava duas premissas principais, a saber, a atividade econômica permitida pelas autoridades deve-ria estar positivamente ligada ao circuito do comércio e das finanças de Portugal na Europa; a administração local, aí incluída a estrutura judicial e de manutenção da or-dem pública, deveria ser custeada por tributos pagos pelos habitantes da colônia�.

Tal sentido da colonização resultou em um traço perverso do modo de consti-tuição da sociedade brasileira que se revela na convivência complicada e ambígua de uma burocracia dirigida por princípios fiscalistas exacerbados e uma estrutura de administração pública ou de governo rotineiro muito pouco capaz de criar coe-são social efetiva.

A noção de coesão social é aqui empregada para denotar formas de convivência que vinculam os indivíduos por meio de atitudes e comportamentos de valorização do respeito às leis e às autoridades governantes, sendo tais orientações baseadas em senti-mentos de confiança nas instituições. Diferentes relatos e descrições da sociedade co-lonial brasileira mostram a fragilidade deste tipo de vínculos entre governados e gover-nantes. Destaca-se, ao contrário, o predomínio de certo tipo de individualismo que expressava o espírito aventureiro dos colonos livres, mais preocupados com a obten-ção de riqueza pessoal, muitas vezes conquistada por meios ilícitos, do que com o fortalecimento das instituições e da estrutura de autoridade do governo português.

Estas são características gerais do processo de formação da sociedade brasilei-ra. Mas, diferentes tipos de estudos sobre o modo de ocupação do território na fase colonial indicam variações significativas nas formas de exploração econômica e de articulação das relações sociais. São elas tipificadas na seqüência dos ciclos eco-

� Prado Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, Colônia. São Paulo: Martins, �942.

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nômicos com as correspondentes formas de organização social. Na perspectiva do processo histórico, então, faz sentido falar da sociedade patriarcal, da sociedade pastoril, da sociedade do barroco ou da mineração. Verifica-se, assim, que a cons-tituição do Brasil como sistema social foi fragmentada, o que tem levado muitos de seus intérpretes a falar de brasis e a pensar sua formação em termos de dicotomias que buscam dar sentido à dificuldade de integração moderna do país: litoral versus sertão, centro político versus periferia/poder local, “economia para fora” versus “economia para dentro”, “sul desenvolvido” versus “norte subdesenvolvido”.

O certo é que o padrão de colonização imposto pelos portugueses não propiciou a integração natural das diversas partes do país nem deu origem a governos dirigidos por normas comuns, bem sistematizadas e revestidas de racionalidade burocrática. Os nomeados para os cargos de direção política na colônia recebiam instruções precisas nos seguintes pontos: deveriam fomentar as atividades econômicas rentáveis, vigiá-las para que não dessem lugar a formas de burlar o pagamento dos tributos devidos à Co-roa, criar corpos militares para fiscalizar os colonos e seus empreendimentos lucrativos contra ataques de índios, de estrangeiros (ou espanhóis ou holandeses ou franceses) e de potentados desleais à Coroa. De quebra, os militares das tropas pagas deveriam também servir de polícia, perseguindo e prendendo vadios, malandros e rufiões que perturbassem a ordem pública ou o sossego dos povos.

Mas, como realizar estas tarefas? Ao instruir os funcionários que nomeava, o rei (ou rainha) era bastante realista: raramente estabelecia normas precisas e bem deta-lhadas para cada tipo de ação a ser executada pelas autoridades que iam cumprir mandatos na colônia. Em geral, preferia deixar a cargo do nomeado a tarefa de deci-dir como fazer o que lhe cabia fazer, segundo as diretivas gerais que recebia2.

Tem-se aqui a configuração bem delineada do tipo de domínio patrimonial burocrático, identificado por Max Weber3.

O soberano territorial, na lógica da dominação patrimonial burocrática, tem por objetivo principal apropriar-se de parte da riqueza gerada pelos súditos, que são seus vassalos, o que faz sob a forma de cobrança de tributos diversos, recolhidos por um corpo de funcionários que ele compõe segundo critérios pessoais. Estes, por sua vez, autorizados que são pelo rei a cobrarem taxas e emolumentos pelos serviços que prestam aos vassalos, retiram seus salários dos fundos assim formados. Note-se que, neste tipo de domínio político, não há nenhuma forma de gestão pública ou indepen-dente do rei no que se refere à utilização desses fundos.

No caso da administração colonial portuguesa, os serviços principais que os fun-cionários prestavam aos colonos relacionavam-se à concessão de licenças para exerce-rem atividades econômicas, profissões e ofícios, aí incluída a distribuição da terra. A

2 Mendonça, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Conselho Federal de Cultura, sem data. (Tomo I – Regi-mentos I a XVI; Tomo II – Regimentos XVII a XXXIII). 3 Ver análise deste conceito aplicado à interpretação da formação política brasileira em Simon Schwartzman. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, �982, cap. 2.

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falta de licença autorizava os mesmos funcionários a impedir o funcionamento das atividades, tornadas assim “ilegais”. Tal situação dava origem a processos judiciais que resolviam-se em instâncias diversas, dependendo da gravidade da acusação e do valor monetário atribuído à causa pelas autoridades responsáveis na jurisdição em que pri-meiro se configurasse a pendência. Note-se que, na ausência de princípios gerais e universais de interpretação das diretivas e instruções que provinham do rei e de seus ministros, as autoridades coloniais tinham ampla discrição ao tomarem decisões que visavam a solucionar pendências entre indivíduos e desses com o governo português.

As autoridades coloniais controlavam também todos os processos envolvendo transações em dinheiro, tais como compras e vendas, empréstimos e transmissão de heranças. Todos os processos caracterizavam-se por detalhados procedimentos burocráticos, acoplados, cada um, à cobrança de taxas diversas. Toda a estrutura judicial era custeada com o que se arrecadava dessa forma4.

Olhada sob esta perspectiva, a empresa colonial dava lucro ao rei e se auto-sustentava financeiramente, pois gerava também o dinheiro necessário para o pa-gamento dos funcionários da Coroa. Era, assim, um patrimônio real, administrado por corpos de funcionários nomeados pelo rei (ou rainha), que, dessa forma, de-viam seus privilégios e prerrogativas à discrição real e não diretamente à condição de nascimento ou a direitos senhoriais.

É desta forma que o Brasil se vinculou a Portugal, isto é, como um patrimônio a ser administrado de modo a sempre dar lucro e nunca prejuízo para a fazenda real.

Assim sendo, a imposição de lei e de ordem na colônia configurou-se como uma forma de atuação política de contornos bem definidos. Tratava-se de criar uma estrutura de promoção e de fiscalização das atividades econômicas que inte-ressassem ao colonizador, acoplada a uma estrutura judicial responsável, quase que exclusivamente, pelo encaminhamento de processos relacionados com pendências referidas a assuntos comerciais e financeiros, aí incluídos os processos de transmis-são de heranças. As autoridades portuguesas pouco ou nada legislaram ou intervie-ram sobre outros aspectos da ordem social, tais como provimento de serviços de educação, saúde pública, abastecimento, transportes, meios de comunicação. Estes não eram aspectos de que os governantes dos séculos �7 e �8 se ocupassem de modo sistemático. Mas, na sociedade do barroco, que foi uma forma de civilização urbana, problemas relacionados com serviços de uso coletivo apareceram dramaticamente em alguns momentos, colocando em risco a própria empreitada econômica, sem que disso resultasse alteração significativa na orientação patrimonial burocrática de governo. Observa-se a inércia do governo no caso do abastecimento de gêneros alimentícios, de abertura de caminhos para acesso a novas áreas de mineração e até mesmo do aperfei-çoamento das técnicas exploração dos veios auríferos. No trato dos problemas que surgiam na organização dos serviços necessários à rotina da vida urbana e das ativida-

4 Salgado Graça. Fiscais e Meirinhos. A administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, I985 (especialmente o capítulo referente à administração fazendária, escrito por Carmen Lúcia de Azevedo, 85-9�)

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des da mineração prevaleceram soluções privadas caracterizadas pela improvisação e pela precariedade. No caso do trabalho da mineração, quanto mais complexo se tornou o acesso e a exploração de novos veios, mais evidente foi ficando o atraso tecnológico do empreendimento. No exercício do governo, os funcionários portu-gueses pouco fizeram para sanar os problemas de modo ativo e definitivo. Menos ainda fizeram na esfera da previsão de problemas que demandariam interferência política ou administrativa5.

A sociedade do barroco constitui uma formação histórica muito propícia para o estudo da forma de instituição da ordem social segundo a orientação patrimonial burocrática em um contexto muito complexo de ocupação do território e de sua exploração econômica. Como já se comentou, a colonização portuguesa assumiu várias formas nas diversas partes do país ocupadas pelos portugueses. Na região da mineração, prevaleceu a forma urbana, desde o início. A população cresceu muito rapidamente, a partir da última década do século �6, dispersando-se em vários pontos que deram origem a cidades, vilas e arraiais. Estes aglomerados foram sen-do oficialmente estabelecidos por funcionários do governo português com o obje-tivo, justamente, de montar as estruturas do controle burocrático, tanto administra-tivo, quanto judicial, necessários ao sucesso da empresa colonial.

Em princípio, a lei e a ordem requeridas referiam-se à regulamentação do modo de acesso aos veios auríferos e à fiscalização da exploração das minas. A fiscalização constituiu aspecto essencial para a forma de acumulação de capital estatal preferida pela Coroa, que era a cobrança de tributo sobre a produção. Na esfera do governo metropolitano a grande discussão girou sempre em torno da definição do meio mais eficiente de cobrar o tributo sobre o ouro. Nesse caso, o desafio era político e administrativo. Por um lado, tratava-se de garantir a adesão de homens livres e aventureiros a formas de taxação de um tipo de produto fácil de ser contrabandeado e de obtenção nem sempre fácil. Por outro, tratava-se de cons-tituir uma estrutura administrativa que devia ser capaz de adaptar-se às formas que fossem estabelecidas para a cobrança do tributo sobre o ouro e pedras preciosas, bem como para a coleta de taxas diversas sobre o comércio. O rei português aca-bou persuadido da necessidade de criar um governo específico para a região das minas, depois se seguidas evidências da dificuldade de governá-la de longe com o grau de eficácia necessária para a consecução dos objetivos fiscalistas6.

5 Esta descrição baseia-se no relato de José João Teixeira Coelho, que foi Intendente do Ouro e Procurador da Fazenda Real na Capitania de Minas Gerais na segunda metade do século �8. Sua Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais é o documento histórico no qual se baseia o presente ensaio. A edição utilizada foi organizada pelo Centro de Estudos Históri-cos e Culturais da Fundação João Pinheiro, autarquia do Governo do Estado de Minas Gerais, publicada em �994. A leitura paleográfica e atualização ortográfica foi feita por Claúdia Alves de Melo e o estudo introdutório, que dá notícia das publicações anteriores do texto e avalia seu valor como fonte documental para o estudo da história de Minas foi escrito por Francisco Iglésias. O título faz parte da Coleção Mineiriana: Série Clássicos. Todas as referências que se seguem foram retiradas desta edição, que passa a ser identificada como Instrução.6 Instrução, cap. ��.

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Em que consistiu, em tal contexto, o processo de implantação da lei e da or-dem na sociedade do barroco, que se constituiu na região das minas de ouro e de diamantes? Quais aspectos da vida coletiva foram regulamentados? Como se con-cebeu a ordem que ali deveria realizar-se a fim de que, na região, os objetivos da empresa colonial pudessem efetivar-se?

Neste ensaio busca-se entender a lógica do processo de instituição de uma sociedade muito controlada, por um lado, mas muito instável, por outro, a partir da visão de um contemporâneo, que foi participante ativo de parte de tal processo, o Intendente do Ouro e Procurador da Fazenda Real, José João Teixeira Coelho. A referência documental, como já esclarecido na nota 5, é sua memória-relatório da história do governo português na Capitania de Minas Gerais no século �8, intitula-da Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais, peça escrita entre �778 e �780, após sua volta para Portugal, onde assumiu o cargo de desembargador do Tribunal da Relação do Porto.

O autor explicou muito bem a motivação que o levou a escrever a Instrução. Queria oferecer ao mais alto dirigente da capitania, o governador, as informações que considerava relevantes para que pudesse fazer um bom governo, bem funda-mentado em informações confiáveis sobre a organização administrativa e sobre os estilos de governo dos que o haviam antecedido no cargo, de modo a evitar que ca-ísse em armadilhas armadas por funcionários permanentes e por principais da terra que o aconselhassem nesta ou naquela direção quando tivesse de dirimir conflitos, buscando influenciá-lo na direção, não do bem coletivo, mas de interesses particula-res. Supunha José João que o conhecimento dos fatos e da ordem administrativa já instalada garantiria a independência do governador face a grupos de pressão que reconhecia existirem naturalmente em todas as sociedades. A seu ver, o governador deveria ter como referência de suas ações e decisões sempre e em primeiro lugar o interesse da Coroa. Para ele, este coincidia naturalmente com o melhor para os povos governados. Na sua concepção de política, a injustiça e a administração ruim viriam do uso do poder de governo para beneficiar grupos, indivíduos, potentados. Contra estes o governador deveria ser alertado e protegido.

Há, na motivação do Intendente para escrever a Instrução, uma curiosa mistu-ra de elementos modernos e tradicionais compondo uma concepção do papel do poder soberano e de sua relação com o governado. Segundo José João, o que legi-timaria o exercício do poder soberano e demonstraria sua necessidade seria o pa-pel que lhe caberia de moderador de conflitos entre indivíduos e de mantenedor da ordem no convívio coletivo, que assegurasse que as pessoas pudessem viver em segurança e confiantes nas leis e na justiça do soberano. Este se tornaria injusto quando permitisse que se instalasse a insegurança na convivência entre os súditos e que campeasse a truculência dos potentados. Esta visão do déspota benevolente conduz à condenação do poder autônomo de uma nobreza proprietária e a uma visão da responsabilidade do governante para com uma entidade idealizada, que é o povo, formado pelo conjunto de todos os vassalos.

O Intendente José João, sob o ponto de vista de suas crenças políticas, adotava uma noção de povo que contém elementos mais tarde incorporados pelas teorias

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das elites políticas, segundo as quais a felicidade do governado, entendido este como coletivo não diferenciado, depende da sabedoria do soberano, que é o pólo ativo da política. No soberano residiria a sabedoria e a capacidade de discernir o que é o bem comum, capacidade que o povo não teria, justamente por ser a esfera interativa de onde emergem os conflitos de convivência. Mas, esta visão do conflito político não conduzia o Intendente à noção moderna de indivíduo. Para ele, os habitantes do reino e de todo o império, europeus ou nativos, eram vassalos do rei.

José João também considerou que, ao escrever a Instrução, acompanhada da Coleção sumária das próprias leis, cartas régias, avisos e ordens que se acham nos livros da Secretaria de Governo, demonstrava que merecera os salários que ganha-ra no Brasil e deixava claro para a rainha que não desperdiçara seu tempo como administrador dos interesses da Coroa7.

É, então, a partir de sua visão do que vinha sendo e do que era a realidade eco-nômica, social e política da capitania que se vai aqui analisar o processo e o proble-ma de implantação e manutenção da lei e da ordem na sociedade do barroco.

A INSTAURAÇÃO DA AUTORIDADE E OS CRITÉRIOS DE IDENTIFICAÇÃO DE ASPECTOS DA CONVIVÊNCIA SOCIAL A SEREM REGULAMENTADOS

Instaurar a autoridade na região das minas, no início do século �8, significou, em primeiro lugar, apaziguar conflitos relativos ao acesso às áreas de exploração do ouro. A pacificação se deu mediante a presença e atuação de funcionários portugue-ses que impuseram regras para a distribuição de áreas de mineração entre portugue-ses e brasileiros provenientes principalmente da capitania de São Paulo, pondo fim a confrontações armadas. Neste momento inicial, já se configurava o tipo de con-flito que veio a tornar-se dominante no fim do século opondo interesses brasileiros a interesses portugueses. A distribuição de terras, além da fixação de limites das áreas de mineração, incluiu também o registro de sesmarias, terras destinadas ao cultivo de alimentos e à criação de gado. Como resultado da pacificação, que, diga-se de passagem, nunca foi completa, ficou mais fácil fazer avançar o processo de estabelecimento dos órgãos e cargos da administração colonial. Segundo a orientação dominante na empresa colonial, a estrutura que foi sendo instalada ca-racterizou-se pela preeminência do controle fiscal e judicial.

A implantação da ordem na região foi, então, a organização do governo por-tuguês com suas burocracias e procedimentos para submeter a população em todos os aspectos relevantes para assegurar a cobrança dos tributos devidos à Coroa por meio da organização da economia da mineração. Quanto mais consolidado e es-tabelecido o governo, mais evidentes se foram tornando os pontos de atrito entre os

7 Instrução. P. 57.

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mineiros e as autoridades portuguesas. Ao descrever os problemas, sucessos e insucessos dos governadores da capitania, do início do século até �780, o Intendente José João des-tacou o clima de permanente tensão entre estas autoridades e os principais da terra.

Mas, é inegável que o governo português foi bem sucedido no intento de esta-belecer a ordem na região das minas porque de fato ali consolidou-se uma estrutu-ra de administração por meio da qual os interesses da Coroa impuseram-se, em boa medida, sobre as preferências da população da capitania. No entanto, tal ordem era instável, a instabilidade manifestando-se em motins diversos, de maior ou me-nor intensidade, em formas variadas de desordem social (violência contra pessoas, arruaças, desrespeito ostensivo a ordens de autoridades) e na endêmica corrupção que permeava as práticas das autoridades administrativas e judiciais.

O relato do Intendente José João sobre o processo de implantação do domínio português na região das minas e os pontos que ele destacou para a atenção do nome-ado para o cargo de governador da capitania podem ser interpretados, então, como um ponto de vista oficial sobre o que foi o desafio de fazer com que indivíduos aventurei-ros, em busca de riqueza fácil, obedecessem leis e regras cujo objetivo fundamental não era melhorar as condições em que viviam e trabalhavam, mas garantir que o má-ximo da riqueza encontrada fosse encher o cofre do rei. Diferentemente das planta-ções, que propiciaram a formação de “feudos” estáveis, a sociedade do barroco carac-terizou-se por grande mobilidade de pessoas e de riquezas, o que tornava mais difícil a tarefa de obter o respeito geral face às instituições de governo.

Uma interpretação fundamentada nesta visão deve começar com a identificação dos aspectos da ocupação do território que a Coroa considerou crucial regulamentar e controlar, distinguindo-os daqueles que eram secundários para a empresa colonial na forma que ela assumiu na região das minas. Nesta perspectiva, as tensões maiores sempre se referiram às formas adotadas ou preconizadas pela Coroa para a cobrança do quinto do ouro e para o controle da exploração dos diamantes. Havia muito menos discordância com relação às taxas impostas ao comércio e à prestação de serviços. Note-se, aliás, que estas eram decididas pelas Câmaras, que constituíam o governo das cidades e vilas organizadas em comarcas, resultando, portanto, de processos decisórios que levavam em conta os interesses dos governados ou, pelo menos, das pessoas gra-das que compunham estes corpos deliberativos e de governo local.

Mas, não há dúvida de que a maior fonte de insatisfação dos mineiros com o domínio português tinha raiz na política tributária que decorria da orientação do-minante da colonização portuguesa. Portanto, o dilema principal da ordem política na sociedade do barroco era, fundamentalmente, um problema muito moderno: qual deve ser o papel do Estado, do poder soberano, na determinação do limite de autonomia do governado como agente econômico? Até onde deve ou pode ir o Estado na sua capacidade de captar renda sob a forma de tributação da atividade econômica empreendida por agentes privados? Certamente que os mineiros do século �8 não colocavam sua crítica ao Estado fiscalista nestes termos, mas era a questão fiscal, essencialmente, o fulcro de suas críticas e de sua resistência a dire-tivas do governo português na capitania.

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Note-se que os governadores nomeados conheciam este sentimento e sabiam ser difícil impor as diretivas da Coroa de modo autoritário. Este é um ponto destacado pelo Intendente José João em seus relatos sobre a administração dos governadores das Minas Gerais: antes de pôr em prática qualquer medida relativa à cobrança do quinto do ouro ou novas formas de tributação, reuniam-se com os principais da terra, com os membros das Câmaras Municipais e com todos os ministros do rei em cada comarca (a expressão designa o conjunto das autoridades nomeadas para os cargos da administração fiscal e judicial) para ouvir sua opinião sobre a repercussão desta ou daquela ordenação a ser imposta, segundo instrução real. Alguns dos governado-res mostraram-se muito sensíveis e responsivos às ponderações que lhes eram apre-sentadas pelos membros da elite da capitania, quase sempre no sentido de não one-rar mais os produtores e comerciantes com revisão dos valores dos tributos, com novos tributos e com critérios mais rigorosos de identificação de contribuintes.

Quando esta atitude prevalecia, os mineiros tinham contrapropostas que, em geral, não contestavam o direito real de cobrar impostos. O que se procurava ne-gociar era a forma de cobrança e o prazo a ser concedido para que o montante a ser pago fosse coletado. Quando o governador nomeado não se deixava convencer de que devia negociar e impunha a cobrança de forma rigorosa, segundo instru-ções que recebera do rei, o resultado quase sempre foi o aumento de instabilidade, revelada em motins ou na adoção de novos meios de sonegação.

Note-se que a negociação sobre o valor total a ser coletado e sobre a forma de cobrança do quinto do ouro resultava em acordos de duração limitada. Em geral, os acordos feitos duravam um ano. Tal condição pode ser tomada como evidência da natureza contratual da obediência ao dever de pagar tal tributo à Coroa. O montante combinado variou ao longo do século, indo de 24 a �00 arrobas de ouro devidas anualmente. O método de recolhimento também variou, mediante negociação: da circulação livre do ouro em pó, chegou-se à implantação das casas de fundição, que funcionaram entre �725 e �735; de julho de �735 a julho de �75� a cobrança fez-se por meio da capitação de escravos - imposto pago por escravo possuído, quer traba-lhasse na mineração ou em outros misteres, e da tributação geral de todas as formas de indústria, expressão que denotava o conjunto das atividades econômicas organi-zadas na capitania: mineração, lavoura, pecuária, comércio e ofícios diversos. A partir de �75� voltou-se ao método das casas de fundição.

Em sua interpretação dos problemas da administração colonial, o Intendente José João destacou um tipo de pendência que mostrava bem a dificuldade de tornar os ob-jetivos da empresa colonial compatíveis com o processo de formação de uma socieda-de que se fundara na economia da mineração, mas que, à medida que o século avan-çou, passou a conter ampla gama de outras atividades produtivas e a adquirir as características de estabilidade social, com suas festas, suas famílias tradicionais, sua história própria, suas cidades e vilas bem estabelecidas, mesmo que mal construídas8.

8 Ao descrever as sedes das quatro comarcas implantadas na Capitania de Minas Gerais, a saber, Vila Rica, Sabará, São João del Rei e o Serro Frio, José João mencionou a irregulari-dade das ruas e a “falta de nobreza” dos edifícios como características dessas cidades . Abria

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Porque a vida social da região se diversificava de modo complexo, tornava-se plenamente razoável a pendência relativa à definição do critério de quem deveria pagar o imposto do ouro. Nem todos os habitantes da capitania ocupavam-se da mineração. De fato, ao longo do século e acompanhando o gradual esgotamento dos veios de mais fácil acesso, número crescente de pessoas ocupava-se mais ou exclusi-vamente com comércio, pequenos serviços, artesanato, ofícios diversos, lavoura e pe-cuária. Deveriam contribuir para o quinto sobre a produção total do ouro registrado pelas Intendências especializadas? Por que calcular o montante devido a partir, por exemplo, do princípio da capitação (tributo pago por escravo possuído, independente-mente de como era empregado em atividade econômica)? Todos os moradores já pa-gavam tributos e taxas diversas, pelo simples fato de morarem em vilas e cidades da região das minas. O comércio interno e externo era tributado, sobre a propriedade de casas, de terras, de escravos incorriam taxas diversas, os serviços religiosos eram cobra-dos, o exercício de ofícios requeria licenças que eram pagas periodicamente. Em tal contexto, os mineiros colocavam na discussão política com os governadores uma ques-tão bem moderna: quem deve pagar impostos? Os impostos não têm “fatos geradores” diferenciados, a partir dos quais o corpo de contribuintes correto deveria ser definido? Este tipo de debate nunca teve solução definitiva na administração das minas, o mesmo acontecendo com a pendência sobre a liberdade de empresariamento. Por que deve-riam os mineiros importar bens que já podiam produzir para o consumo local? Deba-tes e confrontos próprios de uma sociedade com claros componentes de modernidade, cujos membros colocavam-se diante do poder soberano como indivíduos autônomos que queriam discutir o limite da autoridade do rei em seus negócios e iniciativas.

O PROBLEMA DA CONSTRUÇÃO DA ORDEM NA CAPI-TANIA DE MINAS: A DIFICIL COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE OS INTERESSES DA COROA E OS INTERESSES DOS GOVERNADOS

Para José João, como Procurador da Coroa e da Fazenda Real na Capitania de Minas Gerais e leal vassalo da rainha portuguesa que era, o princípio ético e político fundamental para a instituição e funcionamento do bom governo nesta parte do im-pério português era claro: a ordem real era a autoridade suprema e correta – o rei ou rainha só devia obediência a Deus e só por Ele poderia ser julgado – e os governados eram vassalos, quer fossem brasileiros ou europeus, livres ou escravos, devendo obe-diência ao soberano e às autoridades que o representavam na capitania.

No entanto, entendia bem que a tradução do princípio geral em instituições e práticas de administração rotineira de uma sociedade complexa podia apresentar distorções e culminar em vícios de governo. Por meio de fina análise de tais institui-

alguma exceção para São João del Rei, onde havia “ruas vistosas” e “ os templos e mais edifícios” tinham “alguma nobreza”. Instrução, capítulos 2 a 5.

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ções e práticas desde o inicio da ocupação do território mineiro, no final do século �7, até a década de �770, identificou várias causas das distorções que, a seu ver, dificultavam a plena paz dos povos e a vigência da justiça nas relações sociais e na aplicação das leis. A desordem social e a insegurança dos indivíduos, de seu patri-mônio e da própria realização do interesse maior do governo português, que era a manutenção rotineira e segura dos fluxos de tributos devidos à Fazenda Real pare-ciam-lhe ser os traços dominantes da história de quase um século. Um governo está-vel, respeitado e eficiente não se impunha, mas a vida coletiva continuava, mesmo que com elementos iniludíveis de desorganização e até mesmo de barbárie.

As causas de tal estado de coisas, tal como percebidas por José João, encontra-vam-se tanto no modo como se organizava o governo, quanto nos interesses e comportamentos dos governados. O peso maior da responsabilidade pela desor-dem, no entanto, segundo sua análise, cabia às autoridades portuguesas, tanto as que, em Lisboa, ditavam as diretivas para o governo colonial, quanto as encarrega-das de pô-las em prática do outro lado do Atlântico.

A apreciação adequada do valor de sua interpretação sobre o estado do gover-no português na Capitania de Minas Gerais e os resultados obtidos ao longo do século �8 exige que se esclareça, preliminarmente, as referências ideológicas e políticas que usou para construir sua visão dos problemas de gestão com os quais se defrontavam os funcionários da Coroa.

A noção que tinha da ordem pública ou de sociedade ordeira merece destaque inicial. Para José João, a estrutura de governo que se estabeleceu na Capitania tinha por objetivo principal criar as condições de exploração disciplinada e ordeira dos “frutos da terra” próprios da região, primeiro o ouro, depois os diamantes e pedras preciosas. Todas as demais formas de agregação social e econômica deviam servir de suporte a este propósito. Como proprietário de toda a terra, o soberano português a cedia a particulares, sob a forma de datas e sesmarias, para que estes tornassem a riqueza potencial em realidade e, assim fazendo, recompensassem o soberano com o pagamento do tributo devido em virtude da concessão para a exploração da rique-za que se podia retirar do recurso natural cedido. As datas configuravam as áreas de exploração mineral; as sesmarias, as terras a serem cultivadas para produzir o ali-mento necessário para a população local. A ordem social previa, então, uma clara divisão de trabalho, separando os mineiros, os fazendeiros e, desde logo, os comer-ciantes e artífices necessários para os ofícios diversos numa sociedade bem especia-lizada. O trabalho braçal, nas suas diversas formas, ficou sempre relegado aos escra-vos. Todos eram vassalos que deviam ser leais. Cada um em seu lugar econômico e social devia contribuir para a maior riqueza do soberano que, em contrapartida, de-veria garantir um governo bom e justo, que garantisse o sossego dos povos.

Esta sociedade ordeira, desejada pelo soberano português, nunca existiu de fato. José João descreveu dois tipos de problemas responsáveis pela persistente insta-bilidade política e social na Capitania de Minas: conflitos de natureza propriamente civil e política e tensões referidas à segurança pública. A consideração separada de cada um ajuda a entender melhor a natureza da dificuldade para se implantar lei e

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ordem na sociedade do barroco, identificando-se essa condição com a estabilidade das instituições e alto grau de legitimidade das autoridades.

CONFLITOS CIVIS E POLÍTICOS

Este tipo de instabilidade refere-se à determinação da esfera de direitos e deveres a partir dos quais governados e governantes vinculam-se por meio de uma cadeia de comando-obediência que funcione eficaz e rotineiramente. A premissa da obediência leal e da não resistência à ordem emanada do soberano é a de que o governado – ci-dadão no sentido moderno ou vassalo do governante absolutista – acata a regra que vê como razoável e aceitável, nas condições em que vive e convive com outros. Nesta perspectiva, mesmo em regimes absolutistas, como era o caso do governo português durante o período colonial brasileiro, pode-se reconhecer a dimensão de um pacto social por meio do qual fica definido o grau de legitimidade gozada pelo soberano quando impõe diretivas disciplinadoras da convivência coletiva. O governado é visto como indivíduo autônomo que pode insurgir-se contra o soberano quando este mos-trar-se tirano ou injusto. Tal autonomia pode expressar-se também na ocorrência de disputas diversas entre os próprios governados, que devem ser dirimidos pelo gover-nante respeitado como autoridade pública. Este definirá deveres e direitos de uns e de outros, colocando-se, em princípio, acima de pendências específicas. Neste sentido, cabe-lhe o papel de árbitro, que é uma das funções da autoridade política.

Segundo José João, conflitos relacionados ao estabelecimento e reconheci-mento da autoridade legítima, bem como outros tantos derivados de contestações a disposições da vontade real e de contradições na interpretação do sentido de ordenações específicas emanadas do governo metropolitano marcaram toda a his-tória da administração da capitania, desde a ocupação inicial da região das minas de ouro até o final do século �8. Primeiro, configurou-se a luta pela fixação da autoridade: o poder de mando caberia aos paulistas, que primeiro haviam desco-berto minas? Ou caberia aos portugueses que chegaram em grande número, tão logo a notícia da descoberta do ouro se espalhou? Lutas sangrentas entre os dois grupos só foram controladas quando um governo da Coroa instalou-se no local, submetendo paulistas e europeus, sob a ordem dos funcionários coloniais nomea-dos, investidos de poder de regulação e de sanção em nome do rei. Parte deste processo cumpriu-se com a criação da Capitania de Minas Gerais, separada primei-ro da do Rio de Janeiro, depois da de São Paulo, após os conselheiros do rei terem concluído que a exploração do ouro era negócio sério e que o olhar vigilante da Coroa sobre esta atividade tão rentável deveria exercer-se de perto e quotidianamen-te e não de longe e intermitentemente. José João comentou o sentido da pacificação que resultou do estabelecimento de uma estrutura judicial e de administração dos negócios da mineração específica para Minas Gerais: os que para aí mudaram e aí ficaram eram rebeldes indomáveis, que não aceitavam qualquer princípio de autori-dade, ou eram vassalos relutantes, que aceitavam submeter-se, mas queriam ser ou-vidos no momento da fixação de seus deveres para com o soberano? Refazendo a

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história remota da Capitania de Minas, desse período que chamou de “anos calami-tosos” por causa da violência e insegurança que marcaram as duas primeiras décadas do século �8, o funcionário do rei dava-se conta de um tipo de tensão que só fez agravar-se nos anos seguintes, a saber, o sentimento nativista, que separava brasileiro de europeu/português em terra brasileira, não obstante ambos estarem submetidos ao mesmo gover-no, que os tratava como vassalos. Naquele momento, os paulistas representavam os brasileiros que, aos olhos do governo português, deviam ser tratados com cautela e sus-peição, pois sua lealdade era duvidosa. Durante bom tempo vigorou a recomendação real de que os governadores não nomeassem paulistas para cargos de comando da tropa paga, diretiva que mostrava o temor das autoridades portuguesas de que esse grupo de brasileiros viesse a minar o poder do colonizador de dentro desse mesmo poder.

A partir de uma fina análise do que chamou de estilos de governo, José João avaliou a qualidade dos governadores da capitania do ponto de vista das estratégias que usaram para obter o apoio dos governados na efetivação de medidas destina-das a garantir o recolhimento integral dos tributos devidos à Coroa e a assegurar obediência a seus ordenamentos, objetivos prioritários do governo português na-quela região. Nestas análises, o que mais chama a atenção do leitor moderno é justamente a percepção que tinha este funcionário português do problema da legi-timidade que, a seu ver, nunca foi adequadamente resolvido na sociedade do bar-roco. Não só os paulistas eram olhados com cautela: também os mineiros – os moradores da capitania - tinham suas maneiras insidiosas de desobedecer e de enfraquecer a autoridade real, sem pegar em armas. José João identificou essas maneiras reveladoras de comportamentos individualistas indisciplinados o e soube também ver como os governadores nomeados pelo rei ou reagiram negativamente a elas ou se deixaram levar por elas. De modo geral, o problema da legitimidade não resolvido expressou-se sempre na permanente impossibilidade de se instituírem prá-ticas de administração pública estáveis. Em tal contexto, prevalecia a insegurança do governo, dos contratos, da propriedade e campeavam o mandonismo e o clientelis-mo. Por um lado, segundo a avaliação de José João, a culpa por tal estado de coisas cabia ao governo português por não sistematizar as leis de modo coerente e por não definir as jurisdições das diferentes autoridades de modo claro, sem superposições e ambigüidades na determinação de responsabilidades e competências. Não havia, por exemplo, um código sistemático de procedimentos para a concessão de sesma-rias e de resolução de conflitos relacionados com direitos de propriedade imobiliária. Misturavam-se, assim, de modo conflituoso, os interesses de mineradores, que ha-viam recebido datas para a instalação de fábricas minerais, e os dos fazendeiros, re-cipientes de sesmarias para o cultivo agrícola e criação de gado, no que se referia ao acesso e uso de cursos d’água necessários ao bom andamento de ambas as ativida-des. Em princípio, cabia aos guardas – mores a responsabilidade pela concessão de datas e de sesmarias, com clara fixação de seus limites, bem com a gestão do acesso a cursos d’água. A autoridade superior ficava com o guarda-mor geral, que deveria controlar as concessões de modo a bem determinar os limites dos tratos de terra dis-tribuídos e a garantir que todos dispusessem de água suficiente para seus labores, durante todo o ano. Mas, nada funcionava como devia, segundo relato de José João. O guarda – mor geral, “funcionário inútil”, segundo ele, só vinha à capitania para

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nomear guardas – mores substitutos, aos quais vendia os “direitos” do cargo para o qual tinha sido nomeado pelo rei. Aqueles, por sua vez, compravam a nomeação justamente visando a obter ganhos pessoais por meio de manipulação das conces-sões, incluída aí a de acesso à água. Como dirimir os conflitos relativos ao acesso à água? A quem deveria caber a autoridade de solucioná-los? Mineiros e fazendei-ros eram prejudicados pela falta de um governo eficiente, que cuidasse do estabe-lecimento da ordem pública e do bem coletivo. José João, em �780, comentava a persistência e o agravamento deste tipo de pendência, lamentando que o rei nunca se dispusesse a criar uma Intendência da Agricultura que centralizasse a regula-mentação e fiscalização deste aspecto da organização econômica da capitania. O resultado era desordem, insegurança e diminuição da capacidade produtiva de mineiros e de fazendeiros. O maior prejuízo financeiro era, ao cabo, o da Fazenda Real, que recolhia menos tributos. Mas, a perda maior ia para os povos da capita-nia, que foram empobrecendo ao longo do século9.

José João não atribuía a diminuição da riqueza dos mineiros apenas ao esgo-tamento da mineração do ouro. A seu ver, a falta de uma política de promoção mais sistemática e “científica” dos veios superficialmente esgotados, visando a tirar deles muito que ainda poderiam render, e de incentivo à agricultura e à exploração sistemática de pedras preciosas contribuía para o grande mal daquela parte do império português, que era a progressiva perda de dinamismo econômico. A seu ver, o enfraquecimento da capitania teria impacto muito negativo na estabilidade do Estado português. Por causa disto, José João lamentava que bons governadores, que poderiam sanar falhas de gestão e promover o fomento econômico da capita-nia, ficassem tão pouco tempo no posto, às vezes substituídos por governadores fracos, que se deixavam levar por conselhos de homens maus que não faltavam ali. Bons governadores, leais aos interesses da Coroa e hábeis na arte de obter a adesão dos vassalos a diretivas de administração que fortaleceriam os interesses fiscais da metrópole, eram capazes de neutralizar o que chamava de malícia dos povos, que-rendo com isto dizer que os vassalos, sem liderança firme, tendiam a buscar manei-ras espertas de evadir-se do cumprimento de seus deveres fiscais para com o Rei e para com a manutenção adequada da coletividade.

A falta de sistematização das leis e códigos prejudicava praticamente todos os aspectos do governo colonial e facilitava práticas de corrupção pelos funcionários do governo local e pelas mais altas autoridades coloniais. A corrupção era praga generalizada.

José João destacou outra esfera de imprecisão na formulação de regulamenta-ção de crucial interesse para a Fazenda Real que, além do mais, lhe parecia expres-sar visão pouco inteligente do legislador e favorecer práticas oportunistas por parte dos vassalos. Trata-se da decisão real, tomada em �752, que proibia o leilão de escravos como meio de pagamento de dívidas de mineiros possuidores de trinta ou mais escravos. Tal privilégio de proprietários passou a ser conhecido como trinta-

9 Instrução, cap. 23.

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da. Mas, sua execução dava margem a interpretações variadas, típicas do tipo de manipulação que, ao ver de José João, favorecia corrupção e chicanas judiciais: a ordem real referia-se a trinta escravos efetivamente empregados no trabalho das mi-nas? Ou o número referia-se ao total de escravos possuídos pelo mineiro, indepen-dentemente do emprego que se lhes desse? Seriam apenas os escravos já pagos ou se podia contar os comprados, mas ainda não pagos? Tais dúvidas davam origem a longos processos judiciais, cuja conclusão tardava, segundo a opinião de José João, principalmente porque interessava aos procuradores e ouvidores “extorquirem salá-rios” do mineiro. Este, por sua vez, ao longo do processo, ficava resguardado de qualquer outro processo que penhorasse seus bens para pagamento de dívidas. Tal estado de coisas criava uma inércia perversa, que impedia o andamento dinâmico dos negócios, favorecendo a ineficiência empresarial e os vícios do burocratismo. Enquanto isso, lavras que poderiam estar sendo exploradas com eficiência por minei-ros abonados, ficavam abandonadas em virtude do processo judicial e das ordena-ções que proibiam sua volta ao mercado de distribuição de datas�0.

O olhar crítico de José João varreu toda a estrutura e rotinas da administração portuguesa na capitania, localizando focos e práticas de corrupção em todos os setores. Via que os funcionários designados pelo governo central e aqueles que arrematavam a serventia pública, ou seja, compravam o direito de exercer cargo que prestava serviço público mediante pagamento de taxas e emolumentos pelos usuários, passando a fazer parte da estrutura permanente da administração local, logo visualizavam meios de ganhar mais do que o previsto nas tabelas oficiais de remuneração, fixadas pelo governo metropolitano, e de escamotear o registro dos valores reais dos donativos, designação que se dava à parte devida à Coroa como tributo pela concessão do direito de prestar serviços públicos. Entre estes destaca-vam-se a outorga de licenças para estabelecer casas de comércio, para exercer ofícios, para construir edificações particulares e públicas (como pontes, por exem-plo), para comprar e vender bens móveis (escravos e animais) e imóveis.

Para José João, era particularmente escandaloso o comportamento de juizes de órfãos e de ausentes, encarregados de administrar os processos de transmissão de heranças. Os bens registrados como parte da herança a ser transmitida a herdeiros ficavam sob a guarda dessas autoridades, a quem caberia a verificação da correção da partilha e sua efetivação, após pagos os tributos devidos, as dívidas legítimas reconhecidas no inventário da pessoa falecida e os legados deixados em testamen-to. Segundo o relato de José João, os juizes não hesitavam em apropriar-se de bens de pessoas falecidas, que não eram listados nos respectivos inventários, como man-davam as ordenações do reino, além de usarem como se fossem recursos pessoais o dinheiro que resultava de leilões de propriedades arrematadas em hastas públi-cas, dinheiro que deveria ser entregue aos herdeiros. Ao invés, os juizes o empres-tavam a juros, apropriando-se do lucro sem prestar contas nem aos herdeiros nem à Fazenda Real. A corrupção atingia os mais altos níveis da estrutura judicial por-tuguesa no Brasil. José João referiu-se a sentenças que encerravam pendências ju-

�0 Instrução, cap. �3.

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diciais, proferidas no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro que, a seu ver, não honravam os provedores de cuja mão emanavam, tal o descaso e a parcialidade para com a correta interpretação da lei e o direito do vassalo��.

Resumindo o triste quadro das relações políticas e do governo da capitania, segundo o olhar de José João, esse funcionário da Coroa portuguesa que era instruí-do, zeloso e perspicaz: a lei era manipulada na rotina burocrática com o objetivo de atender a interesses de enriquecimento particular; não havia ordem pública, no sen-tido de respeito coletivo a uma estrutura de leis e de regras disciplinadoras de negó-cios comuns, que valesse para todos e a todos vinculasse num modo de convivência minimamente solidário. Muitos dos ministros do Rei na capitania e a maioria dos mineiros, a seu ver, eram movidos nas suas relações sociais apenas por interesses materiais; a grande ambição era o enriquecimento rápido e fácil. Comparando a so-ciedade da capitania com a sociedade portuguesa, José João não encontrava nenhum valor de fidalguia e de nobreza entre os mineiros, fossem eles brasileiros ou portu-gueses. Havia um elemento de perversão ética e moral na sociedade do barroco que só poderia ser neutralizado por um princípio superior de autoridade que, a seu ver, só poderia ser encarnado no governador, representante direto do rei, capaz de se preservar das pressões dos homens maus que buscassem envolvê-lo em suas redes de corrupção e de insidiosa desobediência às diretivas da Coroa.

O problema da efetivação da lei e da ordem era mesmo sério: funcionários locais venais, vassalos motivados apenas pelo interesse pessoal e de clãs familiares, governadores que precisavam ser como que super – heróis para exercer a autorida-de superior com isenção e firmeza. E havia ainda mais este problema, fortemente ressaltado por José João: a falta de clareza na definição das esferas de jurisdição das autoridades judiciais e administrativas, se, por um lado, podia facilitar maior área de manobra para o governador, por outro, podia ser usada por algum provedor, intendente, ouvidor, guarda-mor ou outra autoridade nomeada pelo rei como meio de contestar iniciativas moralizadoras do governador, a partir do argumento de que suas ações e iniciativas representavam “exorbitância de autoridade”.

Para a efetiva implantação da boa ordem e do bom governo na sociedade do barroco – e esta era uma opinião emitida em �780, isto é, depois de quase um sé-culo de governo português em Minas Gerais – José João reiterava a necessidade de sistematização das leis e códigos específicos, de definição clara de esferas de jurisdi-ção de autoridades públicas e de ampliação do poder político e judicial do governa-dor. A seu ver, sociedade e governo firmaram-se ali em instituições e práticas que adquiriram certa continuidade e previsibilidade, mas não criaram coesão social e estabilidade institucional. A vida social caracterizava-se por traços de insegurança e de incerteza, como se tudo na sociedade do barroco fosse transitório e desenraizado. A permanência e a grandeza, como comentou o próprio José João, só se expressa-vam nas igrejas, majestosas, que ressaltavam a pobreza e feiura das casas e ruas das vilas, arraiais e cidades onde foram construídas. E a pequenez moral e as mesqui-

�� Instrução, cap. 26.

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nharias da vida cotidiana não condiziam com a religiosidade que se pressupunha que refletissem. A seu ver, a grandeza da arquitetura religiosa não encontrava cor-respondência real nas práticas e costumes dos mineiros.

CONFLITOS SOCIAIS

Ao descrever os sucessos e insucessos dos governadores da capitania, desde o início do século �8, José João separa a análise dos conflitos civis dos problemas da esfera de convívio que hoje são classificados como problemas de segurança públi-ca. A referência política e jurídica para tratar deles muda: nesse caso, não se fala de vassalos desleais mas de vagabundos, vadios, rufiões. A análise do problema da desordem cotidiana – roubos, assassinatos, atentados ao pudor, badernas causadas por bêbados - paradoxalmente, desviava a atenção de José João da falha mais fun-damental na organização do governo, que ele mesmo localizava na fraqueza das instituições e na ambivalência das leis e a dirigia para as tensões decorrentes da estratificação social. Falava de uma escória social, cuja massa humana era formada por escravos, mulatos e negros forros, a gente pobre da capitania que não tinha qualquer opção de realização pessoal fora dos vínculos de trabalho e de proteção social que os ligava aos brancos proprietários e aos funcionários da Coroa, aí inclu-ídos os padres, em suma os principais da terra. Como já se comentou atrás, na te-oria política de José João não existia a noção de indivíduo, mas era forte a premissa das hierarquias sociais baseadas nas tradições da monarquia absolutista portugue-sa. Por causa disto, não incluía na sua análise dos problemas da segurança pública a consideração das imperfeições do mercado e da economia, tal como estas se apresentavam na sociedade do barroco. Tais imperfeições resultavam em limita-ções reais das oportunidades de empresariamento para brancos e não-brancos, mas os mais prejudicados eram mesmo os mulatos e negros forros. Estes podiam até tornar-se proprietários – de vendas, de roças e mesmo de escravos – mas sua posi-ção na estrutura produtiva da capitania sempre foi subalterna. Privilégios e prerro-gativas ficavam reservados para os brancos e disso cuidavam as ordenações reais e o modo parcial de aplicação das leis aos casos concretos. Havia, portanto, uma opinião generalizada entre as elites dirigentes da capitania: negros e mulatos, es-cravos ou forros, eram a classe perigosa. Tal opinião alimentava-se de evidências fatuais: negros e mulatos bebiam muito, faziam muita arruaça, desrespeitavam as autoridades com palavras e gestos, eram criminosos sem moral, facilmente cooptá-veis por régulos que os tomavam a serviço de suas milícias particulares. No caso das mulheres, acrescentava-se o comportamento indecente da prostituição.

Mas, o que podiam fazer esses homens livres para mudar sua situação de inu-tilidade social?

Saindo da condição de escravo, restavam-lhes poucas opções para ganhar a vida de modo autônomo e digno. Mas, muitas das ordens reais proibiam boas op-ções de realização econômica para esta canada social. Por exemplo, não podiam praticar livremente o pequeno comércio de alimentos e bebidas: as restrições ao

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trabalho das negras viandeiras nos serviços de mineração eram freqüentes, sob a alegação de que participavam das redes de contrabando do ouro e dos diamantes; proibia-se a operação de engenhos de cana, que produziam aguardente em peque-nas roças, sob a alegação de que os principais consumidores eram os escravos, que ficavam dopados e trabalhavam pouco e os forros, que, alcoolizados, perturbavam o sossego dos bons cidadãos. Limitava-se a fiação de tecidos aos panos grosseiros, para consumo dos muito pobres, já que tecidos mais finos deveriam ser importados do reino. O José João elitista apareceu claramente no comentário zombeteiro que fez a respeito do número de músicos mulatos na capitania: nem em todo o reino havia tantos. E perguntava-se: para que tantos? Em que tantos músicos servem ao bem do Estado? Nem lhe ocorria concluir que a opção pelo ofício de músico aten-dia bem a dois requisitos racionais, certamente considerados pelos mulatos: era um trabalho que rendia dinheiro e garantia relativa independência pessoal numa socie-dade muito móvel, mas também muito hierarquizada.

Para o governo português, os problemas de segurança pública deveriam ser tratados por meio de repressão: proibição de porte de armas para mulatos e negros forros, prisão e julgamento sumário de vadios, controle do trânsito desse tipo de pessoas. A premissa implícita era a de que estariam sempre maquinando algum tipo de mal ou de golpe esperto contra os membros da elite social, que era compos-ta de brasileiros e portugueses brancos. Portanto, não mereciam confiança como membros integrantes de uma ordem social solidária.

Neste ponto seria possível identificar uma forma de ambivalência analítica na interpretação de José João sobre o problema social na sociedade do barroco, identi-ficável na recusa de integrar sua visão dos elementos de irracionalidade burocrática e de personalismo que, a seu ver, caracterizavam o exercício das funções de autori-dade por parte dos portugueses e dos brasileiros que ascendiam à elite governante e a crônica desordem e insegurança nas relações cotidianas entre indivíduos e estratos sociais. Ele via os dois problemas como separados, devendo ser tratados por meio de soluções diferentes, o primeiro por meio de uma reforma administrativa, o segundo, por meio de aumento da repressão.

Esta ambivalência revelava-se também na opinião negativa que tinha dos por-tugueses que haviam migrado para Minas e que, pelo simples fato de sua origem - eram portugueses e brancos - haviam constituído a elite local. O desejo de enrique-cimento fácil tinha sido sua principal motivação. Mas, segundo José João, em Portugal, esses migrantes eram “a escória do povo e o desprezo dos bons”. Alguns eram réus julgados, outros eram trabalhadores da enxada ou empregados em ofí-cios vis. Chegados às minas, “[fizeram-se] insolentes e [quiseram] ser fidalgos”. O resultado prático de tal atitude foi o desprezo por todo o tipo de trabalho sistemá-tico e a falta do que se poderia chamar de espírito cívico: desprezo pela autoridade, incivilidade nos comportamentos sociais, maus hábitos de convivência, frouxidão nos costumes. Apenas o fausto e a exibição de sinais de riqueza eram valores para essa gente sem nobreza. José João reconhecia que esta elite mal constituída dava mau exemplo para seus próprios filhos e para as classes baixas. Daí se seguia que,

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a seu ver, a sociedade do barroco tinha mesmo muitos defeitos de constituição, que não eram só políticos�2.

O controle da ordem pública era precário. O serviço de vigilância e guarda das ruas de vilas, arraiais e cidades contava com escasso pessoal, recrutado entre os moradores e, portanto, dificilmente insulado das relações pessoais próprias de aglomerados pequenos. A vigilância dos caminhos praticamente não existia. Os quilombos cresciam e facilmente se tornavam coutos de criminosos porque não havia força policial bem equipada, competente e confiável que fosse capaz de submetê-los à lei e à ordem oficial.

José João não pôde deixar de assinalar a ambigüidade do governo português no que se referia ao recrutamento de pessoal para tarefas perigosas na manutenção da ordem pública. Comentou a falta de disposição dos que ocupavam cargos judiciais para cumprir mandatos de prisão de criminosos bárbaros – aí incluídos potentados, verdadeiros bandidos, que moravam no sertão bravio e que aterrorizavam os habi-tantes do entorno e pessoas que viajavam pela região - e para cuidarem do desbrava-mento e guarda de áreas remotas da capitania, ameaçadas por tribos selvagens. Ao invés de exercer sua autoridade e impor o cumprimento das tarefas e obrigações próprias desses cargos, alguns governadores preferiram lançar mão de vadios conde-nados por algum delito para com eles formar tropas auxiliares encarregadas daquelas difíceis tarefas. Esses homens atrevidos, conforme os descrevia José João, nada ti-nham a perder aceitando incumbências que envolviam risco de vida, relacionadas à manutenção da ordem, e tinham tudo a ganhar criando laços pessoais de lealdade com a autoridade máxima na capitania, que era o governador�3.

Assim sendo, também no que se refere às condições da segurança pública, prevalecia a vulnerabilidade do governo e a insegurança generalizada. Até mesmo os padres – seculares e das ordens – contribuíam com sua parte para aumentar os casos de desordem pública. Segundo José João, comportavam-se escandalosamen-te, estimulavam a desobediência às ordenações reais – por exemplo, incitavam os escravos ao desrespeito às autoridades e não ajudavam a coibir seu desregramento social – exerciam suas funções religiosas com desleixo, deste modo enfraquecendo o efeito da religião como mecanismo de controle eficaz da ordem social�4.

Em suma, a sociedade persistia, mas com grau muito baixo de coesão social e de solidariedade na esfera da autoridade política.

ESTILOS DE GOVERNO

�2 Instrução, cap. 26. �3 Instrução, pp. �49-�50. �4 Instrução, p. �55.

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O quadro até aqui pintado, com a ajuda do relato do funcionário da Coroa, mostra uma estrutura de governo que é, simultaneamente, forte e frágil. É forte por ter sido capaz de criar e sustentar uma empresa colonial na capitania, que manteve o conjunto de todos os indivíduos presos em hierarquias sociais rígidas, mas fun-cionais aos interesses fiscalistas do colonizador. Ou seja, não havia outras opções econômicas e de realização pessoal a não ser aquelas configuradas dentro da or-dem social organizada pelas autoridades portuguesas. Mas, esta ordem continha elementos de fragilidade derivados, justamente, do fato de que as relações entre os indivíduos e destes com as autoridades fundavam-se prioritariamente em interesses materiais e não em costumes e tradições que fixassem compromissos fortes com a ordem social. Este individualismo negativo, diferentemente do individualismo po-sitivo próprio das sociedades capitalistas modernas, não criava vínculos éticos du-radouros, estimulando práticas sociais predatórias, como a corrupção, o crime, o nepotismo e o uso do cargo público para a obtenção de benefícios privados.

Em tal contexto, José João demonstrou ser difícil o bom governo, entendido este como forma estável de administração de negócios públicos, que beneficiasse tanto a Coroa portuguesa, quanto os vassalos mineiros.

No entanto, ao relatar os feitos dos governadores da capitania, desde o tempo em que esta ainda era parte das Capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo até a década de �770, José João distinguiu entre governadores que considerava bem sucedidos e governadores aos quais faltara sabedoria política para lidar com os conflitos e problemas próprios da administração da região das minas. Usou a no-ção de estilos de governo para tratar desta arte do soberano�5.

A seu ver, o bom estilo combinava respeito às ordenações reais com a capaci-dade de avaliar até onde se poderia ir para impô-las sem provocar a resistência or-ganizada dos governados. Tal capacidade incluía a habilidade de negociar e de per-suadir vassalos recalcitrantes que pretendessem opor-se a ordens do rei. O procedimento político então usado para ouvir o governado e negociar com ele, como já se comentou atrás, era a convocação de juntas. Estas eram reuniões promovidas pelo governador com o objetivo de divulgar ordens reais e debater a melhor maneira de efetivá-las. Participava de tal corpo político a elite política e econômica da capi-tania que se compunha dos membros das Câmaras das cidades e vilas, de todas as autoridades administrativas e judiciais superiores das quatro comarcas então existen-tes e dos membros da aristocracia local (grandes mineradores, grandes fazendeiros, grandes comerciantes). Esta elite não acatava as ordens reais de maneira disciplinada e automática. O governador podia ouvi-la e acatar suas contra - propostas, adaptan-do-se à pressão dos interesses locais já estabelecidos ou podia impor a ordem real de modo autoritário. Podia, também, buscar construir a adesão dos vassalos a ordena-mentos indesejáveis, por meio de persuasão e de seu convencimento da utilidade do ordenamento e, de maneira mais geral, da conveniência da obediência ao monarca,

�5 A análise que se segue baseia-se nos capítulos 7, 9, �0 e �� da Instrução.

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atitude que o governador buscava demonstrar que contribuía para a estabilidade da economia em geral e do patrimônio dos vassalos em particular.

Segundo esta visão, as tensões e sublevações que caracterizaram, por exem-plo, o governo do Conde de Assumar, no início do século, teriam sido provocadas pela sua inflexibilidade no processo de imposição do método das casas de fundi-ção para a cobrança do quinto do ouro, com o qual os mineiros de então não concordavam. Mas, o governador não quis conversa nem forma alguma de nego-ciação com os principais da terra, de quem, aliás, tinha péssima opinião, julgando-os desonestos e desleais (eram “paulistas”, designação muito pejorativa na década de �7�0, quando usada por funcionários da Coroa).

Já o governador seguinte, Lourenço de Almeida, escolhido a dedo pelo rei em virtude de sua experiência anterior como administrador em possessões portuguesas na Ásia e em Pernambuco, desenvolveu um bom estilo de governo, pois usou a técnica da negociação e da persuasão para obter a adesão dos mineiros à implan-tação das casas de fundição, no que levou bons três anos de seu governo. Mas, quando tal método foi imposto, foi aceito pelos vassalos sem maior contestação. Paralelamente, este governador cuidou de garantir mais segurança à elite da terra, cuja riqueza aumentava nessas décadas iniciais da mineração do ouro: proibiu o uso de armas de fogo para negros e mulatos forros, atuou como árbitro em pendên-cias de limites de propriedades, nisto passando por cima da atribuição de guardas – mores, de quem também tirou a prerrogativa de concessão de datas para a explo-ração de diamantes, logo no início das descobertas no Serro Frio (�727/�728). Se-gundo José João, este governador impôs-se por exercer autoridade efetiva, por as-sumir responsabilidades de impor lei e ordem em esferas específicas da vida coletiva, quando as autoridades formalmente responsáveis mostraram-se inadim-plentes e por ser hábil negociador. A seu ver, era isto que se devia exigir de um governador de região instável e conturbada, isto é, que exercesse autoridade, que não se submetesse a pressões de indivíduos ou de grupos que quisessem passar o interesse do rei para segundo lugar e que garantisse a ordem pública.

Para José João, o governador que mais se aproximou do ideal de máxima efi-cácia como autoridade efetiva e bom administrador foi um jovem de nome pompo-so, que tinha menos de 25 anos quando foi nomeado para o cargo: José Luiz de Menezes Abranches Castelo Branco e Noronha, Conde de Valadares, que ocupou o cargo de �768 a �773. Nesses cinco anos, enfrentou e resolveu crises na sempre tensa esfera fiscal e adotou iniciativas visando a revitalizar a já enfraquecida eco-nomia da capitania. O primeiro grande feito do jovem governador registrou-se no âmbito da negociação política, habilidade sempre muito reconhecida e louvada por José João. O conflito então pendente referia-se ao ato da rainha portuguesa, que queria impor a continuidade, por mais dez anos, do pagamento do subsídio voluntário, tributo imposto em �756, para vigorar por dez anos, tendo por finalida-de financiar a reconstrução da cidade de Lisboa após o terremoto de �755. Os contribuintes eram todos os comerciantes que atuavam nas possessões coloniais. O ano final de cobrança deveria ter sido �766. A imposição de extensão de sua vigên-cia por mais dez anos causou grande grita entre os súditos da Capitania de Minas

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Gerais. Alegavam que o fundo para a reconstrução já tinha recursos suficientes e que a própria capitania estava empobrecida, necessitando de contar com todo o apoio financeiro de que pudesse dispor para promover a recuperação de sua capa-cidade produtiva. A este propósito, o próprio José João comentava que a continui-dade de exploração rentável dos frutos da terra demandava mais investimento em tecnologia e na política de abertura de fronteiras ainda fechadas na capitania. Abertura de caminhos, construção de pontes, obras de correção de cursos de rios: tudo custava dinheiro e empenho dos agentes econômicos e dos governantes. Sob este prisma, o argumento dos mineiros para não pagar mais impostos tinha bom fundamento. No entanto, cabia ao governador, cuja lealdade maior deveria ser dirigida aos interesses da Coroa, só coincidentes com os da capitania por via do que esta podia oferecer para o sustento geral do império português, buscar realizar, em primeiro lugar e prioritariamente, as ordens reais.

Então, a pendência sobre a continuação da cobrança do subsídio voluntário constituía nova forma de manifestação do permanente conflito fiscal, que sempre opôs os governadores, representantes da Coroa, e os mineiros, vassalos renitentes, ao longo de todo o século �8. José João avaliava a habilidade política do governa-dor através de sua capacidade de solucionar este conflito permanente. A seu ver, o Conde de Valadares dobrou a resistência das Câmaras, por meio das quais este tributo era cobrado, de modo inteligente: por meio de muito discurso e persuasão, conquistou a adesão das Câmaras das cidades principais (Mariana, Vila Rica, Vila Nova da Rainha e Sabará). O passo seguinte foi confirmar o apoio das Câmaras menores, tarefa que delegou aos Procuradores da Fazenda locais.

Outra ação do bom governo, que o Conde de Valadares pôs em prática sem se deixar levar pela malícia dos povos foi a identificação e cobrança de dívidas pen-dentes com a Fazenda Real relacionadas à transferência do dinheiro arrecadado como pagamento do subsídio voluntário, retido indevidamente nas mãos dos que haviam arrematado o direito de cobrá-lo, e relativas a donativos, isto é, ao paga-mento do tributo a ser pago pelos que compravam a concessão real para a execu-ção de serviços públicos diversos (por exemplo, registros de controle de circulação de mercadorias, liberação de licenças diversas, exercício de cargos judiciais, como o de meirinho e escrivão). Em outras palavras, o Conde de Valadares cuidou de diminuir o prejuízo da Fazenda Real que decorria da apropriação privada de renda coletada como pagamento de taxas, tributos e impostos e, segundo o relato de José João, fez isto com eficácia, o mesmo não se podendo dizer de seu antecessor, go-vernador pusilânime, Luiz Diogo Lobo da Silva. O Conde de Valadares passou a cuidar pessoalmente dos leilões dos cargos públicos vacantes com o objetivo de negociar donativos maiores a serem pagos à Fazenda Real. Segundo o relato de seus feitos principais, feito por José João, mostrou zelo superior em todos os meios e ações que contribuíam para aumentar a arrecadação de tributos e para diminuir as despesas correntes do governo.

Outro traço do bom estilo de governo, segundo José João, encontra-se na ca-pacidade que deve ter o dirigente de saber identificar adequadamente onde estão os defeitos da administração pública que decorrem da má gestão e de buscar solu-

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ções inteligentes, levando em conta a limitação de recursos de que dispõe para superá-los ou, pelo menos, neutralizá-los. Sob este aspecto, de novo sobressai po-sitivamente o estilo do Conde de Valadares. Dois exemplos de decisões que tomou ilustram este ponto. O primeiro: levando em conta a escassez de pessoal para o policiamento do interior e a dificuldade de fazer cumprir mandatos de prisão de infratores perigosos, o Conde de Valadares, após estudar cada processo pendente que tinha por objeto acusações contra vadios, resolveu indultá-los mediante seu compromisso de servir de força auxiliar para as tropas pagas e para as milícias das comarcas, compostas por homens bons, que, na opinião do governador, prestavam mais serviço ao reino cuidando de suas atividades particulares do que embrenhan-do-se no sertão para combater índios bravios, reprimir régulos despóticos e fazer cumprir mandatos de prisão envolvendo homens facinorosos.

O segundo exemplo: verificando o elevado grau de improbidade administrati-va e de práticas de corrupção entre os meirinhos, que eram encarregados de co-brança de tributos devidos à Fazenda Real, decidiu usar soldados das tropas pagas para cumprir tais atos, o que provocou aplauso da população e reações contrárias da parte dos altos funcionários que comandavam os meirinhos e se beneficiavam com suas práticas fraudulentas.

Também no que se refere à função do governante como responsável pelo fo-mento do progresso material dos governados, o Conde de Valadares destacou-se ao buscar promover a abertura de novas áreas de mineração, optando pela penetração do sertão do Rio Doce por terra e não pelo próprio rio, que era caudaloso, com um curso interrompido por muitas cachoeiras, dificultando a navegação - e ao comba-ter coutos de criminosos que dificultavam o acesso a regiões da capitania onde ainda havia possibilidades de exploração rentável e mais fácil de veios auríferos. O Conde de Valadares concentrou-se, portanto, em aumentar a moralidade do gover-no, o nível de segurança pública e o caixa do governo, metas consideradas cruciais para o bom governo, segundo José João.

Do ponto de vista da tarefa de fomento à economia, José João destacou tam-bém o desempenho do governador que sucedeu o Conde de Valadares. Antônio de Noronha tomou posse em �775 e teve como maior preocupação levar adiante a penetração do sertão do Rio Doce, convencido que estava de nesta parte ainda selvagem da capitania havia muita riqueza a ser explorada. José João compartilha-va a opinião de pessoas gradas da terra – citou especificamente o guarda – mor e coronel João da Silva Tavares - de que se tornava crucial adotar ações fortes e ime-diatas para combater a “grave moléstia” que afligia Minas Gerais, a saber, “a suces-siva decadência dos seus interesses” ou, em outras palavras, a diminuição do retor-no nas lavras de ouro, diamantes e outras pedras preciosas, o que enfraquecia as demais atividades econômicas (comércio, lavoura, pecuária e a rentabilidade dos diversos ofícios). Entre essas medidas destacava-se o desbravamento de novos ter-ritórios, particularmente do sertão do Rio Doce.

Mas, José João observava que esta visão não era compartilhada por todos os habitantes da capitania. Comentava a existência de “propaganda contrária” à polí-tica de penetração do interior, articulada nas regiões de ocupação mais antiga por

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vigários e roceiros, nenhum desses grupos favorável a movimentos migratórios que pusessem em risco suas fontes estabelecidas de renda. Os vigários queriam reter os fiéis que pagavam emolumentos pelos serviços religiosos, os roceiros queriam man-ter perto de si os consumidores de seus produtos, cujos preços, na opinião de José João, quando comparados aos preços cobrados em Portugal, eram exorbitantes.

À GUISA DE CONCLUSÃO

A opinião do funcionário real sobre o que devia ser o bom governo certamen-te coloca a questão mais geral que é a de identificar o que é o bem comum para uma determinada coletividade. No caso de uma dependência colonial, como era a Capitania das Minas Gerais, qual deveria ser a referência para se definir o bem comum a ser realizado pelo governante: o interesse predominantemente fiscal da Coroa portuguesa ou o progresso e bem-estar dos súditos coloniais? José João ape-nas tocou em questão tão polêmica ao declarar que a autoridade do rei era final e que o limite da resistência legítima por parte do súdito era dado pela possibilidade de ser ele ouvido por autoridades reais antes da imposição de ordenações que po-deriam dar origem a revoltas e à desobediência coletiva.

A ambivalência do problema da ordem e da legitimação da autoridade em sociedades coloniais, como foi a sociedade do barroco, pode explicar muito da calúnia e difamação que acompanhava a memória dos governadores, que ficava entre os mineiros. Segundo José João, todos, com maior ou menor intensidade, eram acusados de atos vis e de parcialidade, independentemente do mérito intrín-seco do governo que tivessem feito. Mas, quando se leva em conta a tensão políti-ca fundamental que derivava da divergência de interesses entre governo português e mineiros, quanto melhor fosse o governador aos olhos do rei, pior seria ele para os vassalos que aspiravam mais liberdade, pelo menos na esfera econômica.

Muitos dos problemas identificados por José João no processo de construção da ordem e da imposição da autoridade política na sociedade do barroco persisti-ram no país independente. Alguns dos diagnósticos da origem e possibilidades de correção desses problemas, que o funcionário português apresentou, ainda podem servir de bom ponto de partida para a reflexão sobre os desafios da instituição de uma sociedade boa e justa no Brasil.