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Leinimar de Jesus Alves Pires Chico Buarque – entre o popular e o erudito Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz Rio de Janeiro Março de 2006

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Leinimar de Jesus Alves Pires

Chico Buarque –

entre o popular e o erudito

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz

Rio de Janeiro Março de 2006

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Leinimar de Jesus Alves Pires

Chico Buarque – entre o popular e o erudito

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Mestre em Letras. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Dr. Júlio Cesar Valladão Diniz Orientador

Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Dra. Giovanna Dealtry Ferreira Departamento de Comunicação Social –

PUC-Rio

Prof. Dr. Alexandre Graça Faria Departamento de Letras - UFJF

Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências

Humanas

Rio de Janeiro, 10 de março de 2006

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Leinimar de Jesus Alves Pires Graduou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2003. Foi Monitora do Departamento de Letras. Ingressou em 2004 no Programa de Pós-Graduação em Letras (Estudos de Literatura Brasileira) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduanda em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou artigos pertinentes aos Estudos de Literatura.

Ficha Catalográfica

CDD: 800

Pires, Leinimar de Jesus Alves Chico Buarque – entre o popular e o erudito / Leinimar de Jesus Alves Pires ; orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz. - Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Letras, 2006. 117 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras. Inclui referências bibliográficas. 1. Letras – Teses. 2. Cultura popular. 3. Sambista. 4. MPB. 5. Literatura brasileira. 6. Buarque, Chico. I. Diniz, Júlio Cesar Valladão. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Para meu pai, Eulálio

“Olha as minhas meninas As minhas meninas

Pra onde é que elas vão? Se já saem sozinhas

As notas da minha canção”

Minha mãe, Eunice

“Vão as minhas meninas Levando destinos

Tão iluminados de sim Passam por mim

E embaraçam as linhas Da minha mão

As meninas são minhas Só minhas na minha ilusão”

Minha irmã, Laurenice

“Agora eu era o rei

Era o bedel e era também juiz E pela minha lei

A gente era obrigada a ser feliz E você era a princesa

Que eu fiz coroar E era tão linda de se admirar

Que andava nua pelo meu país”

E a pequena Eloá

“Dorme minha pequena não vale a pena despertar

Eu vou sair Por aí afora

Atrás da aurora Mais serena”

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Meus agradecimentos

Ao meu orientador, Júlio Diniz, pelos encontros e desencontros, pela aposta e pela leitura,

sempre acompanhada de um bom bate papo.

À Giovanna e ao Alexandre, por aceitarem participar da banca.

À professora Marília Rothier Cardoso, que, como sempre, acreditou e incentivou minhas

“idéias mirabolantes”, sempre me mostrando algo novo; pela amizade e delicadeza.

Às “meninas” do Departamento de Letras, Miriam, Di, Verinha e, especialmente à

querida Chiquinha, sempre carinhosa e atenta.

Ao meu tio Lúcio, pela amizade incondicional e por raptar minha mãe me permitindo,

assim, estudar. E, é claro, pela paciência...

À minha “turma” da PUC, pelos cafezinhos no Bar das Freiras e outros programas, em

especial Anderson, Antônio Henrique, Cláudia, Daniel, Frederico, Juliana, Luciana

Arnaud, Marcela, Marcelo, Mariano, Mauro, Myrtes, Paulo Roberto, Stella.

À Anna Paula, a amiga mais certa e mais torta que já tive, em toda minha vida;

fundamental neste processo com toda sua sabedoria e candura.

À Beatriz, presente da gênese ao apocalipse, me alegrando sempre.

À Paola, menina incrível, que tem a palavra como instrumento de vida.

À Carol, minha amiga, minha meta!

À Luciana Gattass, prova viva de que nem toda delicadeza foi perdida.

À Fernanda, por estarmos sempre unidas e por ser fantástica.

À Andréia, pela força durante o percurso e a amizade cheia de afeto.

À Cecília, sempre sumida, sempre presente.

À Ariadne, minha amiga inacreditável!

Às minhas amigas da graduação, por todos os momentos felizes que passamos juntas:

Aline, Alyne, Flávia, Joana, Núbia, Sophia, Taíza e ao amigo Paulo.

Aos meus amigos do IFCS, pelos eventos alegres no Bar Daspu, especialmente André,

Camila, Letícia Kling, Rachel.

À Lethícia Ouro, por nossa bela-eterna amizade e por não abrir mão da paixão.

Às amigas das divertidíssimas pesquisas empíricas, Rosi e Patrícia.

Ao meu cunhado Zé Café, por todos os Baticuns e pelo próximo, que está por vir.

Ao Elias, músico mais sério do mundo, condição de possibilidade deste trabalho e um dos

responsáveis por minha “chicolatria”.

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Ao Luís Torres, amigo querido e presença fundamental, da aurora ao crepúsculo deste

processo, tornando essa dor em um processo agradável.

À D. Cléo, por todos os momentos que passamos juntas a sorrir, recheados de amizade e

doçura; por ser tão alegre e contagiante!

À Sofia, por tudo que me ensinou e pela parceria, sempre feliz.

À Letícia Villela, Madalena e Mônica, pelo belo encontro durante a caminhada.

Aos amigos maravilhosos que Realengo me deu: Alexandre, Áurea, Edson Vander,

Janine, Juninho, Lívia, Sônia, Soninha. Fala Realengo!

À Irene pela acolhida e à Luiza, por ter nascido junto comigo.

À professora Miriam Sutter, fundamental em minha formação.

À professora Pina Coco, pelo incentivo desde a graduação.

À Santuza, por todas as trocas propiciadas pelo belo curso e pelo carinho.

Aos professores Gilvan Fogel e Roberto Machado, que me ensinaram que só há vida onde

há Filosofia e só há Filosofia onde há vida.

Ao Alexandre, pelo encontro inusitado e o tempo que me cedeu seu “acervo Chico

Buarque de Hollanda”, sem o qual este trabalho jamais seria o mesmo.

Aos amigos e professores do Pré-Vestibular para Negros e Carentes de Realengo, local de

encontro, trabalho e muitas alegrias.

À minha família, Alves e Pires.

Aos meus primos, Alex, Cirene, Cristina, Chaiane, Heraldo, Higor, Mariana, Nícia,

Raquel, Lenilson, Washington, por tudo que passamos e ainda vamos passar juntos nessa

vida.

À minha tia Val, por nadar sempre contra a maré, apimentando as questões do meu

trabalho.

À minha tia Ceiça por ser sempre assim, como é.

À minha prima Clenice, que sempre ouviu minhas descobertas, querendo ou não.

À minha tia Lucy, tudo, sempre.

À Lourdes, que reafirmou minha “mangueirice”, enchendo minha infância de sambas

maravilhosos.

Ao mestre Faíscca, que me ensinou a tocar.

À Katia, por todos os sambas que tocamos juntas.

À PUC-Rio, ao CNPq e à CAPES, pelo auxílio a este trabalho.

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Resumo

PIRES, Leinimar de Jesus Alves; DINIZ, Júlio Cesar Valladão (orientador). Chico Buarque — entre o popular e o erudito. Rio de Janeiro, 2006. 117 p. Dissertação de Mestrado. Departamento de Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O objetivo desta dissertação é analisar a legitimidade da declaração de Chico

Buarque que, em 1994, se autodenominou “um sambista que escreve livros” em uma

entrevista de divulgação de seu primeiro romance, Estorvo. Levantaremos algumas das

problematizações que essa declaração evoca acerca de sambas e sambistas no cenário

cultural brasileiro. Perseguimos com este texto investigar brevemente a mudança de lugar

do samba no imaginário nacional, passando da repressão à louvação social e oficial,

inclusive, servindo de exemplo máximo da “brasilidade” e a aceitação dos sambistas, em

diferentes momentos históricos. Analisaremos, ainda, a especificidade brasileira na

compreensão de “música popular”, e consequentemente, “artista popular”.

Palavras-chave

Cultura popular, Sambista, MPB, Literatura brasileira, Chico Buarque.

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Abstract

PIRES, Leinimar de Jesus Alves; DINIZ, Júlio Cesar Valladão. Chico Buarque – between popular and erudite. Rio de Janeiro, 2006. 117 p. MSc. Dissertation. Literature Departament. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The aim of this Dissertation is to analyze the legitimacy of what Chico Buarque

declared in 1994, when he called himself a “samba composer who writes books” in an

interview given while promoting his first novel, Estorvo. We are going to bring up some

of the problematics that his statement evoked concerning sambas and samba composers

in the Brazilian cultural scene. Our purpose with this text is to analyze briefly the shift of

samba in the national imaginary, going from repression to social and official appraisal -

serving as an ultimate example of “brasilidade” – and the acceptance of samba

composers in different historical moments. We are also going to analyze the Brazilian

understanding of “popular music”, and thus of “popular artist”.

Brasilidade – distinctively Brazilian character or quality; love or patriotism for

Brazil.

Key Words

Popular culture, samba composer, MPB, Brazilian Literature, Chico Buarque.

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Sumário

1 – Estação Primeira 10

2 – Sambista ontem, sambista hoje 26

3 – Um sambista na Biblioteca Nacional 51

4 – Sambas dos sambistas 85

5 – Estação Derradeira 104

6 – Referências Bibliográficas 107

7 – Anexo 117

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1 Estação Primeira

“Venha a ser o que tu és”

Píndaro.

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A edição 205 da revista Super interessante apresentou na seção “Super

Polêmica – idéias que desafiam o senso comum” o artigo “Deus realmente existe

ou ele é só Chico Buarque?” No texto, que é assinado pelo jornalista americano

Michael Kepp, casado com brasileira e autor do livro Sonhando com sotaque –

confissões e desabafos de um gringo brasileiro, é feita uma análise do que Keep

chama de “endeusamento epidêmico de Chico Buarque”. (Revista Super

interessante, 2005 )

O aniversário de sessenta anos do artista, em junho de 2004, mobilizou

grande parte da imprensa brasileira com homenagens variadas, assim como um

órgão público de imensa legitimidade no que tange aos cânones culturais — a

Biblioteca Nacional, a emissora de TV fechada DirecTV, um livro lançado pela

editora Garamond etc. Kepp, indignado com a intensa comemoração, questiona se

não seria equivocada a eleição de um artista como herói nacional, ao invés de,

semelhante a seu país, valorizarmos os princípios que defenderam algumas

personalidades, ou pelos quais elas morreram. O autor alia tal postura ao histórico

político do Brasil, onde os representantes da nação são ridicularizados e nos quais

o povo não confia. Então, personalidades individuais, artistas e esportistas na

maioria das vezes, são considerados os “heróis nacionais”. É nesse lugar que

Chico é colocado pelos brasileiros, segundo a ótica do americano.

Enfim, a super polêmica foi lançada: falar mal de Chico Buarque. A

matéria do jornalista foi muito citada por admiradores do artista, muitas vezes

com indignação, já que tantas vezes, no imaginário dos fãs, Chico é “a única

unanimidade nacional”. Michael Keep se lança contra o endeusamento do artista,

demonstrando, por vezes, certa “dor de cotovelo”, já que declara ser sua mulher

mais uma das inúmeras “apaixonadas” pelo “Zeus brasileiro”, como o chama.

A suposta unanimidade citada não se justifica, já que o artista é muito

reconhecido e valorizado dentro de um contexto social e intelectual específico —

ou seja, sua obra não é tão “universal” quanto por vezes querem nos fazer crer, “a

não ser que se confunda, como costuma acontecer, Zona Sul com o Brasil, a elite

com o povo, o particular com o universal”. (Jornal do Brasil, 13/06/2004, p. B8)

A dissertação que se inicia tem por objetivo analisar uma parte da imensa

obra desse representativo artista da cultura brasileira. O último disco de Chico até

então, As cidades, foi lançado em 2001. Posteriormente, quando “seu violão ficou

desafinado”, conforme declarou em entrevista à revista Ocas, o artista reassumiu

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sua vertente de escritor, lançando seu último e mais bem sucedido romance,

Budapeste, em 2003. Não será, entretanto, o escritor Chico Buarque, premiado e

reconhecido como tal, tendo em vista as diversas indicações e a conquista de

prêmios literários inclusive, o recorte dentro de sua obra para esta dissertação. Ao

eleger Chico como objeto para uma reflexão crítica, diversas temáticas podem ser

escolhidas. O artista plural tem publicado livros, peças de teatro, além de ter

composto centenas de músicas no decorrer de sua longa carreira. E para este

trabalho, o interesse maior é pelo compositor e não pelo escritor, como seria mais

provável em um curso de Pós-Graduação em Letras.

Eleger o compositor, no entanto, não significa um “porto seguro”, já que

Chico assume, como diz Renato Janine Ribeiro em seu artigo “A utopia lírica de

Chico Buarque de Hollanda” (In: CAVALCANTE; STARLIN, EISENBERG,

2004), vários “personagens paradigmáticos” quando compõe suas canções. Pode-

se ilustrar tal variedade, por exemplo, pela seleção que resultou em cinco CDs,

realizada pelo crítico musical Tárik de Souza em 1994, quando o artista

completou 50 anos.1 A escolha pelo artista, dentre tantos outros, também deve ser

justificada: interesso-me pela “canção crítica”, e mesmo pelo “artista crítico”. E é

por reconhecer nele e em grande parte de sua produção essas características que o

escolhi como objeto de estudos.

A canção popular é, no Brasil, uma das matrizes de interpretação de nossa

realidade. Nos relatos realizados pela música, Chico tem importante papel. A

“canção de protesto” é muito constante em sua obra, durante o período de intensa

censura pelo qual passaram tantos artistas. Além delas, as canções biográficas, os

trabalhos por encomenda para cinema e televisão, músicas para peças teatrais...

Há no entanto, um estilo de canção que acompanha os trabalhos variados do

artista: o samba. Sua carreira inicia-se com um disco repleto de sambas e o ritmo é

reconhecível ao longo de suas produções, no decorrer do tempo. Nos discos de

shows do artista, nos quais canções que “espelhem” o conjunto da obra são

selecionadas, a presença do samba é sempre marcante.

No disco “Chico Buarque – ao vivo em Paris/Le Zenith”, gravado em

apresentação internacional, entre as 23 canções apresentadas estão os seguintes

1 Os discos em questão são “O amante”, “O político”, “O trovador”, “O malandro” e “O cronista”. Essas subdivisões e as canções escolhidas para cada um dos discos não significam, no entanto, que temas por vezes não se sobreponham. Além desses discos, poderiam ainda ser enfocados os discos infantis.

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sambas: “A Rita”, “Samba do grande amor”, “A volta do malandro”, “Partido

alto”, “Sem compromisso” (de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro), “Deixa a

menina”, “Vai passar”, “Samba de Orly”, “Eu quero um samba” (Haroldo

Barbosa e Janet de Almeida) e a emblemática “Essa moça tá diferente”. Há ainda

a participação de seu “mâitre de ballet”, Mestre Marçal, em “Sem compromisso” e

“Deixa a menina” — dois sambas brincalhões, com histórias que fazem rir: um de

sambistas tradicionais; outro de Chico, que compõe uma letra próxima das

temáticas recorrentemente enfocadas por aqueles sambistas “primordiais”. Já em

“Chico ao vivo”, de 1999, “Amor barato”, “A volta do malandro”, “Homenagem

ao malandro”, “Injuriado”, “Quem te viu, quem te vê”, “Carioca”, “Capital do

samba” (Zé Ramos), “Chão de esmeraldas” e “Vai passar”. Há ainda o disco

“Uma palavra”, que não é ao vivo, mas uma seleção pessoal do artista dentro de

sua própria obra, que escolheu, entre as 15 canções, “Estação derradeira”, em

homenagem à Mangueira, “Samba e amor”, “A Rosa”, “Ela desatinou”, “Pelas

tabelas”, e novamente “Quem te viu, quem te vê” e “Amor barato”. Começamos a

perceber que não é possível analisar a obra de Chico ignorando a constante e

marcante presença do samba.

Em 1989 Chico lança um disco que, estranhamente, não continha sambas.

Nele está a canção “Uma palavra”, na qual ele fala sobre sua “matéria-prima”. Em

relação aos versos: “palavra boa/ não de fazer literatura, palavra/ mas de habitar/

fundo/ o coração do pensamento, palavra”2, ele declarou em entrevista recente

que, mesmo afirmando na canção não utilizar a palavra para compor trabalhos

literários, o trecho parecia uma preparação para o ambiente que se encaminhava.

E em 1991 lança Estorvo, seu primeiro romance. Anteriormente publicou algumas

peças de teatro, mas as considera ainda extensão de seu trabalho musical e,

portanto, a carreira do escritor, segundo ele, começa com Estorvo.

Na entrevista em que divulgava o referido romance na Alemanha encontra-

se o mote para a discussão deste trabalho. Nela, perguntado a respeito de sua

carreira de escritor e compositor popular, Chico Buarque se autodenomina um

“sambista que escreve livros”, e este será o horizonte de reflexão. Há ainda uma

outra entrevista sua, concedida em julho de 2004 à revista Ocas, na qual afirma

não ser um escritor, mas sim “um homem de música que escreve textos”

2 “Uma palavra”, in: Chico Buarque (1989), faixa 8.

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(HOLLANDA, Revista Ocas, 2004), que também será importante para esta

reflexão, pois a temática é um pouco distinta da primeira entrevista, de 1994.

Se concordamos com sua autodenominação, devemos atentar para o fato

de que Chico Buarque não é o único “sambista que escreve livros” no Brasil.

Citando apenas um outro exemplo, ao escritor e pesquisador Nei Lopes alia-se um

partideiro respeitado. Minha escolha por Chico não significa que o artista seja o

único que possua uma biografia com tais características, mas algumas

especificidades que encontramos em seus trabalhos, em seu discurso, em sua

trajetória e em sua recepção são os motivos pelos quais ele e sua obra são meus

horizontes de reflexão.

O poeta e crítico Affonso Romano de Sant’Anna afirma que

Os textos de música popular brasileira passaram a ser estudados rotineiramente nos cursos de literatura de nossas Faculdades de Letras. Isto se deve a uma expansão da área de interesse dos professores e alunos, e a uma confluência entre música e poesia que cada vez mais se acentua desde que poetas como Vinicius de Moraes voltaram-se com força total para a música popular e que autores como Chico e Caetano se impregnaram de literatura. (SANT’ANNA, in: FERNANDES, 2004, p. 161.)

O interesse pelo estudo dos trabalhos de compositores musicais na

academia é crescente e significativo, ampliando o espaço reflexivo dos

pesquisadores. O advento dos Estudos Culturais auxiliou muito a amplitude que

temos, por exemplo, em uma pós-graduação em Estudos de Literatura. Novo

campo do conhecimento, podemos compreender os Estudos Culturais, a princípio,

como um inovador espaço de discussão sobre cultura. Mas eles não se resumem a

isso. Para que se realize um estudo nesse campo, “de identidade cambiante e

fluida” (COSTA, 2000, p. 15), a interdisciplinaridade é recorrente, mas ela

também não esgota seu campo de abrangência. Segundo as palavras de Cary

Nelson, Paula A. Treichler e Lawrence Grossberg, na introdução do livro Cultural

Studies:

De fato, os Estudos Culturais não são simplesmente interdisciplinares; eles são freqüentemente, como outros têm dito, ativa e agressivamente antidisciplinares — uma característica que, mais ou menos, assegura uma relação permanentemente desconfortável com as disciplinas acadêmicas. (GROSSBERG ; NELSON; TREICHLER, 1992, p. 8)

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Já podemos compreender, então, que se trata de um campo de batalha.

Batalha, neste contexto, pode ser entendida como lugar de efervescência de

questões, que não estão prontas mas que serão descobertas, segundo cada projeto

de estudo, de acordo com cada interesse. Bibliografias são buscadas nos campos

que acrescentem às pesquisas realizadas, sem estabelecimento de hierarquias. O

que determina a escolha é o próprio contexto da investigação, mas é necessário

ressaltar que nada pode ser adotado, de maneira alguma, acriticamente.

Ao eleger tal proposta, comprometo-me com uma análise crítica do nosso

objeto de investigação. Considerando os Estudos Culturais uma tradição tanto

intelectual quanto política, é necessário que estas especificidades não sejam

esquecidas no decorrer dos estudos. O cânone é constantemente questionado pelos

estudiosos da área. Aproximando essas particularidades do trabalho proposto, é

também uma análise da “canonização” de Chico Buarque enquanto artista e

personalidade o que me interessa realizar com este trabalho. Ao mesmo tempo em

que parte da crítica e do público muitas vezes exaltam sua personalidade,

aproximando-o da “perfeição”, Chico nada contra a maré e se afirma um artista

popular, não tão apolíneo quanto se insiste em fazer crer, que dialoga tanto com a

tradição quanto com as manifestações que em nossa cultura aproximam-se mais

da arte erudita. No artigo “A utopia lírica de Chico Buarque de Hollanda”, o

filósofo Renato Janine Ribeiro chega mesmo a questionar ser

curioso que a imagem de Chico não padeça do papel que ele dá à transgressão. Ele a celebra sempre, embora em graus variados, mas que incluem o delito, a contravenção, até mesmo o crime, bem como o adultério e aquilo que em outros tempos se chamava “amor livre”. Contudo, embora sua transgressão chegue a incluir casos tipificados no Código Penal, o seu eixo está naquilo que enfrenta ou afronta a moral vigente, denunciada como hipócrita e geradora de infelicidade [...] E, desses dois aspectos que exibem os costumes dominantes, mentira e sofrimento, o que mais importa para ele é o segundo. Não se trata de denunciar a hipocrisia por ser hipocrisia, mas por engendrar a infelicidade. (idem, p. 154-5)

Outra disciplina que auxilia este estudo é a etnomusicologia. Conforme

afirma o ensaísta Júlio Diniz,

A etnomusicologia, em interface com outras disciplinas, contrapõe-se ao exercício musicológico conservador, articulando uma primeira tentativa interdisciplinar de compreensão da música. (In: BERARDINELLI, 2000, p. 246)

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Em contraposição ao posicionamentos de musicólogos tradicionais, que

consideram a música erudita como a ilustre referência, por ser pautada em padrões

culturais europeus, a “‘arte superior’ (com suas grandezas e exuberância

harmônica), erudita e européia” (idem, p. 238), a etnomusicologia conta com

conhecimentos e contribuições advindos de áreas diversas “como a antropologia,

a sociologia, e a etnografia” (idem, p. 245), enriquecendo, assim, o espaço de

discussão e reflexão e propondo um estudo que relacione música e sociedade.

Chico Buarque de Hollanda é uma artista contemporâneo nosso, que está

vivo e produzindo, o que deve ser observado no decorrer da análise. Ao lermos

biografias ou textos que se referem ao artista, constantemente elogiosos, algumas

questões reaparecem insistentemente, como sua base familiar, suas influências no

campo das artes, suas parcerias dentro do que é considerada a “alta cultura”

brasileira etc. Questões que têm, inúmeras vezes, tom determinista, enfatizando

que, graças a este “histórico”, Chico Buarque fatalmente seria o ilustre e

importante artista brasileiro que de fato é. Nunca é questionado, no entanto,

porque seus irmãos, por exemplo, que conviveram no mesmo ambiente, não

ocupam o mesmo lugar que Chico, mesmo os que estão no meio artístico.

Pensaremos juntos neste trabalho se essas insistentes caracterizações não apagam

algumas especificidades vivas e presentes na constituição de sua própria obra,

recorrentemente enfocadas pelo artista.

A declaração na entrevista, que serve de base para a dissertação, parece ir

em contrapartida à imagem que freqüentemente se faz de Chico Buarque. Parte

desta entrevista esteve presente na exposição comemorativa por seus 60 anos,

realizada na Biblioteca Nacional em 2004. Se bem observarmos, a declaração se

embate com o retrato do artista que fora elaborado pela própria exposição.

Ao dizer que é sambista, Chico Buarque reafirma sua postura como a de

um artista popular. Se nos interessamos pela imagem do artista e por sua recepção

no imaginário nacional, Chico se afasta daquilo que poderíamos imediatamente

compreender como “artista popular”. Mas se considerarmos que sua produção está

inserida no que é conhecida como a Música Popular Brasileira, ou simplesmente

MPB, não há ambigüidade em considerá-lo como tal, como um dos nomes que

compõem a música popular de nosso país.

Serão desenvolvidos três capítulos, com algumas das questões

consideradas pertinentes para a discussão. O capítulo seguinte, intitulado

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“Sambista ontem sambista hoje”, investiga as distintas formas como foram e são

recebidos pelo público e pelas camadas oficiais, responsáveis pela manutenção da

“ordem pública”, o artista reconhecido como sambista. A inegável repressão que

sofreram os primeiros sambistas, ou, nas palavras de Donga, “a situação

vexatória” como eram tratados pela polícia e a forma como eram vistos pela elite

carioca serão discutidas neste capítulo.

O trabalho de Hermano Vianna no livro O mistério do samba

acompanhará a discussão do capítulo. O antropólogo interessa-se em investigar

como o samba, signo renegado socialmente, mudou de lado e foi eleito a

manifestação cultural brasileira por excelência. Para tal análise, alia-se ao

pensamento de Gilberto Freire e à “invenção do mulato”; reflete sobre as

estratégias do governo Vargas e a relação antiga entre membros da

intelectualidade e artistas populares, elegendo um encontro específico como tema

para o desenvolvimento de sua tese.

O sambista ontem cantava, na maioria das vezes, sua realidade, suas

mazelas, e com o advento do rádio e o interesse da indústria cultural estas

questões ultrapassaram o âmbito da comunidade e passaram a ser conhecidas por

um público mais amplo. O sambista hoje canta temas variados, denuncia ou não

sua realidade, nem sempre tão sombria como aquela de seus predecessores. E se

ontem ele era associado majoritariamente a “negros e desordeiros” pela

preconceituosa lógica do início do século, na qual o negro sempre foi o segmento

social mais perseguido, hoje já há interesse de um filho da elite brasileira e

herdeiro de um dos intelectuais mais renomados afirmar ser, também, sambista. O

que permite tal declaração é a própria metamorfose pela qual passou o samba,

entre tantos outros signos culturais.

Outro fator que possibilita a afirmação buarqueana é o contexto híbrido

pelo qual passamos atualmente. A busca de essências originárias é muito

questionável no momento, seja no que diz respeito às identidades, que são

construídas dentro de diversos jogos de relatos, seja em relação à arte, já que

reconhecemos que as manifestações culturais são construídas através de

“contaminações” diversas. O filósofo Friedrich Nietzsche, com o qual estaremos

dialogando também no decorrer do texto, lançou a seguinte proposta, ainda no

século XIX:

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Perder a si mesmo – Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se — e depois reencontrar-se: pressuposto que se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma pessoa. (1974, p. 132)

Chico Buarque dialoga com seus diversos eus ao construir seus trabalhos

artísticos. No início de sua carreira, sua postura e sua estética foram contrapostas a

outro projeto artístico de forte influência: o tropicalista. Chico cria seu estilo

próprio sintetizando a Bossa Nova com “as pegadas deixadas por Noel Rosa,

Ismael Silva, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Donga, Pixinguinha” (Catálogo da

exposição Chico Buarque – o tempo e o artista, p. 22), influenciado por seus

antecessores e por seus contemporâneos, como Vinicius de Moraes, Baden

Powell, Tom Jobim. Chico recupera um pouco da memória que estava sendo

abandonada com o advento da Bossa Nova. O fato será discutido mais

aprofundadamente no capítulo 3, intitulado “Um sambista na Biblioteca

Nacional”.

Diversas polêmicas envolveram os nomes de Chico Buarque e Caetano

Veloso, principalmente na época dos fervorosos festivais da canção. Caetano em

seu livro Verdade tropical confessou que “é preciso ter em mente que a glória

indiscutível de Chico nos anos 60 era um empecilho à afirmação de nosso

projeto” (VELOSO, p. 234). O etnomusicólogo Carlos Sandroni observa ainda

que naquele momento

gostar de ouvir Chico Buarque, gostar de sua estética implicava eleger certo universo de valores e referências que traziam embutidas as concepções republicanas cristalizadas na “MPB”, mesmo nos casos em que a letra passava longe de política. (In: CAVALCANTE; STARLING,; EISENBERG, op. cit., p. 30)

Enquanto Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros tropicalistas procuravam

experimentações e inovações na música brasileira, Chico Buarque resgatou o

samba, absolutamente influenciado pela Bossa Nova — chegou mesmo a ser

chamado, por Tom Zé, de “avô” dos tropicalistas. Chico nadava contra a maré se

pensarmos sua relação com seus contemporâneos tropicalistas, pois os artistas que

escolheu, que elegeu como aliados, representam a “tradição do samba” ,

juntamente a uma nova apropriação do ritmo, representada pela Bossa Nova. A

convivência entre essas duas correntes levantou diversas questões, como a suposta

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querela Chico Buarque X Caetano, “MPB” X Tropicalistas, assim como o famoso

episódio da eliminatória do festival da Record no ano de 68, reflexo de tal ruptura

entre os dois movimentos artísticos contemporâneos. A respeito desse episódio,

Chico diz que Gil teria liderado uma vaia junto à platéia contra ele, conforme

publicado pela imprensa; entretanto, Caetano, em Verdade tropical, afirma que o

que tentou fazer seu parceiro foi exatamente o contrário, ou seja, defendê-lo das

vaias da platéia: “o que Gil tentou fazer naquele episódio desastrado era mostrar a

quem ia se tornando partidário de nossa visão que não era preciso agredir Chico

para afirmá-la” (VELOSO, idem). O célebre artigo “Nem toda loucura é genial,

nem toda lucidez é velha” é a resposta de Chico Buarque aos ataques que vinha

sofrendo. Além da questão da vaia histórica liderada (ou não?) por Gil, o artista

chegou mesmo a ser questionado por um repórter: “Mas como, Chico, mais um

samba? Você não acha que isto já está superado?”3 Superado? “Mas foi com o

samba que João Gilberto rompeu as estruturas de nossa canção”4, afirma, não

concordando que fazer samba fosse sinônimo de ser retrógrado, tradicionalista ou

nostálgico.

A imagem de Chico como “bom moço”, contraposta à estética dos baianos

foi muito freqüente. É inegável que, enquanto Caetano cria sua imagem

multiplicando-se, diluindo “o eu em UNS”, como afirma Júlio Diniz (2000, p.

255), a postura pública de Chico é bem distinta. Em entrevista recente, afirma que

no início de sua carreira fazia majoritariamente sambas, mas depois passeou por

ritmos e experiências estéticas variadas. No que diz respeito à criação, ao conjunto

da obra, diferentemente da postura pública mais comum, afirmamos que Chico

Buarque “encontra-se”, “perde-se” e “reencontra-se”, como propôs Nietzsche.

Notamos uma tendência que vem ganhando força nos tempos atuais, em que não

se exige mais das identidades “coerência”, ou seja, a “razão” — e toda sua

necessidade de lógica, de “verdade”. O “conhece-te a ti mesmo” cede lugar ao

perspectivismo, que agora já permite-nos mais amplamente “vir-a-ser aquilo que

somos”: ou seja, longe da busca de essências, a convivência com a dúvida, com a

experimentação, por vezes com o “incoerente”, o inesperado para os “lugares” que

nos foram “predestinados”. Isso, é claro, quando se tem possibilidade mínima de

3 “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, Jornal Última Hora, 09/12/68. Disponível em www.chicobuarque.com.br. 4 Idem.

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escolha e arbítrio. Chico afirmou recentemente que criar é sua vida, seu prazer.

Neste sentido, ele é múltiplo: é escritor de livros e peças teatrais, é compositor, já

trabalhou como ator, é cantor... Entretanto, a imagem pública que faz questão de

enfatizar é muito discreta, destoante daquela que os contemporâneos tropicalistas

inventaram para si. Segundo declaração recente de Gil:

O Chico, quando se apresenta, fica parado ali, quieto, não quer explorar outro elemento relacional com a canção a não ser o estar ali, cantando. Quando vai nos meus shows, depois vem e me diz: “O que você faz é completamente diferente do que eu faço, você faz o diabo, dança, pula, fica ali à vontade. Isso me assusta” —conta rindo Gil. (Jornal O Globo, 18/06/ 2004, p. 7).

Comparando ainda Caetano e Chico, observemos as palavras de Fernando

de Barros e Silva:

Caetano se comportará ao longo do tempo como um camaleão, mudando de cor praticamente a cada estação, mas mantendo-se por isso mesmo sempre fiel à imagem tropicalista que inventou para si mesmo. Sendo sempre diferente, sua obra será sempre a mesma. Com Chico ocorrerá exatamente o contrário. Coerente consigo mesmo ao longo dos anos, ele reagirá de acordo com as exigências de cada época de maneiras distintas. Sendo sempre a mesma, sua obra será sempre diferente. (SILVA, 2004, p. 64-5)

No capítulo “Um sambista na Biblioteca Nacional” será feita uma leitura

da homenagem oficial que Chico Buarque recebeu no lugar da preservação e da

divulgação e do cânone literário. A exposição comemorativa foi apresentada

segundo os moldes da própria Biblioteca, com um belo retrato do compositor, sem

quaisquer questões que problematizassem sua imagem. A romântica figura

“unânime” do artista foi mais uma vez imposta.

A Biblioteca Nacional representa, sem dúvida, um dos grandes arquivos da

nação brasileira. Claramente, um lugar de preservação da memória nacional, onde

estão guardadas obras, materiais sobre os grandes expoentes de nossa cultura e

também da cultura internacional. Chegou a vez de Chico Buarque, “artista maior

de nosso tempo”, conforme as palavras expostas na apresentação da mostra,

receber uma homenagem neste local canonizador, onde artistas e personalidades

de “legitimidade unânime” foram homenageados no decorrer do tempo. Qual

seria, afinal, o propósito de uma exposição sobre o artista em um local onde já

foram homenageados grandes escritores e outras personalidades da cultura

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brasileira e internacional? A que público se dirige uma exposição sobre o artista,

que atravessou importantes momentos da história do Brasil, visíveis em sua obra e

que atravessaram sua trajetória pessoal? As palavras do curador, seu sobrinho

Zeca Buarque, nos ajudam a compreender um pouco dessas questões:

A obra de Chico Buarque perpassa diversas gerações, com particularidades e preferências específicas. Entre os seus contemporâneos podemos perceber uma grande cumplicidade histórica nas lembranças de momentos difíceis do país em que a sua música desempenhou papel importante; mas os filhos dessa geração hão de se lembrar em primeiro lugar dos Saltimbancos. E é possível encontrar a cada novo show de Chico uma grande quantidade de jovens e adolescentes atraídos pela sua música, tendo chegado até ela de maneiras diversas. (Catálogo da exposição Chico Buarque – o tempo e o artista, 2004, p. 8).

O atual ministro da cultura, Gilberto Gil, declarou que a exposição tratava-

se apenas de uma pequena homenagem ao artista. Conforme foi noticiado pela

mídia, o ministro condecorou Chico Buarque com uma medalha da Ordem do

Mérito Cultural na abertura da exposição comemorativa, dia 27 de julho de 2004.

O evento ultrapassa uma simples homenagem e passa a ser um reconhecimento

oficial em função de sua realização na Biblioteca Nacional. O fato é reforçado,

ainda, pela presença da autoridade, contemporânea de Chico na carreira artística,

na abertura oficial. Os 60 anos de Chico Buarque, juntamente com a homenagem

que recebe, ocorrem no momento em que um de seus parceiros ocupa um lugar

oficial no governo do Brasil. Todo um contexto histórico está presente nessa

homenagem; contexto este que se reflete na escolha daquele que será

homenageado no lugar considerado dos importantes e grandes personagens

culturais. A respeito daqueles que recebem honrarias na Biblioteca Nacional, não

restam dúvidas quanto ao valor e ao reconhecimento de suas obras. É o lugar

canônico oficial por excelência que Chico Buarque passa, então, a ocupar.

O público que visitou a exposição foi bastante distinto e numeroso. Jovens

e adolescentes que não participaram de diversos dos momentos que constam nas

canções buarqueanas tiveram oportunidade de conhecer um pouco da história,

tanto do país quanto do próprio artista. Professores com alunos de escolas

públicas, universitários, cidadãos de todas as classes sociais e faixas etárias,

artistas... Esses são alguns exemplos daqueles que passaram pelo Espaço Eliseu

Visconti de 27 de julho a 10 de novembro de 2004. A mostra dirigia-se não a

especialistas ou críticos, mas sim ao público em geral, a um público heterogêneo,

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neste momento em que as minorias exigem acesso aos mecanismos de educação e

cultura valorizados socialmente.

Há todo um caráter didático na realização da exposição na Biblioteca

Nacional, que não pode ser ignorado. Reconhecendo-a como um ambiente

legitimador, muitos daqueles que visitaram a mostra, consciente ou

inconscientemente, estavam adquirindo conhecimento, informações sobre grandes

expoentes do cenário cultural brasileiro. Além disso, fica uma outra informação

subentendida: Chico Buarque é “digno” de ser homenageado na Biblioteca

Nacional. Seu pai também é homenageado, com a sala Sérgio Buarque de

Hollanda. Não esqueçamos, entretanto, que honrarias neste espaço tem alguns

“critérios” para serem concedidas, o que será discutido no capítulo 3.

Contemplando a exposição, Francisco Buarque de Hollanda, ao que

parece, já nasceu artista. Criado em um ambiente altamente intelectualizado,

convivendo com o pai, reconhecido intelectual brasileiro, e amigos deste, surgiu o

interesse pelas letras e pelos sons. Como a exposição foi organizada por um

integrante da família, com acesso mais fácil às pessoas com quem passou sua

infância e juventude, conhecemos algumas facetas do artista que poderiam ser

desconhecidas. Ou seja, “arquivos privados e secretos ganham publicidade”

(CARDOSO, 2004, p. 66). Um bilhete “profético” da professora da escola na

Itália5, histórias em quadrinhos, desenhos, trecho do discurso de orador na

cerimônia de formatura, um bilhete no qual Chico, com 8 anos, diz à avó que um

dia seria cantor de rádio... Documentos que dificilmente se tornariam públicos,

caso a exposição não tivesse como curador seu sobrinho, Zeca Buarque.

Uma exposição é sempre um retrato, um perfil de um artista, idealizada

tanto por seu curador quanto pelo espaço que ocupará. No caso de Chico Buarque

– o tempo e o artista, o recorte enfocou o belo, o forme, ou seja, o cabível para o

ambiente que ocupava. Dialoguemos novamente com Friedrich Nietzsche, que

muito se preocupou com o papel que a arte deveria assumir na vida, com uma

educação estética. O pensador deixou uma definição que pode nos ajudar um

pouco em uma leitura mais crítica da moldura que recebeu Chico Buarque na

exposição. Ele afirma que o aparente, o belo, o apolíneo, como chama um dos

5 “Francisco [...] when enough time has passed for you to be grown up I will look for stories and novels written by F. B. de Hollanda.” Catálogo da exposição Chico Buarque – O tempo e o artista, p. 11.

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conceitos principais de sua filosofia, é apenas o raso, o superficial, “as imagens

agradáveis e amistosas” (1999, p. 29). Mas ele não existe sem o profundo, sem a

luta incessante que constitui a vida, o dionisíaco: “o contínuo desenvolvimento da

arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira

como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e

onde intervêm periódicas reconciliações” (idem, p. 27). O lado dionisíaco, da

profundidade da vida, “as imagens [...] sérias, sombrias, tristes” (idem, p. 29)

estão presentes em diversos graus na obra de Chico. Quadro nada difícil de ser

enfocado, já que moramos no Brasil, no Rio de Janeiro, e, assim, nos deparamos

com tais imagens com muita freqüência. Além disso, conhecemos o papel da arte,

da música particularmente, como tentativa de alívio e denúncia dessas dores em

nosso país. Porém, apesar de ter sido visitada pelo público em geral, a exposição

que comemorou os 60 anos de Chico Buarque criou uma imagem apenas apolínea

de sua personalidade, de sua trajetória e de sua produção. Não houve espaço para

o obscuro lado dionisíaco que a tudo e todos constitui.

Foi na exposição, no entanto, que encontrei o mote para minha dissertação.

Entre os pouquíssimos textos do artista expostos, aparece em um deles a

autoproclamação: “Eu sou um sambista”. Um sambista na Biblioteca Nacional? A

discussão do capítulo 3 propõe observar atentamente se é coerente ou não,

segundo os moldes da Biblioteca, homenagear um artista que afirma ser sambista.

Ou, ainda, que sambista é esse, que recebe uma homenagem na Biblioteca

Nacional? Será que outro sambista, com o perfil de Paulinho da Viola, por

exemplo, contemporâneo de Chico, receberia também uma homenagem em tal

espaço?

O quarto e último capítulo, “Sambas dos sambistas”, analisa mais algumas

problemáticas deste complexo estilo de artista, assim como alguns sambas, tanto

de Chico quanto de outros compositores. Serão utilizadas muitas palavras do

artista no DVD “Estação derradeira”, no qual ele fala sobre a presença do samba

em sua obra, em sua trajetória pessoal e artística e de sua relação com a

Mangueira, que o homenageou com o enredo campeão de 1998.

Há ainda uma polêmica levantada pela cantora Teresa Cristina, que se

autoproclama “sambista mesmo”, diferentemente de Chico Buarque, que

denomina como artista de MPB — estaremos, mais uma vez, defrontados com o

complexo conceito de MPB e de artista popular.

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A dissertação busca analisar a legitimidade ou não da declaração

buarqueana, anteriormente exposta. No decorrer da pesquisa, defrontei-me com

distintos questionamentos acerca dessa problemática, refleti acerca deles e

cheguei a um posicionamento, que será exposto no decorrer dos capítulos.

Conjuntamente com o tema principal, estaremos a todo momento defrontados com

uma questão crucial: a maneira como o Brasil e os brasileiros recebem seus

artistas e suas obras. Ou seja, há e houve em nosso país diversas “espécies” de

sambistas. Afirmar-se sambista não carrega, em si, características fixas, que

demarquem um território bem delimitado de atuação, recepção pública e

reconhecimento financeiro.

Chico Buarque declara ser sambista, mas afirma também que mescla a

música, a princípio feita por compositores muitas vezes semi-analfabetos,

oriundos dos morros ou das periferias cariocas, retratando majoritariamente a dura

realidade em que viviam — já que a maioria não enriqueceu ou mudou sua

posição social por serem os compositores da música que representa culturalmente

o Brasil — com a harmonia de um outro tipo de samba, composto no “asfalto”,

para a garota de Ipanema, ou graças à linda vista de uma parte de nossa cidade, de

dentro de um avião, utilizando como exemplos dois sambas de seu “maestro

soberano”. Ou seja, dois tipos de sambas, compostos segundo óticas

absolutamente distintas. É a interrelação entre “dois mundos”, com os quais tantas

vezes convivemos em nossa cidade, em nosso país, em nossa realidade,

reconhecida nos trabalhos de Chico Buarque e, particularmente, em seus sambas,

que justifica o título da dissertação. O resultado qualitativo do trabalho de Chico

Buarque neste “entre-lugar”, no qual está inserido em minha leitura, dispensa

comentários no momento: estará vivo em nossa discussão.

É por propor que haja uma particularidade na obra de Chico Buarque que a

dissertação tem como título “Chico Buarque — entre o popular e o erudito”.

Como observa Lorenzo Mammi em seu artigo “Erudito/popular”, na cultura

brasileira, diferentemente da americana, a qual cita como exemplo, a distinção

entre o que se considera popular ou erudito, especificamente em música no nosso

caso, não é sempre muito clara. O autor considera nossa produção musical

interessante para pensarmos se não seria equivocada uma simples distinção entre

elementos da cultura de elite e da cultura de massa ou popular.

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O pólo música popular ou música de massa, aproximados pelo autor, já

seria, por si só, demasiado complexo. Grande quantidade de artistas brasileiros,

com suas respectivas e distintas produções, seriam incluídos nesse subgrupo

perfeitamente. Concordando com a posição do autor, será especulado na

dissertação em qual dos pólos da cultura brasileira alocaríamos Chico Buarque,

investigando sua obra, a recepção desta pelo público, assim como sua declaração

supracitada. Recolocando a questão, é possível ou não caracterizá-lo

simplesmente como algum dos dois tipos de artistas: popular ou erudito?

Devemos observar, ainda, que no Brasil, por exemplo, nomes como Mário

de Andrade e Heitor Villa-Lobos ao mesmo tempo que louvam e dominam a

música erudita e toda sua tradição, na qual foram educados, reconhecem e

valorizam a música popular e folclórica, principalmente na cultura dos países

colonizados como o nosso. E a contaminação do erudito pelo popular já está

presente na obra do maestro:

Villa-Lobos passa a ocupar o lugar de referência dessa música que possui fundação na técnica, no formalismo e na tradição erudita européia, mas que abre incisivamente seu campo auditivo e seu gesto político para manifestações populares. Essa é uma das razões de algumas viagens que Mário e Villa-Lobos fizeram pelo interior do país, pesquisando festas, danças, literatura oral e concepções musicais e folclóricas. (DINIZ, 2000, p. 255)

“Chico Buarque — entre o popular e o erudito” será uma reflexão sobre o

artista Chico Buarque de Hollanda e um pequeno recorte dentro de sua vasta obra.

E, além disso, pensaremos a respeito da cultura brasileira, através de um dos

elementos que melhor a caracteriza, a meu ver: sua música. Considerando nossa

cultura uma das melhores representantes de nossa identidade: híbrida, conturbada,

fluída, apolínea-dionisíaca ao mesmo tempo, vejo na Música Popular, com suas

diversas ramificações, um excelente instrumento para refletir acerca de alguns de

nossos retratos que ela vem, há muito tempo, realizando. Então, “venha a ser o

que tu és.”

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2 Sambista ontem Sambista hoje

Samba

Agoniza mas não morre Alguém sempre te socorre

Antes do suspiro derradeiro Samba

Negro forte, destemido Foi duramente perseguido

Na esquina, no botequim, no terreiro Samba

Inocente pé no chão A fidalguia do salão

Te abraçou, te envolveu

Mudaram Toda a tua estrutura

Te impuseram outra cultura E você nem percebeu.

Nelson Sargento – Agoniza mas não morre

[...] Mas se o samba quer que eu prossiga

Eu não contrario não Com o samba eu não compro briga

Do samba eu não abro mão [...]

Chico Buarque – Amanhã, ninguém sabe

[...] Há muito tempo eu escuto esse papo furado

Dizendo que o samba acabou Só se foi quando o dia clareou.

Paulinho da Viola – Eu canto samba

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Em uma entrevista à Folha de São Paulo em 19946, enquanto divulgava

seu romance Estorvo, Chico Buarque falava de política, da realidade brasileira, de

sua carreira de compositor e de escritor. É na mesma entrevista que se encontra o

tema a ser investigado nesta dissertação.

O repórter José Geraldo Couto questionou se Chico não se incomodava de

ser visto como um compositor popular que, eventualmente, escrevia, e o artista

respondeu, na ocasião:

Não me incomoda nada. Outro dia, num jornal, um sujeito para falar mal de mim me chamou de sambista, como se fosse um insulto. E eu sou um sambista. Quando eu morrer, quero que digam: “morreu um sambista que escrevia livros.” Não estabeleço nenhuma hierarquia. (Folha de S. Paulo, 06/10/1994)

“Eu sou um sambista”, afirma, e as possíveis problemáticas acerca desta

afirmação é nosso horizonte de reflexão crítica. Será necessário, no entanto, que

regressemos um pouco no tempo para que aprofundemos a discussão.

Segundo o Dicionário Aurélio da língua portuguesa, podemos

compreender sambista como “exímio dançarino de samba” ou como “compositor

de sambas”. Sabemos que Chico Buarque é um desses compositores, pois o samba

é o ritmo absoluto já em seu primeiro disco, no qual todas as composições são

suas, assim como no decorrer de toda carreira7. Conforme declaração de um de

seus parceiros e amigo pessoal, Vinicius de Moraes, presente no DVD “Caros

amigos” (DirecTV, 2005): “a voz do Chico tem a idade das pedras. O Chico sabe

de coisas que ninguém sabe. [...] Ele quando ‘tava’ com 14, 15 anos [...] me

apareceu lá e cantou os primeiros sambinhas dele”. Sambista, malandro, amor,

Rio de Janeiro, personagens populares etc. são temas recorrentes em sua obra, seja

nos textos escritos, seja na música.

No entanto, inúmeras vezes causou estranhamento ou foi necessária uma

reflexão mais apurada, no decorrer deste trabalho, quando anunciava que o tema

seria o “sambista” Chico Buarque. É legítima esta declaração? Não busco com

este trabalho estabelecer verdades definitivas, que não possam ser questionadas.

É, no entanto, uma leitura problematizadora da afirmação de nosso artista que me

interessa realizar.

6 Em anexo nesta dissertação. 7 O disco Chico Buarque, de 1989, não continha sambas e a ausência foi notada. No capítulo seguinte o fato será discutido.

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Conforme é dito na letra do samba “Agoniza mas não morre” de Nelson

Sargento, o samba “metamorfoseou-se” no decorrer do tempo. Não causa grande

espanto essa constatação, tão freqüente nos signos culturais. Ao mesmo tempo

que o samba é abraçado e envolvido pela fidalguia do salão, aqueles que fazem

parte de seu universo também se distinguem. No entanto, constata-se que a

posição que assume Nelson Sargento, em tom de lamento, é devida a uma

determinada postura frente ao samba e às transformações que ele sofreu no

decorrer do tempo.

Segundo Lúcio Rangel: “Sinhô [...] foi o elemento de transição entre o

maxixe que morria, morto a pau pelas investidas moralizadoras da sociedade, e o

samba que nascia perseguido pela polícia” (apud. MOURA, 1995, p. 80). Depois

de ter sido considerado como uma “manifestação da cultura nacional” (idem), o

maxixe, tido como subversivo, foi expulso do centro da cultura carioca e sucedido

pelo samba, que já nascia sob os olhos atentos da polícia carioca, considerado

uma manifestação cultural dos “povos inferiores e subalternos”, da camada

indesejada de uma sociedade que desejava ocidentalizar-se e apagar o passado

escravista.

Com a abolição da escravatura, em 1888, a então capital do Império tem

sua população aumentada. Segundo o pesquisador Nei Lopes:

Aos migrantes do Vale do Paraíba que para o Rio de Janeiro continuam vindo desde a falência da lavoura cafeeira na região, aos veteranos da Guerra do Paraguai, aos flagelados da Grande Seca, vêm juntar-se, agora, mais e mais negros, oriundos das mais diversas regiões do País, mas principalmente das províncias vizinhas. (1992, p. 3)

O Brasil recebia, ainda, grande leva de imigrantes europeus, graças ao projeto de

“embranquecimento” do país que vigorava na lógica do momento.

O debate intelectual dos últimos anos do século XIX buscava explicações

para o problema do “atraso” brasileiro frente às nações européias e americanas,

principais referências para o pensamento evolucionista vigente. O sociólogo

Renato Ortiz afirmou que aquele era o momento no qual: “para os países da

América Latina, assim como para o Brasil, o outro encontra-se na Europa ou nos

Estados Unidos e é por meio dessa alteridade distante que espelhamos o nosso

destino” (Revista Entre livros, p. 38). A ausência de uma identidade nacional e a

pouca unidade eram tópicos de especulação acerca dos problemas que rondavam

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nossa nação. Muitas respostas foram, então, oferecidas pela intelectualidade

brasileira. Hermano Vianna elege as reflexões de Gilberto Freyre para os

questionamentos que levanta em seu livro O mistério do samba.

A mestiçagem foi vista, por muito tempo, como o grande problema

brasileiro, como a maior diferenciação entre o Brasil e as potências desenvolvidas.

A miscigenação seria, portanto, o grande mal que nos afligia segundo a lógica de

estudiosos do pensamento racial brasileiro, os quais não adotaram acriticamente

as teorias racistas européias, mas as utilizaram originalmente, segundo os

propósitos que lhes pareciam convenientes para pensar nosso problema em

particular.

Entretanto, em estudos posteriores, o mestiço passou a ser visto de maneira

absolutamente distinta, e Hermano Vianna atribui esta façanha teórica ao

pensamento de Gilberto Freyre:

O brasileiro passou a ser definido como a combinação, mais ou menos harmoniosa, mais ou menos conflituosa, de traços africanos, indígenas e portugueses, de casa-grande e senzala, de sobrados e mucambos. A cultura brasileira, mestiçamente definida, não é mais causa do atraso do país, mas algo a ser cuidadosamente preservado, pois é a garantia de nossa especificidade (diante das outras nações) e do nosso futuro, que será cada vez mais mestiço. (VIANNA, 2004, p. 64)

Não é mais a busca de nossas “raízes nacionais”, profundas e autênticas o

que interessa, como outrora idealizara José de Alencar: não há mais um índio, um

“brasileiro originário”, a quem se deva recorrer, mas é a própria complexidade da

constituição nacional o que há de original e o que nos afirma enquanto nação. E,

portanto: “o que era desvantagem, viver nos trópicos, começava a ser

transformado em fonte de orgulho” (idem, p. 69). Uma mudança de lógica radical.

Um abandono do ideal de nos tornarmos europeus ou americanos do norte; uma

crítica ao projeto “ridículo de mulatos a quererem ser helenos [...] e de caboclos

interessados [...] em parecer europeus e norte-americanos” (FREYRE, apud.

VIANNA, p. 27).

A mestiçagem começa a ser valorizada e louvada. Entretanto, não houve

uma homogeneidade no que diz respeito a ela. Nos questionamentos acerca da

construção da “identidade mestiça brasileira”, houve, também, a escolha de uma

mestiçagem específica, em detrimento a tantas outras: “durante as primeiras

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décadas do século XX, os mulatos e o urbano passam a ocupar cada vez mais, o

centro das atenções nos debates sobre as raízes da identidade brasileira” (idem, p.

70). É no mesmo contexto que o samba começa a assumir um lugar neste novo

“imaginário nacional”: “No campo da música, o samba vira símbolo nacional, ao

passo que as canções ‘caipiras’ paulistas e os ritmos nordestinos começam a ser

vistos como fenômenos regionais” (idem).

Não foram poucas, entretanto, as críticas que recebeu a obra de Gilberto

Freyre, que, politicamente utilizada, desembocou em uma falsa concepção do

Brasil como um país sem preconceitos, onde as diferenças convivem e formam a

unidade de forma harmoniosa. A própria postura de Freyre, aliando-se ao governo

Vargas e apoiando a ditadura militar, é constantemente condenada:

Logo o Estado Novo de Vargas abraçaria este conceito tão desejável de miscigenação como elemento positivo, pois o ideal varguista era justamente terminar com as diferenças e conseguir configurar um país indiviso sob seu comando. A “harmonia racial” de Freyre era música para os ouvidos do ditador. (Revista Entre livros, p. 41)

Devemos salientar, no entanto, que é inegável a revolução ideológica que

o projeto de Gilberto Freyre causou à noção de “brasileiro”. Seu trabalho levantou

questões que vinham sendo escamoteadas, como por exemplo, todas as

complicações que enfrentam um país que abolira recentemente a escravidão e

busca sua identidade:

[...] se no dia 13 de maio de 1888 a escravidão estava abolida no Brasil, no dia 14, muitos já nem queriam se lembrar que ela havia existido algum dia no país. A intelectualidade nacional, de repente, passou a falar da escravidão como se ela nunca tivesse existido ou fosse algo de um passado remoto. A queima dos documentos sobre o escravismo, feita por Rui Barbosa, embora uma manobra para evitar pedidos de indenização, tinha um substrato ideológico (idem, p. 34).

Afirma, ainda, Dain Borges, da Universidade de Chicago:

[...] Assim, é preciso reconhecer a originalidade do tema na obra freyriana, pois a convicção quanto à centralidade da escravidão na formação do Brasil, não existia antes de Casa grande & senzala, que abriu caminho para a moderna compreensão histórica do passado brasileiro (idem, p. 35).

Voltemos agora ao “mistério do samba”. O tema que investiga Hermano

Vianna no referido livro é o “ processo de transformação do samba de ‘símbolo

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étnico’ [...] em símbolo nacional” (VIANNA, op. cit., p. 20). Analisando um

encontro de intelectuais renomados e músicos clássicos — Sérgio Buarque de

Hollanda, Gilberto Freyre, Prudente de Moraes Neto, Heitor Villa-Lobos e

Luciano Gallet, — com ilustres nomes da cultura popular — Pixinguinha, Donga

e Patrício Teixeira — o autor busca mostrar “como uma extensa rede de relações

entre grupos sociais e indivíduos diversos — e de diversos pontos do Rio de

Janeiro — foi atualizada para que tal encontro pudesse ser realizado” (idem, p.

23).

A maioria dos primeiros sambistas, que eram também trabalhadores nos

subempregos que conseguiam na cidade, viviam sob a tensão da proibição de suas

manifestações culturais pelos órgãos que tinham como responsabilidade a

manutenção da “ordem pública”. Esse problema, inquestionável em qualquer

relato acerca da aceitação pública dos primeiros sambistas, é confirmado por

nomes que estão relacionados aos primórdios do samba carioca. Donga, em

entrevista, relata:

Entrevistador: Por que só em 1917 foi gravado o primeiro samba? Donga: Porque o samba, considerado coisa de negros e desordeiros, ainda andava muito perseguido. Apesar disso, era cantado pelos boêmios renitentes e pelos ranchos, como os de Sadeta e Tia Aceata, na Rua Visconde de Scaúna. [...] No governo do Presidente Rodrigues Alves, as coisas começaram a mudar. [...] Diminuía um pouco a perseguição aos sambistas. Nosso desejo era introduzir o samba na sociedade carioca. [...] Em 1916, começamos a apertar o cerco em torno da Odeon, para que gravasse um samba. Mas a ocasião só iria surgir no ano seguinte. Foi quando consegui gravar o famoso Pelo Telefone. (SODRÉ, 1998, p. 71-3)

Foi no governo do mesmo Rodrigues Alves, em conjunto com o prefeito

Pereira Passos, que se iniciou, no entanto, a “belle-époque tropical”, que

expulsaria grande parte da população pobre do centro do Rio de Janeiro. A

fisionomia da cidade é totalmente modificada. As ruas são alargadas, outras novas

são abertas, surge a “parisiense” Avenida Central, onde “quem não pudesse se

trajar dignamente não podia circular” (Revista Entre livros, p. 37), e muitos dos

antigos moradores dessas regiões transformadas buscam abrigo nos morros que

circundam o centro, na Cidade Nova e nas periferias da cidade. Conforme as

palavras de Roberto Moura:

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A proposta de “se civilizar” de um setor dominante da população, associada à sua necessidade de mão-de-obra barata para os objetivos e manutenção “do progresso”, definia na prática uma nova ecologia social na cidade, um novo Rio de Janeiro subalterno, não mais o dos escravos, mas o das favelas e dos subúrbios que se expande em proporções inéditas, que se forma longe do relato dos livros e dos jornais, afastado e temido, visto como primitivo e vexatório (1995, p. 61).

A maioria dos sambistas vêm dessa realidade. O samba, portanto, parte

também para essa nova realidade. Nei Lopes esclarece que: “segundo João da

Bahiana, e parece que a História o confirma, ‘o samba saiu da cidade.’ ‘Nós

fugíamos da polícia [...] e íamos para os morros fazer samba’” (op. cit., p. 15).

Observemos, entretanto, a questão principal que moveu a pesquisa de

Hermano Vianna. Muito se comenta acerca das perseguições, tanto policial quanto

da lógica dominante, ao samba e à cultura de origem popular e seus artistas, mas

pouco se retrata a respeito do momento em que esta “recreação popular”,

utilizando a terminologia de Stuart Hall para a cultura das classes populares e

trabalhadoras, passa a ser considerada como a melhor representação cultural

brasileira, símbolo mais expressivo de nossa “brasilidade”: ou seja, uma absoluta

inversão de valores.

O encontro das “turmas” de Gilberto Freyre e Pixinguinha foi um dos

indícios das questões que Hermano Vianna enfoca. O intelectual e seus amigos

“teriam conseguido, contra os desejos da elite ‘re-europeizada’, reconhecer tanto o

valor de Pixinguinha quanto do arroz-doce” (VIANNA, op. cit., p. 90). O

momento em que Gilberto Freyre escreve Casa grande e senzala, seu mais

reconhecido trabalho, é crucial para a construção de uma identidade brasileira.

Seu livro foi um marco para as questões que vinham sendo propostas acerca do

que significava ser brasileiro. Suas idéias foram elogiadas pelo então Presidente

da República, Getúlio Vargas, que lhe admitira ter sofrido influência delas. Muito

mais que um simples estudo, Gilberto Freyre elaborara um projeto identitário para

o povo brasileiro. Segundo Hermano Vianna:

[...]a aptidão brasileira a se relacionar com o indefinido e o diverso é considerada por Gilberto Freyre nossa grande originalidade como experiência civilizatória, aquilo que nos marca como diferentes, justamente por estarmos mais abertos à diferença e podermos incluir o indefinido em nossa definição de identidade (idem, p. 88).

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Coerentemente com essa identidade mista, o samba, também visto como

tal, passa a ser reconhecido como símbolo nacional. No início do século XX uma

variedade de ritmos e estilos regia a música popular no Brasil. Nem mesmo o

carnaval tinha uma música específica, mas era festejado com diversas canções,

inclusive estrangeiras:

[...] os maiores sucessos da folia, desde que ela se organizou em bailes (tanto os aristocráticos como os populares), eram polcas, valsas, tangos, mazurcas, schotishses e outras novidades norte-americanas como o charleston e o fox-trot. Do lado nacional, a variedade também imperava: ouviam-se maxixe, modas, marchas, cateretês e desafios sertanejos. [...] Nenhum deles era considerado o ritmo nacional por excelência (idem, p. 110).

A partir dos anos 30, no entanto, “o samba carioca começou a colonizar o

carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade” (idem, p.

111). Desde então, os outros gêneros passaram a ser considerados apenas

regionais. Há uma distinção, então, entre música popular e música regional. O

samba é eleito, vitorioso, como o ritmo brasileiro, símbolo do que existe de mais

brasileiro no Brasil, ou seja, “de ritmo maldito à música nacional e de certa forma

oficial” (idem, p. 29).

A cultura popular teve importante papel na definição e na constituição do

ideal de identidade brasileira. Observemos que:

a transformação do samba em música nacional não foi um acontecimento repentino, indo da repressão à louvação em menos de uma década, mas sim o coroamento de uma tradição secular de contatos [...] entre vários grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras (idem, p. 34).

O interesse do autor é demonstrar que, além da repressão à cultura de

origem popular, que é inegável, havia um outro panorama, uma outra rede de

relações, como pode servir de exemplo o referido encontro de membros da elite e

da intelectualidade brasileira com artistas populares. Seu interesse é relatar que a

passagem do samba para o lado oposto no imaginário nacional acontece em um

momento específico, e sua eleição se deve a algumas especificidades e

particularidades que ele apresenta.

Conforme constatou Pixinguinha: “a maioria dos sambistas e chorões era

de cor. Branco quase não havia” (apud. MOURA, op. cit., p. 83). Suas palavras

podem nos ajudar na compreensão da oficialização do samba como representante

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exímio da cultura nacional. A partir de 1922, surge o rádio no Brasil; com a

instalação de várias gravadoras no país, no final da década de 20, buscam-se

novos músicos; “Nada mais propício para o samba carioca, [...] Em sua própria

cidade, já havia as rádios, as gravadoras e o interesse político que facilitariam [...]

sua adoção como nova moda em qualquer cidade brasileira” (VIANNA, op. cit.,

p. 110).

É impossível não descrever o caso envolvendo João da Bahiana, que, em

determinada ocasião, teve seu pandeiro apreendido pela polícia e, portanto, não

pôde tocar em uma festa na casa do senador Pinheiro Machado. O político,

quando soube do ocorrido, presenteou-lhe com um instrumento novo, juntamente

com a inscrição: “A minha admiração, João da Bahiana, senador Pinheiro

Machado” (idem, p. 114). Ou seja, “o toque do pandeiro era reprimido por

policiais e, ao mesmo tempo, convidado a animar recepções de um senador da

República” (idem). O episódio pode servir como mais um dos exemplos para a

hipótese de Hermano Vianna, a qual procura demonstrar que, além da rejeição,

havia, também, um convívio mútuo entre mundos distantes, através da arte.

Porém, não imaginemos ingenuamente que esse convívio significasse uma

verdadeira amizade ou mesmo que fosse prova de um relacionamento democrático

por excelência, já que, conforme Vianna fez questão de notificar em seu livro, “as

pessoas que aplaudiam e cantavam com Sinhô nos salões das residências mais

elegantes da cidade não compareceram a seu enterro” (idem, p. 119, nota 9).

Atentemos ainda para o fato de que o enfoque da leitura do antropólogo direciona-

se ao resultado no campo da arte, ou seja, na história do samba enquanto ritmo, e

não nas questionáveis relações políticas e sociais que acompanham os artistas e

seus trabalhos culturais no ambiente urbano. O que lhe interessa especificamente é

o “mistério” que envolve a trajetória do samba.

Alguns jovens brancos de classe média passam a estudar música com

Sinhô — por exemplo, Mário Reis — e mesmo a compor sambas no estilo que

conhecemos como “samba de morro”, — os famosos sambistas de Vila Isabel:

Noel Rosa, Almirante, Braguinha. E essa particularidade também contou pontos

para o lugar que adquiriu o ritmo posteriormente pois, segundo Vianna:

O samba, naquela época, não era visto como propriedade de um signo étnico ou de uma classe social, mas começava a atuar como uma espécie de denominador

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comum musical entre vários grupos, o que facilitou sua ascensão ao status de música nacional (idem, p. 120).

A “vitória” do samba se deve a sua constituição heterogênea, que se

aparentava ao projeto de nacionalização e modernização da lógica vigente no país

dos anos 30. Em um momento que se deseja a valorização do Brasil e da

brasilidade, em detrimento à importação da cultura e das lógicas estrangeiras, uma

manifestação cultural considerada multiétnica serviu como perfeito exemplo de

nossa imagem enquanto nação.

Não são infundadas as insistentes associações do samba aos negros e nem

a constatação empírica de Pixinguinha ao declarar que a maioria dos artistas

pertenciam a este grupo étnico. A idéia, que até hoje perdura, de que samba é

“coisa de preto”, das raízes negras e africanas é coerente. O samba é um dos

ritmos afro-brasileiros. Como sabemos, a presença dos elementos negros na

formação da música brasileira é muito forte. Duas tradições africanas foram muito

influentes em nossa produção musical, como constatou José Jorge de Carvalho: a

yoruba, menos aberta a sincretismos e mais rígida que a tradição banto, mais

flexível às “contaminações” culturais do meio onde está inserida. Os bantos, como

afirma Roberto Moura, “negociaram misticamente suas relações” (MOURA, op.

cit., p.103). Ou ainda, segundo o próprio José Jorge, seus cultos religiosos foram

organizados “mantendo sempre uma janela aberta para influenciar e ser

influenciada por outros gêneros musicais” (apud. MATTOS SILVA, 2003).

Na praça XI, reduto dos primeiros sambistas, conviviam diversos

segmentos étnicos com suas distintas heranças culturais, aproximados em sua

maioria graças à posição social que ocupavam. Depois da reforma de Pereira

Passos, a população pobre do Rio de Janeiro aglomerou-se significativamente

naquele espaço. O contato cultural era, portanto, crucial e inevitável, e tal

realidade serve como indício das influências múltiplas que Hermano Viana

reconhece na constituição do samba carioca. O batuque da casa da Tia Ciata e de

outros ambientes, herdado dos cultos africanos, em sintonia com outras

contribuições culturais dos povos que conviviam naqueles ambientes, é um fator

marcante no samba. E como nos primeiros sambas o “batuque” é a marca

principal (e, posteriormente, inúmeras críticas à Bossa Nova devem-se a ausência

dele nas composições), o samba é negro neste sentido: a cultura negra que

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influenciou sua constituição é, por si só, dialógica. Diferentemente da lógica

européia que, de uma maneira genérica, subestima as outras culturas, baseada em

padrões hierárquicos que cria, para fins muito objetivos, separando “melhor” e

“pior”, “baixa” e “alta” cultura, “bom” e “ruim”, “civilizado” e “selvagem” etc.,

uma das marcas da herança negra no âmbito cultural e religioso é a assimilação

das contribuições que encontra nos espaços pelo qual passa. Como exemplos, a

festa da Igreja da Penha (local, inclusive, da divulgação de novos sambas outrora)

e, ainda hoje, a lavagem da igreja de Nosso Senhor do Bonfim em Salvador, nas

quais os negros relêem a cultura católica, reinterpretando-a segundo seu costume

religioso de lavar os objetos sacrificiais. Observemos ainda que no ambiente da

pequena África

o espaço e a música dos terreiros e dos orixás são partes fundamentais para a formalização do samba e da dança. Nenhum desses elementos pode ser analisado em separado, mas como formadores de uma arquitetura cultural sincrética, em que as fronteiras entre privado e público, “ordem” e “desordem”, “civilização” e “barbárie” apresentam-se constantemente borradas. (DEALTRY, 2003, p. 32)

Voltemos ao trabalho de Hermano Vianna. Concordando com sua posição

de que as tradições e os signos são “inventados” para a constituição de identidades

amplas, observemos mais uma vez suas palavras:

A invenção do samba como signo nacional foi um processo que envolveu muitos grupos sociais diferentes. O samba não se transformou em música nacional através de esforços de um grupo social ou étnico específico (o “morro”). Muitos grupos e indivíduos (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionários, poetas [...]) participaram, com maior ou menor tenacidade, de sua “fixação” como gênero musical e de sua nacionalização. Os dois processos não podem ser separados. Nunca existiu um samba pronto, “autêntico”, depois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização. (Idem, p. 151)

Eric Hobsbawn no texto “A invenção das tradições” apresenta alguns

posicionamentos que são interessantes para nossa discussão. O autor associa a

invenção de tradições, em alguns casos e sob algumas perspectivas, à necessidade

de reconhecimento de signos estáveis dentro das sociedades modernas, que

sofrem constantes transformações. Nas comunidades pós revolução industrial há

“o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a

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tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns aspectos

da vida social” (HOBSBAWN, 1984, p. 10).

Aproximando as questões de Hobsbawn à discussão aqui proposta, em

nossa cultura, particularmente, podemos reconhecer no samba e no mulato

exímios exemplos de tradições inventadas, formalmente institucionalizadas. Tanto

a escolha do ritmo quanto a valorização da mestiçagem são marcas que buscam

formar uma imagem do país como um todo, são reflexos do ideário de “nação

brasileira”, construídos no populista contexto do governo varguista, segundo

propósitos próprios e muito bem delimitados. Sendo um país relativamente novo,

essas são as primeiras invenções de tradições que tentam abranger a “brasilidade”,

formando uma imagem unificada do país. Isoladamente, nem as heranças

portuguesas, africanas ou as indígenas dariam conta de tamanha complexidade

quando se buscava alcançar uma idéia de nação, de totalidade. Portanto, a escolha

do mulato e do samba são excelentes, segundo a lógica que os elegeu, tendo

perdurado, nacional e internacionalmente, até hoje como espelho do brasileiro e

de sua cultura.

O Brasil tornou-se, então, a “terra do samba”, não aleatoriamente, mas

graças a toda uma configuração daquele momento específico, em que nele se

reconhece o reflexo de um país composto por grande diversidade étnica e cultural.

Segundo a lógica então vigente, a herança dos povos que constituem nosso país

são sintetizadas e convivem “harmonicamente” no samba — signo tão misto

quanto o Brasil e os brasileiros.

José Miguel Wisnik cita, em seu recente artigo intitulado “A gaia ciência

— literatura e música popular no Brasil”, a observação do musicólogo italiano

Paolo Scarnecchia que percebe na música popular brasileira uma particularidade

que seria inviável na Europa, já que ela “concilia extremos que nos países

europeus são inaproximáveis, sanando o dissídio histórico que é aquele entre a

música erudita [...] e a música popular” (in: MATOS, 2001, p. 186). Essa

constatação abre caminho para uma reflexão sobre o artista Chico Buarque e um

dos pontos que Carlos Sandroni relata no artigo “Adeus à MPB”, o qual aqui é

interessante aprofundar: o que seria, no Brasil, música popular e,

consequentemente, quem seriam nossos artistas populares?

O conceito de “Música Popular Brasileira” e, por extensão, de artista

popular brasileiro, reservam algumas particularidades. No sentido mais imediato

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do termo, compreendemos algo “popular” como o que foi feito pelo povo, ou seja,

pelas classes populares menos favorecidas da sociedade. Podemos compreender,

ainda, como aquilo que se destina a esse público (por exemplo, os hotéis,

restaurantes e farmácias populares, tão valorizados nos governos atuais). Em seu

texto, Sandroni relata que no início dos anos 1990 esteve na França para um

período de estudos e um dos problemas de adaptação lingüística que encontrou

dizia respeito à própria pesquisa que propunha realizar. Seus colegas franceses

não concordavam com a denominação de seu objeto de estudos pelo que

compreendiam por musique populaire. Relata Sandroni:

“— Mas isso não é musique populaire!”, eles diziam. “Isso é música escrita, música de compositor, música comercial! Jobim n’est pas de la musique populaire, le choro n’est pas de la musique populaire, même pas les disques commerciaux de samba ne sont de la musique populaire!” (SANDRONI, op. cit., p. 25)

Nem sempre observamos reflexões a esse respeito sendo feitas,

principalmente quando são referidas a nossa música ou a nossos artistas

denominados populares. Sandroni confessa que, então, chegou a uma primeira

“lição prática de etnologia” em sua viagem:

[...] percebi que a expressão música popular, em que, seguindo o exemplo dos compatriotas, me acostumei desde cedo a acomodar uma série de autores, intérpretes e práticas musicais, não era tão universal quanto ingenuamente supunha. (Idem)

O historiador Marcos Napolitano no texto “O conceito de MPB nos anos

60” faz um apanhado acerca do surgimento da sigla MPB, propondo uma

problematização das nomenclaturas dos “movimentos” musicais daquela década.

Naquele momento, o conceito de música popular brasileira passou por um

processo de renovação cultural e estético. Com o corte ocorrido a partir de 1965,

com o advento da MPB, surge o que o autor chama de uma “instituição

sociocultural”, forjada a partir do debate estético-ideológico daquele contexto. Os

artistas participantes daquele novo momento da cultura brasileira tentavam dar

conta dos dilemas sociais e políticos do Brasil, influenciados fortemente pelo

ponto de vista da esquerda nacionalista.

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O projeto da MPB é marcado pela vontade de atualização da expressão

musical brasileira, fundindo “elementos tradicionais” — principalmente o estilo

de samba que é designado como tal — com o “rigor” técnico da Bossa Nova,

compondo canções caracterizadas como “samba participante” e “canção

engajada”, por exemplo, entre outros gêneros, representando as utopias do

nacional popular. Podemos mesmo ver o samba tradicional e a Bossa Nova como

gêneros mestres do movimento, que contou ainda com outras interferências.

Talvez a maior conseqüência da amplitude de tendências musicais nos trabalhos

artísticos da MPB tenha sido “a de confundir os critérios pelos quais se pensava a

relação entre a cultura de ‘elite’ e a cultura ‘popular’ até os anos 60”

(NAPOLITANO, 1999, p. 13).

As canções conhecidas como MPB foram, e ainda hoje são, signos da

“alta” cultura, tendo adquirido legitimidade perante a hierarquia cultural vigente.

Seus artistas e seus respectivos trabalhos são louvados e reconhecidos por parte

substancial da elite cultural, política e econômica, como sabemos. Além disso, os

artistas mais reconhecidos receberam o status de intelectuais e formadores de

opinião e valores estéticos do Brasil. Um dos mais significativos impasses que

atravessa o histórico deste movimento musical é que no mesmo momento em que

os artistas têm seus projetos ideológicos voltados para uma denúncia da realidade

brasileira, as indústrias cultural e fonográfica, altamente capitalizadas, se

reorganizam. O espectro delas ronda a ideologia dos artistas da MPB, impedindo,

assim, que ela seja uma instituição sociocultural autônoma.

Os músicos são, em sua maioria, oriundos dos segmentos sociais atuantes,

absorvendo, graças às suas posições, os termos do debate social mais amplo. Seus

trabalhos dirigiam-se ao público mais intelectualizado já que a “cultura engajada”

estava “desarticulada de um movimento social mais amplo, que o golpe [de 64]

havia abortado, e circunscrita à juventude universitária de classe média, que era

afinal quem a consumia” (SILVA, op.cit., p 38). Chico Buarque relembrou

recentemente da “canção de protesto” nos anos 60, que tornou-se um produto de

consumo, e de sua estratégia para escapar destas composições, as quais não

ultrapassavam o círculo social dos próprios artistas:

Quando conheci a Nara, em 65, 66, a gente achava que aquilo tudo estava ficando cansativo, a moda das canções de protesto me incomodava. Era bonitinho ser contra o governo. Parecia a burguesia brincando e dava a impressão de ser um

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pouco oportunista. Então fiz “A banda” e dei para a Nara gravar. Foi uma coisa meio proposital, tipo um chega. Antes disso, tinha feito várias músicas de protesto, e aquelas que não prestavam, não gravei. “Pedro pedreiro” é a última de conotação social dessa época. (ZAPPA, 1999, p. 98)

O artista-músico de esquerda tinha uma posição “singular e dramática”

segundo Napolitano, “na encruzilhada de identidades e papéis de militante,

artesão, ‘gênio’, criador e pop-star” (op. cit., p. 23-4). Ele está entre os interesses

da indústria fonográfica, que dita as regras acerca de seu trabalho, e seus ensejos

próprios, como artista daquela “instituição”. A MPB, no entanto, não ultrapassa

de forma significativa o âmbito de uma música “popular” de consumo urbano.

Sendo a MPB um estilo de canção caracterizada como música popular,

percebemos que o termo popular assume uma nova concepção, ao menos no que

se refere à música produzida no cenário urbano brasileiro. Chico Buarque, assim

como seus parceiros, é um compositor popular, integrante de um movimento de

música popular brasileira, porém seus trabalhos não vão muito além de um

público e de um ambiente determinados. Sua obra é coerente ao contexto no qual

inicia sua carreira, principalmente seus trabalhos de sambista, que contam com

uma forte marca da época: “a incorporação de materiais musicais ‘populares’

(vividos pelos segmentos mais baixos da pirâmide social) por técnicas musicais

sofisticadas (desenvolvidos pelos segmentos médios superiores)” (idem, p. 22).

Podemos compreender, portanto, que no Brasil a música popular tem mais

de uma chave de interpretação. Chico é um artista popular, mas isto não significa

que seja “do povo” — nem sua biografia, nem sua recepção pelo público ou o

alcance de sua obra. Mas é por acreditar que atualmente as identidades são

cambiantes e não mais “predeterminadas” (reafirmo, ao menos nos casos em que

se tem condições mínimas de escolha) que não discordo de Chico, quando o

mesmo afirma ser sambista. É dentro de um contexto específico que o artista

inicia sua obra, momento em que o samba é a ilustre referência — “tradicional”

ou Bossa Nova. Contexto este que não se sustenta mais quando o artista se

autoproclama como tal, em 1994. Seus trabalhos e suas entrevistas recentes

mostram o papel central do samba no decorrer de toda sua obra, dentre tantas

outras formas como o artista se manifesta e segundo as quais pode ser

denominado. Em 2005 afirmou ainda que, por mais que “passeie” com seus

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trabalhos, fazendo outras coisas, quando coloca os pés no chão, está, de novo,

fazendo samba8.

Percebemos então, com esses breves questionamentos a respeito do

histórico da MPB, que a inquietação dos companheiros de Sandroni é coerente,

mas talvez porque não conhecessem a especificidade que envolve o conceito de

música popular urbana no Brasil e, consequentemente, artista popular, cerceados

por esta expressão.

Ainda a respeito da particularidade de nossa música popular, notada por

Paolo Scarnecchia já citado, em “Estação derradeira” Chico chama atenção para

um fato importante nesta discussão. Ele também constata que um artista como

Vinicius de Moraes, diplomata e expoente do que é considerada “alta cultura”, ou

seja, um poeta reconhecido por intelectuais e acadêmicos, seria visto

“estranhamente” no contexto europeu, assim como afirmara o musicólogo

italiano. Vinicius, que adere posteriormente à música popular, revolucionando-a

de forma particular, pode ser visto como um dos maiores expoentes da vertente

popular-erudito no Brasil. Observemos suas palavras:

Apesar da teimosia de alguns, de uma mentalidade colonizada de umas poucas pessoas, no Brasil é menos rígida a fronteira entre a cultura popular e a “cultura séria”, acadêmica, vamos dizer. Há mais transgressões neste sentido, vai-e-vem, vai-e-vem [...]. Na Europa seria de se estranhar muito um poeta como Vinicius, um “poeta sério” como Vinicius, se dedicar à música popular. E aqui houve uma ciumeira, e tal, mas foi aceito. Vinicius virou o poetinha, virou o compositor. (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005)

Não foi, absolutamente, sem resistências que o poeta foi recebido por seus

contemporâneos. Como exemplo, lembremos que no documentário “Vinicius de

Moraes”, Chico relata que seu pai, amigo pessoal do compositor, não aceitou

facilmente a migração do poeta para o campo da música, por mais que fosse

amante do cancioneiro popular e que tenha apoiado a opção do filho. João Cabral,

contemporâneo de ambos, que declarou inúmeras vezes “sua ojeriza à música”

(SANT’ANNA, in: MATOS, op. cit., p. 13), também demonstrou sua

desconfiança em relação à presença de poetas e poesias no ambiente musical.

Na Expoesia 1 (PUC-1973), ao lado de Chico Buarque que musicou seu

auto de Natal Morte e vida severina, João Cabral confessa ter recebido com medo

a carta na qual lhe informavam que sua obra seria musicada pelo artista, mas que,

8 A íntegra desta entrevista está citada mais adiante, neste capítulo.

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mesmo assim, autorizou o trabalho. Posteriormente, recebeu o disco, que guardou

em casa, sem nunca ouvir. Por ocasião da apresentação do espetáculo no Festival

de Teatro de Nancy o poeta, enfim, entrou em contato com sua obra musicada e

declarou, surpreendido: “até hoje, creio que 90 por cento do êxito daquele

espetáculo foi feito pela música” (idem, p. 14). Chico, por sua vez, contou que:

“com Morte e vida severina eu procurei adivinhar qual seria a música interior de

João Cabral, quando ele escreveu o poema” (idem).

Mas João Cabral não redimiu totalmente as aventuras que Vinicius

iniciava com suas obras musicais. A importância do poeta-músico, no entanto,

tanto para a cultura brasileira quanto para a obra de Chico Buarque são

inquestionáveis. Quando, em determinado momento de sua carreira, Vinicius opta

mais claramente pela música popular e, assim, coloca seu potencial poético à

serviço da renovação musical que foi o movimento bossanovista, torna-se mais

um dos atores que revolucionam a concepção de música popular brasileira. Além

disso, Chico diversas vezes relata que o artista era, entre os amigos poetas do pai,

interessados pelas letras e pela cultura escrita e toda sua herança, aquele que se

encaminhava para a música popular, o que foi marcante, também, para sua

produção.

Uma outra declaração de nosso artista importantíssima para a discussão

aqui proposta se refere a uma leitura da obra de Vinicius (extensível a outros,

como ele próprio) e seu resgate e releitura do samba “tradicional”. Observando as

manifestações culturais em destaque no cenário carioca, por exemplo, vemos que

o samba assumiu um lugar privilegiado nos espaços de elite atualmente, apesar do

fato não ser uma particularidade do momento. Vemos uma revalorização de

artistas como Cartola, Nelson Cavaquinho, Candeia etc., graças a diversos

motivos (como, por exemplo, puros interesses comerciais). Chico, entretanto, faz

questão de salientar que a valorização que intelectuais e artistas como Vinicius

fazem aos nomes da cultura popular “de origem popular”, não é devida a qualquer

tipo de paternalismo, como por vezes é insistentemente taxada a postura deles:

Vinicius adorava esses sambas, os sambas de Noel, Ismael e Cartola, e tal, entende? Não havia uma relação paternalista em relação à cultura popular. [...] Às vezes as pessoas querem fazer crer que é isso: que são intelectuais que passam a mão na cabeça do povo. Não! Não é verdade! Não é verdade, porque [...] a música e a literatura popular feita por esse pessoal do samba é de altíssima qualidade. (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005)

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Não é, no entanto, infundada uma suspeita acerca dos usos da cultura

popular para propósitos próprios, e não por reconhecer nela um valor.

Aproximando um outro contexto em que manifestações populares tradicionais

sofrem metamorfoses e passam da periferia para o centro, como foi o caso do

samba, analisemos uma discussão que propõe Anna Paula Mattos Silva em sua

dissertação de mestrado O encontro do velho do pastoril com Mateus na

Manguetown ou as tradições populares revisitadas por Chico Science e Ariano

Suassuna (Departamento de Letras, PUC-Rio, 2004).

Quando Chico Science, expoente do movimento Manguebit, propõe

“envenenar e redimensionar” o popular, aliando-o às inovações que a tecnologia

oferece, ocorre uma releitura daquele signo inicial. Entretanto, a proposta do

artista não é negar o popular ou “melhorá-lo”, mas sim reinventá-lo, fazê-lo

reviver sob outra ótica. A proposta do movimento de Chico Science não é

desvalorizá-lo, mas ressignificá-lo. Fred Zero Quatro, seu parceiro no movimento

Manguebit, no entanto, não deixa de denunciar que existem músicos

pernambucanos que, sob outra perspectiva, apropriam-se de obras para usos

próprios, sem qualquer preocupação ética:

Você pode se aproximar daqueles músicos [populares] e não resistir à tentação de se apropriar da sua herança e sabedoria, tentando reproduzir com todos os detalhes a sua técnica e copiando descaradamente o seu som, em benefício próprio (mas em nome da tradição, é claro). Enfim, difundindo sem o menor escrúpulo mundo afora uma versão mais “educada” do que a original — pouco importando que os “mestres” permaneçam ignorados, isolados em sua ingenuidade, desinformação e miséria. (Zero Quatro, http://www.manguetronic.com.br, apud. MATTOS SILVA, 2004, p. 36)

No Rio de Janeiro, o caso de Cartola que, depois de ter gravado discos e

ser reconhecido no meio artístico, foi encontrado guardando carros enquanto,

concomitantemente, artistas de outro contexto social ganhavam dinheiro com seus

sambas, internacionalmente conhecidos inclusive, serve como perfeito exemplo.

Foi o samba no estilo que fazia Cartola e seus companheiros do morro o “eleito”

ou “inventado” como “tradicional”, como o “samba brasileiro e original, por

excelência”. Mas isso não impediu que muitos de seus representantes

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continuassem na mesma situação miserável em que estavam antes de seus

trabalhos servirem de exemplo da grande originalidade brasileira.

Continuando com as declarações de nosso artista no referido DVD, ele

constata que, por mais que a Bossa Nova tenha sido um movimento que pretendia

uma ruptura com a “tradição do samba” — compreendendo Bossa Nova como

samba e, assim, como mais uma das metamorfoses deste gênero da canção

popular —, Chico, entre outros, a reconhece como rearticuladora daquilo que ela

vinha deixando para trás. Nara Leão, musa da Bossa Nova, gravou seu primeiro

disco cantando “sambas de morro”:

A Bossa Nova veio pra romper com a tradição do samba, mas veio romper com a tradição do samba pagando tributo ao samba. E a Bossa Nova, as pessoas que criaram o movimento da Bossa Nova, poucos anos depois trouxeram de volta a música do Cartola, a música do Nelson Cavaquinho. E os que sobreviveram a esse período voltaram à cena e começaram a gravar discos. A Nara Leão, que era a musa da Bossa Nova, participou do espetáculo Opinião com João do Vale, com Zé Keti, gravou nos primeiros discos dela um disco com sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho. (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005)

A respeito de seus sambas, Chico afirma que ele possui o “filtro da Bossa

Nova”. Com aquele novo movimento, o samba vai abandonando o “batuque” das

percussões e parte para o rigor técnico e erudito da música “escrita” ocidental.

Muitos defensores da brasilidade, que tem no “samba de morro” o exemplo

perfeito de uma fórmula musical nacional, atacaram a Bossa Nova, considerando-

a uma traição à pátria. A mudança na batida tradicional e o advento de novas

influências e ritmos estrangeiros por um “grupo de moços de classe média”,

conforme as palavras de José Ramos Tinhorão, foram e são muito criticados por

aqueles que defendem uma espécie de samba, não só por gosto particular, mas por

considerá-lo verdadeiro e, além disso, nacional. Chico é influenciado por ambas

as partes — tanto pelo “samba tradicional” quanto pelas inovações da Bossa Nova

— e declara já, em seu primeiro disco repleto de sambas, que “a experiência em

partes musicais (sem letra), para teatro e cinema provou-me a importância do

estudo e da pesquisa musical, nunca como ostentação e afastamento do ‘popular’,

mas sim como contribuição ao mesmo.”9 E mais recentemente:

9 Disco Chico Buarque de Hollanda, contracapa, 1966.

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O samba tem várias vertentes [...] Esse samba que o Zeca Pagodinho canta [...] e de vários compositores meio desconhecidos, são coisas muito saborosas, que tem uma ligação forte com o samba tradicional. Agora o samba não é só isso, não é só samba tradicional. Quando você pensa na Bossa Nova, você não pode, eu acho, pensar como uma coisa autônoma. Bossa Nova é samba sim! E o samba evolui, é natural que ele evolua, né? Ele não pode ser sempre [aquilo]. Ele já nasceu sendo evolução de outra coisa, do maxixe. Eu tenho a maior admiração por esses sambas compostos nos anos 30, anos 40, conheço bastante disso e tal. Mas não vejo assim de uma forma muito dogmática, que o samba tem que ser tocado daquela forma, tenha que ter aqueles instrumentos. E eu acho que a gente pode brigar com isso, a gente deve. Quando eu digo assim: eu fiz um samba que nem o “Injuriado”, foi um samba recente. Ele tem a ver, tem alguma coisa, assim, que leva o jeito de um samba mais tradicional, um samba desses assim “à antiga”. Mas por outro lado não. Ele já tem ali incorporados dados que são harmônicos da Bossa Nova, coisas que vieram possivelmente acrescentar ao samba. (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005.)

A proposta perseguida neste texto concorda com a posição assumida por

Chico Buarque, pois esta leitura se contrapõe a posturas conservadoras que

buscam estagnar os signos culturais para, assim, garantir sua “preservação” e sua

“autenticidade”. Carlos Sandroni já nos chamou atenção em “Adeus à MPB” para

o fato de que o samba é uma das “transgressões mais bem sucedidas” das

manifestações culturais que passam da periferia ao centro e Hermano Vianna

esclarece alguns dados que possibilitaram esta passagem legitimadora de um

signo que outrora fora rejeitado, tido como “baixa cultura”.

Reconhecendo uma pluralidade na configuração do samba não nos causa

espanto a declaração na qual Chico Buarque afirma ser sambista. Como sabemos,

sua obra é plural, ele possui trabalhos em diversas vertentes culturais. Quando

declara: “eu sou um sambista”, não se esgotam as possibilidades de leitura do

artista, e não acredito que seja esta sua intenção. Meu estudo propõe que Chico

Buarque possa ser reconhecido também como sambista. A meu ver, o “sambista

Chico Buarque” assume uma posição privilegiada entre tantas outras

denominações que possamos atribuir a este múltiplo artista, sem que nunca

encontremos uma que seja completa.

É um fato inquestionável que no conjunto de sua obra encontramos

inúmeros sambas e que, dentro deste estilo musical, os temas das canções refiram-

se a muitas das outras denominações que freqüentemente o artista recebe: político,

amante, trovador, romântico etc. Foi observado no decorrer deste trabalho que os

sambas são constantes na obra do artista, que declarou sentir-se muito feliz

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quando consegue compô-los. Além disso, confessa que desde muito cedo entrara

em contato com o ritmo:

Eu fico contente quando eu consigo fazer um samba. Porque [...] o samba tradicional fazia parte de toda minha formação. Depois você começa a fazer outras coisas, e tal, mas tem uma hora que você volta [...], e bota o pé no chão, tá fazendo samba de novo. “Injuriado” eu gravei no meu último disco, é um samba que eu acho que tem a cara dos sambas que eu fazia quando eu comecei a fazer música. O que eu fazia naturalmente era samba. Samba já passando pelo filtro da bossa nova, e tal, mas tem uma coisa do samba tradicional. (Idem)

Reconheço a importância do trabalho de folcloristas e preservadores de

manifestações culturais, necessários no Brasil; entretanto, a posição aqui

defendida discorda de posturas que associem à morte dos signos culturais sua

metamorfose e transformação, as quais ocorrem freqüentemente no decorrer do

tempo. Atualmente, fala-se muito em samba de raiz, samba de morro etc. Louva-

se a preservação desses estilos, para que não morram. Além disso, muitas vezes,

observamos uma supervalorização deles, não apenas por gosto, mas por

considerá-los autênticos e originários. Eles são considerados “gênese”, princípio,

“arché”, compreendidos isoladamente, como se não fizessem parte, também, de

um processo cultural. A Bossa Nova foi um movimento artístico muito influente

no Brasil, uma nova maneira de compor sambas. Sua força, no entanto, não

apagou ou matou “outros sambas”, que continuam, até hoje, sendo tocados e

cantados e mesmo louvados. É inquestionável, no entanto, que mesmo que todos

os artistas estivessem fazendo samba, alguns nomes e movimentos, devido a seus

locais de origem e, assim, os contatos que estabeleciam na sociedade, foram mais

valorizados e “felizes” no jogo do capital que outros.

Em “Estação Derradeira”, Chico Buarque fala a respeito da

reaproximação, pós 64, de parte da elite carioca com os sambistas anteriores à

Bossa Nova. Observemos mais uma vez suas palavras:

Houve essa aproximação um pouco por causa do golpe de 64, em seguida houve uma vontade, [...] por parte até de setores da burguesia e da intelectualidade, de se aproximar da música popular mais humilde, anterior à Bossa Nova. Então esse pessoal começou a freqüentar os bares. O Cartola abriu um bar com a mulher dele, com a Zica, que cozinhava, e tudo. O Zicartola reunia uma porção de gente, o pessoal ia lá dançar e ouvir esses cantores que estavam sumidos. (Idem)

Antes de avançarmos na discussão, é necessário enfocar que discordo da

caracterização de Chico Buarque acerca de uma “música popular mais humilde,

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anterior à Bossa Nova”, como aquela realizada pelos artistas da Mangueira.

Primeiramente, não estou trabalhando com conceitos de cultura em que hajam

gradações entre mais e menos humilde, ou mais e menos sofisticado, por não

procurar atribuir julgamentos de valor deste tipo a signos culturais. Segundo

minha leitura, no que diz respeito às manifestações culturais, há diferenciações, e

o samba, especificamente, sofreu muitas delas, mas isto não quer dizer que um

samba seja melhor que outro, mais humilde ou mais sofisticado, a não ser que

estejamos baseados em padrões hierárquicos, nos quais a cultura escrita de origem

européia é mais valorizada e determinados instrumentos são considerados da “alta

cultura” em detrimento a outros. Concordo com as preferências pessoais, mas

discordo de atribuições que valorizem mais um ou outro tipo de samba ou

qualquer manifestação cultural em particular.

Atentemos ainda para o fato de que Chico declara que essa música mais

humilde é anterior à Bossa Nova, movimento que estabelece uma nova relação

com o samba e com sua composição. É reconhecível em suas palavras uma

gradação valorativa, na qual a Bossa Nova pode ser compreendida como o ápice

do samba, como seu ponto mais alto. Reafirmo, no entanto, que esta leitura não

compartilha deste tipo de classificação.

As palavras de Chico nos permitem, ainda, investigar mais uma das

hipóteses levantadas nesta dissertação. Quando o artista fala acerca de uma

“cultura popular mais humilde”, percebemos que faz uma distinção entre culturas

populares. A Bossa Nova e a MPB são consideradas música popular, assim como

os sambas dos artistas de Mangueira, entre tantos outros, denominados como

“tradicionais”. Logo, percebemos que há uma “cultura popular de origem

popular”, ou seja, feita pelo povo, pelas classes populares, e uma “cultura popular

da elite”, que conta com membros das classes média e alta no seu repertório. Por

mais que ambos estejam compondo sambas, sabemos que há diferenciais nas

composições dos grupos específicos e “contaminações” diversas, em cada caso

particular.

O capítulo atual é intitulado “sambista ontem, sambista hoje” pelo

reconhecimento de que houve uma modificação na compreensão do que seja

sambista nos distintos momentos. Hermano Vianna afirma que ocorria uma

convivência, um jogo amplo de relações no ambiente do samba, desde o início.

Tal especificidade, juntamente com a teoria freyriana da mestiçagem, serviu para

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a constituição de uma imagem do brasileiro, e conjuntamente do samba, como

representantes da cultura brasileira nacional, por mais arbitrária que possa ser uma

generalização deste estilo. O sambista de ontem, do passado, do surgimento do

samba enfrentou, inegavelmente, preconceitos e discriminações pela prática do

estilo musical, considerado cultura do povo, dos pobres e incultos.

Posteriormente, quando o ritmo muda de lado e assume um lugar específico e

particular para expressar a brasilidade, com toda a proteção e exaltação de um

governo político que tinha como ideal a falsa ilusão de uma harmonia inexistente,

o sambista também muda de imagem. Passa a ser o artista que melhor representa o

Brasil e o brasileiro.

Talvez seja por esse motivo que a autoproclamação de Chico Buarque

sambista cause, por vezes, estranhamento. Ao se declarar sambista, Chico está, ao

mesmo tempo, afirmando que faz aquilo que é mais brasileiro no Brasil; está se

caracterizando, conscientemente ou não, como um dos artistas que melhor

expressam a brasilidade, a “alma” brasileira.

No geral, sambistas são associados diretamente ao povo, a artistas

populares oriundos do “povão”, e esta pode ser mais uma chave de leitura acerca

das inúmeras críticas que recebeu e recebe o movimento bossanovista e seus

artistas, ao declararem que fazem samba, sim. Aqueles que não aceitam Bossa

Nova como samba podem resistir por não aceitarem a hipótese da cultura popular

brasileira ser representada, nacional e internacionalmente, pela elite e não pelo

povo — e, assim, o povo perder seu lugar de espelho cultural da nação, do qual

tanto se orgulha. Observemos ainda mais um fato que demonstra a especificidade

do conceito de música popular no Brasil: como já discutimos, a Bossa Nova é

denominada música popular, mas segundo um depoimento de Carlos Lyra à Rádio

MPB FM “a Bossa Nova é música de classe média para classe média, do Brasil e

do mundo”10.

Gostaria de salientar novamente que a eleição do samba como símbolo

nacional não se deveu a um reconhecimento da cultura popular como melhor

espelho da nação, mas por todo um jogo de relações plurais estabelecidas para que

o samba fosse afirmado e, ainda, devido a interesses políticos da lógica então

vigente nos anos 1930. Só ingenuamente reconhece-se a escolha do samba como a

vitória do povo. Ele serviu de instrumento perfeito para justificar uma harmonia

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entre mundos distantes de fato inexistente, para escamotear questões sociais e

políticas que urgiam e urgem ser discutidas, mas que convivem de forma

satisfatória no samba, na identidade mulata, no carnaval:

[...] A felicidade do pobre parece A grande ilusão do carnaval A gente trabalha o ano inteiro Por um momento de sonho Pra fazer a fantasia De rei ou de pirata ou jardineira Pra tudo se acabar na quarta-feira.11

Uma outra comprovação de que o samba assumiu o lugar de representante

de nossa brasilidade é a influência que ele exerce sob outros estilos musicais

praticados no Brasil. O rapper Marcelo D2 declarou em entrevista que após ler O

mistério do samba passou a buscar sua identidade própria dentro do hip-hop,

procurando demarcar um diferencial frente ao que fazem os franceses e

americanos:

O que me deu o estalo foi, lendo o livro O mistério do samba, do Hermano Vianna, achar que eu tinha que abrir meus horizontes, buscar a minha identidade nacional. E na música o que seria essa identidade? O samba. (Jornal O Globo, Segundo caderno, 24/04/2005, p. 1)

Mesmo no hip-hop de Marcelo D2, o samba surge como a marca

específica do Brasil: “É hip-hop que vem do Rio de Janeiro / Uma batida de funk,

um DJ e um pandeiro”12. Um show recente do rapper contou, ainda, com a

presença do sambista Paulinho da Viola, cantando o “conservador” samba

“Argumento”, relativo a uma discussão de outrora sobre os rumos que deveria ou

não tomar a Portela, sua escola de samba.

Entre o sambista de ontem e de hoje há diferenças. Se ontem ele foi

perseguido e discriminado na maioria dos casos, mas resistiu, hoje ele é visto

como exímio artista brasileiro. Tanto que um compositor que afirma ser sambista

foi homenageado com uma exposição na Biblioteca Nacional, símbolo da cultura

erudita brasileira. Esse será nosso tópico de reflexão do próximo capítulo.

10 09 de setembro de 2005. 11 “A felicidade”, Tom Jobim e Vinicius de Moraes. 12 “Samba de primeira”, in: Eu tiro é onda.

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Para finalizar este capítulo, voltemos à epígrafe. Por mais tradicionalista

que seja a postura de Nelson Sargento em “Agoniza mas não morre”, visivelmente

insatisfeito com a mudança de estrutura e a imposição de outra cultura que exige,

tantas vezes, o abraço da fidalguia do salão — distinta daquela inocência dos pés

no chão, ou seja, da arte “espontânea”—, o sambista constata que o samba (aquele

tipo que considera “de verdade”) agoniza, mas não morre. As metamorfoses pelas

quais passaram o samba e, por conseqüência, o conceito de sambista, não os

mataram, mas ampliaram suas formas. A meu ver, hoje eles não precisam mais

estar associados a signos que outrora estiveram para serem reconhecidos como tal.

Graças a essas mudanças, Chico pode ser visto como mais um sambista. É

reconhecível um trabalho de sambista muito marcante, presente e influente no

interior de sua obra, como um todo. O sujeito que o quis insultar ao chamá-lo de

sambista errou na crítica e acertou na mosca, pois do samba ele não abre mão.

Tornam-se, portanto, muito precisas as palavras de Paulinho da Viola, em

contrapartida à radicalismos conservadores: o samba não acabou, isto é puro papo

furado!

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3 Um sambista na Biblioteca Nacional

“A Biblioteca Nacional, guardiã de parte expressiva da memória do país,

percebe a necessidade de ampliar a captação de material documental contemporâneo e atender ao interesse do público brasileiro pela atividade

dos expoentes culturais da segunda metade do Século XX. Nesse contexto, não poderia haver tema mais feliz para uma mostra na

Biblioteca Nacional, do que esta visão abrangente, na exposição ‘O Tempo e o Artista’, de Chico Buarque, artista maior de nosso tempo.”

Catálogo da exposição Chico Buarque – o tempo e o artista, Apresentação, p. 9.

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Chico Buarque completou 60 anos em junho de 2004. O artista não

comemorou publicamente a data, afirmando não ser “cabotino a ponto de fazer

uma auto-homenagem”(Revista Época, 2004, p. 14), mas foi vastamente

homenageado. Matérias jornalísticas, programas televisivos e uma expressiva

exposição realizada na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, de julho a

novembro, são alguns exemplos das referidas homenagens que foram prestadas ao

artista pela imprensa e pelo Ministério da Cultura. Uma delas servirá neste

momento como mote. Considerando a Biblioteca Nacional um dos mais

significativos espaços de legitimação da intelectualidade brasileira, assim como

um ambiente canonizador de nossos escritores e artistas, refletiremos acerca de

algumas questões presentes na exposição.

O curador da mostra, Zeca Buarque, sobrinho do artista, recolheu e

selecionou material para a mostra:

“A idéia da exposição foi do Pedro Corrêa do Lago, presidente da Biblioteca, que me convidou há mais ou menos dois meses para pensar e organizar a exposição. Muita gente me ajudou, principalmente as irmãs do Chico, que me passaram o ambiente da formação dele. Em todos os lugares onde pedimos ajuda com material fotográfico, filmes, documentos, etc... fomos muito bem recebidos, mesmo deixando claro que o pedido era uma homenagem ao Chico e não um pedido do Chico. Todas as emissoras de TV – Globo, Bandeirantes, Record, Cultura e a Cinemateca Brasileira cederam imagens”, diz Zeca, que explica, ainda, que na montagem teve a preocupação de atingir um público que não conheceu o Chico desde o início de sua carreira. [s/d, s/l]

Tratou-se, portanto, de uma homenagem ao artista e não de um pedido do

mesmo. Chico Buarque visitou a exposição antes que fosse aberta ao público e aos

convidados. Na mesma ocasião, recebeu do atual Ministro da Cultura, Gilberto

Gil, a medalha da Ordem do Mérito Cultural, única condecoração brasileira

voltada para a cultura.

Exposições são sempre retratos, perfis de artistas, idealizados tanto pelo

curador, quanto pelo espaço que ocupam. Zeca Buarque relata que recorreu a

diversas pessoas que lhe assistiram na composição da mostra, para recolher e

selecionar imagens, histórias, palavras, depoimentos a respeito do artista e, assim,

“começava a se desenhar a exposição que gostaríamos de ver” (Catálogo da

exposição Chico Buarque – o tempo e o artista, p. 8). Realiza, então, uma seleção

dentre vastos materiais, tentando salientar aspectos que considera relevantes.

Segundo ele:

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Inúmeros temas poderiam ser abordados, tivemos de descartar vários, ficamos com alguns que, acredito, representam aspectos importantes na vida e na obra de Chico: o futebol, o teatro, a literatura, a família, entre outros. (Idem, p. 9)

A exposição Chico Buarque – o tempo e o artista ocupou um ambiente que

propõe ser “[guardião] de parte expressiva da memória do país” (idem).

Personalidades inquestionáveis de nossa cultura, reconhecidas nacional e

internacionalmente, assim como alguns nomes significativos da cultura ocidental,

por exemplo, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Gonçalves

Dias, Castro Alves, Mozart, Camões, Drummond, Chopin, Tolstoi, entre outros,

foram homenageados pela mesma instituição. Como percebemos, geralmente as

honrarias prestadas pela Biblioteca Nacional, sejam em seu espaço ou por sua

participação direta na elaboração, são direcionadas a significativos nomes da

cultura erudita, em sua maioria escritores renomados assim como músicos ilustres.

Atualmente, conforme foi declarado no texto de apresentação da mostra, a

Biblioteca tem interesse em homenagear aqueles que são considerados “expoentes

culturais da segunda metade do século XX” (idem). Nosso artista, portanto, é

reconhecido como um desses nomes.

Chico Buarque é mais conhecido como cantor e compositor, mas atua em

outras manifestações artísticas, como o teatro e a literatura. Seu primeiro trabalho

público, quando musicou o poema “Morte e vida severina” de João Cabral de

Melo Neto, já estava imerso no ambiente literário. Analisando mais

detalhadamente suas produções, percebemos que em diversos momentos sua obra

“ultrapassa os limites da criação musical e deve ser lida em clave literária”

(Revista Cult, 2003, p. 48). Na contracapa de seu primeiro disco solo, “Chico

Buarque de Hollanda”, de 1966, o artista fala acerca da importância desse trabalho

pioneiro para seu primeiro disco solo e de uma particularidade e preocupação que

reconhecemos, também, em sua obra posterior:

É preciso confessar que [à] experiência com a música de “Morte e vida severina” devo muito do que está aí. Aquele trabalho garantiu-me que melodia e letra devem e podem formar um só corpo.

Chico declara que foi por estímulo do pai que começou a ler, afirmando,

ainda, que a literatura foi a ponte de aproximação entre eles. A canção “Pedro

pedreiro”, também de seu primeiro disco, tem uma palavra, fundamental na

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canção, que sofreu influência de um dos seus escritores preferidos: Guimarães

Rosa. Em uma entrevista sobre o filho, Sérgio Buarque relata: “quando fez ‘Pedro

Pedreiro’, inventou uma palavra: penseiro. Talvez inspirado em Guimarães Rosa,

que também era dado a inventar palavras” (Catálogo da exposição Chico Buarque

– o tempo e o artista, op. cit., p. 21). A suspeita do pai é confirmada pelas próprias

palavras do filho: “Guimarães Rosa talvez seja [um] marco para mim. Foi uma

descoberta. Durante um bom tempo, queria escrever como Guimarães Rosa”

(FERNANDES, op. cit., p. 25). No DVD “Uma palavra” (DirecTV, 2005),

esclarece que o “penseiro” é fruto do seu desejo de escrever como Guimarães

Rosa. Projeto, segundo ele, malsucedido.

Seu primeiro texto teatral foi Roda viva, que estreou em janeiro de 1968.

Alexandre Graça Faria, em sua dissertação de mestrado, constata que

As principais qualidades do texto de Chico Buarque são, primeiramente, o explosivo sentido de oposição estética à obra que o próprio artista vinha desenvolvendo: apesar de não conseguir, completamente dar um chute no lirismo — como propõe na canção “Agora falando sério” [...] —, Roda viva é o trabalho que mais se aproxima de uma postura que pode ser chamada de antilírica. Em segundo lugar, o texto representa a radicalização de uma guinada temática que, apesar de já poder ser vislumbrada em canções como “A televisão” [...] ou “Ano novo” [...] só pode ser mais profundamente desenvolvida após Roda viva. (FARIA, 1998, p. 25)

Roda viva é uma peça rara: conforme notificou o pesquisador, o texto é de

muito difícil acesso. Seu trabalho também nos servirá, então, como fonte de parte

do texto que foi resgatado por ele, do original presente no acervo da SBAT

(Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).

A peça de Chico, dirigida por José Celso Martinez, chocou a “chicolatria”,

que criara sobre aquele “bom moço” a imagem de um rapaz meigo e lírico,

contraposta, na maioria das vezes, à “loucura” dos tropicalistas. Houve quem

atribuísse ao diretor a responsabilidade pela forma agressiva e ousada que

assumiu o texto na montagem. E Chico esclareceu, na ocasião:

Quem assistiu pode saber que não estou muito interessado com a opinião do público sobre minha pessoa. Quem quiser um bom menino em casa que desligue a televisão. [...] Os que falaram mal da direção de José Celso e “livraram a minha cara” não entenderam nada. (Folha da tarde: 21/06/68, apud. FARIA, 1998, p. 34)

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Esse trabalho é visto, recorrentemente, como a “produção tropicalista” de

Chico, questionando a contraposição e o distanciamento de sua postura à de seus

contemporâneos: o tema de sua peça é o universo pop, ao qual o tropicalismo

estava filiado. O texto trata da desmistificação dos ídolos populares: Benedito

Silva — ou Ben Silver, depois de tornar-se um ídolo nacional — convive com um

capeta e um anjo safado, responsáveis por suas quedas e suas ascensões. Segundo

Chico, que estava ciente da maneira como seu texto seria encenado, pois

acompanhou os ensaios e compôs músicas complementares na hora: “o Zé Celso

arrepiou na montagem” (ZAPPA, op.cit., 192):

“Você já matou seu comunista hoje?”, interrogavam os atores dirigindo-se a qualquer um das cadeiras, escolhido aleatoriamente. Ficou famosa a cena em que os integrantes do coro do espetáculo, no papel de fãs em transe, simulavam a devoração do corpo do cantor despedaçando um fígado de boi cru, fazendo freqüentemente com que o sangue respingasse sobre a platéia. Entre as outras muitas provocações e deboches, havia ainda uma cena em que Nossa Senhora rebolava de biquíni em frente a uma câmera de TV, enquanto esta simulava movimentos fálicos de ir e vir. (SILVA, op. cit., p. 46)

O resultado da parceria com o diretor do Oficina serviu para confundir a

imagem do “belo” compositor do sucesso “A banda”. Nosso artista declarou,

ainda, em 1971: “antes que brigassem com o Chico, já briguei com ele” (idem).

A peça seguinte é o musical Calabar, o elogio da tradição, parceria com

Ruy Guerra. Submetida à censura prévia, como era de praxe, o texto foi liberado

com a exigência de alguns cortes e alterações. Solicitado para um novo exame

pelos militares em Brasília, próximo à data de estréia, foi proibido sem quaisquer

explicações, assim como o uso do nome Calabar e, ainda, a divulgação da

censura.

O protagonista da história é inspirado na figura de Domingos Fernandes

Calabar (1600-1635), um mulato nascido em Pernambuco que foi esquartejado

pelos homens fiéis à coroa portuguesa por ter desertado de suas tropas para lutar

ao lado dos inimigos holandeses. O título remete a uma problematização que

propõem os autores: poderia ou não um protótipo do traidor da causa portuguesa

ser considerado, ao contrário da lógica vigente, não um anti-herói, mas sim um

defensor da liberdade? Podemos elogiar a traição, dependo do contexto em que ela

ocorre? Ou seja, como esclarecem as palavras de Chico: “a idéia era discutir a

traição, mas a traição com uma finalidade louvável” (ZAPPA, op. cit., p. 192).

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Conforme declarou em entrevista do episódio “Uma palavra” (DirecTV,

2005), ele e seu parceiro Ruy Guerra fizeram uma longa pesquisa, já que o enredo

da peça se remetia ao século XVII, entre os anos de 1630 e 1654, e os autores

buscavam estabelecer uma analogia entre Calabar e Carlos Lamarca: capitão do

exército que desertara em 1969 para integrar a guerrilha armada, sendo

encurralado e morto por agentes da repressão em 1971, no sertão da Bahia. A

proibição da encenação — que envolvia em média 80 profissionais, produção de

Fernanda Montenegro e Fernando Torres e cerca de 30 mil dólares, um alto valor

para o padrão da época — causou prejuízo aos envolvidos.

Com as canções da peça foi lançado o disco “Chico canta”, de 1973, que

tinha, na capa original, o nome Calabar pichado num muro, mas que logo foi

retirada de circulação e substituída por uma foto do artista. A peça foi liberada e

encenada em 1980, mas, como já se tratava de outro contexto, Chico declarou que

“não tinha mais graça” (idem).

Gota d’água de 1975, parceria com Paulo Pontes, a Medéia brasileira e

carioca, confirma seu talento como dramaturgo. Será desenvolvida uma análise

mais apurada desse trabalho mais adiante, por ser o que mais se aproxima da

discussão central proposta por esta dissertação.

Seu último texto para o teatro foi a Ópera do malandro, baseada na Ópera

dos três vinténs e na Ópera dos mendigos, de Bertolt Brecht e John Gay,

respectivamente. O malandro, figura recorrente em sua obra, reconhecido em

algumas análises como seu alter ego, é a personagem principal dessa peça, que

satiriza os rumos do progresso e da americanização televisiva do país, a moral e

os costumes pequeno-burgueses.

A ópera de Chico Buarque é do malandro, com direito a orquestra e

muitos sambas no mesmo ambiente. Mais uma de suas investidas entre os campos

do popular e do erudito. A figura malandra, conforme as palavras de Giovanna

Dealtry, “em alguns momentos é tomada como uma espécie de ‘herói’ popular,

em outros, como a síntese do que temos de pior em nossa cultura” (DEALTRY,

op. cit., p. 13). Max Overseas passeia por essas duas características na peça. É

exemplo do estereótipo “malandro carioca”, com palavreado, gingado, duas

mulheres, sua vida no entre-lugar, entre o oficial e o ilegal.

A imagem do malandro é diversas vezes associada a um símbolo da

identidade nacional brasileira. Romances como Memórias de um sargento de

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milícias, no qual o personagem principal, Leonardo, que mesmo desassociado do

estilo que freqüentemente é associado a tal personagem — ele não é negro, nem

pobre, nem favelado —, é constituído a partir de estratégias malandras, pode nos

servir de exemplo. O artigo de Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, de

1978, é mais um trabalho significativo da intelectualidade acerca desse

personagem, tão recorrente em nossa cultura.

A peça de Chico critica os rumos do progresso, da americanização, tão

valorizados no Brasil daquele contexto. Transformações que atingem o malandro

em cheio, e ele tende a desaparecer num momento em que as estratégias do “barão

da ralé” não cabem mais:

Ele irá cantar não o malandro, mas, antes, a sua extinção — personagem de um Brasil que desaparece, no qual não cabe mais essa mistura tão característica de astúcia e ingenuidade, essa reunião entre malemolência e marginalidade que, mais do que uma forma de sobrevivência, resulta num estilo de vida. (SILVA, op. cit., p. 84)

Um de seus sambas mais conhecidos, “Homenagem ao malandro”, é uma

honraria póstuma àquele antigo malandro, que abandonou a Lapa e agora mora

longe, trabalha, tem família fixa e foi institucionalizado, não servindo mais de

mediador entre o oficial e o marginal:

Eu fui fazer um samba em homenagem À nata da malandragem Que conheço de outros carnavais Eu fui à Lapa e perdi a viagem Que aquela tal malandragem Não existe mais Agora já não é normal O que dá de malandro regular, profissional Malandro com aparato de malandro oficial Malandro candidato a malandro federal Malandro com retrato na coluna social Malandro com contrato, com gravata e capital Que nunca se dá mal Mas o malandro pra valer — não espalha aposentou a navalha Tem mulher e filho e tralha e tal Dizem as más línguas que ele até trabalha Mora lá longe e chacoalha

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Num trem da Central13

A divisão entre o compositor e o escritor Chico Buarque inicia-se, segundo

o próprio, a partir da publicação de seu primeiro romance, Estorvo, em 1991.

Anteriormente, escreveu as três peças de teatro supracitadas, mas declara que “as

peças de teatro eu considero uma extensão do meu trabalho musical” (Folha de S.

Paulo, 06/10/2004), não se referindo à novela Fazenda Modelo, publicada em

1974 (cf. anexo). Serão brevemente analisados alguns aspectos dos três romances

de Chico, pois, como foi informado na introdução, o interesse principal aqui é por

seus trabalhos como “artista popular”, mais especificamente, como sambista. Em

contrapartida, ele confessou a respeito de suas obras de escritor: “minha literatura

não é popular. Muito pelo contrário, não é uma leitura fácil” (Jornal Estado de

Minas, 25/05/2005).

Todos os romances de Chico Buarque têm um cenário comum: a cidade do

Rio de Janeiro. Tanto o narrador-protagonista sem nome de Estorvo, quanto

Benjamin Zambraia e José Costa (ou Zsoze Kósta) passam grande parte de suas

histórias na cidade, que serve de “matéria-prima” nos distintos trabalhos do

artista. O primeiro livro foi alvo de muitas críticas — positivas e negativas —,

relacionadas, muitas vezes, a um questionamento da vertente buarqueana de

“escritor”. Houve mesmo a dificuldade de classificá-lo como romance, sendo, por

vezes, definido como thriller, conforme, por exemplo, a classificação dada por

Carlos Ribeiro no artigo “Romance do simulacro” (in: FERNANDES, 2004) e

anúncios publicitários das editoras. Alexandre Graça Faria constata, ainda, que o

primeiro trabalho de escritor também causou estranhamento aos fãs do artista,

pelo menos àqueles que, habitualmente, “cristalizam” sua imagem:

Estorvo representa, na obra de seu autor, nos anos 90, o que Roda viva representou no final da década de 60. [...] [A]ssim como Roda viva marcou a transição da imagem de Chico-bom-moço de “A banda” ou “Sonho de um carnaval” para uma das principais vozes artísticas de resistência e contestação política nos anos 70/80, Estorvo, inegavelmente, decepcionou os fãs idólatras, que tinham cristalizado a imagem de um Chico-combativo e se habituaram ao teor de denúncia política e social de sua produção literária anterior, como Fazenda modelo, ou Gota d’água. Da mesma forma que os personagens do romance, tais leitores viram-se sem rumo, num momento em que se decretava a morte de utopias. (FARIA, op. cit. p. 111)

13 Ópera do Malandro, faixa 8.

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Estorvo é composto por uma narrativa frenética, com um personagem que

se movimenta incessantemente, mesmo que não seja por vontade própria. O

narrador sem nome e atônito é dominado pela ação: a partir do momento em que,

no início da narrativa, olha através do olho mágico de seu apartamento e vê

alguém, que não sabe com certeza quem é do outro lado, inicia-se “uma narrativa

a galope solto, num ritmo de suspense” (SALLES, 2004, in: FERNANDES, op.

cit., p. 205). Começa uma fuga misteriosa e sem motivo palpável, em torno da

qual gira o livro inteiro. “Qual o destino do personagem, qual o sentido do seu

percurso circular? — são perguntas que oprimem o leitor, que, contudo,

permanecerá, sem respostas” (FARIA, op. cit., p. 121).

O enredo foi associado a uma imagem complexa do país, à falta de

perspectiva que envolve nossa realidade. Chico negou que tivesse a intenção de

simbolizar qualquer coisa com a narrativa, mas declarou não se incomodar com

essa leitura. Observemos as palavras de Heitor Ferraz de Mello:

O livro vai fixando uma imagem complexa do país. É um giro por camadas de uma sociedade degradada e dividida entre os muito ricos e os que vivem de atividade ilegal ou em torno dela e com proteção da polícia. O protagonista participará de todos os lados, mas sempre impulsionado pela situação. Ele vai se envolver em situações estranhas, tomar porrada, apanhar de marginais, entrar e sair do mundo da ilegalidade e ainda roubará as jóias da irmã para trocá-las por uma mala de maconha. (Revista Cult, op. cit., p. 52)

A crítica observou, no entanto, que os rumos da narrativa nos levam, por

vezes, a questionar a veracidade daqueles relatos conturbados. Segundo Cecília

Almeida Salles:

paira o tom de suspeita que tudo isso possa não ter acontecido daquele jeito, ou, talvez de forma mais radical, que tudo isso possa não ter acontecido. Outros críticos explicaram essa imprecisão ou falta de clareza pelo fato de que o livro flutua entre o real e o imaginário ou por ser uma narrativa com chave onírica. (SALLES, op. cit., p. 208)

Posteriormente, Chico publica Benjamin, em 1995. No segundo romance,

considerado mais didático e menos complexo que o primeiro, o personagem-título

é um ex-modelo fotográfico, uma espécie de ex-garoto propaganda que imaginava

ter uma câmera fora dele o filmando, desde a adolescência. Logo, o personagem

perde qualquer chance de naturalidade e passa a representar-se a si mesmo.

Observemos também que, assim como no romance Estorvo, “em Benjamin,

também não há espaço para a utopia” (FARIA, op. cit., p. 131).

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Aproximando os dois primeiros romances, Heitor Ferraz Mello constata

que

Sonho ou representação da realidade, o fato é que os dois romances apontam para um mundo impedido, que não consegue superar o passado, onde não há esboço de resistência do sujeito. Eles dançam conforme a música, como se tivessem petrificado a individualidade. A imagem mais forte disso é a de Benjamin morando num apartamento cuja janela dá para uma enorme pedra, a Pedra do Elefante. Em certo momento o narrador diz: “Há o cheiro da Pedra em Benjamin, que à saída do quarto fita Ariela, empedernido; é tão presente a Pedra naquela sala que, se Benjamin viesse a emparedar a janela, parece a Ariela que a Pedra ficaria do lado de dentro”. É como se o próprio personagem adquirisse as propriedades da pedra (ele fica “empedernido) — uma imagem forte de imobilidade e morte do indivíduo. (Revista Cult, op. cit., p. 53)

A circularidade da narrativa foi outro aspecto importante notado por Pedro

Meira Monteiro. Observemos que:

Não há destino possível, senão aquele que se desenha projetando-se o passado, mas não em direção ao futuro, senão na circularidade das lembranças [...] A projeção do fantasma de Castana Beatriz no corpo de Ariela Masé se dá exatamente neste jogo da circularidade, na possibilidade de que, através da narrativa, eu recomponha o tempo, que passa diante da morte. Mas a única e angustiante possibilidade de recompor as amarras da vida está em reportar-me ao passado — um passado aberto, porque é ainda pura realização — e esquecer o futuro [...] (MONTEIRO, 2004, in: FERNANDES, op. cit., p. 358)

Ainda em tempo, Alexandre Graça Faria, por sua vez, constata, a respeito

da questão em Estorvo que

De maneira condensada e poética, pode-se considerar que todo o romance está escrito na própria epígrafe — estorvo, estorvar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbulência, turbilhão, trovão, trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, esturpor estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo — um percurso que volta ao início e se encaminha através de movimentos circulares em torno de um étimo e de falsos cognatos [...] (FARIA, op. cit., p. 122).

O último e mais bem sucedido romance, Budapeste, foi lançado em 2003.

Considerado a obra da maturidade do escritor Chico Buarque, com esse livro o

artista é reconhecido como um importante escritor da contemporaneidade, tendo

em vista as indicações e a conquista de prêmios literários, inclusive.

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O enredo de Budapeste é narrado entre o Rio e aquela cidade, que o autor

não conhecia até finalizar o livro. Baseado em mapas e consultas, Chico escreveu

um romance no qual boa parte da história acontece numa cidade que ele cria —

ruas, praças, hotéis, bares... O programa “Uma palavra” (DirecTV, 2005) levou o

artista recentemente para conhecer, enfim, Budapeste: ele reconhece algumas das

informações que buscou e percebe que outras eram equivocadas ou já obsoletas.

Sua maior surpresa foi conhecer uma estátua de um “escritor anônimo”, que se

assemelha ao ghost writer de seu romance.

José Costa vai parar, por acaso, em Budapeste graças a problemas no vôo

que o levava de Istambul a Frankfurt, na conexão para o Rio de Janeiro. Sua vida

é, a partir de então, totalmente modificada, como é comum aos protagonistas dos

romances de Chico:

Em Budapeste, problemas no avião que o transportava de Istambul a Frankfurt provocam um pouso imprevisto que leva José Costa a conhecer a cidade que vai virar sua vida do avesso; em Benjamin, a vida e a morte do protagonista são seladas por dois mal-entendidos fatais; em Estorvo, ficamos sem saber qual a razão da fuga que deflagra o romance. (SILVA, op. cit., p. 122)

É com o último romance que o músico torna-se um reconhecido escritor

brasileiro, legitimado e premiado. Além de compositor, Chico Buarque é também

um escritor. Ou, conforme declara “um sambista que escreve livros” ou “um

homem de música que escreve textos” (Revista Ocas, op. cit., p. 17). Ele esclarece

que sua profissão é músico: “quando viajo, chego ao hotel e tenho que escrever

minha profissão, escrevo sempre ‘músico’. Mesmo quando vou a festivais de

livros, lançamentos, é sempre ‘músico’” (idem). Mas constata que “os músicos

também não me consideram músico...” (idem), assim como os escritores não o

reconhecem como um de seus pares. “Moro no limbo”, brinca. A cultura escrita,

das letras, faz parte da biografia do artista, que convivera com ela desde cedo pela

aproximação com o pai historiador e escritor na casa repleta de livros. A

influência do contato com a cultura escrita e os reflexos dela em sua obra são

particularidades que aperfeiçoam seus trabalhos, tanto de escritor quanto de

compositor.

Analisemos agora sua primeira grande investida no campo da ficção, em

1974, quando publica Fazenda modelo. Num momento complicado para retratar a

realidade que o rodeava, particularidade muito presente em sua trajetória, o autor

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usa como recurso a alegoria e compõe um texto no qual sua ironia fina, outra de

suas características intrínsecas, é notória, servindo como motor para um relato

daquele momento histórico específico.

Fruto dos anos 70, período em que era alvo número um da censura, sua

“novela pecuária” tem como personagens bois, vacas e bezerros que, em nome do

progresso, têm seu cotidiano simples modificado quando surge o projeto

progressista de uma “Fazenda Modelo”. Os habitantes daquela comunidade, que

viviam misturados em um ambiente com leis nascidas da sabedoria popular, onde

“não podia apontar estrela, por exemplo, que dava verruga na ponta do dedo. Se

brincasse de vesgo, batia uma brisa e ficava vesgo para sempre. Nem podia olhar

mulher nua que nascia terçol e verruga” (HOLLANDA, 1974, p. 15), são

submetidos a novas leis, racionais e científicas. É o momento em que se

reconhece que a desordenada fazenda:

Podia ser boa e bonita. Mas dava prejuízo. E tem mais: a indisciplina reinava, imperava o mal. Campeavam as libertinagens. Elogiava-se a loucura. As hierarquias eram revertidas, a higiene, o recato. Um quadro nada modelar. Portanto já era tempo de impor a ordem à comunidade vacum. (Idem, p. 18)

O lema positivista de nossa bandeira nacional transformou-se também em

metas para a elaboração de uma comunidade modelar. Nação, bois, vacas e

bezerros que representam “malandramente”, na novela pecuária de Chico

Buarque, o Brasil e os brasileiros do período posterior ao chamado “milagre

econômico”. Para que surja uma Fazenda Modelo, ou, alegoricamente, o “Brasil

Grande”, fruto da perspectiva desenvolvimentista e ideológica do General Emílio

Garrastazu Médici, urgia que fossem realizadas transformações na vida daquele

povo que habitava num espaço, até então, absolutamente “indisciplinado”.

Atentemos para o fato de que, como denuncia Stuart Hall, “de um jeito ou de

outro, o ‘povo’ é freqüentemente o objeto da ‘reforma’: geralmente, para seu

próprio bem, é lógico — ‘e na melhor das intenções’” (HALL, 2003, p. 248). E

“para seu próprio benefício”, todo cotidiano da comunidade vacum é alterado,

desde seu direito de ir e vir, até seus mais íntimos relacionamentos pessoais.

Em um país submetido a uma ditadura militar, onde a intensa censura que,

entre outras punições, exigia cortes de versos nas letras de músicas, proibia a

exibição de peças, induzia que microfones fossem desligados em shows de

cantores e compositores considerados subversivos, os artistas eram obrigados a

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usar recursos para que suas obras fossem liberadas. Conforme a expressão criada

por Caetano Veloso, era necessária uma nova linguagem, uma “linguagem

oblíqua” ou uma “linguagem da fresta”:

[...] O compositor malandro já não é mais aquele de lenço no pescoço, navalha no bolso, como no tempo de Noel; mas sim aquele que sabe pronunciar, ou seja, que sabe ludibriar o cerco do censor. [...] Dizer ou não dizer simplesmente é, nos dias de hoje, uma falsa alternativa. O importante é saber como pronunciar; daí a necessidade do olho na fresta da MPB. (FERNANDES, op. cit., p. 37)

A linguagem de nosso “malandro sambista, carioca da gema”14 é similar a

que propõe Caetano, seja compondo suas canções, seus textos teatrais ou na

estratégia usada em sua novela pecuária Fazenda modelo. É no mesmo ano de

1974, quando Chico percebe o “sinal fechado” da censura para suas composições,

que o artista lança um disco regravando canções de outros artistas como seus

contemporâneos Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, dos sambistas

Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho, Augusto Tomaz Júnior, Noel Rosa, Nelson

Trigueiro e do estreante Julinho da Adelaide, heterônimo que cria para escapar do

cerco dos censores. Sua entrevista recente ilustra a questão:

A partir do AI-5 então que começou a existir a censura prévia [...] em jornais, alguns jornais, pra [...] textos de televisão, pro teatro e pra música popular. Você pra gravar uma música [...] tinha que submeter a letra [...] à censura federal, ao Departamento de censura da polícia federal. Quando me diziam: “— se você mudar tal verso a música é liberada” , eu mudava. Claro! Eu queria que a música saísse, que a música fosse [...] ouvida. E muitas vezes quando diziam isso: “— se tal verso for alterado a gente libera”, [...], muitas vezes era puro exercício de poder. Você trocava um verso por um outro que praticamente dizia a mesma coisa; eles ficavam satisfeitos e você também. Eu tive muita experiência com teatro também, por exemplo. Ali era [...]o comércio. Comércio de palavrões. Você tem aqui a peça [...]. E você também já escrevia um texto quando ele ia (isso eu aprendi) pra censura teatral com uma gordura de palavrões para você poder perder, né? Porque chegava na hora: “— proíbe 20 puta que pariu, deixa esse filho da puta ali”, “tá”. E aquele filho da puta às vezes era mais importante que todos eles; você já montava aquele negócio todo. Mesmo com música depois eu descobri um sistema engraçado que era [...] mandar uma letra enorme, com uma introdução [...] e um final e tal, e depois [...], no miolo é que “tava” a letra verdadeira. E às vezes com isso, com esse recheio todo [...], a música era liberada. E você tinha uma música liberada mas não era obrigado a gravar toda aquela letra. A música “tá” toda liberada e você podia gravar um pedaço dela. Aí você gravava o pedaço que era pra valer.

14 “Chico Buarque da Mangueira”, Samba da Estação Primeira de Mangueira, 1998.

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[...] Havia esses jogos todos, isso sim era engraçado. Quando falam que era estimulante, era estimulante neste sentido: estimulava o artista a inventar truques para [...] driblar o adversário. [...]O Julinho da Adelaide foi [...] isso também [...]. Porque em determinado momento eu percebi que o meu nome chamava atenção. [...] Eu falei:[...] “bom, então posso mandar uma música com um outro nome”, nada me impedia, ainda, até então. Depois que descobriram a história do Julinho da Adelaide passaram a exigir o CIC, o nome, a identidade, a xerox e tal (risos). (“Vai passar”, DirecTV, 2005)

Uma das censoras que lia as canções encaminhadas ao Serviço de Censura

de Diversões Públicas (SCDP) confirma que havia uma prática especial para as

canções assinadas pelo artista: “era de lei carimbar como interditada todas as

letras de autoria de Chico, assim que chegassem à repartição. Antes mesmo do

exame” (Jornal do Brasil, op.cit., p. B5).

Utilizando provavelmente a metáfora que compara povo à boiada, a

rebanho, ou seja, a um grupo fechado e inoperante, facilmente manipulado, Chico

conseguiu ter publicada sua primeira novela, na qual faz mais uma de suas críticas

à lógica dominadora da sociedade brasileira. Lógica essa que, inúmeras vezes,

subestima a inteligência e a potência de seu povo, impondo-lhe autoritariamente

reformas progressistas importadas que julga necessárias.

Devemos atentar para o fato de que a concepção de “povo” daquele

contexto é muito específica. No ano seguinte, 1975, Chico lança Gota d’água, a

Medéia brasileira, parceria com Paulo Pontes. No texto introdutório à peça, os

autores sugerem uma nova concepção do que seja o povo brasileiro: “Povo

deixava de ser [...] o rebanho de marginalizados; politicamente, povo brasileiro

era todo indivíduo, grupo ou classe social naturalmente identificados com os

interesses nacionais” (HOLLANDA; PONTES, 1975, introdução, p. xvi).

Observemos algumas questões que moveram a confecção do texto.

Estudiosos e interessados em literatura geralmente conhecem textos

clássicos, como o de Eurípides. Não é novidade que escritores de qualidade sejam

“devoradores” de livros e que marcas de alguns de seus predecessores apareçam

também em seus textos. Assim como marcas, temas reaparecem constantemente.

Chico Buarque e Paulo Pontes utilizam o texto como base para pensar questões

brasileiras, cariocas e atuais, naquele momento em que se encontravam. Questões

que, no entanto, não são de todo desatualizadas. E assim surge Gota d’água, peça

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escrita com preocupações que os autores consideravam dignas de reflexão naquele

momento, conforme declararam na bela apresentação do livro.

A peça é escrita sob a ótica da problemática a ser discutida e colocada em

foco, e estas questões são centrais no texto. Os autores esboçam as preocupações

principais que procuravam enfocar com a peça. Acompanhemos:

A primeira e mais importante de todas [...] se refere a uma face da sociedade brasileira que ganhou relevo nos últimos anos: a experiência capitalista que vem se implantando aqui — radical, violentamente predatória, impiedosamente seletiva — adquiriu um trágico dinamismo. (Idem, p. xi)

A experiência capitalista e suas problemáticas em nossa realidade nacional

são as principais questões que moveram a confecção do texto e que, visivelmente,

foi bem desenvolvida no mesmo. No texto de Eurípides, Jasão abandona a família

para se casar com a filha do rei Creonte. Seu interesse é uma velhice gloriosa, que

não adquiriria casado com uma estrangeira, uma feiticeira bárbara na Grécia.

Além disso, declara que “ queria — e este é o ponto capital — assegurar-nos [a

ele e aos filhos] de uma vida próspera, isenta de privações, sabendo que todos os

amigos fogem e se afastam do pobre” (EURÍPIDES, [s/d], p. 30). O Jasão da

tragédia carioca não age de maneira muito distinta, mas dentro de seu contexto

específico.

“Medéia é uma história de reis e feiticeiros. Gota d’água é uma história de

pobres e macumbeiros.” A caracterização de Eduardo Francisco Alves, presente

na contracapa do livro, é muito coerente. Tanto o Jasão grego quanto o carioca

buscam, através do enlace com as filhas dos “reis” — de Corinto e da Vila do

Meio-Dia —, a possibilidade de mudar suas vidas, de ascender social e

materialmente. Tanto Medéia quanto Joana são expulsas pelos Creontes de suas

casas, dos reinos deles, por ambas terem insultado publicamente os próprios, suas

filhas e os respectivos Jasões. Medéia é conhecida por ser uma “feiticeira temível,

vinda de terra longínqua e fabulosa, [tendo] da ‘Bárbara’ a astúcia e a

dissimulação” (EURÍPIDES, introdução, p. 13).

Chico Buarque e Paulo Pontes vão se distanciando do texto de Eurípides e

se aproximando do que propõem discutir, já que as personagens principais de

Gota d’água, Joana e Jasão, são moradores de um conjunto habitacional que tem

um único dono: um bicheiro rico e aproveitador graças a sua posição. A primeira

preocupação que declaram na apresentação do livro aparece claramente encenada:

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Creonte é símbolo explícito de um sistema capitalista cruel, no qual muito poucos

detêm a maior parte da riqueza, enquanto a maioria pode ser considerada apenas

como sobrevivente deste sistema.

Segundo as palavras dos autores, está presente a preocupação em encenar

o fato de que “a brutal concentração de riqueza elevou, ao paroxismo, a

capacidade de consumo de bens duráveis de uma parte da população, enquanto a

maioria ficou no ora-veja” (BUARQUE; PONTES, op. cit., p. xi). O texto é de

1975, e ainda hoje essa discussão é absolutamente atual no cenário carioca, assim

como no brasileiro. Vemos, cada vez mais, aumentar o número de favelas e

habitações irregulares, já que a maior parte da população não tem fácil acesso,

ainda hoje, a esses bens. Acompanhamos as personagens da tragédia carioca

lutando para conquistar suas propriedades, o que se torna cada vez mais difícil

com as injustas e infinitas prestações que Creonte lhes cobra. É dessa mesma

realidade que vem o sambista Jasão. Quando muda de lado, quando ascende

socialmente, é usado como intercessor por seu sogro para acalmar os moradores

da Vila do Meio-Dia e propõe soluções para as reivindicações de seus ex-

vizinhos, que ameaçavam não mais pagar as absurdas prestações.

Gota d’água é confeccionada segundo preocupações político-sociais dos

autores, baseadas na ideologia vigente no Brasil dos anos 70, diferentemente da

peça de Eurípides, escrita para uma Grécia antiga onde questões de tal tipo eram

consideradas de âmbito privado e inexistiam na arte com o mesmo objetivo dos

autores brasileiros. Medéia, uma bárbara na Grécia, foi expulsa de Corinto por

proferir insultos contra a família real. Joana fez o mesmo e também foi expulsa,

mas da casa de que pagara inúmeras prestações e ainda não era sua. A tirania de

Creonte é muito bem expressa no momento em que expulsa Joana, “barbarizando-

a” também, de alguma forma. A desapropriação de Joana é também uma questão

política e social. Diferentemente de Medéia, não havia quem a recebesse em terras

estrangeiras. Egeu, que acolheria Medéia em seu reino, na tragédia carioca é

apenas mais um morador, melhor esclarecido e já proprietário na mesma vila onde

Joana não poderia permanecer; conselheiro dela e dos outros moradores

explorados por Creonte.

A princípio, a expulsão de Joana torna-se uma questão de interesse

coletivo. Porém, quando Creonte anula as prestações atrasadas dos outros

moradores e, além disso, lhes oferece melhorias na vila, seu problema passa a ser

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individual, pessoal e intransferível. Só lhe resta abandonar sua casa e partir.

Ouçamos as palavras do coro das Lavadeiras, vizinhas de Joana, no momento em

que criticam sua ousada atitude:

Virgem matriarcarum, me livrai de toda inútil e vã rebeldia Joana está sem casa e os filhos, sem pai por ela querer mais do que podia Virgem, cultivai em mim o respeito Às leis e ao apetite do mais forte Joana rebelde tem por pena um leito gélido e solitário como a morte. (Idem, p. 138-9)

Medéia tem a vida comum de uma mulher livre na Grécia; Joana tem a

vida de uma mulher simples, pobre no Rio de Janeiro dos anos 70. Jasão na

Grécia é um argonauta que conquistou o Velocino de ouro, missão praticamente

impossível. O outro Jasão, no Rio de Janeiro, é um sambista que alcança a glória

com o sucesso de sua canção, “A gota d’água”. Ambos realizaram proezas. Ser

bem sucedido como sambista, como acontece a Jasão, é visto pelas personagens

da tragédia, que refletem o imaginário brasileiro e carioca, como uma exceção

entre as exceções. O esclarecido Mestre Egeu aconselha Jasão, pai de família e

marido:

Olha, samba é só uma espécie de feriado que a gente deixa pra alma da gente mas você não se iluda porque a vida a gente ganha no batente (Idem, p. 48)

E, posteriormente, descobre qual poderia ser sua verdadeira profissão:

Agora você provou de vez Que já tá marcado o teu destino Eletrônica das oito às seis E em noites de lua, violão. (Idem, p. 58)

Jasão, “verdadeira jóia do cancioneiro popular” (idem, p. 60), como o

chama Xulé, um de seus ex-vizinhos, é visto como uma exceção. Músico,

sambista principalmente, não tem profissão: é diversão para os momentos de

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folga. Quem não tem a sorte de poucos deve procurar uma verdadeira profissão.

Jasão foi um “sortudo”. E, além de ascender graças a sua canção, ainda

conquistou a filha de Creonte, que vê o enlace de sua filha Alma com tal tipo da

seguinte forma:

Creonte Sou franco — pra minha menina Contava com coisa mais fina Pensava assim... um diplomata, um gerente... um tecnocrata, tenente, major, capitão, político de situação... Quem me dera um capitalista ou quem sabe um psicanalista Por que não um ginecologista? Talvez até mesmo um dentista, qualquer coisa menos sambista, porque Alma não é masoquista e, ora porra, eu não sou leão Que ela arranjasse um burocrata de óculos, terno e gravata Bancário, mesário, escrivão, político de oposição! Um simples assalariado, um mero psicanalisado, Cadete, cabo, reservista, guarda de trânsito paulista, qualquer coisa menos sambista Pois foi ao último da lista Que a minha filha deu a mão. (Idem, p. 40)

O sambista é o último da lista. Então é necessário que Jasão assuma sua

nova posição: não será mais marido de uma mulher qualquer. É necessário que

passe de vez para o lado de Creonte, pois “co’esse violão não vai dar conta do

recado” (idem, p. 38). Assim, Jasão se separa cada vez mais de sua realidade

sombria e passa para o lado da luz. É o braço direito de Creonte, que o usa como

intermediário entre ele e o povo.

As hybris de Medéia e Joana são semelhantes: enfrentam a autoridade

máxima dos locais onde moravam por amarem Jasão, a quem muito ajudaram. As

conseqüências e o desfecho das histórias, entretanto, são muito distintos para cada

uma delas: uma é salva; para a outra não há salvação, por não estar enfrentando

somente um homem, mas também um sistema no qual ela é absolutamente

descartável.

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Além da preocupação com a forma que escrevem a peça, buscando uma

revalorização da palavra, em um texto escrito em versos “intensificando

poeticamente um diálogo que podia ser realista” (idem, p. xix), há ainda uma

outra preocupação que os autores desejam enfocar e que fica muito bem encenada.

Observemos suas palavras:

A segunda preocupação de nosso trabalho é com um problema cultural, cuja formulação ajuda a compreender o que foi dito acima: o povo sumiu da cultura produzida no Brasil — dos jornais, dos filmes, das peças, da TV, da literatura, etc. Isolado, seccionado, sem ter onde nem como exprimir seus interesses, desaparecido da vida política, o povo brasileiro deixou de ser o centro da cultura brasileira. Ficou reduzido às estatísticas e às manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal. Chegou a hora em que até a palavra povo saiu de circulação. Nossa produção cultural, claro, não ganhou com o sumiço. (Idem, p. xvii)

A arte brasileira estava separada da realidade brasileira. Os autores viam a

necessidade, urgente, de colocar o povo no palco e reaproximar a arte da realidade

nacional. A partir da década de 50, a classe média percebe que está distante

daquilo que pensa e produz. E para formar um perfil do povo brasileiro, é nas

camadas populares que ela busca inspiração, ao povo que tem uma história a

fazer, a construir. As classes médias assumem o lugar de intermediária entre as

outras duas classes, tão distantes. O objetivo de Gota d’água é ser “uma tragédia

da vida brasileira” (idem).

Na visão dos autores, uma das lutas do teatro deveria ser a reaproximação

com a única fonte de originalidade da intelectualidade brasileira: seu povo. Urgia

então levá-lo ao palco, com suas histórias, tantas vezes esquecidas ou camufladas.

É parte da vida brasileira devolvida aos palcos com Gota d’água. A trama de

Eurípides serve perfeitamente para que se pense um enredo dentro de nossa

realidade, também farta de tragicidade.

A razão principal de estar sendo analisada mais aprofundadamente a peça

Gota d’água é a escolha de um sambista como antagonista da tragédia carioca. A

personagem será aproximada da discussão desta dissertação, que tem como mote a

entrevista em que Chico Buarque se autoproclama também sambista, presente na

exposição da Biblioteca Nacional.

Comparando a personagem Jasão e o artista Chico Buarque já percebemos

uma distinção entre “espécies” de sambistas. Jasão tem sua realidade miserável

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transformada a partir do momento em que sua canção “A gota d’água” estoura nas

paradas de sucesso. E seus companheiros constatam o seguinte:

Amorim — Samba e futebol são a salvação da lavoura. Duvido que exista outra maneira de fodido brasileiro arranjar lugar ao sol [...] Cacetão —... Foi sambando, foi sambando e não é que ele acabou descolando a filha do homem? Aperta aqui! (Idem, p. 60-1)

As palavras dos ex-vizinhos de Jasão são a expressão de uma das questões

que os autores buscam problematizar com a peça. Sendo o capitalismo, por

natureza, “seletivo”, há espaço somente para aqueles considerados “mais

capazes”. Muitos ficam à margem das conquistas; a maioria, componentes das

classes subalternas. Individualmente ou em grupo, um “homem capaz” ou uma

elite das camadas inferiores pode ascender, mas, como grupo, as classes populares

estão reduzidas à indigência política. Por isso, os companheiros de Jasão vêem

samba e futebol como veículos imediatos de mudança da realidade; um destes

instrumento que concedeu a ele sua ascensão.

Pensemos agora a respeito do sambista Chico Buarque. Seu primeiro

disco, Chico Buarque de Hollanda, de 1966, com exceção de “A banda”, é

composto por sambas, como já foi dito anteriormente. No texto introdutório,

Chico declara: “pouco tenho a dizer além do que vai nestes sambas”15 e ainda que

“o samba chega à gente por caminhos longos e estranhos, sem maiores

explicações. A música talvez já estivesse nos balões de junho, no canto da

lavadeira, no futebol de rua...”16 Um disco de sambista, como confirmam suas

palavras. Quando não apareceu nenhum samba, no disco de 1989, o seguinte,

“Paratodos”, ganhou uma canção intitulada “De volta ao samba”, na qual o artista

lhe pede perdão pela “falta grave”:

Pensou que eu não vinha mais, pensou? cansou de esperar por mim acenda o refletor apure o tamborim

15 Chico Buarque de Hollanda (1966), contracapa. 16 Idem.

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aqui é o meu lugar eu vim fechou o tempo, o salão, fechou? mas eu entro mesmo assim acenda o refletor apure o tamborim aqui é o meu lugar eu vim eu sei que fui um impostor hipócrita querendo renegar seu amor porém me deixe ao menos ser pela última vez o seu compositor quem vibrou nas minhas mãos não vai me largar assim acenda o refletor apure o tamborim preciso lhe falar eu vim com a flor dos acordes que você brotando cantou pra mim acenda o refletor apure o tamborim aqui é o meu lugar eu vim eu era sem tirar nem pôr um pobre de espírito ao desdenhar seu favor porém meu samba, o trunfo é seu pois quando de uma vez por todas eu me for e o silêncio me abraçar você sambará sem mim acenda o refletor apure o tamborim aqui é o meu lugar eu vim.17

Há, no entanto, algumas questões que gostaria de problematizar. Como o

próprio Chico afirma, o samba chega (aos artistas) por caminhos longos e

estranhos. E “estranho” foi, também, o caminho do próprio samba e a trajetória

dos sambistas iniciais, para que fossem aceitos socialmente, e o samba valorizado

e legitimado, conforme já começou-se a discutir no capítulo anterior. Retomando

Nelson Sargento, em “Agoniza, mas não morre” o sambista caracteriza o samba

como “negro forte, destemido” que foi “duramente perseguido, na esquina, no 17 “De volta ao samba”, Paratodos, faixa 4.

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botequim, no terreiro”18. E até o momento em que a “fidalguia do salão” o

aceitasse e absorvesse, foi uma longa e dura caminhada, que submeteu seus

artistas e participantes à violência física, punições e humilhações diversas.

Novamente vamos analisar um pouco da trajetória do samba e dos sambistas, sob

um enfoque um pouco distinto.

Regida por uma lógica que inferioriza e discrimina a alteridade, a polícia

no início do século XX, baseada nas lógicas da sociedade de então, perseguia a

religião e a cultura dos negros no Rio de Janeiro, período em que grande número

de afro-descendentes, a maioria baianos, desembarcavam na cidade em busca de

uma vida mais livre e digna:

Havia na época muita atenção da polícia às reuniões dos negros: tanto o samba como o candomblé seriam objetos de contínua perseguição, vistos como coisas perigosas, como marcas primitivas que deveriam ser necessariamente extintas, para que o ex-escravo se tornasse parceiro subalterno “que pega no pesado” de uma sociedade que hierarquiza sua multiculturalidade. (MOURA, op. cit., p. 100)

Os componentes da “pequena África”, expressão cunhada por Heitor dos

Prazeres, que dela fez parte, precisaram estabelecer algumas estratégias para que

sua cultura e sua religião, heranças da longínqua África e de seus ascendentes, não

morressem. O samba, canção absolutamente influenciada pela tradição africana, a

princípio desvalorizado e perseguido num momento em que, conforme declarou

João da Baiana, “não se ganhava dinheiro com samba. Ele era muito mal visto”

(idem, p. 83), tinha alguns espaços onde podia ser tocado e dançado, sem

preocupações de seus participantes quanto à repressão que lhes era imposta. A

famosa “Casa da Tia Ciata”, personagem relembrada em todos os relatos acerca

do surgimento do samba, foi, entre esses espaços, um dos mais reconhecidos e

comentados.

As festas eram tradicionais na casa da baiana, no centro do Rio de Janeiro,

graças à respeitabilidade do marido, funcionário público que, posteriormente,

esteve ligado à própria polícia; influente dentro e fora do meio negro. Os

encontros eram, portanto, realizadas em um local “livre de batidas da polícia”. Sua

casa tornou-se, ainda, um espaço privilegiado para as reuniões, reconhecida como:

Devemos observar, ainda, que o disco “Paratodos” é repleto de fotografias e a que ilustra a canção em questão associa-se muito à imagem das “tias” de escolas de samba. 18 Nelson Sargento, “Agoniza, mas não morre”, in: Chico Buarque de Mangueira.

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“um local de afirmação do negro onde se desenrolam atividades coletivas tanto de

trabalho [...] quanto de candomblé, e se brincava, tocava, dançava, conversava e

organizava” (idem, p. 100).

Em relação aos participantes,

[as] festas na casa de Ciata eram freqüentadas principalmente pelos “de origem” e pelos negros que a eles se juntavam, estivadores, artesãos, alguns funcionários públicos, policiais, alguns mulatos e brancos de baixa classe média, gente que progressivamente se aproxima pelo lado do samba e do Carnaval, e por doutores “gente boa”, atraídos pelo exotismo das celebrações. (Idem, p. 103)

Conviviam vários segmentos da sociedade nas festas que a baiana oferecia em sua

casa, sendo a maioria deles negros, mas que tinha, também, integrantes da

burguesia carioca que apresentava “progressivo interesse [...] pelas coisas que se

ouvia dizer que o povo fazia” (idem, p. 88). Na casa, “a festa era assim: baile na

sala de visitas, samba de partido alto nos fundos da casa e batucada no terreiro”

(idem, p. 83), garantidas, dubiamente, pelos seis soldados do “coronel Costa”,

amigo dos baianos.

Em outros locais da cidade, públicos ou privados, as autoridades

praticavam, no entanto, ações autoritárias e agressivas contra os participantes do

samba, salvas raras exceções, conforme declarou Donga, fazendo uma

retrospectiva daquele época:

[...] a situação vexatória dos que vinham sofrendo a pressão bárbara e irregular, na sua própria residência em festas íntimas, quando eram cercados pela polícia de então e intimados a ir ao distrito dar explicações por estar dançando o samba, este que toda gente admira e dança. Em certos casos, permaneciam no distrito. Na festa da Penha, os pandeiros eram arrebatados pela polícia por medida de precaução, quando por falta de sorte dos sambistas não estava de serviço na Penha o piquete de cavalaria do 1º ou 9º Regimento da [...] arma de nosso exército, que sempre nos protegeu. (Idem, p. 111)

A cultura urbana das camadas inferiores, nos finais do século XIX e início

do XX, sem que constituísse um partido político de classe, representou uma fonte

de luta e resistência contra a dominação que, no decorrer da história, vem sendo

imposta ao povo. Essa não é uma especificidade apenas do Brasil, mas uma

característica reconhecível na cultura de toda a América Latina, segundo

Alejandro Olloa Sammiguel (in: MOURA, op. cit., p. 85-6). O autor afirma que,

do norte ao sul das Américas, foram os pobres que criaram uma cultura

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hegemônica transnacional, nunca as classes médias ou a burguesia. Essa cultura

popular tem origem no conflito e na luta por sobrevivência, em um meio

absolutamente hostil.

No Brasil, particularmente, sabemos que a cultura de origem popular

influenciou grande parte das produções nacionais, mesmo quando estavam mais

próximas da arte erudita — Villa-Lobos, Tom Jobim — ou seguiam rumo à arte

pop. Com o decorrer do tempo, os signos culturais sofrem diversas modificações

como, por exemplo, o samba no Rio de Janeiro — que hoje já tem

subdenominações como “samba de raiz” — ou o Maracatu de Pernambuco —

dividido entre rural e urbano.

Anna Paula Mattos Silva analisa em sua dissertação de mestrado, já citada,

uma intensa polêmica travada em Recife nos anos 90, entre o então secretário de

cultura Ariano Suassuna e integrantes do movimento Manguebit. O tema é um

ótimo exemplo para ilustrar distintos olhares direcionados à cultura de origem

popular e seus rumos. Enquanto o secretário anunciava que só destinaria fundos

estatais para manifestações populares “autênticas”, ou seja, aquelas “eleitas”

folclóricas, as quais necessitam e são dignas de memória e preservação, segundo

seu enfoque e seus critérios, Chico Science e seus parceiros de um movimento que

tinha como proposta “não acabar com o folclore e sim resgatar os ritmos

regionais, envenená-los com a bagagem pop” (SCIENCE, apud. MATTOS

SILVA, op. cit., p. 12) foram excluídos dos projetos patrocinados pela Secretaria

de Cultura.

A postura conservadora de Ariano Suassuna se contrapõe à releitura da

tradição popular proposta pelo Manguebit, que a utiliza como fonte para a criação

de algo novo, mas não a negando à medida que inova. A fusão do folclórico com

os instrumentos que a cultura pop oferece, segundo Chico Science: “pode chamar

atenção das pessoas para os ritmos como eles são e criar interesse pelo folclore”

(idem), tornando-se, assim, mais um meio de acesso a ele. Aquilo que é nocivo na

visão de Suassuna representa, para Science, a possibilidade de ampliar o alcance

das manifestações tradicionais da cultura.

Podemos associar a proposta do movimento Manguebit, que dialoga com a

tradição e a revitaliza, a um dos projetos do filósofo Friedrich Nietzsche que, no

texto “Da utilidade e dos inconvenientes da História para a vida”, faz apologia ao

uso criativo dos conhecimentos adquiridos. Segundo o pensador, que tem grande

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preocupação com os caminhos que tomam a cultura no ocidente, a herança que

nos é legada pela tradição não pode servir apenas para um estudo anacrônico e

conservador, mas deve ser atualizada e, assim, servir para a vida, para o tempo

presente e para o porvir. O conhecimento do passado e da tradição são

instrumentos que possuímos para “lançar uma ação intempestiva contra esta

época, sobre esta época e [...] em benefício do tempo que há-de-vir”

(NIETZSCHE, [s/d], p. 103) e deve ser querido apenas à medida em que “está ao

serviço do futuro e do presente” (idem, p. 133).

Discursos tradicionalistas e folcloristas associam à perda de autenticidade

as atitudes de artistas que não sejam previstas para o papel que, supostamente,

lhes foram atribuídos. Carlos Sandroni no texto “Adeus à MPB” relata casos

interessantes em que artistas associados ao folclore e assim, por extensão,

“deveriam” estar distanciados do mercado e da mídia, transgridem esta “regra”:

Em Pernambuco, onde essa tendência parece ser particularmente forte, o primeiro caso talvez tenha sido o de dona Selma do Coco. Trata-se de uma senhora que trabalhava como tapioqueira no Alto da Sé de Olinda, e cantava cocos nas horas vagas, sobretudo na época das festas juninas, como é hábito na região. Mas em 1996 sua bela voz foi “descoberta” por um produtor brasileiro que morava na Europa, e que lhe propôs gravar um CD. Neste CD foi incluído o coco “A rolinha”, que foi o grande sucesso do carnaval de Recife/Olinda em 1998 (mesmo não se tratando de um gênero típico do Carnaval). Na seqüência, dona Selma desentendeu-se com o referido produtor, mas continuou fazendo CDs e shows, inclusive turnês internacionais. (SANDRONI, op. cit., p. 32)

O autor afirma, no entanto, que transgressões como essas sempre

aconteceram na música brasileira, sendo o samba carioca a mais bem sucedida de

todas elas. Quando se fala em samba de raiz, procura-se diferenciar este de outros

tipos de sambas, que não estariam associados às origens, às “raízes autênticas”,

conforme discutido anteriormente.

Gostaria de salientar mais uma vez que os argumentos deste trabalho são

baseados, no entanto, numa perspectiva diferenciada da proposta por “puristas” e

“cultivadores de raízes”, já que a música popular é aqui considerada um espaço de

combinações estéticas variadas, assim como é reconhecida a trajetória artística de

Chico Buarque e sua obra como um todo. O próprio artista, numa recente

entrevista, elogia a capacidade de assimilação dos músicos nacionais, sem que

isso represente a perda de seus estilos próprios:

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Chico Buarque: [...] não recusamos a influência da música estrangeira, porque o nosso poder de assimilação é muito grande. O melhor exemplo disso é o Manguebeat, de Pernambuco, misturando o mangue (a parte miserável do Brasil) com o beat, que é americano. Tivemos um movimento de sincretismo musical no país. Entrevistador: Mas não há resistência e críticas a essa influência estrangeira? Chico Buarque: Alguns conservadores a recusaram nos anos 20, por exemplo. Pixinguinha foi um pouco rejeitado naquela época porque tocava saxofone, instrumento importado dos EUA. Mas vale lembrar que o violão e o piano não são instrumentos puramente brasileiros. Mesmo assimilando a música estrangeira, os brasileiros mantém o estilo próprio, que é muito forte. Gilberto Gil, por exemplo, mistura músicas de John Lenon com Bob Marley e Luiz Gonzaga! Tango com baião. É a mistura de todos os ritmos num estilo próprio. (Jornal Estado de Minas, op. cit.).

Concordando com a discussão proposta por Anna Paula Mattos Silva,

interesso-me por um estudo que não equivale à “tradição de estudos culturais

populares que se centram nas discussões acerca da autenticidade e da

originalidade de suas expressões artísticas” (MATTOS SILVA, op. cit., p. 69-70),

mas que a vê e a valoriza como um discurso polifônico e híbrido.

Quando Chico Buarque se denomina sambista, temos campo para uma

discussão que põe em xeque as categorizações herméticas que distinguem

popular, erudito e massivo. Como afirmado anteriormente, a associação de

sambista apenas com negros, pobres, moradores de morros e pessoas envolvidas

diretamente com escolas de samba foi muito freqüente e, ainda hoje, encontramos

associações como estas, em pronunciamentos a respeito do “verdadeiro samba”.

Chico, que não preenche nenhum desses “pré-requisitos”, poderia ou não ser

reconhecido como tal? É necessário investigar algumas questões acerca do

complexo termo popular.

Observemos a definição de dois reconhecidos dicionários da língua

portuguesa:

Popular [Do lat. populare.] Adj. 2 g. 1. Do, ou próprio do povo; 2. Feito para o povo (2 e 6); 3. Agradável ao povo; que tem as simpatias dele; 4. Democrático (4);Vulgar, trivial, ordinário; plebeu. (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa) Popular (adj. 2g)

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1 - relativo ou pertencente ao povo, esp. a gente comum; 2 - feito pelas pessoas simples, sem muita instrução �arte p.�; 4 – encarado com aprovação ou afeto pelo público em geral �artista, político p.�; 7- dirigido às massas consumidoras �música p.�; 9 – ao alcance dos não ricos; barato. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

Primeiramente, nas definições de ambos os dicionários, popular está

associado ao povo, ao que vem do povo, das pessoas simples ou o que é feito para

eles. Povo imediatamente nos remete à idéia de pessoas comuns, das classes

populares. Stuart Hall no texto “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”

realizou uma investigação mais minuciosa, colocando em questão o termo

popular.

Seguindo o pensamento de Hall, há alguns requisitos para aqueles que se

interessam pelo estudo da cultura popular. Um deles é percebê-lo como uma área

de séria investigação histórica, assim como é, por exemplo, o estudo da história do

trabalho. Além disso, é imprescindível contextualizá-lo. Acompanhemos um

pouco do recorte que fez o autor a partir do século XVIII.

O termo cultura popular esteve, por muito tempo, associado às questões da

tradição e das formas tradicionais de vida quando, supostamente, existiam dois

pólos dialéticos incomunicáveis e impermeáveis. “Tradição popular”

representava, portanto, lugar de resistência às transformações que eram buscadas

para o povo; era sinônimo de luta, por ser aquilo que se opunha à lógica

dominadora, a qual via na cultura popular uma ameaça a seus ideais de “reforma”.

Como freqüentemente o povo é o principal objeto das reformas para “benefício

próprio”, como enfatizado anteriormente, é necessário que surjam

“transformações culturais”: “um eufemismo para o processo pelo qual algumas

formas e práticas culturais são expulsas do centro da vida popular e, ativamente,

marginalizadas” (HALL, op. cit., p. 248).

Segundo Stuart Hall, para realizar um estudo sobre a cultura popular,

devemos ter em mente que a transformação cultural é um dado presente no

decorrer de sua história. Entretanto, tal transformação não é pacífica ou acordada,

mas realizada a partir de um pólo de força, por um processo político de

“‘moralização’ das classes trabalhadoras, de ‘desmoralização’ dos pobres e de

‘reeducação’ do povo” (idem). Podemos mesmo ver a cultura popular, nesse

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contexto, não como o lugar das tradições populares de resistência, mas como o

ambiente onde são operadas as transformações culturais.

Antes de entrarmos na discussão sobre os problemas do termo popular,

pensemos no samba como uma das manifestações culturais considerada, a

princípio, representante do popular no Brasil, eleita uma de nossas manifestações

populares tradicionais. Chico busca a partir de um determinado resgate do samba

seu estilo pessoal.

A partir do momento em que Baden e Vinicius compuseram os afro-sambas e “Berimbau”, etc. e tal [...] houve para nós, ou pelo menos pra mim, a necessidade de recuperar um pouco essa memória que havia sido radicalmente abandonada com a Bossa Nova, mas incorporando tudo o que a Bossa Nova tinha trazido de novo. Havia uma fusão [...] [E]u, que havia abandonado Noel Rosa, Ismael, me permiti retornar [à]quilo, mas tocando com o que eu imaginava que fosse a harmonia da Bossa Nova. Coisa que eu fui desenvolver mais depois do contato com Tom Jobim. (Catálogo da exposição Chico Buarque – o tempo e o artista, p. 23, Depoimento de Chico Buarque ao programa “Ensaio” da TV Cultura, 09/12/1994.)

Ainda se referindo ao século XVIII, Stuart Hall constata que, formalmente,

o estudo da cultura popular deste período é encarada como a daqueles que estão

distantes dos mecanismos de poder, da sociedade política. É a tradição do

“povão”, dos trabalhadores pobres, das classes populares; a cultura daqueles que

estavam “fora das muralhas” e que os distinguia cultural, moral e

economicamente. Mas será que elas foram, de fato, um estrato isolado, pacífico,

fora do campo mais amplo de forças sociais e das relações culturais? Segundo

Hall:

Elas não apenas pressionavam constantemente a “sociedade”; mas estavam vinculadas a ela através de inúmeras tradições e práticas. Por linhas de “aliança” e por linhas de clivagem. A partir dessas bases culturais, freqüentemente muito distantes das disposições da lei, do poder e da autoridade, o “povo” constantemente ameaçava eclodir. (HALL, op. cit., p. 249)

Continuando a investigação, o autor chama atenção para mudanças

radicais, de bases estruturais, ocorridas no final do século XIX e início do XX: “a

profunda transformação na cultura das classes populares que ocorre entre os anos

de 1880 e 1920” (idem, p. 250). Ele não faz esse recorte aleatoriamente, mas por

considerá-lo interessante para a investigação da cultura popular atual; por julgar

parecidas as dificuldades reais de ambos os períodos (teóricas e empíricas). Nesse

momento, é o próprio terreno de luta política que se altera, que é reconstituído.

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Tudo mudou, e esta nova mentalidade ultrapassou uma simples mudança nas

relações de força.

“Não existe um estrato ‘autêntico’, autônomo e isolado de cultura da classe

trabalhadora. A maioria das formas de recreação popular mais imediatas, por

exemplo, estão saturadas de imperialismo popular” (idem). Com o advento da

imprensa, “um dos principais meios de expressão cultural” (idem, p. 251), a

imprensa local da classe trabalhadora foi destruída e marginalizada. Nos finais do

século XIX e início do XX há uma mudança que causou conseqüências profundas:

o surgimento de um novo tipo de imprensa, a imprensa comercial popular, na

qual a classe trabalhadora se inseriu em massa. Um dos efeitos principais dessa

mudança foi, portanto, a reconstituição das relações políticas e culturais entre as

classes dominante e dominada. As conseqüências são ainda hoje visíveis, e esta é

uma questão importante na história da “cultura popular”: o surgimento de uma

imprensa popular que foi organizada pelo capital para (e não pela) classe

trabalhadora. O que há é uma representação da cultura popular estereotipada, falsa

e ideológica pela cultura dominante e seus instrumentos. Assim sendo, ela é

enfraquecida. Em nosso caso podemos pensar, por exemplo, nas telenovelas.

Essas são questões que nem sempre aparecem quando a proposta é um

estudo sobre a cultura das classes populares. Muitos estudos foram realizados sem

a devida contextualização histórica, que leva em consideração o momento que

atravessa o mundo, o país de investigação, o relacionamento entre o povo e

aparatos culturais de cada época etc. Observemos mais uma vez as precisas

palavras de Hall:

Escrever a história da cultura das classes populares exclusivamente a partir do interior dessas classes, sem compreender como elas constantemente são mantidas em relação às instituições da produção cultural dominante, não é viver no século vinte. (Idem, p. 253)

Para uma desconstrução do termo popular, Stuart Hall encaminhará

algumas análises sobre seus distintos significados, que nem sempre considera

úteis. A primeira definição que trabalha, a do senso comum, se assemelha a uma

daquelas encontradas no dicionário Houaiss: “algo é popular porque as massas o

escutam, compram, lêem, consomem e parecem apreciá-lo imensamente” (idem).

Ou seja, é uma definição mercadológica, dirigida às massas consumidoras.

Considerando que grande quantidade de consumidores nos dias de hoje faz parte

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das classes trabalhadoras, devemos levar em consideração essa primeira definição.

Comumente, esse conceito de popular é muito criticado, visto claramente como o

poder de manipulação da mídia, da imprensa, e estando associado ao aviltamento

da cultura do povo. O povo, por sua vez, pensando-o como a classe trabalhadora,

é receptor desses produtos. Seria ele, então, formado apenas por “tolos culturais”,

passivos e facilmente manipuláveis? Só há espaço para compreendermos a

questão e o povo dessa forma se pensamos as formas culturais a partir de dois

pólos dialéticos separados: inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas,

nas quais não existam quaisquer elementos de reconhecimento e identificação,

nem a possibilidade de diálogo:

Tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto elas são profundamente contraditórias, jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do “popular”. (Idem, p. 255-6)

A oposição entre “cultura comercial popular” e “cultura popular autêntica”

ignora as relações de dominação e subordinação do poder cultural, que são

aspectos intrínsecos das relações culturais. Ultrapassando os deslocamentos que

muitas vezes recebe o estudo da cultura popular: do pólo da autonomia pura ou do

total encapsulamento, Hall vai lançar uma proposta: “não existe uma ‘cultura

popular’ íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das

relações de poder e de dominação culturais” (idem, p. 254).

A partir dessa primeira proposta de Hall para pensar o popular, podemos

especular um pouco acerca da questão que está sendo aqui proposta e da referida

homenagem na Biblioteca Nacional. Chico Buarque, ao se autodenominar

sambista, afirma ser um artista popular, considerando o samba como tal. Se

compreendemos cultura popular apenas como aquilo que é feito pelo povo, sua

obra, de sambista, seria também a de um artista popular, oriundo deste segmento

social. Há, então, uma contrariedade, uma ambigüidade nesse caso na

compreensão do que seria popular, já que conhecemos muito bem em sua

exposição comemorativa quais foram sua origem e grande parte de suas

influências. Essa ambigüidade é melhor compreendida a partir da segunda

definição do termo popular, aquela mais comum até mesmo nos dicionários: “a

cultura popular é tudo aquilo que o povo fez ou faz” (idem, p. 256). Há nesta

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definição uma tensão entre aquilo que pertence ao povo X aquilo que não pertence

ao povo; o que pertence ao domínio central da elite X à cultura da periferia. Chico

teria, então, se apropriado da cultura periférica, mas não faria parte dela, não seria

seu representante “autêntico” segundo discursos ortodoxos, por não ser oriundo

das classes que a compuseram — não observando ou não levando em conta a

especificidade que reconhecemos no conceito de popular na cultura brasileira, já

discutido. Há no texto um dado que, no entanto, justifica essa possibilidade, o

qual encontraremos mais à frente.

Antes de ser legitimado pelo rádio, pelo interesse da indústria cultural e do

discurso oficial, o samba representava uma manifestação oriunda das classes

subalternas, por mais contaminado que fosse por outras influências e contatos

diversos na sociedade. Se acreditamos, como Hall, que, por vezes e segundo

interesses, “o valor das formas populares é promovido, sobe na escala cultural —

e elas passam para o lado oposto” (idem, p. 257), compreendemos o que o samba

tornou-se, no decorrer do tempo, e a exposição homenageando um artista que se

proclama sambista no lugar canônico por excelência: a Biblioteca Nacional.

Considerar como popular aquilo que o povo faz ou fez é insuficiente, já

que os conteúdos se alteram no decorrer da história, e aquilo que era considerado

popular, como forma de resistência, passa a ser apropriado e valorizado pela

cultura de elite, como foi o caso do samba. Não são os conteúdos de cada

categoria, os signos em si, mas sim forças e relações o que sustentam a distinção e

a diferença entre o que pode ou não ser considerado popular. Há alguns processos

e instituições legitimadoras, como por exemplo, a escola, o sistema educacional, a

universidade, que canonizam, valorizam ou não.

Reconhecendo a Biblioteca Nacional como mais um desses espaços

legitimadores, interessada nas manifestações eruditas, não nas populares, como

não ver uma ambigüidade na homenagem ao sambista Chico Buarque? Não

sejamos ingênuos: no retrato do artista Chico Buarque que nos mostrou a

exposição, o que menos ficou visível foi sua imagem como a de um sambista,

como a de um artista que tem na cultura popular de origem popular uma forte

fonte de influência. Chico se autodenominou sambista, em resposta a quem o quis

insultar, e o texto estava exposto naquele ambiente, mas seu retrato ficou,

claramente, como o de um sambista erudito, “um sambista que escreve livros” e,

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esta foi, provavelmente, a condição que lhe permitiu receber as honrarias em um

dos espaços reservados para os eruditos.

Observemos que, atualmente, o signo ou a forma cultural não podem ser

vistos como garantia de qualquer relação específica com o objeto que teve origem

popular:

Não há garantia intrínseca ao signo ou à forma cultural. Tampouco há garantia de que, só porque esteve ligado a alguma luta relevante, ele será sempre a expressão viva de uma classe, de tal forma que, toda vez que lhe dermos chance, ele “falará a língua do socialismo.” (Idem, p. 261)

A relação não é de causa e efeito. É possível hoje gostar de samba, freqüentar

casas de samba de diversos estilos e, ao mesmo tempo, ser racista ou bairrista.

Não temos como determinar o que seria um sujeito do povo ou um sujeito popular

“autêntico” ou “original”, verdadeiro representante da classe popular e de suas

questões. Foi criado o dia nacional do samba, 02 de dezembro. Entretanto, não há

qualquer problema para aqueles que querem participar da festa sem contextualizá-

la, sem sequer se interessar em saber porque o trajeto da festa é Central do Brasil-

Oswaldo Cruz e não Madureira, por exemplo. Não é o samba que é popular, nem

nenhum signo ou forma cultural isolados. A noção de “tradição”, que é um

elemento vital da cultura, não está associada diretamente à persistência das velhas

formas. Os elementos não têm posição fixa, nem mesmo determinada: “Tudo

flui”, como diria Heráclito. A tradição está mais associada às formas como são

articulados e associados os elementos.

Segundo Hall, para aqueles que estão interessados em uma cultura popular,

como ela foi representada em outros momentos históricos, de alguma forma, é

necessário enxergá-la da seguinte forma: “a cultura popular é um dos locais onde

a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada. [...] É a arena do

consentimento e da resistência” (idem, p. 263). É necessário vê-la como campo de

batalha. Somente nesse contexto Hall a valoriza: enquanto um local onde há a

possibilidade do socialismo ser constituído. No mais, diz não se interessar o

mínimo por ela.

Se concordamos com as questões que levantou Stuart Hall acerca do termo

popular, devemos observar que tanto na obra de Chico Buarque quanto na de

Paulinho da Viola o samba está presente: um instrumento que caracterizou o

popular, tendo sido uma manifestação das classes trabalhadoras e subalternas em

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determinado momento histórico e que hoje não pode mais ser visto somente como

tal. A forma como cada um o resgatou e o apropriou, no entanto, é o que nos

interessará agora.

Em Verdade tropical, Caetano Veloso fala a respeito da valorização que

ele e os companheiros de seu projeto deram à obra de Paulinho da Viola, como

estratégia de enfraquecimento do projeto buarqueano:

A mera valorização que fazíamos do trabalho de Paulinho da Viola implicava um grito de independência em relação à hegemonia do estilo buarqueano: tal como Chico, Paulinho voltava-se para o samba tradicional, mas, diferentemente dele, fazia-o sem o filtro da bossa nova. [...] Paulinho era um caso milagroso em nossa geração: ele não parecia nem sequer ter ouvido João, Tom ou Lyra. Como era jovem, mostrava-se também disposto a partir para experimentações e inovações, mas estas não nasceriam — como tudo meu, de Edu, de Chico, Gil ou Jorge Ben — do universo estético pós-bossa nova. Isso dava um encanto especial a suas criações. E nossa insistência em ressaltar sua importância [...] punha também a questão da volta à tradição em perspectiva diferente da consensual, que tinha Chico como a síntese final da dialética da composição da música popular no Brasil. (VELOSO, op. cit., p. 233-4)

Paulinho e Chico resgataram o “samba tradicional”, entretanto, de formas

distintas. Caetano fala no filtro da Bossa Nova, que não estava presente na obra de

Paulinho, mas que estava vivo na obra de Chico. Refletindo novamente acerca dos

integrantes da Bossa Nova, podemos levantar mais algumas questões sobre a

exposição que homenageou Chico Buarque.

Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e Baden Powell são alguns

nomes presentes na mostra comemorativa; integrantes da Bossa Nova; artistas de

elite, com uma estética que busca se aproximar da arte erudita. Quando Chico

afirma, em um de seus depoimentos já citados, que recuperou a memória que

havia sido abandonada, mas incorporando o que a Bossa Nova tinha trazido de

novo, talvez tenhamos horizontes para compreender como o sambista Chico

Buarque ganhou uma exposição na Biblioteca Nacional.

Pensando na homenagem que recebeu outro sambista, que é

contemporâneo de Chico, em 2003 foi apresentado o documentário Paulinho da

Viola – Meu tempo é hoje. Um perfil afetivo do artista, no qual foi mostrada sua

rotina, sua família, suas influências etc. Retomando as palavras de Caetano, ele

diz que a obra de Paulinho não apresentava o “filtro da Bossa Nova”. Talvez seja

esse o motivo que permitiu, autorizou Chico Buarque, mas não permitiria a

Paulinho da Viola receber uma homenagem em um lugar oficial do cânone, do

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erudito e do legitimado por excelência. Paulinho se aproxima mais do que seria o

“samba tradicional”, popular, espontâneo, da periferia: em seu documentário,

aparecem componentes da Portela, sua escola de samba até hoje, “tias”,

compositores etc. Madureira está presente no documentário Paulinho da Viola –

Meu tempo é hoje. Sabemos que Chico Buarque é mangueirense. Veremos no

próximo capítulo suas declarações sobre a escola, da qual afirma ser uma espécie

de “funcionário”. Entretanto, a única referência encontrada na exposição em

relação à Escola de Samba é uma fotografia — sua — do carnaval de 1998,

quando a mesma foi campeã com um enredo que o homenageava. E nada mais.

Paulinho não tem o “filtro da Bossa Nova”, ou seja, do erudito, dos

personagens que são mormente valorizados pelo cenário artístico brasileiro de

elite. Provavelmente jamais receberá uma homenagem na Biblioteca Nacional,

caso esta insista em manter certos “perfis” de homenageados. Chico Buarque,

sambista, mas filho de intelectual e influenciado pelos bossanovistas, teve vez. O

popular entra no lugar do erudito, dependendo do filtro, dependendo da

personagem que o introduz. Mas, por vezes, de forma muito astuciosa.19

A imagem bela e apolínea de Chico Buarque prevaleceu na exposição

Chico Buarque – o tempo e o artista e impossibilitou que outras facetas,

constantemente presentes na obra do artista, fossem mostradas. Fica para nós,

então, o desafio de perceber a quem a cultura nacional oficial está guardando,

ainda hoje, no século XXI, o lugar da memória e do legitimado e quem ela, ao

mesmo tempo, está excluindo deste lugar.

19 Em relação à recente eleição de Muniz Sodré presidente da Bilbioteca Nacional, posterior à escrita deste capítulo, desejo que ela revolucione o insistente perfil da Biblioteca e de suas homenagens.

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4 Sambas dos sambistas

“a idade não importa

a cor da sua pele não interessa se tem perna torta se tem perna certa

para saber se tem samba na veia.”

Candeia

“É o Chico das artes, o gênio Poeta Buarque, boêmio

A vida no palco, teatro e cinema Malandro sambista, carioca da gema”

Nelson Dalla Rosa, Villa Boas, Nelson Csipai e Carlinho das Camisas

Chico Buarque da Mangueira

“Essa garota de mansinho me conquista Vai roubando gota a gota

Esse meu sangue de sambista”

Chico Buarque Logo eu?

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Em entrevista recente, a cantora Teresa Cristina, discutindo a música

brasileira, fez uma distinção entre artistas da MPB e sambistas. Observemos suas

palavras:

Nós nos orgulhamos de dizer que somos sambistas mesmo. A gente não é MPB, pelo menos essa que está aí, que é pop, não popular. [...] Mas na hora de tocar no rádio, as pessoas sabem exatamente o que é samba e o que é MPB. Para mim, MPB é Chico Buarque, que quando foi homenageado na Mangueira se disse emocionado por ter sido chamado de sambista na letra do samba-enredo. (Jornal O Globo, 18/09/2005, p. 1)

Esclarecendo as palavras da cantora, em 1998 a escola de samba Estação

Primeira de Mangueira teve como tema do desfile a carreira de Chico Buarque. O

enredo campeão resumiu a trajetória do artista.

Mangueira despontando na avenida Ecoa como canta um sabiá Lira de um anjo em verso e prosa De um querubim que em verde e rosa Faz toda galera balançar Hoje o samba saiu Pra falar de você Grande Chico iluminado E na Sapucaí eu faço a festa E a minha Escola chega dando o seu recado É o Chico das artes, o gênio Poeta Buarque, boêmio A vida no palco, teatro e cinema Malandro sambista, carioca da gema Marcado feito tatuagem Acordes do seu violão Chico abraça a verdade Com dignidade contra a opressão Reluz o seu nome na história A luz que ficou na memória E hoje seu canto de fé, de fé Vai buarqueando com muito axé Ô Iaiá, vem pra avenida Ver meu guri desfilar Ô Iaiá é a Mangueira Fazendo o povo sambar20

20 Nelson Dalla Rosa, Villa Boas, Nelson Csipai e Carlinho das Camisas, “Chico Buarque da Mangueira”, 1998.

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Conforme Chico não cansa de enfocar, ele é mangueirense, assim como

tricolor de coração. Após a homenagem a Tom Jobim, em 1992, com o enredo

“Se todos fossem iguais a você”, Chico foi avisado que seria um dos próximos.

Diferentemente da exposição Chico Buarque – o tempo e o artista, no

pomposo ambiente da Biblioteca Nacional, os programas da DirecTV que

reconstroem a carreira do artista não ignoraram a influência e a importância da

Mangueira, assim como do samba e de sambistas mangueirenses, entre outros, em

sua trajetória. Em um episódio intitulado “Estação Derradeira”, uma das canções

que o artista compôs em homenagem à escola, Chico relata várias histórias acerca

da presença do samba em sua vida e obra, assim como fala a respeito de sua

relação com a Mangueira e da emoção que sentiu por ter sido o enredo campeão,

quebrando 11 anos de jejum, sem vitórias.

Quando eles me convidaram pra ser eu o tema eu falei: “pô”, é uma responsabilidade danada! Desde então, sempre que eu vou lá, sou muito bem retratado [sic], e virei uma espécie de um funcionário da Mangueira. Porque [...] todo ano tem um show que ela faz pra arrecadar fundos pro próprio desfile, e aí eles já ligam pra mim todo ano. Tem anos que eu não “tô” fazendo show, que eu estou escrevendo livro, “tô” fazendo isso ou aquilo, mas o show é um compromisso fixo. Todo ano eu faço parte do elenco da Mangueira. Eu sou da Mangueira! No dia que a Mangueira ganhou aí eu fui lá ao Palácio do samba, né? Lotado! As pessoas já comemorando e tal, não sei o que. Aí, o pessoal me chamou e eu fui lá no microfone e eu falei pra eles: a partir de amanhã a Mangueira vai [...] começar a pensar já no próximo enredo, não sei o que, e eu não vou ser mais nada. Agora pra mim, e é verdade, eu falei: a partir de agora eu vou ser o “Chico Buarque da Mangueira”. E é impressionante que durante muito tempo, e até hoje, muita gente assim, eu andando na rua: Ô Chico Buarque da Mangueira! Ô da Mangueira! Da mangueira! [...] Começou a fazer parte do meu nome, ou enfim, da minha história, certamente, esse desfile da Mangueira. De qualquer forma, mesmo que não fosse campeã eu ficaria muito marcado por esse desfile. Porque é a Mangueira. É a Mangueira. A Mangueira não tem pra ninguém! (risos). (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005).

É comum que nas canções buarqueanas, muitas delas feitas por encomenda

para peças de teatro, cinema etc., as letras sejam narrativas, histórias com início,

meio e fim. Tal característica não se limita aos sambas do artista, mas aos diversos

estilos de canções que ele compõe. De maneira equivalente aos sambistas

populares, utilizando-se também do senso de humor tão presente em suas canções,

no primeiro disco, “Chico Buarque de Hollanda”, de 1966, encontramos o samba

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“Juca”, que relata a história de um homem apaixonado, preso por um delegado

que não o compreendeu:

Juca foi autuado em flagrante Como meliante Pois sambava bem diante Da janela de Maria Bem no meio da alegria A noite virou dia O seu luar de prata Virou chuva fria A sua serenata Não acordou Maria Juca ficou desapontado Declarou ao delegado Não saber se amor é crime Ou se samba é pecado Em legítima defesa Batucou assim na mesa O delegado é bamba Na delegacia Mas nunca fez samba Nunca viu Maria.21

Nos relatos acerca do samba e dos sambistas são recorrentes histórias

semelhantes a essa de Juca, personagem de Chico que, mal visto pela lógica do

momento em que sua história é narrada, foi repreendido por praticar o samba.

Como já foi discutido anteriormente, são inquestionáveis a discriminação que

sofreram os sambistas, que muitas vezes eram presos e tinham seus instrumentos

apreendidos, assim como as modificações que sofreu o samba, trocando de lado

no imaginário nacional, oficial inclusive, servindo mesmo, a meu ver, como mais

uma forma de pregar uma falsa democracia. Associar ao povo, ao negro, às

periferias urbanas majoritariamente o símbolo que representa a cultura nacional

como um todo, pode dar a falsa impressão de que este seja um país onde as

minorias (que são, na verdade, a grande maioria) são respeitadas e valorizadas ao

ponto de serem suas marcas culturais o reflexo do país. O que não podemos

esquecer é que a eleição do samba e da cultura popular não significaram que seus

representantes estivessem em pé de igualdade com aqueles que foram

21 Chico Buarque de Hollanda (1966), faixa 9.

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responsáveis por essa escolha, economicamente falando, ou mesmo no que tange

aos próprios direitos mínimos de sobrevivência. Constata Giovanna Dealtry que

se [a] valorização da cultura negra nos rendeu livros como Macunaíma, poemas como “Mangue” e, de modo mais amplo, a inserção do negro na indústria cultural, através da música, essa mesma prática igualmente criou situações paradoxais em que, por exemplo, o samba é enaltecido e exportado como música nacional enquanto muitos sambistas permanecem na miséria. (DEALTRY, op. cit., p. 71)

Acerca do uso de certos aspectos da malandragem — que a foi princípio

diretamente associada aos sambistas — tornados produtivos pela lógica vigente

nos nacionalistas anos 30, momento em que, “se enseja construir uma nova

representação do brasileiro: vindo das classes populares, miscigenado, capaz de

superar a adversidade através da inteligência e da esperteza, sedutor, criativo”

(idem, p. 72), devemos olhar atentamente. Essa atitude não é sinônimo de que o

negro e o mestiço tivessem ultrapassado a esfera social que lhes foi “destinada”:

a “ascensão” cultural do negro não corresponde a uma modificação do lugar reservado a este segmento na ordem do capital. Se as classes dominantes passam a assimilar, com o surgimento do samba em finais dos anos 20, a representação do negro sambista, carnavalesco, em contrapartida, estas mesmas classes ainda crêem numa fixação do lugar do corpo negro dentro do âmbito social. A lógica da ordem liberal e democrática, pregada pela Europa e pelos Estados Unidos e transplantada para o Brasil — que ainda se sustenta sobre uma mentalidade escravista — simplesmente não funciona. O trabalho que cabe ao pobre e ao negro, no regime republicano, pouco se diferencia do que lhe era imputado durante a escravidão (idem).

A “profissão” sambista é recente, assim como a profissão músico. Os

artistas iniciais eram valorizados (ou não) como cantores e compositores, mas

tinham seus subempregos os aguardando, responsáveis pelo sustento. Muitos dos

pobres, assim como diversos sambistas buscavam trabalho no cais de porto; as

mulheres — suas mães e esposas, muitas vezes — nas casas da elite. Não sejamos

ingênuos ao ponto de considerar um passo democrático, em níveis capitalistas e

de distribuição das riquezas, o Brasil ser a “terra do samba, da mulata e futebol”,

como é internacionalmente conhecido.

Chico Buarque relata em “Estação Derradeira” que enquanto o pai

festejava seu ingresso no campo da música — tornando-se ele, assim, o pai do

Chico e o avô da Banda —, acompanhado do abandono da faculdade de

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Arquitetura, a mãe, por mais apaixonada que fosse pelo cancioneiro popular, ficou

reticente, já que em 1965 “músico” ainda não era considerada uma profissão —

respeitável, ao menos, como arquiteto. Mas, como sabemos, o artista não

enfrentou problemas financeiros pela troca de profissão — Chico consegue “viver

de música” e, além disso, é um sambista da elite.

Quando o samba é eleito símbolo nacional, poderíamos, ingenuamente,

supor que a cultura popular alcançou um lugar privilegiado na constituição da

nação. Por partes concordo que seja verdade, já que a imagem construída acerca

do samba conta, fortemente, com a presença do “povão”, das classes populares de

forma mais significativa do que com a de membros da elite, que lá estavam para

que tal legitimação fosse possível. Mas se observarmos atentamente que sua

eleição foi também uma estratégia política, em um momento histórico específico

no qual se desejava a unificação de símbolos para a constituição de uma nação

una — uma música brasileira, um modelo mestiço que representa o brasileiro “em

si” etc. — já percebemos que não foi tão espontânea quanto pode parecer a

escolha de uma manifestação popular para nos representar. Essa valorização tem

seus prós e contras, como todas as estratégias totalizadoras.

As diversas aproximações entre as culturas negra e branca e a assimilação de elementos negros como símbolos de uma identidade nacional acabaram por reforçar o mito do país onde não existe o preconceito e o racismo, em que o malandro e a mulata são os tais. Por outro lado, no entanto, essa resistência com disfarces de submissão criou brechas que privilegiaram a transitividade de elementos da cultura negra (idem, p. 89).

Inúmeros discursos — orais ou escritos; acadêmicos ou não — valorizam a

mestiçagem e o samba como aquilo que melhor nos define como brasileiros, do

Oiapoque ao Chuí. “O samba é a melhor expressão popular do homem brasileiro,

a mais completa, me parece”, declara Chico Buarque. Se o samba — carioca,

urbano — é brasileiro, mesmo em regiões onde não se escute o ritmo, onde ele

nem seja admirado ou sequer conhecido, os habitantes daqueles locais fazem parte

de um país onde ele simboliza a todos nós. Podemos observar com isso, mais uma

vez, o quanto o eixo Rio-São-Paulo influenciou, e influencia ainda, concepções

totalizadoras, supondo-se (será mesmo?) que alguma delas conseguisse abranger o

nacional como um todo, em um país com as dimensões territoriais do Brasil.

Devemos admitir que atualmente as manifestações culturais regionais já são mais

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valorizadas, as particularidades mais respeitadas, há uma preocupação maior com

sua preservação, mas o lugar do samba ainda tem fortíssima influência, sendo

reconhecido como o grande exemplo da originalidade brasileira.

Voltemos ao início da carreira de Chico. Conforme declarações em

diversas entrevistas, e como podemos comprovar em seus primeiros trabalhos,

suas composições iniciais são majoritariamente sambas. O artista associa ainda

um de seus sambas recentes àqueles que compunha no início:

“Injuriado” eu gravei no meu último disco, é um samba que eu acho que tem a cara dos sambas que eu fazia quando eu comecei a fazer música. O que eu fazia naturalmente era samba. Samba já passando pelo filtro da bossa nova, e tal, mas tem uma coisa do samba tradicional. (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005)

Podemos compreender as harmonias e melodias bastante trabalhadas,

compostas conscientemente segundo padrões de escrita musical universalizados,

como a influência da Bossa Nova nos sambas de Chico. As letras, cheias de

humor, relatando casos, e a presença de instrumentos de percussão como as

influências do “samba tradicional”. Observemos a letra de “Injuriado”, de seu

último disco “As cidades”, de 1998:

Se eu só lhe fizesse o bem Talvez fosse um vício a mais Você me teria desprezo por fim Porém não fui tão imprudente E agora não há francamente Motivo para você me injuriar assim Dinheiro não lhe emprestei Favores nunca lhe fiz Não alimentei o seu gênio ruim Você nada está me devendo Por isso, meu bem, não entendo Por que anda agora falando de mim.22

Nesse samba, cantado a duas vozes com a irmã Christina Buarque,

portelense conhecida em diversas rodas de samba por todo Rio de Janeiro, estão

presentes músicos renomados como o parceiro Luis Cláudio Ramos (arranjo e

violão), Gilson Peranzzeta (Piano), Jorge Helder (Baixo) e Wilson das Neves

(Bateria).

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Uma das marcas características do movimento bossanovista é a

“composição consciente”, diferentemente da “espontaneidade” dos artistas

populares de origem popular. Explicitando melhor essas palavras, uma canção

como o “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, na qual

letra e música dialogam metalinguisticamente, conta com um rigor e um

conhecimento musical eruditos, que podemos enxergar distintamente das

produções coletivas da Casa da Tia Ciata, por exemplo. Não se intenciona com tal

afirmação, entretanto, concluir que a espontaneidade atribuída aos sambistas

tradicionais seja inferior às harmonias rebuscadas de Tom Jobim e seus parceiros

— como foi dito anteriormente, não estou trabalhando com estes sistemas de

valores no que tange à cultura. No entanto, há um diferencial na maneira como

ambos os movimentos compõem seus sambas, sendo uma especificidade dos

bossanovistas a composição de harmonias e melodias trabalhadas, que, por vezes,

dialogam com a própria letra das canções de forma absolutamente consciente e

intencional. Vemos essa especificidade como a marca que Chico herdou: o tantas

vezes referido “filtro da Bossa Nova”. Seus sambas contam com instrumentos

variados, muitos deles recorrentes na música erudita e ausentes na popular:

violino, cello, oboé, trombone e, é claro, o piano, instrumento de seu maestro

soberano, Tom Jobim. Em vários dos programas da DirecTV Chico relata, ainda,

o seu processo de criação: a preocupação com o diálogo letra e música e a

dificuldade que por vezes tem para que ambos se comuniquem satisfatoriamente.

Uma de suas mais belas parcerias com Tom Jobim, autor de diversos

sambas que não são de “levantar poeira”, como os de vários sambistas, mas que

podem entrar no barracão, é “Piano na Mangueira”. A canção é um agradecimento

pelo enredo que homenageou o maestro, em 1992.

Mangueira Estou aqui na plataforma Da Estação Primeira O morro veio me chamar De terno branco e chapéu de palha Vou me apresentar à minha nova parceira [à majestosa] Já mandei subir o piano pra Mangueira A minha música não é de levantar poeira

22 “Injuriado”, As Cidades, faixa 8.

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Mas pode entrar no barracão Onde a cabrocha pendura a saia No amanhecer da quarta-feira Mangueira Estação Primeira de Mangueira23

Se na Bossa Nova é quase inexistente o uso de instrumentos de percussão,

nesse samba arranjado por Tom, que sobe a Mangueira com seu piano, Mestre

Marçal é o percussionista juntamente com Wilson das Neves. Piano com ronco da

cuíca. Popular mais erudito. Voltemos ao último disco, “As cidades”, que começa com a canção

“Cariocas”. No repertório da Bossa Nova inúmeras canções tematizam a zona sul

do Rio de Janeiro, Ipanema, garotas belas, o mar... Na referida canção, Chico

também faz uma leitura dos cariocas, mas esta se difere da imagem imortalizada

pela Bossa Nova. Nosso artista, que caminha na praia a trabalho, conforme

declara freqüentemente, faz um relato, em estilo voyeurístico, no qual revela um

Rio de Janeiro presente na mesma zona sul, mas que não teve espaço nos relatos

bossanovistas.

Gostosa Quentinha Tapioca O pregão abre o dia Hoje tem baile funk Tem samba no Flamengo O reverendo num palanque Lendo o apocalipse O homem da Gávea criou asas Vadia Gaivota Sobrevoa a tardinha E a neblina da ganja O povaréu sonâmbulo Ambulando Que nem muamba Nas ondas do mar Cidade maravilhosa És minha O poente na espinha Das tuas montanhas Quase arromba a retina De quem vê De noite Meninas

23 “Piano na Mangueira”, Paratodos, faixa 10.

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Peitinhos de pitomba Vendendo por Copacabana As suas bugigangas Suas bugigangas24

Segundo a análise de Amador Ribeiro Neto, no ensaio “As cidades”:

O disco abre-se com “Carioca”, que, curiosa e ironicamente, fala de um Rio nordestino e não da esperada imagem da garota carioca, imortalizada pela Bossa Nova. Aqui o Rio acorda aos pregões da tapioca e vai deitar sob os “peitinhos de pitomba” das “meninas de Copacabana”. [...] O retrato do Rio é o do subúrbio, o do centro da cidade e o da praia mais popular: Copacabana — flagrada à noite no comércio dos corpos. (in: FERNANDES, op. cit., p. 168)

Muitos “sambas tradicionais” são relatos da realidade dos sambistas. Os

malandros e suas estratégias, os amores, a vida no morro etc. são alguns exemplos

dos temas retratados. Um dos projetos que buscam recuperar a memória da

Estação Primeira de Mangueira dedicou seus primeiros trabalhos a Chico. Depois

da vitória do enredo Chico Buarque da Mangueira, Hermínio Bello de Carvalho,

representativo pesquisador interessado na preservação e divulgação da cultura

popular, elaborou um projeto no qual Chico e outros artistas, como sua irmã

Christina, Lecy Brandão, Nelson Sargento, Jamelão, Alcione, João Nogueira etc.

regravaram sambas de nomes como Nelson Cavaquinho, Heitor dos Prazeres,

Carlos Cachaça, Herivelto Martins, Cartola, Padeirinho, Geraldo Pereira e dele

próprio, entre outros. Surge no disco, ainda, a inédita parceria de ambos, “Chão de

esmeraldas”. Um belo trabalho, que tem por objetivo, segundo as palavras de

Paulo Cesar de Andrade, homenagear “dois grandes e queridos patrimônios do

samba brasileiro, Chico Buarque e Estação Primeira de Mangueira.”25.

Com as pesquisas para esta dissertação, comecei a supor que, talvez, Chico

Buarque tenha assumido no imaginário mangueirense o lugar que Cartola deixou

vago, da mesma forma que Paulinho da Viola possui a respeitabilidade que

outrora pertenceu a Paulo da Portela. Integrando ainda o grupo dos artistas vivos e

atuantes no imaginário das Escolas de Samba, estaria Martinho da Vila,

sucedendo o saudoso Noel Rosa. Chico chega mesmo a lamentar não ter nenhuma

parceria com o mestre Cartola:

24 “Carioca”, As cidades, faixa 1. 25 Disco Chico Buarque de Mangueira, p. 12, setembro de 1997.

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O Cartola uma vez a gente se encontrou num show daqueles [...] que reunia muita gente; acho que um show 1º de maio, uma coisa assim. E aí alguém que “tava” perto falou: “ — o Cartola ‘tá’ querendo falar com você”, meio sem graça, e tal. Era o Cartola propondo uma parceria. Eu falei: “— claro!” Eu adoraria ser parceiro do Cartola. E ficamos meio de nos encontrarmos, de fazer essa música. Acabou que ele morreu pouco depois, acabou que nunca saiu. Eu adoraria ter feito uma música com o Cartola. Seria difícil, né? Porque ele fazia tão bem tudo, né? A letra e a música. Mas, enfim. Eu não sei como é que eu seria parceiro dele. Se era pra letrar uma música, não sei como é que era. Mas ser parceiro do Cartola seria uma glória, né? Ficou faltando. (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005)

No disco que o homenageia, depois de cantar “Chão de esmeraldas”,

Chico interpreta o samba “Sala de recepção”, uma de suas canções favoritas do

ilustre sambista mangueirense que quase tornara-se seu parceiro:

Habitada por gente simples e tão pobre Que só tem o sol, que a todos cobre Como podes Mangueira cantar? Pois então saiba que não desejamos Mais nada À noite, a lua prateada Silenciosa, ouve as nossas canções Tem lá no alto um cruzeiro Onde fazemos nossas orações E temos orgulho de ser os primeiros campeões Eu digo e afirmo que a felicidade Aqui mora E as outras escolas até choram Invejando a tua posição Minha Mangueira és a sala de recepção Aqui se abraça o inimigo Como se fosse irmão.26

A canção é interpretada por nosso artista tanto no disco “Chico Buarque de

Mangueira” quanto no programa “Estação Derradeira”. Mais um dos sambas em

que se relata a vida no morro, a convivência de gente simples com gente simples e

pobre (tão pobre, como diz Cartola), sem grandes posses, mas que consegue tirar

(tragicamente talvez, segundo nossos olhares acadêmicos e sua necessidade

incessante de nomeação) alegria de tal condição. O samba mostra que “a vida não

é só isso”27 que enxerga-se com “olhos do asfalto”, intelectualizados, que

valorizam a vida ao mesmo tempo em que ela está aliada à lógica do capital, ou

26 Cartola, “Sala de Recepção”, Chico Buarque de Mangueira, faixa 2. 27 Hermínio Bello de Carvalho, “Um chão de esmeraldas”, disco Chico Buarque de Mangueira, 1998, p. 10.

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seja, uma condição financeira estável, bens duráveis ou não etc., considerados a

única saída para a felicidade. E na lógica do capital, como sabemos, poucos são os

“vitoriosos”, os quais conquistam tal condição na medida em que a grande

maioria é explorada. Tomemos emprestado mais uma vez o pensamento do

filósofo Friedrich Nietzsche, que, inconformado com os rumos que tomavam a

Europa de seu tempo e a separação dialética entre arte e vida, sem possibilidade

de síntese, tentava com seu primeiro livro mostrar que outro olhar era possível, e

mesmo necessário.

A proposta nietzschiana de um “renascimento da tragédia” é também a de

uma vida aliada à arte, em que uma dá sentido à outra. Um mundo onde não mais

a moral, a religião cristã que, insistente e astutamente, defendem a manutenção

dos “bons valores”, da “tradição” para que, assim, sejam mantidos eternamente as

relações de poder e os “lugares” de cada um — e aqui já estamos interpretando o

pensamento do filósofo para nosso interesse próprio. Voltando ao samba de

Cartola, morador do morro que falando de si e dos seus afirma “pois então saiba

que não desejamos mais nada” e ainda “digo e afirmo que a felicidade aqui mora”,

lembremos as palavras de Nietzsche para aqueles que fazem da vida algo além do

que é massivamente valorizado, mostrando que a aparente desvantagem pode

representar, no que tange ao mais íntimo da vida, o contrário. Diz o filósofo que

“a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências

fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.” (NIETZSCHE,

1999, p. 55)

Que há algo mais do que esse jogo de “ganhadores e perdedores”,

referindo-se à arte e à vida, nesse sentido nietzschiano aqui adotado — vida como

ação, criação, uma história por fazer, seja onde for, esteja onde estiver —, foi o

que constatou Hermínio Bello de Carvalho, depois de conhecer a Mangueira e os

mangueirenses, com quem passou a conviver na década de 6028. No programa,

Chico canta com a Velha Guarda da Mangueira, depois de um bate papo

descontraído com Hermínio e Nelson Sargento na Lapa, reduto dos malandros de

outrora. 28 “Quanto à Mangueira, que me foi apresentada no princípio da década de 60, eu já a possuía correndo nas veias, chorando quando as baianas, pisando um chão de esmeraldas, rodopiavam na avenida que nem cataventos. Passei a freqüentar as casas de Cartola, Neuma e Carlos Cachaça e a entender que a vida não é só isso que se vê. A Mangueira tinha algo mais que descabia numa

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Um samba, cantado no programa por Tia Zélia, enfoca a problemática

popular de maneira distinta daquela que fizera Cartola, com todo seu lirismo.

Composição de Babaú e Ciro de Souza, “Tenha pena de mim” é um pedido a

Deus para que mude a situação do pobre narrador, tão injustiçado, tão sofredor

neste mundo cruel.

Ai, ai, meu Deus Tenha pena de mim! Todos vivem muito bem Só eu quem vivo assim Trabalho, não tenho nada Não saio do miserê Ai, ai, meu Deus Isto é pra lá de sofrer! Sem nunca ter Nem conhecer felicidade Sem um afeto Um carinho ou amizade Eu vivo tão tristonho Fingindo-me contente Tenho feito força Pra viver honestamente O dia inteiro Eu trabalho com afinco E à noite volto Pro meu barracão de zinco E pra matar o tempo E não falar sozinho Amarro essa tristeza Com as cordas do meu pinho.

A canção talvez tenha sido escolhida graças à menção que Chico faz a ela

e aos sambas de cunho social. O artista observa que:

Muitos sambas eram feitos pra carnaval, então eram feitos pra serem cantados de peito aberto e dançados, e tal, e muitas vezes as músicas puxavam uma coisa assim muito pra fora e as letras meio contradiziam. Então havia muitas letras, não vou chamar de letra de protesto, enfim, mas são letras que falam dos problemas sociais, da pobreza: (cantando) “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria!”, as pessoas cantavam isso, assim, com os braços abertos: (cantando) “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria!” O estrangeiro que ouve isso falava: “— esse cara ‘tá’ cantando uma música alegríssima! É uma letra exaltando a vida, e tal!” E um desses sambas dos mais lindos é esse do “Miserê”, que é feito pelo, eu acho, o Babaú da Mangueira, que é o: (cantando) “Ai ai meu deus, tenha pena de mim! Todos

explicação. Grandeza, sortilégios, uma bela história.” Hermínio Bello de Carvalho, “Um chão de esmeraldas”, disco Chico Buarque de Mangueira, 1998, p. 10.

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vivem muito bem, só eu que vivo assim. Trabalho, não tenho nada. Não saio do miserê. Ai, ai meu Deus! Isso é pra lá de sofrer!” A música “tá” sorrindo, né? E a letra “tá” dizendo: (cantando) “isso é pra lá de sofrer!” É surpreendente nos anos 30 a sofisticação melódica e literária, né? de letras, e o retrato que é da sociedade brasileira; talvez carioca; mas talvez brasileira mesmo, quer dizer, porque o samba ele exprime isso, quer dizer: além de ser uma música, às vezes uma crônica social apontando mazelas da sociedade, falando de solidariedade social, ao mesmo tempo é senso de humor sempre muito presente e o lirismo, né? (DVD “Estação Derradeira”, DirecTV, 2005)

O narrador de “Miserê” não está tão satisfeito ou conformado com sua

situação, como aquele que canta “Sala de recepção”. Enquanto no samba de

Cartola reconhecemos informações que compõem sua trajetória pessoal, como,

por exemplo, a visita de Paulo de Portela à sua escola, a composição de Babaú e

Ciro de Souza refere-se a uma realidade mais ampla, que é criticada.

Não eram poucos aqueles que trabalhavam, trabalhavam — e ainda hoje

trabalham — e não têm como resultado condições mínimas para uma vida digna.

É para o barracão, de zinco ou não, que voltam muitos dos honestos trabalhadores

brasileiros, sem condições financeiras para viver honestamente, como desabafou o

narrador de “Miserê”. Trabalho não foi e não é ainda sinônimo perfeito para uma

vida decente no Brasil, infelizmente. O homem negro, passando de escravo à

trabalhador assalariado não viu, e não vê ainda hoje, na maioria dos casos,

possibilidades de inverter seu lugar no sistema social, já que ainda lhe estão lhe

aguardando o subemprego e a miserável vida nas favelas, em grande parte dos

casos. As palavras de Ismael Silva, relatando seu momento, são esclarecedoras:

Os negros [...] se empregavam no cais do porto. Toda aquela zona era o nosso domínio. Não, o trabalho não nos integrou à sociedade, não. O contato acabou por se fazer naturalmente; embora marginalizados, participávamos da vida social — minha mãe mesmo lavava roupa para o Flamengo, as Laranjeiras e acho que São Cristóvão. Estávamos nas ruas, não é? O trabalho não nos dá nada, nem dinheiro, nem reconhecimento social. Havia era precisão de ganhar a vida, o sustento, e isso fez com que buscássemos alternativas. O cais dava emprego, mas não para todos. A música poderia ser uma saída. Nós fazíamos música e havia o mercado fonográfico... os discos... e uma necessidade de furar o bloqueio social. O negro é muito mal visto. Branco é quem compra disco. (SILVA, Ismael. Depoimento ao MIS. Apud. DEALTRY, op. cit., p. 72-3)

Através do samba há uma modificação significativa no discurso sobre o

negro brasileiro. Pela primeira vez, a voz negra canta e conta suas mazelas, seus

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sonhos, suas questões. O compositor fala para os seus, mas dialoga, também, com

o restante da sociedade que agora escuta o que ele próprio tem a dizer sobre si,

não sendo mais apenas intermediado por discursos, em grande parte,

depreciadores. Segundo as palavras de Giovanna Dealtry, “o fato marcante é que

pela primeira vez em nossa história o negro está produzindo seu próprio discurso,

falando de si para os seus e para o resto da sociedade” (op. cit., p. 67).

Como foi afirmado anteriormente, Chico Buarque é um sambista da elite.

Logo, não sofreu perseguição por ser sambista; não lutou pela sobrevivência em

subempregos. Podemos compreender ainda suas composições iniciais de sambista

como marca do que havia de mais sofisticado no período em que começa a

compor — momento em que se busca uma aproximação com o povo e sua cultura,

considerados fontes criativas originais do Brasil. Não intenciono com isso

concluir que Chico estivesse apenas tirando proveito da “onda do momento”, pois

a continuidade do samba em sua obra mostra que não foi por oportunismo que o

artista compõe sambas e afirma ser sambista.

Já que a realidade de Chico não é equivalente à da maioria dos sambistas

anteriores, sua narrativa de sambista — narrativa esta que muito se aproxima de

relatos da realidade que cerca o artista — não pode ser equivalente à daqueles.

Nosso artista tem vários sambas que falam de sua história pessoal, com dados

biográficos e verídicos. O famoso “Samba de Orly” é um ótimo exemplo. Exilado

na Itália compõe junto com Vinicius uma lamuriosa letra para a música de

Toquinho, que voltava para o Brasil:

Vai meu irmão Pega esse avião Você tem razão De correr assim desse frio Mas beija o meu Rio de Janeiro Antes que um aventureiro Lance mão Pede perdão Pela duração [Pela omissão] Dessa temporada [Um tanto forçada] Mas não diga nada Que me viu chorando E pros da pesada Diz que eu vou levando

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Vê como é que anda Aquela vida à-toa E se puder me manda Uma notícia boa.29

Estou trabalhando com a hipótese de que sambas são, muitas vezes, relatos

da realidade dos compositores, portanto, autobiográficos. Comprovando a

“veracidade” da história narrada na canção, os versos entre parênteses foram

vetados pela censura, que nem sempre permitia aos artistas relatar as histórias da

maneira que gostariam.

A realidade e as origens de Chico, entretanto, não o impediram que,

criando personagens — marca forte de sua obra — falasse do outro lado, de uma

história que não foi a sua. Retratar as mazelas da sociedade brasileira é mais uma

das principais características da obra desse artista brasileiro. Recentemente, ele

declarou o seguinte:

O lado mais miserável da pobreza [...] eu tive contato com ele, por algum tipo de preocupação social de gente que me criou e me acompanhou desde minha primeira juventude. [...] Não acredito que o fato de ter sido bem criado, ter freqüentado boas escolas, me faça sentir estranho perto do mundo da pobreza, da miséria e da violência que têm acompanhado a gente dia-a-dia. Tenho visto isso o tempo todo, cada dia crescendo mais. Se eu pegar minha música não vejo essa coisa mitificada. (Revista Ocas, op. cit., p. 22-3)

No disco “Chico Buarque de Hollanda”, de 1966, encontramos o samba

“Meu refrão”, no qual constam os versos:

Quem canta comigo Canta o meu refrão Meu melhor amigo É meu violão Já chorei sentido De desilusão Hoje estou crescido Já não choro não Já brinquei de bola Já soltei balão Mas tive que fugir da escola Pra aprender esta lição Quem canta comigo Canta o meu refrão

29 “Samba de Orly”, Construção, faixa 7.

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Meu melhor amigo É meu violão O refrão que eu faço É pra você saber Que eu não vou dar braço Pra ninguém torcer Deixa de feitiço Que eu não mudo não Pois eu sou sem compromisso Sem relógio e sem patrão Quem canta comigo Canta o meu refrão Meu melhor amigo É meu violão Eu nasci sem sorte Moro num barraco Mas meu santo é forte E o samba é meu fraco No meu samba eu digo O que é de coração Mas quem canta comigo Canta o meu refrão Quem canta comigo Canta o meu refrão Meu melhor amigo É meu violão30

Como podemos perceber, esses versos retratam a realidade de um sambista

popular, aparentemente aquele associado ao malandro — sem compromisso, sem

relógio e sem patrão. As palavras do narrador são equivalentes aos incontáveis

relatos daqueles que estão, de fato, contando suas histórias pessoais. Observamos,

mais uma vez, que Chico Buarque consegue retratar uma grande diversidade de

“histórias” com seus sambas.

Conforme declarou Ismael Silva em depoimento do MIS, eram os brancos

que compravam discos, não os negros. É para este público majoritariamente,

portanto, que as canções eram gravadas. Atualmente, uma longa discussão a

respeito da pirataria de CDs está em curso. Entretanto, conferindo os preços dos

discos oficiais nas lojas, percebemos que a pirataria serviu como estratégia para

que a situação denunciada por Ismael Silva não continuasse se perpetuando.

Grande quantidade de discos pirateados são de artistas populares que agradam aos

30 “Meu refrão”, Chico Buarque de Hollanda (1966), faixa 11.

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gostos do povão em geral. Fazendo uma constatação particular, nunca vi em

bancas de CDs piratas nenhum disco de Chico Buarque. Estamos aqui discutindo

nesta dissertação a veracidade ou não da autoproclamação de Chico Buarque

sambista, entretanto, não podemos deixar de constatar, mais uma vez, que há

várias espécies de sambistas na cultura brasileira. Zeca Pagodinho declarou certa

vez, em entrevista, não se importar que seus CDs fossem pirateados: “quem puder

comprar o original compre; quem não puder, compre o pirata”. Mais uma vez nos

deparamos com a desigualdade financeira com que convivemos, que impossibilita

mesmo que nomes da cultura nacional sejam, democraticamente, conhecidos.

Ouvimos críticas ao pagode, ao sertanejo, muitas vezes considerados “sub-

cultura” pela “erudita” intelectualidade carioca e brasileira. Entretanto, pouco se

ouve falar da impossibilidade das classes periféricas de conhecer nomes que são

considerados os mais sofisticados, os “mitos” muitas vezes, de nossa cultura para,

então, terem poder de escolha, optarem por suas preferências pessoais. Mitos

esses que passaram, em sua maioria absoluta, pela cultura popular de origem

popular, mas que, por vezes, compõem trabalhos direcionados a seus pares

apenas. Não considero que toda arte deva ser engajada, mas percebo que a

inversão do caminho — do popular para o erudito, do povo para a elite — ainda é

complicadíssimo no Brasil.

Fechando o capítulo, retornaremos agora às palavras iniciais de Teresa

Cristina. A cantora declara que há uma distinção entre aqueles que são

reconhecidos como sambistas e artistas da MPB — o que a faz refutar esta

discussão, já que, segundo seu depoimento, não considera Chico Buarque

sambista, ou um “verdadeiro sambista”, mas um artista popular da elitista MPB,

que se sentiu honrado por ter sido reconhecido como tal pela Estação Primeira de

Mangueira. A crítica da artista, falando que as rádios sabem muito bem distinguir

sambistas e artistas da MPB, é muito coerente a partir do momento em que,

escutando rádios como a MPB FM, por exemplo, raros são os sambas mais

próximos do considerado “tradicional” que escutamos— aquele a que ela estaria

mais próxima.

Entretanto, escutamos com freqüência ao menos uma interpretação da

cantora na referida rádio: atualmente, há uma versão do samba “Meu guri”, do

“não sambista” Chico Buarque, regravada por ela, tocando na programação da

MPB FM. A versão é parte integrante de um show que a “sambista” realizou

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recentemente, cantando apenas canções do “artista da MPB” Chico Buarque, que

se orgulhou outrora por ter sido chamado de sambista... (Não foi Teresa quem

dissera ser “sambista mesmo” e não “cantora de MPB”? Ou será que ela

reconheceu entre as canções de Chico um trabalho de sambista, mesmo que não

seja do que considera um “autêntico” sambista?)

Brincadeiras à parte, como vemos, ainda hoje alguns sambistas têm de

recorrer, conscientemente ou não, a estratégias “malandras” para que seus

trabalhos sejam divulgados nos ambientes valorizados socialmente, já que a

referida rádio é hoje “exemplo” de sofisticação nas emissoras FM, por tocar MPB.

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5 Estação Derradeira

“É melhor ser alegre que ser triste

Alegria é a melhor coisa que existe É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza É preciso um bocado de tristeza É preciso um bocado de tristeza

Senão não se faz um samba não.”

Samba da benção

Vinicius de Moraes e Baden Powell

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Assim como o “Samba da benção” de Vinicius e Baden, que serve de

epígrafe nestas palavras finais, muitas composições falam da tristeza, presente na

história de muitos sambistas e refletidas em suas canções. Muitos outros sambas

falam da alegria do carnaval — efêmera, passageira. “Quarta-feira sempre desce o

pano”, cantou o jovem Chico Buarque, em 1966. Entretanto, podemos ver, em

determinados ambientes, que o samba ainda é fonte de muita alegria, mesmo fora

dos tempos de carnaval, quando “harmonia”, igualdade e bom convívio são

palavras de ordem.

Busquei com este trabalho mostrar que há distintas maneiras de

compreensão e recepção de sambistas. No decorrer do tempo, sua imagem foi se

transformando e hoje ela é mais plural do que fora anteriormente. Tive a feliz

oportunidade de encontrar a declaração de Chico Buarque em um ambiente

inesperado e iniciar as especulações que levaram à confecção desta dissertação.

Persegui, ainda, defender com este texto a autoproclamação do artista. As

bases de reflexão são todo o histórico apresentado, referentes à história híbrida do

samba e dos sambistas, assim como as “provas empíricas” buscadas na obra de

Chico, em sua trajetória e em seus depoimentos. Além disso, busquei enfatizar

que a associação do samba a determinados segmentos sociais e ao negro

exclusivamente podem ser estratégias, nem sempre bem intencionadas.

O lugar da cultura popular no cenário artístico brasileiro é muito marcante.

Em nosso país suas influências podem ser encontradas na maioria das

manifestações artísticas nacionais, mesmo quando estas estão aliadas à arte

erudita, dos livros ou da música, por exemplo. Infelizmente, o caminho inverso,

ou seja, o acesso do povo aos instrumentos da cultura de elite, mesmo que esta já

esteja contaminada pelo popular ou tenha nele sua influência absoluta, é muito

mais complicado e difícil, em diversos aspectos.

Chico Buarque afirmou diversas vezes conhecer os trabalhos dos

sambistas tradicionais, influenciado pelo gosto dos pais, admiradores, também, do

cancioneiro popular. Eles são parte significativa de sua influência e de seu

trabalho, no decorrer desses mais de 40 anos. A obra de Chico, no entanto, é

muito mais restrita a um contexto específico. Paulo César de Araújo observou no

artigo “Chico Buarque e as raízes do Brasil” que:

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Depois que a banda passou, Chico foi-se tornando cada vez mais um artista restrito ao público de elite, segmento que a indústria cultural classifica como A e B. Donde a imprecisão de considerá-lo “unanimidade nacional”. [...] Hoje, os discos e canções de Chico são para consumo e deleite majoritariamente do público de classe média, da Zona Sul carioca ou de áreas nobres das grandes metrópoles do país. Ele é, neste sentido, um artista basicamente local, e restrito a sua classe social. Não há muita comunicabilidade entre Chico Buarque e as raízes do Brasil, aquele Brasil mais profundo, mais pobre, maior. (“Chico Buarque e as raízes do Brasil – Em questão a falta de contato entre o cantor e o povo”, Jornal do Brasil, p. B8)

Todos nós sabemos que essa constatação é absolutamente coerente. A

circulação da obra de Chico Buarque é mormente restrita a determinados

contextos sociais e intelectuais, mesmo tendo sido eleito numa enquete da revista

IstoÉ , em 1999, o “músico brasileiro do século” (porém, por este mesmo público,

leitor da referida revista).

O projeto de Gilberto Freyre, de “todo mundo junto”, da mestiçagem como

originalidade e diferencial, de um convívio mais harmônico do que de fato é e foi

na história brasileira talvez possa ser reconhecido nos trabalhos de Chico Buarque

como sambista. Neles, o passado não nega o presente, o erudito não pretende-se

superior ao popular, os conhecimentos das culturas negra e branca são

responsáveis pela unidade. Pelo contrário da oposição dual, tão comum em nosso

pensamento ocidental, os pólos unidos são responsáveis pelo produto final, que,

caso seja repartido, se não destruir empobrece muito o todo. O sambista Chico

Buarque situa-se entre o popular e o erudito. O artista Chico Buarque, escritor e

sambista, situa-se entre o popular e o erudito.

No que diz respeito à arte, em inúmeros trabalhos, temos o Brasil que

muitos de nós sonhamos. Mas, infelizmente, como denunciara Nietzsche ainda no

século XIX, arte e vida andam, há muito tempo, separadas.

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Cambaio, BMG, 2001.

Duetos, BMG, 2002.

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7 Anexo

Folha de S. Paulo – 06/10/1994.

José Geraldo Couto

Chico quer ser um sambista que escreve

Chico quer ser um sambista que escreve. O compositor, que está finalizando um novo

livro, tem seu romance Estorvo lançado por uma editora alemã. Chico Buarque, o

astro principal do Brasil na 46ª Feira de Livros de Frankfurt, sente-se “um peixe

d’água” entre os escritores. Ele está na Alemanha para divulgar o lançamento de seu

romance Estorvo pela editora Hanser. Em seu hotel em Frankfurt, ele falou à Folha

sobre sua divisão interna entre compositor e romancista, e comentou as eleições

brasileiras. Só evitou falar do romance que está escrevendo: “Ainda sei muito pouco

sobre ele”.

Folha – Incomoda a você ser visto como um compositor popular que eventualmente

escreve, e não como um escritor?

Chico Buarque – Não me incomoda nada. Outro dia, num jornal, um sujeito para

falar mal de mim me chamou de sambista, como se fosse um insulto. E eu sou um

sambista. Quando eu morrer, quero que digam: “morreu um sambista que escrevia

livros”. Não estabeleço nenhuma hierarquia.

Folha – Você escreveu livros antes, mas é com Estorvo que começou essa sua

divisão?

Chico Buarque – Eu acho que sim. As peças de teatro eu considero uma extensão do

meu trabalho musical. Estorvo e esse livro de agora correspondem a uma necessidade

íntima. Não há nenhuma pressão externa para que eu escreva. Meus amigos músicos

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vivem me dizendo: “não escreve não.” E o público também. Acho que a única pessoa

que quer que eu escreva é meu editor (risos).

Folha – Estorvo foi lido como testemunho do Brasil de hoje, com seu caos social e

sua falta de perspectivas. É assim que você vê o país?

Chico Buarque – Quando escrevi Estorvo, sim, sem dúvida. Mas em nenhum

momento tive a intenção de simbolizar o que quer que fosse. Não me incomoda que

haja essa leitura, mas se eu tivesse pensado nisso, eu não conseguiria escrever.

Folha – Você acha que o Brasil ser tema da Feira de Frankfurt vai contribuir para

mudar a situação da literatura brasileira no exterior?

Chico Buarque – Espero que sim, porque é muito mais difícil ser escritor brasileiro

aqui fora do que músico. A gente encontra livros brasileiros nas estantes de espanhóis

ou hispano-americanos nas livrarias. É difícil mostra que não temos nada a ver com

essa coisa do realismo-mágico. Tem uma passagem interessante do livro Visão do

paraíso, do meu pai (Sérgio Buarque de Hollanda), em que ele compara os relatos

dos exploradores portugueses e os dos espanhóis na América. Enquanto os espanhóis

faziam relatos exuberantes, os portugueses atenuavam as coisas para torná-las

verossímeis. Acho que essa diferente se reflete ainda hoje na literatura da América

Latina.

Folha – Você apoiou Lula. Como vê a perspectiva de um governo Fernando

Henrique?

Chico Buarque – Acho que, dos presidentes da história do Brasil, ele é o que tem a

melhor biografia. Espero que ele respeite o seu passado, embora eu tenha minhas

dúvidas. Não quero, sinceramente, dizer depois: “Está vendo, eu não disse?” Mas não

quero também que façam como depois do Collor, que diziam: “Com o Lula seria

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pior.” Como sabem, se ele não tem uma chance? Admiro muito o Lula, considero-o

muito preparado, mas parece que está proibido que ele governe o país. É uma pena.

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